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Marcelo Mello Valença

Novas Guerras, Estudos para a Paz e Escola de Copenhague:


uma contribuição para o resgate da violência pela Segurança
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710844/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais da PUC-Rio.

Orientador: Kai Michael Kenkel

Rio de Janeiro, junho de 2010


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Marcelo Mello Valença

Novas Guerras, Estudos para a Paz e Escola de Copenhague:


uma contribuição para o resgate da violência pela Segurança

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do


título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710844/CA

Relações Internacionais da PUC-Rio. Aprovada pela


Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Kai Michael Kenkel


Orientador
Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio

Prof. Monica Herz


Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio

Prof. Gustavo Sénéchal de Goffredo


Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Clovis Eugenio Georges Brigagao


Universidade Candido Mendes - UCAM

Prof. Vagner Camilo Alves


Universidade Federal Fluminense - UFF

Prof. Monica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 11 de junho de 2010.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.

Marcelo Mello Valença


Mestre em Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio, 2006) e
bacharel em Direito (PUC-Rio, 2003). Tem interesse nas áreas
de Estudos de Guerra e de Paz, Segurança Internacional, Direito
Internacional e métodos de aprendizado ativo para as Ciências
Sociais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710844/CA

Ficha Catalográfica
Valença, Marcelo Mello

Novas guerras, estudos para a paz e Escola de


Copenhague: uma contribuição para o resgate da violência pela
segurança / Marcelo Mello Valença ; orientador: Kai Michael
Kenkel. – 2010.
327 f. ; 30 cm

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2010.
Inclui bibliografia

1. Relações internacionais – Teses. 2. Segurança


internacional. 3. Violência. 4. Novas guerras. 5. Estudos para a
paz. 6. Escola de Copenhague. 7. Sarajevo. I. Kenkel, Kai
Michael. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Instituto de Relações Internacionais. III. Título.

CDD: 327
Agradecimentos
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À Tatiana, por toda a força, companheirismo, incentivo e paciência em todos os


momentos. Eu te amo.

Aos meus pais, à minha irmã e ao meu tio George, pelo carinho incondicional e pela
torcida para o sucesso desta tese. Sem vocês, este trabalho não teria sido possível.

Ao Professor Kai Michael Kenkel, pela orientação, conselhos e camaradagem.

Aos Professores Monica Herz, Gustavo Sénéchal de Goffredo, Vagner Camilo Alves
e Clóvis Brigagão, por comporem a banca de Doutorado e pelo debate proporcionado
durante a defesa, enriquecendo os resultados deste trabalho com suas críticas e
sugestões.

Pelas infindáveis discussões acaloradas e sem sentido que ajudaram a manter a


cabeça funcionando, meu muito obrigado aos amigos de todas as horas e todos os
tempos: Marcio, Bia, Roque, Tiquinho, Rafael, Aurélio, MB, Tranjan e Coruja.

Aos amigos que, envolvidos direta ou indiretamente na tese, ouviram lamúrias,


reclamações e descobertas (geniais ou não) e ajudaram a concretizar essas idéias:
Renata Ferreira, Gustavo Carvalho, Nizar Messari, Eduarda Hamann, Leonardo Paz,
Paulo Ferracioli e Jana Tabak.

Ao amigos do futebol, por todas as provocações e pelas longas partidas de videogame


que deixavam a vida menos séria: Gontojo, Gabriel, Digão, Daniel, Danete, Kallás e
Max.

Aos meus alunos das turmas de Problemas da Guerra e da Paz da PUC-Rio de 2006 a
2009, pelo espaço para o nascimento das idéias que levaram a esta tese. Muito do
que está nesta tese vocês ouviram em primeira mão. Agradeço ainda aos alunos que
se tornaram amigos e ajudaram com sugestões, comentários e apoio ao longo dessa
caminhada: Manoela Assayag, Fernando Malta, Rafael Gastão, Thiago Abrahão e
Carolina Taboada.

À equipe do IRI, em especial à Professora Letícia Pinheiro, Regina Abranches,


Natacha Oliveira, Vera Lira e Luciana Varanda, por toda a amizade durante esses
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anos.

Ao CNPq, à Capes e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos para a conclusão deste


trabalho.
Resumo

Valença, Marcelo Mello; Kenkel, Kai Michael. Novas Guerras, Estudos


para a Paz e Escola de Copenhague: uma contribuição para o resgate da
violência pela Segurança. Rio de Janeiro, 2010. 327p. Tese de Doutorado –
Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

A tese questiona a marginalização da violência pela literatura dos Estudos


de Segurança, o que promoveu o afastamento do campo da dimensão política. Os
movimentos de alargamento e aprofundamento tornaram a discussão teórica de
Segurança mais rica, mas, ao deixarem de problematizar a violência, levaram à
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ruptura da relação produtiva entre teoria e prática que norteava os estudos da


disciplina desde a sua origem. Desta forma, temas complexos como as novas
guerras explicitam a ausência do debate conceitual sobre violência na literatura de
Segurança, ocasionando uma carência explicativa para o entendimento desse
elemento. Esta tese evidencia que nas novas guerras a violência deixa de ser um
meio para se tornar um fim em si mesmo. Ela mostra que os atores envolvidos no
conflito armado optam por perpetuar a violência porque esta proporciona ganhos
que não são possíveis em tempos de paz. Como alternativa para suprimir essa
lacuna explicativa da Segurança, sugere-se que o diálogo da Escola de
Copenhague com os Estudos para a Paz, especialmente do processo de
securitização com a tipologia da violência, devolve o instrumento conceitual – o
próprio conceito de violência – aos Estudos de Segurança e restabelece a relação
produtiva entre teoria e prática. O caso do cerco a Sarajevo é trazido como
ilustração para o problema e a dinâmica que esta tese explicita.

Palavras-chaves:
Segurança internacional; Violência; Novas Guerras; Estudos para a Paz;
Escola de Copenhague; Sarajevo.
Abstract

Valença, Marcelo Mello; Kenkel, Kai Michael (Advisor). New Wars,


Peace Studies and the Copenhagen School of International Relations:
bringing violence back into security studies. Rio de Janeiro, 2010. 327p. Ph. D.
dissertation – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

The dissertation focuses on the marginalization of violence by security


studies. While the widening and deepening of security contributed positively to
theoretical debates in the field, these moves led to a breakdown of the productive
relationship between theory and practice that had characterized the discipline
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since its genesis. In this way, themes such as the “new wars” highlight the
absence of a conceptual debate about violence in security studies, leading to a lack
of explanatory capacity for understanding violence. The dissertation shows that
violence becomes an end unto itself as the “new wars” offer incentives absent in
everyday politics. The text suggests, with a view to filling this analytical lacuna
within security studies, increased dialogue between the speech act approach
espoused by the Copenhagen School and typologies of violence established by
scholars within peace studies. Such a dialogue would bring back to security
studies the important analytical focus on violence, thus reestablishing a productive
relationship between theory and practice. As an illustrative example, the
dissertation uses the siege of Sarajevo.

Keywords:
International Security Studies; Violence; New Wars; Peace Studies; The
Copenhagen School of International Relations; Sarajevo.
Sumário

1 Introdução 14  

2 Situando o argumento 18  
2.1.  As  origens  dos  Estudos  de  Segurança   19  
2.1.1.  Violência  como  escolha  estratégica:  a  teoria  estratégica  e  a  filosofia  política   20  
2.1.2.  Violência  como  guerra:  as  Relações  Internacionais   23  
2.2.  A  formalização  da  Segurança  e  o  desenvolvimento  do  campo   28  
2.2.1.  A  Segurança  na  Guerra  Fria   29  
2.2.1.1.  A  Era  de  Ouro   30  
2.2.1.2.  O  Renascimento  dos  estudos  de  Segurança   33  
2.2.2.  A  Segurança  na  linha  de  fogo:  alargamento  e  aprofundamento   35  
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2.2.3.  A  perda  da  relação  produtiva  entre  teoria  e  prática  na  Segurança   37  
2.3.  Produzindo  conhecimento  útil:  a  relação  produtiva  entre  teoria  e  prática  e  a  
relevância  política   40  
2.4.  Pergunta  de  pesquisa  e  hipóteses   45  
2.4.1.  Pergunta  de  pesquisa   45  
2.4.2.  Hipóteses   46  
2.4.2.1.  Hipóteses  auxiliares   46  
2.5.  Questões  metodológicas   47  
2.5.1.  A  escolha  do  arcabouço  teórico  para  revisão  da  literatura  de  Segurança   47  
2.5.2.  A  importância  e  o  caráter  ilustrativo  do  caso  apresentado   50  
2.5.3.  Definições  e  conceitos   52  

3 A literatura de Segurança 54  
3.1.  There  and  Back  Again:  o  papel  do  Realismo   60  
3.2.  O  alargamento  da  Segurança:  o  impacto  do  Liberalismo   67  
3.3.  O  Aprofundamento  da  Segurança   76  
3.3.1.  Os  Estudos  Críticos  de  Segurança   77  
3.3.1.1.  Os  Estudos  Críticos   80  
3.3.1.2.  Escola  Galesa   92  
3.3.2.  A  Segurança  Humana   99  
3.3.3.  Escola  de  Paris  e  a  Sociologia  Política  Internacional   103  
3.3.4.  Escola  de  Copenhague   109  
3.4.  Conclusão   118  

4 Novas Guerras, Segurança e violência 122  


4.1.  As  Guerras  Tradicionais   127  
4.1.1.  Os  eixos  analíticos  aplicados  à  guerra  tradicional   129  
4.1.1.1.  A  institucionalização  da  guerra   129  
4.1.1.2.  A  dinâmica  econômica  que  sustentava  as  guerras  tradicionais   132  
4.1.1.3.  O  warfare  das  guerras  tradicionais   133  
4.1.2.  O  papel  da  violência  das  guerras  tradicionais   137  
4.1.2.1.  A  violência  organizada  para  o  Estado   137  
4.1.2.2.  A  violência  organizada  para  a  Segurança   138  
4.2.  As  Novas  Guerras   141  
4.2.1.  Situando  a  origem  histórica:  convergindo  as  tipologias  para  um  modelo  
comum   144  
4.2.1.1.  As  novas  guerras  do  pós-­‐II  Guerra  Mundial   146  
4.2.1.2.  As  novas  guerras  do  pós-­‐Guerra  Fria   148  
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4.2.1.3.  Em  busca  de  uma  síntese:  uma  convergência  conceitual   150  
4.2.2.  Os  eixos  analíticos  da  guerra  nas  novas  guerras:  mudanças  nas  dinâmicas   152  
4.2.2.1.  A  Quebra  da  Institucionalização  e  a  Mudança  nos  Objetivos   154  
4.2.2.2.  O  warfare  das  novas  guerras   162  
4.2.2.3.  Os  mecanismos  de  financiamento  e  suporte  das  novas  guerras   170  
4.2.3.  As  dinâmicas  e  a  dimensão  da  violência  nas  novas  guerras   176  
4.2.3.1.  A  Violência  Top-­‐Down   178  
4.2.3.2.  A  Violência  Bottom-­‐Up   181  
4.2.4.  Enxergando  as  mudanças:  o  papel  social  da  violência  nas  novas  guerras   185  
4.3.  Conclusão   194  

5 Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos


Estudos para a Paz e da macro-securitização 198  
5.1.  A  ausência  da  problematização  da  violência  na  Segurança   200  
5.2.  A  Contribuição  dos  Estudos  para  a  Paz   204  
5.2.1.  A  violência  como  objeto  de  estudos  e  a  redução  da  violência  como  objetivo  de  
pesquisa   206  
5.2.2.  Uma  tipologia  da  violência   208  
5.2.2.1.  A  Violência  direta   211  
5.2.2.2.  A  Violência  estrutural   212  
5.2.2.3.  A  Violência  cultural   214  
5.2.3.  Paz  ou  redução  da  violência   217  
5.2.4.  Contribuições  para  o  estudo  da  Segurança  e  para  a  compreensão  das  novas  
guerras   219  
5.3.  A  Escolha  da  Escola  de  Copenhague  para  analisar  a  violência  das  novas  guerras
  221  
5.3.1.  Relação  Ameaça  Existencial  vs.  Violência   222  
5.3.2.  As  Dinâmicas  da  Securitização   225  
5.3.3.  As  Limitações  da  Securitização   229  
5.3.4.  A  utilização  da  macro-­‐securitização  para  superar  as  limitações  do  Estado   233  
5.3.5.  A  Macro-­‐securitização,  Estudos  para  a  Paz  e  as  Novas  Guerras   237  
5.4.  Reagindo  às  novas  guerras:  a  macro-­‐securitização  como  forma  de  evidenciar  a  
violência  e  estimular  medidas  excepcionais  para  contê-­‐la   239  
5.4.1.  Os  discursos  políticos  de  exclusão   240  
5.4.2.  Práticas  sociais  e  políticas  institucionais   241  
5.4.3.  Os  atores  securitizadores   243  
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5.5.  Conclusão   245  

6 O cerco a Sarajevo 248  


6.1.  Os  antecedentes  da  guerra:  uma  brevíssima  história  da  Iugoslávia   251  
6.2.  A  década  de  1980:  o  discurso  político  e  a  política  de  identidade   256  
6.3.  O  cerco  a  Sarajevo   265  
6.3.1.  Uma  guerra  contra  a  população   268  
6.3.1.1.  Os  ataques  contra  a  cidade:  mais  que  um  alvo,  uma  representação   270  
6.3.1.2.  Os  indivíduos  como  alvos:  não-­‐combatentes  e  não-­‐pessoas   272  
6.3.1.3.  A  quebra  da  institucionalização  da  guerra  e  da  mudança  no  warfare   277  
6.3.2.  A  participação  de  grupos  privados  na  guerra   278  
6.3.2.1.  A  defesa  patriótica  de  Sarajevo   278  
6.3.2.2.  A  violência  pela  violência   281  
6.3.2.3.  A  continuidade  do  conflito   285  
6.4.  A  securitização  do  cerco   286  
6.4.1.  A  impossibilidade  de  securitização  da  violência  através  do  nível  estatal   287  
6.4.2.  Atores  securitizadores,  audiência  e  o  discurso  de  securitização   289  
6.4.2.1.  A  Operação  Irma   291  
6.4.2.2.  A  turnê  Zooropa  do  U2   292  
6.4.2.3.  Condições  facilitadoras  do  discurso  de  securitização   293  
6.5.  Conclusão   294  

Conclusão 297  
Uma  nova  face  da  violência   298  
A  violência  como  fim   300  
A  contribuição  para  a  relação  produtiva  entre  teoria  e  prática  na  Segurança   302  
Trazendo  a  violência  para  a  Segurança:  os  Estudos  para  a  Paz  e  a  macro-­‐
securitização   304  
Contribuições  para  a  disciplina  de  Relações  Internacionais   305  

Referências bibliográficas 307  


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Abreviaturas e Acrônimos

Acnur Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ARBiH Exército da República da Bósnia-Herzegovina

BH Bósnia-Herzegovina

CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha

CS Conselho de Segurança da ONU

DIH Direito Internacional Humanitário

IMDB Internet Movie Database


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JNA Exército Nacional da Iugoslávia

LCI Liga dos Comunistas da Iugoslávia

ONG Organizações Não-Governamentais

ONU Organização das Nações Unidas

Otan Organização do Tratado do Atlântico Norte

PCI Partido Comunista Iugoslavo

RS República Sérvia

Sanu Academia Sérvia de Artes e Ciências

TBMIP The Bosnian Manuscript Ingathering Project

TCPB The Centre for Peace in the Balkans

TGE Teoria Geral do Estado

Unprofor Força de Proteção das Nações Unidas

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

VS Exército da República Sérvia


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They wrote in the old days that it is sweet and fitting


to die for one’s country. But in modern war, there is
nothing sweet nor fitting in your dying. You will die
like a dog for no good reason.
(Ernest Hemmingway)
I like to believe that people in the long run are going
to do more to promote peace than our governments.
Indeed, I think that people want peace so much that
one of these days governments had better get out of
the way and let them have it.
(Dwight D. Eisenhower)
Your country ain't your blood. Remember that.
(The Godfather: Part II)
1
Introdução

A Segurança, assim como os arcabouços teóricos que deram origem a ela –


a teoria estratégica e as Relações Internacionais –, é caracterizada por ter uma
dimensão prática bastante forte. A produção de conhecimento pelo teórico é
caracterizada pela atenção às necessidades do formulador de decisões. Fazer
teoria é oferecer status epistemológico privilegiado a um tema ou elemento e, com
isso, proporcionar as bases nas quais as análises e tomadas de decisões políticas se
originariam. Quando teorizamos a respeito de algo, fazemos perguntas que
permitem a análise empírica e teórica do objeto de estudos, estabelecendo a
relação entre observador e o objeto. Dessa análise nasceria a ação (Thompson,
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1955, p. 738), estreitando a conexão entre os campos teórico e prático.

A teoria emana da prática, que obtém com a teoria as diretrizes para ação,
em uma relação de mútua colaboração: a teoria instrui a prática, que por sua vez,
dá as bases para o desenvolvimento da teoria. Chamamos essa interação de
relação produtiva entre teoria e prática, que resulta em um conhecimento
relevante, útil para o processo de tomada de decisões.

O conhecimento produzido pela teoria é, portanto, voltado para a prática.


Ele permite o desenvolvimento de estratégias de ação e modelos analíticos para a
análise do problema enfrentado, possibilitando a tomada de decisões a partir de
escolhas racionais, fundamentadas em interesses e previsões de sucesso. Em
contrapartida, a prática política permite a acumulação da experiência para o
refinamento da reflexão teórica, proporcionando um conhecimento mais preciso
conforme se dê o envolvimento do teórico com os problemas políticos. Não
obstante essa maior complexidade, o conhecimento ainda se mantém
operacionalizável.

Contudo, essa relação produtiva na Segurança foi rompida, afastando os


teóricos dos formuladores de decisão e comprometendo a produção de
conhecimento relevante. É esta ruptura que essa tese quer evidenciar e resgatar.
Introdução 15

Assim, esta tese tem como objetivo explicar por que a literatura de
Segurança deixou de associar teoria e prática de forma produtiva. Nossa hipótese
central sugere que a relação foi rompida pela marginalização do tema “violência”
no debate teórico da disciplina, que deixou de problematizar a violência e
ocasionou a perda do seu eixo orientador, que caracterizaria a disciplina.

Entendemos violência como o uso deliberado da força para atingir fins


políticos. A violência é um meio para alcançar objetivos, mas a literatura de
Segurança tirou esse sentido da análise. Com as mudanças acontecidas na política
internacional nas décadas de 1980 e 1990 e o afluxo teórico para a Segurança, a
violência deixou de ser associada a uma escolha estratégica para se tornar um
instrumento renegado e uma condição que impede a realização da política. O uso
da força foi esquecido e a violência, aos poucos transformada em condição, não
mais em meio.

Temas complexos, como é o caso das novas guerras, evidenciam essa


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carência. Sua compreensão em muito se baseia na violência como estratégia


deliberada pelos atores envolvidos, repercutindo em esferas diversas como a
economia, meio ambiente, identidades e governança. Mas o elemento de
convergência para entender esse fenômeno é a violência. A Segurança, contudo,
perde a sua capacidade explicativa ao negligenciá-la.

De modo a restabelecer a relação produtiva entre teoria e prática, trazemos o


instrumental analítico dos Estudos para a Paz e a macro-securitização. Sugerimos
que a relação produtiva pode ser retornada através do diálogo da literatura de
Segurança – mais especificamente do arcabouço teórico da Escola de Copenhague
– com aqueles dois instrumentais. Para ilustrar a carência que evidenciamos e as
proposições que fazemos, trazemos o cerco a Sarajevo, ocorrido durante a guerra
da Bósnia-Herzegovina, como caso empírico.

Estruturamos nosso trabalho em cinco etapas. Na primeira oferecemos uma


contextualização do debate e da centralidade da violência para a Segurança. Nela
também apresentamos pergunta de pesquisa e formalizamos nossas três hipóteses
de trabalho, brevemente pinceladas nesta introdução, bem como algumas breves
considerações metodológicas.
Marcelo Mello Valença 16

Os capítulos três, quatro e cinco correspondem à exploração de nossas


hipóteses, apresentadas na seção 2.4.2. No capítulo três procedemos com a
revisão da literatura de Segurança. O eixo que guia nossa análise é a violência
como uso da força e de que maneira as teorias trabalhadas lidam – ou não – com
esse conceito. Concluímos que o arcabouço teórico da Segurança – até mesmo os
realistas, que propuseram as bases da disciplina – deixou de tratar a violência para
se focar em aspectos epistemológicos e que proporcionariam a realização de suas
propostas teóricas. Não obstante essa marginalização, sugerimos que a Escola de
Copenhague apresenta validade para recuperar essa relação, desde que se supere
os limites de sua teoria de Estado e problematize a ameaça existencial como
violência.

O capítulo quatro consiste da discussão sobre a guerra – as novas e as


tradicionais. Definimos guerra partir da proposta de Hedley Bull (2002, p. 212)
de violência organizada promovida entre unidades políticas e realizamos nosso
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estudo a partir de três eixos analíticos: institucionalização, warfare e


financiamento. O propósito é compreender como a violência se manifesta nesses
dois tipos de guerra e explicitar a sua centralidade. Procedendo de tal forma, a
ausência de uma abordagem da violência é ressaltada.

O instrumental analítico dos Estudos para a Paz e da macro-securitização


são trazidos no capítulo cinco. Trabalhando primeiramente com a definição e a
tipologia de violência dos Estudos para a Paz, sugerimos que o conceito de
violência trazido por eles permite que enxerguemos relação com a violência das
novas guerras. Procedemos com a sua correlação com o conceito de ameaça
existencial da Escola de Copenhague. A macro-securitização, por sua vez, é
proposta para superar as limitações da sua teoria de Estado, permitindo que o
discurso de securitização fosse bem-sucedido em uma estrutura estatal não-
democrática. O discurso seria realizado por atores não-estatais e recebido por
uma audiência externa, que mobilizaria esforços para superar a condição de
ameaça existencial/violência.

No capítulo seis trazemos o estudo do cerco a Sarajevo, acontecido entre


1992 e 1995, como ilustração para nosso argumento. Inserindo-se no contexto
maior da guerra da Bósnia-Herzegovina, considerado paradigmático para o estudo
das novas guerras (Kaldor, 2001, p. 33), o cerco a Sarajevo é o aspecto mais
Introdução 17

visível e globalizado do conflito armado que assolou aquele país. Ele não apenas
consiste no cerco mais longo da História moderna, mas configura-se como um
empreendimento político que, sem perder seu foco militar, teve sua
institucionalização rompida, transformando-se em um exemplo da violência das
novas guerras, tanto pelos propósitos excludentes, quanto pela lógica colaborativa.
Seu resgate nesta tese tem por objetivo ilustrar e proporcionar exemplos da
dimensão da violência, bem como do papel que ela assume nas novas guerras.

Encerramos o trabalho com as conclusões, apresentadas no capítulo sete.


Retomamos nele o papel da violência, sua importância para a Segurança e
algumas reflexões sobre a validade de nossas hipóteses e a importância da análise
desenvolvida para a Segurança e as Relações Internacionais.
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2
Situando o argumento

Este capítulo situará o leitor no debate que desenvolvemos ao longo da tese.


Ele tem a função de apresentar as principais idéias e debates, suas bases históricas
e a correlação entre os argumentos desenvolvidos.

O capítulo se estrutura da seguinte maneira. Em 2.1 apresentamos as


origens dos Estudos de Segurança, a partir da interação entre filosofia política e
teoria estratégica e, posteriormente, através do surgimento das Relações
Internacionais. Mostramos que esses arcabouços intelectuais, todos voltados para
a solução de problemas, têm em comum a preocupação com a organização da
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violência e o oferecimento de conhecimento prático para os formuladores de


decisão.

Em 2.2 discutimos a formalização da Segurança como área acadêmica e o


desenvolvimento do campo. Mostramos as suas duas “fases” durante a Guerra
Fria (Walt, 1991) e a sua conexão com o processo decisório dos Estados Unidos
da América (“EUA”) durante aquele período. Apresentamos também as propostas
de ampliação e aprofundamento da segurança que se seguiram ao final da Guerra
Fria e trouxeram o tema segurança e a Segurança1 de volta aos debates político e
teórico e o impacto daqueles dois movimentos para a perda da relação produtiva
entre teoria e prática na disciplina.

Em 2.3 explicamos o que entendemos por relação produtiva, relevância


política e conhecimento útil. Trazemos definições imediatamente antes da

1
Cabe aqui um esclarecimento sobre a diferenciação entre Segurança e segurança neste
trabalho. O termo segurança, com s minúsculo, diz respeito a um tipo especial de política criado
pela interação entre atores políticos, gerando um estado que refletiria a presença ou não de
ameaças àquele ator: segurança é um problema político, mas nem todo problema político é
segurança (Walt, 1991; Buzan et al, 1998; Kolodziej, 2005). O que torna a segurança uma relação
especial é que ela permite o uso da violência (Kolodziej, 2005, p. 23). Estudos de Segurança (ou
simplesmente Segurança, com s maiúsculo), por outro lado, são vertentes ou arcabouços teóricos
que nos permitiriam explicar e entender o comportamento dos atores em relação à sua intenção de
usar a violência para atingir seus fins (Wolfers, 1952; Walt, 1991; Kolodziej, 2005). Constituem,
pois, uma contribuição racional ao estudo do agente. Neste trabalho, expressões como o “campo
da Segurança” e “área da Segurança terão significado igual ao de “Segurança”.
Situando o argumento 19

exposição de nossa pergunta de pesquisa e hipóteses de trabalho para que o


argumento seja instintivamente compreendido pelo leitor. Encerramos o capítulo
com algumas considerações metodológicas em relação ao processo de escolha das
teorias de Segurança revisadas no capítulo três, ao caso apresentado no capítulo
seis e a construção das definições de trabalho dos conceitos apresentados.

2.1.
As origens dos Estudos de Segurança

A relação entre teoria e prática na Segurança é estreita desde as suas


origens. Isso se deve à influência da área de Relações Internacionais, que sempre
foi guiada pela interação entre as perguntas dos formuladores de decisão e as
respostas dos teóricos (Kenkel, 2005, p. 10). Patrick Thaddeus Jackson (2010,
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sp.) resgata Kenneth Thompson para ilustrar essa relação entre teoria e prática,
mostrando que aquela emana desta. Os mesmos indivíduos que assessoravam
líderes e tomadores de decisões eram autores de trabalhos que sustentavam essas
estratégias. O intelectual deveria produzir conhecimento útil ao burocrata.2

Mostramos nessa seção as origens da Segurança e a centralidade da


violência em seu arcabouço intelectual. Partindo da teoria estratégica,
apresentamos o argumento de que a Segurança surge para ocupar o espaço
deixado pelas Relações Internacionais no pós-II Guerra Mundial na organização
da violência como estratégia política.

2
“Uma expressão concreta da antítese entre teoria e pratica na política é a oposição entre o
‘intelectual’ e o ‘burocrata’: o primeiro treinado a pensar, principalmente, por linhas apriorísticas,
e o último, a pensar ‘empiricamente’. É da natureza das coisas que o intelectual deva encontrar-se
do lado que procura adequar a prática à teoria; pois os intelectuais são particularmente relutantes
em reconhecerem seu raciocínio como condicionado por forças externas a eles próprios, e gostam
de pensar em si mesmos como líderes cujas teorias proporcionam a força motriz para os chamados
homens de ação” (Carr, 2001, p. 20-21). Essa colocação se aproxima bastante do comentário
jocoso feito por Leonard Woolf sobre o papel do teórico e do homem de ação, em diferentes
momentos: “[e]veryone is born either a ‘practical man’ or an ‘amiable crank’, and by their words,
oddly enough, you shall know them. (...) Now it is a curious fact that the practical man of
tomorrow almost invariably says exactly what the amiable crank is hanged or laughed at fot saying
by the practical man of today” (Woolf, 1916, p. 159).
De todo modo, usamos neste trabalho as expressões “intelectual” e “teórico” como
sinônimos para nos referirmos à produtores de conhecimento, acadêmico ou não, que auxiliem o
formulador de decisões a desenvolver suas diretrizes. Por outro lado, o uso dos termos
“burocrata”, “formulador de decisões” e “tomador de decisões” representa a mesma categoria de
operadores da política e de atores que participam do processo decisório.
Marcelo Mello Valença 20

2.1.1.
Violência como escolha estratégica: a teoria estratégica e a filosofia
política

O impacto da violência na política é tema freqüente na literatura de


Relações Internacionais. Considera-se o livro de Tucídides sobre a guerra do
Peloponeso (1987) como o primeiro relato sobre relações internacionais da
História (Boucher, 1998, p. 67-69), evidenciando o papel da violência como
instrumento de política.

Mesmo não tendo a intenção de escrever um tratado sobre política, a


História da Guerra do Peloponeso se tornou referência para a área,
proporcionando as bases de ação do Realismo (Brown, 1993, p. 515; Boucher,
1998, p. 76; Koliopoulos, 2010, sp.). Essas bases se repetiriam ao longo da
História por conta de elementos como a natureza humana e a busca universal por
poder político (Boucher, 1998, p. 68).
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Graças a esse impacto no pensamento realista, a violência na obra de


Tucídides marcou a forma como ela seria definida nas Relações Internacionais e
na Segurança. Posteriormente, outros autores, como Maquiavel e Hobbes, se
valeriam do legado de Tucídides para legitimar o uso da violência pelo Estado.
Por ser um meio para atingir os seus interesses, a violência era caracterizada como
uma ferramenta de política e dirigida contra aqueles que obstaculizassem o
alcance desses objetivos.

Desse contexto, apontamos a definição de violência que norteia este


trabalho. Violência é o uso deliberado da força por atores políticos para atingir
seus fins (Stoppino, 1983, p. 1291; Kalyvas, 2006, p. 19; Devetak, 2008, p. 9-10).

Percebe-se que esta definição de violência envolve três aspectos que a


diferenciariam de outras utilizações da força ou de provocar danos. O primeiro
aspecto é que a violência caracteriza a emanação de uma vontade: ela é fruto de
uma escolha, não surgindo do acaso. Além disso, ela é realizada por atores
políticos, o que significa que está inserida em uma relação, não acontecendo fora
Situando o argumento 21

da dimensão social. Finalmente, ela busca alcançar um fim, o que a caracteriza


como um instrumento racional a serviço do ator político.3

O arcabouço teórico que justificaria o uso da violência pelo Estado se


dividiria em dois ramos que, combinados, proporcionavam as bases para pensar e
legitimar as escolhas estatais. A contribuição intelectual para o processo decisório
começaria a tomar forma na medida em que o conhecimento produzido fosse útil
para a tomada de escolhas.

De um lado estaria a filosofia política, que fundamentaria de maneira


abstrata o papel do Estado, sua relação com seus cidadãos e outros Estados e
traçaria as bases do seu papel na política, inclusive a sua opção pelo uso da
violência (Pisier, 2004, p. 53-60).4 Do outro, estaria a teoria estratégica, o ramo
da teoria social preocupado com a limitação dos custos sociais do uso da violência
(Moran, 2002, p. 18-19).5 Ela teria impactos mais práticos, servindo como ponte
entre o arcabouço da filosofia política e os problemas enfrentados pelos
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burocratas.

Pensadores, burocratas e oficiais militares trabalhavam como conselheiros e


assessores de estadistas e tomadores de decisão, o que acabava por influenciá-los
em suas escolhas. A inspiração do intelectual vinha da prática política, pois seus
interesses pessoais decorriam do sucesso das decisões tomadas.6 Seu papel,
portanto, era oferecer estratégias de ação onde as chances de sucesso e os

3
Essa definição de violência nos parece bastante útil porque permite a operacionalização da
violência a partir de linhas gerais, facilmente perceptíveis. Ela também não envolve aspectos
problemáticos e que precisariam de definições complementares. Certamente essa definição de
violência abre espaço para um leque de exemplos para evidenciá-la na prática, mas todos remetem
a essa estrutura básica. Sobre a nossa opção em definir conceitos, ver a seção 2.5.3.
4
A máxima de Thomas Hobbes de que os indivíduos abriam mão de sua liberdade em troca
de segurança (Hobbes, 1984, p. 78-81) é o exemplo maior de que o foco na violência e no uso da
força está nas origens do Estado e das relações internacionais (Devetak, 2008, p. 10).
5
Alguns dos principais nomes da teoria estratégica foram Raimondo Montecuccoli (1609-
1680), marechal do Império Habsburgo; Sébastien le Preste de Vauban (1643-1715), engenheiro-
chefe dos exércitos de Luis XIV; e Antoine-Henri de Jomini (1779-1869), oficial de Napoleão que
também lutou pelo exército russo. Quanto à contribuição à guerra no mar, temos Alfred Thayer
Mahan, oficial da Marinha dos EUA, e Julian Corbett, escritor britânico. Em relação à guerra
aérea, o nome de maior destaque é o do oficial italiano Giulio Douhet. Sobre esses autores, suas
biografias e contribuições, ver Proença et al (1999), Moran (2002, p. 18-39), Keegan (2003, p. 51-
52) e Koliopoulos (2010). O nome de Carl Von Clausewitz é mencionado freqüentemente na
teoria estratégica, ainda que não tenha sido esse seu objetivo ou propósito.
6
O interesse decorria das escolhas por diversas razões. A mais óbvia pode ser atribuída aos
assessores militares que, envolvidos diretamente com a guerra e sendo impactados por seus
resultados práticos, dependiam de escolhas conscientes para a sua própria sobrevivência. Sobre o
papel dos conselheiros políticos, sua relação com a produção intelectual e o processo burocrático,
ver Kenkel (2005).
Marcelo Mello Valença 22

impactos das escolhas fossem explicitados, reduzindo a margem de incerteza do


burocrata e buscando atingir maior eficiência.

Havia a relação produtiva entre teoria e prática na medida em que o


conhecimento produzido pelos intelectuais era direcionado para os problemas
enfrentados pelos burocratas e as estratégias de ação eram adequadas aqueles
contextos e situações. Da experiência acumulada, os intelectuais poderiam refinar
sua contribuição, aperfeiçoando-as em situações futuras.

Isso foi particularmente importante para a teoria estratégica. As bases da


filosofia política já permitiam um nível maior de abstração para justificar as
escolhas estatais, mas ainda produziam implicações práticas bastante claras. A
teoria estratégica, por sua vez, proporcionava as condições para a construção de
modelos de ação que delimitavam padrões gerais de comportamento e análise
racional da conduta adversária. O caráter prático da teoria estratégica realizava os
propósitos teóricos da filosofia política, colocando o Estado como único ator
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capaz de empregar legitimamente a violência para fins políticos, excluindo outros


atores do cenário político. Somente o Estado poderia fazer a guerra.

Definimos guerra como “a violência organizada promovida pelas unidades


políticas entre si” (Bull, 2001, p. 211). No contexto da formação do Estado, as
unidades políticas seriam eles próprios e a organização buscaria como finalidade
atingir os seus interesses. A violência seria promovida através de suas forças
armadas, representantes legítimas do soberano.7 O conhecimento aferido pela
teoria estratégica deveria organizar a violência de forma a torná-la um instrumento
de política eficiente, conforme os interesses do burocrata: a guerra é uma extensão
da política com a interposição de outros meios (Clausewitz, 2003, p. 27).8

A sistematização do conhecimento voltado para a guerra proporcionou à


teoria estratégica mais do que diretrizes específicas para casos isolados, ainda que
baseadas na experiência. Houve a criação de um corpo teórico, formado por
regras e princípios gerais, universalmente aplicáveis, que instruía o burocrata em

7
Sobre a organização para a guerra, institucionalização e partes legítimas para usar a força
e para sofrer os seus impactos, favor referir a seção 4.1, onde discutimos a guerra tradicional.
8
Evans e Newnham (1998, p. 463-464) resgatam o trabalho de Herbert Simon para apontar
que a melhor estratégia para o formulador de decisões não é aquela que o levará a atingir seu
objetivo necessariamente, mas aquela que se mostra útil o suficiente para satisfazer seus
propósitos. Assim, a racionalidade envolve, também, esse mecanismo de satisfação que deriva da
escolha realizada pelo burocrata, não apenas o alcance pleno de seus objetivos.
Situando o argumento 23

suas escolhas e proporcionava um grau maior de previsibilidade, envolvendo


aspectos que não se limitariam à determinada ação em especifico.9

A relação entre a teoria e a prática mostrava-se estreita, garantindo a


produção de conhecimento útil para os formuladores de decisão, ou seja, capaz de
ser transformado em diretrizes políticas e aplicados na resolução dos problemas
enfrentados no processo decisório. Por ser associada ao leque de opções à
disposição do Estado para atingir seus interesses,10 a teoria estratégica
proporcionou a dimensão prática para realizar as premissas da filosofia política
quanto à legitimidade do Estado de se valer da violência para atingir seus
objetivos.

A combinação do esforço intelectual da filosofia política e da teoria


estratégica formou as bases para a intensificação das relações internacionais,
especialmente durante os séculos XVII e XVIII. A violência organizada na forma
da guerra era um fator sempre presente no leque de opções do formulador de
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decisões e, com isso, tornou-se uma importante ferramenta de política, com papel
central na formação dos Estados (Tilly, 1985, p. 181).

2.1.2.
Violência como guerra: as Relações Internacionais

A filosofia política e a teoria estratégica colocavam a guerra como um


instrumento à disposição da política. Assim como a diplomacia, o uso da
violência era uma escolha que cabia ao burocrata, orientada pelos intelectuais que

9
A criação de um corpo teórico que conectasse as demandas políticas às justificativas
filosóficas veio com Antoine-Henry Jomini. Baseado em estudos históricos, Jomini desenvolveu
conceitos, regras e princípios de assimilação imediata para fins políticos, mas com aplicação
universal (Proença et al, 1999, p. 54-56; Lonsdale, 2008, p. 46-47): “[h]is insistence that warfare
be based upon universally applicable, but also broadly adaptable, principles, rather than upon a
dogmatic system of approved practices, was an intellectual advance of lasting importance”
(Moran, 2002, p. 25-26).
10
Nesse aspecto, cabe apontar uma observação bastante significativa extraída do livro de
Clausewitz quanto aos interesses que deveriam ser buscados através da guerra. Apesar da guerra
estar disponível para o Estado, apenas os seus interesses vitais demandariam a sua utilização. A
mobilização que envolve a guerra é extensa e custosa e, dessa forma, é preciso que ambos os lados
envolvidos considerem os interesses em jogo vitais. Do contrário, a guerra não seria necessária
(Clausewitz, 2003, p. 16-18). Tal posição é muito próxima àquela defendida por Pufendorf, que
via na guerra o último e mais extremo recurso para defender os interesses de um ator político
(Boucher, 1998, p. 240). O recurso à guerra, tanto para Clausewitz quanto para Pufendorf, era
uma escolha ponderada e racional, fundamental para os objetivos buscados.
Marcelo Mello Valença 24

o assessoravam. Sua legitimidade estava associada à sua vinculação à política e a


sua utilidade estava relacionada aos interesses que seriam buscados.

Entretanto, o século XX marcou um gradual afastamento da guerra do rol de


instrumentos políticos úteis ao Estado. Norman Angell, antes da I Guerra
Mundial, já acusava a sua incapacidade de servir aos interesses do burocrata
(Angell, 2002, p. 22-26). Segundo ele, as mudanças na forma como os Estados se
organizam e interagem ainda permitem que a guerra seja utilizada como um
instrumento de política, mas que traria mais prejuízos do que ganhos. E isso se
aplicava não só para aqueles diretamente envolvidos no conflito armado, mas para
todos os Estados. Angell, jornalista de carreira e ativista político (Griffiths, 2004,
p. 86), escrevia voltado para a prática política, mostrando através do uso da
História e da relação entre economia e política que a guerra perdia a sua utilidade.

A I Guerra Mundial corroborou as críticas de Angell e criou um cenário de


destruição e crises econômicas que mudaram a orientação da política
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internacional, quase como um divisor de águas. Edward Carr sintetiza essa


mudança de forma brilhante. Segundo ele, até 1914 as relações internacionais
interessavam apenas aos militares. Depois de 1918, em função das conseqüências
da guerra, houve maior interesse dos cidadãos comuns por questões
internacionais, levando à formulação de teorias e políticas para explicar tais
eventos. Essa maior participação social rompeu a dicotomia existente na política
internacional: a guerra não era mais exclusividade dos soldados e passou a ser
controlada pelos políticos (Carr, 2001, p. 3-4), com a sua ocorrência condicionada
à sua efetiva capacidade de responder às demandas dos burocratas.

A guerra havia deixado de atender aos interesses dos Estados dominantes


que, por razões políticas e econômicas, buscavam estabelecer laços de cooperação
nos quais a guerra seria um fator desestabilizador. Especialmente com a ascensão
dos EUA como potência dominante, mudando a direção da política internacional
no eixo transatlântico, buscou-se a estabilidade necessária para que novas formas
de governo, mais democráticas e participativas, se estabelecessem. Ademais, o
comércio internacional e o mercado de ações, que se intensificava, viam na guerra
o fator de perturbação para o estabelecimento da confiança necessária para o
crédito se desenvolver. Um novo conflito armado seria suficiente para levar à
Situando o argumento 25

ruína as instituições financeiras em desenvolvimento, comprometendo


decisivamente a ordem internacional.11

As demandas políticas se voltavam, assim, para estratégias visando a


prevenção da guerra: a violência continuava no centro das preocupações, mas
organizada de forma a limitar a incidência da guerra. A teoria deveria orientar a
prática de modo a evitar a repetição do horror.

Era nesse contexto que a área de Relações Internacionais nascia. Seu objeto
de estudos era a guerra e o conhecimento teórico se voltava para entender as
causas da guerra, evitando-a.12 A contribuição intelectual que eventualmente se
tornaria o arcabouço teórico da disciplina vinha de assessores, diplomáticos e
políticos,13 em sua maior parte da Inglaterra e dos Estados Unidos.14 A
importância da contribuição intelectual se dava na medida em que auxiliava o
burocrata a desenvolver estratégias de ação – mais especificamente, sobre como
ordenar a violência de forma a limitar a incidência da guerra.
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11
Sobre o tema, ver Woolf (1916) e Wilson (1918). Angell (2002), mesmo escrevendo
antes da I Guerra Mundial, apresenta uma análise bastante consciente dos problemas causados pela
guerra na ordem e nas novas formas de acumulação de riqueza.
12
Esse referencial para apontar o nascimento das Relações Internacionais como disciplina é
uma mera conveniência. Brian Schmidt (2010, sp.) afirma que a disciplina nasceu em reação aos
horrores da I Guerra Mundial e tem sua “data de fundação” geralmente associada à criação do
departamento de Política Internacional de Aberystwyth, em 1919. Corroborando tal
posicionamento, Jack Donnelly (1995, p. 178) também aponta a I Guerra Mundial como ponto de
partida para os estudos de Relações Internacionais.
13
Joseph Lepgold e Miroslav Nincic colocam que independentemente da origem dos
autores de Relações Internacionais no início da disciplina, eles eram considerados intelectuais
públicos – public intellectuals, no original em inglês. Isso significava que as suas idéias
repercutiam não apenas dentro da academia, mas também em círculos públicos, seja junto aos
formuladores de decisão ou ao público geral. Isso não é curioso caso consideremos a origem
etimológica da palavra “intelectual”. Ela remete àqueles indivíduos que buscam produzir
conhecimento político, divulgando-o publicamente para a sociedade. Originalmente, seu uso se
deu para nomear os pensadores que defenderam o Capitão Dreyfus da acusação de traição a ele
imputada na França, em 1889. Posteriormente, o termo “intelectual” passou a se referir
genericamente aos pensadores que difundiam conhecimento político ao público em geral (Lepgold
e Nincic, 2001, p. 9-10).
14
A produção intelectual das Relações Internacionais era – e continua sendo – produzida
nos EUA e na Inglaterra. Exceções existem, obviamente. Àquela época, uma dessas exceções era
Raymond Aron, acadêmico e político francês que construiu a sua carreira em seu país de origem,
mas que passou boa parte da década de 1940 na Inglaterra (Griffiths, 2004, p. 13). Sobre a
caracterização das Relações Internacionais como uma teoria tipicamente norte-americana, ver
Hoffmann (1977) e sua discussão sobre o caráter racionalista da área e a estreita correlação com o
processo decisório político. Posição contrária é manifestada por Steve Smith (2000). Neste texto,
Smith promove uma revisão da literatura teórica de Relações Internacionais e sugere que há
contribuições espalhadas pelo mundo, especialmente no Reino Unido, que conseguem oferecer um
arcabouço para se pensar na disciplina tão eficiente quanto o produzido nos EUA.
Marcelo Mello Valença 26

Assim como acontecera com a filosofia política e a teoria estratégica, esse


corpo especializado de funcionários instruía as estratégias dos burocratas com
base na sua experiência (Walt, 2006, p. 39). Sua função era justificar os interesses
dominantes na modelagem de uma nova ordem mundial (Hollis e Smith, 1991,
p. 18-19; Williams, 2008a, p. 2; Schmidt, 2010, sp.), adequando a guerra – ou a
sua não-ocorrência – àqueles interesses. A experiência de campo dos intelectuais
era valorizada (Thompson, 1955, p. 733) e impactava na sua seleção e no papel
que assumiam.

Isto se refletia quase como uma perspectiva maquiavélica da função da


produção intelectual. Seu fim último seria guiar a ação política (Eriksson, 1999,
p. 325), produzindo impactos diretos no processo político. Até mesmo pela
vinculação dos assessores/teóricos à política, não havia a preocupação de produzir
conhecimento neutro. O papel da teoria era responder aos problemas enfrentados
pelos tomadores de decisão, oferecendo diretrizes de ação para que alternativas à
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guerra fossem desenvolvidas: justamente por lidar com um tema tão urgente
quanto a guerra, ela se voltava para questões práticas e imediatas, instruindo a
ação conforme o interesse dos burocratas.

Mesmo que não objetivando explicitamente fazer teoria, os intelectuais


acabavam por produzi-la, pois estabeleciam relações causais entre ações na esfera
política internacional, e atribuíam a elas conseqüências (Thompson, 1955, p. 738;
Walt, 1998, p. 2; Walt, 2006, p. 28). A produção teórica vinha da acumulação do
conhecimento e da experiência prática dos intelectuais, que buscavam oferecer
aquilo que era importante para o sucesso do empreendimento político.

Obras consideradas basilares para a teoria de Relações Internacionais, como


os livros de Edward Carr (2001) e Hans Morgenthau (2003) ou o artigo de George
Kennan (1947), são todos trabalhos voltados para orientar a prática, respondendo
a problemas políticos específicos;15 ainda que sustentados por bases teóricas

15
Os debates teóricos que tradicionalmente são considerados no desenvolvimento
ontológico e epistemológico da disciplina, até mesmo pela forma como são construídos e
ordenados, evidenciam o progresso científico característico do Iluminismo (Hollis e Smith, 1991,
p. 16-17). Tal imagem romperia com a ordem anteriormente existente, separando uma época de
violência e barbarismo de uma nova “fase” da humanidade, que conseguiria superara guerra em
nome do desenvolvimento. Isso acaba por construir a auto-imagem do campo, seus eventos
marcantes e os desafios políticos que deles decorrem, caracterizando a disciplina (Schmidt, 1998,
p. 452-453; Schmidt, 2005, p. 4-5; Schmidt, 2010, sp.).
Situando o argumento 27

firmes, seu viés e finalidade eram bastante específicos e voltados para a resolução
de problemas. Todavia, esses trabalhos proporcionavam princípios
universalmente aplicáveis, possibilitando que as Relações Internacionais fossem
vistas como um corpo consolidado e não como um conjunto de diretrizes
políticas. Deste modo, inspirariam e instruiriam o burocrata sobre como agir em
situações semelhantes: “theory in the study of politics, including world politics,
has traditionally been intended to guide practice” (Lepgold e Nincic, 2001, p. 2).

Havia o recurso à filosofia política e à sociologia, proporcionando um grau


de complexidade para as Relações Internacionais. Não obstante essa
complexidade e até mesmo um rigor filosófico, a disciplina se mantinha voltada
para a resposta de problemas (Kenkel, 2005, p. 10). Ela se beneficiava da
experiência prática e possibilitava a relação produtiva entre teoria e prática.

Theory and method are, therefore, means not ends: they exist to promote our
understanding of empirical causes by encouraging theoretical breadth, logical
coherence, and empirical objectivity (Moravcsik, 2003, p. 133).
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Seu poder explicativo, assim como a sua importância como ferramenta


analítica, dependia da sua capacidade de produzir conhecimento que oferecesse
aos formuladores de decisão generalizações amplas, mas concretas.

[B]oth theorists and practitioners seek a clear and powerful understanding of cause
and effect about policy issues, in order to help them diagnose situations, define the
range of possibilities they confront, and evaluate the likely consequences of given
courses of action (Lepgold e Nincic, 2001, p. 3).

A proximidade dos teóricos com os centros de decisão certamente era um


fator de impacto para a conexão entre teoria e prática. A sua assessoria permitia o
desenvolvimento de estratégias baseadas em postulados fundamentados em
experiências anteriores e com grau de previsibilidade maior. “Fazer teoria” não
era a preocupação central dos intelectuais, mas proporcionava respostas para
problemas reais de um mundo real: entender a guerra, suas causas e sua
recorrência, organizando a violência de maneira a desenvolver mecanismos para
evitá-la (Thompson, 1955, p. 733; Lepgold e Nincic, 2001, p. 5).

A II Guerra Mundial proporcionou a confirmação de que a guerra deixara de


ser uma opção válida para atingir os interesses dos Estados. O cenário
internacional ao seu fim mostrava que mesmo os interesses vitais provocariam
mais danos do que ganhos para os envolvidos. As estratégias para evitar que a
Marcelo Mello Valença 28

guerra acontecesse deixavam de se basear na organização da violência para se


alojar em medidas institucionais, principalmente com a criação da Organização
das Nações Unidas (“ONU”). O foco das Relações Internacionais se voltava para
o desenvolvimento econômico e social dos Estados e a guerra seria deslegitimada
como instrumento de política.

Mesmo assim, enxergava-se que a violência ainda era uma opção; ilegítima,
mas uma opção. A organização da violência continuava a ser uma necessidade.
Mas não mais era uma responsabilidade das Relações Internacionais, que
abordariam a guerra de outra maneira. A violência seria organizada e legitimado
em outra dimensão. Seu caráter estratégico foi resgatado pela Segurança e
incorporada como uma estratégia política à disposição dos Estados, conforme seus
interesses e disposição de arcar com seus custos.
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2.2.
A formalização da Segurança e o desenvolvimento do campo

A Carta da ONU deslegitima o uso da guerra como mecanismo de resolução


de disputas e alcance de objetivos. Contudo, o seu uso ainda era possível. As
Relações Internacionais afastavam a guerra do cenário internacional, mas a
bipolaridade que marcaria as décadas seguintes impelia o uso estratégico da
violência para a contenção dos adversários e rivais. Em outras palavras, a
capacidade de manter as áreas de controle político e ideológico faziam EUA e
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (“URSS”) recorrerem a mobilização
da violência para garantir seus interesses.

A possibilidade de uso da violência era, logo, parte da estratégia de política


externa dos EUA. Os formuladores de decisão demandavam um instrumental
teórico que permitisse a eles vislumbrar as possibilidades e conseqüências de sua
utilização, ponderando custos e oportunidades. Surgem nos EUA, na década de
1950, os estudos de Segurança como área responsável por assessorar o processo
decisório no tocante ao uso estratégico da violência – mais especificamente, a
ameaça, controle e uso da força militar (Nye e Lynn-Jones, 1988, p. 6; Walt,
1991, p. 212; Sheehan, 2005, p. 6). Notadamente estas eram a maior preocupação
Situando o argumento 29

enfrentada pelo governo norte-americano naquele período da Guerra Fria


(Ullman, 1983, p. 129).

A delimitação do escopo da área corresponde a duas situações que incidiam


na política àquela época. A primeira dizia respeito ao foco da política externa
norte-americana. Esta se dirigia ao desenvolvimento de estratégias de contenção
da ameaça soviética e o uso da força para conter eventuais pretensões era
considerada a melhor estratégia. A segunda surge como explicação para a
primeira: o foco no uso da força era conseqüência da predominância do Realismo
na política externa daquele país (Nye e Lynn-Jones, 1988, p. 6 e seguintes).

Esse foco evidenciava a preocupação com questões práticas que recaiam


sobre os formuladores de decisão. O papel dos teóricos era oferecer o
instrumental para o desenvolvimento de políticas que proporcionassem alcançar
os interesses do Estado. Como a guerra era uma estratégia ilegítima, mas
possível, a Segurança, ao se voltar para a organização da força armada, poderia
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promover práticas de contenção e deterrência para garantir o sucesso de suas


políticas. Segurança não se tratava apenas de guerra, mas também de formas de
evitá-la – e ainda assim alcançar seus interesses.16

2.2.1.
A Segurança na Guerra Fria

A Segurança nasce nos EUA com o propósito específico de auxiliar o


processo decisório norte-americano. Não à toa a Segurança realista é tratada
também como uma teoria de “segurança nacional”.17 Segurança nacional é a
diretriz política decorrente da escolha moral sobre que valores serão defendidos e
quais perderiam importância na definição dos interesses de um Estado (Wolfers,
1952, p. 481). A predominância da segurança do Estado em detrimento da

16
Esta seria a lógica das políticas visando a deterrência que, inclusive, é apontada como a
principal representação da aplicação política da Segurança (Nye e Lynn-Jones, 1988, p. 11; Payne
e Walton, 2002; Buzan e Hansen, 2010, sp.).
17
Sobre o tema, ver Wolfers (1962) e Morgenthau (2003, p. 199-214). Este pensamento
era possível em função do caráter científico que a Segurança assumia, valendo-se de teorias de
escolha racional e análises cognitivas para delimitar seu objeto de estudo. Um dos grandes
incentivadores dessa postura é John Mearsheimer, que afirma que os estudos das Relações
Internacionais ainda não seria semelhante ao das ciências naturais, mas que deveriam se beneficiar
de predições e métodos científicos para obter maiores sucessos e consolidar-se como uma
verdadeira ciência (Mearsheimer, 1990, p. 9).
Marcelo Mello Valença 30

individual se justifica na medida que somente seria possível atingir liberdade,


justiça e paz, através da segurança (Wolfers, 1952, p. 500-501).18

O resgate dos problemas políticos enfrentados pelos EUA caracterizou a


dimensão intelectual da disciplina, mais precisamente o cenário de confronto
militar com a URSS. Questões como a proliferação nuclear e o uso estratégico de
forças convencionais, bem como elementos da diplomacia militar e do
desenvolvimento de capacidades militares eram parte tanto do programa de
pesquisa da Segurança, quanto das estratégias de política externa daquele país. A
Segurança ganhava importância política enquanto produção intelectual capaz de
oferecer, com razoável grau de sucesso e previsibilidade, alternativas e estratégias
para o desenvolvimento de estratégias de política externa, especialmente no
processo de contenção de uma eventual expansão soviética.

Essa confusão de temas integrava pesquisadores civis e militares em um


esforço conjunto para oferecer um arcabouço analítico para instruir o processo
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decisório, atendendo às demandas mais imediatas dos burocratas. O


desenvolvimento da disciplina estava intimamente conectado aos interesses norte-
americanos, vinculando as ameaças enfrentadas às preocupações dos primeiros
teóricos e analistas (Walt, 1991, p. 212-213; Kolodziej, 1992a, p. 429).19

2.2.1.1.
A Era de Ouro

O primeiro período da Segurança,20 a “Era de Ouro”, contava com a


participação estreita da esfera civil, especialmente no que diz respeito à estratégias
alternativas à tecnologia nuclear. A abordagem era eminentemente militarista – o

18
Em função dessa definição de interesse nacional, que corrobora os interesses norte-
americanos e os universaliza, alguns autores atribuem críticas de um etnocentrismo demasiado no
campo (Haftendorn, 1991, p. 5; Sheehan, 2005, p. 7; Morgan, 2007, p. 14-15).
19
De acordo com Barry Buzan e Lene Hansen (2010, sp.), os estudos de Segurança não
eram uma exclusividade dos EUA, mas sua associação com aquele país se dava em grande parte
em função do poder que ele detinha durante a Guerra Fria. Outros Estados ofereciam produções
relevantes para a Segurança também: “[w]e understand [Estudos de Segurança] to be a mainly
Western subject, largely done in North America, Europe and Australia, with all of the Western-
centrisms that this entails” (Buzan e Hansen, 2010, sp.).
20
A divisão em Era de Ouro e Renascimento foi proposta por Stephen Walt (1991) e ajuda
a entender, de forma didática, as diferenças institucionais na consolidação da Segurança como
corpo teórico. Ainda que não reconhecido por Walt, tal divisão é baseada nos dois períodos da
política externa dos EUA em relação a Guerra Fria (Kolodziej, 1992a, p. 429).
Situando o argumento 31

predomínio do Realismo político era responsável por esse viés, mas a presença de
analistas e assessores civis se caracterizaria pelo desenvolvimento de modelos
racionais que possibilitassem prever a ação do adversário, inspirados pela teoria
dos jogos e os estudos de Economia.

O foco era na utilização estratégica da força armada. Outros temas, como


dissuasão, coerção e escalada armamentista reforçavam a preocupação em
responder a problemas específicos de um mundo real (Walt, 1991, p. 213-215).21
Expandir o escopo da segurança para além de questões militares era comprometer
seu caráter científico, colocando em risco sua contribuição à política (Walt, 1991,
p. 213).

During this golden age, Western governments found that they could rely on
academic institutions for conceptual innovation, hard research, practical proposals,
and, eventually, willing recruits for the bureaucracy. Standards were set for
relevance and influence that would prove difficult to sustain (Freedman, 1998,
p. 51).
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Esse instrumental teórico e analítico permitiu, também, dar apoio às


estratégias de política externa do governo norte-americano, moldando as
dinâmicas de ação, especialmente de uma forma que proporcionasse a contenção
da ameaça soviética. A contribuição intelectual à Segurança proporcionava aos
formuladores de decisão um conhecimento específico e direcionado para os
problemas que eles enfrentariam, possibilitando pensar abstratamente nos
impactos e conseqüências das suas ações. Em outras palavras, Segurança dizia
respeito aos mecanismos que definiriam o alcance e a manutenção dos interesses
nacionais dos Estados no plano internacional (Wolfers, 1952, p. 481).

Contudo, a partir da segunda metade da década de 1960, os Estudos de


Segurança começaram a perder força, motivados por fatores políticos de caráter
essencialmente militar como a guerra do Vietnã, a crise dos mísseis de Cuba e a
détente entre EUA e URSS (Walt, 1991, p. 215-216). Esses eventos mostravam
que o estudo da guerra não era mais suficiente para garantir a segurança e a

21
Exemplo disso são as estratégias de retaliação maciça e resposta flexível, desenvolvidas
nos governos Eisenhower e Kennedy, respectivamente (Payne e Walton, 2002, p. 167-169). A
primeira propunha a retaliação com toda a força possível – ou seja, força nuclear – a avanços
soviéticos na Europa. A estratégia da resposta flexível, por sua vez, pretendia oferecer retaliações
“à altura” das ações realizadas pela União Soviética contra os aliados norte-americanos. O uso da
força é central para essas estratégias darem certo, mas também busca prevenir que a guerra
aconteça a partir de uma ameaça certa e concreta.
Marcelo Mello Valença 32

hegemonia de um Estado internacionalmente (Keohane e Nye, 1977; Keohane,


1984).

Não obstante essas questões essencialmente políticas, havia ainda a questão


da preservação da dimensão teórica da disciplina e de sua conexão com a prática
política. A Segurança chegara a um beco sem saída porque os desafios
enfrentados não encontravam respostas em seus pesquisadores e analistas.

Questões como o uso da força militar convencional estavam resolvidos e já


não causavam tantas ameaças, mas não havia o desenvolvimento de estratégias
que permitissem superar o problema da credibilidade do emprego da força
nuclear. A crise dos mísseis em 1962 representou o momento mais próximo de
uma nova guerra mundial e a proposta de garantir segurança através da ameaça do
uso da força se esvaziava diante da perspectiva de destruição do mundo: os
modelos racionais desenvolvidos pelos intelectuais não eram tão racionais quanto
se propunham a ser. Se a disciplina deveria garantir as bases de ação para o
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sucesso da política externa e da preservação dos interesses de um Estado no plano


internacional, como lidar com tamanhos insucessos e incertezas?

A vinculação estreita com o processo decisório provocou a carência na


formação de um pessoal capaz de prestar assessoria e instruir o processo
decisório. À parte do que era produzido em termos de conhecimento problem-
solving, a Segurança não deixou um legado que proporcionasse contribuições para
questões futuras, como acontecera nas Relações Internacionais. Os livros da área
eram datados, prendendo-se por demais a questões relativas a um período e/ou
problema específico, perdendo seu valor analítico-explicativo em pouco tempo
(Nye e Lynn-Jones, 1988, p. 12-13).

A teorização no campo era limitada a oferecer auxílio aos interesses


imediatos dos formuladores de decisão. As respostas e soluções apresentadas
eram, portanto, satisfatórias para os formuladores de decisão, caracterizando a sua
relevância política. Seu rigor intelectual, por outro lado, não se desenvolvera.
Isso comprometia a renovação na área: a Era de Ouro falhou em produzir novos
doutores para continuar os estudos (Walt, 1991, p. 216). A relação produtiva
entre teoria e prática, que marcou o campo, estava ameaçada.
Situando o argumento 33

2.2.1.2.
O Renascimento dos estudos de Segurança

Quase uma década depois, com o fim da guerra do Vietnã e o apoio de


fundações e centros de pesquisa direcionados à Segurança, começou o período do
Renascimento (Walt, 1991, p 217-222). Diante de um novo cenário político,
novos problemas empíricos surgiam e demandavam respostas distintas daquelas
oferecidas nas últimas décadas. A relação produtiva entre teoria e prática que
caracterizava a área e fora ameaçada ao final da Era de Ouro foi resgatada, pois os
novos desafios geravam novo instrumental analítico, que era aplicado na prática
política e reverberavam na produção de novo conhecimento.

O uso da História se tornou mais recorrente, sustentando empiricamente as


descobertas teóricas e criando um arcabouço explicativo baseado na experiência
prática. Isso levou ao questionamento da teoria da dissuasão racional, que
dominara a Era de Ouro.
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Por conseqüência, o Renascimento trouxe modelos mais eficientes para


explicar e oferecer estratégias relativas à questão nuclear. Temas como o uso da
força militar convencional foram revisitados, especialmente diante da lição
aprendida no Vietnã. Não bastava apenas a superioridade material, mas também o
desenvolvimento de estratégias que permitissem o emprego consciente e adequado
de forças militares em diversos e diferentes cenários. A “grande estratégia norte-
americana”, i.e., a teoria que sustentaria a política externa norte-americana através
da combinação de meios diplomáticos e militares se desenvolvia. A ameaça da
violência continuava a predominar na Segurança, mesmo que se tratando de
mecanismos para prevenir a sua utilização (Payne e Walton, 2002, p. 168-169).

Acontecia, também, a aproximação da Segurança à teoria de Relações


Internacionais, estreitando o laço dos intelectuais com o processo decisório no
Renascimento: as bases filosóficas que sustentavam a organização da violência no
início do século foram recuperadas, possibilitando modelos metodologicamente
mais precisos e estratégias mais amplas, envolvendo não só as diretrizes de ação,
mas também os impactos e reações às escolhas.

Entretanto, apesar desta aproximação abrir maior espaço para a reflexão e


para o pensamento em longo prazo sobre os problemas de segurança, o afluxo de
Marcelo Mello Valença 34

perspectivas teóricas menos vinculadas à prática política também levou ao


questionamento dos pressupostos tradicionais da Segurança. Isso evidenciava
uma mudança significativa: o centro de gravidade da Segurança se voltou para
academia e para a maneira como esta desenvolveria uma nova visão para o
campo.

Os departamentos universitários criavam centros de estudos de Segurança,


produzindo doutores capazes de refletir criticamente sobre os problemas
enfrentados e oferecendo novas perspectivas para resolvê-los. A maior
formalização dos mecanismos de estudo da Segurança e à adoção da metodologia
das Ciências Sociais em detrimento aos modelos racionais economicistas
empregados na origem da disciplina levavam a um desenvolvimento de
proposições explicativas gerais sobre o uso da força na política internacional que
poderia ser aplicado para questões contemporâneas. Tal preocupação
metodológica criava, ao mesmo tempo, um espaço de debate acadêmico,
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enriquecendo o campo da Segurança, e uma maior confiança para os formuladores


de decisão, que podiam compreender as diretrizes propostas a partir de um maior
número de variáveis.

Porém, ao abrir um espaço maior junto às Ciências Sociais, a Segurança


recebeu também a contribuição de outras metodologias, que questionavam a
verdade e as formas de conhecimento. Isso promoveria a discussão sobre o objeto
da segurança e a lógica na qual ela opera, implicando a ampliação e alargamento
da teoria, marcando o início do questionamento das bases da disciplina.22

A preocupação tradicional foi rechaçada a partir da idéia de que haveria


novas fontes de ameaças, mais comuns e politicamente importantes que o uso da
força, que deveriam ser também foco da Segurança. A restrição que os realistas

22
O que não significa que antes de 1980 não houvesse pleitos, nem tampouco produção
acadêmica voltada para uma renovação no pensamento sobre o que é segurança e o que significa
estar seguro. “Although the terms ‘widening’ and ‘deepening’ had not yet become established
tropes in the 1960s and 1970s, early phases of widening and deepening started well inside the Cold
War Era” (Buzan e Hansen, 2010, sp.). O artigo de Richard Smoke (1975) é uma prova disso.
Afirmamos que a década de 1980 marcou essa mudança porque a produção teórica nesta década
foi significativa para os debates teóricos da Segurança, a partir da década seguinte. Ademais,
trabalhos como o de Barry Buzan (1991, mas com a primeira edição acontecendo na primeira
metade da década de 1980) e Richard Ullman (1983) foram escritos neste período, contribuindo
para o debate na Segurança.
Situando o argumento 35

davam à área não seria capaz de explicá-la satisfatoriamente: era preciso alargar o
objeto de estudos (Ullman, 1983, p. 123; Kolodziej, 1992b, p. 6).

O fim da Guerra Fria exerceu papel importante nesse processo. Com a


diminuição das tensões entre EUA e URSS, o emprego estratégico da força
armada, em um mundo onde a bipolaridade não mais era determinante (Singer,
2001, p. 193-197), não era mais visto como importante. Outros problemas
surgiam e foram encarados como parte da agenda de segurança. Ao mesmo
tempo, teorias críticas surgidas nas décadas de 1960 e 1970 começaram a ganhar
mais corpo no debate de Relações Internacionais e abordavam a Segurança,
aprofundando a sua lógica e propondo entender o que significava estar seguro.

2.2.2.
A Segurança na linha de fogo: alargamento e aprofundamento
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“Widening and deepening nevertheless raise profound questions about [os


estudos de Segurança] and what it should include and what exclude, and this is
likely to remain an area of controversy” (Buzan e Hansen, 2010, sp.). Essa
questão passou a assumir o foco dos debates sobre o que constituía a Segurança e
o que este conceito significaria. A crise econômica da década de 1970 trouxe
outras questões para a agenda de segurança, de modo que o uso da força militar
deixaria de ser considerada um instrumento viável para fazer política – os custos
envolvidos era muito altos (Keohane, 1984, p. 39-41). A deterrência e a ameaça
da guerra eram centrais para a segurança na Guerra Fria (Freedman, 2002, p. 330),
mas o futuro reservava novas perspectivas, mais otimistas (Farrell, 2002, p. 287-
288). A insatisfação – e insuficiência – do aspecto militarista da Segurança abria
espaço para outros desafios e outras fontes de insegurança.

Sob este argumento, Richard Ullman critica a visão tradicional de segurança


do governo norte-americano e discorre sobre um possível alargamento do escopo
da Segurança. Seu artigo é considerado um marco para a proposta
ampliacionista23 justamente por propor a ruptura com a agenda militarista

23
Em inglês, no original, wideners.
Marcelo Mello Valença 36

tradicional.24 Os defensores do ampliacionismo acusam que o foco no uso da


força militar levaria à perda da vinculação da Segurança com a realidade que ela
busca explicar. A inclusão de novos temas se fazia necessária porque quando a
sensação de segurança25 aumenta, as vulnerabilidades diminuem: “[i]n every
sphere of policy and action, security increases as vulnerability decreases”
(Ullman, 1983, p. 146).

O ampliacionismo se caracteriza por defender que a Segurança deveria


envolver também fenômenos não-militares, como a economia, sociedade e meio
ambiente, que teriam impacto igualmente relevante para a estabilidade e
sobrevivência dos atores políticos (Tarry, 1999, p. 3-6). “The issue-driven
widening eventually triggered its own reaction, creating a plea for confinement of
security studies to issues centered around the threat or use of force” (Buzan, 1998,
p. 2). Este movimento é associado à perspectiva liberal, que tomava corpo nas
teorias de Relações Internacionais como resposta ao pessimismo realista,
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especialmente na década de 1970, com a interdependência complexa e com as


teorias integracionistas.

Mas os liberais não eram os únicos a enveredar pela Segurança. As teorias


reflexivistas de Relações Internacionais (Keohane, 1988, p. 389-393) ganhavam
corpo naquela área e passaram a estabelecer um diálogo com a teoria realista de
Segurança, buscando entender a lógica através da qual operaria a segurança.

Os aprofundadores26 entendem que a ampliação proposta pelos liberais é tão


perigosa quanto à própria restrição imposta pelos realistas. Tanto uma quanto
outra seriam escolhas normativas que limitariam o entendimento do que realmente
constitui segurança. Eles procuram entender o que significa estar seguro, contra o
que se está seguro e, mais importante, quem está seguro para, somente então,
proceder com o alargamento do escopo.

24
Outros trabalhos que formam a posição ampliacionista são Brown (1989), Nye (1988),
Haftendorn (1991) e Kolodziej (1992b). O trabalho de Brown, inclusive, é parte de uma edição
especial da Survival que tratava apenas de questões estratégicas não-militares.
25
Ullman usa a expressão “coeficiente de segurança” para representar essa sensação de
segurança. Desta forma, ele consegue se aproximar da cientificidade e precisão que o campo
demanda, evitando abstrações imensuráveis que pudessem abrir margem para críticas à sua
proposta. Esta tensão entre cientificidade e subjetividade, precisão e emoção, é retratada por Bill
McSweeney na forma da dicotomia entre a imagem substantiva e a imagem adjetiva da segurança
representando, respectivamente, a visão masculina e a visão feminina da política (McSweeney,
1999, p. 13-16).
26
Em inglês, no original, deepeners.
Situando o argumento 37

Por se tratar de opções políticas, o foco em um tema ou noutro evidenciaria,


antes de mais nada, interesses. Assim, as agendas realista e ampliacionista são
igualmente comprometidas com alguma posição dominante. Alargar não é o
problema, mas a forma como este alargamento é realizado (Walker, 1997, p. 65-
66). Uma agenda mais ampla aumenta, certamente, a gama de conhecimento e
compreensão necessários para os estudos de Segurança. Contudo, ela também
implica duas conseqüências.

Primeiramente, há a mobilização mais freqüente para resolver essas


questões: se tudo é segurança, o que significa a sua ausência – ou, o que significa
estar seguro? A segunda conseqüência é que uma agenda mais ampla tende,
inconscientemente, a comparar a segurança a um tipo de bem – e não como uma
condição.

The wideners argue that a predominantly military definition does not acknowledge
that the greatest threats to state survival may not be military, but environmental,
social and economic. The deepeners, on the other hand, ask the question of whose
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security is being threatened and support the construction of a definition that allows
for individual or structural referent objects, as opposed to the state (Tarry, 1999,
p. 1, grifo original).

Assim, criar-se-ia uma eterna dicotomia entre segurança e insegurança que


afetaria a relação entre os Estados, povos e indivíduos (Buzan, 1998, p. 4). O
aprofundamento da segurança envolve, pois, entender os mecanismos que operam
sobre o conceito e sobre as perspectivas teórica e política, de forma que
“segurança” seja vista como uma questão referente ao sujeito e ao contexto
político onde ele se insere.

2.2.3.
A perda da relação produtiva entre teoria e prática na Segurança

Os debates das décadas de 1980 e 1990 sobre a ampliação e o alargamento


foram importantes para a reafirmação da importância da Segurança, mas
trouxeram controvérsias que colocavam em risco a coerência e a utilidade política
da área. O debate sobre o que seria segurança e o que a Segurança deveria
abordar acabou por afastar da área a capacidade de instruir o burocrata no
processo decisório. As teorias e perspectivas políticas que estabeleciam o novo
debate teórico na disciplina reivindicavam que seu objeto de estudo e seus
Marcelo Mello Valença 38

referenciais teóricos deveriam se encaixar nas possibilidades do pensar em


segurança e, conseqüentemente, fazer Segurança.

O arcabouço liberal, que orienta o ampliacionismo, é um exemplo disso.


Questões como economia e legitimidade políticas são elevadas à condição de
segurança. Contudo, as respostas buscadas pelo Liberalismo afastam os
pressupostos que norteiam as motivações da Segurança – o uso estratégico da
violência –, fazendo com que haja a perda da coerência intelectual da disciplina.
Fala-se demais em segurança, mas não se constrói um foco de estudos de
Segurança justamente porque existiriam outros arcabouços teóricos já preparados
para oferecer as respostas que se demandava da Segurança. Ao tornar qualquer
problema um problema de segurança, os ampliacionistas colocam em risco relação
produtiva entre a teoria e a prática.

Os aprofundadores, por sua vez, vão se conter quanto a esse processo de


inclusão não-problematizada de temas na Segurança, ao menos enquanto não
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obtiverem um completo entendimento da lógica em que opera a segurança. Sua


proposta é oferecer maior capacidade explicativa sobre a segurança, construindo
um arcabouço teórico e intelectual explicativo e orientado para a política a partir
da análise histórico-interpretativa. O aprofundamento ajuda a entender o que é
segurança e quais condições devem ser atingidas para que possamos falar de
segurança, mas não trabalha com as diretrizes políticas que conduziriam à
segurança, nem tampouco com seu elemento central, a violência manifestada
através do uso da força.

O uso da violência como instrumento de política é substituído pela reflexão


sobre as condições que permitiriam a realização da política. A Segurança deixa
de ser associada com os mecanismos que permitem o ator político alcançar seus
objetivos políticos para se tornar um espaço de reflexão sobre as condições que
tornariam o seu objeto de referência livre de ameaças.

O debate de ampliação e aprofundamento perde o caráter estratégico e


instrumental que a Segurança e seus antecessores – a teoria estratégica, a filosofia
política e até as Relações Internacionais – ofereciam em prol da compreensão
sobre as condições da política e da reflexão meta-teórica. Há um descolamento da
prática política em busca de uma maior capacidade explicativa, especialmente em
função das teorias que buscam desenvolver tal instrumental de aprofundamento.
Situando o argumento 39

Isso é feito às custas da perda da relação produtiva entre a teoria e a prática. A


violência é marginalizada e encarada como uma das dimensões da violência, não
mais assumindo o papel central antes reservado a ela.

A relação produtiva da produção intelectual com a prática política é perdida


na medida em que limita – por vezes até extinguindo – a contribuição que uma
dimensão oferece a outra. Não há mais a produção de um conhecimento útil que
auxilie o formulador de decisões na avaliação e desenvolvimento de estratégias
políticas. As teorias que aprofundam a Segurança não se voltariam para a
resolução do problema enfrentado pelo burocrata, mas buscam oferecer espaço
para refletir sobre as condições políticas que cercam o objeto de referência da
Segurança.

Com a perda dessa relação produtiva e, conseqüentemente, do não


oferecimento de material analítico para responder aos problemas mais imediatos
da Segurança, o uso da força é retirado da esfera de análise e surgem obstáculos
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para se trabalhar e entender questões políticas complexas, como as novas guerras.


O elemento “violência” é central para entender as novas guerras, mas o uso da
força perde espaço quando se amplia o escopo da área para outros temas, como
identidade, economia e legitimidade política, que são colocados como aspectos
centrais no oferecimento de respostas.

Estes elementos das novas guerras são explicados por meio de outras áreas
do conhecimento, esvaziando a contribuição da Segurança. Contudo, se olharmos
para a questão valendo-nos da violência como estratégia política, podemos
compreender que estes temas – identidades, economia, legitimidade política e
outros – são parte de um esforço mais fundamental, que coloca a violência em
primeiro plano. Sua origem se dá a partir do uso da força como condição para
romper a resistência ao alcance dos interesses dos atores, e a utilização desse
instrumental espalha-se para outras áreas como parte da violência, não como uma
dimensão estranha a ela. A partir de sua compreensão – o que, em maior ou
menor escala, é buscado pelos defensores do aprofundamento da segurança – é
possível informar estratégias políticas para orientar os formuladores de decisão a
se comportarem adequadamente a tais desafios.

A violência continua sendo um aspecto central para a Segurança. A


ampliação e o aprofundamento da disciplina trouxeram desafios que não podem
Marcelo Mello Valença 40

ser ignorados. Contudo, a ampliação da Segurança faria com que a perda da


relação produtiva entre teoria e prática se perdesse na miríade de temas que é
encaixada sem maiores reflexões. O aprofundamento, se por um lado promove a
reflexão sobre segurança, por outro se perde em digressões que fugiriam da
aplicabilidade prática buscada pelo campo. Ainda assim, o movimento de
aprofundamento da segurança contribuiria para entender a violência e o uso da
força nas novas guerras, desde que obedecidos certos limites – que trabalhamos
em um momento posterior nesta tese.

2.3.
Produzindo conhecimento útil: a relação produtiva entre teoria e
prática e a relevância política

Mostramos que a teoria estratégica, as Relações Internacionais e a


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Segurança, em sua origem, oferecem o instrumental para diagnosticar o problema,


permitindo que o burocrata previsse eventos e suas conseqüências a partir de
experiências passadas, antecipando suas respostas e preparativos políticos. Elas
constituem teorias de resolução de problema, voltando-se para questões práticas
que incidem sobre o processo decisório.

Uma vez que o cenário político pudesse ser modelado a partir da abstração
proporcionada pela reflexão intelectual, restava evidente o grau de prescrição que
recaía sobre a reflexão intelectual. A correlação entre causa e efeito, resultados e
ações, e as conseqüências que delas decorreriam eram trabalhadas de forma a
proporcionar a racionalidade da ação de acordo com os resultados desejados.
Com isso, seria possível avaliar as decisões políticas através de parâmetros
mensuráveis e perceber se o sucesso das estratégias adotadas foi alcançado ou não
(Walt, 2006, p. 29-34).

Essas estratégias, mesmo não assegurando o sucesso do empreendimento


político, delimitavam as conseqüências e impactos das ações tomadas, permitindo
a previsibilidade e o cálculo racional no processo político. Isto acontece, grosso
modo, de três formas, que podem ser caracterizadas como conhecimento útil para
o processo decisório.
Situando o argumento 41

Primeiramente, podemos falar que a contribuição da teoria ao processo


político permite desenvolver um conhecimento abstrato baseado em modelos
analítico-dedutivos. Esses modelos oferecem uma lógica geral que instrui a
formulação de diretrizes de ação que conduziriam ao sucesso, mas não o
garantiriam, proporcionando apenas linhas gerais de ação em situações que se
encaixariam nesse modelo (George, 1993, p. 117-120; Lepgold e Nincic, 2001,
p. 20-21).

A estratégia da deterrência se encaixa nesse tipo de conhecimento:


deterrência consiste em alterar o processo decisório de outrem através da ameaça
do uso da força (Payne e Walton, 2002, p. 161-162). Para o sucesso dessa
estratégia, é preciso que se tome como parte do modelo a racionalidade dos atores
envolvidos e a credibilidade de quem faz a ameaça para que esta seja bem
sucedida (George, 1993, p. 118). Nada garante o sucesso da deterrência, mas
podemos imaginar as condições para ela ser bem sucedida.
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Analisando o modelo em questão podemos identificar variáveis críticas que


incidem no cenário político e especificar a lógica e a importância que são
associadas a essas variáveis para que o objetivo seja concretizado. De forma
semelhante, deve-se evidenciar eventuais benefícios e revezes das escolhas antes
de realizá-las de fato. Através da simplificação da realidade, esses modelos
ofereceriam um panorama para o burocrata compreender as dinâmicas presentes
no problema em tela e agir de forma compatível com os objetivos buscados
(Alves, 1981, p. 20). Sabendo como o modelo opera e de que maneira afeta a
relação política, é possível tomar as medidas adequadas voltadas não apenas ao
alcance dos interesses, mas também para responder e limitar eventuais
conseqüências que repercutam a partir da escolha realizada. Como resultado, o
formulador de decisões teria acesso a um cenário mais completo sobre os
impactos de suas ações, pois as condições presentes no processo decisório são
replicadas no modelo e analisadas tendo em mente a interação com outros atores
políticos racionais.

A segunda forma de conhecimento útil decorre da produção de um


conhecimento amplo e genérico (George, 1993, p. 120-125), que toma a forma de
generalizações condicionais. Este conhecimento possibilita identificar e explicar,
Marcelo Mello Valença 42

ainda que de forma limitada, variáveis que, caso presentes, favoreceriam o


sucesso da estratégia em detrimento de outras.

De um modo geral, o conhecimento genérico permite proceder com


generalizações simples, mas elucidativas, que, quando aplicadas ao modelo da
realidade examinada, indicam as possibilidades de sucesso de uma estratégia. Em
outras palavras, o conhecimento amplo e genérico permite o estabelecimento de
regras e generalizações que condicionam o sucesso da ação a certos elementos e
eventos incidentes. A possibilidade de combinar esse conhecimento amplo e
genérico com o modelo analítico-dedutivo apontado acima, tende a efetivar o
sucesso por reduzir as margens de incerteza que operam sobre o processo
decisório.

É possível, com isso, estabelecer uma relação de condições facilitadoras que


possibilitem as chances de sucesso da estratégia adotada. Quanto mais condições
facilitadoras presentes, maior a chance do sucesso (George, 1993, p. 121-122) – o
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que, de modo algum, implica na impossibilidade do erro: a chance deste ocorrer


apenas é mitigada. As estratégias adotadas se baseariam no sucesso – ou não – de
estratégias anteriores, refletindo a importância da experiência para a condução do
processo decisório: “theory affects the choice of objectives by helping the policy
maker evaluate both desirability and feasibility” (Walt, 2005, p. 32).

Finalmente, a terceira forma de conhecimento relevante que pode ser


apurado da reflexão intelectual se dirige à caracterização do oponente e de suas
diretrizes de ação, bem como a imagem que é construída de si mesmo e que
motiva as expectativas alheias. A teoria ajuda a delinear o comportamento do
adversário, oferecendo um nível de previsibilidade relativamente preciso quanto
às estratégias por ele adotadas (George, 1993, p. 125-131).

Definir e especificar as diretrizes de ação do adversário é diferente de


atribuir a ele racionalidade ou irracionalidade. Quando se atribui racionalidade a
um adversário, tende-se a caracterizar seu processo decisório da mesma forma que
o seu próprio, o que produz reações idênticas diante dos mesmos desafios.
Edward Kolodziej apresenta as tensões entre EUA e URSS como uma dessas
falsas imagens que geral crises auto-referenciais (Kolodziej, 1992a, p. 424-426).
Situando o argumento 43

Esse tipo de conhecimento evidencia que há uma lógica que une os atores
envolvidos no processo político, mas essa lógica não implica igualdade nas
escolhas. Do mesmo modo que os demais tipos de conhecimento moldam graus
de previsibilidade de sucesso, o conhecimento em relação ao outro ator gera
expectativas da reação, não a certeza de como esta se dará. O propósito do
conhecimento é tornar mais eficiente a estratégia adotada, mas não há como
assegurar o seu pleno sucesso. A recíproca também é verdadeira: compreendendo
a lógica da ação do adversário é possível entender as condições que moldam as
expectativas do outro em relação a si próprio. “One’s self-image (...) is seldom
the same image that is perceived by the adversary and that influence his
perception and behavior” (George, 1993, p. 129).

A combinação desses três tipos de conhecimentos úteis para a política


permite o desenvolvimento de modelos analíticos mais completos, que
simplificam a realidade, identificam condições e variáveis incidentes e
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prescrevem o comportamento dos atores envolvidos. É, portanto, uma


combinação de conhecimentos voltados para o problem-solving, com uma
dimensão prática muito visível, que se mostra bastante apropriado para o caráter
assumido pelos três arcabouços teóricos que discutimos aqui.

A combinação desses três tipos de conhecimento útil proporciona o que


chamamos de uma relação produtiva entre teoria e prática. Mas no que consiste
essa relação produtiva?

Como apontado anteriormente, esses corpos teóricos possuem a


característica de integrarem a teoria e prática na busca por estratégias de ação. Os
problemas de uma esfera repercutem na outra porque o objeto de estudos demanda
tal correlação. Os intelectuais estão diretamente envolvidos com o processo
político. Aqueles que produzem teoria sabem as necessidades do burocrata e
entendem o papel da teoria para o desenvolvimento de estratégias. Os burocratas,
por sua vez, percebem que a teoria oferece modelos de ação para definir
possibilidades e custos da ação.

Uma relação produtiva entre teoria e prática, como a que existe entre
filosofia política e teoria estratégica e que é replicada nas Relações Internacionais
e nas origens da Segurança, faz com que os problemas políticos inspirem a busca
por resposta por parte da teoria. Esta, por sua vez, informa a política sobre as
Marcelo Mello Valença 44

melhores estratégias para a satisfação dos interesses dos burocratas. Como síntese
desse processo, os resultados obtidos pelo burocrata no desenvolvimento de suas
estratégias de ação refinam o conhecimento do intelectual que, em situações
semelhantes no futuro, possuiria um instrumental analítico mais apurado. Em
uma relação produtiva entre teoria e prática tornar-se-ia impossível dissociar uma
dessas dimensões sem comprometer a eficiência da outra.

Em outras palavras, do diálogo entre essas duas dimensões resulta a


produção de um conhecimento sistemático e metódico que auxilia e instrui o
processo decisório. Este, por sua vez, gera a experiência, o expertise capaz de
proporcionar o conhecimento que aperfeiçoaria a teoria, apurando o instrumental a
serviço do burocrata. Entendemos que há relação produtiva entre teoria e prática,
portanto, quando há contribuição de cada uma dessas esferas na outra, produzindo
impactos reais na maneira como cada uma dessas esferas atua e tornando uma
dependente da outra. O conhecimento obtido em uma relação produtiva entre
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teoria e prática é politicamente relevante, i.e., útil para o processo decisório.

[P]olicy-relevant knowledge reaches well beyond establishing direct relations


between policies and their desired outcomes. It also sheds light on the ceteris
paribus conditions that qualify such relations, and it establishes the circumstances
under which the policy instruments will be available and malleable, as well as the
considerations that govern the values of the ceteris paribus circumstances. Finally,
it alerts policymakers to the various consequences of their actions beyond those
that the policy is directly intended to produce (Lepgold e Nincic, 2001, p. 54).

Para fins desta tese, entendemos como politicamente relevante a teoria que
combina diretrizes amplas e generalizações limitadas voltadas para determinar se
uma estratégia pode ou não atingir seus objetivos, oferecendo alternativas para o
decisor. Uma teoria politicamente relevante ainda oferece o conhecimento
específico para o ator político agir com base nos padrões de comportamento dos
demais atores, especialmente dos seus adversários (George, 1993, p. 103; Jackson,
2010, sp.), produzindo fatos e dados que contribuam para o esclarecimento de
uma realidade pelos formuladores de política e para a tomada de decisões do
formulador de decisões (Wallace, 1996, p. 301). A relevância política pode ser
compreendida a partir da síntese dos três tipos de conhecimento úteis apontados,
pois permitiria instruir a ação política através do elenco das estratégias possíveis e
das expectativas de sucesso decorrentes de sua escolha (Lepgold e Nincic, 2001,
Situando o argumento 45

p. 26). Em resumo, o conhecimento político relevante decorre da relação


produtiva entre a teoria e a prática.

Temos, com isso, que a teoria produzida pelas Relações Internacionais e


pela Segurança apresentam como característica serem politicamente relevantes.
Isto significa que o conhecimento produzido estabeleceria uma relação produtiva
entre a teoria, i.e., o conhecimento produzido pelos intelectuais, e a prática, ou
seja, o escopo de atuação dos burocratas.

2.4.
Pergunta de pesquisa e hipóteses

A argumentação desenvolvida neste capítulo sugere que a Segurança surge


como uma teoria eminentemente voltada para a prática política, oferecendo
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conhecimento relevante ao burocrata a partir de uma relação produtiva entre teoria


e prática. Essa relação produtiva já se manifestara na correlação entre filosofia
política e teoria estratégica, além de estar presente nas origens das Relações
Internacionais.

2.4.1.
Pergunta de pesquisa

A Segurança instruía os formuladores de decisão sobre as estratégias e


escolhas disponíveis, oferecendo ponderações sobre resultados e chances de
sucesso. Porém, com as tentativas de alargamento e aprofundamento do campo, o
seu arcabouço teórico deixou de perceber a Segurança como um campo
politicamente relevante e altamente influenciado pelo processo decisório para se
perder em questionamentos sobre referenciais e possibilidades de mudanças que
rompiam com a lógica política. Conseqüentemente, a área perdeu a capacidade de
oferecer alternativas viáveis para o processo político.
Temas presentes nas agendas contemporâneas, como é o caso das novas
guerras, acabam sub-explicados, gerando dois problemas ao intelectual e ao
formulador de decisões: a insuficiência explicativa do fenômeno e a incapacidade
Marcelo Mello Valença 46

de ofertar respostas politicamente viáveis para superar estes problemas. A síntese


destes problemas resulta na assimetria entre o objeto político e o teórico.

Esse cenário nos traz a pergunta de pesquisa que norteia essa tese. Por que
a literatura de Segurança deixou de associar teoria e prática de forma produtiva?

2.4.2.
Hipóteses

A resposta à pergunta formulada acima corresponde a nossa hipótese


principal. Acusamos que a ausência de um debate sobre o conceito de violência
para a Segurança ocasionou a marginalização deste tema no debate teórico da
área, rompendo a relação produtiva que havia entre teoria e prática.

A depuração do conceito de violência a partir das origens da disciplina,


associando-o aos seus conceitos centrais, nos levaria ao resgate de suas
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proposições originais e permitiria que restabelecêssemos a relação entre teoria e


prática que caracterizou a área. Para tanto, entender a violência como o uso
deliberado da força para atingir fins políticos é o ponto de partida para reflexão.
Utilizar tal definição como eixo analítico permitiria não restabelecer a relação
produtiva entre teoria e prática, mas também proceder o aprofundamento da área,
compreendendo as dinâmicas e a lógica que sustentam a segurança sem perder,
contudo, a capacidade de proporcionar conhecimento relevante para o processo
decisório.

2.4.2.1.
Hipóteses auxiliares

Trabalhamos com duas hipóteses complementares, as quais nos referiremos


como auxiliares. Seu papel é sustentar a hipótese principal e permitir que o
argumento se desenvolva. Elas funcionam como elementos de confirmação da
correção da hipótese principal, respondendo à pergunta de pesquisa, mas
proporcionando as bases para a realização da hipótese principal.

As duas hipóteses auxiliares são:


Situando o argumento 47

(i) O fenômeno das novas guerras explicita a ausência do debate sobre


violência na Segurança e a carência de uma relação produtiva entre a teoria e a
prática, pois têm na violência um aspecto central; e

(ii) É preciso oferecer instrumentais analíticos que tragam o conceito de


violência novamente para a literatura de Segurança. Em relação às novas guerras,
o diálogo com os Estudos para a Paz e a macro-securitização devolve à Segurança
os instrumentos conceituais – i.e, o próprio conceito de violência – que permitem
o restabelecimento da relação produtiva entre teoria e prática.

2.5.
Questões metodológicas

Aproveitamos esse espaço para expor algumas considerações


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metodológicas. Três questões nos são particularmente importantes e cabe uma


explicação mais detalhada: (i) as escolhas quanto às teorias revisadas no capítulo
três; (ii) o papel e a importância do caso estudado no capítulo seis; e (iii) o
problema envolvendo a definição e conceituação dos termos utilizados nesta tese.

2.5.1.
A escolha do arcabouço teórico para revisão da literatura de
Segurança

Acreditamos ser importante escrever algumas palavras sobre a escolha das


teorias que trabalhamos no capítulo três desta tese. Sabemos que toda escolha é
um processo – ao menos parcialmente – arbitrário e implica exclusões de alguma
natureza (Dunne, 1993, p. 312) e acreditamos que há grandes chances da nossa
não ser consensual, portanto justificá-la-emos de forma detalhada quando
necessário.

De forma a atingir nosso objetivo, trouxemos as contribuições mais


relevantes ao campo da Segurança e à proposta que desenvolvemos nesta tese.
Apesar do debate sobre segurança ser extenso, optamos por trabalhar correntes
que são vistas como – além de se considerarem parte – desta disciplina. Isso
permite enxergar a Segurança como um arcabouço teórico coerente e dotado de
Marcelo Mello Valença 48

um programa de pesquisas próprio, que reforça seu caráter politicamente


relevante. Ademais, essas teorias têm a intenção de contribuir para a reflexão
sobre a Segurança, tanto política quanto teórica, almejando, em diferentes níveis,
a relevância política. A exclusão de teorias que contribuem para o debate de
segurança, mas não se propõem a desenvolver uma teoria de Segurança, se torna,
portanto, necessária.

Não buscamos mostrar quem faz segurança ou se refere à Segurança.


Analisamos quem dialoga com a teoria realista a partir de sua idéia de violência
como conceito central, oferecendo alternativas para a compreensão tanto da
política quanto da Segurança. Nesse sentido, não basta criticar a Segurança, mas
engajar em um debate coerente e cujos termos são estabelecidos pelas proposições
teóricas.27

Assim, basear-nos-emos nas revisões de literatura realizadas por Keith


Krause (1998), Ole Wæver (2004) e Steve Smith (2005) para guiar nossa proposta
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de categorização e correlação entre as vertentes de pensamento que formam o


campo da Segurança. Esses trabalhos situam os debates teóricos na área da
Segurança em torno das críticas à predominância realista, enfatizando as
contribuições e desenvolvimentos no campo.

Keith Krause critica diretamente a proposta realista e traz a agenda


histórico-interpretativa para introduzir na Segurança um corpo teórico crítico
coerente. Seu trabalho proporciona o espaço para pensar no aprofundamento do
campo porque estabelece as bases para compreender a lógica na qual opera a
Segurança. Ao sugerir essa agenda, Krause justifica as escolhas realistas dentro
do contexto em que foram realizadas. As escolhas foram feitas a partir de uma
racionalidade historicamente localizada e correspondiam às demandas daquele
período. Essa agenda crítica também proporciona a entrada de outras teorias no
campo na medida em que observam a coerência que cerca a Segurança. Deste
modo, o texto de Krause nos é útil para distinguir que teorias falam de segurança e

27
Torna-se praticamente impossível mapear todas as contribuições teóricas que surgem em
livros, bases de dados e periódicos especializados no que diz respeito à Segurança. Assim,
reconhecemos que diversas correntes teóricas podem trabalhar o que consiste estar seguro, mas
nem toda contribuição necessariamente diz respeito à Segurança. Sabemos que as escolhas que
fazemos podem não ser as mais aceitas, mas elas se baseiam em obras consagradas e, portanto, são
respaldadas por pesquisas tidas como sérias e consistentes.
Situando o argumento 49

quais teorias fazem Segurança. São com estas últimas que nossa revisão de
literatura dialoga.

Steve Smith, por sua vez, faz um trabalho semelhante ao de Stephen Walt
(1991), mapeando o campo da Segurança, mas direcionando suas lentes para as
teorias críticas e às suas contribuições à área. Ele aproveita a delimitação das
fronteiras da disciplina realizada pelo Realismo e apresenta as contribuições
dessas teorias para entender a lógica que rege o campo. Sua preocupação também
é apontar quem faz Segurança, mostrando que nem todos os pleitos por segurança
representam uma preocupação legítima em compreender o que implica a
disciplina. Seu debate sobre o caráter contraditório do conceito de segurança é
uma prova desse inchaço do campo. Todos falam de segurança, poucos fazem
Segurança.

Finalmente, Ole Wæver oferece uma contraposição entre as abordagens


norte-americanas e européias de Segurança. Sua divisão reflete, na verdade, a
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divisão entre racionalistas e reflexivistas, já trazida por Robert Keohane em


trabalhos anteriores (Keohane, 1988). Wæver aponta as fronteiras nas quais as
Escolas européias trabalham, caracterizando a sua natureza crítica e permitindo
entender a de que forma elas buscam superar as limitações tradicionais. Todavia,
essa separação se faz importante porque aponta os rumos tomados pelo
aprofundamento da Segurança e como as teorias críticas podem contribuir para a
disciplina.

A partir destas bases, separamos as teorias em grandes eixos e neles


veremos seu tratamento da violência, oferecendo uma contribuição ao
desenvolvimento da área, especialmente pela sua capacidade de promover o
aprofundamento da Segurança, o que não inclui o Realismo. Justamente por se
aterem fundamentalmente ao estabelecimento de fronteiras delimitadoras sobre o
que constituiria o objeto de estudos da área e a forma como esse objeto é atrelado
aos atores da Segurança, o Realismo não participa do aprofundamento da
Segurança.

Os grandes eixos aos quais nos referimos são três: (i) o Realismo, como
teoria predominante na Segurança e principal orientadora na sua criação; (ii) a
crítica ampliacionista, representada pelo Liberalismo; e (iii) as correntes críticas
Marcelo Mello Valença 50

que buscam o aprofundamento da segurança.28 Nesse último grupo tratamos dos


Estudos Críticos de Segurança – divididos em Estudos Críticos e a chamada
Escola Galesa29 –, a Escola de Paris, a Segurança Humana e a Escola de
Copenhague. Estas teorias são apresentadas de maneira descritiva, evidenciando
como a violência é abordada por elas. A utilização da literatura de Segurança
nesta tese não tem pretensões de assumir aspectos constitutivos, servindo para
retratar como o tema da violência foi marginalizado pelo campo e as deficiências
que decorrem dessa negligencia.

2.5.2.
A importância e o caráter ilustrativo do caso apresentado

O capítulo seis traz o cerco a Sarajevo como forma de ilustrar nosso


argumento e a utilização dos instrumentais analíticos para resgatar a relação
produtiva entre teoria e prática na Segurança. Cabe aqui algumas ressalvas ao seu
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papel e a sua utilidade para esta tese. Começamos com a justificativa de sua
escolha.

O cerco a Sarajevo se insere em uma dimensão maior, que foi o processo de


independência das ex-repúblicas iugoslavas e as guerras que dele decorreram.
Apesar de localizadas temporalmente em um período particularmente instável,
que foi o início da década de 1990, as guerras nos Bálcãs trouxeram uma
dimensão que as destacava – ao menos discursivamente – dos demais conflitos
domésticos e por independência que aconteciam pelo mundo. A questão étnica
era particularmente explosiva nas ex-repúblicas iugoslavas, remetendo a
identidades ancestrais antagônicas que foram silenciadas pelas estruturas estatais.
Uma vez trazidas à tona novamente, as tensões pretéritas permitiram o
desenvolvimento de políticas de exclusão e de violência com base em rótulos
anteriores ao Estado e manipulados pelas elites políticas.30

28
Steve Smith, mais especificamente, analisa outras teorias que podem ser elencadas no rol
das teorias críticas – o feminismo, construtivismo e o pós-estruturalismo –, mas reforça que sua
contribuição decorre mais do impacto inevitável das Relações Internacionais na Segurança do que
propriamente um enfoque específico nesta área.
29
Welsh School, no original em inglês.
30
Outros conflitos acontecidos nesse período remeteram a identidades comunitárias não-
estatais, tal como aconteceu na ex-Iugoslávia. Contudo, enquanto no país europeu essas
identidades eram seculares e foram, alternadamente, exacerbadas e silenciadas, em outros locais do
Situando o argumento 51

A guerra da Bósnia-Herzegovina (“BH”) mostra-se particularmente


importante para o nosso caso pelo papel que ela representa nos estudos das novas
guerras. Sua importância não se justifica apenas porque ela está na Europa, nem
apenas porque trouxe padrões de violência que não eram vistos desde a II Guerra
Mundial. De acordo com Mary Kaldor, a guerra da BH é o paradigma deste tipo
de conflito (Kaldor, 2001, p. 31) porque trouxe uma conscientização e
mobilização internacional em torno da violência que nunca antes visto. Mesmo
que houvesse lugares à época onde o cenário se apresentava mais violento, a
guerra da BH retornou a mobilização internacional para conflitos internos depois
de duas experiências mal-sucedidas (Farrell, 2002, p. 292-295; Valença, 2006a,
p. 154).31

Nesse contexto, a escolha pelo cerco a Sarajevo se dá por diversas razões.


A capital da BH representava um micro-cosmos de toda a guerra naquele país
(Hall, 1994, p. 117). Era a cidade mais cosmopolita e etnicamente miscigenada
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do país. Além disso, o cerco constituiu o maior empreendimento militar desse


tipo da era moderna (Andreas, 2008, p. 4) e proporcionou uma visibilidade ímpar
para a mídia, organismos internacionais e organizações humanitárias. Podemos
citar diversos outros argumentos que justificam a importância do cerco, mas
acreditamos que as palavras de Bill Carter sintetizem a dimensão que ele assumiu.
Ao ser perguntado por que gostaria de ir para a cidade, Carter respondeu de
maneira simples, mas brilhante: “[s]eems like the place to be” (Carter, 2003,
p. 17).

Quanto ao seu tratamento por esta tese, ressaltamos que seu caráter é
ilustrativo e não analítico. Apesar de reconhecermos que há uma diversidade de
excelentes relatos sobre o cerco e sobre a guerra da BH, que narram quase que de
forma literária os acontecimentos, nosso objetivo é exemplificar algumas das
dinâmicas apresentadas no estudo das novas guerras e correlacioná-las às
proposições trazidas pelos Estudos para a Paz e a micro-securitização.

mundo essas referências foram construídas no início do processo de formação do Estado. Como
exemplo, no caso de Ruanda, as identidades hutu e tutsi foram construídas pelos belgas para
designar a classe dominante no país (Gourevitch, 1998, p. 55-57), não encontrando fundamentos
na história – apenas nas carteiras de identidade.
31
Kaldor acredita que a centralidade que a guerra na BH eventualmente assumiu nas
agendas políticas, especialmente a partir de 1995, a tornará um marco para a década de 1990
(Kaldor, 2001, p. 32).
Marcelo Mello Valença 52

Nosso interesse é apontar as bases para o restabelecimento da relação


produtiva entre teoria e prática na Segurança. Ilustramos o cerco com algumas
narrativas de violência e das dinâmicas da guerra para ilustrar a prática da
violência e as suas repercussões sociais. Não pretendemos fazer qualquer tipo de
juízo quanto a esses fatos, nem tampouco problematizá-los: buscamos, tão
somente, evidenciar as possibilidades concretas de nossas proposições. Isso é
aplicável aos tipos de violência destacadas, a maneira como a violência foi
construída e replicada e como e por quem foi denunciada.

2.5.3.
Definições e conceitos

Cabe aqui uma breve explicação sobre como as definições são formuladas
neste trabalho e de que maneira construímos os conceitos trabalhados. “It matters
how we define words, not merely that we define them” (Gerring, 2001, p. 65).
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Nosso objetivo nesta ressalva é deixar clara a opção que fizemos ao trabalhar os
conceitos apresentados, neste capítulo e ao longo da tese.

Não é nossa intenção problematizar um conceito em excesso de modo a


afastar nosso foco dos objetivos desta tese. O objetivo de um conceito é permitir
sua imediata identificação e aplicação, criando o espaço para a reflexão teórica e
empírica (Vasquez, 2009, p. 16). A parcimônia e a operacionalidade são dois
aspectos centrais na formulação de conceitos. Buscamos, pois, definições que
permitam o estabelecimento de um ponto de partida para a análise do objeto da
tese e das possibilidades decorrentes dessa análise. O conceito é apenas um
suporte no qual o leitor pode se apoiar para evitar confundir aspectos por vezes
próximos ou problemáticos.

Conceitos não são estáticos (Gerring, 2001, p. 35). Especialmente para as


ciências sociais, um conceito está sujeito a variações conforme o contexto onde é
aplicado, as referências que são utilizadas e os marcos teóricos com os quais
dialogam (Vasquez, 2009, p. 20).32 Quanto menos problemáticos forem os termos

32
John Gerring propõe pensar em oito critérios para uma definição ideal de um conceito.
Estes são (i) coerência, (ii) operacionalização, (iii) validade, (iv) utilidade para o campo,
(v) razoabilidade, (vi) contextualização, (vii) parcimônia e (viii) utilidade analítica (Gerring, 2001,
p. 41-60). Os propósitos de John Vasquez se inserem nessas preocupações, ainda que ele não seja
Situando o argumento 53

utilizados para descrever o conceito, mais preciso ele se mostrará. Portanto, ainda
que tal intenção esbarre em eventuais críticas sobre isenção, procuramos definir os
conceitos utilizando termos que não remetam a uma teoria ou referência
valorativa. Isso nos permite utilizá-lo de forma ampla e, caso necessário,
promovemos a sua aproximação ao caso específico.

Nesse sentido, seguimos as indicações de John Vasquez e apresentamos,


quando se mostre necessário, uma definição operacional do termo em questão
para caracterizar o conceito trabalhado e a idéia que decorre daquele termo.
Conforme seja necessário incluir uma discussão teórica mais aprofundada, esta
será incorporada além da definição, de modo a deixar claro o viés incidente
(Vasquez, 2009, p. 14). Seu significado decorre do contexto em que foi retirado,
mas tentaremos transmiti-lo de forma válida e útil para o campo – especialmente
no que diz respeito aos impactos na teoria e na prática.
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tão incisivo em delimitar cada elemento que compõe um conceito. David Baldwin faz uma
discussão sobre o poder explicativo dos conceitos a partir dos cinco critérios estabelecidos por
Oppenheim (Baldwin, 1993, p. 7).
3
A literatura de Segurança

Neste capítulo realizamos a revisão da literatura de Segurança que sustenta


nossa hipótese de que a disciplina marginaliza a violência, limitando a sua
importância para a relação da teoria com a prática política. Com isso, o
conhecimento produzido pela Segurança não ofereceria capacidades explicativas
aos formuladores de decisão para responder aos desafios por eles enfrentados.

O eixo que guia esta revisão é o tratamento dispensado à violência pelas


teorias de Segurança. Para tanto, e como definido no capítulo anterior,
entendemos violência como o uso deliberado da força na relação entre atores
políticos de modo a atingir objetivos previamente estabelecidos.33 O conceito de
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violência para a Segurança evidencia uma dimensão instrumental, que decorre da


vontade e da escolha do ator na determinação de suas estratégias de ação. Não é,
pois, uma conseqüência, mas um meio para atingir fins políticos.

Mostramos que a busca por maior rigor teórico da Segurança a partir da


década de 1990 levou ao afastamento da dimensão prática da política. As
respostas aos problemas de segurança foram subordinadas a outras áreas do
conhecimento e, com isso, a Segurança perdeu a sua capacidade de instruir a ação
do formulador de decisões na produção de conhecimento relevante.34 A ausência
da relação produtiva se mostra especialmente preocupante em temas que formam
a agenda contemporânea de segurança internacional e que demandam um estudo

33
A opção pela violência é um aspecto racional, voltado para um determinado fim e que
deve ser pensado em termos relacionais, não isoladamente: não é possível sofrer violência estando
isolado de relações sociais. Ao mesmo tempo, é preciso ser capaz de produzir tal violência: a idéia
de capacidade que decorre dessa assertiva envolve pressupostos materiais igualmente relacionais,
i.e., um ator, para praticar violência, deve ser materialmente capaz de infligir o dano sobre outrem.
Apenas o elemento volitivo não é suficiente.
34
Como já exposto nesta tese, entendemos como politicamente relevante a teoria que
combina diretrizes amplas e generalizações limitadas voltadas para responder se uma determinada
estratégia pode ou não dar certo, identificando as conseqüências das diferentes diretrizes
apresentadas.
A literatura de Segurança 55

mais aprofundado do papel e da dimensão assumidos pela violência, como


acontece no caso das novas guerras35.

Não somos contrários ao aprofundamento da Segurança. Defendemos,


apenas, a sua realização a partir da compreensão de sua contribuição para o
processo decisório. Ao compreendermos a lógica da segurança, percebemos a
conexão entre o que é produzido na academia com as agendas políticas
internacionais. Para tanto, a análise da violência aparece como elemento central
na construção das fronteiras que delimitam o campo e oferecem o instrumental
analítico ao formulador de decisões. Tal reflexão conduziria à diminuição das
assimetrias entre as esferas teórica e prática sem, contudo, promover a teorização
com fins políticos.

Qualquer esforço na promoção de mecanismos ou tentativas de expandir o


conceito de segurança já assume, por si só, dimensões políticas, seja por parte do
analista, seja por parte do teórico (Buzan et al, 1998). Esta tese reconhece isso,
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mas não pretende se aventurar por tal seara. Também não é nosso objetivo
problematizar o conceito de segurança em termos de seu conteúdo:36 concordamos
com Steve Smith (2005) que este é um termo contestado e, portanto, nos
preocupamos apenas em apontar que o silêncio da Segurança quanto a violência
impede relações produtivas entre a teoria e a prática.

Posto isso, ressaltamos que nossa revisão da literatura não assume dimensão
constitutiva. Ela se caracteriza pela exposição da forma como a violência é
tratada pelas teorias de Segurança e do seu afastamento gradual dos aspectos
originais que caracterizavam a disciplina. Inicialmente, segurança e violência
eram tidas como indissociáveis, mas com a sua marginalização, essa correlação
foi quebrada. Discutimos este ponto a partir da contextualização e inserção do

35
Em poucas palavras, as novas guerras devem ser entendidas como conflitos armados não-
institucionalizados de natureza intra-estatal envolvendo uma miríade de atores, especialmente não-
estatais em ambos os pólos da violência e cujo objetivo específico não seria apenas militar, mas
envolveria aspectos econômicos e políticos. No próximo capítulo resgatamos o debate conceitual
que nos ajuda a entender as novas guerras a partir destes termos, aprofundando esta discussão.
36
Sobre o debate conceitual, Smoke (1975) e Wolfers (1952 e 1962) oferecem
contribuições importantes e que se tornaram referência na questão envolvendo o que seria
segurança nacional. Smoke (1975), Ullman (1983), Baldwin (1993) e Huysmans (1998)
problematizam, sob diferentes óticas, o conceito de segurança e a sua repercussão na política.
Além destes, temos trabalhos categorizados nas teorias de Relações Internacionais, como os de
Kenneth Waltz (1979), Robert Gilpin (1981) e Raymond Aron (2002), que dialogam, ainda que
marginalmente, com elementos que conceituariam a segurança.
Marcelo Mello Valença 56

corpo teórico no debate sobre Segurança que tomou espaço nas décadas de 1990 e
2000.

O objetivo desta revisão de literatura é, através do estudo do papel da


violência, explicitar a sua marginalização a partir da lógica interna dessas teorias.
Ao negar a contribuição ou o valor do Realismo, a instrumentalização do
conhecimento por ele produzido – e da violência – é posta em cheque. Outros
temas, que apareceriam nas Relações Internacionais, são trazidos para a
Segurança e colocados como vitais para a resolução de certos dilemas. A força e
a violência, por sua vez, se tornam elementos de instabilidade e insegurança.

Os corpos teóricos que trazemos nessa revisão de literatura são considerados


como integrantes da área, além de também se incluírem na disciplina. Essa
identificação permite enxergar a Segurança como dotada de arcabouço teórico e
programa de pesquisas próprios, consolidando seu caráter politicamente relevante.

Essa escolha é condizente com nossa proposta de não buscarmos mostrar


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quem faz segurança ou quais teorias se referem à Segurança. Estudamos apenas


quem dialoga com a teoria realista a partir de sua idéia de violência, oferecendo
alternativas para a compreensão tanto da política quanto da Segurança. Não basta
criticar a Segurança, mas engajar em um debate coerente, nos termos da
disciplina. Para tanto, utilizamos as contribuições de Keith Krause (1998), Ole
Wæver (2004) e Steve Smith (2005) para orientar nossa exposição. Dividimos a
literatura em três grandes “blocos”: os estudos tradicionais de Segurança,
marcados pelo Realismo; a crítica ampliacionista, de caráter liberal; e as correntes
críticas que buscam o aprofundamento da segurança.

Tratamos na seção 3.1 a abordagem realista da Segurança. Ao se


considerarem o bastião da coerência intelectual do campo, os realistas perdem a
dimensão da importância da relação política da violência para a Segurança e se
focam apenas na sua forma de manifestação. A lógica na qual a segurança opera,
portanto, é desconsiderada. Entretanto, é o Realismo que estabelece os termos do
debate na Segurança. A delimitação de fronteiras e limites para o objeto de
estudos pelo Realismo se mostrou fundamental para a proximidade do
conhecimento que se produzia na teoria ao processo decisório, vinculando-os.
A literatura de Segurança 57

Na seção 3.2 retomamos o debate sobre o alargamento da Segurança. Os


defensores do alargamento propõem que a Segurança, para ser politicamente
relevante e capaz de oferecer respostas satisfatórias ao processo decisório, deve
englobar mais temas em sua agenda. A teoria que representa essa proposta é a
liberal, que será lida à luz de sua crítica ao Realismo e de sua caracterização de
violência.

Os liberais trazem uma variedade de temas para a segurança, buscando


ampliar a agenda e as respostas necessárias para conter essas questões. O uso da
força perde utilidade, passando a ser uma estratégia possível, mas desvantajosa
aos atores políticos, pois romperia com a interdependência política, causando
instabilidade. O arcabouço liberal foca as condições de ilegitimidade no exercício
da autoridade política. A incapacidade de oferecer bens políticos se apresenta
como fator de instabilidade para a ordem, impulsionando movimentos de
autodeterminação e processos de governança. Condições como economia,
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legitimidade política, prestação de bens políticos e interesses dos grupos


formadores do Estado se tornam questão de segurança, caracterizando a violência
como a ausência de liberdades – especialmente a política. Desta maneira, o
pensamento da segurança não se limitaria apenas à violência associada ao uso da
força interestatal, mas enxergaria novas dimensões que a tornariam parte da
ordem política.

As teorias que propõem o aprofundamento da Segurança são tratadas na


seção 3.3. Mais do que incluir novos temas na agenda de segurança, os
defensores do aprofundamento buscam compreender a lógica na qual a segurança
opera para oferecer uma reflexão histórica e socialmente fundamentada. Uma vez
que o aprofundamento é realizado, o alargamento pode se tornar uma
conseqüência, mas não há necessariamente essa obrigatoriedade de aprofundar e
alargar a segurança no processo de reflexão sobre as suas bases.

Os Estudos Críticos de Segurança são trabalhados na seção 3.3.1, divididos


em duas vertentes, os Estudos Críticos e a Escola Galesa, respectivamente em
3.3.1.1. e 3.3.1.2. Ambos apresentam como semelhança a contribuição baseada
em uma agenda moldada por uma análise historicamente contextualizada e que
apresentaria o conhecimento como socialmente construído (Krause, 1998, p. 306-
309), evidenciando as limitações e insuficiências da teoria realista.
Marcelo Mello Valença 58

A vertente dos Estudos Críticos proporciona um arcabouço mais dilatado e


inclusivo no que tange às contribuições teóricas que o formam. Mais do que se
limitar apenas à caracterização da violência como o uso da força, os Estudos
Críticos associam segurança à sobrevivência, permitindo uma análise aprofundada
do tema e a compreensão problematizada das ameaças que surgem na política
internacional contemporânea. A figura do Estado se torna uma referência
freqüente, ainda que não a única, para o estabelecimento das críticas dessa
vertente, dado que sua centralidade acaba por limitar o pensamento político
criativo nas Relações Internacionais e na Segurança.

A chamada Escola Galesa, por outro lado, assume nova dimensão ao se


focar em uma teoria realmente crítica – a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.
Ela se dirige à emancipação como forma de escapar da violência causada pelas
estruturas políticas. A violência é parte importante para a Escola Galesa,
baseando-se na definição galtunguiana de limitação do potencial do indivíduo e da
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assimetria entre o real e o possível. Com esta idéia em mente, a compreensão da


segurança como emancipação permitiria à Escola Galesa desenvolver um
arcabouço voltado para a segurança de verdade para pessoas de verdade.

Em 3.3.2 trabalhamos a Segurança Humana. Essa corrente surge a partir do


espaço para reflexão proporcionado pelos Estudos Críticos de Segurança e
também da mudança sugerida na primeira metade da década de 1990 pela
Organização das Nações Unidas (“ONU”) quanto ao referencial para se pensar
segurança. A Segurança Humana sugere que a liberdade do medo e a liberdade de
querer37 fazem parte do corolário para a libertação humana. O enfoque no
indivíduo passa a ser visto como necessário, mas não suficiente, para uma agenda
consistente de segurança (Thomas e Tow, 2002, p. 189-190): é uma tentativa de
romper com o predomínio da Segurança estadocêntrica, mas sem perder esse
referencial. No entanto, apesar de assumir pretensões teóricas e dialogar com a
Segurança, oferecendo críticas ao Realismo, a Segurança Humana não consegue
se sustentar como uma teoria per se, dependendo de amparo de outros
referenciais. Ainda assim, e pela sua importância no debate sobre
aprofundamento da Segurança, optamos por incluí-la.

37
Em inglês, no original, freedom from fear e freedom from want.
A literatura de Segurança 59

As duas outras correntes críticas discutidas nesta seção constituem o que se


convencionou chamar de abordagens européias para a Segurança (Williams, 2003,
p. 511; Wæver, 2004, p. 2; c.a.s.e. collective, 2006, p. 444; Mutimer, 2007).38 A
primeira é a Escola de Paris ou da Sociologia Política Internacional, trabalhada em
3.3.3; a outra é a Escola de Copenhague, em 3.3.4.

A Escola de Paris defende a operacionalização racional da segurança a partir


da lógica weberiana de tecnologias e agências de segurança domésticas. Essa
proposta faz com que a busca pela segurança leve a uma condição constante e
convenientemente construída de insegurança. A análise dessa teoria é feita de
maneira empírica, o que proporciona dois efeitos. Se por um lado, a base
empírica limita a teorização, por outro proporciona um diálogo estreito com as
práticas que levam à securitização de determinadas práticas e com os mecanismos
que promovem a sua inserção na rotina ordinária da sociedade. Pela própria
dificuldade em determinar o escopo desta Escola – seu enfoque é sociológico,
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com notável preferência pelo doméstico. A Escola de Paris se mostra como um


ponto de encontro de teóricos que poderiam ser alocados em outras categorias
utilizadas neste trabalho, mas sua característica sociológica permite que a
coloquemos como uma proposta autônoma (c.a.s.e. collective, 2006).

A Escola de Copenhague se destaca por sua proposta de securitização e pela


divisão setorial da unidade política. Ela se apresenta como um instrumental capaz
de identificar as ameaças à sobrevivência e, por conseguinte, à segurança. Apesar
do foco não ser na violência e haver críticas quanto ao seu eurocentrismo,
podemos perceber no processo de caracterização dos temas pertencentes à
segurança uma possibilidade de encarar a violência. Com isso, a lógica da
segurança é apreendida e operacionalizada para atores políticos tão distintos
quanto o Estado e o indivíduo, permitindo o seu aprofundamento. Deste
movimento surge o espaço necessário para o alargamento da agenda de segurança,
permitindo a inclusão coerente de novos temas. Pela coerência interna dessa
vertente, acreditamos que a violência possa ser problematizada na Escola de

38
Mais precisamente, seriam os Critical Approaches of Security in Europe, daí o acrônimo
c.a.s.e. para representá-los. A Escola Galesa também faz parte do c.a.s.e., mas optamos por seguir
a posição de Steve Smith (2005) e trabalhá-la junto com os Estudos Críticos de Segurança.
Marcelo Mello Valença 60

Copenhague e caracterizada como elemento político, permitindo a sua utilização


no estudo das novas guerras, desde que entendidas as suas limitações.

Concluímos o capítulo na seção 3.5. Nesta seção também introduzimos o


argumento trazido no capítulo quatro, construindo, de maneira superficial, a
relação entre as limitações teóricas que incidiram sobre a Segurança e o seu
impacto sobre temas como as novas guerras.

3.1.
There and Back Again: o papel do Realismo

O Realismo39 se apresenta como delimitador das fronteiras e limites da


Segurança. Como teoria política predominante à época do surgimento da
disciplina, o Realismo conecta as demandas presentes nas agendas dos
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formuladores de decisão com seus pressupostos epistemológicos e proporciona o


instrumental analítico para responder aos desafios políticos enfrentados.

Como teoria orientada para a resposta de problemas, o Realismo se adéqua


metodológica e analiticamente às demandas políticas, estabelecendo uma relação
produtiva com a prática. A racionalidade que decorre de sua análise permite que
pensemos em modelos que guiam o formulador de decisões em suas escolhas de
maneira a antecipar os resultados e prever o comportamento dos demais atores
envolvidos na ação política.

39
Reconhecemos a existência de diversas e diferentes formas do pensamento realista, ainda
que existam alguns elementos, limitados, que tornam comum tal tradição (Morgan, 2007, p. 16),
especialmente sobre a natureza anárquica do sistema internacional, a primazia da política sobre a
economia e do uso da força militar como instrumento de política internacional. “Realism operates
within a clear paradigm. Nevertheless, it is an extremely broad church” (Sheehan, 2005, p. 25).
Um dos textos mais citados para justificar a posição realista no debate sobre o campo no momento
imediatamente posterior ao final da Guerra Fria (Walt, 1991) e que nos serve de guia, por
exemplo, é freqüentemente entendido como neo-realista, ainda que seu autor não assuma essa
posição especificamente. Consideramos a tradição realista como uma corrente coerente e nos
referiremos a ela tal como se fosse única, a menos quando houver especificidades pertinentes a
uma vertente ou outra. Neste caso, estas peculiaridades serão explicitadas. Sobre o debate e/ou
categorização das diferentes vertentes do Realismo, ver Mearsheimer (1990), Rose (1998), Walt
(1998), Lynn-Jones (1999), Legro e Moravcsik (1999), Feaver et al (2000) e Morgan (2007).
Sobre as origens filosóficas do Realismo, uma obra de referência é o livro de David Boucher
(1998).
A literatura de Segurança 61

Para os realistas, o objeto da Segurança é sintetizado no estudo da ameaça,


do uso e do controle da força militar, constituindo esta a fonte mais séria, mas não
a única, de segurança (Walt, 1991, p. 222).40 Ao lidar com tais questões, o
intelectual e o burocrata trabalhariam com as mais altas responsabilidades dos
governos (Freedman, 1998), explicando o mundo “real” em termos diretos
(Mutimer, 1999, p. 92).41 As preocupações do Estado, ator político por
excelência, diante das condições de self-help da anarquia internacional poderiam
ser sanadas mediante a contribuição da Segurança para o processo decisório,
mesmo que a mudança na natureza dos atores ou da anarquia não pudesse ser
alterada.

Military forces are generally the preserve of states, even when they are not.
Indeed, our common definition of the state is that institution which has a monopoly
on the legitimate means of violence. Therefore, by studying the threat, use and
control of military force, security studies privileges the position of the state
(Mutimer, 2007, p. 55).
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A proximidade entre a academia norte-americana e o processo decisório


durante a Guerra Fria foi especialmente importante para que a Segurança
assumisse a relevância política dela esperada. A definição de seu escopo era o
elemento basilar para as diretrizes que norteavam os interesses daquele país. Mais
do que uma área capaz de oferecer inspiração e capacidade analítica, a Segurança
era a esfera intelectual responsável por lidar com os mecanismos de interação
interestatal, atendendo às demandas decorrentes das agendas políticas. Em um
cenário como o da Guerra Fria, isso significava desenvolver os meios para afastar
as ameaças inerentes do uso da força e garantir a sobrevivência do Estado. Graças
a esse cenário, a ameaça da violência promovida pela guerra é o foco das atenções
por parte dos burocratas e intelectuais.

A segurança e a estabilidade do Estado no plano internacional são colocadas


como condicionantes para a segurança e a ordem domésticas: “[r]ealists construct
the state as a necessary unit for the well-being and survival of any human group
within the anarchic international environment (Buzan, 1991, p. 40). Daí

40
Outro tema seria o statecraft, práticas do Estado que teriam ligação direta com o uso da
força, como a diplomacia. Tanto o uso da força quanto a diplomacia são temas formados por
variáveis manipuláveis, que podem ser racional e objetivamente estudadas (Walt, 1991).
41
Não à toa, um dos estudos mais influentes da teoria de Relações de Internacionais aponta
que o escopo da área diria respeito à guerra e à diplomacia, as principais formas de um Estado
atuar no plano internacional. Surgiria daí a assertiva de que as Relações Internacionais se
posicionam à sombra da guerra (Aron, 2002).
Marcelo Mello Valença 62

decorreria o pressuposto de que a sua segurança é intimamente conectada ao


desenvolvimento de condições que aumentem suas capacidades e/ou impeçam que
os seus adversários modifiquem a distribuição de capacidades no sistema:42
“whether a state survives or not depends on its capacity to perform the security
roles that it alone can execute” (Kolodziej, 2005, p. 129).

Ao relacionar capacidade e segurança, evidencia-se aqui a necessidade de


possuir as condições materiais para usar a força, não apenas o desejo de fazê-lo.
Capacidade se confundiria com poder e o poder – equiparado às capacidades de
mobilizar efetivamente o aparato militar – é um elemento sempre buscado pelos
Estados (Wight, 2002, p. 305-306; Morgenthau, 2003, p. 16-17) para atingir seus
objetivos.

Em suma, o poder reflete o conjunto de elementos que permitiriam que o


uso da força causasse dano a outros atores. Trata-se, portanto, de elementos de
caráter material, bem como recursos econômicos e industriais (Wight, 2002,
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p. 155 e seguintes), desde que repercutissem a e influíssem na capacidade militar


daquele Estado (Kolodziej, 2005, p. 129-130). Desta forma, o Estado poderia
submeter outros Estados à sua vontade, bem como assegurar a sua sobrevivência:
“a state’s effective power is ultimately a function of its military forces and how
they compare with the military forces of rival states” (Mearsheimer, 2001, p. 55).

A utilidade da Segurança se justificava, portanto, pela sua capacidade de


oferecer respostas politicamente relevantes para os problemas mais importantes
enfrentados pelos formuladores de políticas, oferecendo estratégias para resolvê-
los. Não obstante essas respostas, a Segurança realista oferecia aos burocratas a
legitimidade para o desenvolvimento de diretrizes para a política externa que
proporcionavam aos EUA a manutenção de seus interesses. No caso da Guerra
Fria, a Segurança ainda trazia para si a responsabilidade de oferecer um arcabouço
explicativo das ameaças e desafios que cercavam o Estado – em especial, os EUA
– àquele período: o uso da força militar por um Estado contra outro, i.e., a guerra,
a violência organizada.43 Ajudaria, ainda, a iluminar o burocrata na escolha das

42
Sobre o equilíbrio de poder, ver Waltz (1979); Walt (1985), Bull (2002) e Little (2007).
Sobre o dilema de segurança, ver Jervis (1978), Glaser (1997) e Booth e Wheeler (2008).
43
Apesar da violência na segurança ser um produto natural da guerra, não devemos tomar
guerra e violência como sinônimos (Kalyvas, 2006, p. 20). Há outras formas de praticar violência
que não a guerra, mas apenas aquela decorrente do uso da força armada de maneira deliberada
A literatura de Segurança 63

políticas para lidar com a questão nuclear. Diante de um cenário que colocaria a
sobrevivência do Estado em risco, a Segurança ofereceria estratégias para mitigar
os riscos e aumentar seus ganhos.

Para superar a sombra do futuro, estratégias de escolha racional eram


desenvolvidas com base na teoria dos jogos, oferecendo um modelo que
simplificava a realidade e proporcionava ao formulador de decisões compreender
as conseqüências e impactos de suas escolhas. O revés era que essas ferramentas
racionais simplificavam por demais a realidade, criando cenários ideais que não se
sustentavam na prática. Não obstante essas limitações, os modelos pareciam
funcionar com relativo sucesso, consolidando a área.

Os postulados realistas sustentavam os interesses norte-americanos,


permitindo reafirmar a sua relevância política. As necessidades práticas eram
satisfeitas pela teoria, dando as bases para a legitimidade a violência como
estratégia política. O uso da força se limitava à relação entre Estados, não
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envolvendo outros atores, quaisquer que fossem eles: “Realism focus on state-to-
state violence” (Sheehan, 2005, p. 21, grifo nosso). Essa escolha silenciava outras
formas de violência, produzidas ou não pelo Estado, mas tendo como destinatário
atores não-estatais, que seriam relegadas a outras áreas do conhecimento (Walt,
1991, p. 213). Por não afetar a estratégia para atingir objetivos no plano
internacional, esta violência não era relevante para o conhecimento produzido
para auxiliar o burocrata.

Ao mesmo tempo, essa era uma saída conveniente para a manutenção das
condições da bipolaridade, mesmo diante de manifestações violentas por
independência nos países periféricos. Considerar a ameaça militar como foco da
segurança era, pois, uma escolha política, racional e consciente das exclusões que
promovia (Kolodziej, 1992a; Sheehan, 2005). A escolha parecia natural para o
cenário da Guerra Fria e do ainda incerto futuro que a política reservava após o
seu fim. Era, também, adequada a um século permeado pela ameaça da guerra
entre os grandes poderes internacionais: “[g]iven the urgent nature of many of the

pelo ator político visando atingir seus interesses políticos, é objeto da Segurança. Outras formas
de violência, que não decorreriam do uso da força inter-estatal, são ignoradas pela Segurança,
devendo buscar acolhida em outras áreas. Trazê-las para a área da Segurança não contribuiria para
a reflexão política, logo essa ampliação apenas levaria à perda da coerência e, conseqüentemente,
da sua relevância.
Marcelo Mello Valença 64

issues addressed by international security studies, it would be unrealistic to expect


researchers to remain totally divorced from current policy questions” (Nye e
Lynn-Jones, 1988, p. 13).

Como as ameaças ao Estado eram decorrentes da anarquia internacional, o


aspecto militar – foco da agenda de política externa – é logo evidenciado,
afastando outros temas das agendas de pesquisa. “Traditionally, ‘security’ was
the security of the state, it was threatened by the military power of other states and
defended by the military power of the state itself” (Mutimer, 1999, p. 77). As
ameaças ao Estado e a sua sobrevivência aconteciam nessa esfera e a Segurança se
mostrava atenta a isso. Ela dava as bases para analisar a forma na qual os Estados
concebiam as possibilidades do uso da força (Fierke, 2007, p. 17).

Se as bases políticas encontravam as respostas necessárias na teoria, esta


também se dirigia para atender as necessidades práticas, reforçando a sua
relevância. A defesa do campo por Stephen Walt (1991), feita em formato
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historiográfico é um manifesto realista para o pós-Guerra Fria. Ao defender a


lógica que baseou a criação – ou a formalização – da Segurança, Walt tinha
objetivos muito claros: evidenciar que a motivação do campo era oferecer um
instrumental analítico para mitigar as ameaças à sobrevivência do Estado e, por
conseqüência, da sua população, contra ameaças militarizadas originadas no plano
internacional, mantendo a sua relevância para o processo decisório. Esse diálogo,
todavia, se mantinha objetivo e utilitarista. O uso da força era posto como uma
estratégia possível e viável, marcando a capacidade da Segurança de ser útil não
apenas em cenários onde a guerra era iminente, mas sempre que a política de
poder se apresentasse como uma oportunidade.

Isso seria possível pela suposta capacidade do campo de responder a


desafios novos, evidenciada em dois momentos.44 Na Era de Ouro, a gênese da
área, a Segurança ficaria marcada por oferecer respostas para os dilemas políticos
da época, criando diretrizes políticas, como a deterrence45 e cativando um espaço

44
Stephen Walt (1991) divide o período da Guerra Fria em dois momentos, a “Era de
Ouro” e o “Renascimento”, mostrando como a Segurança conseguiria se adaptar aos novos
contornos internacionais, mantendo seu foco na violência organizada.
45
“Although it is probably the most impressive theoretical achievement of international
security studies, deterrence theory has been criticized by many analysts” (Nye e Lynn-Jones, 1978,
p. 11). Sobre a deterrência, ver Jervis (1979), Waltz e Sagan (1995) e Payne e Walton (2002).
A literatura de Segurança 65

no rol das teorias politicamente relevantes. Isso foi possível porque o resultado de
suas pesquisas refletia as preocupações com a segurança do Estado e instruíam a
ação política, sintetizando suas estratégias na imagem da segurança nacional. A
relação com a prática delimitava os limites da Segurança como disciplina e
também marcava o espaço onde a produção intelectual seria possível – e, por
conseqüência, produtiva.

Após a crise enfrentada na Era de Ouro, surgia uma nova fase para a
Segurança. O Renascimento a aproximava das teorias de Relações Internacionais
e, especialmente, das próprias relações internacionais (Walt, 1991, p. 219;
Baldwin, 1995, p. 125), incorporando estudos históricos à área (Fierke, 2007,
p. 26) visando o resgate da importância e do apelo dos problemas de segurança
junto ao interesse público (Nye e Lynn-Jones, 1988, p. 10).

Contrariamente às expectativas realistas, a política no pós-Guerra Fria


evidenciou problemas relacionados à utilização da violência que fugiam dos seus
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pressupostos epistemológicos. A incidência da violência interestatal ainda era


possível, mas tornava-se menos freqüente que a intra-estatal (Gleditsch et al,
2002, p. 616). Os Estados eram os principais atores na política internacional, mas
outras unidades políticas começavam a assumir importância, questionando o
monopólio estatal. Esse já era um problema na Guerra Fria, quando a disputa
entre EUA e URSS silenciava as guerras na periferia, mas, com o fim da
bipolaridade internacional, essa questão não poderia mais ser ignorada. A agência
envolvida na prática da violência, bem como seus pólos ativo e passivo, não mais
se adequavam à teoria realista.

No entanto, há uma produção acadêmica ampla e bastante relevante que


mantém a posição dos elementos das origens realistas como válidos, defendendo a
sua adequação neste novo cenário (Luttwack, 2000; Mearsheimer, 2001 e 2005;
Gray, 2005).46 Essa literatura defende que são os elementos que caracterizaram a
Segurança como disciplina que devem ser mantidos na relação entre a teoria e a

46
Eventuais tentativas de adequar o paradigma realista a novos desafios não se mostra tão
bem sucedido. Não há o descolamento da ameaça da violência inter-estatal no pensamento
realista. Exemplo disso é a compilação de artigos editada por Michael Brown et al (2004). O
título é “New Global Dangers: changing dimensions of international security” e inclui autores de
inclinação mais liberal, mas, ainda que haja novas ameaças, elas são dirigidas, em última instância,
ao Estado. Ver também Paris (2004), especialmente o gráfico na página 260.
Marcelo Mello Valença 66

prática, marcando a sua área de atuação. Uma vez que eles sejam abandonados,
perder-se-ia o valor da Segurança como área capaz de prover conhecimento
relevante para a política.

Se foi o Realismo que permitiu a aproximação entre a teoria da prática


política na Segurança, esse esforço de manutenção dos seus próprios pressupostos
como dogmas inabaláveis que passou a romper a relação produtiva entre teoria e
prática. Seus modelos e estratégias de racionalidade impediam que a teoria
percebesse que outras formas de uso da força armada, envolvendo outros atores
além do Estado, passaram a predominar na política internacional, diminuindo a
importância – ou a incidência – da violência inter-estatal para as Relações
Internacionais. A capacidade da perspectiva realista de auxiliar de maneira
produtiva a reflexão no processo decisório se esvaziava ao não ser capaz de
explicar – ou sequer abordar – esta violência.

Walt defendia que o objeto da segurança sendo exclusivamente o uso,


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ameaça e controle da força militar era uma forma de assegurar a coerência


intelectual do campo, proporcionando ferramentas analíticas para o processo
decisório. Considerando o cenário político dentro do qual surgiu a disciplina, esta
escolha é compreensível. Mas a insistência de autores realistas em manter esses
princípios e pressupostos válidos mesmo em um contexto político onde as
mudanças são evidentes mostra-se como uma forma de assegurar a própria
coerência do Realismo como teoria.

A relação produtiva que existia entre teoria e prática ao longo da Guerra


Fria se justificava pela produção de conhecimento politicamente relevante para o
burocrata e pela possibilidade de desenvolver modelos analíticos explicativos. No
entanto, a influência das teorias de Relações Internacionais de inclinação realista à
Segurança promoveu o afastamento do intelectual dos problemas enfrentados
pelos burocratas. Ao importar conceitos oriundos da economia, como a escolha
racional e os modelos da teoria dos jogos, há uma simplificação demasiada da
realidade que impede que os resultados buscados/alcançados sejam de fato
correlacionados à realidade que se propõem a explicar. O modelo ideal de escolha
é, assim, somente um modelo e não reflete as idiossincrasias da política.
Curiosamente, é a racionalidade pregada pelas teorias realistas que afasta o
Realismo da relevância política na Segurança.
A literatura de Segurança 67

Sua preocupação em delimitar as fronteiras da disciplina os impossibilitou


de manter a coerência da proposta da Segurança de ser uma ferramenta analítica
voltada para a política. Ao negligenciar a mudança nas condições de uso da força
e de estudo da violência, o Realismo afastava seu arcabouço teórico da prática
política. Seus modelos racionais baseados na Economia permitiam ao burocrata
acesso objetivo a uma realidade que não mais se adequava aos problemas
enfrentados. Diante dessa ineficiência em explicar o novo cenário internacional, a
perspectiva realista acabou por ser associada a um passado histórico que não
encontrava correspondências com a agenda contemporânea. Outras teorias
invadiriam o campo, estabelecendo o diálogo com os realistas e acabando com seu
monopólio na Segurança.

3.2.
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O alargamento da Segurança: o impacto do Liberalismo

A recusa dos autores realistas em promover a ampliação sob a alegação da


manutenção da coerência e da relevância política pode ser compreendida em razão
da herança da II Guerra Mundial e do contexto político da Guerra Fria:

[t]he Cold War as an international structure appeared to conform almost perfectly


to the realist, and then in 1979 with the publication of Kenneth Waltz’s Theory of
International Politics to the neo-realist framework (Dannreuther, 2007, p. 36, grifo
original).47

Aos olhos realistas, a relevância política de seu trabalho e de sua agenda de


pesquisas se fortalecia ao conectar os desafios enfrentados pelos Estados através
de respostas produtivas e politicamente viáveis. Segundo aquela teoria, isso
continuaria a ser possível mesmo sem os problemas e o contexto trazidos pela
Guerra Fria.

Contudo, o fim da Guerra Fria estimulou o debate sobre segurança, trazendo


novas contribuições, temas e agendas para a área que acabaram por contestar os

47
John Mearsheimer (Mearsheimer, 1994, p. 10) afirma que o período da Guerra Fria
corroboraria e comprovaria a validade de três pressupostos centrais do neo-realismo. São eles (i) o
princípio ordenador anárquico, (ii) a diferenciação das unidades políticas estatais com base na
distribuição de poder (entendida como a capacidade de promover dano contra seus pares) e (iii) o
sistema de auto-ajuda predominante, diante das incertezas da política internacional.
Marcelo Mello Valença 68

limites estabelecidos pela teoria realista. Diante da posição realista, que restringia
o objeto de estudos da Segurança em busca de coerência disciplinar e relevância
política no início da década de 1990, ataques foram feitos buscando moldá-la a
novos tempos. A resposta liberal sugeria a insuficiência e o descolamento da
política realista enfrentava e trazia uma nova agenda de pesquisas para manter a
relevância da Segurança. Sua análise se voltava para elementos que seriam mais
freqüentes e politicamente relevantes do que a violência interestatal (Kolodziej,
1992a, p. 422-424), possibilitando uma agenda mais inclusiva e abrangente.

Essa nova agenda começaria com a revisão do papel do Estado para a


disciplina. O Estado continua a ser um ator central para a política internacional,
mas é tido como mais um elemento a ser analisado, de forma a garantir a
liberdade e a potencialidade humanas (Morgan, 2007, p. 25). Na visão liberal, o
Estado deveria não só proteger contra ameaças externas como também garantir a
ordem e os interesses dos grupos domésticos (Evans e Newham, 1998, p. 304). A
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ameaça militar deixa de ser a única a pairar sobre o Estado, que passaria a se
preocupar primeiramente em satisfazer as necessidades daqueles que legitimariam
a sua autoridade, assegurando chances e oportunidades no plano doméstico.
Somente então a preocupação em se proteger contra ameaças decorrentes da
anarquia internacional se apresentaria. É a lógica do liberalismo econômico dos
séculos XVIII e XIX impactando na área da Segurança (Morgan, 2007, p. 25).48

Um dos questionamentos mais contundentes aos pressupostos realistas foi


realizado por Edward Kolodziej (1992a). Ele identifica falhas na compreensão da
Segurança por Walt (1991) e propõe uma discussão conceitualmente mais rica,
teoricamente mais inclusiva e politicamente mais relevante, contribuindo para o
alargamento e para um maior entendimento do campo.49

48
A contribuição liberal para as Relações Internacionais é extensa demais para ser colocada
em apenas uma nota de rodapé. Diversos autores e formuladores de políticas, desde o início do
século XX, podem ser elencados como influenciados pelo liberalismo econômico, refletindo essa
influência para as teorias de Relações Internacionais, começando por Norman Angell e Woodrow
Wilson, nas duas primeiras décadas do século XX. Uma lista curta, porém significativa, de
trabalhos que se valem dessa perspectiva liberal pode ser realizada com nomes como Leonard
Woolf (1916), Robert Keohane e Joseph Nye (1977), Michael Doyle (1986), Edward H. Carr
(2001) e Norman Angell (2002). Esta lista, obviamente, não é, nem pretende ser, exaustiva.
49
Kolodziej não fala sobre aprofundar, nem alargar a Segurança, mas dos seus argumentos
percebemos uma forte tendência a adotar essa segunda postura.
A literatura de Segurança 69

Partindo do problema da relevância e da importância prática da disciplina,


Kolodziej aponta rumos alternativos diante de questões que assumiam grande
importância nas agendas internacionais, especialmente em um momento quando a
utilidade do uso da força entre Estados era questionada (Keohane e Nye, 1977).
Esse tema, que marcou o pensamento realista e que assegurava a relevância da
disciplina, foi colocado de lado, cedendo espaço para a legitimidade política como
objeto de estudo da Segurança. Ao invés de se preocuparem com a violência e o
uso da força, os liberais buscariam na estabilidade política e na ordem doméstica
os elementos necessários e suficientes para falar de segurança, abrindo espaço
para as questões envolvendo governança nas agendas do campo.

Ao afirmarem a necessidade de abrir a caixa-preta do Estado para analisar


como este protegeria a sua população e ofereceria os bens políticos necessários
para a boa vida, os liberais colocam na pauta sua preocupação com a ilegitimidade
política. A segurança do indivíduo não poderia ser separada das reivindicações do
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grupo e das estruturas coletivas em que se insere, tornando possível a adoção de


uma identidade coletiva e de projetos visando o futuro – as políticas de idéias –,
vinculados à legitimidade do Estado. Ao definir os interesses do Estado como
primários e primordiais, subordinando todos os demais àqueles, a doutrina da
segurança nacional realista promove a suposição não-problematizada de uma
hierarquia de valores que violaria os preceitos de governança liberais e impediria
a liberdade individual.

Para os liberais, a legitimidade e o reconhecimento de um regime se


tornavam, portanto, questões de segurança. Isso refletia um problema que se
reproduzia em diferentes regiões do mundo, que era o aumento da violência intra-
estatal, como forma de buscar a autodeterminação dos povos. O argumento
reducionista e não-problematizado de que o Estado era a representação contratual
dos seus cidadãos não era suficiente para os liberais, que apontavam a importância
da governança: à medida que a sociedade de Estados se movia em direção a uma
sociedade mundial de povos, questões envolvendo a legitimidade de um regime se
tornariam cada vez mais difíceis de ignorar. As guerras civis seriam o aspecto
mais visível do questionamento da legitimidade do Estado como autoridade
política competente, trazendo questões de segurança muito mais fundamentais que
Marcelo Mello Valença 70

o uso da força interestatal (Kolodziej, 1992a, p. 423).50 Comunidade política e


segurança estariam essencialmente conectadas (Deutsch et al, 1957): uma não
seria possível sem a presença da outra.51

[W]hen the arguments for the benefits to be gained through economic


interdependence are combined with the increased costs and loss of instrumentality
of large-scale warfare, then a stronger cumulative case for the great power peace
can be made (Dannreuther, 2007, p. 17).

O compartilhamento de valores e idéias permitia falar de estabilidade e


ordem, remetendo à condição de segurança. Isso proporcionaria a noção de
interdependência, que geraria estímulos para a cooperação e custos para a
desistência, mitigando os impactos da anarquia internacional nos Estados
integrantes dessas comunidades. Mais especificamente, há o desenvolvimento do
conceito de comunidades de segurança.

Comunidades de segurança são grupos de indivíduos que se tornaram


integrados, atingindo um ideal de comunidade que conteria e englobaria
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instituições e práticas fortes o suficientes que pudessem tornar a guerra um tipo de


relacionamento indesejado (Sheehan, 2005, p. 27). Essas comunidades
compartilham três elementos: (i) valores e (ii) instituições compatíveis que
(iii) permitiriam a interação dinâmica entre as diferentes comunidades em termos
diferentes da guerra, dado que os valores e instituições seriam reconhecidos
mutuamente como legítimos, mesmo que não similares. Haveria, assim, uma
identidade comum que as interligava e facilitava o estabelecimento de relações
entre seus membros (Adler, 1997).

A legitimidade do Estado, independentemente das suas capacidades


militares ou materiais, se torna um elemento definidor da segurança em face da
relação que se estabelecia entre supressão dos direitos por regimes ilegítimos e a
liberdade humana. Se a visão tradicional da Segurança toma a legitimidade
política como dada, os teóricos liberais problematizam esse aspecto para
compreender segurança de maneira mais inclusiva. Nenhum Estado ou governo

50
Posição compartilhada por Kalevi Holsti (1996), que aponta que as guerras de terceiro
tipo, visando a formação de um governo legítimo, surge em razão de tais pleitos. Holsti ainda trata
o problema trazido por Estados fracos e a ilegitimidade de seus governos como causas para as
guerras de terceiro tipo.
51
Essa racionalidade baseada em princípios e valores compartilhados – ainda que não
inteiramente comuns – se reflete no cálculo político para a tomada de decisões que motivaria, entre
outras idéias, a interdependência complexa (Keohane e Nye, 1977).
A literatura de Segurança 71

poderia resistir ou ignorar as demandas populacionais por progresso material


baseado na alegação de um bem maior voltado para o crescimento econômico do
Estado ou o seu desenvolvimento técnico-científico. A ampliação dos estudos de
Segurança se fazia necessária para mantê-los atrelados à prática política e ao
mundo que eles pretendiam explicar:52

international security problems inevitably arise over wealth and welfare because
the state is indispensable as an institutional mechanism for the creation of a
preexisting order within which economic development can be pursued (Gilpin,
1987 apud Kolodziej, 1992a, p. 427).

A capacidade de efetivamente empregar recursos materiais para impactar a


política internacional deixaria de ser um medidor válido para avaliar o nível de
segurança de um Estado, perdendo espaço para a boa governança e satisfação dos
grupos domésticos como elementos que aumentariam a segurança do Estado. A
segurança do indivíduo seria preservada caso suas necessidades e interesses
fossem atingidos. Por mais que o Estado tenha centralidade na política
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internacional, seu governo depende do apoio e do sustento dos grupos domésticos.


Desta forma, deve acontecer um trade-off entre estes atores para que a
legitimidade do Estado seja aceita e a segurança possa ser preservada. Afinal, se
um Estado pode ser o garantidor da segurança internacional, poderia também
causar insegurança doméstica (Kolodziej, 1992b, p. 24).

Os temas que justificariam o rótulo de “interesse nacional”, inclusive a


sobrevivência do Estado como coletividade política, seriam definidos a partir da
interação de diferentes grupos em diferentes questões e em diferentes momentos,
sem qualquer hierarquia no processo de estabelecimento destes interesses
(Keohane e Nye, 1977, p. 8-11). Haveria tanta segurança quanto fosse a
capacidade do Estado de oferecer bens políticos à população. Ademais,
diferentemente da abordagem realista, a política seria subordinada à economia, de
forma que um Estado economicamente forte conseguiria ser seguro porque
possuiria mais condições de garantir a liberdade e a ordem para seus cidadãos.

52
“Soviet power in the developing world was checked by the countervailing military and
economic power of the United States and its Western allies, by the rising opposition of Third
World states and peoples, by serious divisions within the socialist camp, and by the necessarily
limited economic and technological resources commanded by Moscow to project its power and
purpose in regions around the globe” (Kolodziej, 1992b, p. 20). O caso soviético ilustra bem essas
possibilidades, já que o poder central teve de ceder às pressões sociais que punham em xeque a sua
legitimidade e promover uma reforma fundamental do sistema de bem-estar (Kolodziej, 1992a,
p. 424-426).
Marcelo Mello Valença 72

Liberalists have typically had a strong interest in development for its payoffs to
citizens, not just for making the state and the society safer. This perspective has
also increasingly emphasized, over time, that rule by governments should be
limited, legitimate in the eyes of the citizens, and effective. When a government is
not restrained, harmful consequences ensue at home and, potentially, abroad,
causing trouble for other governments and even turning it into a threat (Morgan,
2007, p. 26).

A preocupação com a violência e o uso da força deixaria de ser o foco dos


estudos de Segurança porque a capacidade de promover análises a partir desses
elementos seria cada vez mais restrita. O campo da Segurança se pretendia
politicamente relevante e como o uso da força estaria em declínio, sendo
substituído por outras formas de interação (Keohane e Nye, 1977, p. 3-5; Wagner,
2007, p. 106), se ater a elementos ultrapassados era como atestar o óbito da área:

[s]ecurity should not be confused, much less reduced, to the balance of power,
however conceived. [Os estudos de Segurança são] associated with the pursuit of
order and welfare through what are perceived or assessed as legitimate means
(Kolodziej, 1992b, p. 26).
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Isso evidenciaria uma maior capacidade explicativa, especialmente diante de


fenômenos, como a interdependência complexa e as ondas de democratização
(Kolodziej, 1992b, p. 29). Como resultado, teríamos a alteração na valoração do
uso da força como estratégia de política. Por conta do desenvolvimento
doméstico, a sensibilidade dos Estados em relação a temas que perturbam a ordem
será maior, relegando o uso da força para aspectos secundários.

Apesar de ainda ser um instrumento possível, o emprego da força militar nas


relações internacionais traria custos demasiadamente altos à cooperação e à
relação em outras instâncias, como no comércio, finanças e outras áreas que
dependem da confiança e da estabilidade para o seu sucesso e apresentariam
maior sensibilidade a perturbações. Essa interdependência fica mais evidente entre
os Estados mais ricos, que abandonariam, gradualmente, o recurso à guerra para
se focarem em outras formas de relação. Para os Estados mais pobres, cuja
sensibilidade em relação a esses temas seria menor, o uso da força continuaria
provável. O leque de problemas enfrentados pela segurança se tornaria mais
amplo, porque perceberia que outros temas passariam a integrar o campo.

Deste modo, quanto mais desenvolvido um Estado, menos tendente ao uso


da força ele seria. Uma rede de interdependência se desenvolveria no plano
internacional, aumentando os custos àqueles que optarem pela guerra. Como a
A literatura de Segurança 73

utilidade da violência declina, Estados mais desenvolvidos se voltariam para


elementos que permitissem seu desenvolvimento econômico (Keohane e Nye,
1977; Keohane, 1984). O corolário econômico liberal conduziria os Estados a
uma relação mais harmoniosa, com o progressivo afastamento do uso da força
militar e o fortalecimento de instituições e princípios políticos e governamentais
(Doyle, 1986), tal como nas comunidades de segurança.

Neste contexto – e aproveitando-se do ideário proporcionado pelas


comunidades de segurança e pela própria noção de interdependência –, a idéia da
paz democrática é uma das que ganha força dentro do ideário liberal. A ameaça
que geraria a insegurança residiria na inexistência de bases legítimas de poder.53
Em poucas palavras, a tese diz que Estados democraticamente consolidados não
entrariam em guerra contra outros Estados igualmente democráticos. Isso criaria
uma rede de interação e paz que promoveria a resolução de disputas através de
mecanismos não-violentos – i.e., sem o auxílio ao uso da força armada (Russett,
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1993, p. 24-25).

A ameaça do uso da força entre democracias consolidadas e não-


democracias não é afastada, mas o arranjo entre democracias reduziria
grandemente a incerteza no plano internacional. Ao congregar projetos coletivos
visando o futuro de uma população e o afastamento do uso da força diante da
legitimidade do governo, a tese da paz democrática permite que o argumento de
Edward Kolodziej (1992a e 1992b) seja reafirmado: o elemento de perturbação da
ordem seria a existência de governos ilegítimos, que levariam a um cenário de
guerra civil e contestação do poder, além das incertezas dos demais Estados
quanto às estratégias adotadas por esse Estado. Com a expansão das democracias
pelo mundo, portanto, a promessa de um sistema internacional pacífico se
construía (Russett, 1993), resolvendo os problemas de segurança.

[P]ara os defensores [da paz democrática], a existência de instituições políticas


fortes e estáveis permitiria que os diferentes grupos políticos dentro do Estado
cooperassem, buscando atingir melhores resultados. Tal esforço seria reconhecido
por outros Estados democráticos, que estabeleceriam relações pacíficas uns com os
outros (Valença, 2006b, p. 574).

53
A literatura que trata do tema da Paz Democrática é bastante extensa. Contudo, para uma
discussão sobre o tema, autores que se tornam referência no tema são Doyle (1986), Russett
(1993), Layne (1994), Mansfield e Snyder (2005) e Paris (2006). Nizar Messari (1994) oferece
uma boa revisão da literatura do tema em sua dissertação de mestrado.
Marcelo Mello Valença 74

Essa mudança de paradigma sobre o uso da força nas relações internacionais


contribuía para a renovação das influências e inspirações para os formuladores de
decisão. Novos modelos e perspectivas de previsão quanto aos resultados e
comportamentos adversários seriam oferecidos, adequando-se aos desafios
enfrentados no cenário internacional. Ademais, oferecendo um escopo mais
amplo de atuação, a teoria liberal se mostraria mais útil e, portanto, de maior
relevância política. Mas criava problemas na relação entre teoria e prática da
Segurança, já que temas que se encaixariam em seu escopo são respondidos com a
ajuda de outros ramos do conhecimento. Assim, a Segurança deixa de ser útil
para o burocrata, que passa a dispor de instrumentos analíticos para responder aos
desafios enfrentados decorrentes destas outras áreas. Além disso, se a Segurança
impele os atores políticos a desenvolver estratégias para atingir seus interesses
através do uso da força, como considerá-la politicamente relevante se o uso da
força perde utilidade?
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A ampliação da Segurança afasta a utilização da força para fins políticos ao


incluir temas de desenvolvimento e economia. Remetendo o problema da
segurança para seus próprios pressupostos epistemológicos e ontológicos, os
liberais renegam a violência e o uso da força entre Estados como elemento
explicativo da insegurança e trazem o debate para termos onde ofereceriam
respostas mais relevantes e, portanto, mais úteis para o processo decisório. Com a
perda da utilidade da força,54 a violência organizada – a guerra – também perde
relevância política.

Diante do exposto, se o problema de segurança levantado pelos liberais diz


respeito a legitimidade política, por que pensar em guerras civis como objeto das
preocupações da Segurança (Kolodziej, 1992a, p. 422)? Se o uso da força perde
espaço, por que se focar em eventos semelhantes às preocupações realistas, mas
na esfera doméstica? Uma resposta precipitada acusaria os liberais de tentarem
preencher as lacunas deixadas pelos realistas diante da nova realidade no pós-

54
A própria noção de poder é alterada, assumindo aspectos como influência,
desenvolvimento e capacidade de promover bens e serviços públicos. A utilidade da força declina,
mas a necessidade de oferecer condições de desenvolvimento estável aumenta, afetando a
vulnerabilidade dos Estados vis-à-vis sua legitimidade doméstica. Enquanto a violência perde seu
papel explicativo, novos fatores passam a incorporar o campo da segurança que não poderiam ser
explicados da maneira tradicional. Sobre formas de manifestação e demonstração de poder, Nye
(2002) promove um excelente debate sobre a idéia de soft power e a importância que este elemento
assume na política internacional contemporânea.
A literatura de Segurança 75

Guerra Fria. Mas o ideário liberal nos leva em outra direção, especialmente se
considerarmos a ótica da interdependência e das comunidades de segurança.

As guerras civis são os sintomas de que há um problema de segurança


anterior. Elas evidenciam a ilegitimidade política e a insatisfação dos grupos
domésticos para com o Estado, caracterizando a instabilidade política. O Estado
deixa de responder às demandas domésticos, que se rebelariam e usariam da força
para atingir seus objetivos. O foco nas guerras civis deve ser entendido como o
aspecto mais visível do problema de segurança liberal – a falta de liberdade e a
ilegitimidade política –, e não a partir violência que delas decorre. Uma vez que
as liberdades individuais e/ou coletivas tenham sido violadas, seria legítimo e até
mesmo aceitável aos grupos domésticos se valerem da força para fazer com que
seus direitos sejam restaurados.

Os liberais não entendem a Segurança como uma teoria que auxilie o


burocrata a desenvolver estratégias a partir da análise da violência e, assim, atingir
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os seus interesses e objetivos. A ampliação da Segurança incluiria na disciplina


não um leque de temas onde a violência é usada estrategicamente para atingir fins
políticos, mas as condições que evidenciam a instabilidade política. A violência
seria um indício de que as condições para a realização da teoria não estão
presentes, caracterizando a ilegitimidade da autoridade política ao não oferecer
bens políticos e condições necessárias para a sobrevivência dos seus cidadãos. O
recurso à força aparece como conseqüência do problema da legitimidade.

Pela busca de maior poder explicativo, a idéia de violência como uso


deliberado da força se perde, deixando a Segurança de ser ligada à promoção
deliberada de danos para atingir objetivos e se conectando à instabilidade política,
replicando o pleito econômico agora na esfera da Segurança. Como o recurso à
força é caracterizado como prejudicial aos interesses do ator político, a Segurança
se descola de tal idéia, buscando compreender outras formas de ameaça e das
respostas que podem ser dadas a elas. No cenário ideal, a ameaça da guerra é
completamente afastada pelos liberais, mostrando que a preocupação com a
violência como estratégia política não se adéqua ao núcleo duro da teoria.

Com essa categorização mais ampla, os liberais tentam replicar um modelo


explicativo compatível com outras esferas analíticas em um campo que não é
propriamente o seu: o fim da Guerra Fria quebrou a exclusividade do uso da força
Marcelo Mello Valença 76

do plano estatal e permitiu que segurança fosse discutida em outras esferas. Os


liberais, entretanto, importaram para a Segurança a sua agenda de Relações
Internacionais e, com isso, afastaram a violência do campo – a possibilidade da
violência era incompatível com os pressupostos teóricos liberais. Isso fez com
que a Segurança não oferecesse condições para auxiliar o burocrata a proceder
com suas escolhas e estratégias.

A ampliação da área pelos liberais proporcionou que a Segurança incluísse


novos temas correlacionados à governança e à economia e que recebiam o rótulo
de segurança por se associarem às condições de realização da estabilidade.
Contudo, faltava falar em Segurança, i.e., faltava encaixar esses temas na
teorização da Segurança: Segurança – com “s” maiúsculo – se tornou um não
tema (George, 1993). Se a contribuição liberal conduz para a não-
problematização da área ao trazer sua própria agenda, temas e soluções para o
campo, o problema maior surge ao proceder, neste movimento, com o
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esvaziamento do trabalho analítico sobre o objeto da Segurança e os conceitos


centrais que o norteiam.55

3.3.
O Aprofundamento da Segurança

O aprofundamento da Segurança busca a compreensão da lógica na qual a


segurança opera. Os seus defensores acusam que a posição realista tradicional
criou um modelo atemporal que limita o pensamento criativo sobre segurança:
assim como a política, a Segurança deve ser vista como a partir de um contexto
social. Do mesmo modo, compreendendo a Segurança a partir de uma análise
histórico-interpretativa, os aprofundadores discutem como objeto de referência da
disciplina não apenas o Estado, pois isso limitaria a lógica da segurança.

55
Este problema de relacionar integralmente Segurança às Relações Internacionais é
referido por Ole Wæver (2004, p. 3) como sendo uma característica contemporânea dos estudos de
Segurança. Apesar da conexão necessária entre aquelas duas áreas, elas não se sobrepõem; assim,
falta ao teórico o impulso de afastar os dois campos, de maneira a garantir a autonomia e
importância dos mesmo.
A literatura de Segurança 77

É isso que aproxima os quatro corpos teóricos discutidos nesta seção.


Todos defendem o argumento de que o conhecimento é socialmente constituído e
que os atores ameaças e referenciais devem ser entendidos como contextualmente
analisados, não figuras históricas onipresentes (Krause e Williams, 1997; Krause,
1998; Smith, 2005; Mutimer, 2007). Essas teorias oferecem uma voz alternativa
para se pensar Segurança não apenas em termos materiais, da política de poder
realista, mas a partir de uma análise histórico-interpretativa. Assim, criar-se-ia o
espaço para o pensamento político criativo.

Acusamos que as teorias que buscam o aprofundamento da Segurança,


apesar de entenderem a disciplina a partir de uma dimensão contingente, acabam
por se desvincular dos aspectos práticos que marcam a disciplina. Isto acontece
porque essas teorias colocam em primeiro plano as inadequações que suas
teorizações enxergam na ordem política e, a partir delas, decorre a condição de
estar seguro ou não. A Segurança deixaria de ser uma estratégia de política para
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se tornar uma condição de sua realização.

3.3.1.
Os Estudos Críticos de Segurança

A partir do aprofundamento da Segurança surge a necessidade de


compreender as condições que levam os atores políticos a pensar em segurança.
A crítica liberal à Segurança traz uma nova agenda para a área, mas não questiona
as condições nas quais o pensamento sobre segurança deve mudar para se adequar
àqueles pressupostos. O Estado, apesar de ainda ser o ator fundamental das
Relações Internacionais, passa a ser lido à luz do tratamento dispensado aos
indivíduos, especialmente aos seus cidadãos. Mas a lógica estadocêntrica ainda
predomina, bem como as suas limitações políticas.

De forma a romper com esse determinismo, surgem os Estudos Críticos de


Segurança, que recebem tal rótulo por serem, grosso modo, uma crítica à visão
realista. Os Estudos Críticos de Segurança devem ser entendidos a partir da
definição de crítica com o “c” minúsculo, ou seja, a partir da distinção entre
teorias de resolução de problema e teorias que procuram entender os processos
políticos e as mudanças nestes processos (Cox, 1986). Em outras palavras, os
Marcelo Mello Valença 78

Estudos Críticos de Segurança se propõem a promover uma análise social


histórica que fuja de categorizações deterministas e aponte novos rumos ao
debate, proporcionando um melhor entendimento do campo.

Esta corrente se vale de contribuições de diferentes origens, como o


Construtivismo, Feminismo, Pós-Colonialismo e Pós-Estruturalismo, entre outras
teorias bastante consolidadas nas Relações Internacionais, mas que não chegam a
formar um arcabouço coerente na Segurança. Isso caracterizaria um alto nível de
fragmentação neste pensamento crítico (Mutimer, 2007, p. 54): “the majority of
these ‘Non-CT ct’ writers are found somewhere on the IR continuum from
constructivism to post-structuralism, e.g., much work on the social construction of
threats and self-other relations” (Wæver, 2004, p. 7).56 Contudo, ressaltamos, o
diálogo dentro da Segurança com as teorias dominantes permite que consideremos
tais corpos como mais do que a mera soma das teorias que agregam. O conjunto
que forma essa corrente proporciona contribuições relevantes e de fato voltadas
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para o desenvolvimento da Segurança.

Os Estudos Críticos de Segurança realizam fundamentalmente três


movimentos para entender a segurança além das bases tradicionais. Inicialmente,
há o (i) aprofundamento do conceito de segurança, considerando-o como
contingente aos diferentes meios e referentes que ele assume. Depois, aponta
(ii) a ampliação do seu entendimento, mostrando que a força militar não é a única,
nem a mais importante, forma de promover segurança. Finalmente, (iii)
direcionam o foco da teoria e de suas práticas em propostas visando a
emancipação (Williams, 2005, p. 138).57

56
Ao mesmo tempo em que podemos identificar aspectos que as fazem convergir em suas
críticas à teoria tradicionalista, é possível categorizá-las utilizando as mais diversas e diferentes
nomenclaturas – pós-modernos, pós-estruturalistas, realistas críticos, construtivistas, entre outros.
Dessa forma, a tentativa de se arranjar as teorias críticas se mostra por demais complexa e ousada,
para não usar o termo “arriscada”. Complexo porque as similaridades que as conectam podem não
representar, necessariamente, a convergência intelectual, mas pontos que se tangenciam dentro de
dimensões mais amplas. Ousado porque categorizar tais correntes em grupos pode fazer com que
tais rótulos conduzissem ao questionamento das bases para tal divisão como fruto de um arranjo
uniformizador e generalizante que silenciaria as vozes dessas correntes. Arriscado, portanto,
porque o trabalho de categorizar as teorias críticas em um mesmo arranjo pode ser compreendido
como uma tentativa de simplificar o pensamento crítico. Acreditamos, como já expresso
anteriormente, que a divisão e categorização realizadas nesse trabalho em relação às correntes de
Segurança têm fim meramente didático e de organizar nosso argumento central e buscamos evitar
com isso a replicação de idéias marginalizantes.
57
Este terceiro movimento será apresentado com maior profundidade na seção seguinte, ao
tratarmos da Escola Galesa, que tem como uma de suas características principais a busca pela
A literatura de Segurança 79

No que diz respeito ao aprofundamento do conceito, a maior crítica trazida


pelos Estudos Críticos de Segurança se dirige ao fato da visão tradicionalista estar
longe de proporcionar um panorama neutro da área. Uma hierarquia
epistemológica criada pelos pressupostos imutáveis do Realismo político
perpetuaria uma leitura particular do significado e da evolução objetivista e
ahistórica do campo e que, a partir daí, seriam concebidos como argumentos de
autoridade disciplinar (Krause e Williams, 1997, p. 36-39). Entretanto, há uma
série de argumentos basilares que são apresentados como fatos não-
problematizados e que empobreceriam sua análise. O mais importante deles, mas
não o único, diz respeito à centralidade do Estado como sujeito da segurança,
silenciando questões que não se encaixariam na esfera militar, consolidando a
imagem de Segurança como uma ciência.

Esta subseção onde tratamos os Estudos Críticos de Segurança é dividida


em duas partes. Na primeira, tratamos do que nos referimos como Estudos
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Críticos. Na segunda, abordamos a chamada “Escola Galesa”. Essa separação,


contudo, trata-se de uma opção didática e argumentativa apenas.

Os Estudos Críticos nascem da contribuição da conferência sediada na


Universidade de York, no Canadá, em 1994 e que originou o livro editado por
Michael Williams e Keith Krause (1997), envolvendo diferentes perspectivas
críticas, mas que se uniam contra a hegemonia tradicionalista (Booth, 2007,
p. xvi). Seu principal expoente é Keith Krause, que desenvolveu uma agenda de
pesquisa crítica para o campo e que se tornou referência para esta corrente. Eles
são compostos por contribuições vindas de diferentes áreas críticas ao Realismo,
como o pós-modernismo, o construtivismo, abordagens sociológicas, feministas e
até mesmo realistas terceiro-mundistas. Cada uma dessas contribuições
proporciona o questionamento das bases a partir das quais o conhecimento é
criado, refletindo sobre segurança a partir de diferentes loci de enunciação.

A Escola Galesa, identificada principalmente a partir do trabalho de Ken


Booth, parte do arcabouço desenvolvido pela Escola de Frankfurt para oferecer
uma reflexão não apenas crítica ao tradicionalismo, mas questionando o que é o

emancipação humana. No momento, a idéia de emancipação como “o oferecimento de condições


que auxiliem o indivíduo a se libertar das limitações que os impede de atingir seu pleno potencial“
(Valença, 2009, p. 324) servirá instrumentalmente aos nossos propósitos.
Marcelo Mello Valença 80

real, o que é conhecimento e o que pode ser feito para conectar essas duas
dimensões. Enquanto os Estudos Críticos proporcionam um espaço para uma
miríade de contribuições teóricas, a Escola Galesa se concentra na contribuição da
Escola de Frankfurt para desenvolver sua teoria. Por conta disso, optamos por
trabalhá-las em separado.

3.3.1.1.
Os Estudos Críticos

Ao analisar temas que vão além da questão militar, os Estudos Críticos


buscam não tornar qualquer coisa um problema de segurança, mas associar
qualquer problema de segurança a um problema de política. Por ser um elemento
historicamente constituído, a segurança não pode ser desvinculada dos problemas
fundamentais da política internacional contemporânea (Walker, 1997, p. 63)
repercutindo, em última instância, na concepção de violência assumida. As
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respostas realistas se dirigiam a um problema político conveniente e pertinente


àquele período, mas que deveria ser revisado conforme a mudança na dimensão
política. O Estado como ator central e o uso da força militar como objeto da
Segurança são aspectos historicamente situados cuja utilidade deve ser
questionada quando transpostos para outros espaços e momentos. A pergunta que
se coloca é: quem ou o que deve ser alvo da segurança (Krause e Williams, 1997)
e, a partir disso, contra o que estar seguro?

Visando a superação da agenda determinista realista, Keith Krause (Krause,


1998, p. 317-318) desenvolve um programa de pesquisas baseado em seis
pressupostos que caracterizariam os Estudos Críticos e buscariam uma análise
histórico-interpretativa da Segurança. Essa análise contribui para o
estabelecimento do diálogo teórico e prático ao resgatar as peculiaridades da
segurança como reflexo das dinâmicas sociais. O programa se baseia nas
premissas de que (i) os atores são produtos de processos históricos complexos,
socialmente construídos, (ii) constituídos e reconstituídos por práticas políticas
que criam identidades e interesses contingentes a partir de (iii) um contexto
político internacional que está em constante mudança. Isso permitiria
compreender que (iv) nosso conhecimento sobre o mundo, seus elementos e
estruturas não são objetivos e que (v) a metodologia apropriada para as Ciências
A literatura de Segurança 81

Sociais é o método interpretativo, não o científico das Ciências Naturais, dado que
(vi) o propósito da teoria não é explicar e prever, mas entender contextualmente o
conhecimento prático.58

Baseados nisso, os Estudos Críticos questionam não apenas a centralidade


do Estado nos estudos de Segurança, mas também a forma como este resolveria o
problema da ordem frente ao surgimento de novas entidades políticas e à
expansão da interdependência (Krause e Williams, 1997, p. 43-47). A resposta
realista, invariavelmente, retornaria ao Estado, corroborando a sua importância
nesse “argumento circular” (Walker, 1997, p. 67-68). Essa limitação ao definir
segurança em termos militares deveria ser superada para que o indivíduo, isolado
ou organizado socialmente, fosse colocado como sujeito e objeto da segurança59:
“security must make sense at the basic level of the individual human being for it
to make sense at the international level” (McSweeney, 1999, p. 16). Ao criticar as
premissas veladas do Realismo, o programa de pesquisa dos Estudos Críticos
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acusa que fatos essenciais da política mundial decorrem justamente do modelo


eurocêntrico de Estado e da condição de anarquia que os cerca no plano
internacional (Krause e Williams, 1996; Krause e Williams, 1997; Fierke, 2007).
A segurança deveria se pautar nesse viés crítico.

Para o seu aprofundamento, o primeiro passo é entender a lógica da


segurança. Keith Krause e Michael Williams (1996 e 1997) questionam o que
seria segurança, como estudá-la e o que se assegura quando se fala em segurança.
As prerrogativas levantadas pelos estudos tradicionais seriam por demais
limitadoras e não enxergariam as dinâmicas que motivariam as práticas políticas
contemporâneas. Em sua tentativa de aprofundar o conceito, Krause e Williams
analisam o porquê da concepção focada no Estado exercer tanta força na área,
como um grande argumento de autoridade. Discutem também de que maneiras se

58
David Mutimer (2007, p. 67) coloca essa agenda como parte dos esforços construtivistas
de contribuir para os estudos de Segurança. Contudo, tais aspectos fazem parte de um leque
maior, de teorias que questionam as fundações e as origens do conhecimento e das verdades nas
Ciências Sociais e que negam a agenda cientificista dos estudos tradicionalistas (Waltz, 1979;
Mearsheimer, 1990). Desta forma, colocamos a agenda de pesquisa sugerida por Keith Krause
(1998) como eixo normativo a ser buscado por todas as teorias dos Estudos Críticos.
59
O trocadilho feito por R. B. J. Walker (1997) em seu artigo “The Subject of Security” diz
muito sobre isso. Ao tratar do subject of security, Walker se refere, ao mesmo tempo, ao escopo
do campo e ao agente que determina e delimita as práticas de segurança.
Marcelo Mello Valença 82

poderia repensar a segurança com base em suas próprias fundações e sob a luz de
uma perspectiva política historicamente contingente.

A Segurança realista cria um argumento de autoridade epistemológica: a


concepção (neo-)realista está tão enraizada na consciência ocidental que muitos de
seus adeptos se recusam a aceitá-la como um modo de pensamento (Krause, 1998,
p. 300-303).60 Isso ocasionaria a sustentação de motivações meta-históricas que
transformariam fatos não-problematizados em argumentos fundacionais – dentre
eles a centralidade do Estado e dos seus elementos institucionais para a Segurança
e para as Relações Internacionais. Esses argumentos fundacionais possibilitariam
a exclusão dos temas que não se adéquam à agenda diplomática militar,
relegando-os uma importância menor.

A presunção básica é que o indivíduo estaria seguro na medida em que o


Estado também o estivesse: a segurança deriva da condição de cidadão, donde se
explica a centralidade da força e da violência. Mas a questão do Estado como
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agressor de seu próprio povo ou de parcelas dele ou, ainda, da sua incapacidade de
prover segurança, não é problematizada (Mutimer, 2007, p. 56). Focar em
demasiado no Estado levaria a uma constante diminuição da segurança do
indivíduo – a segurança individual seria confundida com a segurança do cidadão.

Krause e Williams (1997, p. 38) afirmam que os estudos tradicionalistas de


Segurança trabalhavam, na verdade, com Estudos Estratégicos,61 i.e., a subárea
responsável por estudar e analisar as possibilidades de uso da força e a
mobilização do aparato militar para que a violência organizada seja utilizada na
política. Estudos de Segurança, por outro lado, seriam mais amplos e
compreensivos, entendendo não só o uso da força como também as condições que
levariam os atores/objetos de referência a um estado de insegurança.

Segurança, afirmam Krause e Williams, diz respeito à sobrevivência, uma


condição historicamente variável, dado que as fontes de medo e de ameaça variam
grandemente no tempo e no espaço. Neste sentido, eles enxergam a necessidade
da mudança no foco de um individualismo abstrato liberal e da soberania

60
Cabe lembrar os autores mencionados no debate realista que insistem em manter sua
posição, mesmo diante das mudanças percebidas na política internacional. Crítica especial se
coloca aqui a Mearsheimer (1994). Ver nota 47.
61
Ponto semelhante é trazido por Ole Wæver (Wæver, 1995, p. 56).
A literatura de Segurança 83

contratual realista para dar maior ênfase à cultura, à civilização e à identidade. O


papel das idéias, normas e valores na constituição daquilo que está sendo
assegurado deve ser percebido para que novas formas de enxergar a política sejam
desveladas (Krause e Williams, 1997, p. 49-50). Em termos epistemológicos, isso
implica o abandono de uma abordagem instrumentalista e racionalista
característica das teorias tradicionalistas em direção a modos interpretativos de
análise, permitindo não só explicar a segurança, mas entendê-la. Há uma
demanda pela compreensão da segurança, o que significa ser seguro e do que se
está seguro.

Tratando como referencial da Segurança não o Estado soberano, mas o


indivíduo, é possível entender a segurança para os Estudos Críticos como uma
condição da qual os indivíduos gozam; logo deveria partir dos indivíduos a
primazia tanto na definição das ameaças quanto na definição de quem ou o que
será assegurado. Em outras palavras, segurança não é uma condição ahistórica,
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espacial e materialmente definida.

A partir dessa reorientação, três argumentos emergem, sobrepondo-se e


colocando o foco no indivíduo (i) como pessoa portadora de direito, (ii) como
cidadão ou membro de uma sociedade ou (iii) como membro de uma comunidade
global transcendental – a humanidade (Krause e Williams, 1997, p. 43-47). Esses
argumentos problematizam a condição decorrente da soberania estatal para a
possibilidade de se entender identidades de maneira não-excludentes,
distinguindo-se do padrão estabelecido pela identidade decorrente do Estado. Não
se discute aqui a influência da anarquia levando à soberanias excludentes, mas a
possibilidade de soberanias concorrentes focadas na identidade e em suas
conexões com a comunidade e a cultura.

Para tanto, teorizar adequadamente as fundações da identidade dos grupos


se torna fundamental, evitando arbitrariedades e a reprodução de dicotomias
excludentes existentes no sistema internacional e na concepção tradicionalista de
segurança.62 Os limites colocados pelos tradicionalistas para tratar do seu objeto
de estudo não apenas geram argumentos de autoridade, mas também restringem a

62
Nesse aspecto, as fronteiras seriam encaradas como zonas políticas de troca onde a
diferença é preservada para garantir a ordem internacional, tornando-as um espaço ético de
delimitação e proteção da diferença, não apenas de exclusão. Sobre a questão, William (2006) e
Valença (2009).
Marcelo Mello Valença 84

imaginação política contemporânea, limitando nossa capacidade de pensar


criativamente sobre segurança.

Historicamente fundadas, essas práticas se tornam capazes de proceder com


a transformação consciente através da reflexão crítica: ao invés de produzirem
uma realidade fixa e objetiva que o analista pode apenas espelhar, levariam a um
reino de práticas e estruturas subjetivas auto-reflexivas que caracterizariam a
violência como uma conseqüência da política, replicando-se indefinidamente, e
não como um elemento contingente à ela. Enxergar o indivíduo como elemento a
ser assegurado romperia com as práticas políticas tradicionais ao mesmo tempo
que possibilitaria a abertura do Estado para exames, entendendo como ele poderia
ser uma fonte de ameaças e uma solução ilusória, meramente satisfatória, de
segurança e estabilidade às comunidades políticas (Walker, 1997). Neste
contexto, surge nos Estudos Críticos a figura do Estado como limitador das
potencialidades humanas,63 ao mesmo tempo em que o Estado é visto como
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convenientemente adequado para a prestação da segurança, como colocado por R.


B. J. Walker.

A contribuição de Walker aos Estudos Críticos de Segurança segue linha


semelhante àquela apresentada por ele em outras obras, quando critica as
condições colocadas pelas teorias tradicionais que tornariam possível as Relações
Internacionais (Walker e Ashley, 1990; Walker, 1993; Walker, 2006). Uma
dessas condições é a presença e a centralidade do Estado, possibilitando a criação
de dicotomias que levariam a e justificariam a exclusão, como civilizado vs.
bárbaro e identidade vs. diferença. Essas dicotomias excludentes garantiriam a
segurança a partir da condição de cidadão, o que afastaria ameaças promovidas
por atores fora do Estado, tal como na lógica da anarquia hobbesiana. Em suma, e
em grande parte devido a esses padrões de exclusão e de diferença, o Estado surge
como a resposta para todos os desafios advindos da modernidade (Walker, 1997,
p. 77), inclusive o do controle e da utilização da violência.

Walker, no entanto, aponta que os argumentos do Estado soberano são uma


mera adequação às perguntas sobre o caráter e o lócus da vida política,
constituindo uma articulação política historicamente localizada e que geraria

63
Este debate é retomado pela Escola Galesa e seu ideal emancipatório, como discutido na
subseção seguinte.
A literatura de Segurança 85

condições específicas de relações de universalidade vs. particularidade (Walker,


1993; Walker, 1997). Através da operacionalização da política em termos
convenientes para a sua perpetuação, outras vozes, dissidentes, seriam ignoradas.
A segurança residiria na política, a violência na política e a política no Estado. O
binômio “segurança-Estado” seria inseparável e fundamental para a estabilidade
internacional e para a construção tradicionalista de violência e segurança como
elementos excludentes e, ao mesmo tempo necessários, especialmente em função
dos processos de globalização e de um mundo onde as fronteiras são
constantemente rompidas e questionadas.

Até mesmo em condições como essa, quando uma maior tolerância seria
alegada em função da busca pela interação com a diferença, as dicotomias da
modernidade se reproduziriam (Walker, 2006), reproduzindo no esvaziamento da
violência através de novas formas de exclusão. Há a defesa explícita de um
pensamento que englobe não apenas os cidadãos de um determinado Estado, mas
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a humanidade como um todo (Walker, 1997) e, de maneira mais específica, os


povos, valores e culturas que a formam, de forma semelhante ao que é defendido
por Krause e Williams (1997).

A incoerência da segurança estaria intimamente relacionada à incoerência


trazida pelas teorias modernas de que a noção de comunidade está em processo de
mudança, com a expansão das fronteiras e o reconhecimento de uma identidade
liberal comum. Recorrer a respostas familiares, seguras e que retornam ao Estado
é, de certa forma, inevitável, dadas as incertezas políticas e intelectuais nas quais
estamos presos.64 É a limitação do pensamento criativo sobre segurança. As
insatisfações sobre a cumplicidade das versões modernas de segurança com
práticas de violência intolerável no mundo moderno devem ser atreladas a uma
tentativa de buscar respostas mais convincentes às questões sobre o caráter e local
da vida política – que têm no Estado e em suas teorias modernas o seu elemento
mais forte.

Para os realistas, o termo “segurança” é, pois, de uma ambigüidade ímpar


que, quando associado ao Estado, representaria o tudo e o nada e, portanto,

64
Aqui se configura o fenômeno do estatismo, i.e., a presença presumida do Estado como
forma de porto seguro e refúgio para os dilemas da política contemporânea. Sobre o estatismo, ver
Bartelson (2001).
Marcelo Mello Valença 86

assumiria uma capacidade de mobilização que pressuporia urgência na sua


resposta. Segundo os Estudos Críticos, é essa capacidade de mobilização que
permite aos realistas colocar a questão do uso da força militar como uma
prioridade, uma verdade epistêmica que centraliza e faz convergir as
preocupações com segurança naquela dimensão. Essa hierarquia epistêmica
permitiria que a relevância política e o conhecimento útil para a política se
associassem a uma prioridade de mobilização, caracterizando a relação realista
entre teoria e prática. O mesmo poderia se dizer do Liberalismo. Cada corrente
teórica tem pressupostos que devem ser alcançados e estruturam sua linha
argumentativa, criando verdades epistemológicas que são as bases do corpo
teórico e de sua visão de mundo.

Contudo, o debate sobre as condições politicamente relevantes para se


pensar segurança deveria refletir os contextos históricos e estruturais imediatos,
não idéias presas no passado e replicadas ad infinitum, como o faz a Segurança
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realista. A reformulação desse pensamento aconteceria de duas formas principais,


retomando o pensamento criativo ao se dirigir (i) ao número e à qualidade das
ameaças e (ii) ao objeto da segurança. Em outras palavras, o pensamento crítico
aprofundaria, alargaria e, então, reconheceria qual deveria ser o objeto da
Segurança.

Para tanto, deve-se reformular as condições para se pensar em segurança ao


questionar o que significa estar seguro e contra o que se está seguro. Isso se faz
possível através da contextualização do significado de segurança não só em
relação à ameaças geopolíticas, mas também diante dos processos sociais,
culturais, econômicos e ecológicos. A presença do Estado como força motora da
política internacional deve ser substituída pela idéia de interdependência, que
conecta os povos e indivíduos independentemente das fronteiras estabelecidas e
perpetuadas pelo Estado: como essas fronteiras não seriam capazes de garantir a
proteção à sobrevivência dos atores políticos, não se poderia mais falar em
segurança internacional, definida a partir da figura do Estado e garantida por suas
A literatura de Segurança 87

capacidades materiais. Destarte, pensar em segurança mundial seria mais


coerente.65

Os argumentos gêmeos, circulares, de que (i) Estados fortes são não apenas
necessários para assegurar direitos humanos básicos, mas também são a condição
primária na qual os direitos humanos podem ser pensáveis e, principalmente,
alcançáveis e (ii) Estados fortes têm a tendência de erodir direitos humanos
básicos, quaisquer que sejam esses, escondem distinções artificiais entre
segurança e desenvolvimento. Isso acontece em grande medida porque os Estados
e a sua ausência são colocados não apenas como a fonte de
segurança/insegurança, mas também como aquela forma de vida política que
permite imaginar as possibilidades decorrentes da segurança e insegurança,
reforçando e replicando o papel da Segurança tradicionalista que dificilmente
consegue ser rompida. O conceito galtunguiano de violência estrutural66
contribuiria para entender os constrangimentos impostos pelo Estado aos
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indivíduos e às comunidades políticas levando à uma noção de emancipação que


remete à Escola Galesa.

No tocante ao objeto da Segurança, os Estudos Críticos entendem que o


objeto se torna o seu próprio sujeito, referenciando as ameaças e violências que
desestabilizam a sua segurança. Sua compreensão enfoca precisamente os
argumentos do Estado moderno como o lócus da política. Os argumentos gêmeos
reforçam o aspecto estadocêntrico da política internacional, replicando a presença
do Estado até mesmo em sua ausência e garantindo a hierarquia epistêmica
realista.67 Logo, repensar o significado da segurança significa lidar com uma

65
Essa é a proposta de Ken Booth na Escola Galesa. Como a separação em Estudos
Críticos e Escola Galesa é meramente didática, não há como evitar a sobreposição de temas e/ou
argumentos. Sobre a questão da segurança mundial, ver a subseção seguinte. Ver também Booth
(2008).
66
Violência estrutural seria, em poucas palavras, as condições indiretas que impediriam o
desenvolvimento da plena potencialidade do indivíduo, criando uma assimetria entre sua
potencialidade e o que é atingido no plano real (Galtung, 1969, p. 168). Abordamos a questão da
violência estrutural com mais detalhes no capítulo cinco.
67
A “presença por omissão” do Estado, acusada por Walker (1997) nos debates em
Segurança é corroborada por outro autor de tendências pós-modernas, Jens Bartelson (2001). Em
seu livro, Bartelson afirma que o Estado tem papel central para as Relações Internacionais por
assumir dimensão constitutiva e fundacional, quando o estatismo passa a ser um traço marcante do
discurso político moderno, gostemos disso ou não (Bartelson, 2001, p. 182). Mesmo abordagens
que tentam criticar o Estado ou o estatismo – incluindo, mas não se limitando ao pluralismo,
marxismo e pós-modernismo – acabam por reproduzir o Estado e seu discurso. O Estado como
instituição tomou por assalto tanto as Relações Internacionais quanto a Ciência Política,
Marcelo Mello Valença 88

miríade de possibilidades de reformulações do caráter e do lugar do político,


rompendo a universalidade que acreditamos existir na Segurança para pensar em
relações especificas de particularidades.

A análise histórico-interpretativa sugerida por Krause e Williams (1997)


serviria para compreender o que é política e o espaço onde esta aconteceria. Com
as respostas obtidas, entenderíamos o que significa estar seguro, bem como
perceberíamos outras referências, ameaças e objetos para pensar segurança de
maneira mais inclusiva.

Contudo, a limitação imposta pelo Estado ao indivíduo não é a sua única


inadequação. Tampouco a figura do indivíduo como referente da Segurança deve
ser encarada como única forma de pensar em segurança. Esse pensamento
oprimiria vozes periféricas ao colocar um referencial eurocêntrico no centro da
análise68, ignorando outras vozes.

Teóricos que se alinham à idéia de um Realismo voltado para as


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particularidades e propriedades do Terceiro Mundo, como Mohamed Ayoob


(1998), podem ser elencados nos Estudos Críticos por sua busca pela análise
interpretativa da política. Entretanto, estes enxergam os problemas impostos pelo
Estado e pela Segurança realista de maneira diferente da perspectiva pós-moderna,
até mesmo em função dos seus postulados epistemológicos, similares aos dos
realistas. A proposta de estudar e dar maior ênfase à questão da emancipação é
vista, particularmente, com ressalvas (Ayoob, 1995; Ayoob, 1997) dada a sua
natureza notadamente eurocêntrica e, portanto, restrita a um contexto sociopolítico
por demais específico.

encaixotando aquela forma de organização de tal maneira que se torna inevitável pensar nela, para
o bem ou para o mal.
68
O foco eurocêntrico se manteria mesmo se considerarmos a crítica de Walt (1991) da
centralidade e importância dos EUA na produção de conhecimento na área da Segurança. Ainda
assim, poderíamos entender a influência da cultura européia nesse esforço intelectual. Como
colocam Barkawi e Laffey (2006, p. 331), “[e]urocentrism is a complex idea but at its core is the
assumption of European centrality in the human past and present. On this view, Europe is
conceived as separate and distinct from the rest of the world, as self-contained and self-generating.
Analysis of the past, present and future of world politics is carried out in terms – conceptual and
empirical, political and normative – that take for granted this centrality and separation.
Eurocentrism is about both a real and an imagined Europe. Over time (…) the location of Europe
shifts, expands and contracts, eventually crossing the Atlantic and the Pacific and becoming
synonymous with the ‘West’. Today, the ‘West’ is centered on the Anglophone US–a former
European settler colony – and incorporates Western Europe, North America, Japan and the British
settler societies of Oceania.”
A literatura de Segurança 89

The politics of critical and human security approaches revolve around the concept
of emancipation, an idea derived from the European Enlightenments. In this
literature, the agent of emancipation is almost invariably the West, whether in the
form of Western-dominated international institutions, a Western-led global civil
society, or in the ‘ethical foreign policies’ of leading Western powers. Critics of
Western states find themselves in the position of relying on Western armed forces
for humanitarian interventions, especially when actual fighting is required, (…).
Even when the concrete agents of emancipation are not themselves Westerners,
they are conceived as the bearers of Western ideas, whether concerning economy,
politics or culture (Barkawi e Laffey, 2006, p. 335)

Amitav Acharya e Mohammed Ayoob aparecem como colaboradores do


livro de Krause e Williams (1997), reforçando o programa de pesquisa dos
Estudos Críticos (Krause, 1998). Eles propõem a análise politicamente
contextualizada dos atores e ameaças, mas localizada em uma dimensão
marginalizada pelos estudos de Segurança. Ainda que seu foco de trabalho seja
estadocêntrico, ambos criticam a figura do Estado moderno não por conta do seu
impacto na liberdade individual ou nas possibilidades de emancipação, mas pela
sua inadequação junto ao cenário político enfrentado pelos países do Terceiro
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Mundo69. A crítica trazida pelo Realismo Terceiro Mundista problematiza a


Segurança ao partir de outros loci de enunciação, denunciando a proposta
universalizante que as vertentes críticas carregariam.

Ayoob (1995) afirma que a Segurança tradicionalista é vista a partir de uma


perspectiva externa, refletindo uma trajetória particular de desenvolvimento
histórico que culminou na legitimação tanto do sistema quanto dos participantes.
Quando trazida para analisar o Terceiro Mundo, tal perspectiva gerou problemas
conceituais e intelectuais dado que as principais preocupações das ameaças à
segurança – (i) orientação externa, (ii) ligação com a segurança sistêmica e
(iii) relação com a segurança das superpotências durante a Guerra Fria (Walt,
1992) – têm pouca capacidade explicativa diante das questões que surgem nas
agendas da periferia.

69
A expressão “Terceiro Mundo” acaba se tornando uma forma de apontar Estados que se
localizam na periferia, não apenas em termos econômicos, como durante a Guerra Fria, mas
também – e especialmente após o seu fim – àqueles que demandam novas formas de segurança.
Este conceito ganha importância na área de segurança como maneira de proporcionar um
entendimento da instabilidade desta região e da (in)eficácia do instrumental político-teórico para
garantia da segurança (Acharya, 1997). Desta forma, Terceiro Mundo deixa de ser uma categoria
preenchida meramente pela exclusão, como costumava ser durante a Guerra Fria, para passar a ser
encarada como um conceito definidor de um tipo de Estado em específico.
Marcelo Mello Valença 90

O foco da Segurança no Terceiro Mundo não é no Estado per se, mas é em


nome dele que a segurança é buscada. São as elites que se tornam referência da
Segurança, de forma que o desenvolvimento de condições político-sociais que
atenuem a sua vulnerabilidade constituam as práticas que garantam a estabilidade
e a segurança.

A segurança no Terceiro Mundo se volta, portanto, a ameaças internas,


sejam de natureza militar ou não, que possam afetar as elites na preservação de
seu poder político. Outras atividades sociais afetariam a segurança, mas seriam
filtradas pela política e somente consideradas como tal quando ocasionassem
conseqüências políticas imediatas, como a ameaça às fronteiras, às instituições
políticas e aos regimes de governança e, portanto, ao processo de construção do
Estado. Este foi feito sobre bases eurocêntricas tratadas como universais e que
desconsiderava as características e peculiaridades das comunidades políticas
daquela região, o que comprometeu a organização institucional destes novos
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países, fazendo com que diversas ameaças percebidas no Terceiro Mundo sejam
originadas nos próprios Estados.

O processo de construção do Estado se torna o objetivo a ser buscado para


garantir a sua sobrevivência internacional, já que o foco da Segurança se dirige às
condições que viabilizariam essa construção. A construção do Estado e a
violência andam lado a lado. O Terceiro Mundo precisa, para sua própria
segurança, de uma ampliação do conceito de segurança internacional, envolvendo,
além das ameaças “tradicionais”, outros focos de instabilidade direcionadas ao
Estado, como causas político-sociais, questões econômicas e de meio ambiente,
que podem inflamar perigos distintos aos tradicionalmente observados.

A segurança no Terceiro Mundo reflete, pois, as preocupações que afetariam


as elites políticas desses Estados, i.e., (i) ameaças internas dirigidas aos Estados,
mas visando as elites em razão da (ii) conotação política da segurança e (iii) da
ênfase nos processos e dinâmicas de construção do Estado (Ayoob, 1995;
Acharya, 1997; Ayoob, 1997). Este último tema se torna especialmente
importante porque justifica a busca pelas instituições que garantem a segurança de
suas elites – a guerra e a polícia como mecanismos de consolidação de domínio
territorial e demográfico, com a conseqüente manutenção da sobre a população, e
A literatura de Segurança 91

a taxação como forma de extrair recursos para as atividades de guerra e polícia e à


manutenção do aparato estatal.

A Segurança deveria ser colocada a partir de novas bases, levando à


utilização de instrumentos analíticos mais complexos e menos limitadores do que
aqueles propostos e utilizados pela teoria realista. Esta ampliação de conceito
acarretaria, também, uma melhor compreensão dos problemas que os Estados
periféricos passam, seja em função de sua organização interna, seja pela sua
incapacidade de reagir a determinados “problemas” que, para eles, são entendidos
como ameaças a sua existência, enquanto para outros – os países centrais – são
questões de trato menos complexo. A proposta de Acharya é de que o estudo de
segurança dos países periféricos deve constituir o centro da preocupação dos
países desenvolvidos, não meramente a reprodução de suas agendas.

O uso da força é um elemento fundamental – assim como o território


soberano e a economia – para os Estados do Terceiro Mundo, mas não como
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elemento integrante da análise da Segurança. O que constitui ameaça à segurança


das elites do Terceiro Mundo é o processo de construção inadequado e incompleto
do Estado, bem como a reivindicação por liberdade individual. A violência
constitui apenas uma dimensão de um fenômeno maior. A perspectiva tradicional
de Segurança se mostra, pois, inadequada para o Terceiro Mundo porque
pressupõe uma construção do Estado já concluída e não reflete as ameaças que
pairam sobre esta região, desconectando-se da sua realidade política e mostrando-
se incapaz de perceber os mecanismos de violência desenvolvidos pelo Estado
para assegurar seus interesses.

Com isso, o aspecto central da segurança para os Estudos Críticos deixa de


ser o uso da violência como ferramenta política e passa a focar as condições que
afetam a sobrevivência do objeto referente. Em termos amplos, podemos até
encarar a sobrevivência como um aspecto que decorre da ausência de violência, de
modo que o objetivo e a preocupação última dos estudos de Segurança seria
refletir sobre mecanismos que garantissem a sobrevivência. Proteger-se da
violência – o objeto dos estudos estratégicos – incluir-se-ia nesse objetivo maior
da Segurança. Contudo, a discussão se perde porque qualquer ameaça à
sobrevivência se tornaria uma ameaça à segurança – independentemente de que
Marcelo Mello Valença 92

ameaça seria essa, contra quem e em qual magnitude esta ameaça acontecesse: a
característica volitiva do uso da força, da violência, é esvaziada.

A violência, assim, perde sua importância nos Estudos Críticos, que passa a
se preocupar em pensar criativamente sobre política como condição para atingir a
segurança. Esse pensamento criativo pode conter ou não a preocupação com a
violência e o uso da força, marginalizando, portanto, esses elementos. O uso
deliberado da força perde importância porque – conforme o momento estudado –
ela pode se tornar mais ou menos relevante para se pensar em sobrevivência. A
importância da utilização da força como estratégia política para atingir fins
políticos é diminuída nos Estudos Críticos, em função da sua visão de que ela
corresponderia a apenas uma das dimensões da Segurança – mais especificamente,
dos Estudos Estratégicos.

A Escola Galesa, inserida nos Estudos Críticos de Segurança, enxerga na


violência uma dimensão importante para a sua teoria, problematizando-a.
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Tratamos dela na seqüência.

3.3.1.2.
Escola Galesa

Os Estudos Críticos e os três movimentos que realizam – aprofundar e


alargar a segurança, trazendo-a para a prática política – proporcionam uma
releitura historicamente contextualizada da política internacional e, por
conseqüência, das ameaças que se põem à segurança. Contudo, ainda que
busquem o aprofundamento e o alargamento da Segurança, a pluralidade de
correntes que os compõem acaba por ampliar demais a sua contribuição crítica.
Com isso, perdem a sua capacidade crítica e as condições de entender a segurança
como voltada para indivíduos de verdade, em um mundo de verdade. A
marginalização da violência para a Segurança é um sinal de como a miríade de
correntes que se encaixariam nesse grupo afetaria a coerência intelectual do
campo em relação ao seu objeto. A Escola Galesa aparece como uma tentativa de
promover uma teoria realmente crítica de Segurança (Booth, 2005a, p. 14), não
apenas questionando o Realismo.
A literatura de Segurança 93

A Escola Galesa é marcada principalmente pelas contribuições de Ken


Booth e Richard Wyn Jones (Wæver, 2004, p. 5) e se inspira no legado da Escola
de Frankfurt70 e nos Estudos para a Paz (Smith, 2005, p. 41-42). Sua proposta é
romper com a replicação da ordem estabelecida pelas posições predominantes e
com a suposta neutralidade científica que essas teorias carregam (Booth, 2005a,
p. 5-8). A preocupação teórica aqui é notável e dela viria uma série de impactos
sobre a prática política.

Com isso, o questionamento do que seria política e de onde ela aconteceria


seguiria as bases da busca pela filosofia do conhecimento argüidas pela Escola de
Frankfurt, colocando em cheque as bases tradicionais e as verdades replicadas
para se voltar a uma análise historicamente contextualizada e politicamente
consciente. Destarte, o aprofundamento da segurança aconteceria ao se buscar
responder três perguntas fundamentais: o que é real, o que é conhecimento e o que
pode ser feito (Booth, 2005c, p. 268-269).71
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O aprofundamento da Segurança demanda a exploração das implicações que


a idéia de segurança carrega consigo. Os comportamentos por ela gerados são
derivados da natureza da política contemporânea, não de regras estáticas
estabelecidas por princípios imutáveis. Não há como tomar o conceito, o
referencial ou as ameaças existentes e rotuladas como temas de segurança como
dadas. Devemos compreendê-las tal como uma orientação voltada para a práxis,
explicitamente emancipatória, e que permite enxergarmos a natureza dos objetos
estudados no mundo social – e determinar daí seu referencial, que passaria a ser o
indivíduo e não mais o Estado (Wæver, 2004, p. 7). O conhecimento verdadeiro,
sem nos prendermos ao ideário das ciências naturais, proporciona uma
metodologia compreensiva das mudanças sociais.

Do aprofundamento da Segurança decorreria o seu alargamento, dado que


este é um aspecto secundário ao conhecimento apurado (Walker, 1997, p. 76;
Booth, 2005a). Não se deve ampliar em demasiado a Segurança sem antes

70
Segundo Wyn Jones (2005), a Escola de Frankfurt seria a mais séria e sofisticada
contribuição teórica para o campo das Ciências Sociais.
71
Essas perguntas refletem o questionamento da Escola de Frankfurt sobre as bases do
conhecimento dada a sua crítica “à pretensão moderna de racionalizar a existência social no
âmbito do Estado e de suas instituições” (Pisier, 2004, p. 511), o que demandaria uma análise
histórica das condições sociais para seu completo entendimento. Sobre a Escola de Frankfurt e a
sua relação com a produção do conhecimento, Calhoun (1996) e Pisier (2004).
Marcelo Mello Valença 94

promover a reflexão crítica. Tal cautela evitaria críticas fracas e pouco


embasadas, que apenas reforçariam o papel e a força das teorias tradicionais,
mantendo a sua posição dominante.

O arcabouço teórico trazido pela Escola Galesa permite entender a violência


como elemento que impediria a plena liberdade do indivíduo. A concepção de
violência para a Escola Galesa abandona a referência ao uso da força, que
caracterizou a Segurança realista, para entendê-la como a imposição de condições
que afastem a realidade humana do que ele conseguiria potencialmente alcançar.
Essa assimetria entre o potencial e o real representaria a violência, permitindo que
se pensasse de maneira contextualizada para cada sociedade, período histórico ou
dimensão política particulares, algo central para pensar em emancipação (Booth,
2008, p. 110).

Destarte, mais do que pensar apenas na forma material de violência, a


Escola Galesa sugere que os Estudos Críticos de Segurança devem se voltar para
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as condições impostas por estruturas de repressão e que seriam silenciadas pela


política: “(...) [Os Estudos Críticos de Segurança são] regarded as an attempt to
develop an emancipation-oriented understanding of the theory and practice of
security (Wyn Jones, 2005, p. 215). A preocupação com o pensamento político
criativo, evidenciado nos Estudos Críticos, aparece na Escola Galesa também.

Para Ken Booth (1991, p. 318), os estudos tradicionais de Segurança


reproduziriam uma ordem que não problematiza a relação entre o analista e o
objeto em nome de uma perspectiva positivista de ciência. Os clamores realistas
deveriam ser rejeitados em nome da abertura da política e do estabelecimento de
um senso de ética que permita desenvolver os mecanismos necessários para a
emancipação humana,72 contestando a naturalização histórica do Estado de que
este seria a única possibilidade para pensar segurança (Booth, 1997, p. 107).73
São esses problemas que apareceriam como o foco da Segurança: ao não perceber
os constrangimentos causados pela estrutura que incidem sobre a política

72
A emancipação constitui o elemento essencial para entender a segurança: não à toa,
Booth (1991, p. 319) coloca que emancipação e segurança como os dois lados de uma mesma
moeda, tendo igual importância.
73
Como mostramos anteriormente, a crítica ao Estado aparece com bastante freqüência nas
vertentes críticas de Segurança. Contudo, a maneira como tal crítica é colocada varia não só de
vertente para vertente, mas também de autor para autor – para tanto, basta ver o que Walker (1997)
e Ayoob (1995) propõem como solução para superar os problemas impostos pelo Estado moderno.
A literatura de Segurança 95

internacional, os estudos de Segurança tradicionais não enxergariam as condições


obscurecidas que ocasionariam a insegurança. Com isso, o projeto emancipatório
seria impedido, obstaculizando a realização da segurança. Há um processo social
de construção da ameaça e este processo decorre do relacionamento do Eu com o
Outro. Reconhecer essa interação é perceber que a segurança é contextualmente e
politicamente definida, não atemporal.

Booth (1997, p. 106) propõe ainda que estudos realmente críticos de


Segurança deveriam se desenvolver dentro da lógica de uma “ciência moral
global“, mas que tal ciência – como a própria Segurança combatida pelas
vertentes críticas – é criada a partir de núcleos regionalizados, especialmente nos
EUA. Segurança internacional é excludente porque delimita e restringe o
referencial analisado. Não à toa, ele coloca que o conceito de “Segurança
Mundial” como mais apropriado:

world security refers to the structures and processes within human society, locally
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and globally, that works towards the reduction of the threats and risks that
determine individual and group lives. The greater the level of security enjoyed, the
more individuals and groups (including human society as a whole) can have an
existence beyond the instinctual animal struggle merely to survive. The idea of
world security is synonymous with the freedom of individuals and groups
compatible with the reasonable freedom of others, and universal moral equality
compatible with justifiable pragmatic inequalities (Booth, 2007, p. 4-5).

É preciso questionar se as reformulações da Segurança sugeridas por essas


elites são realmente capazes de responder aos anseios das populações
marginalizadas e vulneráveis ou se são apenas exercícios intelectuais de um grupo
privilegiado que não precisa mais pensar em questões concretas de “segurança”.
A importância de pensar em emancipação a partir de uma lógica universalista
reside nessa reformulação. Romper com a forma de organização estatal permitiria
enxergar no indivíduo e no seu potencial emancipatório as condições nas quais
poderíamos falar de Segurança (Alker, 2005; Booth, 2005c).

Do exposto fica claro que a preocupação com a emancipação caracterizaria


a lógica da segurança para a Escola Galesa, dado que a emancipação é o que
libertaria os indivíduos da violência e os permitiria a viver sem constrangimentos
ou coerções de qualquer tipo (Booth, 1991, p. 319). Emancipação caracteriza a
não-incidência de qualquer tipo de violência. A Escola Galesa entende
emancipação como
Marcelo Mello Valença 96

(…) the theory and practice of inventing humanity, with a view to freeing people,
as individuals and collectivities, from contingent and structural oppressions. It is a
discourse of human self-creation and the politics of trying to bring it about. (...)
The concept of emancipation shapes strategies and tactics of resistance, offers a
theory of progress for the society, and gives a politics of hope for common
humanity (Booth, 2005b, p. 181).74

Apontando o foco da Segurança para os indivíduos, pensar em emancipação


implica analisar as formas que os libertariam dos constrangimentos criados por
estruturas de poder opressoras e que silenciariam vozes de oposição ou de
questionamento aos valores tidos como predominantes (Booth, 1991, p. 319). É
proceder com um engajamento normativo com a política “normal”75 (c.a.s.e.
collective, 2006, p. 455). As possibilidades de emancipação devem ser
criticamente analisadas para que não se recaia em generalizações que reforcem a
ordem vigente generalizante (Alker, 2005, p. 208; Smith, 2005, p. 42). A
emancipação deve ser pensada conforme o contexto onde esta é buscada e dentro
das condições políticas existentes.
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A violência para a Escola Galesa é uma conseqüência decorrente da


incapacidade de atingir a emancipação e seria trabalhada a partir das limitações
geradas pelo Estado universalizante e homogeneizante. Não bastaria apenas falar
de liberdade individual para que os constrangimentos impostos sejam superados,
como fazem os liberais, mas compreender como essa liberdade repercutiria no
cenário social e político. As limitações impostas pelas teorias tradicionais,
especialmente o Realismo, afastariam a possibilidade de pensar criativamente
sobre segurança. Elas colocariam em evidência um ator que não faria parte do seu
processo de reformulação ou tratariam a questão da liberdade a partir de uma
lógica ocidental universalizante, replicando o modelo predominante a outros
cenários.

Apesar de lidar com um conceito de violência, a Escola Galesa não enxerga


o seu uso como uma estratégia política, mas como uma das condições que
impediriam a emancipação. A violência não se limitaria ao uso da força que,

74
No seu livro de 2008, Ken Booth expõe emancipação em outros termos, mas mantendo o
mesmo significado: “(...) emancipation seeks the security of people from those oppressions that
stop them carrying out what they freely choose to do, compatible with the freedom of others. (...)
Emancipation is the philosophy, theory, and politics of inventing humanity” (Booth, 2008, p. 112).
75
Donde “normal” é compreendido como o resultado das exclusões e formas
disciplinadoras e de regulamentações do biopoder sobre as populações. Isso faria com que a
segurança produzisse efeitos constitutivos (c.a.s.e. collective, 2006, p. 456).
A literatura de Segurança 97

segundo os teóricos da Escola Galesa, ocultaria outras formas de opressão e


mascararia a política e de suas práticas.

Negligencia-se a violência como instrumento político. O Estado é posto


como uma figura de opressão e homogeneização universalizante que impediria o
desenvolvimento de particularidades individuais e culturais em nome de uma
alegada segurança nacional, promovendo a violência a partir de suas estruturas.
A violência é uma condição de opressão, não um meio para atingir fins. A
desnaturalização do Estado e de outras instituições internacionais levaria à
mudança nas práticas de segurança (Mutimer, 2007, p. 64), caracterizando o
potencial emancipatório da teoria da Escola Galesa. Assim, poderíamos falar de
indivíduos como os sujeitos principais e destinatários da segurança, ocupando o
lugar até então do Estado e permitindo o aprofundamento da Segurança para além
da militar (Sheehan, 2005, p. 164).

Porém, ao fugir da dimensão da violência – ou substituí-la pela idéia de


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emancipação –, a proposta de pensar em segurança de verdade para pessoas de


verdade76 acaba frustrada pela ruptura com o pensamento e as agendas políticas
que a Escola Galesa se propõe a fazer – “[o]ld thinking about world politics
guarantees old practices” (Booth, 2005c, p. 273). Toma-se como desejo
emancipatório aquilo que os focos ditos marginais acusariam e, assim, repetir-se-
ia a manutenção de um discurso hegemônico e universalista, tal como as teorias
tradicionais, mas dessa vez inspirado na suposta vontade individual.

O argumento da Escola Galesa acaba por se aproximar do etnocentrismo


que caracterizaria a Segurança durante a Guerra Fria e que motiva a crítica dos
realistas terceiro-mundista de uma inadequação do foco excessivo no indivíduo.
Ao afirmar que as vertentes críticas de Segurança deveriam se preocupar com a
emancipação e que esta seria entendida como “freeing people, as individuals and
groups, from the (...) constraints that stop them from carrying out what they would

76
“Students of security these days seems to be condemned to a lifetime of theoretical
dialectic, but the typical student will not be interested in theory for its own sake, but rather for
what it can do in helping us to understanding what is happening around us (...), then in engaging
with world politics more effectively (...). In other words, most of us are interested in theory
because we are interested in real people in real places” (Booth, 2005c, p. 272). No mesmo sentido,
Ole Wæver (2004, p. 7) coloca que, para a Escola Galesa, “the concept of security becomes used
in a rather classical sense, but on a different referent object: it about ‘real threats’, only the real-
real ones against real people and not the allegedly real ones voiced by the state”.
Marcelo Mello Valença 98

freely choose to do” (Booth, 1997, p. 110), a Escola Galesa recai em um ideal de
liberdade notadamente etnocêntrico e liberal, característico das sociedades que
(re)produzem tanto o pensamento crítico quanto o ortodoxo.77

Falta o reconhecimento – em parte pela incapacidade de fugir do seu lócus


de enunciação – de que esses ideais de liberdade não são necessariamente o valor
mais importante para todas as sociedades. A Escola Galesa padece do mesmo
problema enfrentado por outras vertentes teóricas de Segurança. O movimento de
aprofundamento da Segurança acaba por reproduzir as verdades que as teorias
positivistas são acusadas de perpetuar.

Essa questão é mais complexa do que Booth e a Escola Galesa gostariam de


reconhecer: se um de seus papéis é buscar valores cosmopolitas e falar por aqueles
marginalizados, que não têm voz (Booth, 1997, p. 115), como podemos saber se
falar pelo Outro é legítimo ou se não estaremos manipulando o Outro por nossa
fala? Ao afirmar que é preciso conhecer algo para que se possa de fato perceber
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se realmente alcançamos esse elemento (Booth, 1991, p. 317), caímos no


reducionismo das teorias tradicionais, já que pressupomos um conhecimento
anterior.

Trata-se, mais uma vez, do “particular” ocidental assumindo o “universal”


da humanidade. Dentro de uma perspectiva estritamente teórica, tal ruptura é
possível, mas acabaria por tornar a política algo irrealizável, já que a política
contemporânea depende do espaço proporcionado pelo Estado para acontecer
(Walker, 1993; Bartelson, 1998). Este, apesar de tomado como um elemento
contestado, se mostra essencial para a própria idéia de política, fazendo com que o
estatismo se torne a grande arma do pensamento tradicional (Bartelson, 2001;
Walker, 1997; Walker, 2006).

77
Tarak Barkawi e Mark Laffey (2006, p. 350) apontam a postura eurocêntrica que
caracteriza as vertentes críticas que colocam a emancipação como ideal máximo a ser buscado.
A literatura de Segurança 99

3.3.2.
A Segurança Humana

A reflexão proporcionada pelos Estudos Críticos de Segurança, mesmo


abrindo possibilidades para novas formas de segurança, esbarrava nos limites
políticos que o Estado oferece para o sucesso do potencial emancipatório dessa
teoria. Ao tentar questionar esse ator, alegando a sua ineficiência – ou inaptidão –
para permitir um pensamento construtivo, os Estudos Críticos de Segurança
limitar-se-iam à esfera teórica, sem acrescentar elementos para uma relação
produtiva entre teoria e prática. Tentando contornar isso e abrir espaço para o
referencial nos indivíduos como possibilidade – ou, melhor, necessidade – de uma
revisão no campo, temos a Segurança Humana e seu ideal de libertar o indivíduo
das ameaças que o amedrontam e constrangem para abrir possibilidades para o
desenvolvimento de um pensamento crítico, mas politicamente relevante
(Wibben, 2008, p. 458).
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Inserida diretamente em uma proposta política desde o seu surgimento, a


Segurança Humana apresenta como preocupação central o alcance de condições
onde as pessoas podem ser poupadas de traumas que impediriam o seu
desenvolvimento como indivíduos, em uma clara conexão com os Estudos para a
Paz e seu ideal de emancipação e supressão da violência. O foco na Segurança
Humana permitiria, ao mesmo tempo, ressaltar a violência decorrente do uso da
força e as maneiras como os indivíduos eram afetados, enquanto alertava para a
necessidade de mudanças estruturais que permitissem e possibilitassem um
contexto político mais justo e igualitário, não apenas como ideal ético, mas
também como forma de adequar contextualmente o cenário onde o indivíduo se
insere: “[i]t is precisely the lack of political contestation over the international
security agenda that drives the human security framework” (Chandler, 2008,
p. 469).

Ao levantar questões que não fariam parte, necessariamente, das


preocupações de segurança estadocêntrica, como o desenvolvimento econômico e
social, educação e fome,78 a Segurança Humana sugere uma ampliação no escopo
da Segurança para abarcar esses novos temas, em clara discordância com a

78
Sobre os temas que englobariam a agenda heptapartite da Segurança Humana, Pnud
(2004).
Marcelo Mello Valença 100

delimitação coerente da Segurança defendida por Walt. Ao mesmo tempo, e


justamente por não considerar o framework da Segurança Humana suficiente para
uma agenda compreensiva, seus adeptos acusam a necessidade de atrelar a
segurança humana com a do Estado, expandindo as possibilidades que recorreriam
sobre esses agentes, de maneira a compreender que não há como desvincular a
segurança de um e de outro (Kerr, 2007): “[a] ‘secure state’ untroubled by
contested territorial boundaries could still be inhabited by insecure people”
(Thomas e Tow, 2002, p. 178).

A abordagem para garantir a segurança do indivíduo envolveria, assim,


diferentes tipos de atores executando diferentes papéis, conforme o tipo de
ameaça e da necessidade de resposta a ser oferecida, mas que não são consensuais
nem mesmo dentro da corrente (Chandler, 2008). Pauline Kerr (2007, p. 94-98)
aponta três correntes dentro da Segurança Humana que divergiriam quanto à
natureza da ameaça, que variaria entre a violência decorrente do uso da força e da
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repressão institucional, o subdesenvolvimento e as condições sociopolíticas dele


decorrentes e a ameaça que os indivíduos causariam a outros indivíduos. A maior
ou menor amplitude do objeto para cada uma dessas correntes se dá um função da
sua aproximação ou afastamento do mainstream político (Chandler, 2008).

Com o foco da Segurança colocado sobre os indivíduos, a Segurança


Humana tentaria compreender como as estruturas do sistema internacional
promoveriam ameaças a esses referenciais, abrindo espaço para se pensar em
outros níveis além do estatal (Thomas e Tow, 2002). A noção de que o Estado
pode ser um agente de insegurança está aqui presente, o que levaria a uma
reflexão sobre o seu papel na política internacional. Contudo, os adeptos dessa
teoria reconhecem que o Estado tem limitações, mas não pode ser ignorado (Kerr,
2007); a busca pela segurança estatal é necessária, não como uma finalidade em
si, mas como um instrumento para atingir pretensões mais altas, que é a segurança
individual. O instrumental da Segurança Humana levaria a essa reflexão e sua
conexão com aspectos práticos proporcionaria um auxílio valioso na execução de
políticas públicas.

Isso pode ser confirmado pela própria origem da corrente, que primeiro se
manifestou em um relatório da ONU e depois passou a ser uma diretriz importante
de Estados como o Canadá, Japão e Noruega (Hubert, 2004; Paris, 2004; Wibben,
A literatura de Segurança 101

2008). Este atrelamento ao meio político, fornecendo diretrizes e rumos para o


estabelecimento de políticas externas relembraria a relevância política assumida
pelo realismo durante a Guerra Fria. A reflexão que a Segurança Humana pode
proporcionar ao formulador de decisões apresenta utilidade na medida em que
tornaria concreta e operacionalizável os interesses do Estado (Chandler, 2008).

No entanto, a idéia de segurança humana ainda é difusa e vasta:


praticamente qualquer tipo de desconforto inesperado ou irregular pode ser uma
ameaça à segurança humana (Paris, 2004, p. 250). Não há uma definição
específica que permita que a Segurança Humana seja definida de forma clara,
porque as ameaças seriam demasiadamente amplas para que possam ser
coerentemente tratadas. Roland Paris questiona, com isso, a objetividade do
estudo acadêmico desse tema, pois qualquer questão poderia ser incorporada à
pesquisa: “(...) if human security means almost nothing, then it effectively means
nothing” (Paris, 2004, p. 255).
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A fuga – ou, melhor, o alargamento – do estudo da violência definida como


uso da força com o objetivos de causar danos acabaria por tirar a capacidade
explicativa da Segurança Humana como teoria, ainda que sua contextualização a
partir da década de 1990 permita que vejamos sua utilidade na aplicação política.
Contudo, a capacidade de desenvolver um paradigma autônomo de pesquisas,
contribuindo objetivamente para a Segurança, é esvaziada quando, até em função
da amplitude do escopo da Segurança Humana, achamos ameaças que fogem do
entendimento dos estudos de Segurança tradicionais – como a fome, educação,
entre outros. Dessa forma – e assim como percebido com as teorias liberais –, o
ideal de Segurança Humana pode ser encorpado em outras áreas do conhecimento,
inclusive respostas à segurança que tenham o Estado como foco – as intervenções
humanitárias são uma prova disso (Thomas e Tow, 2002, p. 183).

A contribuição e a reflexão proporcionadas pela Segurança Humana seriam


esvaziadas na medida em que seu teor analítico se confundiria com o de outras
áreas. Assim, retorna-se à critica realista de que a segurança do Estado deveria
ser encarada como foco da Segurança, enquanto outros “problemas”, que não
diriam respeito ao uso da força e da violência, seriam foco de outros campos de
estudo. Questiona-se a contribuição para a relevância política da Segurança
Humana nesses termos.
Marcelo Mello Valença 102

Entendemos, portanto, a Segurança Humana como uma diretriz de política,


que sugere objetivos a serem atingidos, não uma política concreta com medidas
determinadas ou, ainda, uma mudança no paradigma da Segurança (Wibben,
2008). A despeito de sua conexão com processos decisórios contemporâneos,
falta a ela uma instância de separação analítica entre o objeto de estudos e o
objetivo do pesquisador que faz com que a normatividade de suas propostas seja
análoga à metodologia da agenda tradicionalista, reforçando a crítica que Buzan et
al fizeram às teorias críticas, mencionada no final da seção anterior (Thomas e
Tow, 2002). Sua contribuição maior é para a reflexão sem, contudo, acrescentar
aspectos politicamente operacionalizáveis que permitam a sua utilização como
paradigma autônomo de Segurança (Thomas e Tow, 2002; Paris, 2004; Kerr,
2007; Wibben, 2008).

Tal abstração, inclusive, é o que criaria laços para a utilização da idéia de


Segurança Humana como justificativa para alcançar interesses do Estado. Como a
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idéia de segurança humana é ampla e inspira orientações diversas, de acordo com


o objetivo e/ou a definição assumida, estratégias de política externa e ações
estatais sob a alegação de romper com as ameaças dirigidas contra a segurança
humana podem acabar aumentando a insegurança (Cockell, 2000 apud Paris,
2004; Kerr, 2007).

Criticando a operacionalização da Segurança Humana ao bel-prazer do


Estado, Thomas e Tow (2002, p. 179) sugerem que um tema, para se tornar
questão de segurança humana, deve afetar indivíduos e sociedades não apenas em
um Estado, mas assumir uma dimensão maior, transnacional, além do Estado.
Isso permitiria que se pensasse nesse tema de forma a fugir dos interesses
imediatos estatais e, com isso, assumisse uma dimensão verdadeiramente humana.
O relatório do Pnud segue tal inclinação, mas não consegue tornar isso
operacionalizável. Desta maneira, a utilidade da Segurança Humana se perde,
evaporando-se em hot air, para usar a expressão sugerida por Paris (2004). A
possibilidade de ser útil para o processo político é perdida ao se tornar mero
instrumento de política.

Com isso, as teorias críticas carecem da ruptura do plano ideacional para


serem aplicadas na prática: a normatividade excessiva acaba por restringir as
possibilidades políticas, e os questionamentos lançados às teorias tradicionalistas
A literatura de Segurança 103

de reducionistas e auto-centradas acabam por se adequar a elas também. Falta a


exploração de uma lógica que envolva a compreensão mais ampla do alvo e do
referencial da Segurança que essas duas teorias, Estudos Críticos de Segurança e
Segurança Humana, sugerem, ao mesmo tempo que a compreensão do Estado
deva ser realizada de maneira politicamente viável, não um conjunto de assertivas
que o desvirtuam e o esvaziam.

3.3.3.
Escola de Paris e a Sociologia Política Internacional

Seguindo o programa de pesquisas proposto por Keith Krause (1998) e


insistindo em uma abordagem eminentemente construtivista para definir o que é
insegurança e o que é segurança através dos atos discursivos (Bigo, 2008),79 a
Escola de Paris aparece, tal como os Estudos Críticos, como espaço de
convergência de diferentes abordagens teóricas. Contudo, a Escola de Paris se
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caracteriza pela abordagem sociológica inspirada nos trabalhos de Bourdieu


conjugada com as idéias de Foucault sobre poder e verdade e se volta à
investigações empíricas promovidas por variadas agências de segurança, de
maneira a entender o discurso oficial (Wæver, 2004; Bigo, 2008). Seu surgimento
se dá a partir da conjugação da teoria política e dos estudos de sociologia da
migração e do policiamento na Europa (c.a.s.e. collective, 2006, p. 446), não
partindo, portanto, dos mesmos marcos epistemológicos que as demais vertentes
críticas aqui trabalhadas, que seguem se originam nas Relações Internacionais.

Neste contexto, a Escola de Paris se coloca na interseção entre a Escola


Galesa, com seu questionamento das práticas e limitações impostas pelo Estado à
liberdade individual, e a Escola de Copenhague – a ser trabalhada adiante – e os
impactos dos atos discursivos na securitização das práticas políticas e vice-versa.
Em poucas palavras, as perguntas levantadas pela análise sociológica que essa
Escola promove seriam o que é segurança e o que a segurança faz (c.a.s.e.
collective, 2006; Bigo, 2008).

79
A terminologia que caracteriza a segurança não tem significado por si própria e, portanto,
deve ser inserida social e politicamente em um ambiente para que tenha sentido – daí a
importância da epistemologia construtivista para se analisar a política advinda dos mecanismos
técnicos institucionais das agências responsáveis pela segurança (Bigo, 2008, p. 123).
Marcelo Mello Valença 104

A influência de outras escolas do pensamento, bem como a inserção desta


vertente teórica em um ramo maior,80 faz com que os postulados defendidos pela
Escola de Paris sejam suficientemente amplos para incluir autores que estão
presentes em outras Escolas e teorias, mas que compartilhariam a ambição de
questionar as delimitações espaciais impostas pela Segurança e pela prática de
atores replicados na política internacional a partir de uma visão hegemônica
universalizante.81 A possibilidade de inclusão de autores como Rob Walker,
Richard Ashley, Barry Buzan e Ole Wæver neste grupo – mesmo que comumente
associados a outras perspectivas teóricas – é uma conseqüência desta
peculiaridade européia de se enxergar a Segurança, dado os pressupostos
epistemológicos que carregam e defendem (c.a.s.e. collective, 2006, p. 447-448).

Segurança e insegurança não são antônimos, mas a maneira como segurança


é definida determina como se pensar em insegurança. A dessecuritização, i.e., a
retirada de temas da agenda de segurança através de discursos ou tecnologias de
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proteção, não significa um restabelecimento da política ou um aumento da


segurança. Tampouco o aumento e a consolidação de agências de segurança
significam um ambiente social mais seguro (c.a.s.e. collective, 2006, p. 457).
Essas são medidas que exacerbam nosso entendimento do que é estar inseguro,
criando uma falsa imagem de segurança diante de um problema que aparente,
ainda que não explícito.

Neste sentido, é difícil delimitar o escopo normativo da Escola de Paris,


bem como seu objeto de estudos sem se sobrepor a trabalhos realizados por outras
vertentes críticas. O recurso à sociologia política internacional, o recurso à
epistemologia construtivista e a ambição em perceber a conexão – e a confusão –
entre o doméstico e o internacional fazem com que o corpo teórico se mostre
bastante amplo. Ainda assim, podemos apontar como principal nome deste grupo
Didier Bigo, especialmente por seu papel de destaque na editoria do periódico

80
As Escolas Européias de Teorias de Segurança (Wæver, 2004; c.a.s.e. collective, 2006;
Bigo, 2008).
81
Tal crítica já aparecia nos trabalhos da Escola Galesa, de Paris e de Copenhague, mas se
tornou mais forte após a publicação do artigo do c.a.s.e. collective (2007), obra coletiva que
procura a expor as particularidades pertinentes à Europa e à sua visão de mundo em detrimento aos
estudos norte-americanos tradicionais (Buzan, 1997; Wæver, 2004). Segundo o c.a.s.e. collective,
o objetivo da reflexão realizada é “to collectively assess the evolution of critical views of security
studies in Europe, discuss their theoretical premises, examine how they coalesce around different
issues, and investigate their present – and possibly future – intellectual ramifications” (c.a.s.e
collective, 2006, p. 443).
A literatura de Segurança 105

Cultures & Conflicts, onde as idéias dessa corrente encontram grande repercussão
(Wæver, 2004, p. 10).

A preocupação central de Bigo é mostrar as maneiras como as dimensões da


segurança doméstica e internacional se encontram e se confundem (Bigo e
Walker, 2007), impactando decisivamente no papel de agências especializadas em
garantir segurança, como a polícia, o exército e os serviços de imigração (Wæver,
2004, p. 11):

the political construction of security was also an important concern for a number of
researchers analyzing policing practices, the formation of an internal security field
in Europe and the securitization of migration from a more political sociological and
political theory perspective (c.a.s.e. collective, 2006, p. 448).

O foco no que acontece no doméstico é bastante relevante para os seus


estudos, sendo o internacional uma esfera tratada como complementar e
inescapável, mesmo que vista pelas demais teorias de Segurança como essencial –
como, por exemplo, a Escola de Copenhague.
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Security can be conceptualized as ‘beyond politics’ and a ‘politics of exception’


only if the existential threat is distinguished from the simple threat and feeling of
unease, and if the existential threat is related to survival as the new boundary
between the internal and the everyday politics on one side, and the international
and the exceptional politics also called security on the other (Bigo, 2008, p. 122).

Em uma tentativa de europeização da Segurança, torna-se imperativo que as


esferas internacional e doméstica se confundam, dado que as próprias fronteiras
da União Européia causam tal efeito, ao internacionalizar algumas dimensões do
doméstico a ponto de sobrepor tais esferas.82 Bigo defende que os estudos de
Segurança tradicionais esvaziam os impactos da contribuição da sociologia, da
criminologia e da história para o entendimento do que geraria a insegurança. Essa
exclusão se dá mesmo depois de terem recorrido a estudos sobre psicologia e
escolha racional para construir suas teorias: Segurança foi reduzida a estudos
estratégicos e, portanto, subdimensionada (Bigo, 2008, p. 118):83

the individual-societal dimension and the sociological approaches have been


dismissed; what was important was the move from the international to the global
and the future of concepts such as the national interest, the role of the state and the
structure of the interstate system. Security studies cannot get to grips with the
corpus of knowledge already constituted in sociology, anthropology and cultural

82
“(...) ‘[C]ritical turn’s in security studies have to be understood through the intellectual
transformations occurring in social and political theory” (c.a.s.e collective, 2006, p. 445).
83
Crítica semelhante é trazida por Buzan (1983) e Krause e Williams (1997).
Marcelo Mello Valença 106

theory because it contradicts the field’s initial definition of what security means
(Bigo, 2008, p. 119).

Isso nos levaria a perceber que os papéis dessas agências, muitas vezes
definidos em normas legais de âmbito doméstico, são desafiados pelo gradual
processo de desterritorialização pelo qual passa a política. A construção da
segurança se conecta aos grupos que são autorizados – e se auto-permitem –
definir o que é seguro e o que não é: afinal, uma área só existiria se produzisse
efeitos e os profissionais da segurança buscam tais efeitos nas e para as – relações
sociais. (Bigo, 2000).84

Com isso, o movimento de aprofundar a Segurança para depois alargá-la é


realizado, dado que a proposta é entender a forma como a segurança é construída
pela prática e pelos discursos oficiais para, somente então, perceber a sua conexão
com temas que se expandem conforme o contexto político e social enfrentado e os
cenários de (in)segurança criados. Temas como imigração, crime organizado,
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meio ambiente e terrorismo passam a ser compreendidos a partir da interconexão


entre o que é produzido pelas agências de segurança e reproduzido, de maneira
indistinta, nos ambientes doméstico e internacional.

Os temas que compõem a agenda de segurança doméstica devem em muito


às políticas desenvolvidas por instituições e agências de segurança e pela
competição para definir o que constituiria a maior ameaça a ser enfrentada:
independentemente daquilo que é realmente percebido como ameaça àquele
plano, o que surgiria nas agendas de segurança seria um reflexo do que os atores
que exercem a hegemonia política desejariam. Isso é reproduzido e percebido,
gradual e constantemente, pelas práticas dessas agências. Elas acabam por
reforçar o discurso oficial através de técnicas weberianas de racionalização que
operacionalizariam o pensar em segurança nos termos desejados por grupos

84
Como exemplo dessa definição expressa dos papéis das agências de segurança, podemos
trazer o caso brasileiro e a divisão de competências determinada pela Constituição Federal de
1988. A Constituição, em seu artigo 144, determina explicitamente que o papel da política é
garantir e manter a ordem nacional; já as Forças Armadas – entendidas como o Exército, Marinha
e Aeronáutica –, nos artigos 142 e 143, são os responsáveis pela defesa da pátria. Em termos
doutrinários, isso significa que a distinção entre as atuações dessas duas agências se aplicaria na
dimensão de sua atuação: enquanto a polícia age domesticamente, as forças armadas atuam no
plano internacional – ou contra ameaças vindas daquele plano. Contudo, cada vez mais, há
demandas para a atuação das forças armadas no plano doméstico – e efetivamente isto ocorreu,
como no caso da Eco92 e nas eleições no Estado do Rio de Janeiro em 2008. A recíproca surge
como verdadeira ao se encontrar membros da polícia agindo em parceria com o exército em
operações de patrulhamento das fronteiras.
A literatura de Segurança 107

dominantes em posturas corriqueiras do dia-a-dia de uma sociedade moderna


(Bigo, 2008), o que conduziria à percepção de que tais mecanismos são naturais à
sociedade e, portanto, aceitos quase como que por inércia.

Na visão de Bigo, segurança se conecta diretamente com legitimidade e,


portanto, não pode ser desvinculada da política, nem tampouco dos atores
políticos e de suas práticas de legitimação. Por isso que podemos afirmar que o
debate entre o que é segurança e o que constitui a insegurança é parte de uma
disputa maior, que envolve a tensão entre diferentes atores que teriam a
capacidade de declarar que algo é ou não pertinente à segurança (Bigo, 2008,
p. 123). A legitimação de determinadas posturas sociais corresponde à
legitimação de certas práticas de violência que assumiriam o status de política e,
portanto, seriam encaradas como um mecanismo válido pra transmitir segurança –
ainda que vistas como sinal de insegurança.85

O papel do ato discursivo na caracterização da (in)segurança é central para a


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Escola de Paris, mas não acontece apenas, nem tampouco deve se restringir, ao
que é explicitamente declarado pelos formuladores de decisão. Alguns
movimentos de (in)securitização já estão tão presentes nas rotinas institucionais
que acabam sendo pouco problematizados, quiçá discutidos (Bigo 2006).

A ameaça à segurança é construída a partir da operacionalização das


práticas de securitização – que devem ser entendidas de maneira ligeiramente
diferente daquela securitização da Escola de Copenhague.86 Securitização para
Bigo é a instrumentalização técnica da prática de (in)segurança através das
competentes agências de segurança, tornando-se parte do dia-a-dia e assumindo

85
Exemplo é o papel da polícia no comportamento e práticas do exercício de suas
prerrogativas. Um maior policiamento ostensivo em determinadas regiões pode ter como objetivo
aumentar a sensação de segurança da população. Contudo, em um plano macro, o efeito oposto
pode acontecer, caso se questione o porquê daquele aumento no policiamento naquela região e não
em outras. Ao invés de oferecer a segurança pela presença da polícia, surgiria um sentimento de
insegurança derivado da sensação de que algo estaria errado. Em suma, “(…) when an
(in)securitization move is made, security and insecurity grow together, and it generates a self-
sustaining dynamic if a large audience believe in it. The (in)securitization move may occur about
approximately anything, but it has specific conditions of production and reception, and as such,
this approach is grounded in a constructivist episteme” (Bigo, 2008, p. 124).
86
Trabalhamos com a securitização na Escola de Copenhague na próxima subseção.
Instrumentalmente e em poucas palavras, devemos entender a securitização para Buzan e et (1998)
como uma versão extrema do processo de politização, levando à tomada de medidas excepcionais
para afastar a ameaça à sobrevivência do ator político para que se possa, portanto, voltar à política,
que é o cenário onde as relações sociais se estabelecem.
Marcelo Mello Valença 108

legitimidade a partir dessa incorporação racional, promovendo efeitos estruturais a


partir da reconfiguração e ordenamento da sociedade com base em um modelo de
emergência ou exceção (c.a.s.e. collective, 2006, p. 455). Ao ressaltar que a
securitização de temas ou de práticas levaria não à uma maior sensação de
segurança, mas a uma percepção maior de insegurança, Bigo questiona se
realmente o movimento buscado pela Segurança consegue atingir os seus
objetivos, na medida em que, ao invés de proporcionar maior segurança, traz
maior temor, ainda que velado. Segurança e insegurança são partes do processo
de securitização impostos por aquelas agências e levariam a um contexto maior de
insegurança, justificando as práticas tomadas.

Isso serviria como resposta aos críticos das vertentes mais críticas da
Segurança sobre o seu descolamento da prática política, especialmente porque o
trabalho empírico poderia resgatar as preocupações originais da Segurança de
estabelecer laços produtivos entre a teoria e a prática. Apesar de sua inclinação
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fortemente teórica, Bigo promove tal conexão através da análise de manuais e


documentos de agências policiais e militares. Tudo pode ser entendido como
parte integrante do processo de securitização, seja discursos políticos, práticas de
instituições e/ou agentes de segurança ou comportamento socialmente
condicionados: “what is seen as an object of security today may be recognized
tomorrow as a source of insecurity and distress” (Bigo, 2008, p. 125).

A violência traduzida no uso deliberado da força não assume aspecto de


relevo na teorização da Escola de Paris. Ao se focar nas práticas de legitimação
da (in)segurança, Bigo e os demais membros dessa vertente consideram violência
como as práticas criadas, replicadas e impostas pelas agências de segurança à
sociedade, de forma a criar insegurança. Ademais, falta espaço para a Segurança
em si mesma: como o foco é excessivamente nas práticas das agências e da
sociedade, é difícil extrair daí ensinamentos que sejam transferidos a outros
cenários e contextos. A adequação – ou, melhor, a fixação – à realidade acaba por
limitar o potencial da área. A violência é um produto da insegurança, não um
aspecto central para a teorização da Segurança. Ela tem dimensões estratégicas,
mas não tem a dimensão material da força que a caracterizaria como um
instrumento de política.
A literatura de Segurança 109

3.3.4.
Escola de Copenhague

Dentro do debate entre ampliacionistas e reducionistas sobre a abrangência


da agenda de segurança, a Escola de Copenhague aparece como um meio termo
entre o posicionamento tradicional, limitador dos temas que poderiam entrar nos
estudos, e os Estudos Críticos de Segurança, que aprofundam e alargam a agenda.
Enquanto reconhece a possibilidade – e, por que não, a necessidade (Buzan e
Wæver, 2003) – de trabalhar com foco no Estado e a importância do uso da força
para a Segurança, a Escola de Copenhague questiona o papel e a abordagem
estatal e a insuficiência de pensar apenas no aspecto militar para um estudo
coerente de Segurança (Buzan et al, 1998; Sheehan, 2005).

Os seus postulados teóricos permitiriam que o acadêmico contribuísse para


a reflexão política já que a mobilização que envolve o tema “segurança” é
excepcional e urgente, refletindo na teoria os aspectos no processo de formulação
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de políticas. A lógica da segurança é considerada a partir de diferentes tipos de


ameaça existencial e de diferentes objetos de referência – os setores que
formariam o Estado – levando ao duplo movimento de aprofundar e alargar a
Segurança.

A principal questão levantada pela Escola de Copenhague envolve entender


a função política que a expressão “segurança” assume, muito ligada às próprias
condições que possibilitariam a continuação da atividade política. Tratamos de
segurança quando falamos da ausência de ameaças existenciais aos atores
políticos, dado que pensar em segurança envolve, fundamentalmente, pensar nas
condições e práticas que garantiriam a sobrevivência (Buzan et al, 1998).87 A
segurança é associada às condições que garantam a sobrevivência do ator político,
pois temas que envolveriam a segurança de um ator repercutiriam em sua
sobrevivência no ambiente social.

Contudo, a segurança deixa de ser um tipo universal de bem cobiçado e para


o qual todas as relações deveriam se mover, tal como uma panacéia, como era
proposto por defensores do ampliacionismo (Buzan et al, 1998, p. 27). Ao

87
Argumento semelhante foi defendido, na subseção pertinente aos Estudos Críticos, por
Krause e Williams (1997).
Marcelo Mello Valença 110

ampliar a agenda de estudos se aponta, também, a existência de uma variedade


maior de potenciais fontes de ameaças, que colocariam em risco a sobrevivência,
não de condições que garantissem a sobrevivência (Wæver, 1995; Buzan, 1997;
Buzan et al, 1998; Williams, 2003).

Security is the move that takes politics beyong the established rules of the game
and frames the issue either as a special kind of politics or as above politics.
Securitization can thus be seen as a more extreme version of politization (Buzan et
al, 1998, p. 23).

Deve-se restringir o uso político do termo segurança, para que cada ator
defina sua própria agenda: mais do que ampliar os temas dentro da agenda de
Segurança, o que se busca é entender como diferentes temas e questionamentos
podem afetar a sobrevivência – a segurança –, desenvolvendo mecanismos e
respostas políticas que façam com que essas ameaças sejam contornadas e trazidas
novamente para o reino da política, onde as relações sociais normais
aconteceriam. O foco da Segurança deveria ser, portanto, na dessecuritização,
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i.e., na retirada de temas da agenda política que ameacem existencialmente os


atores políticos (Wæver, 1995, p. 56).88

Neste contexto, os estudos de Segurança observariam três elementos quanto


ao seu escopo: (i) a Segurança tem agenda distinta daquela estabelecida no âmbito
doméstico e (ii) diz respeito à ameaça existencial de um agente de referência, que
é entendido tradicionalmente como, mas não limitando-se a, o Estado. E, por
ameaçar a sobrevivência deste ator, (iii) gera uma condição de emergência que
deve ter prioridade sobre os demais assuntos políticos, exigindo e justificando o
uso de medidas extraordinárias para lidar com elas. As contribuições dos estudos
da Escola de Copenhague se voltam para dois aspectos principais, que são (i) a
divisão setorial para entendermos segurança para além do Estado e de uma
maneira multifacetada e (ii) o processo de securitização criado a partir do ato
discursivo.

A divisão em setores faz parte da estratégia de buscar o objeto referente para


a segurança além do Estado (Buzan, 1991), o que permite desagregar um objeto
para exame a partir de padrões distintivos de interação que não existiriam de

88
O problema aqui não é com a alegação tradicionalista de um estado de insegurança, mas
com aspectos que afetem a segurança. Insegurança não seria nada mais que a evidência de um
problema de segurança sem que sejam oferecidas respostas (Wæver, 1995, p. 56).
A literatura de Segurança 111

maneira independente. Esses padrões permanecem, em última instância,


inseparáveis do todo.89 Destarte, a divisão por setores pode identificar padrões
distintos de como essas ameaças se comportariam (Buzan, 1991 e 1997; Buzan et
al, 1998; Buzan e Wæver, 2003).

A utilização dos setores tem propósitos analíticos bem claros: diferenciar os


tipos de interação possíveis e encontrar os valores característicos a cada setor,
bem como perceber que a natureza da ameaça e da sobrevivência varia conforme
os setores e tipos de unidades.90 O objetivo é, ao restringir o escopo da pesquisa,
reduzir o número de variáveis, permitindo a sua manipulação e seu controle e,
com isso, garantir a coerência dos estudos de Segurança, como postulado pelos
tradicionalistas.91

Ao realizar tal movimento, a Escola de Copenhague se mostraria também


útil aos propósitos políticos da Segurança. Ela contribuiria para a reflexão no
processo decisório, oferecendo um instrumental analítico que permitiria ao
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formulador de decisão entender o mundo que o cerca de maneira mais


compreensiva e adequando sua agenda de pesquisa às ações políticas que estão
por trás da mobilização excepcional gerada pela condição de segurança.

O movimento de aprofundamento da Segurança aconteceria ao se buscar


entender que elementos proporcionam, de fato, uma ameaça à sobrevivência do
ator político, em diferentes dimensões, ao mesmo tempo que coloca a análise
dessa condição de sobrevivência como contingencial às condições políticas,
historicamente situadas. O alargamento seria possível dado ao maior – e mais
compreensivo – entendimento do que implica a segurança e, portanto, de que
maneiras esta repercutiria na preservação da sobrevivência do agente político,
entendido agora também a partir de suas diferentes unidades que o compõem.

89
Os cinco setores são: militar, o econômico, o ambiental, o societal e o político.
90
O que representaria o resgate das preocupações levantadas por David Baldwin (1993),
que via a segurança como um valor ponderável conforme a esfera analisada
91
Dentro dessa lógica, a Escola de Copenhague responderia satisfatoriamente às críticas de
coerência de Walt, dando o espaço suficiente para a questão da sobrevivência do ator e retornando
o debate da Segurança para uma esfera politicamente relevante. A lógica da securitização aplicada
à análise setorial ajuda a ampliar a agenda e percebê-la como instrumento de superação da
preocupação estritamente militar na segurança do Estado, abarcando outras esferas do agente de
referência socialmente organizado, levando, inclusive, a evidenciar a relação de interdependência e
superposição entre os diferentes setores.
Marcelo Mello Valença 112

Este duplo processo de aprofundamento e alargamento seria


operacionalizado através dos processos de securitização, em uma estrutura de
politização baseada no ato de fala. Isso colocaria em evidência a mobilização que
temas com o rótulo de “segurança” trazem à sociedade, em um processo
intersubjetivo de clamor e aceitação (Wæver, 1995, p. 54-57). Um ator
securitizador afirma para uma audiência específica que algo constitui uma ameaça
existencial a determinado objeto de referência, conforme o setor analisado. A
definição e conceito exatos de securitização são constituídos pelo estabelecimento
intersubjetivo de uma ameaça existencial entre o ator securitizador e a sua
audiência: a relação entre ator securitizador e audiência é o que define a ameaça e,
portanto, o que deve ser objeto da Segurança.92

Neste processo, a qualidade – ou o rótulo – de segurança é dada a


determinados temas pela mobilização decorrente da prática política, mas é a partir
da sobrevivência que o cerne definidor dos estudos de Segurança se destaca da
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política normal, dando a relevância política à questão e à área. A securitização é


bem sucedida quando – e apenas quando – há ações de emergência para lidar com
as ameaças, impactando a relação entre as unidades políticas através da quebra das
regras estabelecidas.93 Se não houver tal mobilização excepcional, não há a
aceitação da ameaça, por mais concreta e real que ela seja, e o tema não passa a
integrar a agenda da Segurança. Constitui-se, assim, a construção social da
ameaça, que estimularia ações excepcionais para resgatar a estabilidade e
assegurar a sobrevivência.94

92
Esse processo assume dimensões intersubjetivas ao pressupor que um ator percebe uma
ameaça à sua existência, presente em seu setor de atuação, e produz um discurso de securitização
voltado para esta questão, enquanto uma audiência se torna alvo do discurso e aceita a ameaça.
Não se fala aqui de intersubjetividade a partir do estabelecimento de uma identidade dos agentes,
mas da natureza social e relacional que a análise de Segurança pressupõe. Contudo, a
intersubjetividade a que se refere a Escola de Copenhague não envolve a problematização da
identidade dos atores, que é vista como estável e segmentada (c.a.s.e. collective, 2006, p. 453).
Sobre a questão da identidade na Escola de Copenhague, McSweeney (1996).
93
“Security problems are developments that threaten the sovereignty or independence of a
state in a particularly rapid or dramatic fashion, and deprive it of the capacity to manage by itself.
This, in turn, undercuts the political order. Such a threat must therefore be met with the
mobilization of the maximum effort” (Wæver, 1995, p. 54).
94
A maioria dos temas estaria localizada na esfera privada, o que não é uma regra
inviolável: pela própria interação social, um tema pode transitar do privado para o público e de lá
para a segurança. Fica evidente o caráter dinâmico, não-estático, da segurança, que variaria
conforme a sociedade e o momento analisados. Um tema que pode se relacionar à segurança de
um ator pode não representar ameaça a outro, adequando-se à análise interpretativa exigida pelas
teorias críticas, mas trazendo a viabilidade e a operacionalização política que faltaria àqueles.
A literatura de Segurança 113

É justamente neste processo de construção social da ameaça que a Escola de


Copenhague resgata a coerência e a relação produtiva entre teoria e prática, que
teria se perdido com o aumento da capacidade explicativa das teorias de
Segurança. Se os realistas consideram apenas o estudo das condições que
levavam ao uso da força como objeto da Segurança e tinham a preocupação
evidente com a manifestação da violência entre Estados, os teóricos de
Copenhague buscam a essência dessa idéia para sustentar seus pressupostos.
Entendendo que o uso da força implica, em última instância, a preservação do ator
político, um exercício de abstração deve ser realizado para transpor esse ideal para
outras áreas: as ameaças que incidem na preservação do ator político tornar-se-
iam objetos da Segurança, independentemente da forma como essas ameaçam
sejam postas. Como o Estado é uma construção complexa, com diferentes esferas
e áreas de atuação, a sua divisão setorial permite que se perceba que determinadas
ameaças se dirigem a um setor e não a outro, mobilizando preocupações e
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respostas diferentes, mas colocando em xeque a sobrevivência daquele setor.

Não obstante essa capacidade de mobilização, a teoria da Escola de


Copenhague se refere explicitamente à operacionalização de mecanismos – ainda
que não descreva ou aponte quais são esses mecanismos – para lidar com temas de
segurança. Tem-se, assim, a perspectiva prática da política em mente, já que as
questões que recebem o rótulo de segurança são de fato abordadas pelo processo
político, não sendo apenas uma constatação normativa, como acontece com os
Estudos Críticos de Segurança.

Neste contexto, e apesar da Escola de Copenhague não se preocupar com o


estudo da violência – dado que o seu foco é na ameaça existencial –, aquela idéia
pode ser apreendida do ideário de Copenhague. O que é ameaça existencial só
pode ser definido e entendido em função das características do objeto de
referência em questão (Buzan et al, 1998, p. 21), logo nada é presumido. Se
considerarmos que a violência coloca a sobrevivência em risco por envolver o uso
deliberado da força, analogamente podemos tomar a ameaça existencial como
uma forma de violência – não problematizada, contudo – praticada com a força
permitida/possível de ser exercida em determinado setor. A violência como uso
da força para causar dano em um indivíduo é resgatada em sua essência, em seu
aspecto mais abstrato, não mais se limitando a violência física: não falamos
Marcelo Mello Valença 114

necessariamente em uso da força, mas em provocar danos como parte da


manifestação da violência. Se Segurança envolve o estudo do uso da força e da
violência, e esta ocasiona danos no indivíduo, as ameaças existenciais, que
colocam em risco a sobrevivência do ator, seriam formas de violência
contextualizadas de forma relacional, conforme seu setor de atuação.95

No caso do setor militar, por exemplo, ela se demonstraria claramente da


maneira realista, mas nos demais setores tal caracterização pode ser sugerida de
diferentes maneiras, dada à necessidade de se lidar com diferentes objetos de
referência e sua sobrevivência. Independentemente do setor analisado, a lógica da
Segurança será a mesma: direcionará respostas politicamente relevantes que
produzem impactos na relação entre os setores/atores e que se destinam a afastar
e/ou resolver determinada ameaça politicamente definida, objetiva ou não – tal
como os propósitos do campo da Segurança na sua criação. A Escola de
Copenhague, dessa forma, dedica espaço ao tema da violência, ainda que não o
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problematize.

Assim, ameaças específicas incidem sobre determinados setores, mas não


afetam diretamente outros setores. De forma mais ampla, essa ameaça colocaria
em risco a sobrevivência do ator político, mas as medidas tomadas para prevenção
não precisam ser, necessariamente, militares. Os recursos do ator político e sua
capacidade de agir seriam direcionados de maneira específica para prevenir
determinada ameaça, tornando-se mais efetivos e eficientes. E, ao torná-la
específica e politicamente referenciada como riscos à sobrevivência, podemos
entender que o propósito aqui não é pensar em segurança, mas em política, onde
temas são debatidos de maneira ordinária e não colocariam em risco a ordem.

O modelo explicativo da Escola de Copenhague propõe, assim, alternativas


ao reducionismo tradicionalista, permitindo que a Segurança mantenha sua
coerência e foco na violência como forma de garantir a relevância política do
campo. No entanto, sua origem e a sua proposta de apresentarem uma visão
européia de Segurança acabam por silenciar o papel político que é assumido pela
violência, tal como criticado pelos estudos realistas terceiro-mundistas e central
para os estudos das novas guerras, marginalizando esse aspecto do debate.

95
Para uma lista exemplificativa dos tipos de ameaça/violência colocadas contra cada setor,
Buzan et al (1998, p. 21-23). Ver também a nota 91.
A literatura de Segurança 115

Ao se focar no que é dito – o ato de fala – como pré-requisito para analisar o


que se entende em termos de segurança, a Escola de Copenhague traz um modelo
analítico útil para determinados tipos de sociedade onde a capacidade – ou
possibilidade – de expressão de vozes de diferentes origens é de fato percebida.
Contudo, quando acontecesse a marginalização ou repressão de grupos políticos –
fato freqüente em Estados que fogem do modelo democrático ocidental ou que
ainda não o alcançaram por completo (Inayatullah e Blaney, 2004), haveria a
incompatibilidade do processo de securitização com as condições que de fato
ameaçam a sobrevivência. Sua teorização acusa o seu eurocentrismo (Barkawi e
Laffey, 2006) e sua limitação como teoria amplamente aplicável.96

Apesar da contribuição para entender outras formas de violência – as


ameaças existenciais –, a Escola de Copenhague depende de um contexto político
em consonância com a ordem vigente para torná-la parte dos estudos de
Segurança: a conexão é com o discurso político dominante, independentemente de
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corresponder às ameaças de fato ou não (Williams, 2003, p. 513). O modelo


idealiza Estados democráticos e desenvolvidos como o espaço onde a política
aconteceria (Smith, 1991; Emmers, 2007, p. 116; Barthwal-Datta, 2009, p. 278),
refletindo o seu caráter eurocêntrico (Barkawi e Laffey, 2008, p. 331). A
construção da teoria é inerente ao cenário desses Estados, oferecendo uma
perspectiva etnocêntrica que tem como referência países onde sociedade e atores
domésticos têm participação no processo político e poderiam se manifestar diante
de ameaças – o que evidenciaria a insegurança na formação do Estado não-
europeu.

O desafio ao estabelecimento de uma relação produtiva entre teoria e prática


seria, justamente, aplicar o modelo em outros contextos políticos e a outras formas
de encarar a violência, bem como diferentes maneiras desta se manifestar.97 A
preocupação de Copenhague é com as práticas que formam a Segurança em um

96
Estudos que evidenciam tal incompatibilidade são os realizados, por exemplo, por Muna
(2003?), Wilkinson (2007) e Barthwal-Datta (2009). De forma oposta, Paul Roe (2008) mostra
como Estados democráticos, dentro do formato previsto pela Escola de Copenhague, ajudam a
formar o processo de securitização em um plano internacional.
97
Buzan e Wæver (2004, p. 22-24) falam sobre Estados fracos e Estados fortes e discutem,
de forma rasa, como e que tipos de ameaças são dirigidas a esses tipos de Estados. Entretanto, eles
não problematizam esses conceitos e a referência maior que é feita ao impacto dos Estados fracos
é a incapacidade de formarem laços com outros Estados para a constituição dos complexos
regionais de segurança (2004, p. 51).
Marcelo Mello Valença 116

cenário similar ao dos Estados desenvolvidos democráticos, sem problematizar


como essas práticas e processos se comportariam em cenários sócio-políticos que
não correspondem a tais características.

Em Estados não-democráticos – mais especificamente naqueles Estados que


não seguissem o modelo europeu –, o ato discursivo que inicia o processo de
securitização seria silenciado por estruturas de poder, formais ou não, que
constrangem a manifestação política ou a aceitação legítima da audiência da
ameaça. No caso de Estados fracos, com baixa coesão social e/ou governos não-
democráticos, onde a ameaça existencial contra opositores é eminentemente
violenta e política, grandes silêncios podem ser percebidos (Wilkinson, 2007,
p. 12; Barthwal-Datta, 2009; p. 282). Muitas das ameaças que se colocam nestes
Estados não seriam acusadas justamente pelo processo de securitização ser
prejudicado pelas limitações de se perceber e/ou reconhecer a aceitação do speech
act pela sua audiência – ou a adequação do speech act aos desejos políticos das
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elites. O modelo da securitização, ainda que politicamente confortável e


teoricamente relevante para se adequar aos novos desafios e diferentes atores de
forma coerente, só seria produtivo para estabelecer a conexão com a prática em
um tipo muito específico de sociedade, a européia. Em outras regiões, há a
existência de violência, mas como esta não é acusada, não pode ser securitizada,
constrangendo e ameaçando a existência dos indivíduos em nome de uma unidade
social, ainda que artificial.98

Sendo socialmente construídas e, portanto, não sendo consideradas no plano


objetivo, não há uma resposta que evidencie que ameaças existam mesmo quando
não-securitizadas:

[s]ecurity is (...) a self-referential practice, because it is in this practice that the


issue becomes a security issue – not necessarily because a real existential threat
exists but because the issue is presented as such a threat (Buzan et al, 1998, p. 24).

Por mais que abra o arcabouço teórico para outros atores, o modelo da
securitização depende de Estados – e Estados que sejam capazes de permitir
atuação política de outros atores – para funcionar, especialmente no setor social
(Barthwal-Datta, 2009, p. 297-298). A segurança é vista como uma condição, não

98
Sobre a Teoria do Estado da Escola de Copenhague, Smith (1991), Tanno (1993) e Buzan
e Wæver (2004).
A literatura de Segurança 117

como um fato. Certas ameaças são elevadas à segurança, enquanto outras não:
“[s]ecuritizing is never an innocent act” (Sheehan, 2005, p. 55). Algumas
ameaças a setores do Estado passariam, pois, desapercebidas, já que o discurso de
segurança produzido, o speech act, não receberia o tratamento devido pela
audiência pretendida. A ameaça existencial, ainda que presente, não seria objeto
das práticas de segurança.

Neste contexto, uma pergunta deve ser feita em relação à proposta de


aprofundar e alargar a Segurança vinda da Escola de Copenhague. O que fazer
quando o Estado não é o garantidor da segurança, mas o principal causador de
insegurança? Não há como apontar se o ato de fala foi rejeitado por não haver
aceitação pela audiência, especialmente no setor social, se não houve a audiência
para recebê-lo ou, ainda, se a ameaça existencial consistiu em tamanha violência
política que impediu que sequer houvesse a manifestação. O modelo perde sua
capacidade explicativa e frustraria a expectativa de produzir relações produtivas
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no campo prático e teórico, evidenciando suas insuficiências. Fora dos


referenciais eurocêntricos que a concebeu, a securitização é uma teoria sem
conexão com a prática política.

Em Estados autoritários ou não-democráticos – como nos casos das novas


guerras, objeto de análise do próximo capítulo – seria difícil perceber a violência
política e o ato de fala da securitização encontrar eco, acusando a existência de
ameaças existenciais. A ausência de um debate sobre a função política e social da
violência na Escola de Copenhague limitaria a produtividade da teoria.

Mesmo se apresentando como uma teoria capaz de resgatar a relevância


política dos estudos de Segurança e estabelecer uma relação produtiva entre teoria
e prática, a Escola de Copenhague perde muito de seu poder explicativo e de seu
modelo teórico ao não discutir a função política da violência, marginalizando a
sua importância para os processos de securitização especialmente em Estados em
processo de desenvolvimento e/ou em democratização. Ao caracterizar a
segurança como uma prática essencialmente política e que envolve mobilização
em função de ameaças percebidas, o caráter político da violência de facto é
perdido. Ou melhor, a violência como uso da força ajuda a mascarar o insucesso
do processo de securitização em Estados não-democráticos e não-desenvolvidos,
porque a confusão entre Estado e causador da ameaça pode acontecer e tal relação
Marcelo Mello Valença 118

ficaria mascarada sob as práticas políticas: se não há o reconhecimento, não há


ameaça, logo também não há, politicamente, a violência. Ainda que ela exista de
fato e seja silenciada pelo Estado. A agenda de segurança seria, portanto, uma
mera replicação da agenda estatal (Bartthwal-Datta, 2009, p. 278). Novas formas
de se enxergar a violência – ou a ameaça existencial –, como aquelas decorrentes
das novas formas de fazer guerra, dificilmente seriam evidenciadas em um
processo de securitização em razão dessa necessidade de ser percebida e
legitimada pelos atores que promovem o discurso e aqueles que o aceitam.

3.4.
Conclusão

Mostramos que o campo da Segurança, originado a partir da estreita


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colaboração entre teoria e prática, deixou de responder de maneira produtiva às


demandas políticas conforme o seu escopo era ampliado e o seu arcabouço
teórico, refinado. Nosso eixo condutor foi a hipótese de que a literatura de
Segurança deixou de associar teoria e prática de forma produtiva ao deixar de lado
o tema da violência. Não havia um debate que depurasse o conceito, nem
trabalhasse a sua operacionalização para fins políticos.

Gradualmente, a violência foi marginalizada da Segurança. Esta se voltava


a outros aspectos, tidos como empiricamente mais relevantes ou analiticamente
mais inclusivos, mesmo com algumas contribuições teóricas a colocando em sua
teorização. O seu caráter estratégico é abandonado para se tornar uma
conseqüência das limitações da política. De disciplina conectada ao processo
decisório a Segurança se tornou um espaço para os temas que afetavam a
sobrevivência do seu objeto referente. Sua racionalidade e instrumentalidade
foram afastadas.

Se, por um lado, tal movimento por maior capacidade explicativa


proporcionou uma abordagem mais significativa e compreensiva a temas que
passavam a assumir maior importância nas relações internacionais, como a
cultura, identidade e governança, por outro subordinou a Segurança a um aspecto
secundário, onde as respostas para as perguntas da área eram oferecidas por outros
A literatura de Segurança 119

ramos do conhecimento ou, mais precisamente, por debates teóricos de Relações


Internacionais. A ampliação e o aprofundamento da segurança ofereciam um
leque explicativo e reflexivo maior, o que não significava uma contribuição
relevante para a política. A autonomia e a capacidade de ser útil e ajudar a refletir
sobre o processo decisório eram negligenciadas em prol de uma explicação mais
abrangente e extensa – mas não conectadas às nuances da área.

Os estudos realistas buscavam, em sua teorização, garantir a relevância


política e a relação produtiva entre teoria e prática. Contudo, ao não perceberem –
ou aceitarem – as mudanças nas relações políticas decorrentes do final da Guerra
Fria têm sua contribuição esvaziada, pois os desafios lançados não encontravam
respostas nas suas linhas de pesquisa. A preocupação com a coerência, que
marcaria a importância política do campo, foi levada ao extremo, influenciando e
impactando no desenvolvimento de paradigmas e linhas de estudo. A dimensão
estratégica assumida pela violência não era analisada e, com isso, o conhecimento
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produzido pelos realistas deixou de ser útil para os formuladores de decisão.

O debate teórico que adquiriu força nas décadas de 1990 e 2000 se


aproveitou desse lapso e incorporou novos temas, agendas e referenciais, de forma
a tentar proporcionar uma análise mais adequada do que significava segurança e
de como o campo poderia se valer dessas inovações e novas perspectivas. Os
movimentos de ampliação e aprofundamento da segurança trabalhavam de forma
a tornar a Segurança mais inclusiva e politicamente relevante, de modo a superar
as limitações realistas.

Contudo, as teorias críticas que surgiam na Segurança eram carregadas por


pressupostos normativos e epistemológicos herdados das Relações Internacionais.
Suas condições de realização foram correlacionadas às críticas à Segurança
realista e escapavam da dimensão que caracterizava o campo. A relação produtiva
entre teoria e prática pressupunha a contribuição do conhecimento para a
produção de estratégias de ação, mas a segurança foi colocada como uma
condição decorrente da política. Deixou-se de tratá-la como uma escolha racional
do burocrata para se tornar uma condição da não-realização da política e das
limitações que o Estado proporcionava ao pensamento criativo.

Entendemos que essa dimensão assumida pela teoria, se por um lado


proporcionou entender novas perspectivas quanto ao objeto referente e aos temas
Marcelo Mello Valença 120

que devem envolver a Segurança, por outro prejudicou a sua capacidade de


auxiliar o burocrata. Perde-se, com esse esforço de aprofundamento, as
possibilidades de operacionalizar a segurança e, assim, responder às questões e
desafios enfrentados na prática política.

Os Estudos Críticos de Segurança e a Escola de Paris enfrentam essas


limitações. Essas perspectivas teóricas questionam as bases nas quais o Estado é
criado e como isso promove a violência e limita o pensamento político criativo.
Mas dizem pouco sobre o papel da violência, mais precisamente do uso da força,
como ferramenta de política.

A Segurança Humana enxerga o Estado como ator a ser considerado na


segurança, mas seu foco é no indivíduo. Entretanto, não consegue fechar seu
objeto de estudos em proposições que a destaquem como teoria, constituindo
apenas um grupo de diretrizes políticas que informam o burocrata. Em termos de
relação produtiva com a prática, a Segurança Humana seria bastante útil, mas falta
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a sistematização que a caracterize como uma teoria: Segurança Humana trata de


tudo e de nada, logo sua capacidade de produzir conhecimento relevante é
limitada.

A Escola de Copenhague, por sua vez, permite que encaremos e entendemos


os desafios à segurança como contextualmente referenciados, i.e., variando
conforme o tempo, o momento e o ator estudados além, claro, do tipo de ameaça
que se trabalha. Nesse sentido, ela se adéqua ao programa de pesquisa crítico de
Keith Krause. Com isso, uma proposição teórica pode ser utilizada para se pensar
como as diferentes formas de ameaça – ou violência – atingem diferentes atores
de maneiras diferentes. A relevância política e as relações produtivas entre teoria
e prática estavam restauradas, caso a lógica de Copenhague seja utilizada.

No entanto, esse modelo apresenta restrições, tal como os demais


analisados. Ele acaba limitado a Estados democráticos e desenvolvidos, que
poderiam aceitar o processo de securitização e perceber, intersubjetivamente,
como a ameaça é socialmente construída. Em Estados onde essas condições não
existam, o processo de construção da ameaça é afetado e a violência pode
acontecer, sem que seja denunciada. A violência política calaria a securitização,
mostrando também a inadequação da Escola de Copenhague de trabalhar com esse
problema de forma produtiva.
A literatura de Segurança 121

Acreditamos que o modelo de Copenhague seja aquele que permite, dentre


as contribuições trazidas aqui, extrair relações mais produtivas entre a teoria e a
prática na Segurança desde que se observe alguns aspectos. É possível
operacionalizarmos a violência a partir dos referenciais de ameaça existencial
propostos pela Escola de Copenhague. De forma semelhante, há alternativas
decorrentes de instrumentais analíticos para superar as limitações da teoria de
Estado da Escola de Copenhague, permitindo que enxerguemos sua utilização
como forma de resgatar a relação entre teoria e prática na Segurança.

Resgatamos no próximo capítulo o debate sobre novas guerras para


evidenciar essa carência que recai sobre a Segurança. A forma como a violência
incide nas novas guerras mostra que, para proporcionar contribuições para o
processo decisório e estabelecer uma relação produtiva entre teoria e prática, a
Segurança deve ser capaz de trabalhar a violência como uma estratégia política.
Isso é necessário mesmo que não se tratando de formas convencionais de perceber
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a violência: o uso da força nas novas guerras assume não só a forma de agressão,
da forma mais visível de utilização da violência, como também se apresenta como
inserida nas estruturas da sociedade.

Compreender e oferecer respostas politicamente relevantes se torna


fundamental para a Segurança como disciplina. Para tanto, complementamos no
capítulo cinco as limitações da Escola de Copenhague com os instrumentais
analíticos dos Estudos para a Paz e da macro-securitização.
4
Novas Guerras, Segurança e violência

Apresentamos no capítulo anterior a literatura de Segurança e o tratamento


dispensado por ela a violência. Vimos que a violência foi marginalizada, fazendo
com que a relação produtiva entre teoria e prática fosse desfeita. Isso fez com que
a Segurança deixasse de ser uma área que contribuía com o processo decisório,
quando oferecia um instrumental analítico que produzia um conhecimento
relevante ao burocrata para formular estratégias baseadas no uso da força. Nesse
sentido, a violência como estratégia para atingir fins políticos deixou de ser o foco
da Segurança, que se tornou a área onde as condições que impediam a
sobrevivência passaram a ser debatidas, dificultando a sua relação com a
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formulação de estratégias políticas (Alexander, 1993, p. 140). Com essa


marginalização da violência, temas como as novas guerras passaram a ser sub-
explicados.

Este capítulo tem o objetivo de discutir a questão das novas guerras, de


forma a evidenciar o papel assumido pela violência. As novas guerras se
apresentam como um tema de relevância para as agendas políticas internacionais e
trazem problemas para a paz e a estabilidade internacional. Ao discutirmos seus
elementos e dinâmicas, mostramos que o uso deliberado da força para causar dano
em outrem e, com isso, atingir fins políticos é um aspecto central para sua
compreensão. Este capítulo pretende, também, mostrar que as novas guerras,
como violência organizada, oferecem desafios diferentes aos formuladores de
decisão daqueles impostos pelas guerras tradicionais. Para diferenciar esta forma
de violência organizada das novas guerras, passaremos a nos referir a ela como
“guerra tradicional”, “guerra trinitária” (van Creveld, 1991), em referência à
trindade exército-governo-população clausewitziana, ou, ainda, de “guerra
institucionalizada” (Holsti, 1996).99

99
Em outras oportunidades utilizamos o termo “guerra clausewitziana” para nos referirmos
a essas guerras (Valença, 2006a), mas acreditamos que o fizemos de maneira imprecisa e errônea.
Novas Guerras, Segurança e violência 123

As novas guerras e as dinâmicas de violência que nelas incidem devem ser


estudadas pelos teóricos da Segurança de forma a produzir conhecimento
relevante e útil para os burocratas: “knowledge is relevant (…) if it establishes the
range of possibilities for policy, and if it identifies the consequences of various
courses of action (Lepgold e Nincic, 2001, p. 26). Resgatar a dimensão da
violência na Segurança se mostra importante para oferecer ao burocrata o
instrumental analítico para responder a esses desafios no campo da segurança.

Para expor nosso argumento, apresentamos as guerras tradicionais antes de


discutir as novas guerras. Isso se torna importante porque é estabelecendo os
eixos condutores do fenômeno da guerra que podemos discutir a existência ou não
sua “versão mais nova”. Em outras palavras, ao estabelecermos elementos que
norteiam as guerras tradicionais, podemos definir se as novas guerras são, de fato,
novas.

Ao aceitar o novo como a compreensão de fenômenos sociais a partir de


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outras formas de enxergar a realidade e não apenas e tão simplesmente como um


ineditismo, mostramos que a contribuição política e acadêmica de estudar essas
guerras reside nos impactos que elas promovem nas agendas políticas e nas
dinâmicas sociais. Alinhamo-nos com Alexander George quando este afirma que
quanto mais precisa for a definição de um tema e a demarcação de seus limites
ontológicos, mais bem encaixado ele se apresenta nas agendas políticas. Desta
forma, as respostas oferecidas para os seus desafios poderão, igualmente, ser mais
adequadas àquilo que delas se espera (George, 1993, p. 133).

Para tanto, partimos da definição operacional de guerra como “a violência


organizada promovida pelas unidades políticas entre si” (Bull, 2002, p. 211). Essa
definição é, como discutimos no capítulo dois, bastante precisa para definir um

A utilização do adjetivo “clausewitziano” sugeria, naquele trabalho, a distinção das novas guerras
do modelo definido pelo general prussiano. No entanto, percebemos agora que esta terminologia,
ao contrário de se referir a um modelo diferente de guerra, sugere uma alteração na sua natureza.
Ademais, falar que a guerra não é mais clausewitziana poderia sugerir, por exemplo, a perda do
seu caráter político (Levy, 2007, p. 19-20), o que é diametralmente oposto ao nosso pensamento.
A guerra continua sendo um esforço político, visando submeter outrem à sua vontade, mantendo o
ideal de Clausewitz vivo, mas através de um outro formato. Assim, ao nos referirmos à guerra nos
moldes daquela travada na Europa nos séculos XVII em diante, optamos por usar esses termos.
Marcelo Mello Valença 124

fenômeno social e ampla o suficiente para não se restringir a um momento


histórico determinado.100

O conceito de guerra, quando combinado à definição de violência que


norteia esta tese – o uso deliberado da força buscando fins políticos –, proporciona
os três eixos analíticos que conduzem nosso trabalho. Estes são (i) a
institucionalização do uso da violência, através da forma como a unidade política
se estrutura para fazer a guerra em função de seus objetivos, (ii) o warfare, i.e., a
forma como a violência é operacionalizada, e (iii) as dinâmicas econômicas que
sustentam o empreendimento da guerra.101

Entendido o que tratamos por guerra e os eixos analíticos que a orienta, é


importante entendermos o que significa o adjetivo “novo” que o acompanha:
“novo“, em um primeiro momento, significa algo que não existia antes, em
detrimento a um algo antigo sem implicar, necessariamente, ineditismo. O
“novo” deve ser visto como recente, nunca antes visto ou, ainda, se já existente,
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que pode ser entendido sob uma perspectiva diferente daquela tradicional
(Aurélio, 1999; Michaelis, 20--, sp.; Oxford, 2005, sp.).102

Dessa maneira, ao contrário do que alguns críticos à idéia de novas guerras


colocam (Newman, 2004; Fleming, 2008; Öberg et al, 2009), o fato de não serem
um fenômeno completamente novo – inédito – não significa que o “novo” não
possa ser utilizado para descrevê-las ou, ainda, que tal adjetivo seja erroneamente
colocado para atrair maior atenção da mídia, do público e dos analistas políticos
(Kalyvas, 2001, p. 117-118; Newman, 2004, p. 179 e 186). Para que algo seja
considerado novo, o ineditismo é apenas uma das possibilidades. As novas
guerras têm na sua “novidade” a mudança naqueles três eixos analíticos.

100
O livro editado por Geoffrey Parker sobre a história da guerra começa com uma frase
que pode ser considerada emblemática nesse sentido. Ao afirmar que “every culture develops its
own way of war” (2005, p. 1), Parker deixa claro que a guerra é um fenômeno universal, mas a
maneira como ela é lutada, o formato que ela assume, depende do contexto sócio-cultural
analisado. Argumento semelhante é desenvolvido por John Keegan (1995, p. 41-64).
101
Cabe ressaltar que são esses três eixos que também estruturam a análise de Mary Kaldor
sobre as novas guerras. Para ela, o novo das novas guerras está na mudança nesses eixos, o que
constitui mais uma motivação para usarmos esse referencial.
102
Na mesma linha desta argumentação, Isabelle Duyvesteyn (2004, p. 439), ao discutir
sobre um “novo” terrorismo, afirma que “[a]lternatively, the label ‘new’ can rightly be applied
when it concerns seen-before phenomena but an unknown perspective or interpretation is
developed, such as the theory of relativity or the idea that the earth is round.”
Novas Guerras, Segurança e violência 125

Como a originalidade está fortemente ligada a novidade no campo


acadêmico, muito se busca reduzir o escopo da pesquisa para garantir o seu rigor e
a sua originalidade (Lepgold e Nincic, 2001, p. 15). No entanto, para o burocrata,
uma aproximação demasiada do objeto de estudos acaba por fugir do cenário mais
amplo que caracteriza o processo de tomada de decisões.

Os problemas aqui estudados fugiriam dessa setorização demasiada que


Lepgold e Nincic criticam, mostrando-se abertos à reflexão de qualquer um
disposto a olhar com cuidado para as novas guerras. Nesse caso, e como expomos
nas próximas seções, há aspectos que estão inseridos nas dinâmicas das novas
guerras que já existiam nas guerras tradicionais, mas assumem nova dimensão,
ganhando uma relevância que não possuíam antes graças às novas guerras.103
Esse conhecimento deve ser transmitido ao formulador de decisões.

Deste modo, se no aspecto acadêmico o rigor de um estudo aprofundado


sobre o tema se mostra importante, em termos políticos é preciso que esse estudo
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proporcione instrumental analítico útil para entender as conseqüências das


escolhas e oferecer guias de ação. Ao nos focarmos nos eixos institucionalização-
warfare-financiamento, acreditamos que contribuímos para ambas as esferas

Estudos históricos sobre o fenômeno da guerra podem apontar com precisão


formas de violência, atores ou dinâmicas sociais presentes nas novas guerras que
já existiam antes da década de 1980. Todavia, por não fazermos aqui um trabalho
de História, a “novidade” que buscamos está nos impactos decorrentes de sua
perspectiva política, que trazem reflexões que não eram realizadas
anteriormente.104

Pensar nesses eixos se mostra ainda particularmente importante porque a


literatura que estuda a guerra, via de regra, se volta tão somente para a sua história
(Keegan, 1995; Parker, 2005; Boot, 2006) ou para questões de defesa, sendo que
neste caso o predomínio dos estudos estratégicos é notável (Gray, 1999; Proença

103
Esse reconhecimento é feito pela própria Mary Kaldor, que popularizou o uso do termo a
partir do seu livro New & Old Wars (2001): “the 'new wars' argument does reflect a new reality - a
reality that was emerging before the end of the Cold War” (2005, p. 210).
104
Um apanhado de trabalhos que discutem e analisam a história da guerra que podem ser
tomados como referência por eventuais interessados pelo tema envolvem Keegan (1995), Parker
(2005) e Boot (2006). Kaldor (2001), Newman (2004), Münkler (2005) e Fleming (2007) também
dedicam parte de seus trabalhos a rever o papel e os elementos da guerra na história, ainda que não
tenham esse foco específico.
Marcelo Mello Valença 126

et al, 1999; Baylis et al, 2002; Keegan, 2006).105 A própria Segurança realista
depende do Estado para realizar a sua teoria: o silêncio dos estudos de defesa e de
história da guerra sobre as novas guerras implica o afastamento desse fenômeno
da política, tal como não fosse relevante. Contudo, o Estado tal como descrito
pelos realistas é apenas um cenário, digamos, ideal, nem sempre possível.

Desta forma, enfatizar o caráter político desse tipo de fenômeno de modo a


localizá-lo temporalmente é importante. Guerra não é simplesmente um
fenômeno que deve ser visto pela ótica da história, como algo que ficou marcado
no tempo e hoje serve como fonte de curiosidade e conhecimento para os
acadêmicos. Não deve, tampouco, se reduzir a apenas à dimensão da defesa, de
sobrevivência e execução imediata, sem qualquer tipo de conexão com um
contexto maior e mais amplo. O debate que trazemos aqui busca, assim, resgatar
o papel da guerra e da violência no desenvolvimento de estratégias políticas,
mantendo o tema relevante para a Segurança e – por que não – para as Relações
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Internacionais.

Para tentar solucionar esse problema e oferecer nossa contribuição na


reflexão sobre as (novas) guerras, estruturamos o capítulo em duas partes maiores,
subdivididas em seções que permitem analisar cada aspecto do argumento
detalhadamente. Não pretendemos esgotar as perspectivas trazidas pelas novas
guerras, mas perceber os impactos da violência na esfera social e como isso se
diferencia das guerras tradicionais.

Em 4.1 trabalhamos as guerras tradicionais, individualizando e


contextualizando os três eixos analíticos apontados nesta introdução na subseção
4.1.1. Isso nos permite explorar a institucionalização da guerra e a definição dos
objetivos que motivam o uso da força, além da conduta na guerra durante o
período de formação e consolidação dos Estados e das Relações Internacionais.

105
Essa separação entre história militar e defesa quando se trata do estudo da guerra, quase
como se constituindo dois campos diferentes do conhecimento, evidencia uma dicotomia entre as
áreas civil e militar – John Keegan, no prefácio e na introdução ao seu livro de 1995, relata de
maneira bastante precisa essa separação. Enquanto os primeiros seriam responsáveis por analisar
o fenômeno da guerra e sua repercussão dentro da sociedade, os últimos se voltariam para perceber
como a guerra se adequaria aos desafios encontrados.
Uma boa leitura que trata disso, mostrando como a defesa era competência dos militares e a
contribuição civil se originava na repercussão e análise social dos impactos da guerra é Moran
(2002), em seu estudo sobre a evolução e adequação dos estudos estratégicos ao longo dos últimos
400 anos. No mesmo sentido, cabe a lembrança à obra de Mary Kaldor (1991).
Novas Guerras, Segurança e violência 127

Mais importante, as guerras tradicionais permitiram que o uso da violência para


fins políticos assumisse o caráter racional, identificando-se com a política, mesmo
diante de um nível de destruição maciço que, aos observadores externos, aparenta
ser contra-produtivo. Em 4.1.2 falamos da violência nas guerras tradicionais, da
racionalidade que a motiva e do papel que ela desempenha para o ator político.

Em 4.2 trazemos o debate sobre as novas guerras, expostas a partir dos


mesmos eixos analíticos das guerras tradicionais, para que o aspecto de “novo”
possa ser verificado. O objetivo aqui é fazer a sua contraposição às guerras
tradicionais e preparar o argumento que permitirá resgatar a relação produtiva
entre teoria e prática na Segurança.

Inicialmente apresentamos em 4.2.1 as duas tipologias “maiores” de novas


guerras, convergindo para o formato que trabalharemos nessa tese, inspirado na
obra de Mary Kaldor (2001). A subseção 4.2.2 trabalha os três eixos analíticos
da guerra. Evidenciamos as diferenças e mudanças em relação às guerras
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tradicionais, caracterizando o por que de nos referirmos a esses conflitos como


novas guerras. Em 4.2.3 tratamos a questão da violência, expondo a dimensão e
as dinâmicas que ela assume nas novas guerras. O papel assumido pela violência
na guerra em função dessa mudança é discutido em 4.2.4.

4.1.
As Guerras Tradicionais

Antes de abordarmos as novas guerras e os novos desafios ao formulador de


decisões, é preciso discutir a guerra tradicionalmente entendida. Como apontado
em outras ocasiões (Valença, 2006a, p. 27 e seguintes), a guerra tradicional é um
conflito armado e continuado entre dois ou mais Estados. Ela seria travada por
suas estruturas institucionais formais e claramente distinguíveis – as forças
armadas. Seu objetivo último é fazer com que o outro lado se renda, de maneira a
atingir objetivos politicamente definidos (Keegan, 1995, p. 39; Vasquez, 1993,
p. 26).

A guerra tradicional assumiu importância histórica porque ajudou a


promover e consolidar o modelo de organização do sistema internacional estatal
Marcelo Mello Valença 128

até os dias de hoje (Tilly, 1985, p. 183-184). Ademais, este fenômeno conduziu e
moldou os estudos de Segurança realistas. Sua estrutura decorre do arranjo
político europeu posterior à paz de Westphalia, em 1648,106 que foi estendido até
o final da Guerra Fria. Todavia, não constitui necessariamente um formato
universalmente válido (Holsti, 1996, p. 13-14):107

[t]he Third World of the twentieth century does not greatly resemble Europe of the
sixteenth or seventeenth century. In no simple sense can we read the future of the
Third World countries from the pasts of European countries (Tilly, 1985, p. 169).

Este modelo, prescrito durante o século XIX, corresponde às formas de


beligerância predominantes àquele período, refletindo na formação de políticas e
agendas internacionais desde então. As bases para se pensar em guerra foram
lançadas e as críticas a ela deveriam seguir por essa seara.

A guerra permitiu que o Estado concentrasse o monopólio da violência em


suas mãos, excluindo e deslegitimando outros atores enquanto procedia com a
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pacificação interna (Tilly, 1990): “states made war but wars also made states”
(Parker, 2005, p. 8). Assim, a legitimação da guerra como instrumento de política
internacional era uma manifestação normal da política e do sistema internacional
de Estados, então em formação (Tilly, 1985, p. 184-185). A guerra assume as
características dos atores envolvidos na beligerância: “organized violence should
only be called ‘war’ if it were waged by the state, for the state, and against the
state (...)” (van Creveld, 1991, p. 36).

Neste contexto, os três eixos analíticos se apresentam como indissociáveis.


Ao girar em torno da figura do Estado, política, guerra e economia ocupam uma
dimensão conjunta. A institucionalização da guerra, o seu warfare e o seu
financiamento estão intimamente ligados ao processo de formação dos Estados.

106
Sobre o processo de formação do Estado europeu, ver van Creveld (1999) e, de maneira
mais objetiva, ver Holsti (1996, p. 41 e seguintes). Quanto a maneira como o poder de coerção e
de uso da força foi concentrado nas mãos do Estado, mais especificamente na sua capacidade de
produzir violência, ver Tilly, (1985), Kaldor (2001, p. 13 e seguintes) e Münkler (2005, p. 51 e
seguintes). Ambos os temas são vastos e frutos de diversas obras na literatura de Relações
Internacionais, mas as referências acima apresentadas são bons exemplos da discussão existente na
disciplina.
107
“Bureaucracies, taxation, and armies may be the hallmarks of the modern state but they
are not unique to it as they were also standard structures of historical empires. The novel and
significant aspects of the European state are its fixed territoriality, the concept of citizenship, and
the doctrine of sovereignty” (Holsti, 1999, p. 296).
Novas Guerras, Segurança e violência 129

4.1.1.
Os eixos analíticos aplicados à guerra tradicional

A correlação estreita entre formação do Estado e guerra expressou as


próprias dicotomias estabelecidas pelo Estado como ator político. De uma forma
quase dialética, as condições necessárias para que a guerra fosse empreendida
eram aquelas proporcionadas pela consolidação do Estado. Este, por sua vez,
dependia da guerra para atingir seus interesses.

Mais do que a centralização do poder nas mãos do soberano, o que


proporcionou o sucesso do Estado foi a separação entre o público e o privado (van
Creveld, 1999, p. 127). A distinção entre os interesses do Estado e os do
soberano, assim como do seu tesouro e do tesouro estatal, permitiu que o Estado
assumisse uma racionalidade e complexidade sem antecedentes.

Deste modo, a separação entre o público e o privado deu origem a outras


separações e distinções que, associadas as estruturas organizacionais então em
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desenvolvimento, contribuíram para o fortalecimento do novo ator político. Era


um passo em direção à modernidade e racionalidade que marcariam a política
européia a partir do século XVII (Kaldor, 2001, p. 16-17).

4.1.1.1.
A institucionalização da guerra

A institucionalização do Estado se dava em diferentes áreas, garantindo o


funcionamento daquela máquina complexa. A criação de instâncias política e de
servidores especializados em desempenhar rotinas administrativas proporcionou a
padronização de certos procedimentos relativos à gestão do Estado, de modo a
garantir-lhe a eficiência e também um espírito de conjunto que sustentaria a
unidade estatal (van Creveld, 1999, p. 136). Com a guerra não foi diferente.

O seu empreendimento era por demais custoso. Até o século XVII, os


soberanos dependiam de alianças e acordos com seus vassalos para ter acesso a
homens e armas (van Creveld, 1999, p. 156-160). Outra opção era a contratação
de grupos de mercenários para lutar sob seus estandartes. Mas isso não bastava
para os propósitos do Estado.
Marcelo Mello Valença 130

A política do Estado se baseava em políticas de idéias (Kaldor, 2001, p. 77),


i.e., planos coletivos e universalistas visando o futuro da comunidade política.
As políticas de idéias traziam propostas ideológicas, nacionais ou culturais para
congregar diferentes grupos sob uma mesma bandeira, assegurando a eles uma
continuidade ao longo do tempo. A unidade do Estado não poderia depender da
instabilidade desses grupos mercenários e a incerteza das alianças. O Estado
deveria ser capaz de mobilizar sua própria força.

Graças à institucionalização do Estado e a separação do público e do


privado, a mobilização se tornou possível. Criou-se um sistema de taxação e
tributação que permitiu a acumulação de recursos pelo Estado, formando o
tesouro nacional. Ademais, mudou-se a natureza da pena imposta a infratores da
lei, em um processo de pacificação interna (Kaldor, 2001, p. 10). As penas físicas
deixaram de ser freqüentes e o Estado passou a utilizar penas pecuniárias. Essa
mudança, ao mesmo tempo que legitimava a autoridade do Estado, impulsionava a
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economia estatal. Em conjunto com o apoio financeiro da burguesia em ascensão,


as condições financeiras para empreender a guerra se tornaram possíveis,
marcando o sucesso de um modelo de organização administrativa que se
reproduziria pela Europa.

Com essa organização burocrática, o Estado desenvolvia as condições


financeiras necessárias para manter um corpo armado permanente. O exército se
tornava uma organização formal e hierarquizada conforme se dava a criação dos
regimentos (Keegan, 1995, p. 31; van Creveld, 1999, p. 163-164). O soberano
deixava de ser dependente de forças armadas externas, consolidando sob o seu
poder os elementos e as capacidades materiais para promover a guerra. Os
exércitos carregavam também as bandeiras e os símbolos do Estado, que os
distinguia dos não-combatentes por seus uniformes e brasões (van Creveld, 1991,
p. 36-37; Holsti, 1996, p. 20; Münkler, 2005, p. 15). Não obstante representarem
a capacidade de fazer guerra, os regimentos e os exércitos estacionados
expressavam os agentes que começariam a se tornar exclusivos na beligerância.

A guerra tradicional surge, assim, a partir de um esforço de burocratização


institucional do Estado na tentativa de regular e ordenar o uso da força, tornando-a
mais eficiente. O alto nível de institucionalização da guerra decorre, em grande
parte, da própria adequação dos atores políticos nela envolvidos: os seus
Novas Guerras, Segurança e violência 131

procedimentos e limitações são característicos da própria natureza do Estado que


se consolidava. Isso permite enxergar a guerra como uma estratégia racional de
política voltada para atingir os interesses do Estado no plano internacional.

Desta forma, a institucionalização da guerra pressupunha o monopólio do


uso da violência pelo Estado. Ao formalizar o exército como braço legítimo para
utilização da força em seu nome, o Estado impõe a distinção entre combatentes e
não-combatentes.
Em consonância com o papel exclusivo e excludente do exército na prática
da guerra, o não-combatente saía de cena, fazendo com que a força dirigida contra
essa categoria de atores fosse considerada excessiva e, posteriormente, irregular
(Swinarski, 1991 e 1993): nasciam aí os princípios norteadores do Direito
Internacional Humanitário (“DIH”) que justificava, normativa e legalmente, os
limites impostos pela prática no ato da guerra.108

O Estado, as forças armadas e a população civil – a trindade clausewitziana


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(Clausewitz, 2003, p. 30) – representariam entes distintos legal, política e


estrategicamente, reforçando a estrutura institucional destas guerras e das que a
sucederiam. Enquanto o governo decidiria rumos e diretrizes políticas que
deveriam ser buscadas, a forças armadas seriam o instrumento para o alcance
desses objetivos, aptos a se utilizarem da violência para tais fins. A população,
excluída da prática da guerra tanto no pólo ativo quanto no passivo, participaria
das dinâmicas da violência organizada sem, contudo, ser focada como alvo. Isso
seria possível graças ao esforço de guerra, que fomentaria a economia da guerra.

Esse contexto caracteriza o alto grau de institucionalização da guerra e a


torna indissociável da figura do Estado. A guerra era um instrumento de política

108
Esses princípios seriam as normas do jus in bello, conjunto de regras estabelecidas para
garantir que a violência da guerra não assumisse proporções consideradas desumanas para aqueles
envolvidos na guerra, nem tampouco fosse direcionada para não-combatentes. Tal aparato
jurídico, além de transmitir a noção da importância que o indivíduo assume em uma sociedade
européia claramente influenciada pelo Iluminismo e com ideais retransmitidos para outras partes
do mundo, servia também para assegurar que após a ocorrência da guerra haveria condições para
que o Estado tornasse a realizar as suas atividades ordinárias. Desta forma, há uma preocupação
em limitar a violência da guerra não apenas por conta do DIH e o foco no indivíduo, mas pela
própria razão de Estado, de não sofrer danos que inviabilizem a manutenção de seu papel. Sobre o
tema, Swinarski (1991 e 1993), Mello (2000, p. 1418-1422), Morris e McCoubrey (2002, p. 59-62)
e Quoc Dinh et al (2003, p. 996-1001). A própria visão de guerra de Clausewitz é baseada nessa
concepção que daria origem posteriormente ao DIH.
Marcelo Mello Valença 132

do Estado, uma estratégia à disposição do soberano. Como outros estratégias


políticas, deveria apresentar eficiência e se adequar aos interesses do Estado.

4.1.1.2.
A dinâmica econômica que sustentava as guerras tradicionais

Para servir como estratégia de política, a guerra não deveria constituir em


um ônus demasiado ao Estado. Ela deveria ser sustentada por sua própria
dinâmica, de modo a não comprometer o Estado, seus interesses e sua política de
idéias. A forma como ela era financiada deveria ser capaz de manter a sua
estrutura organizacional e operacional.

Relembramos os processos mencionados que criaram a estrutura necessária


para constituir o exército permanente. Os sistemas de taxação e tributação
proporcionavam ao Estado as condições para a manutenção dos exércitos em
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tempos de paz. Durante as guerras, quando os custos de operação aumentavam, a


economia de guerra se mostrava fundamental para a continuidade desse tipo de
organização. Ela se caracteriza por ser um esforço centralizado com a finalidade
de oferecer as condições materiais e financeiras para que o Estado atinja seus
objetivos. Em função da política de idéias e do projeto coletivo que visava o
futuro dessa comunidade política, a mobilização do esforço coletivo pressupunha
uma hierarquia de interesses que colocava os objetivos do Estado acima de
eventuais interesses individuais e particulares que porventura existissem.109

É esse esforço coletivo que mantinha o exército operante durante a guerra.


Até mesmo em razão da excepcionalidade da guerra, o esforço econômico era
algo temporário. A estratégia de usar a força não era uma condição que se
perpetuava no tempo.

Mesmo se considerarmos a guerra como um ato complexo e formado por


diversos “momentos” que, combinados, proporcionariam a sua continuidade,
havia a previsão de um fim para o emprego da força. Ele cessaria quando os
interesses fossem atingidos. A guerra, ressaltamos, era entendida como um meio

109
Tal centralização de esforços, bem como a hierarquização de interesses que se percebe a
partir da beligerância, indicaria de onde teria decorrido a inspiração das doutrinas de segurança
nacional dos estudos realistas de Segurança.
Novas Guerras, Segurança e violência 133

para atingir os objetivos, não um fim em si mesmo. O mesmo pode ser dito da
economia de guerra.

Assim, a mobilização proporcionada pelo esforço de guerra, se prolongada,


afetaria as outras esferas do Estado, comprometendo a eficiência da estratégia da
guerra. Seu financiamento, portanto, decorreria das estruturas institucionais do
Estado: era a garantia de sua mobilização quando necessário. Mas deveria
produzir os resultados esperados para se justificar política e racionalmente.

A institucionalização do Estado e a racionalidade que esse modelo


organizacional implicava não poderia permitir a perpetuação do estado de guerra.
Essa necessidade de eficiência acabaria por influenciar o seu método de operação,
i.e., o seu warfare.

4.1.1.3.
O warfare das guerras tradicionais
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A forma como a guerra é travada decorre diretamente da institucionalização


que a cerca e dos recursos que permitem a sua execução. A figura do Estado
proporcionava, pois, as condições para a guerra acontecer, mas também impunha
limitações ao modo como ela era desenvolvida.

Como outras estratégias políticas, a guerra estava sujeita a certas regras e


padrões de comportamento (van Creveld, 1991, p. 34; Clausewitz, 2003, p. 27).
Esse nível de institucionalização, com a divisão dos papéis a serem cumpridos por
cada um desses elementos da trindade, decorria de separações estruturais que
evidenciam a distinção explícita

(i) do público e o privado, i.e., entre as atividades do Estado e o que não estaria sob
sua competência; (ii) do interno e o externo, definindo os limites territoriais do
Estado; (iii) do plano econômico e o político, com a coerção física não compondo
as atividades econômicas; (iv) do plano civil e o militar, determinando o que faria
parte da vida social e o que comporia a barbárie; e, finalmente, (v) do possuidor
legal do direito de usar a força, os não-combatentes e os criminosos, delineando as
fronteiras da guerra, da paz e da violência institucionalizada do Estado (Valença,
2006a, p. 29).

Assim, essas separações e distinções que caracterizavam a


institucionalização da guerra demarcavam os limites e fronteiras do warfare das
guerras tradicionais. O impacto direto e mais visível era na determinação do
Marcelo Mello Valença 134

agente legitimado a utilizar a força para fins políticos. Apenas o Estado o era e,
mais especificamente, o seu braço armado, o exército. Pela separação
institucional entre governo-exército-população, apenas o exército se envolveria na
violência, tanto como pólo ativo quanto passivo. A guerra tradicional encontrava
na racionalidade política a sua lógica de operação. Afinal, tratava-se de uma
estratégia política, racional e pautada em regras e padrões de conduta.

As partes envolvidas na violência eram identificáveis por símbolos,


bandeiras e distintivos, que traziam não apenas o lado a que pertenciam, mas
também a sua posição na hierarquia militar.

Throughout the eighteenth (and nineteenth) centuries, the growing separation


between armed forces and society manifested itself by two opposing trends. On the
one hand, armies increasingly took upon themselves tasks which had previously
been contracted out to civilians; such as engineering, supply, administration,
medical, and even spiritual services, all of which were increasily provided by men
who themselves wore uniforms and were subject to military discipline. On the
other, the developing body of international law – the law of nations (...) – tended to
prohibit people who did not wear uniforms from taking part in their rule’s quarrels
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(van Creveld, 1999, p. 164).

Essa concepção de guerra e da estrita separação entre combatentes e não-


combatentes impactava na forma como a violência era utilizada. A conduta na
guerra não permitia sequer considerar emoções como determinantes para a ação,
do soldado ou do Estado. Como a guerra era entendida como uma estratégia
política, sentimentos e revanchismos não eram válidos como motivação para o
emprego da violência – nem por parte do soberano, nem dos soldados. No caso
desses últimos, eles eram adestrados para não questionar as ordens recebidas,
agindo como que por instinto.110 Qualquer atitude que violasse a lógica e os
propósitos da guerra eram atribuídos a forças irregulares, que não saberiam como
se portar adequadamente diante da guerra.111

110
Isso levava a extremos como a proibição de soldados uniformizados de falarem com
não-combatentes. O receio era de que o estreitamento do contato levasse ao desvirtuamento das
qualidades do exército e ocasionasse roubos e violência contra os não-combatentes (van Creveld,
1999, p. 164).
111
Exemplo disso é o relato de John Keegan (1995, p. 24-26) sobre as impressões de
Clausewitz diante do comportamento cossaco na batalha da Rússia. As ações dos cossacos
sugeriam a Clausewitz que estas tribos eram bandidos, não soldados encarregados de participar de
algo grandioso para a sua nação. Se não fosse pela dureza adquirida nos campos de batalha,
Clausewitz afirma ter certeza que seu coração não agüentaria suportar tais imagens. Holsti (1996,
p. 29-30), em argumento que pode ser entendido de forma semelhante, afirma que a intolerância
quanto à prática da violência inconseqüente teria motivações econômicas – o custo de se treinar e
equipar um soldado é por demais elevado para expô-lo sem necessidade, daí o porquê de adestrá-lo
Novas Guerras, Segurança e violência 135

O comportamento exigido era, assim, racional e direcionado aos interesses


do Estado, não havendo o espaço para o enriquecimento ou a satisfação pessoal.
O warfare é estritamente moldado e direcionado pela política e para atingir os fins
por ela estabelecidos. A magnitude do uso da força deveria refletir essa ambição.
A guerra envolvia a busca por interesses vitais, logo a violência deveria retratar tal
essencialidade dos interesses em disputa. A mobilização estatal sustentaria essa
estratégia, na medida em que fosse razoável alcançá-la.

Todavia, apesar desse empenho máximo, refletido na defesa promovida por


Clausewitz de que a guerra deveria ser lutada com todo o empenho e força
necessários, isso não significava o uso indiscriminado da força. A violência
nessas guerras era limitada,112 visando exclusivamente atingir os objetivos
políticos do Estado. A limitação é em relação à força necessária para atingir
determinado objetivo: deve-se usar toda a força disponível, mas apenas o
necessário para o sucesso da estratégia. Excessos, nesse sentido, seriam
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considerados prejudiciais à saúde financeira do Estado. Isso se devia a duas


razões, que acabam complementando uma a outra e se relacionam à
institucionalização da guerra.

O alto custo da guerra era um primeiro fator que afetava e limitava a escolha
pela utilização da força. Não à toa, Clausewitz coloca que a guerra é utilizada
apenas quando há interesses vitais para os Estados em jogo. Mobilizar as forças
armadas para a guerra envolvia um esforço social, que repercutia nas contas
públicas e nas condições enfrentadas pela população durante o esforço de guerra.
Assim, quanto mais eficiente a guerra fosse – consumindo menos recursos e
proporcionando os melhores resultados possíveis –, mais acertada sua utilização
como estratégia política seria.

para agir dentro de certos limites. De toda forma, e seja qual for a explicação, havia a restrição
quanto o tipo de violência que o soldado, representante do Estado, poderia praticar.
112
Devemos deixar claro aqui que, em nenhum momento, sugerimos que a limitação da
violência significa que não haja destruição e/ou uso da força em grandes proporções. A limitação
a qual nos referimos visa evitar que o uso da força se dê em escalas desproporcionais aos objetivos
buscados, i.e., que haja a violação das normas de conduta do jus in bello e das regras de
engajamento dos exércitos. As convenções de Genebra (1864) e Haia (1899 e 1907, além do
Protocolo Adicional n. 1 de 1977) são uma prova disso. Como bem trabalhado por Fleming
(2008), as conseqüências do uso da força nas duas grandes guerras levou à destruição maciça de
cidades e Estados, bem como à morte de centenas de milhares de pessoas, mas havia o fim político
por trás de tal violência: “(...) war without law is not merely a monstrosity, but an impossibility”
(van Creveld, 1991, p. 65).
Marcelo Mello Valença 136

A segunda razão se baseia na própria idéia de racionalidade que sustenta a


institucionalização do Estado e da guerra. A separação entre governo, forças
armadas e população evidencia o papel de cada um para o funcionamento e para a
sobrevivência do Estado. A confusão entre esses membros da trindade
clausewitziana quebraria a lógica do Estado, afetando a capacidade destes
desempenharem seus papéis. A guerra civilizada acontecia na esfera dos exércitos
(Keegan, 1995, p. 25-26), portanto o envolvimento de atores além das forças
armadas regulares era vedado. Desta forma, a limitação da violência não diz
respeito apenas à magnitude do uso da força, mas também aos agentes
envolvidos.113

O DIH limitava e ordenava o uso da força para dirigi-lo de maneira eficiente


aos interesses do Estado. Afinal, falamos de violência organizada e coletivamente
promovida com fundamentos e interesses políticos.

Todavia, afirmar que a guerra é violência organizada não implica aceitar que
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a guerra se restringiria ou se esgotaria no uso da força. A guerra é, acima de tudo,


um ato de política, ou seja, a violência organizada promovida legítima e
exclusivamente pelo Estado tem como pressuposto a finalidade política e a
racionalidade, não meramente a agressão ou a destruição: “war was used to raise
the price that the enemy had to pay for maintaining (political) will, in the hope
that they would be forced to give away” (Münkler, 2005, p. 36). É por isso que a
idéia de guerra como continuação da política por outros meios, apresentada
primeiramente por Clausewitz e inserida posteriormente no discurso das teorias de
Relações Internacionais, é adequada para descrever as ações do Estado.

Por esses termos, a guerra não é a mera prática da violência, mas violência
organizada. A inserção da violência na política estatal faria com que ela
assumisse aspectos legítimos desde que utilizada para atingir objetivos racionais
previamente definidos e que se adequassem a princípios internacionalmente
aceitos (Smith, 2005, p. 33 e seguintes). A escolha racional que nortearia as
decisões da política afastava o caráter e barbarismo geralmente atribuído à

113
Essas limitações não indicam que não haveria excessos na utilização da violência na
guerra. Havia e não eram raros. Contudo, não eram tolerados como parte da guerra, mas efeitos
colaterais das condições às quais os combatentes estavam submetidos (Keegan, 1995, p. 23-26;
Kaldor, 2001, p. 25). A extrapolação dos limites da violência ia alem do escopo da estratégia
política e feria as normas de DIH.
Novas Guerras, Segurança e violência 137

violência (Levy, 2007). O que estava em jogo aqui era a finalidade para qual ela
era utilizada, não a sua magnitude ou a sua atrocidade. O warfare das guerras
tradicionais tem, assim, como característica preservar a estrutura institucional do
Estado no seu relacionamento com seus pares. A violência seria limitada,
mantendo a lógica utilitarista da política – caso fosse do interesse do Estado e
caso as condições assim o permitissem, o uso da força seria possível.

4.1.2.
O papel da violência das guerras tradicionais

A dinâmica da guerra e a utilização da violência como um mecanismo para


atingir os interesses políticos do ator político estatal produziam impactos tanto
para a formação e consolidação do Estado ao longo do tempo, como também para
as Relações Internacionais e para a Segurança como áreas conectadas à prática
política. Encerramos esse estudo das guerras tradicionais com algumas
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considerações sobre o papel da violência, primeiro para o Estado, depois para a


relação entre teoria e prática.

4.1.2.1.
A violência organizada para o Estado

A função da violência e do uso da força nas guerras tradicionais tem como


objetivo proporcionar o alcance de fins políticos. Como colocado por Clausewitz,
o emprego da violência pelo Estado nas guerras visa alcançar interesses vitais
(Clausewitz, 2003, p. 16-18).

Essa violência é diretamente associada à prática política e à própria forma


como os Estados, os atores políticos, se relacionariam. A guerra era uma dentre
diversas estratégias que poderiam ser utilizadas para superar impasses e alcançar
interesses obstaculizados por outros Estados.

Não obstante o nível de destruição que pudesse alcançar, a violência da


guerra estatal assume uma natureza civilizada porque se dirigiria a fins políticos
claros. Ademais, era limitada por normas escritas e costumeiras, regras de
engajamento e pela própria natureza da política. O rótulo de guerra dado ao uso
da força por parte dos Estados dava a legitimidade necessária para certas práticas
Marcelo Mello Valença 138

que não seriam permitidas em outras ocasiões (Keen, 2000, p. 19). A expressão
“razão do Estado” diz muito sobre isso: a guerra era a violência utilizada para
garantir os interesses do Estado e, por conseqüência, de sua população. Mesmo
que às custas de interesses individuais, ela teria – em última instância – propósitos
legítimos – ou legitimados pela prática política.

Neste sentido, e não obstante ser caracterizada a partir de um contexto


histórico determinado, esse modelo de guerra/estratégia política influenciou
documentos e normas internacionais, como a Carta da ONU e outros tantos
acordos internacionais, consolidando o modelo ideal de guerra, regulado pelo
direito internacional e por manuais diplomáticos (Henderson, 2010, p. 218-220).
O termo “guerra” carregava, assim, a conotação de uma violência limitada, até
entendida como civilizada, de certa forma:

[a]s a human institution, war is inevitably an evaluative practice and is equally


inevitably subject, in a certain sense at least, to rules. In this context, it is in war
that both the highs and the lows of human behaviour are most famously manifest,
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most especially the idea of the fusion of the individual and the collective, and the
notion of sacrifice (Rengger e Kennedy-Pipe, 2008, p. 894).

No entanto, ao longo do século XX, a guerra como instrumento político teve


sua legitimidade questionada.114 Por isso era objeto de deliberação e de incidência
de normas, desde as condições para a sua aplicação, sua conduta e seu
encerramento.

4.1.2.2.
A violência organizada para a Segurança

A violência vislumbrada pelos estudos de Segurança e que moldou a origem


do campo, como apontado no capítulo anterior, é regulada e limitada pelos
propósitos políticos do ator que dela se vale para atingir os seus fins. A
caracterização da guerra dentro das estruturas institucionais e das figuras que
seriam aptas a realizá-la permitiria que se separasse a violência organizada –

114
De fato, a ilegitimidade da guerra como instrumento de política foi primeiramente
manifestada no Pacto Kellogg-Briand, de 1928 (MRE, 1928, sp.), ainda que seu não-uso fosse
defendido desde a Carta da Liga das Nações, quase uma década antes (Kissinger, 1994, p. 218-245
e 332-349; Holsti, 1996, p. 4-6).
Novas Guerras, Segurança e violência 139

promovida em nome do Estado – do mero ato de agressão115. Ao fazer isso na


delimitação de seu escopo, os estudos de Segurança vinculariam um problema
empiricamente relevante à teorização necessária para criar leis e padrões de
comportamento universalmente aplicáveis, mantendo um nível de abstração mais
contido e próximo da realidade.

Desenvolvendo o conceito e seu escopo dentro de limites com os quais


necessariamente precisariam lidar (George, 1993, p. xxiv), o tratamento
dispensado à violência organizada pela Segurança adequava seu objeto de
trabalho às demandas políticas, oferecendo respostas operacionalizáveis em
estratégias políticas adequadas aos interesses buscados. Isso caracterizaria a
relação produtiva entre teoria e prática no campo da Segurança.

Ao colocar o uso da força como uma ferramenta do Estado para atingir fins
racionalmente estabelecidos e determinados, o barbarismo inerente ao uso da
força estaria afastado, de maneira que o auxílio dos analistas e acadêmicos seria
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importante para formar diretrizes políticas para serem aplicadas pelos


formuladores de decisão:

[t]hat is, the violence of war is regulated by its political purpose. When the
purpose is to secure a dictated peace, the violence will be high. When the political
objective is something less than a dictated peace, the violence will be
proportionally less. In other words, war is an act of policy, not an act of violence
(Hallet, 1996, p. 86-87).

Por isso podemos falar da relevância política buscada pela Segurança. Ao


conduzir o objeto de estudos do campo – a violência organizada – para a esfera da
política, promovendo-o como parte de diretrizes políticas para atingir os interesses
do Estado, os estudiosos da Segurança conseguem perceber a motivação que se
encontraria por detrás do uso da força (Lepgold e Nincic, 2001, p. 23). Em termos
racionais, o uso da força assume uma dimensão política que justificaria a conexão
entre teoria e prática. Para que esse caráter político se manifestasse, era
necessário que os elementos que caracterizavam a política não apenas estivessem

115
O conceito de agressão foi adotado – ainda que em caráter recomendatório – pela ONU a
partir da resolução n. 3314 (1974) da Assembléia Geral. Em poucas palavras, o artigo 1o da
resolução classifica como agressão “(...) the use of armed force by a State against the sovereignty,
territorial integrity or political independence of another State, or in any other manner inconsistent
with the Charter of the United Nations”. A resolução continua por definir Estados e outros termos
problemáticos, que não cabem ser examinados aqui.
Marcelo Mello Valença 140

presentes no objeto de análise do campo, mas também se adequassem às


demandas dos formuladores de decisão.

A violência seria atrativa porque ajudaria a escapar das armadilhas do


processo decisório interdependente: “[f]orce, unlike other ways of making
decisions, is able to provide such an escape because it is a unilateral means”
(Vasquez, 1993, p. 35, grifo original). A institucionalização política e a separação
entre as esferas doméstica e internacional eram claras, fazendo com que o recurso
à guerra se caracterizasse como um instrumento de política internacional,
enquanto domesticamente haveria outros mecanismos de alocação de disputas que
atenderiam aos interesses (Vasquez, 1993, p. 47).

Com o passar do tempo, entretanto, esse cenário foi se alterando, exigindo


que a Segurança passasse a compreender novos desafios e novas formas de se
encarar esses mecanismos de alocação de disputas. O cenário de tensão militar
entre EUA e URSS se esvaziava, primeiramente com as novas políticas de
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deterrence e, posteriormente, com o aumento da interdependência entre os


Estados, tornando a guerra cada vez mais custosa. As capacidades militares
passavam a não mais importar na importância política de um Estado, dado que
outras formas de interação predominavam nas relações internacionais (Keohane e
Nye, 1977; Keohane e Axelrod, 1993).

Neste contexto, o uso da força pelos e entre os Estados perdia


gradativamente espaço, trazendo uma nova perspectiva de segurança para a
agenda política e acadêmica (Kolodziej, 1992a; Holsti, 1996). Mas a violência
organizada continuava a existir e assumir outras formas de se manifestar. Os
exércitos tradicionais começavam, entretanto, a se mostrarem irrelevantes para a
responder a manifestações de violência, cada vez mais comuns (van Creveld,
1991; Kaldor, 2001; Snow, 2008). Nas palavras de R. Harrison Wagner (2007,
p. x), “[w]ars do not require states; they merely require armies. Armies can exist
without states, and states are among the possible by-products of conflicts among
armies”. O uso da força entre os Estados se tornara menos provável, mas o
mesmo não acontecia junto a outros atores e grupos políticos.

Em suma, o estudo da Segurança pressupõe não só a existência, mas


também a presença do Estado. Por isso não há na história da guerra o espaço para
as novas guerras, já que estas buscam romper com o Estado. As novas guerras
Novas Guerras, Segurança e violência 141

atuam no lócus deixado pelo não-Estado, evidenciando o contexto político que


reclamamos acima, mas em um novo formato. É um cenário novo para a
Segurança, mas esta não consegue – ou não deseja – reconhecê-lo.

Os realistas custavam a entender essa mudança como uma adequação


natural do objeto da Segurança aos desafios contemporâneos; os liberais
enxergavam outros problemas, anteriores ao uso da força, e percebiam outras
questões que não demandavam o uso da força como foco da violência; teóricos
críticos, por sua vez, percebiam a inadequação do Estado moderno europeu e a
necessidade de proteger o indivíduo e outros referenciais de segurança de
ameaças, silenciando certos tipos de violência para destacar outras. O uso da
força assumia, para as teorias de Segurança, outros significados, empurrando para
longe a importância da guerra. A violência foi marginalizada, bem como a
maneira como ela passaria a afetar as agendas internacionais, acreditando que a
ameaça da guerra se extinguira.
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4.2.
As Novas Guerras

Durante a Guerra Fria, a Segurança, ligada aos pressupostos realistas,


enxergava como objeto de estudo as possibilidades e condições que levariam ao
uso, ao controle ou a ameaça de uso da força para atingir os fins buscados pelos
Estados (Walt, 1991, p. 221). Focando-se em um fenômeno específico e bem
delimitado, central para as diretrizes de política externa das principais potências,
as teorias de Segurança montavam a sua área de trabalho e permitiam que a
violência organizada inter-estatal excluísse outros eventos da categoria de objeto
de análise e, portanto, ganhasse cada vez mais relevância. Voltava-se, pois, às
condições que levariam e/ou impediriam que a guerra acontecesse entre Estados,
as unidades políticas por excelência das relações internacionais. Outras formas de
violência que não a de caráter militar e entre Estados eram silenciadas em nome
da coerência intelectual e da capacidade explicativa do campo, bem como da sua
competência para oferecer respostas politicamente úteis e viáveis.
Marcelo Mello Valença 142

Contudo, o fato de excluir a visibilidade desses fenômenos da esfera de


análise da Segurança não significou seu desaparecimento: não houve, apenas, seu
estudo sistemático pela Segurança. Enquanto a Guerra Fria marcava a tensão
ideológica e política entre EUA e URSS, atraindo os holofotes para a
possibilidade de armas nucleares e de uma nova guerra em escala mundial, em
outras regiões do globo a preocupação era outra. Motivados pelo princípio da
auto-determinação, grupos políticos buscavam, desde o final da II Guerra
Mundial, romper com governos ilegítimos e estabelecer um governo novo, que os
representasse (Holsti, 1996, p. 26). A forma como a violência e o uso da força se
apresentavam na periferia não correspondia àquele modelo norte-americano de
estudos de Segurança. Fala-se aqui também no uso deliberado da força para
atingir fins políticos, mas não entre Estados.

Esses conflitos armados, acontecidos principalmente em Estados africanos e


asiáticos, eram travadas entre grupos políticos domésticos contra outros grupos
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semelhantes ou contra a própria instituição do Estado. Abafados pelas disputas


entre as superpotências, tais conflitos armados ficaram em hibernação e somente
com o final da Guerra Fria foram resgatados – ou relembrados – por políticos e
acadêmicos, sendo considerados a forma predominante de uso da força armada
deste então (Kaldor, 2001, p. 1-2; Angstrom, 2005, sp.), tanto em termos
qualitativos, quanto quantitativos (Kolodziej, 1992b; Kritz, 2001; Gleditsch et al,
2002; Wimmer, 2004).

Os Estados deixavam de ser os principais atores – pode-se dizer, inclusive,


que o Estado enfrentaria uma crise que culminaria, eventualmente, na sua ruína
(Kaldor, 2001; Münkler, 2005; Fleming, 2008) –, abrindo espaço para novas
coletividades organizadas na busca de seus objetivos. Ao mesmo tempo, e ainda
tendo como arena o território estatal, estas guerras assumiam a dimensão
internacionalizada que as mantinham na esfera dos estudos de relações
internacionais (Berdal e Malone, 2000, p. 9-11; Ballentine, 2005; Andreas, 2008).
As novas guerras surgem no lócus deixado pelo não-Estado, evidenciando o
cenário político descrito acima: não à toa elas não aparecem nos estudos de
Segurança, sejam eles críticos ou tradicionalistas.

Assim, mais do que pensar em elementos e discursos de etnia e de


diferenças insuperáveis entre os beligerantes, as novas guerras apresentam uma
Novas Guerras, Segurança e violência 143

dinâmica interna diferente, envolvendo aspectos que as tornam peculiares, ainda


que não exatamente inéditas (Kaldor, 2005; Münkler, 2005; Andreas, 2008). Elas
relembrariam as guerras pré-estatais européias, tanto pela dinâmica entre os
beligerantes quanto pelas práticas de manutenção da violência e da busca por
objetivos:

[t]hus, while it is intellectually fashionable to make bold pronouncements


regarding the emergence of ‘new wars’ and ‘postmodern warfare’ in which
irregular forces increasingly eclipse traditional armies, these historical parallels
provoke a strong sense of déjà vu (Andreas, 2008, p. 162).

Tais elementos contribuiriam para o spill-over do conflito armado para


regiões próximas, agravando o cenário de insegurança e instabilidade. As novas
guerras, por mais que achassem sua origem no interior dos Estados, propagavam-
se de tal maneira que passavam a se tornar um problema de ordem internacional,
ao contrário das “antigas” guerras civis, que teriam impacto local, mais restrito.

Indo de encontro às perspectivas tradicionais de encarar a guerras, esses


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novos conflitos armados se assemelhariam a embates não-institucionalizados onde


a separação da trindade clausewitziana – o governo, o exército e a população –
não era mais perceptível (van Creveld, 1991, p. 51). Se na guerra
institucionalizada o uso da violência era compatível e aceitável dentro dos limites
da política, justamente pela presença do Estado e da suposição de racionalidade
decorrente dele, com as novas guerras e a perda de importância estatal, o papel da
violência como instrumento racional de política passa a ser questionado.

Mais do que a sua magnitude ou a ferocidade que a violência assumia nesses


conflitos armados, o que estava em jogo era a legitimidade e, consequentemente, a
civilidade por trás do uso da força. Como os Estados passavam a ter participação
secundária nessas guerras, a violência assumia proporções que levavam a crer na
perda da sua racionalidade: não se achava mais o propósito político que permitiria
que falássemos de violência organizada para um fim, mas sim de práticas
violentas que não poderiam ser explicadas racionalmente. Desde então, a forma
como a guerra passou a ser encarada se modificou, obrigando que o formulador de
políticas desenvolvesse respostas adequadas para solucionar tais problemas.

Entretanto, mesmo com essa aparente barbárie, as novas guerras


continuavam a apresentar elementos que permitiam que elas fossem identificadas
Marcelo Mello Valença 144

como violência organizada. A guerra visava atingir fins políticos, ainda que não
os tradicionalmente entendidos. A violência era representada pelo uso deliberado
da força para atingir fins políticos, ainda que o uso da força não fosse mais
armado, se dirigindo a outras dimensões da sociedade. Os beligerantes se
organizavam em grupos com referenciais identitários que permitiam que fossem
identificados, ainda que isto fosse mais difícil no campo de batalha – que deixou
de ser isolado da sociedade e passou a ser parte integrante da vida social.

4.2.1.
Situando a origem histórica: convergindo as tipologias para um
modelo comum

As novas guerras decorrem de uma nova forma de violência organizada


percebida na segunda metade do século XX e que desafiaria a forma tradicional de
se entender a guerra. Alguns autores apontam que essa nova forma de violência
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organizada representava a mudança na natureza da guerra, que se deu a partir da


quebra da institucionalização característica desse fenômeno social. Do fim da
institucionalização e da separação entre governo, exército e população decorreria
a quebra da politização da violência organizada e, com ela, o barbarismo e o
excesso no uso da força (van Creveld, 1991; Snow, 2008; Öberg et al, 2009). A
perda desses limites afastaria os propósitos políticos da guerra. Outra parte da
literatura trabalha com a hipótese de que não houve mudança na natureza da
guerra, mas na natureza da própria violência. Este grupo de autores enxerga na
mudança dos atores envolvidos e dos objetivos buscados uma nova maneira de se
enxergar a guerra, mas não a mudança da sua essência.

A incidência de elementos como a globalização116, a privatização da força,


identidade e legitimidade, além de recursos naturais afetariam os objetivos a
serem buscados e a maneira como a força é utilizada, mas a escolha racional e a

116
Por globalização entendemos os processos que permitem e/ou acarretam "the widening
and deepening of economic, political, social and cultural interdependence and interconnectedness"
(Berdal, 2003). Esse alargamento e aprofundamento dessas relações acontece de forma mais
intensa, qualitativamente diferente do que acontecia antes da década de 1980 (Kaldor, 2001, p. 3).
Esta é uma definição ampla e aberta a diferentes tipos de criticas, como a desenvolvida por Jan
Scholte em seu artigo de 2002 sobre como o termo assumiu uma dimensão tão ampla que acabou
perdendo o sentido. Reconhecemos o problema em conceituar o termo “globalização” e, portanto,
o utilizaremos de forma meramente instrumental.
Novas Guerras, Segurança e violência 145

lógica política se manteriam (Holsti, 1996; Kaldor, 2001, p. 77-79; Klare, 2002;
Münkler, 2005; Snow, 2008). De todo modo, as respostas não vinham da área da
Segurança, mas de campos correlatos. A Segurança pressupunha a presença do
Estado ou, ao menos, de um espaço político aonde as relações sociais pudessem
acontecer – algo que o “barbarismo” das novas guerras aparentemente afastava.

Em sentido contrário, há toda uma literatura que nega a novidade das novas
guerras, acusando a falta de evidências para uma conceituação precisa do
fenômeno (Jung, 2005, p. 432). Ao colocarem que não há mudança na natureza
da guerra, pois esta continua sendo a ameaça e o uso da violência organizada para
atingir fins políticos, esse grupo reafirma a natureza política da guerra e da sua
violência (Angstrom, 2005, sp.), mesmo que o formato analisado não corresponda
à guerra européia (Keegan, 1995, p. 28; Mares, 2001, p. 6-7; Parker, 2005a). Ao
mesmo tempo, essa suposta mudança na natureza da violência é criticada por uma
falta de perspectiva histórica daqueles que trabalham com o tema (Newman,
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2004), limitando a compreensão de que muitas das inovações trazidas pelas novas
guerras já estavam presentes desde o século XVII (Kalyvas, 2001; Berdal, 2003).
Dessa maneira, de novas as novas guerras nada teriam, consistindo apenas em
releituras de fenômenos já existentes sob uma ótica contemporânea (Fleming,
2008; Öberg et al, 2009).

Discordamos dessas críticas. As novas guerras podem não oferecer


inovações quanto à prática da violência ou aos alvos, mas representam um
fenômeno crescente e que desafia a Segurança, questionando as políticas
internacionais de prevenção e transformação de conflitos (Hamann, 2007, p. 242-
243). Ademais, colocam em xeque a própria concepção de racionalidade e
relevância política que cercam as agendas internacionais. A guerra é um
instrumento e está subordinada à política: encarar a política como estatal é
enxergar a guerra como ligada ao Estado, como o faz aqueles que trabalham com
a idéia tradicional de guerra (Angstrom, 2005, sp.). Ao evidenciarmos que outros
atores podem usar racionalmente a guerra, percebemos novas ameaças que pairam
sobre esses atores e sobre a sua segurança, trazendo-os para a esfera política e
mostrando a importância de se estudá-los.

Toda guerra difere de outras em face dos atores envolvidos, objetivos


buscados, causas que motivaram a beligerância, entre outras razões (Garnett,
Marcelo Mello Valença 146

2002; Cashman e Robinson, 2007), mas não é essa a questão que torna novas as
novas guerras. Estas apresentam peculiaridades em suas dinâmicas que permitem
que percebamos elementos, sociopolíticos econômicos, que são contextuais a elas
e que as colocam como objetos de agendas políticas, não só pela sua ocorrência
propriamente dita, mas pelos impactos por elas produzidos.

Baseados nessa leitura das peculiaridades das novas guerras e da maneira


como elas surgem no cenário internacional, podemos dividir a literatura em duas
correntes, grosso modo (Keen, 1998, p. 9-10; Öberg et al, 2009, p. 509). A
primeira defende a mudança na guerra a partir do final da II Guerra Mundial (van
Creveld, 1991; Holsti, 1996). A segunda corrente identifica no final da Guerra
Fria o elemento catalisador para a mudança na compreensão da guerra (Holsti,
1999; Kaldor, 2001, p. 1-2; Münkler, 2005, p. 3; Snow, 2008). Ainda que
partindo de momentos e condições distintas de aparecimento, essas duas
tendências convergiriam na explicação da dinâmica do conflito armado.
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4.2.1.1.
As novas guerras do pós-II Guerra Mundial

Aqueles que defendem o final da II Guerra Mundial como ponto de inflexão


para o estudo das novas guerras apontam que essa mudança decorre,
principalmente, dos movimentos de libertação baseados no princípio da
autodeterminação dos povos. Estes buscavam a ruptura com um governo
considerado ilegítimo e o estabelecimento de uma nova forma de governança,
além de um ordenamento eficiente para os interesses dos beligerantes. As
manifestações por independência, principalmente nos continentes africano e
asiático, conduziam a uma nova forma de conflito armado que não se adequava
nos moldes inter-estatais que predominaram no século XIX e naquela primeira
metade do século XX. Acontecendo na periferia, elas não eram enxergadas pela
Segurança realista.

Kalevi Holsti (1996, p. 21) entende estes conflitos como frutos dos
enfrentamentos entre grupos políticos domésticos em função da fragilidade estatal
e do questionamento de sua autoridade sobre aquela comunidade, agravada pelo
aumento no número de Estados desde 1945. As suas comunidades questionavam
Novas Guerras, Segurança e violência 147

o governo sob a alegação de ilegitimidade. A beligerância se dava contra a


autoridade do Estado ou contra outros grupos privados armados, quebrando a
distinção entre civis, soldados e participantes externos. A estrutura trinitária
desaparece e o uso da força é dirigido contra grupos políticos rivais, tentando
restabelecer a autoridade estatal usurpada pelo governo, considerado ilegítimo. A
esse fenômeno Holsti chama de guerras de terceiro tipo, i.e., guerras internas com
o objetivo de politizar as massas.

Diante da ilegitimidade do Estado, Martin van Creveld (1991) percebe a


ruptura da trindade clausewitziana, abrindo espaço para outros atores no jogo
político que, de certo modo, obtêm posição de maior destaque através de ações
análogas ao uso da força militar. A esses conflitos armados ele referir-se-ia como
“conflitos de baixa intensidade” ou “guerras em pequena escala” (1991, p. 20-21 e
207). Estas seriam conflitos armados que utilizam armas de pouca capacidade de
destruição individual que aconteceriam em partes não-desenvolvidas do mundo e
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envolveriam uma variedade de atores, como rebeldes, soldados e civis. Conforme


o Estado é questionado durante os processos de descolonização, maior é a
incidência dessas formas de guerra. O caráter político se manteria com o uso da
violência para atingir os interesses dos envolvidos e com a contestação da
autoridade estatal.

A mudança percebida na guerra se devia, para estes autores, aos Estados que
nasciam da (re-)organização do sistema internacional em dois blocos ideológicos
e viam sua legitimidade institucional sob dúvidas desde a sua gênese. Tal arranjo
se tornaria um problema, visto que suas fronteiras, ao contrário do que acontecera
na Europa alguns séculos antes, não representavam a idéia de comunidade (Gurr e
Harff, 1994; Holsti, 1996; Agnew, 2000). Problemas já existentes nessas regiões
eram agravados pela convivência forçada entre diferentes grupos, muitas vezes
adversários históricos, fazendo com que a instabilidade fosse a tônica nesses
Estados. Essa instabilidade geraria disputas, apoiadas por uma superpotência ou
pela outra, até que um grupo predominasse (Dannreuther, 2007, p. 126-128). A
ilegitimidade e a incerteza sobre o futuro político do Estado resultariam em
conflitos endêmicos. Um futuro de anarquia esperaria esses Estados, refletindo no
cenário de guerra civil constante (Kaplan, 1994). O resultado dessa turbulência
Marcelo Mello Valença 148

política seria a fraqueza institucional desses Estados que, instáveis, se tornariam


um risco para o sistema internacional.

4.2.1.2.
As novas guerras do pós-Guerra Fria

Já aqueles que situam o surgimento das novas guerras no pós-Guerra Fria,


se por um lado também identificam problemas de ordem estatal, especialmente
diante da insuficiência da prestação de serviços políticos à sua população e da
ilegitimidade política, por outro atribuem aos processos de globalização e aos
avanços tecnológicos grande importância na prática da guerra. A tecnologia e a
globalização estreitariam os laços entre grupos que compartilhassem ideais
semelhantes, levando a um descolamento das fronteiras estatais na busca por
valores e objetivos, internacionalizando pleitos até então domésticos e/ou locais.
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O cenário de (proto-)anarquia interna e da confusão entre os envolvidos e os


não-envolvidos na prática da violência criava um ambiente propício para a
depredação do Estado e à busca por interesses de forma predatória. Essa dinâmica
atuaria tal como uma força centrípeta, mantendo o estado de beligerância.
Diferentemente das “novas guerras pós-1945”, as novas guerras surgidas ao final
da Guerra Fria tinham como objetivo a manutenção de uma ordem paralela,
estranha à estatal, que beneficiasse os beligerantes (Andreas, 2008). Aqui não se
fala em projetos para o futuro visando a consolidação do Estado, mas de formas
alternativas de organização política e de sobrevivência, física e econômica. As
novas guerras, ao contrário das guerras tradicionais, não formariam uma unidade
política, mas objetivavam a sua ruptura.

Mary Kaldor (2001) vê as novas guerras como afetadas diretamente pelos


processos de globalização surgidos a partir da década de 1980, que repercutiriam
na guerra através da alteração dos seus objetivos, do warfare e das formas de
relação econômica. A principal revolução militar dessas guerras é a revolução nas
relações sociais da guerra. Mais do que o mero reconhecimento de ilegitimidade
política, as novas guerras envolveriam choques entre identidades políticas
anteriores à estatal, que romperiam o processo de homogeneização nacional,
impedindo e sabotando qualquer projeto coletivo visando o futuro. A violência se
Novas Guerras, Segurança e violência 149

basearia em políticas de identidade que visavam a eliminação da diferença e do


diferente, mas que permitiam a manutenção de laços utilitaristas de cooperação,
mesmo entre rivais. O embate entre essas identidades políticas implicaria a busca
por controle político e não mais o enfrentamento visando a vitória militar e o
transbordamento das identidades. Estas não mais seriam apenas locais e
nacionais, mas globais e transnacionais, motivadas e mobilizadas por avanços
tecnológicos.

Herfried Münkler (2005) também enxerga a globalização como tendo


grande importância nas agendas das novas guerras, mas se afasta da questão
identitária para estudar os elementos econômicos que as cercam. Para ele, a
globalização às escondidas117 incentivaria a violência por parte dos grupos
políticos, rompendo com o monopólio do Estado na medida em que a privatização
da violência tornaria a guerra economicamente rentável novamente. Dessa forma,
a manutenção da beligerância, ao mesmo tempo em que evidenciaria o
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comportamento predatório contra o Estado, garantiria positivamente a perpetuação


das condições sociais e econômicas dos grupos envolvidos. O problema aqui não
são as identidades, mas a mercantilização da violência, que geraria uma nova
assimetria entre as partes (Münkler, 2005, p. 30-31): “war can be a continuation of
business by clandestine means” (Andreas, 2008, p. 15).

O conceito de guerras de quarta geração foi apresentado por William Lind,


em 1989, que afirmava que as guerras no futuro seriam diferentes das anteriores
por se basearem no declínio do Estado (Fleming, 2008, p. 216). Este tipo de
guerra seria parte de um processo histórico que marcou a guerra nos últimos
séculos e que a manteria atrelada às dinâmicas sociais nas quais estava inserida:118
através do uso de recursos políticos, econômicos, sociais e militares, as guerras de
quarta geração se inseririam no contexto da globalização. Combatentes e não-
combatentes são tratados de forma indistinta nestas guerras, assim como o espaço
da violência também não se mostraria diferente das zonas de paz (Snow, 2008,

117
No inglês, em original, shadow globalization (Münkler, 2005, p. 9-10).
118
As guerras de primeira geração seriam as decorrentes da Paz de Westphalia, quando
houve o monopólio do Estado da violência organizada. A organização da guerra era
essencialmente militar e a separação institucional explícita – era a trindade de Clausewitz. A
segunda geração da guerra foi marcada pela I Guerra Mundial e comportava um grande nível de
destruição decorrente de bombardeios e ataques de infantaria. A terceira geração da guerra era um
produto da I Guerra Mundial, mas se baseava mais em velocidade do que no atrito, buscando
destruir o inimigo de maneira rápida (Fleming, 2008, p. 216).
Marcelo Mello Valença 150

p. 304), retornando ao modelo de violência percebido antes da existência do


Estado, mas se valendo de todos os recursos que essa organização política
ofereceria aos beligerantes (Bassiouni, 2008). A vitória militar foi deixada para
segundo plano, fazendo com que o conflito armado se prolongasse por décadas:
“[t]hese immediate agendas (...) may significantly prolong civil war (...)” (Keen,
2000, p. 25). O objetivo, semelhante às descrições das novas guerras de Kaldor e
Münkler, se dirigiria à ruptura da organização política do Estado oponente.

Donald Snow apresenta ainda um novo formato de violência surgida a partir


da década de 1990, mas com características localizadas na Guerra Fria, a qual ele
chama de novas guerras internas (Snow, 2008, p. 311 e seguintes). As novas
guerras internas teriam propósitos egoísticos, que não se voltavam para a
comunidade política, mas para os grupos envolvidos no conflito e seus próprios
interesses. Elas apresentariam confusão no tratamento dispensado a civis e
combatentes, bem como se dirigiriam à estrutura política, mas a selvageria que
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decorreria da violência praticada na guerra as difeririam das guerras de quarta


geração: o objetivo é destruir o Estado. Ao separar dois tipos de guerra cujos
objetivos se aproximariam, Snow reforça o argumento, já exposto, de que a
violência organizada entre Estados é aceitável e limitada, enquanto atos de
violência fora da esfera estadocêntrica são bárbaros e destrutivos.

4.2.1.3.
Em busca de uma síntese: uma convergência conceitual

Mesmo partindo de referenciais históricos diferentes, essas duas correntes


convergem ao apontar elementos em comum, como o problema do Estado como
ator político legítimo ou, ao menos, capaz de exercer o monopólio do uso da força
de maneira coerente e a confusão entre combatentes e não-combatentes.
Independentemente da origem das novas guerras residir em manifestações pela
autodeterminação de povos ou decorrer da homogeneização forçada pelo
estreitamento dos processos de globalização, podemos afirmar que a maneira
como os beligerantes se comportam e como a dinâmica do warfare se desenvolve
se aproximam de um referencial comum.
Novas Guerras, Segurança e violência 151

Diante das definições trazidas pela literatura, defendemos um diálogo entre


esses “blocos” de autores para uma melhor compreensão deste fenômeno. As
novas guerras devem ser entendidas como conflitos armados não-
institucionalizados de natureza intra-estatal e de longa duração que envolvem uma
miríade de unidades políticas, especialmente não-estatais, em ambos os pólos da
violência, cujo objetivo específico não é militar, mas envolveria aspectos
econômicos e políticos. Dentre suas causas estão o questionamento das
características do Estado, desenvolvendo uma cultura onde o recurso à violência
faz com que guerra e paz se sobreponham, confundido-se.

As partes envolvidas seriam grupos, privados ou não, organizados através


de critérios étnicos, políticos, culturais, ou qualquer outro laço que os
identifique.119 A quebra dos padrões tradicionais de violência permitiriam seu uso
instrumental, conforme o interesse a ser atingido, podendo envolver o uso da força
armada, da coerção econômica e de elementos sociais para atingir fins políticos: o
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adversário seria criado a partir de rótulos e de discursos políticos. Em razão disto,


as novas guerras ultrapassariam as fronteiras estatais, trazendo novos grupos para
o conflito armado, motivados pela identificação com os beligerantes.

O acesso a armamentos, a cooptação de indivíduos diante da natureza


predatória da guerra e a dependência de financiamento externo para manutenção
da violência são aspectos que ajudam as novas guerras a se manterem ativas: “(...)
this would appear to be a predatory political formation that requires permanent, or
at least intermittent, conflict” (Keen, 2000, p. 34) Estes aspectos são facilitados e
influenciados pelo fim da bipolaridade característica da Guerra Fria,120 além da
intensificação dos processos de globalização.

119
Deve-se ficar claro que ao falarmos de qualquer outro laço que identifique esses grupos
não estamos nos referindo, necessariamente, a questões de identidade, mas de reconhecimento de
formas de organização que podem unir indivíduos em torno de um objetivo comum. Não é nosso
objetivo problematizar como as identidades são formadas ou alteradas, mas apenas indicar a
possibilidade de agrupamentos a partir do reconhecimento da semelhança e da diferença. Mais
uma vez ressaltamos que não é nosso objetivo trabalhar como as identidades são criadas e
desenvolvidas. Quando falamos de identidades e rótulos identitários legitimando os discursos de
poder, não nos referimos exclusivamente a elementos de natureza cultural ou étnica; as identidades
que unem os grupos podem ser também de caráter ideológico, representatividade política ou
qualquer outra forma de conexão entre indivíduos e grupos, que os permita se enxergar como
buscando os mesmos valores e ideais (Holsti, 1996).
120
Mesmo aqueles que enxergam a mudança da guerra teria acontecido no pós-1945
entendem que o fim da Guerra Fria diminuiu os incentivos para o controle da violência intra-
estatal, permitindo que tensões antes contidas pelas superpotências – além do controle sobre o
Marcelo Mello Valença 152

Essa conceitualização das novas guerras não nos afasta da definição de Bull,
que explicamos orientar nosso trabalho. Por ser essa definição compatível com
vários momentos, teorias e cenários políticos, buscamos, através da convergência
entre essas duas perspectivas, aproximar referenciais diferentes sobre o que seriam
as novas guerras. Isso permite que compreendamos melhor os eixos de análise
apontados, adequando-os ao contexto político das novas guerras.

Depois de oferecer uma definição que recebesse contribuições de diversas


partes da literatura sobre novas guerras, apresentamos agora nossa leitura sobre as
peculiaridades que cercam as novas guerras para explicitar a carência da literatura
de Segurança acerca da questão da violência. Utilizamos como linha condutora o
trabalho de Kaldor (2001), complementando-o e aprofundando-o com a
contribuição de outros autores, especialmente a reflexão sobre o papel
economicista da violência trazido por David Keen. Com isso, podemos entender
melhor quais os desafios colocados à Segurança e ao que essas teorias devem
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responder para se tornarem aptas a estabelecer uma relação produtiva entre teoria
e prática.

4.2.2.
Os eixos analíticos da guerra nas novas guerras: mudanças nas
dinâmicas

A ruptura da bipolaridade característica da Guerra Fria é apontada como o


ponto nevrálgico para a mudança na compreensão da guerra (Kaldor, 2001, p. 83;
Münkler, 2005, p. 5-8; Fleming, 2008), permitindo o questionamento da figura
estatal, que se torna mera referência espacial. Esse questionamento promoveu um
cenário de instabilidade e ruptura que se repetia em diferentes locais do globo.

O controle exercido pelas superpotências sobre suas áreas de influência, que


durante quase quarenta anos mitigou a probabilidade de guerras e conflitos
armados acontecerem, deixou de ser exercido. Havia agora “carta branca” não só
para manifestações por autonomia e independência, mas também para
movimentos autoritários que buscavam centralizar o poder nas mãos de uma elite:

estoque de armas e equipamento bélico de seus aliados – escalassem para grandes proporções sem
a vigilância que até então existia (Öberg et al, 2009, p. 511), tal como em um vácuo de segurança
(Singer, 2001, p. 193-195).
Novas Guerras, Segurança e violência 153

[t]he end of the Cold War, by boosting pro-democracy movements and reducing
outside support for abusive regimes, has increased the pressure on unrepresentative
governments, making them more likely to resort to violence (Keen, 1998, p. 36).

A convergência conceitual que apresentamos na seção 4.1.2.3 nos permite


pensar as novas guerras a partir de elementos que as distinguiriam das guerras
tradicionais,121 especialmente se considerarmos esse cenário encontrado no pós-
Guerra Fria. Um aspecto em especial marcaria a mudança na natureza da
violência nas novas guerras: o papel social que o uso da força assume nas
sociedades afetadas pelas guerras, quase como uma função economicista. Esse
papel evidencia que a violência deixa de ser um recurso de política do Estado para
se tornar um elemento da interação inter- e intra-grupos, não apenas ressaltando
novas dinâmicas decorrentes do uso da força, mas também marcando a mudança
nas relações sociais.

Para entender a mudança do papel social da violência, retomamos os três


eixos analíticos que expusemos anteriormente. Eles serão resgatados a partir de
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(i) os seus objetivos, evidenciados pela quebra da institucionalização da guerra,


(ii) o método através do qual as guerras são lutadas, com a instrumentalização de
práticas de inclusão e exclusão através das políticas de identidade, e (iii) a
economia que sustentaria esses conflitos armados.

121
Cada autor, até mesmo em função da sua tipologia e da definição que oferece de novas
guerras, assume alguns aspectos como mais importantes em detrimento de outros. Mary Kaldor
(2001, p. 6) define as novas guerras a partir de três elementos, que são os objetivos, os métodos de
fazer a guerra e o seu financiamento. Collin Fleming (2008, p. 215) refina os elementos de Kaldor
transformando-os em aspectos mais abstratos, respectivamente os motivos, os métodos e a
estrutura da guerra. De forma semelhante, Öberg et al (2009, p. 510) também apostam em três
elementos, mas são mais precisos quanto à localização das mudanças no contexto internacional e
nos fenômenos políticos e sociais que decorreriam dessa inserção. Os autores apontam uma maior
atenção às identidades na política (os objetivos de Kaldor) e ressaltaria a influência e os impactos
dos processos de globalização nos conflitos armados, especialmente no papel do Estado e nas
relações econômicas (englobando o financiamento e o método do warfare). Ademais, colocariam
a atenção no fim da bipolaridade internacional, que permitiria uma maior “liberdade” para a
prática da violência intra-estatal. Münkler, finalmente, ao dar maior importância aos impactos
econômicos promovidos pela globalização, enxerga na privatização da força militar as condições
que permitiriam uma nova assimetria de poder, permitindo que formas “alternativas” de praticar a
violência surjam. Podemos perceber nessa preocupação em tipificar e categorizar os aspectos que
diferenciam as novas guerras das guerras tradicionais uma constante remição aos conceitos de
Kaldor, o que justifica nosso foco na sua definição para trabalhar a idéia de novas guerras.
Marcelo Mello Valença 154

4.2.2.1.
A Quebra da Institucionalização e a Mudança nos Objetivos

Uma das principais características apontadas pelos autores que trabalham


com as novas guerras é a mudança nos seus objetivos e como isso impacta na
estrutura do Estado. Essa característica acaba por influenciar, também, as duas
outras que serão trabalhadas neste capítulo, i.e., o warfare e o financiamento desse
tipo de conflito armado.

Diferentemente das guerras tradicionais, que se focavam em um objetivo no


futuro e de caráter universalista e agregador, as novas guerras não apresentam o
caráter de state building que marcou a guerra nos séculos XVII e seguintes. Sua
dinâmica leva à um comportamento predatório que é estimulado pelos
beligerantes, que enxergam na política da guerra benefícios maiores do que
aqueles encontrados na política normal, nos tempos de paz. A busca por um
espaço homogêneo e particularista – traduzidos na figura das políticas de
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identidade, a serem exploradas na próxima subseção – faz com que a política de


idéias das guerras tradicionais seja abandonada frente a motivações imediatistas e
egoístas, particulares a um grupo e/ou identidade.

Deste modo, o que se percebe é a ruptura do monopólio do uso da força do


Estado e a privatização dos meios de fazer guerra nas mãos de grupos políticos
não-estatais, afetando os objetivos e as vias utilizadas para atingi-los. Fugir da
estrutura estatal rígida que marcou o fenômeno da guerra é uma dessas vias.

A busca por poder através do uso deliberado da força continuava a ser ainda
o fim último a ser alcançado, mas não da maneira como o era nas guerras
tradicionais. O Estado e seu aparato organizacional, ao perderem importância
diante das manifestações culturais e sociais que se tornam cada vez mais comuns
neste final de século XX, deixam de representar os valores e as culturas que os
grupos políticos domésticos carregam. Podemos falar em uma crise de identidade
onde elementos abstratos, como as nacionalidades, não mais representam a forma
de organização das coletividades, que recorreriam a valores e lembranças
pretéritas para buscar um senso de união. Contudo, esses valores muitas vezes são
se opunham aos valores ou às representações de outras coletividades que
conviveriam no mesmo espaço.
Novas Guerras, Segurança e violência 155

De maneira a garantir seu espaço político, i.e., alcançar as suas demandas de


poder em detrimento a outros grupos, era necessário questioná-los diante de
elementos que fugiriam das formas tradicionalmente defendidas e representadas
pela figura do Estado. A própria noção da política de idéias, de valores que são
construídos visando o futuro, deixou de ser uma possibilidade porque a
politização dos grupos exige respostas imediatas. O uso da força surge como
solução imediata para os problemas enfrentados, desafiando a ordem estabelecida
ao mesmo tempo que produziria alternativas para que as demandas por poder
fossem alcançadas.

A quebra do monopólio do uso da força do Estado é, portanto, um aspecto


bastante evidente de um processo gradual de quebra da institucionalização da
guerra e, por conseguinte, da própria figura do Estado como parte ativa nesses
conflitos armados. Essa ruptura na estrutura da guerra se intensificava graças aos
processos de globalização, que estreitam as assimetrias entre as esferas doméstica
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e internacional e entre os espectros público e privado, confundindo-os (van


Creveld, 1991; Holsti, 1999; Kaldor, 2001, p. 90-111). No cenário das guerras
trinitárias, os Estados são vistos como os principais atores, atuando na esfera
internacional para defender seus interesses, território e população contra um
adversário semelhante valendo-se dos seus exércitos, preservando a figura dos
não-combatentes e de uma rotina social distinta da guerra. Contudo, nas novas
guerras, tal separação não existia, promovendo a confusão entre esses atores e
práticas. E, conforme já apontado, a fuga para um espaço político no não-Estado
faria com que o tema das novas guerras escapasse da atenção da Segurança.

Neste sentido, percebe-se a crescente confusão entre o governo, o exército e


a população (van Creveld, 1991, p. 51), elementos que caracterizam a própria
constituição do Estado.122 Os papéis desempenhados na guerra perderiam,
gradualmente, sua clareza e distinção que marcou a guerra e suas regras por tanto
tempo:

122
Cabe ressaltar que essa separação entre combatentes e não-combatentes é o que sustenta
as normas do jus in bello, caracterizando a guerra tradicional como uma manifestação de violência
organizada racional e civilizada. Esses três elementos que formam a tríade clausewitziana
encontram reflexo em estudos de ciências sociais, mais particularmente no que diz respeito à
Teoria Geral do Estado (“TGE”). A TGE aponta como elementos constituintes do Estado a sua
população, o seu território, soberania e finalidade (Dallari, 1989), que poderiam ser traduzidas ou
comparadas ao povo, exército e governo; a finalidade, por outro lado, representaria a ordem e à
segurança que o Estado deveria garantir à sua população.
Marcelo Mello Valença 156

[t]he clear distinction between the state, the armed forces, and the society that is the
hallmark of institutionalized war dissolves in “people’s war”. (...) [J]ust as
civilian/soldier distinction disappears, the role of outsiders becomes fuzzy. The
laws of neutrality no longer apply because those who are militarily weak rely on
outsiders for arms, logistical support and sanctuary (Holsti, 1996, p. 37).

Diferentemente das guerras institucionalizadas, onde os combatentes dos


dois lados podiam ser identificados através de suas insígnias e vestimentas, as
novas guerras são travadas por lados organizados de maneira informal, muitas
vezes nem mesmo hierarquicamente (van Creveld, 1991; Holsti, 1999; Münkler,
2005). Isso se deve a multiplicidade de atores envolvidos nesse fenômeno,
combinando agentes públicos e privados, de esferas estatais e não-estatais, locais e
internacionais, como em um retorno ao medievalismo (Keen e Berdal, 1997;
Holsti, 1999; Münkler, 2005). “The changing competence of the nation-state is
reflected in the shift from hierarchical patterns of government to the wider and
more polyarchial networks, contracts, and partnerships of governance” (Duffield,
2000, p. 71). Os processos de globalização agravariam essa ruptura por
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possibilitarem que os valores e objetivos defendidos nas novas guerras fossem


espalhados para outras regiões, atraindo indivíduos e grupos que compartilham
tais conexões, contribuindo para a quebra de qualquer arranjo que tente ordenar
formalmente essas guerras.123

Os grupos políticos que participariam das novas guerras não teriam mais o
aspecto ou a referência estatal que marcava as guerras trinitárias. Como a
lealdade ao Estado era questionada, sua organização se dava a partir de grupos
menores, a partir de critérios econômicos ou políticos, que reproduziriam uma
cadeia de comando assemelhada a estatal, mas sem trazer os aspectos formais das
guerras trinitárias. Esses grupos privados poderiam ter ou não conexões com a
autoridade estatal, mas atuariam de forma a atingir os seus interesses
independentemente de conexões e/ou alianças verticais. Por mais distinta que
fosse a organização entre os grupos ou os referenciais culturais que carregassem,

123
Sobre o tema, vale apontar o trabalho de Olivier Roy (2004, p. 313-314), que discute
como os valores religiosos foram capazes de atrair guerreiros muçulmanos para a guerra da
Bósnia-Herzegovina, durante a década de 1990, para lutar ao lado dos seus irmãos de fé. Ainda
que não partilhassem dos mesmos pressupostos políticos, a propagação do valor religioso bastava
para os identificar como aliados. Vale também mencionar o documentário de Bill Carter, Miss
Sarajevo, quando o diretor entrevista diversos civis/soldados envolvidos na guerra, que colocam a
sua motivação para lutar e a maneira como superaram adversidades por não possuírem treinamento
formal.
Novas Guerras, Segurança e violência 157

haveria – até mesmo em função dos impactos dos processos de globalização sobre
esses atores – características parecidas entre eles, que permitiriam que fossem
vistos como semelhantes no estudo das novas guerras.

Os símbolos que os identificariam, por exemplo, seriam uma dessas


características. Tradicionalmente, as partes beligerantes utilizam vestimentas e
portam símbolos e estandartes que os distingue dos seus inimigos de maneira que,
em batalha ou fora dela, fosse possível apontar facilmente a qual lado os soldados
pertenciam.

Contudo, nas novas guerras, esses símbolos distintivos não mais existem. A
quebra na institucionalização dos grupos beligerantes e a crescente confusão entre
guerra e paz124 fazia com que não houvesse um traje específico para a guerra. Isso
significaria o uso de roupas civis, esportivas e até mesmo militares por membros
de um mesmo grupo, mas sem qualquer tipo de padronização. Por não se tratarem
de grupos formais, o uniforme dos soldados seria qualquer tipo de vestimenta que
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evidenciasse seu status ou posição social, bem como objetos que afirmassem sua
capacidade de adquirir bens graças ao uso da força.

Peter Andreas (2008, p. 29) relata que os Lobos, membros da gangue


lideradas por Juka durante a guerra da Bósnia-Herzegovina, utilizavam bermudas,
casacos de marca, óculos escuros e tênis de basquete. Franklin Foer mostrava-se
surpreso com a relação que o grupo mantinha com símbolos da moda, como trajes
esportivos da Adidas, correntes de ouro e tênis de couro branco, lembrando as
roupas usadas por rappers norte-americanos que apareciam em programas de
televisão (Foer, 2004, p. 19). Outros tantos utilizavam o símbolo do clube de
futebol para qual torciam em suas roupas durante a guerra, indicando com isso a
causa que defendiam (Kuper, 2006, p. 278).

A construção do inimigo estaria prejudicada, não sendo este mais


identificável a partir dos elementos tradicionais, como símbolos distintivos,
estandartes ou uniformes. Com isso, o inimigo seria todo e qualquer indivíduo

124
Essa confusão poderia, inclusive, expor que entre guerra e paz poderia não haver
antagonismo, dado que a política e a forma de relacionamento social desenvolvidas tanto em
tempos de paz quanto de guerra seriam motivados e estimulados de maneira semelhante incluindo,
mas não se limitando a, a cooperação entre adversários e rivais, novas formas de
institucionalização da violência diferentes da estatal e a obtenção de lucros através do
estabelecimento da ordem (Keen, 1998, p. 11).
Marcelo Mello Valença 158

que representasse a diferença, seja essa diferença cultural, ideológica ou política,


ou que impedisse ou obstaculizasse o alcance dos objetivos buscados. Justamente
por não ser mais possível reconhecê-lo como combatente, mas como um
empecilho aos interesses, a prática da violência nas novas guerras sugeriria um
aspecto de barbarismo, diferentemente das guerras tradicionais.

Como a prática da violência se tornara um fato ordinário, não era de se


estranhar que a própria vestimenta utilizada se adequasse a essa “casualidade”. E
ao não reconhecer o inimigo como combatente, a sua desumanização se torna
possível, impulsionando atos de violência por indivíduos ou grupos que
normalmente não o fariam, mas que, por se tratar de algo diferente e
discursivamente construído como inferior, diminuiria a sensação de culpa (Kuper,
2003). Tão comum era a violência nas sociedades que passavam por essas novas
guerras que Philip Gourevitch (1998) aponta que durante o genocídio em Ruanda,
por exemplo, era comum membros da etnia hutu saírem para matar tutsis dizendo
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que iam para o trabalho, sem maiores constrangimentos. Observadores externos


sentir-se-iam impotentes para distinguir um lado do outro, pois os padrões
tradicionais de se analisar a guerra deixariam de ser aplicáveis, visto que uma
miríade de atores, grupos e posturas – que antes não existiam – agora se tornariam
freqüentes nas novas guerras.

Essa presença maciça de “corpos estranhos à institucionalização da guerra”,


dariam às novas guerras uma imagem de “esforço popular” (Holsti, 1996, p. 39),
atraindo indivíduos e grupos motivados pela imagem da violência ou pelo ideal
buscado pelos beligerantes. Não apenas soldados regulares se envolveriam nos
conflitos armados, mas

a disparate range of different types of groups such as paramilitary units, local


warlords, criminal gangs, police forces, mercenary groups and also regular armies
including breakaway units of regular armies. In organizational terms, they are
highly decentralized and they operate through a mixture of confrontation and
cooperation even when on opposing sides (Kaldor, 2001, p. 8).

Isso incluía a utilização maciça de crianças e adolescentes nessas guerras, por


serem mais baratos e destemidos que adultos125 (Kaplan, 1994; Münkler, 2005):

125
Herfried Münkler (2005, p. 18) aponta que o uso de crianças nessas guerras se deve
também ao tipo de armamento utilizado, leve e pequeno, que facilitaria que esses pequenos
soldados participassem da violência. São os avanços tecnológicos difundidos pelos processos de
Novas Guerras, Segurança e violência 159

[a]rmies are rag-tag groups frequently made up of teenagers paid in drugs, or not
paid at all. In the absence of authority and discipline, but quite in keeping with the
interests of the warlords, ‘soldiers’ discover opportunities for private enterprises of
their own (Holsti, 1999, p. 344).

Graças a essa ruptura institucional e da gradual erosão do Estado, bem como


do fim das diferenças entre o particular e o privado, do interno e do externo, do
militar e do civil (Kaldor, 2001, p. 20), a separação entre paz e guerra ficou mais
difícil de ser apontada, fazendo com que estes dois momentos se sobrepusessem
como elementos ordinários do cotidiano. Os atos de guerra se confundiriam com
posturas criminosas, tornando ordinária a violência individual e a infração da
ordem institucionalizada. A confusão entre guerra, crime e violação dos direitos
humanos tornaria os limites que os separavam bastante tênues (Kaldor, 2001, p. 5;
Jung, 2005; M. Smith, 2005): “[t]he line between warfare and criminal activity
may be neither clear nor rigid” (Keen, 1998, p. 52). Isso aconteceria porque a
violência organizada promovida entre as unidades políticas tornar-se-ia bastante
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semelhante à violência exercida por grupos privados, geralmente confundida com


a criminalidade, fazendo com que a separação entre o internacional e o doméstico
e entre o público e o privado fosse praticamente nulificada.

Além desses aspectos que diferenciariam as novas guerras das guerras


trinitárias, a quebra na institucionalização evidenciava uma maior importância
conferida às identidades coletivas dos grupos. O principal impacto das
identidades pode ser percebido na informalização da guerra e a perda da distinção
imediata entre os adversários, temas tratados nas páginas anteriores.
Independentemente da maneira como são construídas,126 as identidades são

globalização contribuindo para as novas guerras. Mas, acima de tudo, “the role of young man in
violence cannot be properly understood without looking at economic factors such as
unemployment” (Keen, 1998, p. 45).
126
A questão da identidade é um aspecto controvertido nas Relações Internacionais,
dividindo autores e correntes teóricas sobre como essas se constituem, se relacionam com outras e
sobre como podemos entender a sua formação. No tocante à instrumentalização das identidades
no estudo dos conflitos étnicos e das novas guerras, podemos dividir as correntes que trabalham
com o tema em três grandes grupos. O primeiro, formado pelos primordialistas, afirma que as
identidades étnicas remontam a um passado distante e que se mantém imutáveis ou, ao menos,
pouco maleáveis, fazendo com que as interações entre etnias diferentes levantassem aspectos de
um determinismo constante. A segunda corrente é a dos instrumentalistas, que afirma que as
identidades são adequadas e moldadas conforme os interesses das elites dominantes, enfatizam
determinados aspectos em detrimento de outros, de forma a levantar certas questões e garantir
mobilizações. Finalmente a terceira corrente, dos construtivistas, pode ser encarada como uma via
média entre as duas primeiras. Os construtivistas defendem que as identidades podem ser
instrumentalizadas para atingir os fins desejados pelas elites, mas é necessário que haja uma
Marcelo Mello Valença 160

instrumentalizadas nas novas guerras através de elementos referidos como


políticas de identidade, i.e., demandas por poder baseadas em rótulos e
representações que são opostas aos rótulos e representações de outros grupos e
que fazem referência a valores e princípios temporalmente situados em um
período anterior à formação do Estado (Kaldor, 2001, p. 76).

As políticas de identidade assumem caráter exclusivo e excludente,


rejeitando a diferença e promovendo a fragmentação da unidade social até então
existente através da criação de grupos herméticos e antagônicos que impediriam
um projeto coletivo visando o futuro, tal como se propunha o Estado. Destarte,
não há propostas de caráter universalista na lógica das políticas de identidade, i.e.,
não há a tolerância para com a diferença para a formação de diretrizes políticas,
impedindo a constituição de um ator político coletivo – o Estado – e promovendo
o colapso de qualquer entidade que tente sustentar esse caráter inclusivo.127 Não à
toa podemos falar que “[t]he new identity politics arise out of the disintegration or
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erosion of modern state structure, especially centralized, authoritarian states”


(Kaldor, 2001, p. 78).

Essas políticas de identidade evidenciam a mudança nos objetivos das novas


guerras. A disputa por poder se manteria através do uso da força, como nas
guerras tradicionais, mas teria como fins últimos questões de governança,
identidades políticas pré-estatais e seu status na sociedade:

[t]he political goals of the new wars are about claim to power on the basis of
seemingly traditional identities – nation, tribe, religion. Yet the upsurge in the
politics of particularistic identities cannot be understood in traditional terms
(Kaldor, 2001, p. 69).

Os interesses e objetivos políticos buscados através da guerra se


diferenciavam daqueles tradicionalmente procurados. O foco agora era sobre
reconhecimento da autonomia dos grupos e o papel das comunidades dentro dos
Estados (Holsti, 1996, p. 20-21). A finalidade da violência ainda era política, não
mais centrada na figura do Estado, mas em uma forma de garantir a sobrevivência

origem anterior dessas identidades para que essas possam ser manipuladas e instrumentalizadas.
Sobre o tema, Brown (2001).
127
Como já tratado anteriormente, as políticas de identidade devem ser entendidas como
práticas de exclusão daqueles que não pertencem ao grupo, gerando clivagens sociais e fraturando
a unidade política estatal e societal.
Novas Guerras, Segurança e violência 161

no cenário de aparente anarquia doméstica. As guerras eram por pessoas, não por
interesses estatais abstratamente definidos (Holsti, 1996, p. 39).

Vislumbrar a identidade nacional como única e que se sobreporia às


identidades particulares seria, portanto, ameaçador para a preservação dos valores
dos grupos políticos, dando origem aos conflitos armados. De forma mais
simples, as novas guerras são um esforço para evitar a perda da identidade diante
da violência culturalmente homogeneizante destes Estados. Elas evidenciam a
necessidade de romper com as estruturas estatais até então existentes.128 Todavia,
a ênfase no papel das identidades pode mascarar outros aspectos das novas
guerras que afetam a capacidade da Segurança de explicar a violência de maneira
produtiva (Keen, 1998 e 2000; Münkler, 2005; Andreas, 2008).129 Há um aspecto
material que se vale das conseqüências das políticas de identidade para promover
a violência contra o diferente, rompendo sistematicamente com as práticas e
restrições existentes nas guerras tradicionais e impulsionando o colaboracionismo
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entre inimigos e práticas econômicas que levariam à sobrevivência no cenário de


guerra (Keen, 1998 e 2000; Kaldor, 2001, p. 102-106; Andreas, 2008).

Grupos outrora rivais ou antagônicos, como criminosos e autoridades


legitimamente constituídas, trabalham juntos para efetivamente usar a força contra
outros grupos políticos, em uma aliança inexplicável em épocas de paz (Keen,
2000, p. 35; Andreas, 2008, p. 29). A possibilidade – ou, melhor, a capacidade –
de usar a violência para alcançar a sobrevivência pode ser utilizada como
elemento de barganha entre grupos rivais para que ambos se apóiem mutuamente
às escondidas, ainda que abertamente se declarem rivais:130 “(...) the image of war

128
Uma boa discussão sobre os processos de padronização cultural coercitiva na formação
de Estados e/ou comunidades pode ser encontrada em Heather Rae (2002), sob o sugestivo rótulo
de “homogeneização patológica”. A autora, apesar de não discutir o problema das novas guerras,
proporciona boa base para a reflexão sobre os mecanismos que os Estados e elites possuem para
impor padrões “civilizatórios” ou aceitáveis, inclusive se pensarmos que existe uma lógica de
funcionamento para essas práticas de exclusão. As elites, ao construírem os Estados ou as
diretrizes políticas a serem seguidas, pressupõem a necessidade de um corpo político homogêneo
para garantir a legitimidade do exercício de poder e a unidade entre governantes e governados. A
abordagem de Rae tem o mérito de explicitar esses mecanismos de dominação, assim como a
importância que estas ações, em determinados cenários, tiveram para a consolidação do Estado
moderno.
129
“In the emergence of new wars, none of the several causes may be singled out as the
really decisive one, and so the various monocausal approaches (...) fall short of the mark”
(Münkler, 2005, p. 7-8).
130
Eric Berman (2000, p. 19 apud Valença, 2006a) faz piada de grupamentos militares da
Guiné que perdiam sucessivamente seu equipamento durante patrulhas em Serra Leoa: “[e]ither
Marcelo Mello Valença 162

as a contest has sometimes come to serve as a smokescreen for the emergence of a


wartime political economy from which rebels and even the government (...) may
be benefiting” (Keen, 2000, p. 27). O antagonismo entre as partes adquire
significado por meio da insegurança, do medo de inimigos históricos, perpetuado
pelo discurso propagado por e entre os grupos e dependendo da quebra dos
mecanismos de controle estatal para se reproduzirem pela sociedade – como será
visto à frente, quando da discussão sobre o financiamento das novas guerras.

Em síntese, a instrumentalização das políticas de identidade conduz à


desestatização da guerra, com a evidente perda da capacidade do Estado de ser o
detentor do monopólio do uso da força. Grupos privados – milícias, grupos
paramilitares, mercenários e warlords – tornam-se protagonistas dessas guerras e
lucram a partir do uso organizado da força (Wagner, 2007, p. xi). Do
relacionamento entre os adversários perceber-se-ia o estabelecimento de relações
simbiônticas (Collier, 2007; Andreas, 2008), que ajudariam a ambos os lados se
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sustentarem e manterem seus discursos políticos operantes.

Para que as identidades se manifestassem torna-se necessário que a


diferença seja apontada e percebida, de maneira a criar valores diferentes e
antagônicos. Destarte, com a identidade opositora presente e contraposta como
ameaça, o sucesso do discurso motivador das políticas de identidade seria maior,
evitando que este caísse no vazio, tornando-se redundante e vão. A violência que
decorreria daí serviria de alimento para as novas guerras, sustentando o warfare,
objeto de estudo da próxima subseção, e demandando por uma alteração na
maneira como aquelas são alimentadas.

4.2.2.2.
O warfare das novas guerras

O segundo elemento distintivo das novas guerras em relação às guerras


tradicionais seria a maneira como o conflito armado é travado, i.e., a forma como
o seu warfare opera. A forma de lutar nas novas guerras fugiria do modelo onde
os combates diretos são travados entre exércitos de lados diferentes, de maneira a

the Guineans were really, really stupid or some kind of a deal had been made. The unofficial
consensus is that, while the former cannot be ruled out, the likelihood is that someone was paid
off”.
Novas Guerras, Segurança e violência 163

derrotar e/ou se impor sobre o adversário através de seu poder e capacidade


militares, para assumir aspectos de uma guerra de atrito, onde os lados desgastam
o oponente até que acontecesse a exaustão de recursos e pessoal enquanto
buscariam extrair benefícios dessa dinâmica.

Poder-se-ia perceber duas características marcantes no warfare: estas são o


poder de, ao mesmo tempo, promover a atração e a repulsa através do uso
deliberado da força. Isso se torna possível graças às políticas de identidade que
marcariam e guiariam as novas guerras.

No primeiro caso, a capacidade de atração seria alcançada pela adoção de


mecanismos semelhantes aos utilizados nas guerras revolucionárias do século XX
– que se valiam da estratégia de guerrilha – onde o objetivo mais importante era o
controle do território através do apoio da população da região onde o confronto
ocorria, não assumir o seu controle de facto, através da vitória sobre as forças
inimigas (Kaldor, 2001, p. 97). Pela própria ruptura de padrões de
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institucionalização, a organização dos grupos beligerantes em forças militares


formais se torna mais difícil e, por isso, evitariam valer-se da força da maneira
tradicional. Nesta lógica, os enfrentamentos diretos seriam raros, caracterizando
um esforço onde a vitória não consistiria ou se apresentaria como a derrota militar
do outro lado, mas sim a incapacidade de impedir que o adversário conquiste
“corações e mentes” na região em disputa, de maneira que seus próprios valores e
suas políticas de identidade predominem.

Alcançar tal feito corroboraria os objetivos buscados pelas novas guerras,


levando ao sucesso a conquista de poder político. Ao atingir tais objetivos, estes
grupos poderiam operar livremente na região, através da adesão de novos
membros para a sua causa e também de simpatizantes que tornassem a sua atuação
possível, espalhando os valores e ideais propagados pelas políticas de identidade,
acirrando as práticas de exclusão características dessas políticas.

O efeito de repulsão aconteceria por meio da adoção de estratégias de


contra-insurgência, visando impelir aqueles que não partilhassem dos valores e
idéias defendidos pelos grupos para fora da área de influência daquele grupo. Da
mesma maneira como as práticas de guerrilha descritas no parágrafo anterior, a
repulsão não viria do confronto direto entre forças militarizadas, mas da inserção
de práticas de exclusão no ambiente social, de forma que o uso da força se
Marcelo Mello Valença 164

tornasse parte do cotidiano e criasse condições insustentáveis para parcelas da


população. A finalidade aqui é intimidar eventuais simpatizantes que pudessem
por em risco ou obstaculizar os objetivos daquele grupo, criando condições que
impedissem a lealdade àqueles que não compartilhassem dos valores do grupo
dominante. Por meio da instrumentalização das políticas de identidade, esses
valores se associariam à pleitos e demandas por identidade, fazendo com que o
antagonismo entre diferentes se exacerbasse.

A combinação entre as táticas de guerrilha revolucionária e contra-


insurgência teria, assim, duas finalidades últimas, pertinentes a cada uma das
características supracitadas: angariar apoio para os grupos políticos e expelir a
diferença para longe, refletindo o controle político e territorial. Em suma, o uso
da força nas novas guerras buscaria criar condições desfavoráveis à diferença,
extirpando-a, e não necessariamente criar um ambiente favorável para a
reprodução dos seus valores (Kaldor, 2001, p. 98). A homogeneização era o
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resultado a ser buscado, logo o principal método de controle territorial não


consistiria em obter o apoio popular, mas a expulsão do rival.

A lógica de atração e repulsa que as estratégias de guerrilha e contra-


insurgência carregariam se basearia em laços políticos, através de uma idéia,
imbuída de valores políticos, que pudesse reforçar ou evidenciar a conexão da
identidade dos combatentes e da população sintetizadas, em última instância,
pelas políticas de identidade. Estas suprimiriam a ausência do Estado – daí a sua
não-compreensão ou não-adequação ao pensamento da Segurança – e permitiriam
que os grupos políticos assumissem a lealdade e impusessem o temor àqueles não-
envolvidos diretamente nos conflitos. A ameaça que recai sobre o adversário deve
se mostrar constante e inevitável, de forma a acirrar as divisões sociais existentes
– ou desejadas. Para isso, o uso da força se mostra bastante eficiente, não apenas
empregado diretamente, contra alvos específicos, mas principalmente sob a forma
de constrangimentos sociais, sem que agente e objeto sejam claramente
delineados, causando efeitos mais duradouros ao serem incorporados nas
estruturas sociais.

Como em toda guerra, o ato de causar dano físico ao inimigo é parte


importante da estratégia a ser desenvolvida e, portanto, assume aspectos racionais
por se dirigir ao fim buscado pelos agentes. Diante da facilidade de acesso a
Novas Guerras, Segurança e violência 165

armamentos, os custos para equipar um grupo não são altos, especialmente se


comparados aos da guerra trinitária, que envolve o confronto com inimigos
equipados e alvos bem protegidos. Para manter esse custo baixo, procura-se
utilizar formas mais simples e eficientes de usar a força, sem grandes revoluções
ou aparatos tecnológicos (Münkler, 2005).131 As novas guerras prezariam pela
simplicidade, de modo que a força fosse utilizada da maneira mais efetiva possível
para atingir os fins desejados. Ademais, a própria ausência de soldados treinados
– e das condições para fazê-lo – impeliriam à utilização de armas simples, de
baixa complexidade e custos de manutenção reduzidos. A ruptura da
institucionalização imporia às novas guerras a necessidade de buscar vias práticas
para suprir suas próprias demandas logísticas o que, frequentemente, faz com que
se viole as normas do direito na guerra que caracterizariam a guerra como uma
atividade racional, ainda que violenta.132

Juntamente à facilidade de acesso a armamentos e equipamentos bélicos, há


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uma gama de indivíduos dispostos a – ou disponíveis para –fazer parte da guerra.


Os soldados, geralmente homens jovens – crianças inclusive –, são atraídos ou
cooptados para a violência pela falta de perspectivas para o futuro, a escassez de
oportunidades econômicas ou pela própria motivação de fugir da violência (Keen,
1998; Kaldor, 2001, p. 93-95; Münkler, 2005):

[m]any ordinary people participate in violence because they are forced to do so, but
some may deliberately embrace it for specific, short-term purposes. The line
between coercion and voluntary recruitment may be difficult to draw, particularly
when attacks on civilians are widespread (Keen, 1998, p. 45).

A captação desses combatentes se dá por meios diversos, muitas vezes


incidentais: no caso do recrutamento forçado, há relatos de indivíduos recrutados
compulsoriamente em bares e nas ruas das cidades, como no caso da ex-

131
Parker (2005) e Boot (2006) oferecem bons trabalhos que analisam a evolução
tecnológica da guerra ao longo da história, mostrando como tecnologia e a prática da guerra
sempre andaram lado a lado. Esses livros oferecem um excelente contraponto à simplicidade na
prática da violência nas novas guerras.
132
Àqueles que alegam que a mudança na natureza da violência nas novas guerras traz o
barbarismo – algo semelhante à colocação de Clausewitz sobre o comportamento dos cossacos
(ver nota 113) –, David Keen (2000, p. 26) rebate que o véu de tolerância que as práticas das
guerras tradicionais sugerem em nada seriam aquilo que aspiram ser: “[i]f contemporary wars have
been widely labeled as mindless, mad, and senseless, in some ways nineteenth- and twentieth-
century Western notions of war may be closer to madness. When war is seen as an occasion for
risking death in the name of the nation state and with little prospect of financial gain, it may take
months of brainwashing and ritual humiliation to convince new recruits of the notion. A war
where one avoids battles, picks on unarmed civilians, and makes money may make more sense”.
Marcelo Mello Valença 166

Iugoslávia (Andreas, 2008), bem como crianças abduzidas em suas vilas por
grupos rebeldes na região subsaariana da África (Kaplan, 1994) ou através da
preparação ideológica (Münkler, 2005). A opção voluntária pela guerra também
se apresenta com bastante freqüência e aconteceria a partir da criação de uma
imagem idealizada de poder decorrente das possibilidades imaginadas do uso da
força ou do desejo de enriquecimento ou, ainda, como uma tentativa de fugir da
violência indiscriminada dessas guerras. Tamanha informalidade e
desprendimento se devem ao fato de que as novas guerras, até mesmo pelas suas
próprias dinâmicas e pela irrelevância de exércitos tradicionais, não se valem mais
de soldados exaustivamente treinados como outrora.

Percebe-se que a violência praticada possui, sim, uma dimensão que busca o
dano deliberado ao adversário – como o assassinato sistemático de membros de
grupos diferentes, a instalação de armadilhas e traquitanas (Kaldor, 2001, p. 99-
100), bem como a utilização crescente da violência sexual –, caracterizando o uso
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da força como forma alcançar objetivos, mas a violência não se esgotava, nem
tampouco se baseava exclusivamente nesse modelo.

A combinação da estratégia de guerrilha e de contra-insurgência das novas


guerras levaria, em última instância, à tentativa de homogeneizar a área de
atuação desses grupos. Torna-se importante estabelecer condições que
impossibilitem ou, ao menos, tornem a presença de membros de outros grupos
mais difícil, tal como pregado pelas políticas de identidade. Práticas de
depredação da região, valendo-se de mecanismos físicos, econômicos ou
psicológicos, se tornam comuns, alterando a forma como a violência nas novas
guerras. O que se procura aqui é criar condições que perturbem a presença do
outro, tirando qualquer referencial que o faça considerar aquela região como sua.
Outras formas de eliminar o adversário são incluídas no repertório dos
beligerantes incluindo, mas não se limitando a, a criação de constrangimentos
culturais e/ou psicológicos que tornariam a presença em determinadas áreas algo
doloroso e por demais custoso.

As novas guerras traziam elementos que refletiam a mudança na forma de


manifestação da violência (Kaldor, 2001, p. 99-100): além da violência promovida
diretamente contra o adversário, visando causar dano deliberado nele – aspecto
que constitui a manifestação de uso da força mais característico nas guerras –, as
Novas Guerras, Segurança e violência 167

novas guerras trariam consigo uma violência invisível, sem agente ou objeto
claramente especificados, visando a todos aqueles que se enquadrarem em
determinado rótulo, sem maiores preocupações em definir quem ou o que seria o
alvo da violência. As novas guerras popularizariam uma forma de violência que
se origina nas estruturas sociopolíticas e se dirigiria à sociedade como instrumento
da beligerância, de modo a se tornar mais uma das opções da guerra. É, portanto,
o uso deliberado da força para causar danos e atingir fins políticos inserida na
estrutura social e que nos referiremos como violência estrutural.133

Com isso, se as guerras tradicionais prescreviam – ou pressupunham – o uso


da força militarizada, direta, contra elementos que simbolizassem as instituições
políticas do Estado, o warfare das novas guerras, por sua vez, dirige a violência
contra a população e os elementos que marcam o ordenamento social. É a
instrumentalização dessa violência estrutural através de práticas que oprimiriam
indivíduos e grupos através do uso deliberado da força sem, contudo, apontar um
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agente que promova tal uso da força, nem tampouco um objeto específico a qual
essa violência é dirigida.

A inserção de elementos que caracterizariam a violência estrutural,


especialmente baseados nas políticas de identidade e das práticas de exclusão que
decorreriam delas, a diluiria no ambiente social, pondo em risco a obtenção de
condições mínimas para a sobrevivência. A popularização do uso da força seria
notada não apenas nos instrumentos que promoveriam o uso deliberado da força
física, mas também na própria criação de uma cultura de violência e de
intolerância, impedindo a convivência com a diferença e incorporando as práticas
de exclusão nos procedimentos políticos “normais”, que se auto-reproduziriam
conforme fossem absorvidos pela sociedade.

[S]tates have increasingly resorted to violence that is effectively self-financing,


while stepping up efforts to disguise their responsibility for human-rights abuse. A
common technique has been to incite ethnic strife by recruiting supporters and
fighters along ethnic lines and sponsoring the formation of ethnic militias. This
conflict, which is easiest to generate in countries with a history of ethnic violence

133
Devemos ter cuidado ao nos referirmos a essa violência que surge nas estruturas sociais
e se torna um instrumento da guerra. Isso se deve a dois motivos. O primeiro é que toda violência
assume uma dimensão social, na medida que não é possível enxergar a sua manifestação fora de
uma relação entre atores políticos, seja como for que os definamos. Ademais, esta idéia se
aproxima do conceito de violência estrutural de Johan Galtung, que oferece uma distinção entre a
violência estrutural e a violência direta (ou pessoal). Tratamos dessas distinções no capítulo
seguinte
Marcelo Mello Valença 168

and where ethnicity cuts across class lines, is then used to mask or explain human-
rights abuse (Keen, 1998, p. 23).

Diante da crescente divulgação de imagens e notícias graças ao


desenvolvimento de tecnologias de comunicação e interação social – evidenciando
os impactos dos processos de globalização nas novas guerras –, a perpetração de
atos de violência em qualquer lugar do mundo assume grande magnitude,
tornando públicas certas manifestações de violência. Contudo, ao se inserir a
violência camuflada sob estruturas políticas, poder-se-ia confundir o uso da força
com mecanismos institucionais de determinadas culturas e regiões.

É incorporada ao warfare das novas guerras a utilização de mecanismos de


controle extraordinários para tolher os direitos e liberdades de partes da
população, constrangendo-a e colocando-a sob uma pressão semelhante à de um
cenário de guerra – sem, contudo, declarar tal estado, caracterizando a incidência
de formas de violência estrutural. O uso da força torna-se parte da vida política,
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i.e., vincula-se às práticas políticas que norteiam aquela comunidade e, portanto,


adquirem um véu de legitimidade que pode colocar em risco a própria percepção
de que há a prática de atos de violência deliberada naquela sociedade.

Although conflict with opposition forces may threaten undemocratic regimes, it


can also have its uses. It provides an opportunity to reward supporters, and can
help to legitimise authoritarian or military rule. Conflict may be used to stifle
political opposition by declaring and prolonging states of emergency that grant
special powers to repressive governments or to the military, and through
restrictions on freedom of speech justified as part of a 'war effort' (Keen, 1998,
p. 37).

Outras estratégias e mecanismos que se enquadrariam na violência


estrutural, assumindo a forma de ações não-violentas e, portanto, mais fáceis de
serem legitimadas, seriam, por exemplo, a destruição de marcos culturais,
religiosos ou étnicos (Kaldor, 2001, p. 99-100) e o controle do mercado e da
circulação de bens e indivíduos (Münkler, 2005; Andreas, 2008). No primeiro
caso, a violação de símbolos de um grupo ajudariam a transmitir a mensagem de
que aqueles indivíduos não eram mais bem-vindos ou aceitos na região, bem
como perpetuar as imagens da destruição de valores na memória daquela
comunidade (Montgomery, 2008). Isto faria com que os grupos cuja cultura e/ou
valores fossem afetados por esses atos se tornassem vítimas dessa violência
intangível, que não levantaria suspeitas ou atenção como o aconteceria com atos
Novas Guerras, Segurança e violência 169

de violência direta.134 Com isso, o processo de conquista de corações e mentes


seria posto em prática e, quando conjugado com o uso da força para intensificar
esse processo, promoveria o deslocamento populacional em razão da violência e
conflitos armados, iniciando a homogeneização da região.135

O controle da circulação de indivíduos e bens, por sua vez, poderia ser


justificado como constituindo políticas de governo, servindo para afastar ou
marginalizar segmentos da sociedade dentro de práticas que, mais uma vez,
obscureceriam o uso da força através de mecanismos institucionalizados. O
objetivo final é proporcionar condições insuperáveis e insuportáveis que
obrigariam o deslocamento dos grupos atingidos, propiciando o controle político
do território aos grupos que promovem a violência. Porém, o principal impacto
que esses mecanismos de restrição de liberdades civis e de negação de
oportunidade econômica promovem se dirige à tentativa individual ou coletiva de
superar as limitações que o estado de guerra impunham, impactando no
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financiamento do conflito e na própria perpetuação da violência como mecanismo


de relacionamento social.

O warfare das novas guerras, diferentemente de empregar o uso da força de


maneira centralizada para encerrar o conflito armado, voltar-se-ia para prolongar

134
Exemplo desse ofuscamento é a declaração de Frank Foer (2004, p. 17) quando de sua
entrevista com membros das torcidas organizadas do Estrela Vermelha que participaram da guerra
na ex-Iugoslávia. Em dado momento, ele fora obrigado a repetir o gesto do nacionalismo sérvio –
“a saudação de três dedos (...) [formada pelo] sinal da paz com o acréscimo do polegar” –, em
constrangimento semelhante ao passado por muçulmanos e croatas pouco antes de serem mortos
ou violentados sexualmente. A destruição de símbolos religiosos pelos grupos talibãs no
Afeganistão em 2003 é outra amostra disso, assumindo dimensões maiores em longo termo, mas
trazendo menos atenção no curto prazo do que assassinatos sistemáticos ou atos de genocídio. Isso
evidencia como essa violência acaba menosprezada diante da violência direta praticada nas novas
guerras. Outros atos podem ser considerados como parte integrante de uma estratégia de limpeza
étnica como, por exemplo, o caso dos cercos, prática que remonta ao século XIX e que volta a ser
uma opção nas novas guerras diante dos impactos dos processos de globalização, que aumentariam
a eficiência e eficácia das prática de guerra, visto que impediriam o acesso de bens fundamentais
para a sobrevivência de determinada região (Andreas, 2008).
135
As ondas de deslocados em função da violência dirigir-se-iam para regiões vizinhas,
onde cidades e vilarejos inteiras passariam a ser formados pelos deslocados e refugiados,
caracterizando o que um dos entrevistados por Bill Carter chamaria de “campos de concentração
pós-modernos”, onde a entrada e saída era fácil, mas sempre guardaria os resquícios da violência
original. Em uma dinâmica semelhante, Estados próximos seriam destino dessas ondas
migratórias, criando tensões sociais e econômicas entre os locais e os recém-chegados, colocando
em risco a harmonia social e as condições socioeconômicas das áreas de destino de suportar
tamanho fluxo de indivíduos economicamente e socialmente desafiadores. As novas guerras
assumiriam, com isso, sua natureza internacional, espalhando a violência através desses fluxos
migratórios. Estes “campos” e seus habitantes seriam o aspecto mais visível das novas guerras,
evidenciando-as àqueles que acompanham as notícias à distância (Münkler, 2005, p. 15).
Marcelo Mello Valença 170

aquela situação de beligerância através de mecanismos que tornassem a utilização


da violência sutil ou menos explícita. A força não seria dirigida apenas de modo
direto contra o seu alvo, tal como nas guerras trinitárias, evidenciando a prática da
violência direta.

A instrumentalização das políticas de identidade permitiria que a violência


fosse empregada a partir da sua inserção nos mecanismos de relacionamento
social, exacerbando a cultura de exclusão. Isso aumentaria a ruptura da
institucionalização então existente da guerra, quebrando a separação entre
combatentes e não-combatentes, algo prezado e preservado dentro das normas que
guiariam a guerra civilizada: “[t]he new wars know no distinction between
combatants and non-combatants, nor are they fought for any definite goals or
purposes; they involve no temporal or spatial limits on the use of force” (Münkler,
2005, p. 15). Falamos aqui na utilização da força para gerar constrangimentos
sociais que levariam a condições insustentáveis de sobrevivência, que resultariam,
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mas não se esgotariam, na prática da violência direta.

4.2.2.3.
Os mecanismos de financiamento e suporte das novas guerras

A quebra da institucionalização nas novas guerras, juntamente com a


mudança na maneira como a força é empregada pelos beligerantes oferece novas
formas de se pensar sobre como elas são financiadas e como se diferenciariam das
guerras tradicionais. Neste sentido, diferentemente das guerras trinitárias, onde há
a mobilização centralizada e unificada para o esforço de guerra, a fragmentação da
economia e da sociedade nas novas guerras é a regra, impulsionando e
evidenciando o comportamento egoísta e individualista dos atores envolvidos na
beligerância, que buscariam garantir a sua sobrevivência independentemente dos
impactos causados por essas práticas (Keen, 2000, p. 20; Kaldor, 2001, p. 101-
107).

Nas guerras trinitárias o objetivo da economia de guerra é maximizar o


esforço do Estado de forma a romper com a resistência do inimigo e impor seus
interesses sobre eles. Isso permitiria sair mais rapidamente do estado de guerra,
retornando à política e à economia “normais”, o que não é percebido nas novas
Novas Guerras, Segurança e violência 171

guerras: “[c]ivil war is commonly seen in a Manichean light, in which conflict is


all things bad (…) and peace all things good. Yet war has its advantages for
some, and peace has its elements of violence for many” (Keen, 1998, p. 55). As
novas guerras são motivadas por interesses mais imediatos e a beligerância
desperta oportunidades, produzindo incentivos que não existentes em tempos de
paz.

As novas guerras são um empreendimento relativamente barato e que, até


mesmo pela impunidade por trás da violência, estimularia arranjos visando o lucro
e à manutenção da violência como forma de relacionamento social. O uso da
força não vislumbra um cenário futuro, mas o imediato retorno que esta poderá
trazer, independentemente da forma como isso afetar a sociedade: “[p]recisely
because war is so cheap, the costs of peace are so high” (Münkler, 2005, p. 81). A
violência organizada se torna a continuação da economia (Andreas, 2008) e cada
vez mais se apresenta como um empreendimento comercial para aqueles que dela
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participam, buscando lucro e ganhos a partir do uso da violência, permitindo que


se extraia vantagens de sua prática (Collier, 2000; Keen, 1998 e 2000; Münkler,
2005).

Tradicionalmente quando pensamos em economias de guerra, referimo-nos


a planejamentos centralizados, totalizantes e autárquicos que otimizam o esforço
de guerra. Justamente por oferecer um plano visando o futuro, as guerras
tradicionais mobilizam toda a sociedade em torno dos objetivos buscados pelo
Estado. Mas as novas guerras não seguem este modelo, muito pelo contrário:
como vimos anteriormente, a própria legitimidade do Estado é questionada.
Ademais, suas estruturas são rompidas em uma tentativa de esvaziá-lo. O cenário
é de depredação das estruturais locais através da violência cometida contra civis e
da cooperação econômica freqüente entre as partes em conflito (Kaldor, 2001,
p. 90-91). O Estado carece de condições de organizar um sistema econômico
produtivo ou, ao menos, inclusivo o suficiente para que não se precise recorrer à
violência ou à formas ilícitas de comportamento para garantir a sobrevivência.
Nas palavras de Mary Kaldor (2001, p. 101):

[t]territorially-based production more or less collapses either as a result of


liberalization and the withdrawn of state support, or through physical destruction
(…), or because markets are cut off as a result of the disintegration of states,
fighting, or deliberate blockades imposed by outside powers, or more likely, by
Marcelo Mello Valença 172

fighting units on the ground, or because spare parts, raw material and fuel are
impossible to acquire. In some cases, a few valuable commodities continue to be
produced (…) and they provide a source of income for whoever can provide
“protection”.

Graças ao colapso das estruturas de controle e de produção, bem como da


própria quebra da institucionalização da guerra, a espoliação dos recursos
disponíveis se inicia: a falência do Estado seria uma das causas da privatização da
violência (Kaldor, 2001, p. 92). Os grupos privados, determinados a manter sua
hegemonia e poder, estimulam a manutenção desta situação de incapacidade
estatal para aumentar ainda mais a sua influência sobre as populações que
padecem em razão dos conflitos.

Taxas de proteção e cobrança de impostos sobre os poucos recursos


disponíveis são realizados, enfraquecendo a população e deixando o Estado ainda
mais incapaz de reagir e de responder a estas ameaças. Ao mesmo tempo, as vias
oficiais de angariação de impostos e taxas são esvaziadas, deixando o Estado sem
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acumulação de receitas. A circulação de bens usando como referência a moeda


estatal é deixada de lado, fazendo renascer o escambo e com preços taxados com
base em câmbios mais fortes e estáveis. O mercado negro se fortalecesse,
trazendo bens e serviços que não seriam possíveis fora da esfera da
irregularidade.136 A imagem que é transmitida para a sociedade é de que se tornar
parte ativa no uso da força representaria não só a única chance de ascensão social
e econômica, mas também de sobreviver às condições impostas pela violência.

Diante desta situação de insuficiência econômica e social, as oportunidades


para os indivíduos se manterem afastados dos conflitos acabam por não existir: a
própria obtenção de bens, essenciais para a sobrevivência ou não, fica dependente
da submissão aos grupos beligerantes. A associação entre a ausência de
oportunidades para viver dentro da legalidade e a necessidade de garantir os meios
para a sua sobrevivência levaria, portanto, diversos indivíduos a buscar na
violência a solução para seus problemas. Entre estes indivíduos, boa parte deles
seria de jovens, que se encontrariam em situação de desesperança (Münkler, 2005,

136
Peter Andreas (2008) traz uma descrição bastante complexa de como o comércio
irregular e as vias alternativas de prestação de serviço operam em um cenário de novas guerras,
servindo tanto para o controle político por parte daqueles que dominam as cadeias de oferta e de
produção, quanto para a garantia da sobrevivência da população diante das adversidades. Esse
cenário fazia surgir novas lideranças e referências que passavam a ocupar espaço de destaque na
sociedade.
Novas Guerras, Segurança e violência 173

p. 77), o que tornaria os custos econômicos das novas guerras ainda menores para
aqueles que as promovem. Ao se referir às guerras na África Ocidental, Peter
Lock ressalta o cálculo de razoabilidade que as populações mais jovens fazem ao
ponderar as motivações para a sua entrada no conflito:

[f]or young men “being a soldier” is the best means of social participation, and
besides it is likely that their chances of survival in today’s Sierra Leone are
incomparably greater than in the chaos of “civil society” paralysed by war. The
role of a so-called child soldier is not only seductive for rootless children; it is also
a “rational choice”, to put it in the jargon of an economist viewpoint (Lock apud
Münkler, 2005, p. 77-78).

A adesão destes indivíduos contribuiria definitivamente para a privatização


e para a quebra da institucionalização do conflito armado, visto que as melhores
oportunidades de crescimento social e financeiro parecem vir dos grupos
beligerantes, não das formas tradicionais de sobrevivência ou da adesão às forças
oficiais de segurança. Ao mesmo tempo, percebe-se o desenvolvimento de
mecanismos informais de pressão sobre o mercado, como controle da distribuição
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de produtos e bens essenciais por grupos beligerantes, estimulando o mercado


negro em condições diferentes daquelas dos períodos de paz. Quanto mais
informal se torna a guerra, mais fragmentada e informal se torna a economia
(Collier, 2000, p. 102-103; Kaldor, 2001, p. 101-107; Münkler, 2005). Grupos de
criminosos começam a surgir promovendo saques, roubos e extorsão para garantir
sua sobrevivência, acirrando o clima de insegurança na região (Williams e
Picarelli, 2005, p. 123). Percebemos que a adesão e a captação de membros da
sociedade civil para as fileiras dos grupos, que caracteriza o warfare das novas
guerras, têm papel fundamental no seu financiamento e manutenção.

Finalmente, e face às condições de insuficiência econômica, a incapacidade


de reconstrução social e a adesão de civis aos grupos beligerantes como forma de
sobreviver à violência descritas acima, temos a questão da injeção de recursos –
financeiros e logísticos – oriundos de atores externos aos conflitos através dos
processos de globalização e da ajuda humanitária. Diante do colapso da economia
e da produção doméstica, a ajuda externa se torna crucial. A sociedade, que não
consegue mais sobreviver através de meios próprios, se vê ameaçada por práticas
predatórias que extrapolariam a violência da guerra, impedindo a manutenção das
condições necessárias à sobrevivência.
Marcelo Mello Valença 174

Segundo Kaldor (2001, p. 71), a globalização promove tanto elementos de


internacionalização quanto de localismo, integrando e fragmentando redes
culturais que, através de sua verticalização, alcançam limites nunca antes
imaginados. Isto permitiria aos grupos em conflito de se aproximarem de outros
grupos que compartilhassem seus valores e/ou são simpatizantes de sua luta,
facilitando a identificação com um dos lados do conflito e possibilitando o envio
de ajuda política, militar e econômica. O uso da força passaria a ser patrocinado
por recursos vindo de atores estrangeiros – estatais e não-estatais, incluindo até
mesmo indivíduos isolados. Por meio desta ajuda, os grupos políticos buscariam
atingir seus objetivos, inclusive rompendo com certas práticas utilizadas durante
as guerras tradicionais, alternando a maneira como a limitação da violência
sofrida, a eliminação da oposição política e a acumulação de recursos econômicos
eram buscados (Keen, 2000, p. 2).137

Kaldor (2001, p. 102 e seguintes) sugere que as formas mais comuns de


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financiamento externo dos conflitos podem ser classificadas em quatro categorias:


o auxílio direto de governos estrangeiros e de membros da diáspora que vive no
exterior a indivíduos, famílias e grupos específicos de uma determinada região e o
auxílio humanitário promovido também por governos e ONG’s aos grupos em
conflito, de uma forma mais geral. Contudo, estas quatro formas se aproximam
muito umas das outras, permitindo que sintetizemo-las em duas: a ajuda
internacional dirigida a indivíduos, famílias e outros grupos específicos e a ajuda
humanitária de organizações internacionais.

A ajuda internacional voltada para indivíduos, famílias e grupos específicos


dentro do conflito visa provê-los dos recursos necessários para adquirir bens e
serviços durante o período de violência. A verba destinada a afastar indivíduos do
conflito pode ser desviada – voluntariamente ou não – para os grupos em conflito,
alimentando-os com armas e outros equipamentos necessários para a continuidade
do esforço de guerra. Ao invés de fornecer os meios para manter os beneficiários
longe dos efeitos da violência, estes recursos podem ter o mesmo destino daqueles
enviados para promover “a causa” que motivou a disputa, seja por parte de grupos
da diáspora vivendo no exterior, seja por governos interessados diretamente na
vitória de um dos lados. A promoção desta causa pode trazer identificação com

137
Sobre o assunto, Valença (2006a, p. 33 e seguintes).
Novas Guerras, Segurança e violência 175

outros grupos exteriores, que tentarão ajudar os combatentes a lutar contra seus
inimigos, mantendo-os ativos no conflito. Estas formas de financiamento se
assemelhariam muito à maneira como as grandes potências lutavam suas guerras
por procuração durante o período da Guerra Fria. Ao financiar um grupo a manter
a luta contra um outro, estes países, grupos ou até mesmo indivíduos estariam
consolidando seus interesses econômicos e políticos em determinada região,
garantindo que o resultado fosse favorável a eles.

A segunda maneira de financiar os conflitos armados é através da


intervenção humanitária provida por organizações regionais, governos e ONG’s
internacionais. Inicialmente empreendidos com o intuito de auxiliar a superar a
problemática e a retro-alimentação das guerras, os esforços humanitários podem
acabar tendo sua finalidade desviada, servindo aos grupos beligerantes e não à
população que ele deveria auxiliar. As formas mais comuns de desvio de fundos
humanitários se dão através do ataque a comboios, algo relativamente freqüente
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em regiões onde o policiamento é inexistente, como aconteceu por diversas vezes


na missão de paz no Haiti. A cobrança de “pedágios” para autorizar a passagem
em regiões controladas por grupos milicianos também é comum.

Em alguns casos, há denúncias sobre a relações de cooperação entre as


próprias forças humanitárias e os grupos, evidenciando a necessidade da presença
dos grupos adversários – ou da mera ameaça de sua presença – para que os grupos
políticos dominantes possam atingir seus objetivos (Reno, 1999; Kaldor, 2001,
p. 106; Valença, 2006a). O uso da força se insere de tal maneira na sociedade que
as formas de interação entre os grupos políticos, mesmo quando não-violentas,
prescindem de algum tipo de instrumentalização da força para acontecer:

[forças do governo] withdrawn from a town, leaving arms and ammunition for the
rebels behind them. The rebels pick up the arms and extract the loot, mostly in the
form of cash, from the townspeople and then they themselves retreat. At this point,
the government forces reoccupy the town and engage in their own looting, usually
of property (which the rebels find hard to dispose of) as well as engaging in illegal
mining (Keen, 1995, 13-14).

Uma nova ordem econômica é criada para e em função da guerra (Collier,


2000, p. 104-105; Duffield, 2000, p. 73-75; Keen, 2000, p. 33-35), legitimando o
uso da força justamente por ser capaz de conseguir interagir com essa nova ordem
(Keen, 1998, p. 45). A violência se torna parte do cotidiano e conduziria as
relações econômicas, políticas e sociais, impactando em setores civis, direta ou
Marcelo Mello Valença 176

indiretamente, bem como em instituições estatais e sociais que os representasse.


A guerra se tornaria a continuação da economia – ou dos negócios clandestinos –
por outros meios (Keen, 2000, p. 27; Andreas, 2008, p. 15): “[t]he 'war aims' of
the parties may be surprisingly similar: to stay alive; to experience more power
and excitement than seems possible in peacetime; and, perhaps above all, to
benefit economically” (Keen, 1998, p. 74), alimentando e financiando a
beligerância.

4.2.3.
As dinâmicas e a dimensão da violência nas novas guerras

As dinâmicas expostas – a ruptura da institucionalização, as práticas


desenvolvidas durante a guerra e a forma como ela é financiada – permitem
percebermos que as novas guerras apresentam uma estruturação diferente das
guerras tradicionais. Iniciando-se pelas categorizações que demarcam a
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ocorrência da beligerância e a sua separação/distinção da paz, passando por como


o uso da força é empreendido, a operacionalização das políticas de identidade e as
formas como a violência é financiada, as novas guerras impõem aos intelectuais e
burocratas novas questões a serem pensadas. Para tanto, demandam um leque de
respostas que antes não se mostrava necessário, seja para os mecanismos de
prevenção e transformação de conflitos, seja para entender as dinâmicas que
sustentam esses conflitos.

No caso específico desta tese e das hipóteses que exploramos, ao trazer o


tema das novas guerras para a Segurança podemos perceber como esses conflitos
armados evidenciam a carência daquele campo teórico para compreender o papel
que a opção pela violência e a sua aplicação assumem. Ao ser lida a partir dos
três eixos analíticos – institucionalização, métodos e financiamento –, a violência
assume um papel que a tornaria não apenas o instrumento para atingir objetivos e
alcançar interesses políticos. Ela constitui também o próprio mecanismo de
garantir interação social, seja nos relacionamentos entre os grupos políticos ou
dentre indivíduos de um mesmo grupo.

As possibilidades que emergem do uso da força servem para analisar como


o conflito armado se desenrola, suas conseqüências e seus impactos na formulação
Novas Guerras, Segurança e violência 177

de políticas pelas partes envolvidas e da própria capacidade de se desenvolver um


estudo mais acurado das novas guerras. Mas como esse mecanismo de interação
social se manifestaria ou, melhor, funcionaria?

Ao contrário das guerras tradicionais, quando o uso da força é centralizado


nas mãos de um ator – o Estado – que mobiliza recursos e população para atingir
seus objetivos racionalmente definidos em prol de sua coletividade política, nas
novas guerras a privatização do uso da força e a ruptura da institucionalização
fazem com que a aplicação do uso da força assuma novos sentidos (Keen, 1998).
As novas guerras não manifestam a violência apenas de cima para baixo (top-
down), tal como nas guerras tradicionais, quando os grupos envolvidos
diretamente na prática da guerra desenvolvem esforços por conta própria, com
estes repercutindo na esfera social de acordo com objetivos e interesses
previamente estipulados.

As novas guerras são marcadas pela utilização da força de baixo para cima
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(bottom-up), quando há um movimento de reação à violência da guerra por parte


das camadas sociais, que desenvolvem mecanismos para lidar com a força e
buscar sua sobrevivência nesse cenário. Essas novas maneiras de enxergar o
papel da violência e o uso da força na sociedade evidenciam a carência da
Segurança no tocante ao entendimento da violência como conceito central para
seu estudo e compreensão, especialmente quanto à sua função assumida para os
atores.138

O uso da força e, por conseguinte, da violência, é entendido pela Segurança


como uma condição excepcional, extraordinária, constituindo uma estratégia para
atingir fins políticos. É um meio, não um aspecto que permeia e molda as
relações sociais. A possibilidade de sua aplicação é sempre possível e, até mesmo
por isso, são desenvolvidas estratégias para que a sua ameaça seja tão eficaz

138
A forma de enxergar a violência de cima para baixo e de baixo para cima foi introduzida
por David Keen (1998) como dois tipos de violência econômica, dentro do debate sobre greed e
grievance que surgia à época e assumia grande importância ao se contrapor à discussão étnica e
cultural acerca das causas da guerra. Contudo, entendemos que no caso das novas guerras – ou das
guerras civis, segundo terminologia do próprio Keen – não há como não enxergar essas duas
direções de aplicação da força em uma análise mais ampla no estudo da beligerância,
especialmente se combinarmos os objetivos, métodos e financiamento das novas guerras. Dessa
forma, utilizamos tais “direções” para além de seu sentido original, preservando a idéia inicial
daquele autor.
Marcelo Mello Valença 178

quanto a sua utilização de fato.139 Essa excepcionalidade que cerca o uso da


força nas Relações Internacionais faz com que o fenômeno da guerra (tradicional)
seja encarado como uma ruptura na ordem existente.

Contudo, da experiência percebida nas novas guerras e pela forma como a


violência Noé o uso da força adquirem papel social, aquela excepcionalidade
deixa de existir, passando a ser um elemento de coesão social em uma cultura de
violência. As violências top-down e bottom-up assumem grande importância
nessa mudança de perspectiva, pois a violência deixa de ser um problema para se
tornar uma oportunidade, um empreendimento social (Keen, 1998 e 2000; Collier,
2000; Kaldor, 2001; Münkler, 2005).

4.2.3.1.
A Violência Top-Down
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A violência top-down, ou de cima para baixo, é geralmente promovida por


Estados ou elites políticas como forma de mascarar abusos cometidos por esses
grupos no combate à insurgências ou para protelar o advento de regimes
democráticos e pluralidade cultural e de valores. Ela está relacionada a um
processo de enfraquecimento do Estado, seja ele alegado ou de fato, onde o uso da
força é feito em nome da preservação da segurança e da estabilidade da unidade
política (Keen, 1998, p. 23-24).

Quando isso ocorre, é criada uma dimensão de medo da diferença que


justificaria a tomada de medidas excepcionais contra determinados grupos ou
segmentos da sociedade. A ameaça gerada – ou representada – por esses grupos
caracterizados como rivais é afastada através do uso da força, sendo a guerra – a
violência organizada – a maneira mais eficaz de combatê-la.

No caso das novas guerras, essa criação da ameaça e os mecanismos para


responder a estes estímulos corresponderiam às políticas de identidade e seus
efeitos sobre os grupos rivais. Ao se aproveitar de discursos políticos que
remeteriam a identidades pretéritas, as elites e os grupos políticos buscariam

139
A deterrência surge aqui como a manifestação mais visível dessas possibilidades,
oferecendo a conjugação dos benefícios do uso da força ao mesmo tempo em que reduz(iria) os
custos econômicos e políticos de seu emprego (Payne e Walton, 2002).
Novas Guerras, Segurança e violência 179

desqualificar seus adversários, rotulando-os e afastando-os do processo decisório,


negando a eles oportunidades e espaço político. A finalidade era sua gradual
exclusão social e, com isso, assegurar que aquela região ou área seria
predominantemente composta e formada por partidários de suas idéias ou de
indivíduos que corresponderiam ao rótulo defendido. A utilização da força contra
esses grupos seria a maneira encontrada de justificar a quebra da ordem e ocultaria
outros processos violentos que institucionalizariam a violência estrutural naquele
ordenamento, perpetuando e legitimando a exclusão.

Esta concepção de violência de cima para baixo se adéqua, ainda, ao


contexto estatal encontrado nas novas guerras ao ser mais freqüente – até mesmo
podendo ser encorajada – quando da presença de sete elementos ou condições
facilitadoras (Keen, 1998, p. 24). São elas (i) um Estado fraco, (ii) grupos
dispostos a usar a força que dependem de apoio ou financiamento externo, (iii) um
regime não-democrático ou práticas políticas excludentes e/ou particularistas,
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(iv) crise econômica, (v) divisões étnicas ou identitárias que rompam com a
unidade de pertencimento estatal e que possam ser mobilizadas, (vi) a existência
de commodities e (vii) conflitos ou tensão prolongados. Para a ocorrência da
violência de cima para baixo não é necessário que essas condições se apresentem
todas ao mesmo tempo, nem tampouco possam ser enxergadas em um cenário
mais amplo referente às condições enfrentadas em determinada sociedade. Essas
condições são as que se mostram comuns em cenários de novas guerras.

O caso do Estado fraco é o mais significativo. Como apontado


anteriormente, há a gradual erosão das instituições estatais nas novas guerras.
Essa ruptura institucional ocasionaria a informalização e a privatização da
violência, promovendo a confusão entre guerra e paz. O uso da força escapa da
exclusividade do Estado e passa a residir nos grupos políticos que possuem os
mecanismos para tanto. Estes grupos buscariam melhorar suas posições sociais e
políticas, podendo explorar lideranças locais, informais, para que seus interesses e
objetivos sejam atingidos. O Estado se mostra incapaz de impedir tal dinâmica e é
enfraquecido, seja propositalmente ou não. De todo modo, há o gradual
afastamento do Estado das suas competências, o que abre espaço para que elites e
grupos políticos privados assumam o papel de autoridade em determinadas áreas.
Marcelo Mello Valença 180

Com a quebra do monopólio do uso da força do Estado, o que leva a


violência a assumir uma dimensão privada, os grupos políticos passam a buscar
segmentos da sociedade que estejam dispostos a se valer da força para servir aos
propósitos levantados pelas políticas de identidade. Buscar-se-iam grupos que se
adequassem a tais objetivos, mas que carecessem de recursos próprios.

Esses grupos, diferentemente do que aconteceria caso estivessem a serviço


de um Estado cujo poder é centralizado, se fiariam a incentivos externos para
manter suas atividades. Os impactos dos processos de globalização ficam
evidentes aqui, dado que o financiamento externo se torna necessário para a
própria atuação desses grupos, seja através de fundos enviados por semelhantes
vivendo no exterior ou por grupos políticos internacionais, na forma de ajuda
humanitária (Keen, 1998; Kaldor, 2001, p. 102-103; Münkler, 2005), alimentando
o conflito.

A relação entre as elites políticas e esses grupos dispostos a se valer da força


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para operacionalizar as políticas de identidade pode remeter, também, à


manutenção de uma ordem favorável aquelas. Ao excluir outros segmentos da
sociedade da política através da violência, evidenciar-se-ia a necessidade ou
desejo de se atrelar ao poder e de legitimar práticas que sejam favoráveis àqueles
que estão no comando. Especialmente no final da Guerra Fria, e em decorrência
da onda de democracia que se seguiu no mundo, regimes não-democráticos se
mostraram mais tendentes ao uso da violência para conter dissidentes e recorrer ao
uso da força para expulsar diferentes e opositores permitia a continuidade das
políticas de identidade e, consequentemente, o alcance dos objetivos políticos ao
qual essas elites se dispunham.

Este cenário de ruptura institucional e de privatização da força pode levar a


uma situação de crise econômica, que serviria como justificativa para a
recorrência às políticas de identidade. Da mesma maneira, as políticas de
identidade podem ser operacionalizadas para justificar que a crise econômica
existe por conta daquela ameaça gerada pelos grupos rivais e diferentes. A
capacidade do Estado fica ainda mais comprometida, fazendo com que o recurso à
força se torne mais comum e seja vista propagada pelas elites como a única saída
para aquela situação.
Novas Guerras, Segurança e violência 181

A mobilização apresentada nos últimos parágrafos é facilitada pela presença


de clivagens étnicas ou culturais na sociedade, pois a diferença se torna mais
notável e mais próxima. A culpa pelo fracasso ou insucesso passaria, assim, a ser
direcionada concretamente a indivíduos, facilitando o acirramento das tensões. Se
a clivagem social estiver, ainda, associada a diferenças econômicas ou de acesso a
oportunidades ou recursos, a violência pode ser associada a um eventual sucesso
econômico. Caso a tensão inter-culturas seja um fator que se prolonga há bastante
tempo e haja disparidades notáveis no acesso à oportunidades políticas,
econômicas ou sociais entre os grupos que coabitam o Estado ou a região, a
combinação explosiva entre identidade e economia pode servir como catalisador
para a violência, justificando e/ou pavimentando as condições já analisadas.

4.2.3.2.
A Violência Bottom-Up
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Como mostrado anteriormente, toda a manifestação de violência tem uma


finalidade específica e, portanto, a sua utilização é uma expressão racional da
política. Podemos enxergar a violência de cima para baixo, top-down, tendo como
propósito principal mascarar abusos cometidos por elites e grupos políticos
dominantes contra aqueles que representariam a diferença e/ou poderiam ser
elencados no rol de acusados por determinados fatos sociais. A violência bottom-
up, de baixo para cima, objeto desta subseção, também apresenta essa natureza
política, racional, ainda que a sua percepção por observadores externos conduza a
aparências de irracionalidade (Kaplan, 1994; Kaldor, 2001; Münkler, 2005, Snow,
2008; Öberg et al, 2009).

A violência de baixo para cima nas novas guerras surge como uma resposta
imediata e de curto prazo às limitações e à escassez de recursos que garantam a
sobrevivência (Keen, 1998, p. 45). Contudo, as próprias dinâmicas das novas
guerras fazem com que esse recurso, extraordinário, se perpetue ao longo do
tempo, tornando-se uma característica da sociedade e fazendo com que a violência
se torne uma resposta à demanda por mudanças políticas ou aos valores
levantados pelas políticas de identidade.
Marcelo Mello Valença 182

A linha divisória entre a racionalidade e o barbarismo se torna cada vez


mais tênue àqueles externos ao conflito, dada a névoa que se forma nos métodos e
objetivos buscados por parte dos envolvidos. No entanto, o caráter de
racionalidade da violência continua a se mostrar presente.

Ela se manifesta quando os próprios indivíduos entendem o uso da força


como a solução para os problemas por eles enfrentados, beneficiando-se
grandemente da ruptura da institucionalização da guerra e da falência das
estruturas estatais, bem como da mudança do warfare e da maior incidência das
políticas de identidade. Justamente por ser um fenômeno que surge em
conseqüência da violência de cima para baixo, as condições que facilitariam a
violência de baixo para cima estão amplamente disponíveis no cenário das novas
guerras.

A presença de um Estado fraco, de grupos dispostos a se valer da força


diante de uma situação de conflito que afetaria as condições normais de
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sobrevivência são elementos que tornam possível avaliar a presença dessa forma
de violência. Ao mesmo tempo, há elementos que permitem que se enxergue um
cenário de violência de baixo para cima. São eles (i) um profundo grau de
exclusão social e econômico, (ii) a impunidade diante de atos violentos e (iii) a
ausência de uma ideologia revolucionária e universalista (Keen, 1998, p. 46). Os
dois primeiros elementos podem ser encaixados confortavelmente no cenário
sóciopolítico proporcionado pelas novas guerras e suas políticas de identidade –
que devem ser sempre levadas em consideração quando tratamos da manifestação
social da violência –, enquanto o terceiro encontra abrigo nele, mas repercutindo
com menor intensidade.

A começar pela exclusão sócio-econômica a determinados segmentos da


sociedade, podemos relacionar o uso da força como forma de solucionar
problemas ou necessidades que deveriam ser alcançadas em longo prazo sob
condições de normalidade política, mas que não o são. Pelo que é pregado pelas
políticas de identidade propagadas de cima para baixo, a responsabilidade – ou a
culpa – por essa deficiência social é atribuída a segmentos da sociedade que
marginalizariam esses grupos, fazendo com que estes recorressem ao banditismo
ou à violência como uma maneira de suprir essas necessidades ou desejos.
Novas Guerras, Segurança e violência 183

No caso das novas guerras e da adesão maciça de jovens adultos e


adolescentes, vemos que isto relacionar-se-ia com a negação de oportunidades
econômicas e de emprego. O cenário de crise econômica, que impacta a violência
de cima para baixo, repercute nas camadas mais baixas da sociedade e retorna a
violência como uma oportunidade de resgatar o status social e/ou as
oportunidades de acesso a bens antes negados. Mobilizados e motivados pelas
políticas de identidade, esses segmentos sociais utilizam-se da violência e dos
métodos de utilização da força disponíveis para, tal como um revanchismo,
excluir ou afastar aqueles que são caracterizados como responsáveis por sua
condição e, com isso, reforçar o comportamento violento que caracterizaria o
warfare das novas guerras.

Essa violência teria, para observadores externos, um caráter incompatível


com processos de escolha racional que moveriam a lógica política. Em nome do
resgate das oportunidades econômicas, os grupos promoveriam a destruição de
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elementos que poderiam fazer com que sua condição social progredisse. O ataque
às instituições do Estado é um exemplo, bem como a destruição de imóveis,
plantações e outras benfeitorias existentes, mas que servissem como “elementos
de conforto” para a diferença, visando à sua expulsão. Os grupos atingiriam os
propósitos da exclusão em nome do “corações e mentes” das políticas de
identidade, ao mesmo tempo em que enxergariam – racional, mas geralmente de
maneira errônea – que atuariam em prol de seus interesses ao empregar a força
momentaneamente para sair de uma situação desfavorável. O uso da força seria
apenas mais um capítulo do longo conflito/tensão existente entre aqueles grupos,
agora explícito. Enquanto promoveria um senso de pertencimento, retribuição ou
respeito, o uso da força para reagir aos padrões de exclusão faria com que o
conflito continuasse indefinidamente, oferecendo o instrumental para o
enfraquecimento do Estado e a ruptura de suas instituições.

Diante deste cenário, que conjuga a auto-composição de interesses e um


profundo questionamento à ordem vigente que se reproduz na violência endêmica,
surge uma imagem de impunidade àqueles que praticam e se valem de tais atos
para ascender socialmente. A maior ou menor adesão de indivíduos à prática da
violência se relaciona aos sinais indicadores, seja das lideranças, das instituições
estatais ou da própria repreensão da sociedade, sobre a punição que receberiam.
Marcelo Mello Valença 184

Em cenários de fraqueza estatal e de criminalidade endêmica, algum tipo de


impunidade é esperada, mas a adesão maciça à violência carece da inexistência –
ou ineficiência – dos mecanismos oficiais de punir quem viola as normas. Não à
toa se coloca que a violência das novas guerras em muito se parece com aquela
existente na criminalidade e no banditismo (Kaldor, 2001, p. 5-6; Münkler, 2005).
Atuando à margem da lei e da ordem, o engajamento no uso da força permitiria
alcançar bens que sob outras condições não seriam possíveis, bem como
corroboram para a informalização do conflito e a privatização da guerra.

'Bottom-up' violence has many similarities with crime; social and economic
exclusion create a powerful motive for securing the immediate wealth and sense of
power that crime can bring. But the signals sent out by those in authority are also
significant in this context. Is the political or military opposition in a position to
channel discontent in an organised and disciplined way? Or is the political
establishment able to fracture the opposition by licensing crime and fomenting
what appears to be 'chaos'? These political considerations are likely to be critical
in determining the extent of economic violence during a civil war (Keen, 1998,
p. 54).
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É nesse sentido que a ausência de uma ideologia revolucionária central deve


ser encaixada. A violência de cima para baixo é motivada por discursos políticos
baseados nos padrões de exclusão e inclusão impostos pelas políticas de
identidade. Esses discursos e padrões acabam por afetar as dinâmicas sociais ao
revelar – ou acusar – segmentos e grupos como responsáveis pela situação criada
e/ou pelas condições em que outros segmentos e grupos se encontram. As
respostas dadas têm como finalidade alcançar objetivo de curto prazo –
geralmente voltados para a sobrevivência.

Não há espaço para o florescimento de uma ideologia política consolidada e


coerente que sustente os esforços. Há, sim, conscientização política por parte
daqueles envolvidos na violência acerca de suas ações e das suas conseqüências,
mas o pensamento que os une como um grupo organizado capaz de usar a
violência para atingir seus fins não se caracteriza por essa finalidade política, no
estilo do que existia no Estado. As novas guerras não trazem, em si e em suas
políticas de identidade, uma ideologia política ortodoxa. Há, como mostramos,
resgates de identidades pretéritas, que motivariam e abalizariam os atos e práticas
desenvolvidos.

A prática da violência e o uso da força se tornam instrumentos para atingir


as necessidades dos indivíduos e grupos, sendo enxergados de modo
Novas Guerras, Segurança e violência 185

economicista, i.e., imediato e em uma perspectiva de curto prazo. Contudo, e em


face da construção de um cenário ancorado por um Estado fraco e sustentado por
condições de crise e escassez de recursos, o que era para ser uma medida
excepcional, breve, se torna, gradualmente, um mecanismo de sobrevivência
social. Aquelas condições que apontamos anteriormente e que surgiriam como
distinções entre as novas guerras e as guerras trinitárias proporcionariam à
violência um papel social instrumentalizado pela violência de baixo para cima,
dado que a saída – ou a alternativa – para sobreviver à falência do Estado, a
quebra de suas instituições e enxergar perspectivas de alcançar as condições para
sobreviver estariam na utilização da força. A violência passa a ser a solução para
os problemas enfrentados.

4.2.4.
Enxergando as mudanças: o papel social da violência nas novas
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guerras

Na seção anterior construímos o argumento, já explicitado ao longo deste


capítulo, de que o uso da força assume um papel social no cenário gerado pelas
novas guerras. Mas o que significa exatamente isso?

Papel social é a utilidade que determinado elemento ou fenômeno possui


dentro de uma sociedade, com base em seus ordenamentos normativos, sejam eles
formais ou não. Podemos afirmar que determinado elemento possui um papel
social quando, a partir de certos padrões ou expectativas, consegue atingir os
resultados esperados pelos agentes e atores envolvidos em decorrência de sua
inserção naquele contexto específico, dentro de determinadas condições. Em
condições “normais”, onde o Estado existe, de juris e de facto, a violência é
deslegitimada porque cabe aquele ator se valer dela para garantir a ordem. Mas,
se ele não existe ou não consegue exercer seu papel, quais são as condições e
elementos que a violência precisa manifestar?

Em poucas palavras, a violência surge como elemento constitutivo da


ordem. Como construído ao longo desse capítulo, as novas guerras, baseadas em
discursos construídos a partir das políticas de identidade, estimulam identidades
pretéritas que fugiriam dos padrões universalizantes e generalistas que marcariam
a comunidade política organizada em torno do Estado para exacerbar a diferença.
Marcelo Mello Valença 186

Os objetivos e o warfare dessas novas guerras conduziriam a um comportamento


de intolerância, pautado pelo uso da força, onde os resultados seriam alcançados a
partir da homogeneização de regiões e grupos políticos.

Ao invés de termos o uso da força como um meio que levaria a um fim, nas
novas guerras a violência é o fim a ser buscado. Esse papel social é o que faz com
que a violência nas novas guerras assuma uma natureza distinta daquela das
guerras tradicionais, evidenciando novos aspectos que devem ser compreendidos e
analisados pela Segurança ao trabalhar a violência. A mudança de paradigma que
decorre de tal percepção permitiria a constituição de uma cultura de violência,
baseada na exclusão do diferente e da busca por benefícios e privilégios.

Na guerra institucionalizada, a separação até então existente entre


combatentes e não-combatentes era relativamente clara, ainda que essas duas
“categorias” eventualmente se cruzassem durante a prática da guerra, como pode
ser percebido em diferentes momentos da história. Contudo, a distinção existia e
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nela se baseava as regras de engajamento e o jus in bello, permitindo que


houvesse certo grau de afastamento dos não-combatentes da violência organizada:
“[a]buses against civilians have usually been portrayed as an unfortunate
deviation from the laws of war as a means to a military end” (Keen, 2000,
p. 29).140

Diante dos incentivos e possíveis constrangimentos que possam haver, a


percepção dos beligerantes é que a prática da violência promove resultados mais
eficientes na sua busca por interesses. Tais elementos combinados – impunidade,
acesso amplo a armamentos e facilidade para cooptar combatentes – fariam com
que a guerra se tornasse um empreendimento eficiente e barato para atingir os fins
desejados, prevalecendo sobre a prática da política normal de tempos de paz como
mecanismo de alocação de disputas, inclusive aqueles visados pelas políticas de
identidade quanto à promoção de padrões de exclusão da diferença. A política da

140
Um bom trabalho sobre o tema é oferecido por Kuper (2003) ao trabalhar a dinâmica da
II Guerra Mundial e o envolvimento da população alemã, holandesa e inglesa com a guerra. O
autor coloca que, mesmo com a perseguição aos judeus e com o bombardeio às cidades como
prática de guerra, havia certas restrições por parte dos beligerantes para preservar a integridade das
comunidades e do cotidiano social, como em datas festivas ou competições esportivas. Uma visão
oposta, pode ser encontrada no legado do estrategista militar Giulio Douhet (Moran, 2002), que
defendia que o ataque a alvos civis era a forma mais rápida, eficiente e barata de se vencer uma
guerra.
Novas Guerras, Segurança e violência 187

guerra oferece benefícios que não haveriam em tempos de paz, como a ascensão
social, a acumulação de riquezas em função da atividade violenta e de seu flerte
com a criminalidade, bem como a possibilidade de controlar o acesso a recursos e
a bens de consumo que passam a ter utilidade política – independentemente da
maneira como essa utilidade for definida ou percebida. A prática da violência
torna-se lucrativa, fazendo com que os grupos políticos optem por privatizá-la
visando a obtenção de benefícios a partir de sua utilização.

Deixando de ser um instrumento – dentre os recursos políticos possíveis –


para a obtenção de interesses, a violência se torna o mecanismo responsável por
garantir condições favoráveis aos beligerantes de manter a ordem social. Mais do
que um meio, a violência se torna um fim a ser explorado e a ser incorporado no
ordenamento da sociedade: o uso da força evidencia que haveria mais na guerra
do que a vitória (Keen, 2000, p. 26). As novas guerras utilizam-se da violência
como forma de assegurar o elemento de legitimidade que permitiria que
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determinadas posturas, proibidas e punidas como crime em tempos de paz,


possam ser legitimadas como válidas nesse novo contexto.

Dentre essas utilidades sete se tornam mais evidentes (Keen, 2000, p. 29-
31). São elas a (i) pilhagem visando a compensação do uso da força, (ii) a
cobrança de taxas de segurança, de forma a replicar o poder dos beligerantes e a
insegurança diante da violência organizada, (iii) o controle do mercado,
garantindo a extração do máximo lucro pelos grupos privados, (iv) a exploração
do trabalho alheio sob condições desumanas ou degradantes, (v) o controle sobre
propriedades e terras como forma de garantir a ausência de adversários e/ou
diferentes, (vi) o espólio da ajuda humanitária e (vii) o acúmulo de benefícios a
partir da ação militar.

Ao legitimar essas práticas, entendidas como criminosas fora do contexto


das novas guerras, retornar à política normal, aparenta ser mais custoso aos grupos
envolvidos na violência. Eles optariam por manter a beligerância por esta
proporcionar expectativas mais frutíferas (Collier, 2000, p. 101).141

141
“In circumstances where conflict is functional, threatening someone (...) with war may
be more like a promise than a threat” (Keen, 2000, p. 33).
Marcelo Mello Valença 188

A violência proporciona, assim, uma forma de acumulação de recursos e


renda cujos benefícios e lucratividade não seriam compatíveis com outra
ferramenta de acumulação que pudesse ser discutida em tempos de paz. Quanto
mais longa for a duração da guerra, mais benefícios podem ser extraídos, pois a
dependência da violência tornar-se-ia maior e aqueles que detém o uso da força –
ou que podem se beneficiar dele – conseguiriam extrair maiores recursos em um
cenário de quase falência social e estatal. Isso acontece porque as novas guerras –
como exposto – se voltam para o questionamento do Estado e de sua estrutura,
oferecendo riscos para o desenvolvimento de projetos coletivos visando o futuro.
O uso da força está diretamente ligado ao alcance dos objetivos dos grupos
beligerantes e, por não buscarem a consolidação de uma unidade política, a prática
da guerra pode acabar colocando em risco a própria capacidade do Estado de agir
como Estado dado o caráter predatório da violência organizada.

A quebra da institucionalização do Estado e a confusão entre a guerra e o


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crime organizado atacariam diretamente a capacidade do Estado de prover bens e


serviços políticos. Conforme a violência da guerra consome os recursos do
Estado, menos este é capaz de garantir o cumprimento de suas funções e mais seus
recursos passam a ser espoliados visando a sobrevivência e manutenção dos
grupos envolvidos com, de alguma maneira e em algum dos pólos de, a violência.

A combinação de práticas egoístas de sobrevivência, a falta de perspectivas


para a sociedade em longo prazo, os baixos custos para a guerra e a acumulação
de recursos como forma de garantir sobrevivência e status social evidencia o
caráter predatório das novas guerras, minando e erodindo estruturas formais
através da extração dos recursos necessários para o financiamento da guerra
(Collier, 2000, p. 93).142 A espoliação dos recursos existentes teria como
finalidade última aumentar a riqueza/capacidade dos grupos enquanto negaria
essas mesmas oportunidades ao adversário. Sua repetição reiterada durante o
período da guerra, através do controle da prestação de serviços, do acesso a bens e
aos mercados, além de outras atribuições necessárias para o sucesso do ator

142
“Like all war economies, ‘civil war economies’ are distinguished by the militarization of
economic life and the mobilization of economic assets and activity to finance the prosecution of
war. But recent scholarship has identified several features unique to the economies of civil wars:
they are parasitic (...); they are illicit (...); and they are predatory (...)” (Ballentine e Sherman,
2003, p. 2).
Novas Guerras, Segurança e violência 189

político acaba por criar um círculo vicioso que beneficiaria os combatentes e os


estimularia a manter a violência ativa, prejudicando o retorno às condições sociais
“normais”.

Mais uma vez, fica evidente aqui as condições vantajosas que a guerra e o
uso da força adquirem em comparação aos benefícios da política em tempos de
paz. Se houve a opção inicial pelo uso da força em detrimento a outros
mecanismos de alocação de disputa, é porque estes aparentaram ser mais
vantajosos. Uma vez que a dinâmica da violência das novas guerras – a
combinação de elementos de insurgência, guerrilha e crime organizado – torna-se
difundida, as possibilidades das partes de abandonarem essa forma de
relacionamento social são parcas. Afinal, há a mudança na lógica que norteia o
uso da força: se durante as guerras trinitárias a guerra é o fim e a violência é o
meio, nas novas guerras o fim é a violência e o meio é a perpetuação da guerra,
que traz benefícios imediatos (Keen, 2000, p. 29). Cria-se incentivos para que a
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violência se mantenha, impactando nas práticas sociais e na criação dos padrões


de inclusão e exclusão inter- e intra-grupos. A paz se torna pouco atrativa –
quando não indesejada, dado que as perspectivas que dela decorreriam não
permitiriam aos beligerantes manter as expectativas que criaram a partir das
dinâmicas da guerra.

As políticas de identidade constituem um importante aspecto para a


compreensão das novas guerras não apenas em razão dos impactos que promovem
no questionamento do papel do Estado e na forma como a violência organizada
perde sua institucionalização característica, mas também serviriam para justificar
práticas de homogeneização violenta em nome do controle de grupos políticos em
determinadas regiões. Essas políticas de identidade, pelo próprio formato
assumido, visando a exclusão e a formação de uma unidade sóciopolítica menos
universalista, permite rever o modo como a força é utilizada socialmente. No
entanto, não é apenas a questão da identidade a responsável pela mudança na
natureza da violência: as políticas de identidade não sustentam, por si só, a
continuidade, nem tampouco a prática reiterada da violência com base em rótulos.

Há de se pensar que, visto que a guerra e o uso da força são elementos


originados da racionalidade política, a opção pela sua continuidade deve seguir
direção semelhante e, portanto, deve oferecer benefícios que justifiquem a sua
Marcelo Mello Valença 190

utilização em detrimento a outros instrumentos: “the point of war may be


precisely the legitimacy which it confers on actions that in peacetime would be
punished as crimes” (Keen, 2000, p. 26). O Estado, posto em xeque a partir de
sua (in)capacidade de suportar o antagonismo inter-grupos e oferecer condições
de isonomia para eles, careceria das condições para organizar um sistema
econômico produtivo ou, ao menos, inclusivo o suficiente para que não se
precisasse recorrer à violência ou à formas ilícitas de comportamento para garantir
a sobrevivência:

[t]erritorially-based production more or less collapses either as a result of


liberalization and the withdrawn of state support, or through physical destruction
(…), or because markets are cut off as a result of the disintegration of states,
fighting, or deliberate blockades imposed by outside powers, or more likely, by
fighting units on the ground, or because spare parts, raw material and fuel are
impossible to acquire. In some cases, a few valuable commodities continue to be
produced (…) and they provide a source of income for whoever can provide
“protection” (Kaldor, 2001, p. 101).

A sociedade não conseguiria sobreviver através de meios próprios, levando


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à sua fragmentação e à dependência de grupos criminosos e da ajuda externa. Os


beligerantes, orientados pelas e para as políticas de identidade, estimulariam a
violência estrutural, top-down, como forma de manter sua superioridade sobre
seus adversários e atingir os seus interesses, mesmo colocando em risco as
estruturas estatais de produção e de sobrevivência socioeconômica. Isto geraria a
depredação das vias oficiais de desenvolvimento econômico, esgotando as
possibilidades de um crescimento sustentável. Percebe-se também o
desenvolvimento de mecanismos informais de pressão sobre o mercado, como
controle da distribuição de produtos e bens essenciais decorrente dos discursos
motivadores das políticas de identidade, estimulando o mercado negro como fonte
de obtenção de bens essenciais para a sobrevivência.

Em função do colapso das estruturas formais de controle e de produção, a


população não encontraria as vias normais para manter suas relações econômicas
e suprir suas necessidades. Em face da falta de opções de que isso decorreria, a
espoliação dos recursos disponíveis à sua volta se inicia. Como parte desse
movimento de tentar garantir a sobrevivência em um ambiente inóspito, grupos
insatisfeitos começam a surgir, incorporando os clamores das políticas de
identidade e acarretando a privatização da violência e a quebra dos padrões
“normais” de política.
Novas Guerras, Segurança e violência 191

The violence may be intent on preserving their physical security; they may be
looking for excitement or for the immediate rectification of a perceived wrong.
They may also be following their own economic agendas. Even apparently
mindless acts of violence can make sense in this context (Keen, 1998, p. 46).

Independentemente do formato, dos objetivos buscados ou do nível de


institucionalização que possui, toda guerra depende de uma economia que a
sustente, que gere recursos para a sua prática e que alimente os grupos
beligerantes para que possam continuar engajados no esforço de guerra (Münkler,
2005). Crime organizado, banditismo e redes informais de comércio – muitas
vezes ilegais – se tornam elementos freqüentes e necessários nas novas guerras
para que os beligerantes possam se manter ativos na busca por seus interesses e,
de certo modo, captando adeptos para a sua “área de influência” (Keen, 1998;
Jung, 2005; Andreas, 2008). A dinâmica econômica e economicista, bem como
os fatores que dela decorrem constituiriam um segundo tipo de violência que não
é percebido nas guerras institucionalizadas e que tornariam a natureza da violência
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das novas guerras diferente da praticada naqueles conflitos armados.

Essa violência seria orientada e originada pela violência top-down, mas


assumiria aspectos bottom-up conforme fosse incorporada como parte das práticas
sociais. A cooptação e incorporação de civis na prática da violência organizada
seria a explicitação da quebra da institucionalização da guerra e da distinção entre
combatentes e não-combatentes, trazendo uma nova perspectiva de violência às
novas guerras e consolidando o seu caráter predatório em duas dimensões,
indissociáveis. Um exemplo é a descrição da forma como crianças eram
abduzidas por grupos beligerantes na África subsaariana para compor suas fileiras,
tal como ilustrada pelo artigo de Robert Kaplan (1994).143

Os elementos que evidenciariam a função da violência, ao mesmo tempo,


colocariam em xeque a própria legitimidade de se buscar vias pacíficas para a
transformação do conflito porque se por um lado evidenciariam mecanismos de

143
Como parte do processo de sua formação como soldados, ao invés de receber
treinamento para os combates, as crianças eram drogadas, de forma a alterar sua percepção da
realidade e afastar o medo. Dopadas, elas eram obrigadas a matar ou violentar prisioneiros, para
que qualquer constrangimento diante da prática da violência fosse superado. Finalmente, para
evitar que fugissem de volta para as suas famílias, essas crianças eram marcadas com o símbolo do
grupo e obrigadas a atacar seus próprios vilarejos, eliminando assim qualquer chance de retornar à
sua vida pretérita. De diferentes maneiras, mas seguindo essa mesma lógica, essa prática se
reproduzia em outras regiões do mundo, em outros cenários de guerra, impondo pesados custos
para a sociedade uma vez que a guerra fosse encerrada.
Marcelo Mello Valença 192

garantir a sobrevivência e os interesses dos envolvidos, por outro deslegitimariam


qualquer tentativa de conter a violência: não haveria alternativas para serem
oferecidas aos beligerantes, nem tampouco aqueles que sofreriam com a violência.

Mais do que o objetivo político, esses grupos eram motivados pelas


possibilidades econômicas decorrentes da guerra, que permitiam o enriquecimento
rápido de indivíduos que antes dela nada possuíam (Ballentine, 2003; Andreas,
2008). Sem essa lucratividade decorrente da guerra, não haveria o interesse em
privatizá-la (Münkler, 2005, p. 91). A economia incorpora, com isso, os aspectos
da violência, o que faz com que Herfried Münkler considere este o aspecto mais
importante das novas guerras.

Apesar da violência nas novas guerras apresentar como origem as políticas


de identidade promovidas e manipuladas pelas elites, sua incorporação social se
dá a partir da sua adoção por diversos segmentos da sociedade, sejam eles civis ou
militares, como solução para os seus próprios problemas (Keen, 2000, p. 25). Aos
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poucos se percebe a formação de uma cultura da violência, que pode atender por
diferentes nomes, mas que evidenciaria que a guerra seria não uma maneira de
atingir interesses políticos, mas uma forma de assegurar a sobrevivência e a
acumulação (Reno, 2000, p. 54).

Isso constituiria o fenômeno da violência de baixo para cima. Essa


violência, intimamente conectada com a de cima para baixo, visa responder a
demandas e a percepções de curto prazo quanto às condições – ou à percepção das
condições – proporcionadas pela violência estrutural no processo de exclusão e de
marginalização explicitados na seção anterior.

A continuidade dessas práticas de expropriação visariam o beneficio pessoal


dos envolvidos e não seriam motivados, a priori, em ideologias políticas ou
militares. Há a imagem de benefícios a partir da expropriação dos bens dos
excluídos, seja através de elementos tangíveis, como eletrodomésticos, dinheiro
ou imóveis, seja através de condições intangíveis, como prestígio ou vantagens de
natureza política, levando ao enriquecimento ou ascensão social.

Ainda que esses grupos e indivíduos pudessem ser associados a movimentos


maiores, a falta de constrangimento social os levaria a se organizar de maneira a
extrair melhores resultados, podendo ou não replicar as práticas da limpeza étnica
Novas Guerras, Segurança e violência 193

ou tão somente agirem de maneira criminosa, aproveitando-se do gap de


autoridade – ou da sua conivência – para alcançar seus interesses. A perpetuação
de tais práticas tornar-se-iam tão ou mais vantajosas do que aquelas encontradas
em um cenário de paz. Diante da ponderação racional entre as possibilidades de
ganho com a atividade criminosa e a inviabilidade de ascensão a partir de
atividades pacíficas, indivíduos e grupos buscariam o que a eles parecia ser a
única saída possível para alcançar seus interesses e necessidades. Para esses
grupos, a prática da guerra se torna associada um modo de acumulação primitiva
de recursos (Reno, 2000, p. 44), permitindo o crescimento de uns em detrimento
de outros. Sob essa ótica, a violência antes entendida como irracional começa a
fazer sentido (Keen, 2000, p. 21).

Essa busca por melhores condições seria escorada pelos sinais que
receberiam das autoridades políticas, formais ou não, de que haveria carta branca
para agir. A mera existência do conflito armado já possibilita que enxerguemos
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algum grau de impunidade, mas esta é aumentada a partir da própria incidência da


violência top-down.

As oportunidades para os indivíduos se manterem afastados dos conflitos


armados acabam por não existir diante dessa situação de insuficiência econômica
e social ou se mostrarem menos atrativas do que a beligerância: a própria
obtenção de bens, essenciais ou não para a sobrevivência, fica dependente da
submissão e/ou adesão aos grupos beligerantes. A imagem que é transmitida para
a sociedade é de que se tornar parte do conflito representaria não só a única
chance de ascensão social e econômica, quiçá de sobreviver às condições
impostas pela violência.

A associação entre a ausência de oportunidades para viver dentro da


legalidade e a necessidade de garantir os meios para a sua sobrevivência levaria,
portanto, diversos indivíduos a buscar na prática da violência a solução para seus
problemas. Isso explicaria tanto a adesão voluntária quanto a abdução forçada de
jovens e crianças para a luta: “[t]he line between coercion and voluntary
recruitment may be difficult to draw, particularly when attacks on civilians are
widespread” (Keen, 1998, p. 45). A construção e manutenção de uma cultura de
violência acaba por se basear e sustentar nesse contexto, tornando a violência um
Marcelo Mello Valença 194

fator de coesão social e de interação inter- e intra-grupos, como já vínhamos


colocando por todo este capítulo.

4.3.
Conclusão

Diante do exposto neste capítulo, sintetizamos nosso argumento de maneira


a encaminhá-lo para o aspecto mais amplo desta tese. Acusando uma carência no
tratamento da violência por parte das teorias de Segurança, trouxemos o fenômeno
das novas guerras para explicitar tal deficiência.

As novas guerras não surgem nas agendas de Segurança porque remetem a


um problema que se localizaria no vão deixado pelas teorias tradicionalistas e
pelas teorias críticas. Enquanto as primeiras enxergam no uso, controle e ameaça
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da força o objeto de estudos da área (Walt, 1991), estas se limitariam a analisar os


seus impactos na relação interestatal; as teorias críticas, por outro lado, fogem da
violência e da força como objeto de estudos para levantar uma problematização
sobre as questões que, em última instância, implicariam a sobrevivência dos atores
políticos. O problema é que a dimensão da violência nas novas guerras é
subteorizada e pouco analisada porque se encontraria no espaço do não-Estado,
justamente o lócus onde a Segurança atuaria.

Neste sentido, expusemos que o problema envolvendo o uso da força e suas


repercussões e conseqüências deixaram de ser o foco da Segurança e, com isso,
perdeu-se a dimensão que evidencia a sua utilidade, sua conexão com a prática
política. As novas guerras evidenciam tal fenômeno por trazer no uso da força a
função que residia nas mãos do Estado e que, em razão da própria dinâmica que
cerca esse tipo de conflito, demanda um entendimento diferente da forma como a
força e a violência são percebidas e abordadas.

Mesmo com todas as mudanças que nos permitem pensar em guerras


trinitárias e novas guerras, não aconteceu a alteração na sua natureza: a sua
proposta continua a mesma, tal como a imagem idílica de Clausewitz, mas sob
uma nova roupagem, continuando a ser o uso deliberado da força visando causar
danos em outrem para atingir fins políticos. “[W]ar is organized violence
Novas Guerras, Segurança e violência 195

threatened or waged for political purposes. That is its nature. If the behaviour
under scrutiny is other than that just defined, it is not war” (Gray, 2005, p. 30).

Logo – e correndo o risco de soarmos redundantes –, as novas guerras são e


devem ser encaradas como guerras. O modo como a força é utilizada para gerar a
violência é que foi alterado, assumindo novas dimensões e alvos (Kaldor, 2005,
sp.). Mesmo com a quebra de antigas distinções, continuam a caracterizar ações
políticas, mesmo que aparentando barbárie (Kaldor, 2001, p. 2), com o uso da
força se tornando um elemento de interação e coesão social. As novas guerras são
guerras e são novas.

As novas guerras trouxeram novos desafios, tanto no campo teórico quanto


na área política. Diferentemente das guerras trinitárias, onde o uso da força era
prescrito por uma série de normas e regras que determinavam a conduta
civilizada na guerra, i.e., que atos seriam ou não aceitáveis, demarcando a
separação entre a guerra e a paz, as novas guerras tornam tal distinção mais
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nebulosa.

Guerra e paz se tornam dois momentos que se sobrepõem, confundindo-se.


A separação entre esses dois momentos passa a não mais existir, dado que as
novas guerras criariam uma cultura de violência onde os mecanismos de alocação
de disputas envolveriam o recurso à força e a capacidade de impor dano ao seu
opositor, seja ele quem for e da maneira que se mostrar mais acessível.

Neste cenário, a violência consistiria em uma forma de relacionamento


social. A quebra da institucionalização da violência organizada, decorrente do fim
da separação trinitária clausewitziana se apresentaria como a causa principal da
perda do caráter político que cercava a guerra e, com ele, a perda da racionalidade
no uso da força. A perda do monopólio do uso legítimo da força por parte do
Estado e a sua conseqüente privatização da violência nas mãos de grupos não-
estatais que a utilizariam para atingir fins econômicos ou identitários seriam sinais
dessa mudança de natureza, afastando a utilidade política desse instrumento em
nome de uma violência sem limites, sem alvos e baseada em clamores pré-
estatais, não-modernos e, portanto, não-civilizados. Toda essa dinâmica
aconteceria dentro da Segurança que, uma vez entendida como aprofundada, pode
compreender e responder por si só a esses desafios, mantendo a sua autonomia e
Marcelo Mello Valença 196

coerência intelectuais e não mais sendo relegada a uma dimensão complementar


de áreas como a economia, governança e a filosofia.

Mais, as novas guerras, ao ressaltarem identidades diferentes das estatais,


rompem com o processo de identidades verticais para ressaltar identidades
horizontais surgidas das novas redes transnacionais, dotadas de particularidades
locais (Kaldor, 2001, p. 77-86). Daí remontaria a semelhança com o
medievalismo, visto que a fidelidade ou a identidade de um grupo estava
relacionada à uma lógica de fragmentação política que não se prendia,
necessariamente, a uma figura de autoridade verticalmente situada, mas no
sentimento de pertencimento a um grupo.

A perda do referencial estatal não causou a perda da sua natureza política,


mesmo que pusesse em risco o que se entende como o espaço de atuação da
Segurança. Isso se intensificaria graças aos impactos promovidos pela
globalização na estrutura do Estado e nas formas de organização dos grupos que
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travam as novas guerras evidenciam a quebra das divisões culturais e sócio-


econômicas que definiam a política moderna.

Mostramos que o uso da violência nas novas guerras tem como finalidade
atingir fins políticos, mas não mais uma política de idéias, visando projetos para o
futuro, de caráter universalista, para se focar em políticas de identidade,
demandando o poder a partir do estabelecimento de rótulos de caráter excludente,
exclusivo e tendente à fragmentação. Os objetivos das novas guerras continuam a
ser políticos, mobilizando elementos como economia, identidade e violência
(Kaldor, 2001, p. 110). A própria utilização da violência para alcançar esses
objetivos já expõe o caráter político das novas guerras: toda forma de violência é
política – e aqui não falamos apenas da violência praticada pelo Estado, mas
também de violências étnicas, criminosas e ideológicas (M. Smith, 2005, p. 34-
35).

Contudo, o pensamento moderno fez com que apenas a violência do Estado


fosse colocada como política, afastando esse tipo de lógica dos outros tipos de
violência. Algumas formas de violência seriam “mais políticas” que outras.
Como, então, pensar nos desafios impostos pelas novas guerras à Segurança?
Novas Guerras, Segurança e violência 197

As guerras tradicionais tinham em sua natureza a capacidade de conjugar a


violência de uma maneira politicamente relacionada aos objetivos buscados pelo
Estado. Para alcançar seus objetivos e superar a resistência de seus adversários,
também Estados, usava-se a força através dos exércitos estatais, de maneira direta,
visando causar danos no outro Estado. Os danos dirigiam-se, até mesmo pela
natureza da violência e do adversário, às capacidades dos Estados de se valerem
da força para resistir e ameaças outros Estados.

Nas novas guerras, a possibilidade de uso da força física não é afastada.


Muito pelo contrário, o uso da violência direta é um dos aspectos mais visíveis do
conflito armado, manifestado contra os indivíduos através de assassinatos
sistemáticos de membros de determinado rótulo e da violência sexual. Contra
coletividades podemos citar os cercos militares, como o de Sarajevo (Andreas,
2008), além de bombardeios e ataques contra cidades e vilarejos, entre outros
(Kaplan, 1994; Gourevitch, 1998; Foer, 2004; Kuper, 2006).
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A mudança na violência que se torna particularmente importante nas novas


guerras – e que permitiria que chamássemos esse fenômeno de novo – é a
utilização da força sem envolver alvos diretos, de forma quase invisível e inserida
nas estruturas políticas da sociedade, mas tendo como objetivo promover danos
contra grupos. A partir dos elementos que distinguiriam as novas guerras das
guerras tradicionais, podemos perceber como essa forma de violência incide na
sociedade, caracterizando o uso deliberado da força, militarizada e não-
militarizada, para atingir fins políticos.
5
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições
dos Estudos para a Paz e da macro-securitização

Este capítulo traz o instrumental teórico e analítico dos Estudos para a


Paz144 para compreender o papel assumido pela violência nas sociedades que
sofrem com as novas guerras, aproximando o conceito de violência do de ameaça
existencial, central para a Escola de Copenhague. Este movimento oferece dois
propósitos que se conectariam em um objetivo maior: o primeiro é reaproximar o
debate sobre violência da Segurança. A problematização da violência, tanto a
agressão per se, quanto o seu emprego mascarado por instituições políticas,
permitiria restabelecer a relação produtiva entre a teoria de Segurança e a prática
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política. Desta maneira, seria possível lidar com as novas guerras e entender o
papel assumido pela violência.

O segundo propósito é debater as limitações que essa não-problematização


ocasiona para a teoria do Estado da Escola de Copenhague, que limitaria
significativamente sua utilização para além dos limites europeus. Mostramos no
capítulo três que a Escola de Copenhague se posiciona de maneira crítica ao
processo de alargamento e desenvolveu um instrumental analítico que permite
enxergarmos segurança não como uma condição ideal a ser buscada, mas como
um aspecto das relações sociais que afetaria a sobrevivência do ator; tudo o que
recebe o rótulo de temas de segurança deve, portanto, ser evitado. Contudo, a sua
teoria carece de bases para analisar Estados que não correspondem ao modelo
europeu, i.e., do Estado desenvolvido e, acima de tudo, democrático.145

Mais especificamente, e dentro dos propósitos desta tese, a Escola de


Copenhague não desenvolve um mecanismo para analisar o Estado como

144
Em inglês, no original, Peace Studies.
145
Existe uma literatura ampla que trata com essa questão. Mais especificamente, podemos
achar nos autores realistas terceiro-mundistas e nos pós-colonialistas, tal como trabalhado em
3.3.2, críticas bastante contundentes ao processo de formação do Estado fora da Europa. Contudo,
como mostramos naquela seção, esses autores não são capazes de lidar com a violência de forma
satisfatória, pois associam o seu uso às elites, não considerando o impacto produzido em outros
grupos sociais.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 199
Estudos para a Paz e da macro-securitização

causador da ameaça existencial através de suas próprias estruturas de poder. O


processo de securitização não seria bem sucedido por conta do silêncio imposto à
audiência, oprimindo grupos políticos e indivíduos através de instituições que
excluiriam esses segmentos e perpetuariam essa condição.146

O processo de securitização negligenciaria as novas guerras e a violência


que dela decorre por justamente não compreender que essa marginalização e
opressão de grupos com identidades diferentes da dominante constituiriam
manifestações de violência. Não obstante essas limitações, defendemos naquele
capítulo que a Escola de Copenhague poderia ser útil para resgatarmos a dimensão
da violência na Segurança.

Neste contexto, este capítulo oferece as condições para pensarmos as novas


guerras à luz dos Estudos para a Paz e da própria Escola de Copenhague. Isso
seria atingido através da utilização do conceito de violência como análogo à
ameaça existencial e aplicando-o através de processos de macro-securitização, que
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permitiriam a visão da segurança como relacional e inserida em um contexto


social maior do que o mero egoísmo dos atores. Ao sugerir tal objetivo,
oferecemos, também, os mecanismos para entendermos nosso estudo de caso,
apresentando no capítulo seis.

Estruturamos nosso argumento em quatro etapas. A primeira consiste em


um breve resgate da discussão realizada no capítulo três sobre as limitações da
Segurança em lidar com a violência, bem como expor a forma como isso
comprometeria o entendimento das ameaças que decorrem das novas guerras.
Isso é feito na seção 5.1.

Em 5.2 apresentamos as contribuições dos Estudos para a Paz que nos


auxiliariam no estudo da violência para as novas guerras. Entendendo como se dá
sua origem acadêmica e política, exploramos seu objeto de estudos – a violência e
a não-violência – para compreendermos o papel da violência nas novas guerras,
seja a violência direta ou aquela decorrente da injustiça social, a violência

146
Há, todavia, a referência ao setor social, que trataria de identidades coletivas que
funcionariam à margem do Estado, como religiões e grupos étnicos em uma sociedade multi-
étnica. Defendemos, contudo, que a ameaça existencial ao setor social carece daqueles problemas
expostos acima. Como a denunciação da ameaça existencial acontece através dos discursos de
securitização, em um Estado autoritário não há como verificar o sucesso do discurso junto às
audiências, especialmente porque o próprio Estado pode ser o causador da ameaça, silenciando o
setor social e mascarando esse tipo de ameaça.
Marcelo Mello Valença 200

estrutural. Com isso, é possível entendermos como o resgate dos Estudos para a
Paz pela Segurança contribui para o estudo das novas guerras.

A seção 5.3 justifica a escolha da Escola de Copenhague para analisar a


violência nas novas guerras. Estabelecendo os termos da relação entre ameaça
existencial e violência, oferecemos um diálogo entre esse corpo teórico e os
Estudos para a Paz e mostramos que a instrumentalização da abordagem através
dos processos de securitização evidenciaria a presença da violência. Ressaltamos,
contudo, as limitações que esse mecanismo oferece dentro da teoria do Estado da
Escola de Copenhague e, por isso, trazemos o conceito de macro-securitização
(Buzan e Wæver, 2009) para superar tais obstáculos.

Em 5.4 correlacionamos a macro-securitização, os Estudos para a Paz e as


novas guerras, entendendo a relação entre eles e sugerindo a forma como iremos
abordar nosso estudo de caso, exposto no próximo capítulo. Encerramos o
capítulo com algumas considerações à guisa de conclusão.
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5.1.
A ausência da problematização da violência na Segurança

Nos capítulos anteriores, expusemos que a literatura de Segurança deixou de


associar teoria e prática de forma produtiva ao deixar de lado o tema da violência.
A ausência de um debate que depurasse o conceito de violência fez com que as
teorias de Segurança deixassem de se preocupar com o uso deliberado da força e
da sua operacionalização para atingir fins políticos e passassem a buscar
elementos meta-teóricos que justificassem uma maior capacidade explicativa para
temas das agendas de Relações Internacionais, mas não para a Segurança. A
incorporação de novos temas à agenda de Segurança não só levou a um
aprofundamento desta, ou seja, à tentativas de entender a lógica da segurança, mas
também a um alargamento desenfreado do campo.

O Realismo, fiel às suas propostas de estudar a violência interestatal,


reconhece apenas no uso, ameaça e controle da força armada militar o objeto da
Segurança. Com isso, os realistas não lidam com outras formas de uso da força,
ignorando-as, como acontece nas novas guerras. Essa visão foi contestada por
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 201
Estudos para a Paz e da macro-securitização

seus críticos, que buscaram oferecer novas dimensões para a segurança,


ampliando e alargando o campo para além das fronteiras impostas pelo Realismo.

Os liberais, estudados em 3.2, colocam a legitimidade da autoridade política


como fator essencial para a segurança, assim como a capacidade de oferecer bens
políticos. A violência se torna custosa demais, afetando a interdependência entre
os atores políticos. A importância do uso da força declina, enquanto temas como
legitimidade política e economia passam a ser freqüentes nas agendas políticas. A
Segurança deixa de ser vista como uma área que permitiria produzir estratégias
para o uso da força para atingir fins políticos para se tornar uma categoria onde
temas que afetariam a instabilidade política se localizariam. Com o
ampliacionismo liberal, quanto mais se fala em segurança, menos se discute
Segurança: o que temos são elementos que fortaleceriam ou poriam em risco a
legitimidade política. O uso da força é deslegitimado e retirado do debate, com a
violência perdendo sua centralidade. Ela se configuraria como conseqüência do
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não-alcance das condições de estabilidade, não de uma escolha deliberada.

Em oposição a esse movimento ampliacionista, surgem teorias que buscam


aprofundar a Segurança, de forma a entender a sua lógica. O movimento de
aprofundamento acusa que não bastaria incluir temas indiscriminadamente na
agenda de segurança: é preciso compreender o que é segurança, quais as
condições que permitem pensar em segurança para, então, podermos falar sobre
segurança. O alargamento é possível, mas não deve se sobrepor ao
aprofundamento. Trabalhamos com quatro correntes do aprofundamento.

Os Estudos Críticos de Segurança foram expostos em 3.3.1 como o conjunto


de teorias críticas à perspectiva tradicional, realista, que tem como foco principal
explorar o objeto referente da Segurança. Ainda que formados por diversas
vertentes teóricas, os Estudos Críticos de Segurança constituem um arcabouço
coerente e que proporciona um diálogo com o Realismo. Dividimo-nos em duas
vertentes, os Estudos Críticos e a Escola Galesa.

No caso dos Estudos Críticos, estes propõem que, diferentemente do


ampliacionismo liberal, não se deve transformar qualquer problema em segurança,
mas tornar a segurança um problema político. Os Estudos Críticos colocam novas
bases na compreensão da segurança como relacionada à sobrevivência do agente.
Seu objetivo é entender sob que condições sociopolíticas determinados temas
Marcelo Mello Valença 202

devem ser – e de fato o são – lidos como segurança. O foco dado é na


sobrevivência do indivíduo e nas condições que o ameacem. Porém, ao realizar
este movimento, qualquer ameaça à sobrevivência se tornaria objeto da Segurança
– incluindo a violência. Perde-se o aspecto volitivo da ameaça, que caracterizaria
a Segurança como a área onde a violência é utilizada com fins políticos.

A Escola Galesa, por sua vez, tenta responder a três perguntas na sua
compreensão da segurança: o que é real, o que é conhecimento e o que pode ser
feito. O motivo de tais perguntas é explorar as implicações da segurança sem
repetir o discurso hegemônico. Assim, o foco deixa de ser na violência para se
concentrar na emancipação, i.e., nas condições que libertariam os indivíduos dos
constrangimentos criados por estruturas de poder e que silenciariam
questionamentos contrários ao dominante. A violência passa a ser lida como a
limitação decorrente da presença do Estado, universalizante e homogeneizante. O
uso da força é apenas uma das dimensões que impediria a emancipação, não
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assumindo a centralidade que lhe era cabido.

Os propositores da Segurança Humana – trabalhada em 3.3.2 – tentam,


assim como os Estudos Críticos de Segurança, focar no indivíduo, mas
reconhecem que o pensamento estadocêntrico não pode ser desprezado. Desta
forma, buscam uma agenda mais inclusiva e que proporcione estratégias que
levem à eliminação das condições que constranjam a liberdade humana. Todavia,
apesar de sua tentativa de conectar o foco no indivíduo como objeto de segurança
com a política estadocêntrica, não conseguem produzir uma teoria coerente, dado
que ao incluírem uma variedade grande de propostas, não conseguem definir uma
estratégia particular. Isso impactaria na relação produtiva da teoria com a prática,
algo importante para a compreensão da violência.

A Escola de Paris, abordada em 3.3.3, oferece uma dimensão normativa que


prevê a segurança como construída a partir da operacionalização das práticas de
securitização, i.e., da instrumentalização técnica das práticas que evidenciam a
(in)segurança através de agências especializadas, de modo a gerar a incorporação
racional dessas técnicas no dia-a-dia. A violência é entendida não como o uso da
força, mas como práticas criadas pelas estruturas das agências para gerar
insegurança. Isto faz com que a Segurança em si também seja negligenciada em
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 203
Estudos para a Paz e da macro-securitização

prol de um estudo sociológico da sociedade e de seus mecanismos de dominação e


reprodução dessa ordem.

Analisada em 3.3.4, a Escola de Copenhague se foca em entender a


segurança não como um ideal, mas como um alerta de que a sobrevivência do ator
está ameaçado por ameaças existenciais. O objetivo é restringir as condições que
falam sobre segurança, mas permitindo compreender que temas de diferentes
áreas podem fazer parte do seu estudo. Há o aprofundamento e o alargamento
coerente. O processo de construção social da ameaça através dos atos discursivos
de securitização mostra-se útil para entender a relação teoria-prática, que foi
gradualmente abandonada pela Segurança, mesmo com as limitações impostas
pela sua teoria do Estado.

Diante destas propostas de entender o que está por detrás da segurança, as


teorias de Segurança não ofereceriam o instrumental necessário para perceber o
papel assumido pela violência nas novas guerras. Como expusemos no capítulo
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quatro, a violência deixa de ser apenas um meio para atingir objetivos políticos
para se tornar um fim em si mesmo. O uso da força assume dimensões que vão
além do entendimento realista, não se resumindo apenas na utilização de
mecanismos físicos para causar dano, mas também no uso deliberado de recursos
estruturais, psicológicos e políticos para atingir o adversário. Ademais, a prática
da violência motiva e orienta as relações sociais inter- e intra-grupos políticos,
moldando uma cultura de violência que se perpetua conforme os benefícios do uso
da força são percebidos pelos envolvidos, seja no pólo ativo ou no passivo.

De modo a proporcionar um melhor entendimento do papel da violência


para a Segurança, resgatamos a Escola de Copenhague neste capítulo. Sugerimos
que a Escola de Copenhague oferece um instrumental analítico capaz de perceber
o papel da violência nas novas guerras, mas carece de dois aspectos. O primeiro é
a própria ausência de problematização da violência, já que o foco é na ameaça
existencial. O outro é a sua teoria de Estado, que restringe a habilidade do ato
discursivo de produzir efeitos em Estados que fujam do modelo europeu. Assim,
a Escola de Copenhague se mostra útil para oferecer instrumentos conceituais para
entendermos a violência nas novas guerras, mas não bastaria por si só.

Propomos a utilização do instrumental crítico dos Estudos para a Paz para


uma análise voltada para o fenômeno da violência como idéia análoga à ameaça
Marcelo Mello Valença 204

existencial. Esperamos com isso devolver o conceito de violência para os estudos


de Segurança, resgatando a relação entre teoria e prática que foi perdida ao longo
do debate sobre o aprofundamento do campo. E, até mesmo pelas ressalvas já
feitas quanto às limitações da Escola de Copenhague para tal empreendimento,
apresentaremos junto à contribuição dos Estudos para a Paz uma alternativa,
nascida dentro da própria Escola de Copenhague, para superar suas limitações.

5.2.
A Contribuição dos Estudos para a Paz

Surgidos inicialmente no pós-I Guerra Mundial, mas constituídos


formalmente como disciplina apenas no momento posterior à II Guerra Mundial a
partir de uma lógica multidisciplinar e pragmática (Barash, 1992, p. 25; Rogers,
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2007, p. 36; Lawler; 2008, p. 74), os Estudos para a Paz consistem em uma
alternativa acadêmica e política para tratar de temas relacionados à desigualdade,
injustiça e assimetria de poder.147 Em um mundo onde a corrida armamentista
ocupava espaço central nas agendas políticas internacionais, a violência dos
processos de descolonização africano e asiático assumiam dimensões pessimistas
e acadêmicos de diferentes formações buscavam oferecer explicações para a
crescente tensão internacional, os Estudos para a Paz se desenvolveram
especialmente em países da Escandinávia e da América do Norte (Rogers, 2007,
p. 36-39; Lawler, 2008, p. 77).

Peace studies is perhaps now best understood, then, as a site or intellectual space
for the bringing together of scholars who, by and large, openly declare a
commitment to non-violence, or – to borrow from the title of a book by peace
research’s most famous figure – the realization of ‘peace by peaceful means’
(Lawler, 2008, p. 75).

147
Sobre as origens acadêmicas dos Estudos para a Paz, encontramos no artigo de Peter van
den Dungen e Lawrence S. Wittner (2003), que serve de introdução à edição especial do periódico
Journal of Peace Research sobre História da Paz, um breve, mas denso retrospecto das
contribuições teóricas e da evolução do campo como disciplina acadêmica. Os autores trazem
neste artigo uma revisão das agendas de pesquisa e das contribuições teóricas dos Estudos para a
Paz, mostrando como o crescimento do campo levou, também, ao crescimento das oportunidades
de publicação. Outras obras que trazem uma leitura da origem do campo são Barash (1992) e
Lawler (2008); reconhecendo a importância dos Estudos para a Paz para a política internacional
contemporânea, Patomäki (2001), Rogers (2007) e Lawler (2008) propõe agendas de pesquisa para
a área no pós-Guerra Fria.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 205
Estudos para a Paz e da macro-securitização

Afastando-se do foco até então demonstrado pelas teorias de Relações


Internacionais, que se preocupavam em compreender fundamentalmente o
fenômeno da guerra, os Estudos para a Paz apresentam como objeto de estudo a
violência, em suas diferentes manifestações (Boulding, 2000, p. 4):

an academic field which identifies and analyzes the violent and nonviolent
behaviors as well as the structural mechanisms attending social conflicts with a
view towards understanding those processes which lead to a more desirable human
condition (Dugan, 1989, p. 74).

Não à toa as definições e conceitos mais importantes desta teoria têm a


violência como referencial, permitindo que se pense o que representa paz, conflito
e desenvolvimento a partir do conceito de violência (Galtung, 1969; Galtung,
1990; Rogers, 2007). A violência é entendida como a presença de condições que
influenciam os seres humanos de tal maneira que suas realizações somáticas e
mentais estejam aquém do que o seu potencial permite (Galtung, 1969, p. 168).

Diferentemente das teorias de Relações Internacionais e da perspectiva


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realista de Segurança, os Estudos para a Paz se voltam para o estudo da guerra não
como objeto central de suas preocupações, mas como uma das diversas formas de
enxergar a violência. Neste sentido, ao invés de seguir a tendência da Ciência
Política e das Relações Internacionais, que afirmam que a paz decorre da ausência
da guerra, criando uma dicotomia irresistível, os Estudos para a Paz sugerem que
paz é a ausência de violência (Galtung, 1969, p. 167). O debate trazido pelos
Estudos para a Paz aponta questões que consigam explicar a busca pela
estabilidade e não-violência através da análise da paz e do bem estar social.
Dentro desta idéia se desenvolveria a dinâmica do campo, propondo a ampliação
do conceito de paz, considerando-o mais do que a mera contraposição ao
fenômeno da guerra. A paz consistiria na preservação dos elementos que
garantem a potencialidade humana; sua antítese seriam as condições que
impedissem este desenvolvimento.

A preocupação com a guerra seria exagerada, pois ela representaria apenas


um pedaço pequeno da vida social; tal inquietação estaria vinculada a um foco
incorreto, não representando as verdadeiras dificuldades encontradas para a
preservação do indivíduo. O desconforto das teorias tradicionais com a segurança
evidenciaria um foco impreciso nos problemas sociais. Destarte, ainda que o
problema da guerra não fosse menosprezado, ele faria parte de uma preocupação
Marcelo Mello Valença 206

maior com os efeitos da violência a partir de uma perspectiva mais generalista,


que comporia a agenda maximalista dos Estudos para a Paz (Rogers, 2007,
p. 41).148

Nas subseções seguintes trabalhamos com o objeto dos Estudos para a Paz,
principais conceitos e seus objetivos. Esperamos que ao final de nossa exposição
reste claro ao leitor de que maneira essa área do conhecimento é capaz de nos
auxiliar a entender a violência de maneira politicamente relevante na Segurança.

5.2.1.
A violência como objeto de estudos e a redução da violência como
objetivo de pesquisa

Uma teoria, para ser considerada boa, deve ser capaz de delimitar seu objeto
de estudo em classificações condizentes com a realidade (Boulding, 2000, p. 3).
Os Estudos para a Paz, ao se encaixarem nesta normatividade, definem seu objeto
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de estudos de uma forma clara, diferenciando-os de outras teorias que explicariam


– em maior ou menor grau – o mesmo fenômeno. A área busca novas
oportunidades de cooperação visando a redução da violência, especialmente da
violência organizada – a guerra –, cada vez mais destrutiva (Barash, 1992, p. 29).

Esta delimitação do objeto acontece em função da conexão dos Estudos para


a Paz com o campo político e, portanto, da necessidade de se adaptar aos

148
Como exposto por Kenneth Boulding (2000, p. 4), não há motivos para considerar a
guerra, algo que ocuparia menos de um por cento do tempo da humanidade, como preocupação
central de uma área de estudos que se volta para a promoção de melhores condições para o
desenvolvimento humano. Não obstante este posicionamento, o autor reconhece os impactos
produzidos pela guerra, mas justifica a relevância da área com base neste dado. A guerra, quando
ocorre, é mais rápida e violenta do que costumava ser, produzindo efeitos que se prolongam no
tempo e que atingem diretamente a população. Só que a guerra é apenas uma parcela pequena das
relações sociais: o que predomina são seus efeitos estruturais, pois a agressão física é imediata; a
lembrança do sofrimento, contudo, é o que fica. Todavia, sua limitação é vista como objetivo
primário, enquanto a criação de condições para a paz é algo tomado em longo prazo e, por vezes,
negligenciado quando o elemento positivo da violência – a agressão imediata – é suprimido. O
que a história nos mostra é que a redução das guerras é uma realidade, enquanto o aumento da
violência tem sido uma constante. Os Estudos para a Paz buscariam, pois, suprir esta carência,
através do trabalho com as condições necessárias para atingir o potencial humano e da proposta da
revisão de postulados e cenários institucionalizados que oprimam o indivíduo. Não apenas a
agressão imediata é estudada, mas todas as formas de violência direcionadas ao indivíduo
(Galtung, 1969). A agenda maximalista teria em sua composição a preocupação com as práticas
de violência direta, como é o caso da guerra, mas também se voltaria para outros aspectos como
igualdade e dignidade, bem como a preocupação com a supressão de estruturas que causassem a
injustiça social (Rogers, 2007, p. 41-42), que é tido por Johan Galtung como a violência estrutural
(Galtung, 1969, p. 171).
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 207
Estudos para a Paz e da macro-securitização

fenômenos sociais, oferecendo material analítico para a sua compreensão (Barash,


1992, p. 25).149 Neste sentido, Johan Galtung, certamente o nome mais
importante do campo (Barash, 1992, p. 8; Lawler, 2008, p. 79), estende o conceito
de violência para algo mais do que a agressão física ao indivíduo, como entendido
pelas Relações Internacionais e pela Segurança realista. A definição de violência
não se esgota em um ato previamente estabelecido, mas evidencia elementos que
tolhem o potencial humano, criando uma assimetria entre o que é obtido e o que
poderia sê-lo. Tal abstração permite que pensemos na possibilidade da violência
mesmo nos chamados períodos de paz, ou seja, nos períodos tradicionalmente
entendidos como não havendo a incidência da guerra: ater-se à idéia de estudar a
guerra e a não-guerra, tal como as Relações Internacionais, é replicar um modelo
já existente e por isso não ofereceria contribuição teórica e política alguma.

O objeto de estudos dos Estudos para a Paz como campo acadêmico se


volta, portanto, para o fenômeno da violência e, em conseqüência disso, da não-
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violência (Galtung, 1969, p. 168-174; Boulding, 2000, p. 4-5). E é justamente da


idéia de não-violência que surge o conceito de paz para essa corrente: “peace is
the absence of violence” (Galtung, 1969, p. 167).

Pensar em paz apenas como ausência da guerra é restringir os esforços


teóricos e políticos dos Estudos para a Paz à limitação da guerra (Beer, 2000,
p. 15-16). A correlação que é estabelecida entre paz e saúde, ou seja, entre paz e
equilíbrio, faz com que aquele conceito seja colocado acima da política (Lawler,
2008, p. 81), como se reflete nos pressupostos expressos na Carta da ONU e
também em sua prática, em um patamar de maior importância: não importaria o
que fosse considerado o interesse do Estado ou do ator, a paz estaria acima de
tudo. Por derivação, a ausência da violência estaria acima da política.

Isso é particularmente importante para o argumento desta tese porque, ao


fugir de definições exaustivas, os Estudos para a Paz proporcionam condições
para se pensar na correlação entre teoria e prática de uma forma tal que seus

149
Assim como o Realismo, os Estudos para a Paz se aproxima do campo político, mas de
formas diferentes. Enquanto aquele está intimamente relacionado – ou ambiciona se localizar
próximo – ao processo decisório, os Estudos para a Paz se aproximam da política ao tentar
entender e repercutir na agenda de temas para mitigar e eliminar as condições que geram violência.
Os Estudos para a Paz se constituem, assim, em uma crítica à agenda e à mobilização
proporcionadas pela predominância realista na Segurança.
Marcelo Mello Valença 208

principais conceitos e contribuições não ficam presos a um cenário sociopolítico


particular. Ademais, permite sua aplicação em uma miríade de situações, culturas
e tempos diferentes.

Torna-se necessário, pois, entender a categorização do objeto de estudos da


área, ou seja, da tipologia que é desenvolvida para compreender a violência. Uma
vez compreendidas as formas que a violência pode assumir, sua dimensão social e
seus impactos, podemos nos voltar para os objetivos da agenda de estudos da área,
a redução da violência ou, em outras palavras, a construção da paz (Galtung,
1964, p. 3).

5.2.2.
Uma tipologia da violência

Como exposto, não há uma definição descritiva por parte dos Estudos para a
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Paz dos atos que constituiriam a prática da violência. Johan Galtung reconhece
que uma definição objetiva de violência é uma tarefa problemática porque vincula
o conceito a uma realidade social que não necessariamente se repetiria em outros
momentos históricos ou sociedades. Destarte, “(...) the concept of violence must
be broad enough to include the most significant varieties, yet specific enough to
serve as a basis for concrete action” (Galtung, 1969, p. 168). Neste sentido, os
Estudos para a Paz se focam em enxergar as condições nas quais a violência se
torna visível e impacta o relacionamento social. Mesmo que o estudo da violência
revele um cenário desagradável, esta é uma realidade que deve ser encarada,
conhecida e entendida (Galtung, 1990, p. 293).

Podemos acusar a presença da violência, portanto, quando “human beings


are being influenced so that their actual somatic and mental realizations are below
their potential realizations” (Galtung, 1969, p. 168). Temos, assim, que a
definição de violência não se esgota em um ou mais atos praticados por um agente
contra um objeto – tal como a guerra, a violência realista –, mas expressa
elementos de um relacionamento que acusa a existência deliberada de
determinadas condições que impediriam o pleno desenvolvimento das
capacidades do objeto. Em outras palavras, a violência é a assimetria percebida
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 209
Estudos para a Paz e da macro-securitização

entre o real – aquilo que se obtém na prática – e o potencial – aquilo que se espera
razoável em determinada cultura, em um espaço e tempo específicos.

Pensar em violência nestes termos nos levaria a seis reflexões sobre a forma,
a intencionalidade e a agência da relação que ocasiona a violência (Galtung, 1969,
p. 169-174).150 Para a compreensão da tipologia da violência dos Estudos para a
Paz, entender essas distinções se mostra importante. Desta forma, as duas
primeiras reflexões por ele propostas se voltam para a forma da violência; as duas
seguintes se dirigem à agência; finalmente, as duas últimas vão pensar na
intencionalidade e na potencialidade da sua presença.

A primeira reflexão traz a distinção – e, por que não, a conexão – entre a


dimensão física e a psicológica da violência. Definições tradicionais – como a
própria idéia realista de uso deliberado da força para causar danos em outrem –
pressupõem a exclusividade da esfera somática na prática da violência. Contudo,
os impactos da violência psicológica são relevantes para a disparidade entre o real
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e o potencial, não podendo ser aquela ignorada pelo analista e pelo formulador de
decisões.

Pensar em termos positivos e negativos, ou comissivos e omissivos, é a


segunda reflexão proposta ao se discutir violência. A atribuição de recompensas –
um ato essencialmente comissivo – é o comportamento social natural quando algo
correto é praticado. De forma análoga, a punição é a resposta para aqueles que
cometem algo considerado errado e aquela geralmente constitui na negação de
alguma coisa – seja da liberdade, dos direitos ou da própria vida, em alguns casos.
Galtung sugere pensar em termos positivos e negativos para analisar as formas e
mecanismos de praticar a violência, entendendo que esta não acontece apenas
quando há a presença de algo, mas também quando a ausência de algum aspecto
social é notada.

No tocante à agência, a terceira e quarta reflexões buscam compreender o


objeto da violência e o sujeito que a ocasiona. Assim, podemos falar que há
violência se o objeto estudado não sofre dano? Àqueles que defendem que só há

150
Galtung (1969, p. 169) usa a expressão “distinção” ao invés de “reflexão”, tal como
fazemos. O que o autor busca ao criar essas distinções é abrir espaço para o pensamento crítico
utilizando-se de elementos pouco convencionais. Entendemos que, em português, possamos usar
“reflexão” sem qualquer prejuízo da idéia original, já que o que buscamos é compreender a
violência, explorando suas dimensões, elementos e incidências.
Marcelo Mello Valença 210

violência quando há dano, Galtung levanta a questão da ameaça e sua correlação


com a limitação do real. A ameaça, seja ela destinada à dimensão física ou à
psicológica, é uma forma de violência porque constrangeria o potencial de ação do
objeto.151

De forma semelhante, é necessária a presença de um ator especificamente


descrito no pólo ativo da relação para que a violência seja praticada? Alguns tipos
de violência, especialmente aqueles que causam danos físicos evidentes, precisam
sim de um ator atuando comissivamente para que a agressão se concretize. No
entanto, ainda existem outras formas de violência que proporcionam a disparidade
entre o potencial e o real – e isso fica evidente no pólo passivo da relação –, mas
que não se mostra possível identificar seu agente. Essa violência deixa de ser
menos violência por conta disso?

In both cases individuals may be killed or mutilated, hit or hurt in both senses of
these words, and manipulated by means of stick or carrot strategies. But whereas
in the first case these consequences can be traced back to concrete persons as
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actors, in the second case this is no longer meaningful. There may be any person
who directly harms another person in the structure. The violence is built into the
structure and shows up as unequal power and consequently as unequal life chances
(Galtung, 1969, p. 170-171).

Os Estudos para a Paz propõem, para superar essa questão, oferecem a


distinção entre violência direta – a agressão, a violência pessoal – e violência
estrutural, esta entendida, grosso modo, como injustiça social. Trabalhamos esses
dois conceitos adiante.152

A questão da intencionalidade da violência surge como elemento da quinta


reflexão. Se acreditarmos que a violência é fruto de ação da vontade, o aspecto
estrutural de sua incidência deixa de ser possível. Afinal, o agente é aquele que
demonstra vontade e é assim que se baseia o sistema de punições e recompensas
que mencionamos anteriormente. Contudo, como fica o estudo e a análise das

151
A própria definição realista de Segurança enxerga seu objeto de estudos como sendo o
uso, a ameaça e o controle da força militar (Walt, 1991, p. 222). Assim, ameaçar é, sim, criar
condições para a existência da violência.
152
Johan Galtung, em artigo publicado em 1990, traz ainda um terceiro tipo macro de
violência, a violência cultural. “Direct violence is an event; structural violence is a process with
ups and downs; cultural violence is an invariant, a permanence (...), remaining essentially the same
for long periods (...) (Galtung, 1990, p. 294). Apresentaremo-na também, de forma a
complementar nosso argumento e inserir essa tipologia na nossa proposição de entender as novas
guerras a partir da ótica da violência dos Estudos para a Paz, especialmente no que diz respeito às
políticas de identidade que sustentam a prática da violência nessas guerras.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 211
Estudos para a Paz e da macro-securitização

condições que geram violência, mas não se é possível identificar seu causador?
Se a paz implica a redução da violência, é importante que a dimensão não-
intencional da violência seja também estudada e considerada como tal.
A última reflexão diz respeito à visualização da violência. Galtung nos
instrui a pensar em violência manifesta e violência latente. No primeiro caso se
trata da violência observável, seja ela direta ou estrutural; no caso da latente “is
something which is not there, yet it might easily come about” (Galtung, 1969,
p. 172). Somada às demais reflexões propostas nos últimos parágrafos, a questão
da violência se mostrar aparente ou latente é um aspecto importante para a
compreensão do seu papel social, bem como da própria complementação das
proposições abordadas pelas teorias de Segurança discutidas anteriormente.
Expostas as reflexões, passamos a analisar a tipologia da violência definida pelos
Estudos para a Paz.
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5.2.2.1.
A Violência direta

A violência pessoal ou direta, como nos referiremos neste trabalho, é, em


poucas palavras, a violência que aparece e que pode ser registrada através de
imagens (Galtung, 1969, p. 173). É a maneira mais comum de se pensar
violência, envolvendo danos físicos que provocam dor ou, ainda, formas de abuso
verbal ou psicológico, com efeitos rápidos e dramáticos (Jeong, 2000, p. 19-20).

Esta categoria inclui os fatores que limitam o real através de manifestações


por parte de um agente direcionadas a um objeto específico, caracterizando uma
relação social. É, pois, pessoal, visível, não-estrutural e manifesta, afetando
corpo, mente e espírito (Galtung, 1996, p. 31).

A história é rica de exemplos de violência direta, sendo a guerra interestatal


seu exemplo mais recorrente, especialmente no campo das Relações
Internacionais. Agressões, assassinatos, tortura e o incitamento à traumas
psicológicos são outros exemplos que podemos trazer para ilustrar essa categoria.

Ademais, a própria Segurança, como expusemos no capítulo três, surge a


partir da necessidade do seu estudo: o proclame realista de se focar na ameaça,
controle e uso da força militar representa a preocupação original das Relações
Marcelo Mello Valença 212

Internacionais em estudar a guerra e as formas de evitá-la. O conseqüente debate


teórico que marcou a Segurança também toma como pressuposto essa forma de
violência, proclamando a sua obsolescência e a necessidade de repensar as
ameaças que recaiam sobre a sociedade. De todo modo, quando nos referimos a
violência ou ao uso da força nas Relações Internacionais, recaímos, instintiva e
não-intencionalmente, no conceito de violência direta.

Na dimensão e nos objetivos desta tese, não podemos deixar de mencionar


que a violência direta tem grande importância nas novas guerras. As práticas de
homogeneização que decorrem das políticas de identidade e refletem o caráter
mais visível das novas guerras – o confronto armado, a violência sexual, as
medidas visando a expulsão territorial com base no uso da força para gerar
desconforto – são manifestações de violência direta. Esta forma de violência
consegue alcançar explicações das teorias de Segurança, dado que é a maneira
como a própria guerra se caracterizaria. É, portanto, o conceito de violência direta
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uma idéia próxima e familiar à Segurança, que não nos exige problematização
demasiada.

5.2.2.2.
A Violência estrutural

Se o conceito de violência direta é de fácil assimilação e percepção, o


mesmo não se pode dizer da violência estrutural. Associada à injustiça gerada
pelas condições sociais e por instituições de poder e de cultura opressoras
(Galtung, 1969, p. 171), esta forma de violência é associada à redução da
qualidade de vida e à erosão dos valores humanos (Jeong, 2000, p. 20). Ela está
intimamente associada à própria estrutura social e cultural de um povo,
caracterizando uma forma indireta, quase invisível, de gerar a assimetria entre o
real e o potencial.

Structural violence has the effect of denying people important rights such as
economic opportunity, social and political equality, a sense of fulfillment and self-
worth, and so on. (…) Structural violence is another way of identifying
oppression. And oppression is widespread (Barash, 1992, p. 8).

Em razão de seu caráter institucional, a violência estrutural acaba por


apresentar um padrão estático de atuação. Em outras palavras, consolida-se em
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 213
Estudos para a Paz e da macro-securitização

elementos e estruturas sociais e, a partir deles, manifesta-se assumindo uma


continuidade que dificilmente consegue ser rompida, justamente por associar-se
não à uma repressão aberta, mas às regras e mecanismos sociais (Galtung, 1969,
p. 173). As estruturas da sociedade, sejam elas políticas, culturais, econômicas ou
sociais, geram condições que são explicadas como decorrentes das escolhas dos
atores, produzindo como resultado disso uma realidade aquém do potencial.
Como existe a disparidade entre segmentos da população, aqueles que têm seu
potencial limitado são colocados como mal sucedidos.

O conceito de violência estrutural vem para suprir as lacunas deixadas pela


noção de violência realista, que é atacada diretamente pelos Estudos para a Paz.
Ao distinguir entre violência direta e violência estrutural, os Estudos para a Paz se
engajam diretamente no debate com a teoria dominante à época de seu surgimento
e oferecem uma contribuição política e prática para a compreensão da Segurança.
Na concepção realista, o Estado é o garantidor da segurança, privilegiando as
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condições e estratégias para atingir seus objetivos, repercutindo este sucesso na


sua esfera doméstica e em seus cidadãos. Mesmo que às custas de uma parcela
destes, que é silenciada pelas estruturas estatais.

Neste contexto, a violência estrutural pode decorrer de instituições de poder


repressivas e excludentes que mascaram tais práticas com discursos políticos de
construção do interesse nacional em detrimento de oportunidades e condições
dignas a segmentos sociais. Assim, através da legitimação de discursos de
segurança nacional, de inclusão política ou de valorização de determinados
elementos culturais/étnicos, grupos e indivíduos acabariam por serem afastados do
cenário ordinário da política e da sociedade, tendo seus direitos e prerrogativas
cerceados, de maneira visível ou não. Discriminação, escravidão e violação de
direitos fundamentais podem ser elencados no rol de formas de se praticar a
violência estrutural.

No que tange às novas guerras, a violência estrutural está presente nas


condições sociopolíticas que levam os grupos e indivíduos a se valerem da força
para atingir seus objetivos e posteriormente optarem pela manutenção dessas
condições. Como a retórica política se baseia nas políticas de identidade para
diferenciar e privilegiar alguns grupos em detrimento de outros, as estruturas do
Marcelo Mello Valença 214

Estado acabam por construir mecanismos institucionais, sejam eles formais ou


não, que oprimem e excluem segmentos sociais.

Nesta lógica, mesmo que a violência não seja explícita, não se pode falar
que há condições satisfatórias para a manutenção de qualidade de vida decentes.
A opressão e o cerceamento de direitos e liberdades passa a ser visto como parte
de um contexto político que justificaria a tomada de certas decisões, tornando a
violência estrutural decorrente desse arranjo um elemento não-problematizado. O
uso da força física contra membros de grupos que evidenciem a diferença mascara
a violência estrutural nas novas guerras, ignorando o papel que a violência assume
(Galtung, 1969, p. 177), tal como demonstramos no capítulo anterior.

Destructive means are employed to force other people to accept unjust conditions
or economic inequality. At the same time, coercion can be sustained by a
psychological process. Threats of injury may bring complacency and repress a
demand for change. The asymmetric power relationship can become latent,
impersonal, subtle and unintentional once the will of one side is imposed on the
other by the organized use of force (Jeong, 2000, p. 22).
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Deste modo, o que surge aos olhos dos analistas e dos formuladores de
decisão não é a violência como fenômeno social, mas os sintomas de uma das
dimensões deste fenômenos. Compreender a violência estrutural e a forma como
ela opera, relacionando-se com a violência direta, nos conduz a um entendimento
mais completo da dinâmica social constituída pelas novas guerras.

5.2.2.3.
A Violência cultural

Não é incomum justificar ou legitimar atos de violência, direta ou estrutural,


a valores religiosos ou elementos culturais que podem causar medo ou ameaça a
outros em função de sua não-compreensão (Jeong, 2000, p. 23). Instituições
sociais e políticas de muitas sociedades se voltam para determinar quais
manifestações são aceitas e quais não o são, criando barreiras e padrões de
discriminação que se estendem a diferentes segmentos e grupos sociais. No caso
das novas guerras, as políticas de identidade que motivam os discursos e retórica
política acabam por promover essa dinâmica para justificar a criação de
identidades antagônicas, seja ela baseada em religião, idioma, ideologia ou arte.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 215
Estudos para a Paz e da macro-securitização

A esta forma de violência, que bebe nos conceitos de violência estrutural e de


violência direta, os Estudos para a Paz classificam como violência cultural.

O conceito de violência cultural se baseia em “aspects of culture, the


symbolic sphere of our existence (...) that can be used to justify or legitimize
direct or structural violence” (Galtung, 1990, p. 291), tornando o emprego da
violência aceitável sob determinadas condições. Envolve, assim, qualquer aspecto
da cultura que possa ser usado para estimular e legitimar atos de violência através
de um processo de socialização que ressalta aspectos de parte da cultura como
forma de rotular a diferença.153

A peculiaridade da violência cultural em relação aos outros dois tipos de


violência apresentados anteriormente é que ela constitui uma categoria em si
mesma, mas que congrega e é estruturada por elementos daqueles sem, contudo se
confundir ou limitar-se à um ou a outro. Enquanto a violência direta é a
manifestação mais clara e evidente da agressão, pois pressupõe a presença de um
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ator que pratica o ato contra um objeto, a violência estrutural é um processo


marcado pela continuidade que permite enxergar a violência ao longo do tempo,
mesmo que com altos e baixos.

A violência cultural, por sua vez, caracteriza-se pela continuidade e pouca


maleabilidade da estrutura – dada a própria dimensão da cultura de variar pouco e
lentamente –, mas que surge como aspecto visível em função da manifestação
contra grupos e indivíduos identificados com aquela cultura. É formada, portanto,
por elementos de violência estrutural e violência direta, mas não pode ser vista
como se esgotando em um ou noutro. “Direct violence is an event; structural
violence is a process with ups and downs; cultural violence is an invariant, a
permanence (...), remaining essentially the same for long periods (...) (Galtung,

153
Exemplo da utilização de extratos de uma cultura para justificar a violência praticada
contra seus membros e/ou adeptos pode ser encontrada na relação estabelecida entre a cultura
ocidental e o Islã. Como coloca Ali Kamel em seu livro “Sobre o Islã” (2007), aquela religião é
vista como belicosa e agressiva, o que gera manifestações de repúdio e de preocupação por parte
de outras culturas e religiões. Kamel no entanto ressalta que a violência quase determinista que
marcaria o Islã decorre de apenas uma ou duas sentenças de todo o Alcorão cujo sentido é
ambíguo (Kamel, 2007, p. 126-132) Esquece-se, por exemplo, que o Antigo Testamento, base das
religiões cristã e judaica, cria a imagem de um deus vingativo, mais agressivo que o deus
muçulmano. No entanto, a construção da ameaça se adequou àquela imagem, que foi reproduzida
continuamente ao longo do tempo, perpetuando a imagem da religião islâmica se voltar para a
violência e não para a harmonia e integração, que orienta todo o seu livro religioso.
Marcelo Mello Valença 216

1990, p. 294). A violência cultural apresenta elementos que remetem às seis


reflexões expostas anteriormente.

Ela pode assumir dimensão positiva e negativa, i.e., pode ser praticada tanto
através de posturas comissivas ou omissivas. Ademais, identifica-se na violência
cultural os pólos ativo e passivos da violência, permitindo que se compreenda a
origem e a destinação das práticas que caracterizariam tal fenômeno, mesmo que
tais pólos não explicitem especificamente quem são os atores envolvidos. A
intencionalidade também se mostra presente, já que há o direcionamento e a
justificação das práticas políticas para determinado grupo, o que deixa evidente o
elemento volitivo, mesmo quando falamos da violência estrutural. Finalmente, a
visibilidade também acontece na sua dimensão cultural de maneira manifesta e
latente: esta última fica caracterizada pelas estruturas sociais que produzem as
condições de violência, enquanto a primeira pelos atos praticados em razão das
diferenças culturais.
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No que tange à questão das novas guerras, a violência cultural surge como
elemento diretamente conectado aos discursos políticos e às políticas de
identidade. Não havendo como separá-la da violência direta, nem tampouco da
estrutural, a violência cultural pode ser entendida como a síntese da tensão entre
os grupos antagônicos, como o elemento que motiva e dá origem ao papel da
violência nestas guerras.

As práticas que sustentam a violência cultural provocam o – e são


impactadas por – medo e o receio decorrente da diferença. Mecanismos para
superar tal desconfiança levariam ao desenvolvimento de ações emergenciais
voltadas para a supressão da diferença, tolhendo a liberdade e os direitos dos tidos
como diferentes. Em uma lógica semelhante, processos institucionais, oficiais ou
não, cerceiam a potencialidade dos diferentes, fazendo incidir a violência
estrutural. A violência direta acontece estimulada pela própria dinâmica de
socialização, justificando e legitimando a agressão. “Violence can start at any
corner in the direct-structural-cultural violence triangle and is easily transmitted to
the other corners” (Galtung, 1990, p. 302). Esse ciclo vicioso leva a e perpetua as
dinâmicas do warfare das novas guerras, que ilustramos no capítulo anterior,
evidenciando o papel da violência na sociedade.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 217
Estudos para a Paz e da macro-securitização

5.2.3.
Paz ou redução da violência

Tendo como objeto de estudos a violência, entendida a partir da tipologia


tripartite da violência direta, estrutural e cultural, nos voltamos agora ao objetivo
dos Estudos para a Paz. Este é, como exposto, a redução da violência e,
conseqüentemente, a construção da paz estável (Galtung, 1969; Jeong, 2000;
Rogers, 2007; Lawler, 2008), oferecendo o instrumental teórico e prático para a
reestruturação do sistema internacional de modo a suportar maior igualdade,
justiça e tolerância entre os atores (Beer, 2000, p. 18).

Como definido anteriormente, paz é ausência de violência e esta é a


ausência dos fatores e condições que limitam o potencial humano, criando uma
assimetria entre o potencial e o real (Galtung, 1969, p. 167-168). Há a
problematização do que se entende por violência, que deixa a esfera física para
adentrar em áreas do social, político e econômico, entre outras. Desta maneira, as
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condições que criariam a paz para a Segurança e para as Relações Internacionais


se diferem daquelas dos Estudos para a Paz porque aqueles se limitariam à
ausência da guerra, da violência direta (Galtung, 1964, p. 2; Galtung, 1969,
p. 183; Jeong, 2000, p. 23): “[i]t suggests that peace is found whenever war or
other direct forms of organized violence are absent” (Barash, 1992, p. 7)

De acordo com os Estudos para a Paz, este tipo de paz é insuficiente e não
proporciona a capacidade de pensar paz plenamente. “An extended concept of
violence leads to an extended concept of peace” (Galtung, 1969, p. 183). A paz
decorrente da ausência da guerra é uma paz por omissão, não oferecendo bases
estáveis para superar as causas e conseqüências da guerra. Não à toa os Estudos
para a Paz referem-se ao cenário de ausência da violência direta como paz
negativa.

A paz negativa não corresponde, portanto, a um cenário de paz construída,


mas pode representar a derivação de alguma estratégia de punição ou de
deterrência (Jeong, 2000, p. 24), ou seja, da utilização da ameaça da força para
alterar o processo decisório de outrem (Payne e Dalton, 2002, p. 161-162).
Assim, a paz negativa e a ordem e estabilidade que dela decorrem são plenamente
compatíveis com um sistema opressivo que ocasionaria a violência estrutural
Marcelo Mello Valença 218

(Jeong, 2000, p. 24). A paz negativa não corresponde, portanto, ao alcance das
preocupações teóricas e políticas dos Estudos para a Paz.

A paz ambicionada pelos Estudos para a Paz é aquela que implica a


eliminação de todo e qualquer tipo de violência – direta, estrutural e cultural –, de
forma a criar uma condição de justiça social (Galtung, 1969, p. 183) onde a
integração humana fosse enxergada como possível (Galtung, 1964, p. 2). Trata-se
da paz positiva.

O ideário que sustenta a paz positiva permite que se fale na redução


completa das assimetrias entre o potencial e o real, conduzindo a humanidade a
um cenário onde a paz não fosse uma mera derivação da não-guerra, mas o
resultado da comissão humana. “(...) [P]ositive peace focuses on peace-building,
the establishment of a harmonious, nonexploitive social structures, and a
determination to work toward that goal even when war is not ongoing or
imminent” (Barash, 1992, p. 9). Esta mudança da perspectiva em como se encarar
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a paz – da violência ativa para uma violência estrutural – está ligada às dinâmicas
das relações e práticas sociais e à própria forma de se ver agressão e paz num dos
períodos mais longos de não-agressão da história, que é aquele que se segue após
o encerramento da II Guerra Mundial (Beer, 2000).

A tipologia de violência e a visão ampla do conceito de paz se apresentam


como dois aspectos que aproximam os Estudos da Paz da esfera prática da
formulação de decisões, da mesma maneira que estimula a reflexão acadêmica.
Com isso, diferentemente do que acontece com as teorias de Segurança críticas ao
Realismo, percebe-se uma aproximação das proposições teóricas ao seu campo de
aplicação. Os Estudos para a Paz evidenciariam a sua capacidade de serem uma
teoria que oferece a solução de problemas ao mesmo tempo que abrem espaço à
reflexão crítica para entender o campo de maneira abstrata, complementando os
estudos de Segurança de forma a enxergarem e levarem à sério a questão da
violência.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 219
Estudos para a Paz e da macro-securitização

5.2.4.
Contribuições para o estudo da Segurança e para a compreensão
das novas guerras

Uma teoria deve ser capaz de explicar coerentemente seu objeto de estudos,
aplicando-o ao mundo de verdade em categorias objetivas e concretas. Caso o
faça, essa teoria assume uma identidade própria e pode ser considerada boa,
conectando de maneira produtiva teoria e prática em seu esforço normativo
(Boulding, 2000).

Os Estudos para a Paz contribuem para a compreensão das novas guerras ao


trazer, como mencionado na seção anterior, a problematização da violência para a
análise da Segurança. Em complemento à problematização da violência, podemos
perceber também diferentes aspectos do uso deliberado da força para causar danos
em outrem, já que a violência direta – comumente associada à guerra – é
acompanhada de elementos sociais que produziriam danos “invisíveis” aos
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indivíduos e grupos, justificados por práticas políticas em razão das diferenças


culturais.

A preocupação dos Estudos para a Paz em desenvolver aspectos normativos


que tenham reflexo na prática política e não em uma meta-teoria ou crença
religiosa se deve ao fato de que trazer a dicotomia violência/não-violência para
um nível mais concreto que o das idéias impediria que a sua justificativa fosse
baseada em preceitos ideológicos. Ao tornar política a questão da violência,
evita-se que a sua repetição e afirmação naturalizem tal fenômeno.

In fact, it is not really important whether Peace Studies is recognized as a new


discipline, department, or program. Rather, what matters is that peace (as a
necessity and practice goal) and war, social injustice and ecological destruction (as
problems) be established as legitimate areas of concern and inquiry (Barash, 1992,
p. 27).

Desta maneira, e diferentemente das teorias apresentadas no capítulo três, a


proposta dos Estudos para a Paz conduzem o formulador de decisão e o analista
político a estimular e desenvolver mecanismos para a construção da paz e não
apenas estipular normativamente o que é a paz, como ela é posta em risco e como
deve ser atingida. Busca-se aqui proporcionar meios que conduzam a ela, não que
impliquem em paz, de maneira prescritiva (Ostergaard, 2000) como ocorre nas
teorias de Segurança.
Marcelo Mello Valença 220

Com isso, o objeto dos Estudos para a Paz – a violência – seria colocado no
foco principal nas abordagens de Segurança, escapando dos problemas conceituais
e empíricos que decorreriam o uso de termos imprecisos e semanticamente vagos
como “problemas“, “questões“ e “ameaças”.154 Esta terminologia é utilizada
pelas teorias de Segurança para se referir ao elemento que levaria o campo a sair
da sua inércia e enxergar a necessidade de pensar criticamente a segurança. Com
a utilização da violência como fator desencadeador do pensamento em Segurança,
conseguir-se-ia acrescentar uma dimensão empírica ao esforço teórico,
desenvolvendo mecanismos que permitiriam à Segurança oferecer um
instrumental capaz de impactar diretamente no processo político.

A mudança proporcionada pela utilização dos Estudos para a Paz como


ferramenta analítica para analisar a Segurança através do fenômeno da violência
permite que se enxergue nas novas guerras a motivação e a racionalidade do
emprego da força como mecanismo para atingir interesses. O papel assumido pela
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violência deixa de ser associado ao barbarismo para ser compreendido como uma
saída baseada em uma escolha racional. O uso deliberado da força para atingir
fins políticos passaria, assim, a ser compreendido a partir das esferas não só da
violência direta, mas também da estrutural e, principalmente, da cultural.

Tal visão se deve ao enfoque dado pelos Estudos para a Paz à violência e
não-violência e não mais à dicotomia guerra-paz, central nas Relações
Internacionais e, de certo modo, eliminando a dependência normativa e jurídica do
Estado como ator capaz de promover a guerra. Cabe ressaltar que a orientação
estadocêntrica foi o que norteou os estudos sobre a guerra, especialmente a
separação entre atores combatentes e não-combatentes, a racionalidade do Estado

154
Exemplos dessa terminologia estão em Walt (1991), Krause e Williams (1997), e Buzan
et al (1998), dentre outros autores. Walt fala que alguns temas, como meio ambiente e
desenvolvimento, são questões importantes, mas não constituem problemas de segurança. Para o
autor realista, problema seria apenas a questão da força militar e do statecraft. Em resposta a
Walt, Krause e Williams afirmam que “problema” não é um conceito que possa ser empregado
como critério para definir essas questões como questões de segurança. O rótulo “problema” não
permite reorganizar aquilo que estudamos, nem tampouco oferece um critério para criar uma
compreensão comum do que falamos como sendo segurança e sobre o leque de opções políticas
possíveis para tratar desses problemas. Krause e Williams se voltam para o termo ameaça, pois
colocaria em risco a sobrevivência do ator político. Ameaça também é o termo escolhido por
Buzan e seus co-autores para apontar as questões que devem entrar na agenda de segurança – ou,
melhor – extrapolar a agenda da política e entrar no “estado” da segurança. Os Estudos para a Paz
sustentariam, assim, o termo violência para acusar a necessidade de se pensar em ações visando à
paz – ou à segurança.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 221
Estudos para a Paz e da macro-securitização

e a própria lógica da paz entre Estados. Como as novas guerras questionam o


papel do Estado, sendo percebidas como em um contexto onde a figura do Estado
não existe – ou não deveria existir –, entender a violência como fenômeno torna-
se analiticamente mais proveitoso para explicar as dinâmicas sociopolíticas das
novas guerras.

Uma boa teoria, como ressalta Kenneth Boulding, é aquela que consegue
identificar e trabalhar com as suas classificações aplicadas à realidade. É neste
contexto que os Estudos para a Paz ofereceriam contribuições para a Segurança,
complementando a proposta da Escola de Copenhague, cujo argumento
resgatamos adiante. Os Estudos para a Paz buscam prolongar os limites da não-
violência para que as condições que impeçam o desenvolvimento do indivíduo
sejam extirpadas e um conceito mais amplo de paz possa ser vislumbrado.
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5.3.
A Escolha da Escola de Copenhague para analisar a violência das
novas guerras

Conforme exposto na conclusão do capítulo três e ressaltado neste capítulo,


acreditamos que o modelo analítico proposto pela Escola de Copenhague nos
permite extrair contribuições relevantes do papel da violência nas novas guerras e,
com isso, resgatar a relação entre teoria e prática na Segurança. Apesar das
limitações em decorrência de seu modelo eurocêntrico, a Escola de Copenhague
oferece um modelo analiticamente mais abrangente e se preocupa com a coerência
realista ao mesmo tempo que abre espaço para reflexões acerca da lógica da
Segurança, contribuindo para o debate sobre o seu aprofundamento.

Trazemos nesta seção a correlação entre o modelo de Copenhague e a


violência entendida a partir do que foi exposto anteriormente sobre os Estudos
para a Paz. Começando pela relação que pode ser estabelecida entre ameaça
existencial e violência, mostramos que a contribuição dos Estudos para a Paz é de
grande utilidade para correlacionar o processo de securitização e dessecuritização
com a presença de elementos que impeçam o pleno desenvolvimento do potencial
humano.
Marcelo Mello Valença 222

Explicamos, então, o processo de securitização – e, por conseqüência, o de


dessecuritização – como forma de evidenciar a existência da assimetria entre o
potencial e o real. Apesar do potencial analítico que o modelo nos traz,
ressaltamos que ainda há limitações que dificultam o completo entendimento da
violência das novas guerras. Propomos a adoção do modelo da macro-
securitização (Buzan e Wæver, 2009) como forma de superar tais obstáculos.
Esta argumentação permite que passemos, na próxima seção, à construção de
nossa proposta analítica, ilustrada pelo capítulo seis.

5.3.1.
Relação Ameaça Existencial vs. Violência

De acordo com os postulados teóricos da Escola de Copenhague, segurança


é a versão mais extrema da politização (Buzan et al, 1998, p. 23). Isto implica a
idéia de que os temas securitizados são colocados em uma esfera acima da
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política, em um processo de quebra extraordinária de regras (Buzan et al, 1998,


p. 4), já que temas que recebem o rótulo de segurança são considerados como
ameaças à sobrevivência ou, representando ameaças existenciais.

Apesar de ameaças serem uma categoria que se replica na Segurança sem


que a sua conceitualização seja realizada, a Escola de Copenhague a problematiza
ao aplicar o adjetivo “existencial”. Tal classificação indicaria ao analista que,
diante de ameaças e fenômenos de diferentes naturezas e magnitudes, apenas
aquelas que afetam diretamente a sobrevivência do objeto referente, colocando-a
em risco, deve ser assunto de segurança: “(...) security is about survival” (Buzan
et al, 1998, p. 21).155 Caso essas ameaças não carreguem risco à sobrevivência,
elas não poderiam ser pensadas como segurança, mas como política, obedecendo
ao trâmite normal, às regras do jogo.

Os Estudos para a Paz colocam, por sua vez, o tema “violência” como sendo
uma condição que ameaça o potencial humano e que deveria ser tratado em um
patamar superior ao da política, dado à sua capacidade de afetar a ordem política e

155
Como colocado no capítulo três, a Escola de Copenhague leva à sério as preocupações
realistas expressas por Stephen Walt (1991) de que a ampliação indevida do objeto da Segurança
arruinaria com a sua coerência intelectual. Tal receio é expressamente relatado no livro de Buzan
et al (1998, p. 1): “[t]here are intellectual and political dangers in simply tacking the word security
onto ever wider range of issues” (itálico conforme o original).
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 223
Estudos para a Paz e da macro-securitização

a justiça social. Como, então, orientar a correlação entre estes dois conceitos,
ameaça existencial e violência, centrais para estas teorias, mas que não se
mostram explicitamente problematizados pela outra?

A resposta para esta pergunta está nos pontos de conexão dos conceitos. As
idéias de violência e ameaça existencial apresentam semelhanças que podem ser
trazidas como forma de complementar a teoria de Segurança da Escola de
Copenhague. Mesmo que a Escola de Copenhague não fale expressamente sobre
a equiparação da ameaça existencial à violência – seja ela entendida como o uso
deliberado da força ou como tendo outra definição – podemos perceber a
convergência desta teoria com os Estudos para a Paz no tocante às condições para
se enxergar a normalidade. As duas teorias partes de pressupostos diferentes, mas
suas condições de realização se aproximam.

Para a Escola de Copenhague, a ameaça existencial só pode ser considerada


em relação ao caráter do objeto referente, fazendo com que a natureza da ameaça
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varie conforme o tipo de ator e o setor onde ele se insere (Buzan et al, 1998, p. 21-
23). Isso a diferencia das teorias tradicionais, que qualificam o uso da força
militar como objeto de estudos, assim como as teorias liberais ampliacionistas,
que se focam na legitimidade da autoridade política. De forma semelhante,
contribui para evitar que a Escola de Copenhague recaia nas limitações de outras
teorias críticas de menosprezar condições concretas específicas que determinam
que a ameaça existencial é de fato direcionada contra determinado ator ou setor.
Como não há exclusão a priori de qualquer fonte que possa causar ameaças, a
Escola de Copenhague permite a ampliação coerente da agenda a partir de seu
aprofundamento.156

Logo, não se pode tomar ameaça existencial como fato não-problematizado


para esta corrente, devendo o analista considerar o que provoca a ameaça e quem
está sob seus efeitos. “Security means survival in the face of existential threats,

156
“As its advocates suggest, there is nothing about the securitization framework that
prevents it from being applied to groups other than states, but this is certainly the context in which
it has been most frequently employed. Here, political leaders can, from a position of authority,
claim to be speaking on behalf of the state or the nation, command public attention and enact
emergency measures (such as the deployment of troops). This is less a normative choice for the
Copenhagen School – a belief in where the study of security should be focused – than an analytical
one based on the commitment to the idea that ‘at the heart of the (security) concept we still find
something to do with defence and the state’ (Wæver 1995: 47)” (McDonald, 2008, p. 69).
Marcelo Mello Valença 224

but what constitutes an existential threat is not the same across different sectors”
(Buzan et al, 1998, p. 27).

Quando analisamos a construção da ameaça pelos agentes securitizadores,


vemos que ela acaba por significar a existência de uma condição ou fenômeno que
afeta o ator político e demanda a tomada de medidas extraordinárias para retornar
à normalidade e aos preceitos estabelecidos pela ordem social. Percebe-se, pois,
que o tipo de ameaça e a consideração sobre o seu potencial para afetar a
sobrevivência do seu referencial dependeriam, dentre outros fatores, do setor a
que estamos nos referindo e à dimensão que o impacto desta “ameaça” pode
assumir. A ausência de ameaças existenciais manteria as “regras do jogo”
intactas, caracterizando a política, que consistiria em “(...) part of the public
policy, requiring government decision and resource allocations or, more rarely,
some other formal of communal governance (...)” (Buzan et al, 1998, p. 23).

Para a Escola de Copenhague, portanto, o que denotaria a normalidade


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social – ou a não-violência, nos termos dos Estudos para a Paz – é a manutenção


de temas na dimensão da política, i.e., quando não há a quebra das regras do
jogos. Tal dinâmica nos aproxima da concepção de violência oferecida pelos
Estudos para a Paz na medida em que percebe a presença da ameaça existencial
como uma condição que impede a realização da justiça social, que é
corresponderia à normalidade para tal teoria.

Se considerarmos que a presença da ameaça existencial cria respostas


extraordinárias, podemos entender que tal saída conduz à limitação das
capacidades do ator de desempenhar seu papel em um dado cenário. Enquanto
medidas excepcionais estão em vigor, temas que fariam parte da agenda da
política são colocados em segundo plano, de modo a assegurar que os esforços
estão voltados para a solução de questões mais urgentes.

Não há, no entanto, uma problematização sobre o que significa e o que


representa a violência, já que a agenda da teoria conduz para processos políticos
montados em sociedades democráticas e Estados fortes. E isso se torna um
problema a ser solucionado porque restringe o foco da política para questões onde
o uso da força é afastado.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 225
Estudos para a Paz e da macro-securitização

Assim como a violência para os Estudos para a Paz evidencia a condição de


ruptura da ordem e exige o desenvolvimento de instrumentos analíticos para
restaurar o estado de não-violência, a ameaça existencial para a Escola de
Copenhague promove a quebra das regras, demandando ações emergenciais para
que a dessecuritização, o retorno à esfera da politização, aconteça. Tal como a
violência dos Estudos para a Paz, a ameaça existencial deve ser entendida à luz do
contexto que a origina e situa, criando não uma condição atemporal, mas um
estado que deve ser analisado e entendido conforme o ator e os elementos sociais
que o criam. Podemos assim, analogamente, assumir a presença da ameaça
existencial como uma forma de violência decorrente do uso deliberado da força
contra uma dimensão específica do agente – o seu setor – que impediria que este
ator desenvolvesse plenamente as condições dele esperadas.157

5.3.2.
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As Dinâmicas da Securitização

Considerando o argumento exposto acima, temos que a ameaça existencial


para a Escola de Copenhague pode ser associada por analogia à violência tal como
problematizada pelos Estudos para a Paz, dado que ambos envolveriam a
existência de condições que impediriam a normalidade e demandariam ações
imediatas e emergenciais para a sua resolução. Entretanto, se a verificação da
excepcionalidade para os Estudos para a Paz se dá a partir da percepção da
assimetria entre o potencial e o real, evidenciando a violência, o instrumental
analítico desenvolvido pela Escola de Copenhague segue um processo diferente.

Para entender a função política que a expressão “segurança” assume é


preciso perceber sob quais condições a manutenção da atividade política é
possível. A segurança não é vista como um tipo universal de bem a ser alcançado,
mas como um estado excepcional e emergencial, para além da política (Buzan et
al, 1998, p. 27): busca-se a restrição do uso político do termo segurança. Isso

157
No caso do Estado, por exemplo, ameaças existenciais ao seu setor político como, por
exemplo, à sua autoridade política, podem gerar respostas repressivas contra o que são
consideradas as origens destas ameaças. Isso conduziria, por exemplo, à limitação da capacidade
do Estado de oferecer plenamente a segurança, oportunidades de desenvolvimento para seus
cidadãos que, em caso de escalada, resultariam em problemas semelhantes àqueles que analisamos
no capítulo quatro, quando falamos das condições que perpetuariam as novas guerras.
Marcelo Mello Valença 226

acontece porque a política somente é possível quando há ausência de ameaças à


sobrevivência do ator. Mas como essa ausência é ameaçada?

Como exposto no capítulo três, é através do processo bem sucedido de


securitização que se caracteriza a existência de ameaças existenciais ao ator
político. Seu funcionamento se dá a partir da iniciativa de um ator securitizador
de promover um ato discursivo que caracterizaria uma ameaça existencial a um
determinado objeto de referência. O ato discursivo teria como objetivo alertar a
uma audiência específica a necessidade de tomar medidas excepcionais, já que a
ameaça estaria na esfera da segurança. A definição e a dimensão exatas do que
está sendo objeto do processo de securitização são constituídas através do
estabelecimento intersubjetivo da ameaça existencial entre o ator securitizador e a
audiência para a qual o ato discursivo é direcionado.

O processo de securitização tem como traço distintivo uma estrutura retórica


específica que permite identificar atores e fenômenos de segurança em outros
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setores além do militar-político. O ato discursivo é caracterizado, pois, por três


elementos: a ameaça existencial, as ações de emergência e a produção de efeitos
decorrentes do ato através da quebra das regras.

É a partir desta relação que surgiria o objeto da Segurança para a Escola de


Copenhague. Entretanto, apenas o processo bem sucedido de securitização – ou
seja, aquele que leva a ações emergenciais para lidar com ameaças e impactando
unidades políticas através das quebras de regras estabelecidas – ocasiona a
migração do tema da esfera da política para a da segurança. Caso o ato discursivo
não seja aceito pela audiência, não houve securitização bem sucedida, logo não
houve a adição de temas à agenda de segurança, por mais concreta e real que a
ameaça. A ameaça existencial não precisa se destacar pela violência direta, mas
precisaria se caracterizar, para ser entendida como violência, pela percepção do
uso deliberado da força contra indivíduos ou grupos políticos.

O processo de securitização ressalta o caráter socialmente constituído da


ameaça existencial e de sua dimensão politizada – servindo também, como
procuramos estabelecer, para ressaltar o papel da violência. Não há como se falar
em segurança a priori, tal como realistas e liberais afirmam. Da mesma forma,
não se encontra a ameaça existencial vinda de discursos e estruturas de poder
estatais, tal como trabalham as teorias críticas. O que temos é uma tensão
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 227
Estudos para a Paz e da macro-securitização

constante na esfera da política entre os atores que dela participam acerca dos
temas que devem permanecer nesta esfera e aqueles que deveriam ser
securitizados.

Neste sentido, analisar a violência como análoga à ameaça existencial que


decorre do processo de securitização bem sucedido se torna uma solução para
compreender os impactos das novas guerras para os estudos de Segurança. A
ausência de um debate sobre o papel da violência para a área seria suprimida na
medida em que a violência fosse encarada não como parte da esfera política, mas
como uma exceção. O diálogo entre os Estudos para a Paz e o processo de
securitização da Escola de Copenhague devolveria à Segurança instrumentos
conceituais – representados pelo conceito de violência –, permitindo que a relação
produtiva entre teoria e prática, eixo de questionamento da Segurança, fosse
resgatada.

Este diálogo traria a idéia de que violência é um fenômeno socialmente


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percebido e, ainda que entendida como o uso da força para causar dano em
outrem, tal definição deva ser lida caso a caso. As condições que criariam a
assimetria entre o potencial e o real, tal como a noção de ameaça existencial,
devem ser compreendidas não universalmente, mas a partir de análises e
elementos específicos, socialmente contextualizados.158 Não há como se apontar
formas únicas para que a violência se manifeste, como propõem os realistas.
Nem, tampouco, especular em termos meta-teóricos sobre as condições de
libertação do indivíduo e da sua plena realização.

O processo de securitização permitiria que a violência fosse analisada nas


novas guerras através do reconhecimento de que há condições incidentes sobre
grupos e indivíduos que geram a opressão e a redução de seu potencial. Esta
redução se dá em razão de práticas e ameaças que incidem socialmente sobre eles,
não apenas através do uso da força física, mas de condições estruturais e
institucionais que promovem deliberadamente danos. A securitização bem
sucedida produziria medidas excepcionais para acabar com esta violência.

158
O acesso a vacinas e medicamentos na Europa no século XX, por exemplo, é uma
possibilidade real para todos os indivíduos, enquanto que durante a Idade Média não o era. Assim,
morrer em razão da peste negra durante o século passado é uma violência, enquanto há quatro
séculos atrás não, dado que as possibilidades de cura eram praticamente inexistentes.
Marcelo Mello Valença 228

Os discursos que motivam as políticas de identidade, levando ao uso da


força contra indivíduos e grupos seriam lidos como ameaças à sobrevivência
destes, demandando a ação de outros atores para que esta ameaça existencial, i.e.,
a violência que poria em risco a sobrevivência desses atores, fosse encerrada.

Os atores securitizadores seriam os indivíduos e grupos que sofrem com a


violência, evidenciado a presença de elementos que põem em risco a sua
sobrevivência. A audiência seria formada pelos demais indivíduos e grupos que
compõem a sociedade, de forma a estimularem a tomada de medidas que
encerrem a violência. O objeto referente variaria conforme o setor contra o qual a
ameaça/violência é dirigida, especialmente no setor social, onde teríamos a
identidade coletiva destes indivíduos e grupos postos em risco pelas violência.159

A estrutura retórica do ato discursivo evidenciaria, assim, os pólos ativo e


passivo da violência, bem como o formato assumido pela ameaça, que afetaria não
apenas a dimensão física – a violência direta – como também as próprias
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condições que caracterizariam a justiça social – a violência estrutural. De modo


semelhante, as práticas instrumentalizadas pelas políticas de identidade
encontrariam em elementos característicos dos grupos e indivíduos a legitimação
e a motivação para a perpetuação daqueles atos – o que caracterizaria, em última
instância, a manifestação da violência cultural.

Valer-se da concepção de violência dos Estudos para a Paz permite que a


Escola de Copenhague problematize o papel da violência através do entendimento
de que esta é um elemento político, não apenas um instrumento de política. A
utilização combinada destes dois campos teóricos proporciona ao analista e ao
formulador de decisões a dimensão social da violência e não apenas uma imagem
pré-concebida, não-problematizada, como criada pelas teorias de Segurança. É a
conexão entre essas duas teorias uma perspectiva nova e politicamente relevante

159
Como expusemos no capítulo anterior, as novas guerras levantam ameaças em diversos
setores da sociedade, não apenas no social. O setor político, militar e econômico são bastante
afetados também pelas dinâmicas de violência, colocando em risco não só a própria dimensão
física da segurança, mas o sistema econômico de uma sociedade, a figura do Estado, entre outros
elementos. O setor ambiental também acaba sendo ameaçado, já que a expropriação do Estado
afeta não só a habilidade deste de prestar bens e serviços públicos, mas se dirige também aos seus
recursos, o que afetaria o seu equilíbrio sustentável através da relação da ação humana com o meio
ambiente.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 229
Estudos para a Paz e da macro-securitização

para se compreender tal fenômeno, suprimindo as lacunas deixadas pela


marginalização da violência.

A violência deve ser entendida como parte da interação entre atores, não
como um elemento periférico às relações sociais. Ela faz parte da política. Para
as novas guerras, o modelo da Escola de Copenhague de securitização e de
percepção da ameaça existencial permite enxergar a violência cometida em
setores como o identitário e o social, indo para além do militar. Mas, como
mostramos a seguir, a normatividade que está por trás do Estado para essa teoria
acaba por prejudicar sua aplicação fora do contexto de sociedades democráticas e
participativas.

5.3.3.
As Limitações da Securitização
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A securitização associada à análise da violência pelos Estudos para a Paz


oferece um instrumental analítico que permite enxergar a violência como fator
social, evidenciando a ameaça existencial através das práticas da sociedade.
Apesar deste modelo ser útil para explicar as dinâmicas sociais e o processo de
construção da ameaça e, conseqüentemente, de sua inserção na agenda da
segurança, nas novas guerras ele é silenciado pelas próprias estruturas que geram
a violência, tornando-o ineficaz.

Como apresentamos no capítulo três, dois problemas limitariam a utilização


do arcabouço teórico da Escola de Copenhague em ampla escala no estudo da
Segurança. O primeiro deles é a estrutura do processo de securitização, que
demanda abertura política suficiente para que o ator securitizador se manifeste e
que a sua audiência possa receber o ato discursivo sem ruídos. Ele se adapta ao
modelo eurocêntrico de Estado, desenvolvido e democrático, perdendo capacidade
explicativa quando trabalhamos com Estados menos abertos politicamente. O
segundo problema é que a segurança não é vista como um fato, mas como uma
condição que ameaça a sobrevivência do ator e que, desta maneira, seria de difícil
instrumentalização.

Buscamos contornar este segundo problema através do resgate do conceito


de violência dos Estudos para a Paz, de forma que a presença das condições que
Marcelo Mello Valença 230

geram violência acusem resultados aquém do potencial do ator político. Como os


Estudos para a Paz problematizam a violência, é possível perceber sua presença
através dos impactos que ela produz para o objeto. Quando há a assimetria entre o
potencial e o real, temos a presença da violência. A violência é, ao mesmo tempo,
um fato e uma condição que limitam o potencial do objeto analisado. Associar tal
problematização ao conceito de ameaça existencial faz com que a ameaça deixa
de ser apenas uma condição que põe em risco a sobrevivência para ser entendida
como um elemento social de facto, i.e., algo que impacta a ordem política e
produz efeitos.

Quanto ao primeiro problema, o do modelo eurocêntrico para que a ameaça


existencial encontre resguardo na audiência e produza os efeitos esperados para
temas de tal magnitude, este é um problema de resolução menos intuitiva. A
questão envolve três aspectos, que são (i) a teorização do Estado no modelo de
Copenhague, (ii) a definição estreita de política e (iii) as conseqüentes limitações
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para entender a violência como surgida a partir do próprio ator político.


Trataremos destes aspectos nos parágrafos seguintes.

Primeiramente, o problema da teoria do Estado para Copenhague limita o


tipo de Estado que seria suportaria o processo de securitização. Por pressupor a
presença e manifestação de vozes de diferentes origens, o Estado deve ser capaz
de lidar abertamente com a diferença. Idealmente, este modelo pressuporia
Estados democráticos cuja interação e preservação de vozes e pleitos distintos
evidenciaria a sua pluralidade e a legitimação da diferença. Em outras palavras,
sociedade e atores domésticos têm participação no processo político e podem se
manifestar diante de ameaças dirigidas a eles. Esta é uma maneira de atestar a
solidez do Estado e sua capacidade de oferecer bens políticos aos seus cidadãos.
Essa possibilidade, entretanto, não existe nos Estados do Terceiro Mundo, dado
que a vulnerabilidade é a tônica no seu processo de formação e manifestações
contra a elite dominante podem desencadear atos de repressão (Wilkinson, 2007;
Barthwal-Datta, 2009; Hayes, 2009).

Nestes Estados, as próprias estruturas de poder seriam responsáveis por


silenciar os atos discursivos ou obscurecer a resposta das audiências, de forma que
a recepção da ameaça existencial passa a ser prejudicada. Como não há a
aceitação – ou o reconhecimento dessa aceitação – pela audiência, o processo de
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 231
Estudos para a Paz e da macro-securitização

securitização não é bem sucedido e a agenda de segurança não recebe o tema para
tratá-lo de maneira emergencial. A suposta ameaça não se desloca da política
para a segurança, mesmo que haja de fato a ameaça à sobrevivência. Ela
simplesmente não foi aceita, impossibilitando o tratamento do tema.

Este cenário leva ao segundo aspecto, que é a definição estreita de política.


Apesar da teoria da securitização expressamente poder ser aplicada para perceber
ameaças existenciais para outros referentes além do Estado (Buzan e Wæver,
2003, p. 71; Buzan e Wæver, 2009, p. 254), o modelo depende de Estados
democráticos para funcionar. Nestes Estados a idéia de política representaria o
resultado da interação entre indivíduos e grupos nos diversos setores que
compõem o ator estatal. O modelo se torna dependente do Estado democrático
quando reconhece que grupos políticos dependem da arena proporcionada por
aquele ator para exporem seus interesses e receios para seus pares, de forma a
criar um ordenamento baseado em normas e regras que estabelecem as regras do
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jogo. Ainda, o Estado se torna central quando se analisa os complexos regionais


de segurança, construções que permitem a teorização da segurança internacional e
regional (Buzan e Wæver, 2003, p. 45). Desta forma, a definição de política
utilizada pela Escola de Copenhague perpassa pelo estabelecimento dos interesses
e regras do Estado, que refletiriam os interesses e desejos dos atores, grupos e
setores.

Contudo, esse cenário não se repete nos Estados não-democráticos. A


agenda política reflete os interesses das classes no poder, não aquilo que a
sociedade necessariamente deseja. Da mesma maneira, as agendas de segurança
refletem as ameaças àquelas classes no poder. A definição de política e de
segurança, bem como os temas que entram nestas agendas são equiparados aos
interesses do Estado, ou seja, política e segurança são aquilo o que o Estado quer
que seja (Barthwal-Datta, 2009, p. 278). Não há o espaço para a interação e
participação de outros senão daqueles no poder – qualquer pleito opositor é
silenciado pelas estruturas estatais.

Este segundo aspecto está interconectado ao terceiro, resultando na


limitação para entender a violência como originada pelo próprio Estado. Por mais
que a ameaça existencial tenha uma dimensão socialmente construída, a definição
limitada de política para a Escola de Copenhague remete a definição de interesses
Marcelo Mello Valença 232

e de ameaças para aquilo que diretamente afete o Estado, refletindo a natureza


egoísta do Estado realista. Isso permitiria que elites e grupos dominantes
estabelecessem o processo decisório de construção e repercussão da ameaça
existencial e eliminassem a possibilidade de incluírem na esfera da segurança
temas que não fossem do seu agrado. Não há como apontar se o ato discursivo do
processo de securitização foi rejeitado por não haver a aceitação da audiência ou
se houve a limitação por parte das estruturas de poder que impediu a manifestação
e/ou a aceitação desta ameaça.

Neste sentido, como pensar a violência nas novas guerras? A violência


direta é de fácil percepção, mas e quanto à utilização das estruturas e instituições
políticas para causar dano a grupos e indivíduos?

O ato discursivo que coloca as políticas de identidade como uma ameaça


existencial a grupos e indivíduos que não compartilham daqueles rótulos ou são
colocados à margem da política normal não encontraria abrigo para ser remetido à
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agenda de segurança. A estrutura de poder que existe no Estado e que é


responsável pela própria prática violenta das políticas de identidade impediria o
sucesso do processo de securitização ao silenciar o ato discursivo ou esvaziar a
reação da audiência.

Uma leitura desatenta nos sugeriria então que, ao contrário do que


expusemos até o momento, a teoria da Escola de Copenhague não oferece as
condições para enxergar as novas guerras como questão de segurança. De fato,
com a construção teórica do processo de securitização aconteceria a confusão
entre o Estado como causador da ameaça e o Estado como espaço de segurança.
A ameaça seria reconhecida, mas não seria levada para a segurança, pois tratar-se-
ia de instrumentos políticos para manutenção da ordem. A violência direta, o uso
da força física para causar dano em outrem, mascararia e silenciaria a violência
causada pelas estruturas de poder. Se não há o reconhecimento da ameaça
também não há, politicamente, a violência, fazendo com que a agenda de
segurança seja uma replicação da agenda de interesses do Estado.

O instrumental analítico da securitização nos é útil; entretanto, o arcabouço


teórico da Escola de Copenhague sofre o revés de sua teoria do Estado. Visando a
superação dessa limitação, o aparato teórico poder ser complementado pela teoria
da macro-securitização, que nos permite utilizar o aparato analítico do processo de
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 233
Estudos para a Paz e da macro-securitização

securitização aplicando-o em outro nível de análise, o sistêmico, superando as


limitações decorrentes do Estado.

5.3.4.
A utilização da macro-securitização para superar as limitações do
Estado

Se por um lado a teoria do Estado que cerca os pressupostos analíticos da


Escola de Copenhague afeta a sua capacidade de trabalhar com Estados não-
democráticos, por outro percebe-se que a lógica por trás do processo de
securitização é útil para estudar as novas guerras. Como superar esse dilema?

Em trabalho recente, Barry Buzan e Ole Wæver oferecem a idéia da macro-


securitização como uma nova proposta para superar as limitações políticas do
processo de securitização no nível médio, dos Estados, e apontar outras ameaças
que não se limitem ao modelo egoísta realista (Buzan e Wæver, 2009, p. 254-
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256). Este recurso analítico se aproveita da mesma estrutura dos processos de


securitização, mas acontece em um nível diferente daquele, abordando o nível da
estrutura e, a partir daí, apurando o instrumental analítico da securitização.

A macro-securitização deve ser entendida e operacionalizada através das


mesmas regras que se aplicam a outros tipos de securitização.160 Contudo, ela se
difere da securitização “tradicional” porque, por ocorrer em um nível de análise
mais amplo do que o dos Estados, agrega ameaças para uma ordem maior e mais
ampla, não se limitando à agenda estatal. Pensar apenas em Estados restringiria a
segurança apenas a questões de segurança nacional concernentes a atores unitários
em relação material com outros (Buzan e Wæver, 2009, p. 256-257).

O que a macro-securitização traz de novo é que a idéia de coletividade e de


ameaça construída a partir das relações intersubjetivas continua válida, mas a
relação em tela tem como foco a constelação de segurança, não mais Estados
isolados: “(...) each macrosecuritisation came to operate on behalf of a huge
collectivity” (Buzan e Wæver, 2009, p. 264). Esta, em poucas palavras, seria

160
“[T]here is no reason in principle to think that either macrosecuritisations or
constellations will operate differently from those found at the middle and/or regional levels”
(Buzan e Wæver, 2009, p. 265).
Marcelo Mello Valença 234

atingida através do padrão de interação formado por quatro níveis de análise, o


doméstico, regional, inter-regional e global (Buzan e Wæver, 2003, p. 491).

Contudo, as constelações de segurança não foram tema de análise mais


profunda pela Escola de Copenhague, que acabou privilegiando os complexos
regionais de segurança (Buzan et al, 1998, p. 201-202; Buzan e Wæver, 2009,
p. 257), elementos integrantes destas constelações, mas de análise mais imediatas.
Não obstante a sua pouca teorização pela Escola de Copenhague,161 Buzan e
Wæver reconhecem que é preciso contextualizar os processos sociais e políticos
em outros níveis para se compreender a Segurança:

The concept of constellation serves to avoid a picture of isolated securitisations


unrelated to social identities and political processes at other levels. At best, a
securitisation analysis then includes the identity and political constitution of the
particular referent object for an act of securitisation, but since identities, politics
and security practices are relational, deep understandings of processes of
securitisation demands a concept the larger social formation (Buzan e Wæver,
2009, p. 257).
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Pensar em termos de constelações de segurança permitiria ao teórico e ao


formulador de decisões apontar que padrões mais amplos de comportamento e de
ameaça existem e afetariam a estrutura social. Os silêncios que aconteceriam nos
processos de securitização em Estados não-democráticos poderiam ser sanados na
medida em que outros atores, estatais e não-estatais, participariam também deste
processo, influenciando a formação da agenda de segurança.

A inserção da securitização em um contexto social mais amplo permite que


se vislumbre a construção da ameaça não apenas nos termos da aceitação por parte
da audiência do ato discursivo da securitização. Este processo intersubjetivo de
criação da ameaça, conforme descrito no capítulo três, continua sendo a base para
a politização da ameaça. Entretanto, a macro-securitização permite que se
agregue diferentes ameaças de “menor escala”, i.e., temas que são de preocupação

161
Uma discussão mais aprofundada sobre o tema pode ser encontrada em Buzan e Wæver
(2003, p. 40-82). Lá os autores demonstram a correlação entre a formação de complexos regionais
de segurança e as constelações de segurança, como parte formação de uma agenda de segurança
regional, mais apropriada para o cenário pós-Guerra Fria, que não estaria mais submetido à divisão
bipolar até então predominante. As constelações de segurança conteriam os complexos regionais
de segurança, conforme explicado na revisão da teoria dos complexos proposta naquele livro. No
artigo de 2009 que traz o conceito de macro-securitização, os autores também afirmam que um
trabalho mais aprofundado sobre constelações de segurança está em desenvolvimento. Buzan
(2009, s.p.) reafirma a importância de pensar em constelações de segurança e em segurança
regional. Cabe ressaltar que para os fins desta tese, o argumento da macro-securitização e seu
impacto no nível da estrutura internacional já nos é suficiente.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 235
Estudos para a Paz e da macro-securitização

dos atores políticos, mas que não conseguiriam, por si só, promover gerar a
securitização bem-sucedida. Quanto mais nichos de segurança houver no ato
discursivo da macro-securitização, maior é a sua capacidade de oferecer
elementos que evidenciariam a ameaça de colocar em risco a sobrevivência do
ator – ou, no caso, daquele conjunto de atores.

Neste sentido, e se a macro-securitização segue a mesma lógica da


securitização “normal”, como aplicar o seu instrumental analítico? Podemos
analisar as dinâmicas da macro-securitização a partir de três eixos que
posicionariam de maneira precisa o fenômeno em análise (Buzan e Wæver, 2009,
p. 258). O primeiro eixo, “X”, diz respeito à amplitude que a ameaça assume, i.e.,
do número de setores que ela atinge. Mais do que se limitar a um setor ou outro, a
macro-securitização teria a capacidade de conter diferentes ameaças a diversos
setores, que se correlacionariam de forma a sugerir uma ameaça maior. Quanto
maior a amplitude assumida pela securitização, maior o impacto que ela pode vir a
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causar, evidenciando que a sobrevivência daquela constelação estaria ameaçada.

O segundo eixo de análise, o eixo “Y”, diz respeito ao nível de análise


assumido. A macro-securitização presume a criação do ato discursivo em um
nível de análise sistêmico, não o da unidade. Finalmente, o eixo “Z” diz respeito
ao sucesso da macro-securitização em convencer a audiência relevante da
existência da ameaça.

Esta formatação permite que se discuta a existência da macro-securitização


– e não da securitização “ordinária” – a partir de critérios bem definidos.
Primeiramente, devemos nos questionar quem é a audiência que recebe o ato
discursivo. “[A]t what level is the referent object?” (Buzan e Wæver, 2009,
p. 258). A resposta está na análise do eixo Y, o responsável por nos indicar o
nível de análise no qual se situa o ato discursivo da securitização. A capacidade
de agregar setores também deve ser levantada: há nichos envolvidos na macro-
securitização? Encontra-se a resposta a esta pergunta ao se verificar a amplitude
que o eixo X nos oferece. O eixo Z, o que avalia o sucesso junto à audiência,
surge para não apenas dizer que dado ato discursivo gera ou não uma macro-
securitização, mas o quão poderoso é esse ato.

Uma vez que a macro-securitização seja bem-sucedida, coloca-se não


apenas o tema na agenda de segurança, mas também cria-se uma constelação de
Marcelo Mello Valença 236

segurança. Esta se caracterizaria pelo questionamento, em quatro níveis


diferentes, sobre as ameaças que recairiam sobre os atores. No nível doméstico,
quais ameaças ressaltam suas vulnerabilidades e definem o tipo de segurança que
motiva suas ações? No nível inter-estatal, como se dá a percepção mútua dos
Estados, determinando a criação ou não de um complexo regional de segurança?
Em termos inter-regionais, como se dá a relação entre uma região com outra e
como as assimetrias entre elas produzem impactos mútuos? Finalmente, em
termos globais, há a interferência de potências internacionais na formulação de
ameaças existenciais (Buzan e Wæver, 2003, p. 51). Em poucas palavras,
“[s]ecurity constellations is a much wider concept than security complexes,
reflecting as it does the totality of possible security interrelationships at all levels”
(Buzan et al, 1998, p. 201, grifo original).

A constelação de segurança agrega em sua composição complexos regionais


de segurança que permitem pensar em Segurança em termos mais inclusivos e
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socialmente constituídos. Entende-se um complexo regional de segurança como


“a set of units whose majors processes of securitisation, desecuritisation, or both
are so interlinked that their security problems cannot reasonably be analysed or
resolved apart from one another” (Buzan e Wæver, 2003, p. 491). Pensar em
constelações de segurança demanda do teórico e do formulador de decisões
considerar os impactos que o outro proporciona a si e, com isso, estimula a
superação das limitações de um processo egoístico e auto-referenciado de
produção de ameaças existenciais.

Em outras palavras, a macro-securitização e a constelação de segurança


fazem com que a interdependência entre os Estados seja sentida também na área
da segurança. Há o reconhecimento de que valores são compartilhados pelos
integrantes das constelações de segurança, de maneira que – mesmo que não
possamos falar em agendas comuns – há pontos de conexão que levam estes
Estados a perceber que certos valores são universais. Neste sentido, quatro tipos
mais amplos de universalismo podem ser elencados. São eles os universalismos
(i) inclusivo; (ii) excludente; (iii) conservador;162 e (iv) para a proteção física163
(Buzan e Wæver, 2009, p. 260-261).

162
Existing order universalism, no original em inglês.
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 237
Estudos para a Paz e da macro-securitização

O universalismo inclusivo se baseia em lógicas que são aplicáveis, em curto


prazo, para toda a humanidade, como religiões, ideologias e condições seculares.
Aqui se fala em condições que permitem que todos os indivíduos fazem parte de
um grupo único e maior que o de um Estado. O universalismo excludente, por
sua vez, defende a restrição ao acesso a direitos a certas classes e/ou setores
sociais em detrimento do restante da humanidade. Podemos falar aqui da
dominação de um grupo sobre outro.

O universalismo conservador considera a estrutura internacional como


objeto de referência e, por isso, se foca em ameaças a instituições que garantam a
ordem na sociedade internacional. Cabe ressaltar que o universalismo
conservador pode se sobrepor com um dos tipos de universalismo mencionados
acima. O quarto tipo de universalismo é o para a proteção física. Tomando a
preservação da humanidade como objeto referente, esse universalismo se refere à
ameaças que colocam em risco a humanidade em escala planetária, como armas
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nucleares, meio ambiente, entre outros.

Desta forma, a conexão das agendas de segurança com a interdependência e


o universalismo em relação a determinados valores compartilhado pelos Estado
faz com que eles desenvolvam processos políticos, com regras e procedimentos
específicos, que poderiam ser considerados análogos à agenda política
desenvolvida pelo Estado na securitização no nível médio. E, assim, como essa
securitização no nível médio, a versão extrema da politização levaria à
securitização – ou à macro-securitização, mais especificamente –, construindo e
constituindo a ameaça existencial para aquele conjunto de atores.

5.3.5.
A Macro-securitização, Estudos para a Paz e as Novas Guerras

A macro-securitização não afeta, ao nosso ver, a relação que existe entre o


processo de securitização e a compreensão da violência à luz dos Estudos para a
Paz. Mesmo privilegiando o nível de análise sistêmico em detrimento da unidade,
não há prejuízo da correlação que estabelecemos entre ameaça existencial e o
conceito de violência. A divisão em setores que norteia a busca por coerência

163
Physical threat universalism, no original em inglês.
Marcelo Mello Valença 238

explicativa na Escola de Copenhague mantém a visão de que o Estado é o espaço


para se pensar em segurança, mas ele não deve ser considerado como unitário,
nem tampouco como uma forma estanque de política.

As dinâmicas que demandam medidas excepcionais continuam a surgir


dentro dos Estados e o ato discursivo se dirige às audiências específicas naquele
ator. Mas o processo de securitização e dessecuritização produz impactos nos
demais Estados que compõem a constelação de segurança, fazendo com que estes
também componham, ainda que não direta nem explicitamente, a audiência para o
qual o ato discursivo se dirige. A interdependência que existe entre os atores
graças ao complexo de segurança regional e à constelação de segurança faz com
que atos discursivos silenciados pelo Estado possam ser escutados pelos seus
pares e vir a ter impacto na formação das agendas de segurança daquela
constelação.

Para o caso das novas guerras e o resgate da centralidade da violência para


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os estudos de Segurança, essa releitura do processo de securitização se torna


chave para superar as limitações da teoria do Estado da Escola de Copenhague.
Se a securitização bem-sucedida no nível da unidade pressupõe a possibilidade de
vozes diferentes serem ouvidas, o que não acontece, as novas guerras como
problema de segurança não existiria na esfera doméstica. Ao não encontrar
repercussão na audiência – seja por que razão isso aconteça –, a acusação de
violência contra segmentos e setores sociais seria caracterizada como política e,
portanto, sujeita às regras do jogo, o que por vezes constitui as regras das
estruturas de poder.

Contudo, considerando que as novas guerras não são um fenômeno que se


limita às fronteiras do Estado e que produz seus impactos para além dele,
promovendo instabilidade regional e global, pensar em macro-securitização
permitiria o reconhecimento da violência extrapolando os limites da política
normal. Como os processos de securitização e macro-securitização devem ser
levados em consideração nas constelações de segurança, um tema que não seja
securitizado pelo Estado pode o ser pela constelação, dado que esta precisa tomar
medidas contra os impactos que porventura poderão atingi-la.

O ato discursivo que caracterizaria as novas guerras como forma de


violência que demanda medidas excepcionais receberia acolhida na macro-
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 239
Estudos para a Paz e da macro-securitização

securitização não somente pelas conseqüências que causariam nos demais


Estados, mas também pelo compartilhamento de valores em função do
universalismo, especialmente – mas não exclusivamente – o conservador e para a
preservação física. A violência seria percebida e acusada pelos demais membros
da constelação de segurança, superando as limitações do Estado egoísta na Escola
de Copenhague e possibilitando a percepção de que as estruturas de poder do
Estado poder ser as promotoras da violência, da ameaça existencial, contra
segmentos sociais que não se adequariam, nem se conformariam, àquelas
estruturas.

5.4.
Reagindo às novas guerras: a macro-securitização como forma de
evidenciar a violência e estimular medidas excepcionais para contê-
la
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Conforme o exposto nas seções anteriores desse capítulo, desenvolvemos o


argumento de que a combinação dos Estudos para a Paz com o instrumental
analítico da Escola de Copenhague permitiria suprimir a ausência do debate sobre
violência na Segurança. Mais especificamente, o debate conceitual proporcionado
pelos Estudos para a Paz e a securitização da Escola de Copenhague levariam a
um entendimento mais completo das novas guerras, resgatando a relação teoria e
prática. Buscando evidenciar tal objetivo, explicaremos nesta seção como esses
dois instrumentais teóricos podem ser combinados, de forma a explicar o papel
assumido pela violência nas novas guerras.

Para tanto, devemos nos voltar para três aspectos das relações entre os
atores políticos. São eles (i) os discursos políticos, (ii) as práticas sociais e
políticas sustentadas por esses discursos, evidenciando o uso da força como
estratégia política, e (iii) os atores envolvidos nessas dinâmicas. Contudo,
ressaltamos que há porosidade entre os planos internacional e doméstico, com os
discursos, sejam de violência ou de acusação da sua presença, tramitando nestas
duas esferas. Como mostramos no capítulo quatro, essa confusão entre estes dois
planos é característica das novas guerras. A porosidade entre o dentro e o fora
permite a interação intensa entre atores domésticos e internacionais, estatais e
Marcelo Mello Valença 240

não-estatais, evidenciando a violência mesmo quando silenciada pelas estruturas


de poder domésticas.

Com a combinação desses três aspectos, a macro-securitização é promovida


através do discurso dos atores internacionais que testemunham a violência e, de
alguma forma, constroem credibilidade junto à audiência internacional – seja
como ela for formada e/ou composta. Isso permite a esses atores promoverem o
discurso de macro-securitização e, conforme a resposta da audiência, caracterizar
a violência presente nas novas guerras como ameaça existencial.

A síntese desse discurso de macro-securitização, quando bem sucedido,


resultaria no desenvolvimento de estratégicas políticas para conter a ameaça
existencial por parte dos formuladores de decisão internacionais. No caso das
novas guerras, perceber-se-ia a violência sendo usada como estratégia política
pelos beligerantes e os formuladores de decisões poderiam desenvolver
mecanismos para reagir e conter essa ameaça.
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5.4.1.
Os discursos políticos de exclusão

O discurso político que caracteriza a prática da violência nas novas guerras


tem, grosso modo, a característica de produzir padrões de exclusão e/ou
marginalização de segmentos sociais a partir da exacerbação de elementos que
antagonizem e fracionem a unidade social. Elites políticas e sociais abandonam a
política de idéias que sustenta o Estado para se valerem de políticas de identidade,
realçando aspectos e dinâmicas culturais que tornariam a coexistência de
diferentes coletividades algo impossível.

Esses discursos, motivados por questões nacionalistas, étnicas ou religiosas,


apontam na diferença as causas para eventuais problemas sociais e/ou econômicos
enfrentados. Lideranças políticas e culturais são os principais produtores desse
tipo de discurso. Fundamentado em um passado histórico de prestígio ou de união
afetado pela interação com a diferença, as lideranças desenvolveriam práticas
discursivas que renovariam eventuais tensões existentes e resgatariam símbolos do
passado para evidenciar a diferença, trazendo-a para os níveis social e político. O
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 241
Estudos para a Paz e da macro-securitização

discurso político que norteia a violência legitima a diferença como causadora da


instabilidade e da perturbação na ordem.

Como expusemos em 5.2.2.3, a violência cultural se apresenta a partir da


utilização de elementos culturais que possam legitimar e estimular atos de
violência através de processos de socialização fundamentados na identidade como
forma de rotular e caracterizar a diferença. A construção retórica fundamentada
em políticas de identidade ajuda a conclamar a grandiosidade de um projeto para o
grupo dominante e estabelecer as bases para práticas políticas, institucionalizadas,
que excluiriam o objeto do discurso político. Violência cultural e políticas de
identidade são, portanto, inseparáveis, preparando o terreno político para a
presença de práticas concretas que efetivariam o processo de exclusão.

5.4.2.
Práticas sociais e políticas institucionais
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As elites, lideranças políticas e sociais que se valem de políticas de


identidade para excluir outros segmentos, legitimam a violência através de
elementos culturais, caracterizando a violência cultural. Não obstante a sua
motivação, o discurso de exclusão não assume maiores proporções a menos que
seja acompanhado de práticas políticas, sociais e institucionais que tornem a
exclusão possível de ser realizada e mantida, privilegiando determinados
segmentos e grupos sociais em detrimento de outros.

A interação entre esses grupos “diferentes” se daria a partir da exacerbação


da violência através da evidenciação e da operacionalização da diferença através
de práticas que teriam como fim último excluir e afastar identidades opostas ou
antagônicas do processo político. Essas práticas assumiriam diferentes formas,
mas teriam como característica comum a progressiva limitação dos direitos e
liberdades dos grupos excluídos através de processos políticos liderados por elites.

Ao mesmo tempo que essas elites usurpariam direitos de seus adversários e


rivais, haveria a promoção de práticas discursivas de intolerância e de uso
deliberado da força, conclamando aos membros dos grupos dominantes a ojeriza
contra os diferentes. Essas práticas seriam sustentadas pelas políticas de
identidade, mas também concretizadas através do uso da força para reprimir
Marcelo Mello Valença 242

manifestações e de instituições criadas para silenciar a participação política dos


excluídos – caracterizando a manifestação da violência direta.

De forma semelhante, as elites desenvolveriam mecanismos institucionais


oficiais que colocariam em risco identidades comunais diferentes da dominante,
associando a diferença a uma ameaça à proposta coletiva. As dinâmicas de
hostilidade e repulsa acontecem, conforme demonstrado no capítulo quatro, em
setores tão diversos quanto o econômico, político e social, especialmente neste. A
inserção deliberada desses elementos de constrangimento caracterizariam uma
violência silenciosa, mas contínua, tal como em um processo. A
institucionalização de práticas de exclusão na política marcaria a presença da
violência estrutural naquela relação social.

Sob o véu da política, tais práticas legitimariam os interesses dos grupos


dominantes, que seriam equiparados aos interesses do Estado. Seriam mascarados
pelo ideal de uma política maior, visando o futuro do Estado – mesmo que o
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futuro do Estado se caracterize pela predominância de um grupo. Ao mesmo


tempo, as condições políticas conduziriam à atos de intolerância inter-grupos,
podendo gerar a agressão e a hostilidade explícita em nome de “interesses
maiores”. A caracterização da violência de cima para baixo se caracteriza,
marcando a relação política entre os grupos a partir do discurso de suas lideranças,
que se propaga para as suas bases de apoio.

A prática institucionalizada da violência permitiria que a exclusão se


inserisse no contexto daquela sociedade, “facilitando” o emprego da força para
atingir os objetivos buscados. Estas ameaças seriam baseadas nos discursos
fundamentados nas políticas de identidade e que, paradoxalmente, justificariam
tais medidas através de práticas excludentes sem, contudo, receberem o rótulo de
violência, segurança ou segregação – são medidas políticas.

Os grupos excluídos seriam desumanizados. A inferiorização do outro


abriria espaço para outras formas de utilização da força, sempre visando a
exclusão e a prática da violência de forma a compensar a injustiça sofrida. Diante
da tolerância das lideranças, a violência de baixo para cima estimula medidas
arbitrárias de indivíduos comuns, replicando a política de identidade das elites no
plano social e tornando o relacionamento entre os diferentes insustentável. O
conflito armado surge como forma de assegurar não só a sobrevivência das partes
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 243
Estudos para a Paz e da macro-securitização

envolvidas, mas também outros interesses que porventura existam. A força passa
a fazer parte das relações inter- e intra-grupos.

É por estas razões que a dinâmica de securitização “tradicional” não


funcionaria dentro desses Estados. Por não haver a oportunidade de grupos
opositores e/ou vítimas se manifestarem contra os grupos dominantes, nem
tampouco contra a violência que sofrem nas suas relações sociais, o discurso de
securitização desses grupos não é reconhecido. Com isso, não há a construção da
ameaça existencial, nem tampouco mobilização excepcional que conduza à quebra
das regras do jogo para se definir e se resolver o problema da segurança,
encerrando a violência.

5.4.3.
Os atores securitizadores
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Como acusamos a dificuldade de proceder com a securitização a partir dos


atores e grupos políticos presentes no Estado, a macro-securitização nos permitiria
evidenciar a necessidade de mobilização através da incorporação de novos atores
ao processo. No caso das novas guerras, identificamos dois grupos de atores que
podem ser responsáveis por produzir, em diferentes graus de sucesso, o discurso
de macro-securitização, evidenciando a existência de violência e, portanto, da
ameaça existencial.

A legitimidade desses atores securitizadores variará conforme o discurso é


construído e como sua audiência enxerga a ameaça denunciada. Interesses e
sensibilidade quanto aos custos quanto os nichos da segurança envolvidos são
importantes para a ação e para a aceitação do discurso securitizador e, para ter
sucesso na macro-securitização, os atores securitizadores devem explorar as
peculiaridades de sua audiência, conforme o caso em tela.

O primeiro ator a ser apontado é a ONU, representada na figura de seu


Secretariado-Geral e cuja responsabilidade seria apontar a existência de condições
que perturbariam a paz internacional. Mais do que se tratar de uma questão
doméstica, as novas guerras têm impacto regional e global, perturbando as
dinâmicas que garantiriam e preservariam a estabilidade internacional. O
emprego da força nas novas guerras envolve novos e diferentes nichos de
Marcelo Mello Valença 244

segurança – social, econômico, político, ambiental – que acabam por influenciar


diferentemente a comunidade internacional.

A ONU atua como ator securitizador ao trazer para debates o problema da


violência intra-estatal e de seus impactos para a manutenção da paz e às próprias
condições de desenvolvimento dos Estados. Através dos relatórios e discursos do
Secretariado-Geral referentes às práticas de exclusão e de violência nas novas
guerras, podemos entender que há uma tentativa de estabelecer um discurso de
securitização que tem como audiência os membros do Conselho de Segurança
(“CS”). Uma vez que o discurso é aceito por aquele órgão, medidas excepcionais
podem ser tomadas, como embargos, intervenções e outras formas de sanção.

Outro ator internacional responsável pela produção de discursos de


securitização nas novas guerras assume natureza não-estatal e trabalha com uma
audiência diferente, igualmente não-estatal. Referimo-nos à mídia, entendida
como a imprensa, indústrias cinematográficas e formadores de opinião de um
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modo geral. A mídia, até mesmo em função de sua ação independente e dos
novos nichos da segurança trazidos pelas novas guerras, não carece da autorização
de Estados para exercer seu papel e propaga, em maior ou menor escala e com
diferentes graus de envolvimento, elementos da violência, chamando a atenção
para o que se passa e demandando respostas.

A utilização de estratégias como o efeito CNN164 são de grande valia para o


discurso de macro-securitização. Desta maneira, sua audiência constituiria a
opinião pública, que agiria pressionando seus governos para responder
excepcionalmente a essas ameaças.

O trabalho da mídia, ao aproximar a realidade encontrada naquelas


sociedades da opinião pública internacional, seria capaz de romper com a
desumanização da diferença, resgatando a importância de se agir para acabar com
a violência. A objetividade do processo político seria contraposta à solidariedade

164
Efeito CNN é, grosso modo, a capacidade de se influenciar o processo decisório de um
Estado ou ator político através da veiculação de imagens que promovam impactos junto a opinião
pública, que constrangeria o ator político a reagir em determinada maneira. Podemos falar de três
efeitos ou mecanismos de atuação do Efeito CNN: “(…) as 1) a policy agenda-setting agent, 2) an
impediment to the achievement of desired policy goals, and 3) an accelerant to policy decision
making” (Livingston, 1997, p. 2). Sobre o tema, Livingston (1997), Robinson (1999), Jakobsen
(2000) e Farrell (2002).
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 245
Estudos para a Paz e da macro-securitização

da humanização da vítima, impactando no relacionamento entre Estados e bases


políticas.

Ao exercer pressão junto aos governos, impulsionando-os a agir, o trabalho


dos dois grupos de atores securitizadores trabalhados acaba por se aproximar.
Quando a mídia promove o discurso para a opinião pública, esta demanda por
ações do Estado. Estas ações repercutirão, inevitavelmente, na arena da debates
internacional responsável pela segurança internacional – a ONU. O discurso
securitizador promovido pelo Secretariado-Geral seria reforçado, criando
condições facilitadoras para a aceitação do discurso pela audiência e mobilizando
os Estados a agirem para acabar com aquela ameaça existencial.

5.5.
Conclusão
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O objetivo desta tese é evidenciar que a marginalização da violência nas


teorias de Segurança acabou por quebrar com a relação produtiva entre teoria e
prática que existia e que permitia à Segurança proporcionar um conhecimento
relevante para o formulador de decisões. A Segurança deixou de ser um
instrumental analítico que proporcionava contribuições para o burocrata
desenvolver estratégias utilizando o uso da força para atingir seus objetivos para
se tornar uma área que comportava as condições que ameaçavam a sobrevivência
do ator político. Com isso, temas complexos e recentes, como as novas guerras,
não são compreendidos pela Segurança por conta de sua inabilidade em lidar com
o papel assumido pela violência.

Este capítulo tinha como propósito oferecer um instrumental analítico que


reaproximasse a Segurança, mais especificamente da Escola de Copenhague, e a
violência. No caso, trouxemos os Estudos para a Paz e a sua tipologia de
violência para criar uma ponte com o papel assumido pela violência nas novas
guerras. Mais do que o uso deliberado da força armada para atingir objetivos, as
novas guerras traziam estruturas baseadas na força que, deliberadamente, criavam
condições causadoras de danos a outrem, mas que garantiam o alcance dos
objetivos dos atores envolvidos.
Marcelo Mello Valença 246

Contudo, identificamos limitações na teoria da Escola de Copenhague para


entender e securitizar a violência das novas guerras. Isso aconteceria
principalmente pela sua teoria de Estado, que não permite perceber o processo de
securitização acontecendo em estruturas não-democráticas. Trouxemos, então, o
processo de macro-securitização como forma de mudar os atores securitizadores e
adequar os problemas levantados a uma nova audiência, de forma que a violência
pudesse ser percebida.

Uma vez realizada tal ligação, sugerimos na seção 5.4 a dinâmica de macro-
securitização das novas guerras, entendo o processo a partir de três elementos. O
primeiro é o discurso político, que motiva as políticas de identidade e promove a
exclusão da diferença, legitimando tal processo a partir da violência cultural.

O segundo elemento são as práticas sociais e institucionais, que inserem a


violência em estruturas políticas opressoras baseadas nas políticas de identidade e
caracterizam a violência de cima para baixo, e tornam a violência um elemento da
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política, mascarando-a. Ao fazer isso, os grupos excluídos são silenciados,


tornando o discurso securitizador vazio e sem audiência, enquanto a ameaça
existencial – na forma da violência estrutural e direta – atinge esses grupos. Ao
mesmo tempo, a impunidade e a tolerância à exclusão demonstradas pelas elites
dominantes permitem à população reproduzir tais práticas, impulsionando a
violência de baixo para cima e caracterizando o outro como responsável pelos
problemas enfrentados. O ciclo de violência se estabelece e o uso da força passa a
ser um elemento de coesão e de ruptura sociais.

O discurso de macro-securitização passaria a ser possível através de atores


internacionais. No plano estatal, o discurso seria promovido a partir de
organizações responsáveis pela preservação da estabilidade e da paz internacional,
como a ONU. Na figura de seu Secretariado-Geral, haveria a produção de
documentos e discursos dirigidos aos Estados e ao CS para evidenciar o problema
e demandar uma solução excepcional, nos termos da Carta da ONU e de suas
competências. Já no plano não-estatal, a mídia produz seu discurso dirigido à
opinião pública, resgatando a humanização das vítimas e, caso o discurso seja
aceito, exercendo pressão na política interna dos Estados. Isso permite vermos
também uma complementaridade no trabalho de macro-securitização por parte dos
Resgatando a violência na Segurança: as contribuições dos 247
Estudos para a Paz e da macro-securitização

dois atores, que cria condições facilitadoras para o sucesso do discurso e, com
isso, da mobilização.

Expomos no próximo capítulo o caso da guerra da BH, mais


especificamente do cerco a Sarajevo, como forma de ilustrar nosso argumento.
Resgatando a dimensão da violência a partir da tipologia dos Estudos para a Paz,
ilustramos os elementos que proporcionaram a construção do discurso de macro-
securitização. A partir deles, mostramos que a utilização da força tem papel
estratégico nas relações sociais, permitindo a manutenção e a continuidade da
interação intra- e inter-grupos à medida que leva ao alcance dos interesses dos
atores políticos.
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6
O cerco a Sarajevo

Apresentamos aqui o caso que ilustra nossa proposta de perceber a violência


nas novas guerras, apresentada no capítulo anterior. O objetivo de trazer o caso
da guerra da BH, mais especificamente o cerco à sua capital, Sarajevo, é mostrar
que o uso da força extrapolou a mera violência direta e assumiu uma dimensão
mais ampla, que identifica elementos da violência estrutural dos Estudos da Paz.
Esta foi legitimada por um arcabouço nacionalista construído a partir de discursos
políticos e práticas sociais excludentes – as políticas de identidade – que
evidenciariam a violência cultural. No caso, essa dinâmica aconteceu durante a
década de 1980 e tinha como origem as elites políticas iugoslavas, em um esforço
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de promoção da violência de cima para baixo.

O caso da BH é considerado o paradigma das novas guerras (Kaldor, 2001,


p. 31). Durante os quase três anos em que a guerra oficialmente aconteceu,
inúmeros exemplos da quebra da institucionalização da violência foram
percebidos, alterando o warfare e impactando diretamente no seu financiamento.
Isso evidencia uma lógica na violência que extrapolava a vitória na guerra, seja
por parte das elites, seja pela população comum.

Este capítulo se estrutura em quatro partes. Na seção 6.1, apresentamos as


condições políticas e históricas que antecederam a guerra da BH. Fazemos uma
breve contextualização da formação do Estado iugoslavo e as estratégias políticas
desenvolvidas por Tito para manter o Estado unido, apesar das diferentes etnias.
Também expomos os problemas decorrentes de sua morte e preparamos o espaço
para a narrativa sobre as décadas de 1980 e 1990, objetos das seções seguintes.

Em 6.2 mostramos as tensões políticas que levaram à exacerbação do


discurso nacionalista sérvio e as condições que permitiram a subida de Slobodan
Miloševic ao poder. As tensões nacionalistas e as respostas das elites sérvias são
expostas aqui, bem como o espaço propiciado para o surgimento de grupos
nacionalistas que se valiam da força para lidar com a diferença étnica. Ilustramos
O cerco a Sarajevo 249

esta seção com exemplos da violência desenvolvida contra seus oposicionistas,


criando um cenário insustentável que levaria às eleições de 1990 e à fragmentação
da ex-Iugoslávia. O propósito desta seção é mostrar que as políticas de identidade
criaram o espaço para a violência cultural. Esta legitimava atos de violência e de
repressão que catalisaram e anteciparam a violência da guerra.

A seção 6.3 apresenta o cerco a Sarajevo. Desenvolvemos uma narrativa


que ilustra os três eixos analíticos apresentados no capítulo quatro e que
caracterizam o papel social assumido pela violência. As três formas de violência
dos Estudos para a Paz – direta, estrutural e social – estão presentes no cerco, que
funciona como um micro-cosmos do restante da guerra (Hall, 1994, p. 117). A
força é utilizada para alcançar fins políticos defendidos e definidos pelo discurso
nacionalista de exclusão e de erradicação da diferença.

Apresentamos dois conjuntos de práticas que ilustram nosso argumento. O


primeiro deles diz respeito à forma como a guerra era lutada, seus alvos e suas
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práticas, rompendo com o modelo tradicional de guerra e do emprego da força


nestes conflitos armados. O segundo conjunto de práticas se correlaciona com o
primeiro e pode ser entendido como uma conseqüência daquele: é a entrada de
grupos privados na guerra e a sua contribuição para a continuidade e perpetuação
da violência.

O primeiro conjunto de práticas evidencia, mas não se limita a, a ruptura


entre combatentes e não-combatentes das guerras tradicionais. Ela é colocada
aqui através da exposição da violência promovida contra a população e contra
alvos de valor cultural. O objetivo é mostrar que a violência foi usada
deliberadamente para atingir fins políticos, tornando-se um mecanismo para criar
condições insustentáveis de sobrevivência. Apesar de sua caracterização como
bárbara, havia uma lógica política e uma racionalidade no seu emprego,
caracterizando-a como um instrumento de política. Ao mesmo tempo, a violência
era uma forma de garantir a validade das políticas de identidade e das violências
de cima para baixo e de baixo para cima.

A participação dos grupos privados na guerra ilustra as dinâmicas que


conduzem ao papel social assumido pela violência. A participação desses grupos
no cerco a Sarajevo é bastante importante porque ilustra exemplos dos três eixos
analisados no capítulo quatro. Os grupos privados constituíram as forças de
Marcelo Mello Valença 250

defesa de Sarajevo, rompendo com a institucionalização da guerra, e


proporcionando recursos para resistir ao cerco. Sua participação também
possibilitou o prolongamento do conflito, já que houve a utilização da força como
meio de se inserirem legitimamente na sociedade. Com isso, e também em razão
da impunidade que predominava na sociedade, aumentaram o seu poder, buscando
mecanismos para financiar seus esforços de guerra: a exploração do mercado
negro e a cooperação com os adversários caracterizavam a violência como
assumindo o seu papel social.

Mostramos que, apesar das condições de inimizade latentes, a violência


deixa de ser um meio para ser encarada como um fim a ser alcançado, de modo a
garantir poder, recursos e prestígio. Isso possibilita a continuidade da guerra e a
violência assume um papel de elemento de coesão social, unindo não apenas
membros de uma mesma nacionalidade, como também aproxima indivíduos tidos
como inimigos, em um processo de cooperação.
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Finalmente, em 6.4, mostramos que a dinâmica da violência no cerco a


Sarajevo impediu a securitização por parte dos objetos referentes dos setores
ameaçados. Mesmo com a ameaça existencial – representada pela incidência da
violência, tal como mostramos no capítulo cinco – presente, o discurso de
securitização não encontrava audiência naquele Estado. A violência promovida
pelo governo federal contra a população de Sarajevo era colocada como política e,
portanto, dentro das regras do jogo. O governo bósnio, por sua vez, reconhecia a
ameaça existencial a Sarajevo, mas não atuava para contê-la, pois o cerco captaria
o apoio necessário para acabar com a violência em seu país.

O caso de Sarajevo representa um problema para a teoria da securitização da


Escola de Copenhague uma vez que opera em um Estado não-democrático, onde
não há como identificar uma audiência para o discurso de securitização.
Trazemos, como sugerido no capítulo anterior, o instrumental da macro-
securitização para apontar que a securitização da violência se deu a partir da
recorrência à constelação de segurança e de atores internacionais, como a ONU e
a mídia. Na constelação foram apontados outros nichos de segurança e outras
audiências, proporcionando a reação extraordinária para conter a ameaça
existencial/violência.
O cerco a Sarajevo 251

Nosso caso tem caráter ilustrativo, não analítico, e é construído a partir de


narrativas que evidenciam o argumento que expusemos no capítulo cinco. É
preciso problematizar a violência, tal como o faz os Estudos para a Paz, para que
possamos compreender a sua centralidade para a Segurança. Para tanto,
oferecemos uma visão panorâmica do cerco a Sarajevo e da guerra na BH,
resgatando alguns eventos acontecidos entre 1992 e 1995 para evidenciar a
violência sendo utilizada com fins políticos.

Gostaríamos de ressaltar que não ambicionamos, nem pretendemos


promover uma descrição detalhada do cerco a Sarajevo nem da guerra da BH.
Estes foram eventos complexos e com dinâmicas que foram estudados a fundo por
uma diversidade de trabalhos, artigos e livros, acadêmicos ou não, além de uma
extensa produção cinematográfica e documentários. Nosso objetivo aqui é situar
o leitor em relação a alguns eventos e dinâmicas que marcaram o cerco. Mesmo
que mencionando ao longo do capítulo alguns desses trabalhos, nosso objetivo é
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mostrar que as novas guerras explicitam a carência da violência para as teorias de


Segurança e que aqueles dois instrumentais analíticos podem ajudar a resgatar a
relação produtiva entre teoria e prática na Segurança.

6.1.
Os antecedentes da guerra: uma brevíssima história da Iugoslávia

Até a década de 1980, a República Socialista Federativa da Iugoslávia


(“Iugoslávia”) era tida como um exemplo de Estado multi-étnico onde as relações
entre os diferentes grupos que o formavam eram estáveis. Eventuais disputas
eram resolvidas pacificamente pelo governo federal. Este cenário não era apenas
uma imagem construída pela propaganda comunista: havia, de fato, estabilidade
nas relações entre as etnias iugoslavas.165 Contudo, isso acontecia devido à

165
“A Revolução na Iugoslávia obteve êxito evitando que as nacionalidades no interior de
suas próprias fronteiras se massacrassem entre si, por um longo tempo das suas histórias, e, apesar
de essa conquista estar hoje infelizmente se desagregando, as tensões nacionais, pelo final de 1988,
ainda não tinham levado a uma única fatalidade” (Hobsbawm, 1990, p. 205). Apesar dessas
palavras, digamos, otimistas de Hobsbawm, o historiador considera que a ausência dessas
fatalidades se deva a ausência de conflitos violentos entre as nacionalidades. Contudo, ele ignora
que durante as décadas de 1970 e 1980 houve a exclusão da oposição política na ex-Iugoslávia,
com o expurgo de políticos, líderes étnicos e intelectuais. Os relatos oficiais não falam de
Marcelo Mello Valença 252

existência de uma liderança que colocava na identidade iugoslava a fonte de


união, relegando as identidades étnicas para um segundo plano, através de
mecanismos institucionais de integração.

Ainda que carregada de uma herança de conflitos étnicos e tensões


históricas, a Iugoslávia surge no pós-II Guerra Mundial sem se prender a
qualquer tipo de comprometimento com as suas históricas origens étnicas (Rae,
2002, p. 175; Schöpflin, 2006, p. 23). O governo de Tito trouxe, sob o lema
“irmandade e unidade”166, um tratamento igualitário entre os povos e a defesa da
identidade nacional iugoslava (Economides e Taylor, 2007, p. 66).167 A
preocupação era desenvolver uma estratégia voltada para o desenvolvimento em
longo prazo visando o futuro da Iugoslávia, unindo seus povos. Para tanto, a
identidade étnica não deveria interferir na identidade nacional iugoslava.

Não é que essas identidades étnicas tivessem sido abandonadas durante esse
período, mas havia mecanismos institucionais que garantiam a presença de líderes
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dos diversos grupos que compunham o país no poder e, com isso, o foco era no
Estado, não na cultura de cada um desses grupos (Schöpflin, 2006, p. 23). Com a
exceção da BH (Glenny, 1996, p. 144-145), cada uma das repúblicas e províncias
iugoslavas apresentava predomínio de uma etnias,168 o que tornava o sentimento
nacional associado ao étnico, em maior ou menor escala.

Não obstante a coexistência das identidades, a nacional e a local, todavia,


ser relativamente estável, a utilização de critérios étnicos que remetessem à II

fatalidades, mas há grande probabilidade deste número ser consideravelmente maior que zero. Só
não constam nas estatísticas oficiais.
166
Em sérvio-croata, no original, bratstvo i jedinstvo.
167
A preocupação de Tito em garantir a igualdade entre os povos que habitavam o território
iugoslavo era clara, a fim de proporcionar uma convivência harmoniosa, incluindo as diversas
minorias, em torno de um Estado pluralista. A Iugoslávia se preocupava em respeitar a
diversidade étnica através da organização de um governo disposto num sistema federativo que
proclamava a igualdade, a cooperação e a união das nações formadoras do Estado (Zagar, 2000).
A estabilidade de fato existia, mas as tensões continuavam.
Essa opção acabou, contudo, por se mostrar prejudicial ao Estado no longo prazo. Nas
palavras de George Schöpflin, relegar a etnicidade característica da Iugoslávia para um segundo
plano acabou por tornar o Estado propício à ruptura e ao conflito entre os grupos que o formavam.
A base nacionalista desenvolvida por Tito não seria suficiente para suplantar o histórico de
tensões: “(...) the state was founded on a weak basis because of a set of serious misunderstandings;
some of them were deeply structural, others contingent and derived from a cognitive screening out
of long-term factors by short-term ones” (Schöpflin, 2006, p. 13).
168
Mitja Zagar (2000, p. 131-2) apresenta uma tabela detalhada das etnias existentes no
território iugoslavo ao longo do século XX, proporcionando um panorama ilustrativo para
referências sobre a distribuição dos povos naquele Estado. Carter et al (2009, p. 239) traz uma
figura ilustrando a composição étnica na BH em 1991, logo antes da guerra naquele país.
O cerco a Sarajevo 253

Guerra Mundial era proibida e reprimida pelas instituições políticas através de


medidas tomadas em nível federal (Glenny, 1996, p. 148). “A Iugoslávia nunca se
conformara com o fato de seus maiores segmentos terem se massacrado
mutuamente” (Foer, 2004, p. 20).

O Partido Comunista Iugoslavo (“PCI”) – e, a partir de 1958, a Liga dos


Comunistas da Iugoslávia (“LCI”)169 – insistia na igualdade étnica e na proteção
das minorias, resolvendo de maneira informal as disputas e conflitos internos. A
divisão dos poderes e a atualização dos mecanismos de power-sharing eram
elementos constantes na política, continuando pelas décadas seguintes. Isto
transmitia a sensação de autonomia necessária para que a paz se mantivesse no
território, mesmo que as liberdades e direitos não fossem os mesmos para todas as
repúblicas.

O governo federal estava consciente da importância da pluralidade étnica


para evitar a desintegração da Iugoslávia. Assim, mesmo admitindo apenas a
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identidade iugoslava como aplicável nas dimensões política e social, havia na


constituição federal, sob diferentes formas, o reconhecimento da presença das
várias etnias, especialmente pela adoção do termo “nacionalidades” para se referir
a elas (Bose, 2002).

Mesmo com esse “reconhecimento” institucional, a predominância dos


sérvios sobre as demais nacionalidades era notável (Zametica, 1992, p. 20) e
estimulava manifestações pela separação das repúblicas não-sérvias da Iugoslávia.
Isto começou a mudar a partir da década de 1960, com as reformas políticas
promovidas por Tito. Houve um efetivo processo de descentralização do poder do
nível federal para o das repúblicas, significando uma diminuição no papel dos
sérvios.

Um marco para esse processo de descentralização foi a constituição de


1974, que buscou solucionar algumas questões quanto à divisão do poder das
nacionalidades iugoslavas. De forma extremamente confusa, ela concedia maior
autonomia às repúblicas (Kenkel, 1997, p. 11), retirando-as da área de influência –

169
Em 1958, o PCI foi transformado em LCI, num primeiro passo rumo à sua
independência do controle soviético. A mudança preservou formalmente as atribuições e
estruturas burocráticas do partido dominante, mas abriu espaço para um processo gradual de
democratização (Zagar, 2000).
Marcelo Mello Valença 254

e controle – sérvia (Cousens, 2002, p. 534). A reforma constitucional fortaleceu


os processos internos de autonomia, acalmando os desejos de separação em razão
da diferença dispensada às nacionalidades.

Les modifications constitutionnelles adoptées en 1974 touchèrent avant tout la


Serbie, tout d'abord en raison de l'établissement d'un rapport asymétrique entre
cette république et les deux provinces autonomes lui étant rattachées (le Kosovo et
la Voïvodine), mais aussi en raison du fait que la décentralisation de la Fédération
ne fut pas suivi de l'octroi d'une autonomie aux Serbes de Croatie (Simic, 1994,
p. 135 apud Kenkel, 1997, p. 11-12).

A constituição de 1974 estabeleceu o princípio da soberania compartilhada


entre as repúblicas a fim de assegurar a independência das nacionalidades
enquanto se mantinha a integralidade do Estado. Cada uma delas receberia
autonomia para desenvolver suas estruturas institucionais de governo e legislação,
bem como o direito de emitir papel moeda, dentre outras atribuições. Apenas o
exército mantido sob o controle federal (Cousens e Cater, 2001). Para a
manutenção da ordem interna, as repúblicas tinham o direito de formar “forças de
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defesa” (Hall, 1994; p. 39; Banac, 2006, p. 33). Na prática, isto significava que os
problemas mais importantes seriam discutidos no nível federal, inclusive as
questões que envolvessem diretamente o uso da força: o poder continuava nas
mãos de Tito (Zametica, 1992, p. 10; Cousens e Cater, 2001; Rae, 2002, p. 176).

A reforma constitucional mantinha viva a política de idéias titoísta. A


cessão de certas prerrogativas para as repúblicas e províncias mantinha a
Iugoslávia unida, enquanto promovia um projeto para o futuro includente e
universalizante. Esse arranjo, entretanto, facilitava eventuais tentativas de
independência das repúblicas, porque já havia instituições políticas que
permitiriam a transição política estável da federação iugoslava para um Estado
autônomo.

A maioria sérvia acreditava, porém, que as mudanças políticas resultariam


na ruptura da Iugoslávia (Biserko, 2009, p. 243). O lema histórico “apenas a
união poderia salvar a Sérvia”170 expressava o receio sérvio na fragmentação do
Estado e, com isso, a perda da influência que possuíam sobre o território e sobre
os locais históricos que marcavam seus mitos de origem, como o Kosovo. Deste
modo, a autonomia das repúblicas e províncias nacionalistas em relação à

170
Em sérvio-croata, no original, Samo sloga Srbina spasava.
O cerco a Sarajevo 255

federação iugoslava representava uma ameaça para a própria identidade sérvia –


independentemente do discurso político que afastava essa visão nacionalista.

Tito, personificando a figura de herói de guerra, era o fator que


proporcionava a integralidade e coesão dos princípios iugoslavos ao longo do
tempo em que esteve no poder (Kenkel, 1997, p. 12; Howard, 2008, p. 43). O
poder de Tito não se esgotava no fato de que ele era o presidente iugoslavo. Tito
também liderava a LCI e tinha grande representatividade junto ao Exército
Nacional da Iugoslávia171 (“JNA”). O exército, inclusive, era a ferramenta de
integração que Tito ambicionava, pois seu caráter multi-énico representava o
princípio da unidade e irmandade (Zametica, 1992, p. 40). As principais
instituições da Iugoslávia estavam centralizadas em Tito, que conseguiu conciliar
diversas nacionalidades e religiões de uma maneira que a questão étnica perdesse
a importância em um Estado laico. Isso sem contar na capacidade de centralizar o
poder de repúblicas que apresentavam uma longa história de tensões e conflitos
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(Kenkel, 1997, p. 3-10). O título de presidente era uma mera formalidade: o


poder residia, de direito e de fato, nas mãos de Tito.

Sua personalidade forte e o arranjo político que desenvolveu para a


Iugoslávia possibilitaram que Tito mantivesse o país unido e coeso em torno de
uma proposta nacional durante quase quarenta anos. Tito governava como um
ditador (Kaplan, 1994, p. 7), e promoveu diversos expurgos e prisões de
adversários políticos e opositores ao longo de seu governo (Kaldor, 2001, p. 40;
Schöpflin, 2006, p. 23-24).172 Desta maneira, ele afastava toda e qualquer forma
de oposição política, mas mantinha-se atento às demandas políticas das
repúblicas. Isso permitiu que controlasse a política iugoslava até a sua morte, em
1980 (Hall, 1994, p. 9).

A turbulência que se seguiu à morte de Tito foi agravada pela completa


ausência de políticos que pudessem continuar o legado do ex-presidente em
função dos expurgos da década de 1970. A manutenção da unidade iugoslava
estava ameaçada pelo surgimento de políticos dotados de discursos nacionalistas
que contestariam as políticas vigentes, incutindo novas práticas políticas na

171
Em sérvio-croata, no original, Jugoslovanska Ljudska Armada.
172
Ver nota n. 165.
Marcelo Mello Valença 256

Iugoslávia e fazendo com que a ruptura do Estado fosse apenas uma questão de
tempo (Schöpflin, 2006, p. 24; Economides e Taylor, 2007, p. 65).

6.2.
A década de 1980: o discurso político e a política de identidade

A década de 1980 marcou um período de transição entre o discurso que


sustentava a política de idéias para aquele que motivaria as políticas de identidade,
que culminaria na guerra da década de 1990. Especialmente do lado sérvio, havia
manifestações por maior prestígio para essa etnia, de forma a resgatar o papel que
lhes cabia antes do governo de Tito (SANU Memorandum, 1986, sp.), mesmo que
isso significasse o atrito com outras etnias (Sacco, 2001, p. 36).173

A morte de Tito criou um vácuo no poder iugoslavo. O presidente que o


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sucedeu não foi capaz de controlar as instituições políticas, fragmentando as bases


de sustentação do poder (Popovic, 2006, p. 46). A presidência não tinha a mesma
importância da época de Tito e o discurso de integração nacional não mais surtia
efeitos.

A partir de então, o balanço de poder interno e o centro decisório político


iugoslavos saíram definitivamente do nível federal para se alocarem nas
repúblicas e províncias. Associada a essa mudança política, a década de 1980
marcou o início de uma crise econômica sem precedentes naquele país,174
rompendo definitivamente com a credibilidade do regime comunista. Com o

173
Ressaltamos que houve práticas discriminatórias de ambos os lados na guerra, com
crimes cometidos não apenas pelos sérvios, mas também aos croatas e bósnios. Não tomamos
partido em nenhum dos lados, mas exploraremos principalmente o discurso nacionalista sérvio,
dado que este era dominante à época (Hall, 1994, p. 55). “Embora não seja fácil distinguir entre
vítima e agressor nos Bálcãs, a parte sérvia se converteria no objeto do isolamento e da coerção
sobretudo por haver ficado associada às piores atrocidades da política espúria da ‘limpeza étnica’
(Patriota, 1998, p. 84). Contudo, não podemos esquecer que parte da mobilização nacionalista
durante o final da década de 1980 e início da década de 1990 deve ser atribuída, também, aos
croatas (Kaldor, 2001, p. 41-42).
174
A crise econômica da década de 1980 fez com que os índices de inflação na Iugoslávia
atingissem 1950% ao ano, em 1989 (Blitz, 2006, p. 2-4); Mary Kaldor (2001, p. 37) fala em
2500% ao ano. As instituições financeiras internacionais, às voltas com os Estados da América
Latina, viam a Iugoslávia como mais uma vítima do super-endividamento. O índice de
desemprego se mostrava bastante alto, na faixa dos 14%. A dívida externa era superior aos vinte
bilhões de dólares, quase um quarto do Produto Interno Bruto (“PIB”) iugoslavo (Kaldor, 2001,
p. 37).
O cerco a Sarajevo 257

sistema em crise, pouco poderia ser feito para garantir a continuidade de uma
Iugoslávia multi-étnica, sustentada por um regime político ineficaz e uma
constituição incapaz de proporcionar as liberdades e direitos esperados. “Historic
experiences have shown that constitutions and legal systems can be successful in
resolving internal conflicts only if they are accepted, followed, and supported by
the people (Zagar, 2000, p. 146).

As demandas nacionalistas sustentadas pela base étnica foram a maneira


encontrada pela oposição de se expressar contra a estrutura existente (Cousens e
Cater, 2001). Este cenário consagrou líderes políticos radicais, como Slobodan
Miloševic175 e Franjo Tudjman (Kaldor, 2001, p. 40), que cresciam em poder e
popularidade conforme o discurso nacional iugoslavo perdia espaço para a
retórica nacionalista.

Yugoslavia’s complex balance of powers among its six republics, two autonomous
provinces, and six constituent nationalities had become increasingly untenable as
well as fertile ground for competition among political leaders emerging in
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Yugoslavia’s republics (Cousens e Cater, 2001, p. 17).

A repressão às manifestações albanesas no Kosovo em 1981 foi uma prova


disso. A violência alegadamente cometida contra a minoria sérvia na região pelos
albaneses kosovares exacerbou o sentimento nacionalista daquela etnia, levando a
questão nacionalista para o plano federal com a mobilização do JNA para
restaurar a ordem (Glenny, 1996, p. 14; Zametica, 1992, p. 11; Biserko, 2009,
p. 243). A cassação da autonomia do Kosovo em 1987 seria uma conseqüência
lógica de tal repressão (Glenny, 1996, p. 15; Blitz, 2006, p. 3).

A década de 1980 resgatou as identidades étnicas anteriores à formação do


Estado, que era visto como artificial e não-representativo das nacionalidades. A
legitimidade do poder para os não-sérvios não mais estava no governo federal,
mas na representação que conseguiriam desenvolver nos seus próprios territórios.
As instituições políticas existentes não proporcionariam mais a unidade buscada
por Tito durante seu governo.

175
Miloš evic é um personagem central para entendermos o cenário político iugoslavo nos
anos seguintes à morte de Tito. Ele, mais do que seus rivais políticos Tudjman, Izetbegovic e
Karadzic, foi fruto de estudos acadêmicos em diferentes áreas, que tratavam desde a sua biografia
e conduta política até estudos psicológicos. Estes últimos buscavam entender suas escolhas e
comportamentos, especialmente em função de seu histórico pessoal, marcado pelo suicídio dos
seus pais. Sobre as obras produzidas sobre Miloš evic, Ramet, 2005 (p. 159-181).
Marcelo Mello Valença 258

Isso, entretanto, ia contra os desejos sérvios. Eles defendiam que a


manutenção do Estado federal iugoslavo significava a continuidade da sua cultura.
Qualquer mudança implicaria o seu desprestígio e a privação de um Estado que os
incluísse. Não à toa a proposta de privilegiar o Estado para somente então pensar
na democracia era o que movia a política nacionalista sérvia (Biserko, 2009,
p. 243).176 A política de idéias estimulada por Tito abriu espaço para a política de
identidades dos líderes nacionalistas, que buscavam um Estado unido, mas em
seus próprios termos.

As demais nacionalidades entendiam essa questão à sua própria maneira. A


sua preservação e a manutenção de seus interesses estaria condicionada à
independência de suas repúblicas, de forma que a cultura que carregavam fosse
mantida e seus interesses preservados apenas se libertos do jugo sérvio.

O resgate às memórias étnicas abandonadas por Tito questionava a situação


de crise que a população enfrentava e como isso poderia ser alterado. Tentativas
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de apontar culpados recaiam sobre as lideranças sérvias, o que levou a um


movimento anti-sérvio que trouxe novamente para debate a independência das
repúblicas. A unidade da federação estava ameaça e restava evidente que os
mecanismos que sustentavam a Iugoslávia durante o governo de Tito não
conseguiriam ser mantidos. As repúblicas iugoslavas possuíam todo o aparato
institucional para a sua autonomia e manifestações nesse sentido começavam a
acontecer.

Diante dessas manifestações, a insatisfação sérvia era crescente e se dirigia,


especialmente, às reformas promovidas pela constituição federal de 1974. A
mobilização contra os efeitos decorrentes das mudanças se atinha à política, mas
repercutia na economia e na sociedade. O marco dessa mobilização veio em
1986, quando a Academia Sérvia de Artes e Ciências (“SANU”)177 divulgou um
manifesto que exigia o resgate da importância sérvia e acusava os perigos que os
membros daquela etnia estariam passando.

With the exception of the Independent State of Croatia from 1941- 45, Serbs in
Croatia have never been as persecuted in the past as they are now. The solution to
their national position must be considered an urgent political question. In so much

176
Em consonância com a idéia de que “apenas a união poderia salvar a Sérvia/os sérvios”.
177
No original, em sérvio, Srpska Akademija Nauka i Umetnosti.
O cerco a Sarajevo 259

as a solution cannot be found, the results could be disastrous, not just in relation to
Croatia, but to all of Yugoslavia (SANU Memorandum, 1986, sp.).

O manifesto marcou a entrada definitiva das elites sérvias – intelectuais e


econômicas – no movimento nacionalista, em busca de maior espaço e
oportunidades em uma sociedade onde sempre foram dominantes. Contudo, com
a mudança legislativa e as crises política e econômica, foram relegados a um
papel de menor importância.

The Constitution of 1974, in fact, divided Serbia into three parts. The autonomous
provinces within Serbia were made equal to the republics, save that they were not
defined as such and that they do not have the same number of representatives in the
various bodies of the federation. They make up for this shortcoming by being able
to interfere in the internal relations of Serbia proper through the republic's common
assembly (while their assemblies remain completely autonomous). The political
and legal position of Serbia proper is quite vague-Serbia proper is neither a
republic nor a province. Relationships in the republic of Serbia are quite confused.
The Executive Council, which is a body of the republic's assembly, is in fact the
Executive Council for Serbia proper. This is not the only absurdity in the
limitation of authority. The excessively broad and institutionally well established
autonomy of the provinces has created two new fissures within the Serbian nation
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(SANU Memorandum, 1986, sp.).

O documento serviu como base intelectual para o discurso nacionalista


sérvio (Letica, 1996, p. 102; Biserko, 2009, p. 243), pois explicitava não apenas a
repressão e perdas que os sérvios sofreram desde a II Guerra Mundial, como
também trazia acusações de violência e desprestígio daquele povo (SANU
Memorandum, 1986, sp.). Era um claro resgate às memórias e aos mitos de
fundação da cultura sérvia, mostrando que a idéia de “irmandade e unidade”
titoísta era artificial e tentava omitir o papel sérvio nos Bálcãs (Glenny, 1996,
p. 42). Livros surgiam contando a “história secreta” da II Guerra Mundial, que
logo se transformaram em slogans nacionalistas (Foer, 2004, p. 20). Havia até
mesmo a sugestão de que as mudanças foram promovidas para eliminar a etnia
sérvia da Iugoslávia: o manifesto chegava a falar em genocídio.178

The attainment of equality and an independent development have profound


historical meaning for the Serbian people. In less than fifty years, over two
successive generations, the Serbian nation has been exposed to such severe trials-
twice exposed to physical extermination, to forced assimilation, to religious
conversion, to cultural genocide, to ideological indoctrination, and to the

178
Brian Hall aponta que o genocídio a qual se refere o manifesto ignora alguns números,
funcionando como instrumento de propaganda. Desde a II Guerra Mundial foram assassinados
216 mil pessoas, na maioria sérvios e judeus; 209 mil colaboradores da oposição, na maior parte
croata; 237 mil guerrilheiros, de todas as etnias; e 285 mil pessoas, de todas as etnias, sem
qualquer vinculação política (Hall, 1994, p. 41). O número de sérvios é alto, mas não é o único.
Marcelo Mello Valença 260

denigration and renunciation of their own traditions beneath an imposed guilt


complex, and thereby disarmed intellectually and politically, that they could not
but leave deep spiritual wounds that cannot be ignored as this century of the great
technological takeoff draws to a close (SANU Memorandum, 1986, sp.).

O manifesto demandava mudanças – políticas, econômicas e sociais – a


serem realizadas pelos sérvios para garantir seus direitos, cultura, poder e
sobrevivência. Mas, acima de qualquer coisa, o documento trazia grande apelo e
o respaldo da SANU, centro acadêmico mais importante da Iugoslávia, aos
movimentos nacionalistas sérvios e possibilitou a mobilização popular em torno
da idéia da Grande Sérvia e da superioridade étnica sobre os demais povos. Os
interesses sérvios deveriam ser preservados a qualquer custo, inclusive
respondendo de forma violenta àqueles que buscavam eliminá-los (SANU
Memorandum, 1986, sp.).179

A divulgação do manifesto coincidiu com a consolidação de Slobodan


Miloševic como a liderança sérvia mais influente à época. Ele aproveitara o
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espaço para debates proporcionado pelo manifesto e pelas diversas críticas à


constituição de 1974 para responder de forma mais agressiva às demandas por
independência e autonomia das repúblicas sob a alegação de que a federação
iugoslava estava em risco (Blitz, 2006, p. 4; Popovic, 2006, p. 46).

Yugoslavia is seen less as a community of citizens, nations and nationalities all


equal before the law, and more as a community of eight equal territories. But even
this variety of equality does not apply to Serbia because of its special legal and
political position which reflects the tendency to keep the Serbian nation under
constant supervision. The guiding principle behind this policy has been "a weak
Serbia, a strong Yugoslavia" and this has evolved into an influential mind-set: if
rapid economic growth were [sic] permitted the Serbs, who are the largest nation, it
would pose a danger to the other nations of Yugoslavia. And so all possibilities are
grasped to place increasing obstacles in the way of their economic development
and political consolidation. One of the most serious of such obstacles is Serbia's
present undefined constitutional position, so full of internal conflicts (SANU
Memorandum, 1986, sp.).

O comportamento de Miloševic era demagogo e politicamente atento às


ações necessárias para conseguir o apoio de seus pares sérvios (Foer, 2004, p. 23).
Ele soube reconhecer que o poder político não mais residia na LCI, esvaziada pela
crise política e pela incapacidade de oferecer respostas aos problemas econômicos

179
Apesar da importância assumida pelo manifesto, ele não trazia nada de novo para a
política iugoslava. Segundo Sonja Biserko (2009, p. 243), o manifesto apenas copiava os
parâmetros do programa nacional sérvio do final do século XIX, quando as diretrizes para a
formação da Grande Sérvia foram desenvolvidas.
O cerco a Sarajevo 261

que se tornavam evidentes, mas no JNA (Glenny, 1996, p. 134; Zametica, 1992,
p. 42). Através da influência que possuía junto ao exército, Miloševic conseguiu
reprimir as manifestações nacionalistas nas repúblicas não-sérvias. Desta
maneira, ele pôde tomar medidas violentas contra movimentos populares e
trabalhistas, alegando a restauração da ordem. Manifestações étnicas ou por
maiores liberdades, especialmente no Kosovo, eram reprimidas e suas lideranças,
expurgadas.

Sua agenda política era claramente nacionalista, equiparando a identidade


iugoslava à sérvia e construindo um cenário onde aqueles que não carregassem
consigo tais valores seriam considerados cidadãos de segunda classe. Seu
discurso constituía o medo e a superioridade necessários para legitimar a violência
contra os não-sérvios, caracterizando a violência cultural (Galtung, 1990, p. 291;
Jeong, 2000, p. 23) a que nos referimos no capítulo anterior:

[h]e made this clear during his famous Gazimestan speech when he masked his
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pursuit of power with such nationalist rhetoric as “us against them”, promising to
“defend Serbian interests” and, if necessary, to do so “with military means
(Popovic, 2006, p. 46).180

Miloševic reforçava a importância de um Estado iugoslavo unido enquanto


abria espaço para a exclusão das etnias diferentes do projeto da Grande Sérvia.
Graças à tais posturas, sua popularidade aumentou junto aos grupos sérvios, que o
viam como o líder que o povo precisava para resgatar a sua importância, mas
criavam um senso de repulsa junto às outras repúblicas (Kaldor, 2001, p. 38; Rae,
2002, p. 185).

As elites tiveram um papel importante na construção deste discurso


alarmista, que afastava qualquer reivindicação de outras etnias da agenda política
da Iugoslávia (Blitz, 2006, p. 3). “Fear and hate are not endemic but, in certain
periods, are mobilized for political purposes” (Kaldor, 2001, p. 42),
caracterizando a manifestação das políticas de identidade. Expurgos e
assassinatos de opositores levavam ao esvaziamento de manifestações contrárias

180
O discurso de Gazimestan foi realizado em 28 de junho de 1989 como parte dos eventos
de comemoração dos 600 anos da Guerra do Kosovo. O contexto era de tensão étnica e o discurso
pregava a possibilidade de uma guerra em um futuro próximo, de modo a garantir a sobrevivência
e o poder da etnia sérvia (Glenny, 1996, p. 34-35). O discurso está disponível, na íntegra, em
<http://www.slobodan-Miloš evic.org/spch-kosovo1989.htm>. Acesso em 21 de abril de 2010.
Marcelo Mello Valença 262

ao poder dominante, assegurando que Miloševic defendesse a defesa dos


interesses sérvios acima de qualquer outro.

O próprio tratamento aos não-sérvios evidenciava o desprezo e a falta de


humanidade para com eles, preparando as bases para a violência que surgiria nos
primeiros anos da década de 1990. Os croatas eram tratados como ustashi,
inimigos históricos; os bósnios muçulmanos como balije, sérvios convertidos para
o Islamismo (Hall, 1994, p. 108; Biserko, 2009, p. 244). Em ambos os casos,
eram considerados inferiores aos sérvios e obstáculos que deveriam ser superados
para a consagração da Grande Sérvia.

The corollary of this was that it was imperative for Serbs to be united, and so any
dissent amongst Serbs themselves, which of course there was, could be targeted as
disloyal, a betrayal of all Serbs. Thus an exclusive, unitary national identity, which
was predicated on a notion of a homogeneous Serb state for Serbs and that
characterized non-Serbs as “the enemy”, was simultaneously constructed by elites,
cultivated through populist politics, and imposed upon any dissenting Serbs (Rae,
2002, p. 183).
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Manifestações, como a greve dos mineiros albaneses no Kosovo em 1989


em represália à opressão sérvia, eram freqüentes, mas Miloševic alterava a
significação de tais manifestações, caracterizando-as como movimentos contrários
aos interesses sérvios – e, portanto, da Iugoslávia. Se a finalidade desses
movimentos era de chamar a atenção para as arbitrariedades praticadas pelo
governo federal contra os não-sérbios, Miloševic as acusava de irem contra a
ordem. A repressão violenta das manifestações sugeria sua criminalização e
conseqüente inadequação à dimensão política, impedindo que a violência
promovida pelo exército se caracterizasse como arbitrária.

Em 1989, Miloševic é apontado presidente da Iugoslávia, formalizando o


poder e a influência que já possuía. A exploração do nacionalismo sérvio por
Miloševic e a utilização da força por suas bases de apoio proporcionaram a
utilização do aparato estatal para excluir os grupos não-sérvios, especialmente nas
repúblicas croata e bósnia (Biserko, 2009, p. 244).

Isso abria espaço para o surgimento de milícias e grupos paramilitares


nacionalistas – apoiados pelo governo sérvio – que, motivados pelos ideais
sérvios, auxiliavam o JNA. A violência de cima para baixo que decorria das
políticas de identidade propagadas pelas elites transmitia não apenas a sensação de
O cerco a Sarajevo 263

impunidade, mas também ofereciam estímulos para que grupos privados se


valessem da força contra as diferentes etnias do Estado.

Um dos nomes mais importantes nessas milícias que surgiam era o de


Zeljko Raznatovic, também conhecido como Arkan. Arkan e seus homens – os
Tigres – assumiam, assim como outros grupos paramilitares, o papel de
justiceiros, promovendo crimes e violência contra membros de outras etnias sem
envolver diretamente o JNA, nem o governo, nas suas ações. Não obstante essa
“espontaneidade”, o apoio de Miloševic era notório – seus recrutas treinavam em
quartéis da polícia sérvia e eram financiados pelo exército (Foer, 2004, p. 25),
realizando o trabalho sujo sem o envolvimento oficial do governo. A violência de
cima para baixo repercutia nesses grupos que, por sua vez, produziam a violência
de baixo para cima, mantendo viva a dinâmica do conflito.

Os atos de maior violência – que caracterizariam posteriormente as


acusações de limpeza étnica – foram realizados por esses grupos paramilitares,
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que se mostraram centrais para o desenrolar da guerra da BH. Arkan e seus


homens, por exemplo, são acusados de terem matado mais de duas mil pessoas na
guerra da Croácia e da BH (Foer, 2004, p. 27), valendo-se das mais diversas
formas de agressão (UN Experts, 1994, sp.).

A privatização da violência nas mãos desses grupos aumentou a pressão


exercida pelo nacionalismo sérvio, tornando a relação entre as nacionalidades
insustentável. Frank Foer jocosamente se refere a esses grupos como um
incentivo a mais para o separatismo das repúblicas nacionalistas.

A retórica nacionalista de Miloševic convencera os líderes da Croácia e da


Eslovênia de que não podiam continuar associados aos sérvios – ou, no mínimo,
Miloševic lhes deu um pretexto para alimentarem seus próprios nacionalismos
(Foer, 2004, p. 24).

Assim, o ano de 1990 marcou as primeiras eleições democráticas na


Iugoslávia desde antes da II Guerra Mundial (Zametica, 1992, p. 12). Por conta
da pressão e arbítrios exercidos pelo governo federal, as eleições aconteceram no
nível das repúblicas, marginalizando a organização central, e conduziram ao poder
políticos que buscavam se desvincular da imagem titoísta. Nesse mesmo processo
eleitoral, Miloševic foi eleito presidente da república sérvia.
Marcelo Mello Valença 264

Suas plataformas eram essencialmente nacionalistas e defendiam que as


nacionalidades deveriam viver em um Estado que as representasse, indo de
encontro aos planos de integração que mantiveram a Iugoslávia unida por quase
quatro décadas, acelerando a queda do Estado (Kaldor, 2001, p. 39). Ao resgatar
os mitos históricos de suas nacionalidades, criavam o sentimento da diferença em
relação a outras etnias, evidenciando a incompatibilidade entre os grupos e
demandando ações de homogeneização e autodeterminação. No caso dos sérvios,
era o mito de Kosovo; para os croatas, era o retorno dos ustashas, inimigos dos
sérvios e que foram seus adversários durante a II Guerra Mundial (Rae, 2002,
p. 186; Popovic, 2006, p. 51; Biserko, 2009, p. 243). A diferença religiosa
também servia como forma de diferenciar as etnias, criando barreiras entre elas.
O uso da mídia por ambos os lados, mas principalmente pelos sérvios, era uma
maneira de reforçar a diferença entre os grupos, constituindo o principal veículo
de propaganda no período anterior à guerra (Kaldor, 2001, p. 39; Biserko, 2009,
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p. 244).

The leaders of Serb, Croat, Bosniac, Kosovar Albanian and other national
communities, with variations, evidently believed that national homogeneity, that is,
statehood without minorities, constituted political stability and offered the only
genuine chance for peace (Banac, 2006, p. 30).

Em outras palavras, o que eles buscavam era a criação do Estado-nação


correspondente às suas etnias e que, de certa forma já existia dentro da Iugoslávia,
mas não de maneira autônoma. A idéia não era nova na Europa, mas nunca fora
possível na Iugoslávia por conta da centralidade assumida pelo governo federal
(Hayden, 1996, p. 787):181

[ethnicity] once in being, an ethnic community will do virtually everything it can to


ensure that it survives and it employs a very wide range of instruments to ensure its
cultural reproduction. (...) Ethnicity is a central means of creating coherence and
order in what would otherwise be chaos (Schöpflin, 2006, p. 15).

Isto foi fundamental para a independência das repúblicas nos anos seguintes
às eleições, especialmente a BH (Kaldor, 2001, p. 41; Blitz, 2006, p. 3). Da

181
Mary Kaldor (2001, p. 41) nota que seis meses antes das eleições de 1990, cerca de 74%
da população era contrária aos partidos nacionalistas de cunho étnico. Contudo, 70% dos votos
foram para esses partidos. A explicação oferecida pela autora é de que uma vez que a mobilização
étnica se mostrava como uma tendência para o futuro, a população achou necessário garantir ao
seu grupo étnico a participação política. Como bem coloca Eric Hobsbawm, “(...) a etnicidade
pode mobilizar a ampla maioria de sua comunidade – uma vez que seu apelo permanece
suficientemente vago ou irrelevante” (Hobsbawm, 1990, p. 201). O medo e a incerteza das
mudanças que estavam por vir garantiram o poder nas mãos dos nacionalistas étnicos.
O cerco a Sarajevo 265

vitória dos partidos nacionalistas veio a independência. Primeiro a Eslovênia,


depois Croácia e BH realizaram tal movimento. Nos três casos o JNA fora
mobilizado pelo governo federal, mas apenas na Eslovênia a violência não foi
prolongada. Croácia e BH, por outro lado, serviram de palco para um cenário de
violência que se prolongaria até após o acordo de paz celebrado em 1995.182

6.3.
O cerco a Sarajevo

Oficialmente, Sarajevo foi cercada durante 1.395 dias (5 de abril de 1992 a


29 de fevereiro de 1996), constituindo o maior da história militar moderna a uma
capital (Miss Sarajevo, 1993, meio eletrônico).183 O cerco colocava em oposição
os bósnios sérvios nacionalistas da República Sérvia (“RS”)184 – apoiados pelo
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JNA e caracterizados como chetniks – e as forças de defesa da república bósnia,


compostas pelo Exército Bosniano da República da BH (“ARBiH”)185 e por
voluntários, em sua maioria por civis – incluindo aí policiais, cidadãos comuns e
grupos de criminosos de Sarajevo.186

182
Robert Kaplan traz uma piada sobre as proporções assumidas pela violência na BH:
enquanto Croácia e Eslovênia enfrentavam suas guerras, a BH estava estranhamente quieta porque
já estaria classificada para as finais e só precisava esperar seu adversário (Kaplan, 1994, p. 22).
Essa era uma referência à falácia de que a BH multi-étnica era estável e pacífica (Glenny, 1994,
p. 24; Kaplan, 1994, p. xi).
183
Apesar do cerco ser declarado apenas em abril de 1992, já em março daquele ano os
bloqueios e ataques a Sarajevo começariam (Spencer, 1995, p. 7). A movimentação coincidia com
a declaração de independência bósnia, em 1o de março de 1992. O JNA começara a instalação de
equipamento bélico nos arredores da cidade no início do mês de março e bombardeios esporádicos
já eram noticiados àquela época.
184
No original, em sérvio-croata, Republika Srpska.
185
No original, em bósnio, Armija Republike Bosne i Hercegovine.
186
De forma a tornar a leitura menos truncada, convencionaremos as referências às etnias
mencionadas na guerra. Quando nos referirmos a chetniks, entende-se indivíduos e grupos que
pregavam o nacionalismo sérvio, tanto referente aos bósnios sérvios quanto aos sérvios da
Iugoslávia, que futuramente comporiam o Estado sérvio. Chetnik é uma expressão histórica de
caráter pejorativo utilizada para se referir aos sérvios nacionalistas, que ambicionavam a
construção da Grande Sérvia (Christopher Hitchens in Sacco, 2001, sp.). Por bosnianos nos
referimos a todos os bósnios não-sérvios envolvidos no conflito, mas em especial aos
muçulmanos. Os termos “sérvio” e “bósnio” se referem respectivamente, à nacionalidade sérvia e
bósnia, incluindo os termos derivados daquelas repúblicas. Entendemos que tal convenção pode
causar, ainda que involuntariamente, um tratamento desigual e por vezes injusto dos atores
envolvidos, mas facilitará bastante o entendimento do leitor. Cabe notar que Joe Sacco (2001)
narra que nas entrevistas que realizou na BH, sempre que havia relatos sobre violências cometidas
em nome do nacionalismo sérvio, a expressão chetnik era trazida pelos entrevistados. No entanto,
Marcelo Mello Valença 266

O acesso a armas era dificultado pelo embargo internacional estabelecido


pela resolução n. 713 de 1991 do CS da ONU (Patriota, 1998, p. 82). Contudo, o
embargo afetava apenas os bósnios, deixando os sérvios em posição de vantagem.
Suas forças, incluindo o JNA e o Exército da República Sérvia (“VRS”),187 eram
beneficiados pelos estoques maciços de armas da Guerra Fria (Hall, 1994, p. 63-
64; Valença, 2006a, p. 82; Andreas, 2008, p. 26). As forças sérvias ainda
contavam com a produção de armas das indústrias do Instituto Técnico do
Exército188/Zastava, aumentando ainda mais a sua capacidade de empregar a
força.189

Com o reconhecimento da independência bósnia pela União Européia, em


06 de abril de 1992, e pelos EUA no dia seguinte (Zametica, 1992, p. 39; Rae,
2002, p. 198-199), a presença do JNA constituía em território bósnio era uma
violação à sua soberania (Glenny, 1996, p. 165) O presidente da BH, Alija
Izetbegovic, exigiu a retirada do exército iugoslavo de seu país e,
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surpreendentemente, fora atendido por Miloševic. As tropas do JNA foram


retiradas do país, deixando apenas os soldados bósnios sérvios, que seriam
incorporados posteriormente ao VRS.

A situação de tensão continuava. O cerco começou a tomar corpo em dois


de maio daquele mesmo ano, visando o isolamento de Sarajevo do resto da BH,
com o corte total do acesso a bens e serviços, como comida, água e eletricidade.
Contudo, o que era para produzir uma situação de isolamento e de restrições
proporcionou a zona de guerra mais globalizada e acessível não só para atores
internacionais, mas também para os próprios sitiados. “Indeed, paradoxically,
Sarajevo became a peculiar type of ‘global city’ precisely because it was under
siege” (Andreas, 2008, p. 3).

o rótulo sérvio, segundo ele, nunca foi relacionado com violência étnica por nenhuma das pessoas
com quem trabalhou.
187
No original, em sérvio, Vojska Republike Srpske. O exército foi criado em maio de 1992
para garantir a segurança da RS, um território da BH formado majoritariamente por sérvios e que
desejava a separação do resto do país. Em sua composição estavam, além dos soldados alocados
pelo JNA, paramilitares sérvios apoiados pelo governo de Belgrado (Andreas, 2008, p. 6).
188
Em sérvio-croata, no original, Vojno-Tehnicki Zavod.
189
Cabe ressaltar que cerca de 60% das indústrias armamentistas da Iugoslávia se
localizavam na BH, mas antes da independência o governo federal esvaziou as fábricas. Isso
acabou por ser prejudicial ao ARBiH (Glenny, 1996, p. 151).
O cerco a Sarajevo 267

A assimetria entre os atacantes e os defensores da cidade era visível. O JNA


era um exército profissional e fortemente armado. Enquanto isso, as forças de
defesa em Sarajevo contavam apenas com as armas de sua polícia e grupos
criminosos, que não eram capazes de romper com o ataque, mas eram fortes o
bastante para impedir a vitória adversária definitiva. O impasse estava formado.

As forças militares atacantes eram em menor número que os defensores da


cidade e, por isso, não conseguiriam obter a vitória militar através da conquista.
A estratégia adotada foi a de tentar reduzir a capacidade de Sarajevo através do
desgaste imposto pelo cerco e pelos bombardeios diários, cortando o acesso a
armas e víveres para, assim, sagrarem-se vitoriosos.

Às diversas posições que foram construídas no período anterior ao cerco se


somaram outros pontos de ataque e bunkers, inclusive nos subúrbios da cidade,
onde artilharia e franco-atiradores se posicionariam e atacariam a cidade e seus
habitantes indiscriminadamente. “Every so often a sniper’s bullet detaches
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somebody’s head from their shoulders. This is a clinical affair – there is no blood,
no gunge, there is a ping and them a head falls off” (Glenny, 1996, p. 178). Não
havia a distinção entre combatentes e não-combatentes: o inimigo era todo aquele
que representasse a diferença.

O objetivo militar do cerco era fracionar Sarajevo em duas zonas, a sérvia e


a não-sérvia, de forma a obrigar o governo bósnio a entregar o poder à RS. A
restrição ao acesso aos bens mais essenciais para a sobrevivência buscava
desestabilizar o governo local, deslegitimando-o e associando-o com as privações
da guerra. Além da violência decorrente do conflito armado, os atacantes
promoviam ainda a limitação no acesso a bens essenciais, caracterizando a
violência estrutural. Acreditava-se que o discurso nacionalista e os símbolos e
mitos resgatados pelas lideranças políticas durante a campanha eleitoral de 1990 e
ao longo do processo de independência das repúblicas forneceriam o combustível
necessário para que sérvios, bósnios e croatas rompessem as relações entre si e
fossem buscar o apoio de seus governos, enfraquecendo a pluralidade étnica da
BH.

Como a separação entre as diferentes nacionalidades não se mostrou


possível, o cerco passou a se dirigir à destruição da cultura bosniana e aos
símbolos e marcos associados à história da sua população. Sarajevo se tornaria o
Marcelo Mello Valença 268

exemplo para as demais cidades e vilarejos de que a integração étnica não seria
permitida, marcando um padrão de ação que se repetiria em outras localidades.
Sarajevo era considerada a cidade mais cosmopolita do Leste europeu (Sacco,
2003, p. 27) e, em função de sua história, importância política e visibilidade
global, adéqua-se como modelo para uma análise da violência durante a guerra.

Os anos de 1992 e 1993 constituíram o período de maior violência do cerco


(UN Experts, 1994, sp.; Spencer, 1995, p. 7; CICR, 1996, sp.), a face mais visível
de uma guerra que envolvia os cidadãos e buscava acirrar as diferenças entre os
grupos étnicos de forma que a convivência se tornasse insuportável. Os
bombardeios eram uma faceta gritante da guerra, que atraía as atenções
internacionais através da cobertura midiática e de protestos e ameaças de governos
estrangeiros de contra-atacar com o uso da força. A Organização do Tratado do
Atlântico Norte (“Otan”) ameaçava empregar o uso de ataques aéreos contra
posições sérvias caso os ataques não se encerrassem. Isto foi algo que não
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aconteceu. O cerco, entretanto, foi marcado por mais atos de violência do que a
“mera” agressão do exército contra alvos militares. E era uma forma de violência
que a comunidade internacional relutava a aceitar que ocorria na BH (Miss
Sarajevo, 2003, meio eletrônico; Rae, 2002, p. 203-204).

6.3.1.
Uma guerra contra a população

O cerco a Sarajevo evidenciava uma guerra assimétrica. Não apenas as


capacidades militares eram bastante distintas, mas também a maneira como o
confronto armado se sucedeu. O VRS era mais forte militarmente, mas não
possuía o pessoal para tomar a cidade (Sacco, 2003, p. 360). Por outro lado a
única superioridade material das forças bosnianas era no número de soldados.

Acuadas na cidade, as forças de Sarajevo conseguiam apenas não permitir a


invasão. Elas não tinham a capacidade necessária para o confronto aberto contra
os atacantes, promovendo uma guerra de guerrilha contra o VRS. “What Sarajevo
lacked was not manpower but rather arms, organization, coordination, and
initiative in setting up the basic elements of a perimeter defense” (Andreas, 2008,
p. 28). Apenas o ARBiH não oferecia condições para que a resistência se
O cerco a Sarajevo 269

efetivasse e, por isso, voluntários e colaboradores se juntaram às forças de defesa.


Isso incluía civis, criminosos e soldados muçulmanos, que vieram para a BH lutar
com seus irmãos de fé (Roy, 2004, p. 313-314).

Esse impasse fez com que houvesse diferença no emprego da força pelos
dois lados. O VRS utilizava bombardeios a cidade e ações esporádicas contra as
defesas bósnias. Os alvos não se limitavam apenas a objetivos militares: símbolos
de representatividade política e de importância cultural foram bastante visados,
assim como áreas residenciais. Pretendia-se destruir as condições sociopolíticas
que permitiam os sitiados a enxergarem sua cidade como um refúgio.

Os locais onde havia elementos culturais e religiosos eram importantes para


a diminuição do ímpeto da resistência bosniana. O discurso político chetnik
motivava os soldados a dirigirem seus esforços para os símbolos e valores que os
distinguia do adversário – os elementos que tornavam seus adversários menos
humanos que eles. A retórica nacionalista vinda do governo sérvio foi importante
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para promover as políticas de identidade na guerra, caracterizando a violência de


cima para baixo. Mais, essa retórica criava as condições de desumanização do
adversário (Hall, 1994, p. x), implicando a violência cultural.

As forças chetniks controlavam o acesso à cidade e, dentro dela, bósnios


sérvios assumiam o controle de armas e de áreas militares estratégicas. Isso sem
contar os franco-atiradores espalhados pela cidade, que traziam perigo constante
para qualquer um que transitasse pelas ruas e arredores de Sarajevo, sem distinção
de sexo, idade ou vinculação direta com a guerra (Carter, 2003, p. 106-108).190

190
O papel dos franco-atiradores foi tão relevante para a violência da guerra que a mera
sugestão da presença de snipers em determinadas regiões fazia com que estas se tornassem
virtualmente vazias. Um pedaço da cidade, alvo comum desses atiradores, ficaria conhecida como
sniper’s alleys. Talvez uma das histórias mais conhecidas do cerco a Sarajevo relacionadas aos
franco-atiradores seja a de “Romeu e Julieta em Sarajevo”, que se tornou símbolo do sofrimento
dos cidadãos. Ela deu origem a um documentário do National Film Board of Canada – produzida
e exibida na série Frontline – sobre um casal de jovens mortos na tentativa de fuga da cidade
(PBS, 1994, sp.).
Admira Ismic e seu noivo Bosko Brkic, ela muçulmana e ele de origem sérvia, ambos com
vinte e cinco anos, tentaram fugir da cidade através de uma região isolada. Contudo, um franco-
atirador atirou em Bosko, matando-o imediatamente. Admira foi atingida na seqüência, mas não
faleceu. Ela se abraçou ao noivo e ficou naquela posição por quase quatro horas, até morrer. Seus
corpos foram retirados da terra-de-ninguém somente quatro dias depois. As imagens rodaram o
mundo, integrando diversos documentários e matérias sobre o cerco. Sobre o tema, NFBC
(1994?), PBS (1994?) e CNN (1996).
Marcelo Mello Valença 270

6.3.1.1.
Os ataques contra a cidade: mais que um alvo, uma representação

De forma a minar a resistência dos cidadãos e destruir pontos de proteção e


logística, o VRS realizava bombardeios diários sobre a cidade.191 Construções
destruídas, completa ou parcialmente, compunham a paisagem da cidade. Os
ataques sistemáticos a esses alvos caracterizava a quebra da institucionalização da
guerra e marcava a mudança na maneira como ela era travada.

Prédios residenciais, públicos e hospitais, independentemente de terem valor


militar ou não, eram alvos freqüentes. A linha de trem que cruzava Sarajevo saiu
de circulação com o início dos bombardeios – mesmo sem ter sofrido danos
estruturais – e só retornou em 1997, dois anos após o fim do cerco.192 Mercados e
centros de abastecimento eram alvos rotineiros e diversas baixas foram
contabilizadas em ataques contra essas localizações. As principais vítimas eram
cidadãos que esperavam por água, comida ou remédios, não participando dos
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conflitos, mas apenas tentando sobreviver.

Esses ataques eram particularmente freqüentes porque se mostravam


eficientes para os fins buscados. Os ataques eram estrategicamente planejados
para eliminar a diferença étnica e se justificavam a partir da relação entre políticas
de identidade e violência cultural. Os locais onde havia reservas de mantimentos
concentravam grandes grupos, que esperavam por sua cota de ajuda humanitária
ou de bens necessários para sobreviver à guerra e ao cerco.

O caso das doze pessoas mortas em 12 de julho de 1993 enquanto


esperavam para pegar garrafas d’água ilustra essa prática. Os ataques ao mercado
de Markale, em fevereiro de 1994 e agosto de 1995, que mataram mais de cem
pessoas, é outro exemplo. Não obstante esses bombardeios, snipers ficavam a
postos e prontos para atacar nessas localidades, visto a diversidade de alvos e o
fato de que as pessoas precisariam se desproteger para carregar os víveres,
tornando-se vítimas fáceis (Carter, 2003, p. 151).

191
Relatórios de organismos internacionais estimavam em cerca de 320 o número de
bombas e morteiros lançados diariamente contra a cidade, sem contar os tiros vindos dos franco-
atiradores (CICV, 1996, sp.).
192
A primeira composição do trem que rodou pela cidade foi para transportar os habitantes
de Sarajevo e visitantes para o show do U2, que aconteceu em um estádio local (Carter, 2003).
O cerco a Sarajevo 271

Além de afetarem a rotina das pessoas não envolvidas com a guerra, os


bombardeios causaram grandes danos às estruturas da cidade e aos marcos
históricos e culturais de Sarajevo. A destruição material era maciça, mas os danos
culturais e valorativos eram inestimáveis. As práticas políticas que remontavam
dos discursos nacionalistas durante a década de 1980 e que promoviam uma
homogeneização cultural assumiu grandes proporções para Sarajevo. A
eliminação cultural era uma estratégia política e inserida em tal contexto. A
violência poderia não se dirigir às pessoas, mas certamente as afetava porque
atingia as próprias condições que as caracterizavam cultural e socialmente. Tem-
se aqui a manifestação da violência estrutural.

Entre os prédios históricos deliberadamente destruídos estava a Biblioteca


Nacional da BH, alvo de ataques em agosto de 1992. A Biblioteca continha
manuscritos e obras culturais bósnias que remontavam aos séculos XVIII e XIX e
que foram completamente perdidos.193 Outros alvos de ataques de importância
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histórica foram a Ponte Latina, onde o arquiduque Francisco Ferdinando foi


assassinado, dando origem à I Guerra Mundial, e as sinagogas da cidade, que
sofreram com a pilhagem local e com os morteiros chetniks. Mas não apenas
propriedades eram alvejadas com armamento pesado: uma das cenas do
documentário Miss Sarajevo mostra uma menina segurando um projétil anti-
aéreo. Segundo ela, aqueles projéteis eram utilizados para atirar em pessoas
(Carter, 2003, p. 112-113).

A destruição destes marcos e obras culturais tinha um propósito muito claro.


A precisão dos projéteis lançados pelos chetniks mostra que os tiros foram
intencionalmente dirigidos contra esses prédios e monumentos. Sarajevo, mais do
que uma cidade sitiada, era uma representação da antiga Iugoslávia que se
fragmentava. Como capital da ex-república de maior diversidade étnica, sua
existência representava um empecilho para os planos da Grande Sérvia. Sua
descaracterização permitiria que a mensagem transmitida pelas políticas de
identidade e pelas práticas de exclusão encontrassem sucesso, influenciando o
destino de outras regiões.

193
As obras físicas foram perdidas para sempre. Contudo, diversas bibliotecas e centros de
pesquisa ao redor do mundo se reuniram para criar um acervo virtual das obras destruídas, que
hoje está disponível na Internet. Sobre o tema, TBMIP (19--).
Marcelo Mello Valença 272

An important part of the process was the systematic obliteration of mosques,


churches and museums as if to wipe out the history of the co-existence nationalists
were intent on destroying (Rae, 2002, p. 203).

O objetivo era acabar com a cultura bosniana e tornar Sarajevo um local


inabitável para seus cidadãos, erradicando qualquer lembrança na qual os
bosnianos pudessem se amparar. Estes elementos eram símbolos de uma cultura
diferente e considerada inferior e que por isso deveria sucumbir em prol do
projeto de controle sérvio do território da BH.194 A limpeza étnica era uma
estratégia adotada pelos chetniks na guerra (Rae, 2002) e a fundamentação em
elementos sociais e religiosos era uma incidência da violência cultural.

The destruction of Muslim communities in Bosnia-Herzegovina displayed a


systematic pattern that shows a “general top-down policy guidance and a degree of
coordination across the republic and, apparently, with unofficial and government
circles in Belgrade (Rae, 2002, p. 201).

A construção do inimigo se dava a partir de características das identidades


coletivas que os tornava essencialmente diferentes e a sua desvinculação a um
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Estado, a uma comunidade política era uma maneira de atingir os objetivos


políticos buscados. Ainda que os bósnios sérvios fossem quase um terço da
população de Sarajevo (UN Experts, 1994, sp.; Le Monde Diplomatique Brasil,
200?, sp.), a cidade era vista como um obstáculo aos planos nacionalistas chetniks.
Romper com a sua resistência – qualquer que fossem os custos e os meios – era
mais do que uma vitória militar, que faria com que a cidade sucumbisse aos
atacantes. Era uma vitória política para a retórica nacionalista que se manifestava
desde a década de 1980.

6.3.1.2.
Os indivíduos como alvos: não-combatentes e não-pessoas

Os ataques a cidade, direcionando os bombardeios para alvos que pudessem


afetar a população, em uma clara manifestação do desejo de eliminar tanto a
cultura bosniana quanto as pessoas, demonstrava que para os agressores não havia

194
Mesmo com todas as diferenças entre as culturas, havia similaridades e pontos de
conexão – que, afinal, mantiveram a convivência pacífica em diversas localidades por várias
décadas. Alma, uma menina bósnia entrevistada por Bill Carter, expressa essa convivência
tolerante que existia em Sarajevo e que era destruída aos poucos: “I am Muslim. (...) I am a
Muslim but sometimes I go to church, you know, and I go to the mosque. I believe in one God.
(...) It is not three Gods or four Gods. God is God” (Carter, 2003, p. 337).
O cerco a Sarajevo 273

distinção entre combatentes e não-combatentes. Cerca de quinhentas mil pessoas


viviam em Sarajevo à época do cerco, sem que uma nacionalidade fosse
predominante na cidade (UN Experts, 1994, sp). Indivíduos que até alguns meses
antes compartilhavam escolas, praças e ruas, mas que diante das diferenças étnicas
construídas e propagadas pelos discursos políticos das elites, tornavam-se
inimigos.

A violência era dirigida contra todo e qualquer indivíduo ou grupo que


representasse a diferença, seja através de elementos étnicos, culturais ou
meramente através do apoio – ou a não-hostilidade – aos não-sérvios. Essa
“aliança” entre os sérvios moderados e os bósnios já fora mencionada por
Miloševic em seu discurso de 1989 como prejudicial para os interesses da Grande
Sérvia.

Eventuais incursões chetniks por subúrbios da cidade faziam suas vítimas


entre indivíduos e famílias que se viram presas entre o fogo cruzado. Os adultos
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do sexo masculino, estando envolvidos ou não na guerra, eram mortos em um


padrão de ação que mostrava claramente a pretensão de expurgar a diferença. As
mulheres eram estupradas e abusadas sexualmente em um fenômeno que se
repetia por toda a BH – e que fora visto também na guerra da Croácia.

O estupro é uma prática relativamente comum em guerras. Contudo, o caso


da ex-Iugoslávia o caracterizou como arma de guerra, com fins políticos bem
delineados – purificar uma etnia – não como um espólio dos vencedores (Glinner,
1992, p. 209; Wilmer, 2002, p. 213-214).

Rape is an effective strategy of war, particularly of ethnic cleansing; rape is one


form of atrocity and occurs alongside other atrocities; war provides the opportunity
for widespread rape, and many if not all male soldiers will take advantage of it. Yet
in the repertoire of violence of armed groups, rape occurs in sharply varying
proportions to other forms of violence against civilians; in some cases the ratio is
relatively high, in others very low (Wood, 2009, p. 132).

Há evidências de campos de concentração mantidos por chetniks na BH


onde as mulheres eram mantidas cativas até engravidarem, quando então eram
libertas para voltar aos seus familiares (Glenny, 1996, p. 209). Porém, como a
etnia é transmitida pelo pai, as crianças nascidas desse abuso seriam diferentes de
seus familiares, o que levava muitas mulheres a rejeitarem a criança quando
Marcelo Mello Valença 274

nascida ou, ainda abortar a gravidez. Isso quando não havia o suicídio em função
da rejeição social tanto da mãe quanto da criança (Skjelsbæk, 2001, p. 220).

Rape was a tool of ethnic cleansing. But it was more than that, too. (...) Rape was
a means of demoralizing the families and communities of the victims. It was a
mechanism for destroying the nexus of relationships – family and community –
that located women as mothers, daughters, sisters, and wives at their center. (...) It
was a means by which leaders of paramilitary irregular forces could initiate
younger, perhaps less-than-willing recruits into a brotherhood of violence. Rape
was a hate crime (Wilmer, 2002, p. 213).

Estima-se que cerca de 50 mil mulheres foram sistematicamente violadas


pelas forças chetniks em diferentes regiões da BH. A maioria, entre 70 e 80% foi
de muçulmanas, seguida por mulheres croatas e uma minoria sérvia (Rae, 2002,
p. 204; Wilmer, 2002, p. 213).

The pattern appears to be that in an attempt to ethnically cleanse, or get rid of the
entire population, manipulating the procreative abilities of the women in the target
ethnic group has proved to be an effective weapon (Skjelsbæk, 2001, p. 222).

Em Sarajevo não foi diferente (UN Experts, 1994, sp.).195 Ainda que não
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acontecendo com a freqüência de outras regiões,196 o estupro era uma arma de


guerra amplamente usada pelos atacantes para romper com a resistência e com o
moral dos habitantes da cidade. Ademais, era uma forma de eliminar a diferença.
Como mencionado, a etnia para os sérvios e para os bósnios é transmitida pelo pai

195
Um dos casos de estupros em massa de mulheres bósnias muçulmanas por forças
paramilitares chetniks é narrado no relatório UN Experts a partir do testemunho de vítimas desse
tipo de violência. “In July of 1992, the Sonja cafe and hotel (…) served as the site for scores of
rapes and killings of Muslim women by Serb forces. The ‘commander’ of this detention facility
was Commander Miro Vukovic, a loyalist of Seselj's forces. Vukovic reportedly established a
system for Serb fighters to rape and kill women. Borislav Herak, a Serbian soldier standing trial
for 35 killings and 14 rapes, related that soldiers were encouraged to go to the Sonja cafe to rape
women and then take them elsewhere to be killed. Herak also witnessed or participated in the
killings of at least 220 other Muslim civilians. Specifically, he watched as 120 civilians were
gunned down by a Serbian unit called the ‘special investigation group’ in a field outside Vogosca.
Herak was told by his commanders that raping Muslim women was ‘good for raising the fighters
morale’. He and three friends raped one woman and then shot her in the back of the head near a
mountain bridge. He went to the Sonja cafe once every three or four days, and reported that even
though soldiers were raping and killing women every day, more women were always arriving. He
describes, ‘(…) it was never a problem. You just picked up a key and went to a room.’ Vukovic
provided the soldiers with justifications for killing the women after raping them. Vukovic once
told Herak, ‘You can do with the women what you like. You can take them away from here – we
don't have enough food for them anyway – and don't bring them back” (UN Experts, 1994, sp.)
196
Acusa-se que o estupro de mulheres aconteceu principalmente no leste da BH, em locais
como Kamenica, Milici, Zvornik e Klisa. Nos massacres em Mostar, Srebrenica e Goca também
houve tal prática (Sacco, 2001, p. 117-118). “(...) [A]lthough all sides of the conflict did indeed
perpetrate violence against women (as in all wars), it was the Bosnian Muslim women who were
being systematically targeted, often being ‘incarcerated and repeatedly raped’, and this was part of
the programme of ethnic cleansing” (Rae, 2002, p. 204).
O cerco a Sarajevo 275

da criança: o filho nascido de um estupro de uma mulher bosniana por um sérvio


seria sérvio (UN Experts, 1994, sp.; Sacco, 2003, p. 26). Logo, o fruto daquela
violência estaria politicamente conectado aos objetivos buscados. “Because this is
ethnic rape, lacking racial markers, the children are regarded by the aggressors as
somehow clean and purified, as ‘cleansed’ ethnically” (Rae, 2002, p. 203).

A violência contra a população não se esgotava na violência sexual. Como


os discursos políticos que motivavam as políticas de identidade pregavam a
desumanização dos inimigos, nem crianças estavam livres de serem alvos diretos
da violência étnica. Crianças, de qualquer idade e sexo, eram consideradas alvos
e atacadas da mesma maneira que adultos e combatentes. Estima-se que cerca de
quinze mil crianças tenham morrido durante a guerra vítimas de explosões ou atos
deliberados de violência contra elas (Bosnia – Children of War, 1993, meio
eletrônico).

A violência contra crianças tinha um propósito. Segundo o documentário


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“Bosnia – Children of War”, a prática de atos de violência, especialmente


mutilações, contra crianças visava três objetivos. O primeiro era a fuga de
famílias das cidades atacadas, “facilitando” o trabalho dos atacantes. O segundo
propósito era criar o medo e a insegurança nas crianças, que carregariam aquele
sentimento de impotência por toda a vida e serviriam de exemplo para outros
temerem o adversário. Finalmente, caso a guerra se prolongasse por tempo
suficiente e a criança ficasse mais velha, as mutilações impediriam que pudesse
lutar. Ataques contra crianças tinha, assim, uma racionalidade que impulsionava e
legitimava politicamente a violência.

Uma das pessoas entrevistadas por Bill Carter conta a história de uma
senhora que chegou acompanhada pelo filho no centro de refugiados da cidade e
que parecia bastante alterada em suas faculdades mentais. O filho explicou que a
mãe não era louca ou, ao menos, não o era até antes da invasão de um grupo de
chetniks à sua casa. Quando os invasores começaram a vasculhar a casa atrás de
bens e comida, o filho daquela senhora, então com três meses, começou a chorar.
Os soldados pegaram o bebê e o colocaram no forno, ligando-o na seqüência. A
criança chorou, chorou, até parar, alguns minutos depois. Quando abriram o
forno, a criança estava rosa, “como um porquinho” (Miss Sarajevo, 1993, meio
eletrônico).
Marcelo Mello Valença 276

Esses atos de agressão aconteciam diariamente e se tornaram rotina na


cidade. Mas essa violência mascarava uma outra forma de violência que é cada
vez mais comum em regiões afetadas por crises humanitárias e conflitos armados:
a escassez de mantimentos e a dificuldade de acesso a eles.

Como o cerco a Sarajevo não diferenciava combatentes e não-combatentes


de seu rol de vítimas. Todos eram possíveis alvos porque não se lutava uma
guerra convencional e sim uma guerra onde o inimigo era fundamentalmente
diferente. O inimigo tinha valores, origens, mitos de fundação diferentes e, por
isso, deveria ser eliminado. Bombardeios, violações e agressões eram práticas
freqüentes, mas caracterizadas como eventos. Mas a negação deliberada das
condições mais básicas de sobrevivência era um processo contínuo, duradouro e
estável. E acabava por influenciar na sobrevivência da população. Aqui percebe-
se a presença da violência estrutural como política de guerra.

Um exemplo disso era o acesso à água, que ficava cada vez mais difícil
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conforme o cerco se prolongava. Bill Carter relata que durante o ano que passou
em Sarajevo somente tinha acesso a água do córrego que passava em frente ao
prédio que usava como escritório e dormitório. Ainda assim, era uma água
poluída, que não podia ser bebida em quantidade suficiente para uma pessoa
manter-se saudável (Carter, 2003, p. 172-175). Metta Spencer, contando a
história de um ativista em Sarajevo, relata que o jovem foi contaminado com o
vírus da hepatite em função da água poluída que bebia todos os dias (Spencer,
1995, p. 7).

Outra dificuldade inerente ao acesso a essas localidades era o perigo de


serem atacados por chetniks. As fontes d’água que porventura ainda estivessem
limpas eram alvo dos franco-atiradores, que ficavam à espera de suas vítimas se
aproximarem. Darko, um jovem de quatorze anos entrevistado em Miss Sarajevo,
conta que perto de sua casa havia um poço d’água, mas franco-atiradores estavam
por todos os lados: “we must go. If we don’t go, we die. If we go, we might die”.
O cerco a Sarajevo 277

6.3.1.3.
A quebra da institucionalização da guerra e da mudança no warfare

Os relatos apresentados mostram dois aspectos das novas guerras que as


diferenciam das guerras tradicionais, que remetem tanto aos seus eixos analíticos,
quanto ao papel assumido pela violência. Falamos aqui da quebra dos padrões de
institucionalização e da mudança na maneira como a guerra é travada e, por
conseguinte, de como a violência é organizada.

A caracterização da guerra assimétrica, envolvendo de um lado forças


armadas e do outro grupos de indivíduos informalmente organizados reflete a
inexistência do padrão de separação entre combatentes e não-combatentes naquela
guerra. Era a quebra da institucionalização da guerra. O que havia eram
identidades coletivas antagônicas que caracterizavam a relação de inimizade entre
elas. Isso era o que distinguia o adversário. A construção do inimigo acontecia
com base em discursos excludentes, as políticas de nacionalidade. Essas políticas
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justificavam e estimulavam a violência de cima para baixo, impondo práticas de


violência direta – os bombardeios, assassinatos sistemáticos e estupros, por
exemplo –, estrutural – a limitação ao acesso a recursos vitais e bens como forma
deliberada de impor o dano e atingir o fim político buscado – e cultural, quando
símbolos e valores eram utilizados para justificar e legitimar as demais práticas de
violência.

De forma semelhante, os meios para lutar a guerra também reforçavam essa


quebra de institucionalização. Os confrontos armados eram indiretos,
caracterizando a disparidade de poder e recursos. As formas de utilização da
violência rompiam com a lógica tradicional e prolongavam a guerra. Uma vez
que o cerco foi visto como estratégia que não atingiria o fim político desejado,
passou-se a buscar novas motivações para manter a guerra ativa. O emprego da
violência tinha fins políticos, mas não mais os tradicionais, caracterizando-se
como um modelo para expulsar e eliminar a diferença, reduzindo o apoio e a
cooperação entre indivíduos de grupos distintos.

Essas dinâmicas já evidenciam a mudança na forma como a violência se


apresenta nas novas guerras e como o seu uso caracteriza a busca por um fim
político – mesmo que aparente ser imerso em um cenário de barbarismo. A
instrumentalização das violências cultural, direta e estrutural apresenta uma
Marcelo Mello Valença 278

finalidade, que é a eliminação da diferença. Os relatos apresentados nas duas


subseções acima. Contudo, com a narrativa da participação dos grupos privados
na guerra, a mudança no papel da violência fica ainda mais nítida.

6.3.2.
A participação de grupos privados na guerra

A forma como a guerra da BH começou mostra uma ruptura nos padrões


tradicionais de beligerância. O cerco a Sarajevo é um exemplo porque se tratava
de um exército profissional sitiando uma cidade praticamente sem recursos para se
defender. O movimento inicial que caracteriza a inserção desses grupos foi a
reação à presença do JNA. Em um momento posterior, esses grupos passaram a
preencher lacunas na organização da segurança da cidade e, gradualmente,
retomaram às suas antigas atividades – a maior parte delas criminosa. A
combinação de tarefas de defesa e a prática do crime marcou a dinâmica da
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violência em Sarajevo, caracterizando o uso da violência não apenas como um


meio para atingir os fins buscados, mas também um objetivo em si, que se
confundia com os próprios ganhos e benefícios obtidos, dando continuidade à
guerra.

6.3.2.1.
A defesa patriótica de Sarajevo

Quando o cerco se formou, não havia um exército capaz de reagir ao poder


do JNA e ao VRS, seu sucessor na BH. O ARBiH estava em seu estágio inicial e
suas forças eram fracas e somente conseguiram sustentar o esforço de defesa de
Sarajevo graças ao apoio dos grupos criminosos da cidade. As forças atacantes
também contavam com grupos paramilitares (Glenny, 1996, p. 171) que, a partir
da experiência na guerra da Croácia, dirigiam a violência contra as nacionalidade
consideradas adversárias (Foer, 2004).

The Serbs, who controlled the Yugoslav Army garrison in the city, had an
overwhelming advantage on weaponry, and criminals with secret stashes of guns
were among the few Muslims with the means to resist (The NY Times, 1993, sp.).
O cerco a Sarajevo 279

Os grupos criminosos eram conhecidos de grande parte da população e


muitos deles já haviam sido presos diversas vezes por crimes tão variados quanto
assassinatos, estupro e roubo. Contudo, eles possuíam os recursos que as forças
legais não possuíam. Sob o seu comando, os gangsteres tinham homens bem
treinados, armados e preparados, que podiam ser mobilizados para enfrentar os
chetniks. Até meados de 1993, esses grupos constituíram as principais linhas de
defesa de Sarajevo enquanto o ARBiH ainda se formava e constituía suas forças,
humanas e materiais (Sacco, 2003, p. 35-40). “In the absence of an established
military defense system, Sarajevo’s criminal underground is widely credited for
playing a critical role in saving the city” (Andreas, 2008, p. 28)..

Eles formavam o que Peter Andreas classificou como máfia patriótica


(Andreas, 2008, p. 28) e juntaram-se, lado a lado, com as forças armadas
bosnianas para a defesa da cidade. A quebra da trindade clausewitziana era
evidente no cerco a Sarajevo, quando a separação entre governo, exército e
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população sumia em nome da defesa da cidade e do país.

A atuação dos grupos criminosos foi particularmente importante na


aquisição de armamentos, que eram roubados de posições chetniks. Acostumados
a ações rápidas e violentas, os criminosos não tiveram qualquer problema em
enfrentar os soldados do VRS em escaramuças com o único objetivo de obrigá-los
a ceder partes do seu armamento. A forma como os combates se davam
caracterizava a guerra de guerrilha e permitia atos de violência que iam além dos
comportados pela conduta na guerra: da mesma forma que os sitiadores chetniks
promoviam agressões contra os bosnianos, as milícias bosnianas retribuíam as
agressões contra suas posições e vilarejos.

Graças aos equipamentos e a preparação para agir sob ordens, os grupos


paramilitares ajudaram a suprir o déficit de soldados regulares e foram espalhados
pelo perímetro da cidade, de maneira a garantir que a cidade não fosse invadida.
Cada grupo, com suas particularidades, lideranças, métodos e recursos, assumiu a
missão e defendia um pedaço de Sarajevo – que coincidia com seu “território”, de
forma a não haver sobreposição entre as forças de defesa. O trabalho foi
relativamente bem sucedido, pois se por um lado não houve a penetração do VRS,
por outro houve a quebra da cadeia de comando que separava as forças oficiais e
as forças privadas, o que fez com que assumissem tarefas paralelas.
Marcelo Mello Valença 280

Mas não eram apenas os criminosos que assumiram um papel de destaque


na resistência contra o VRS. O ARBiH recebeu o apoio também de grupos
privados, organizados como milícias paramilitares, que eram controlados por
indivíduos muitas vezes sem qualquer passado criminoso (Sacco, 2003, p. 27). Os
habitantes de Sarajevo, via de regra, tinham relutância em pegar em armas para
lutar – vale ressaltar que no dia em que o cerco se estabeleceu e o VRS invadiu
parte da cidade, houve uma mobilização envolvendo milhares de pessoas pedindo
paz (Rae, 2002, p. 202). Destarte, qualquer ajuda que impedisse – ou, ao menos,
atrasasse – o avanço do VRS era de vital importância para o mal aparelhado
ARBiH. Para esses indivíduos, especialmente os bandidos de menor importância
ou periculosidade, a guerra era uma excelente oportunidade para ganhar fama,
dinheiro e diversão.

Em troca, como recompensa por seus serviços prestados, os líderes desses


grupos ganhavam títulos honoríficos sem importância prática, mas que inflavam
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seus egos e objetivavam “mantê-los na linha” (UN Experts, 1994, sp.; Andreas,
2008, p. 29). Nomes de destaque eram os de Jusuf “Juka” Prazina, que
comandava o grupo conhecido como “Lobos”, Ramiz Delalic e Ismet Bajramovic,
ambos conhecidos como Celo (UN Experts, 1994, sp.; Carter, 2003, p. 307;
Sacco, 2003, p. 35-40 e 107; Andreas, 2008, p. 29).197 Musan “Caco” Topavolic
era o líder paramilitar mais conhecidos dentre aqueles que não tinham passado
criminoso.198 Antes de – e também durante – a guerra, Caco trabalhou como
músico, mas sua fama e respeito vieram de suas conquistas no fronte (Sacco,
2003, p. 39; Andreas, 2008, p. 30).

Não obstante a pouca importância de seus títulos, a população reconhecia o


seu papel na manutenção dos atacantes fora dos limites de Sarajevo. Foram esses
grupos que impediram a entrada das forças chetniks, aquarteladas nas montanhas
no entorno da cidade. Diversos gangsteres e criminosos eram alçados a postos de

197
Em seu livro “Uma História de Sarajevo”, Joe Sacco (2003) traz diversas narrativas em
forma de quadrinhos sobre o cerco a Sarajevo e a guerra da BH, colocando moradores da cidade
como protagonistas da trama. Ele apresenta uma breve biografia desses criminosos e líderes de
grupos durante a guerra, ilustrando como começaram a se envolver com o conflito e o que fariam
ao final do conflito armado – no caso daqueles que continuavam vivos.
198
O que não implica que essas lideranças paramilitares não cometeram atos desmedidos de
violência. Uma série de depoimentos de ex-combatentes que serviram em sua milícia acusam
Caco de crimes de guerra, inclusive contra cidadãos de sua própria cidade (CPB, 2000, sp.). Esses
depoimentos mostram que as milícias e grupos paramilitares que defendiam a cidade acabavam
por se valer do poder para impor uma ordem paralela.
O cerco a Sarajevo 281

honra na cidade, passando a desfrutar de status de heróis. Mesmo vazios, os


títulos e o prestígio adquirido pela defesa da cidade repercutiam nos privilégios
que esses criminosos obtinham junto à população que protegiam, se tornando
celebridades quase instantâneas. E esse era um status que eles não gostariam de
perder. O poder e influência, especialmente dos líderes dos grupos, aumentara
sensivelmente durante os confrontos e repercutiria, eventualmente, nas conexões
que eles desenvolviam para manter sua posição.

By day, Serbian gunmen in the suburb of Grbavica fire mortars and sniper bullets
into the Muslim-held quarters of the city, and Muslim soldiers, some under [Celo
Bajramovic]’s command, fire back. At night, the two forces meet at the bridges
spanning the Miljacka River, separating the Serbian and Muslim parts of the city,
and conduct a thriving trade (The NY Times, 1993, sp.).

A guerra proporcionara, assim, uma nova forma de interação entre os atores


e grupos políticos em Sarajevo que ajudavam a tornar o cerco menos punitivo – e,
por que não, até mesmo desejável. Expomos a seguir os mecanismos utilizados
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pelos grupos privados para se valer da violência – da guerra e do cerco – para


manter seu status e lucros.

6.3.2.2.
A violência pela violência

O discurso nacionalista étnico foi fundamental para a mobilização social e


para o início da violência. “The manner in which elites sought to build the state
and buttress their own identity played on stereotypes and fears, and generated a
whole new set of fears” (Rae, 2002, p. 205). Todavia, não se pode dizer que o
nacionalismo foi o elemento que manteve o cerco ativo por tanto tempo, ainda que
tivesse relevância em tal continuidade. As dinâmicas sociais e econômicas que se
desenvolviam durante o cerco foram fundamentais para manter o uso da força
como elemento central no relacionamento entre os dois lados. Havia a violência
entre as etnias rivais, mas também havia a colaboração entre os adversários,
trazendo benefícios a ambos os lados. Mais do que uma ação militar pautada em
objetivos políticos, o cerco começou a se tornar uma situação proveitosa para
aqueles que desejavam obter benefícios de sua posição, independentemente de sua
etnia, motivação política ou social.
Marcelo Mello Valença 282

As dinâmicas sociais que decorriam da guerra e do cerco permitiram que


alguns atores desenvolvessem mecanismos de aumento e perpetuação do poder
que não seriam possíveis em tempos de paz. Deste modo, o encerramento das
hostilidades não seria desejado por eles, que estendiam a guerra o máximo
possível para extrair seus lucros. Mesmo que isso significasse que outros grupos e
atores, especialmente aqueles que experimentavam as conseqüências negativas da
guerra, continuassem a sofrer da violência.

A participação internacional para mitigar os impactos do cerco na população


se dava de maneira limitada, através da prestação de ajuda humanitária através da
Força de Proteção das Nações Unidas199 (“Unprofor”). Outros atores
internacionais presentes no cerco eram organizações não-governamentais
(“ONGs”) de ajuda humanitária, voluntários e outros trabalhadores internacionais,
como imprensa e grupos ativistas.

Esses atores traziam bens e mantimentos para distribuir entre os sitiados,


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mas que eram eventualmente roubados por criminosos durante o seu transporte ou
negociados – especialmente tabaco e álcool – com tropas chetniks do VRS nos
checkpoints ao longo das estradas e nas vias de acesso a Sarajevo para garantir a
entrega do restante (Andreas, 2008, p. 45). “To get food to the starving
Sarajevans the UN had to make a deal, but the irony was that by making the deal
the UN became involved in providing goods that would later sell on the black
market” (Carter, 2003, p. 35).

O comércio irregular envolvia também os funcionários internacionais que


prestavam serviço no aeroporto de Sarajevo ou nas agências da ONU. Em troca
de alguns marcos alemães, os funcionários internacionais liberavam mercadorias,
embarcavam civis irregularmente em vôos da ONU ou despachavam itens que não
estavam na listagem oficial repassada às autoridades sérvias. Isso ajudava a
transformar o aeroporto e os checkpoints em áreas de intenso tráfico de
mercadorias contrabandeadas (Andreas, 2008, p. 9). “The real sharks among that
type of businessman were the state and para-state officials: political, military and
police” (Vreme, 1996, sp.).

199
Em inglês, no original, United Nations Protection Force.
O cerco a Sarajevo 283

Essa tolerância no controle oficial dos bens proporcionou uma sensação de


impunidade que permitia que as forças de defesa, extrapolassem suas
competências e engajassem em atividades ilícitas. Muitos dos grupos de defesa
eram formados por criminosos bosnianos que antes povoavam o submundo de
Sarajevo. Mas o seu novo status social permitia estenderem suas atividades para
esferas antes censuradas e fora dos limites que ocupavam, graças ao “passe livre”
para transitar na sociedade “normal” que receberam com sua ajuda na guerra.
Esse passe livre significou a extensão das suas atividades irregulares para a
sociedade regular, principalmente no abastecimento dos mercados – legais e negro
– e no controle do acesso à cidade. Para os novos negociantes, isso significava o
lucro e a ascensão econômica e social. Para os sitiados, era mais uma prática de
violência que recaia sobre eles.

Como seu prestígio cresceu com o rótulo de defensores da cidade e os


títulos que decorriam de tal atuação, os grupos criminosos passaram a controlar o
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acesso às áreas onde realizavam o patrulhamento, tanto interna quanto


externamente, literalmente controlando frações da cidade. De forma semelhante,
estendiam seus contatos para além dos limites de Sarajevo, estabelecendo relações
com os atacantes que resultavam em benefícios financeiros para ambos os lados.
Isso era possível através do controle de mercados e da maior ou menor oferta de
bens, conforme a variação de preços se estabelecia.

A participação dos grupos criminosos deu um novo sentido à expressão


“economia de guerra”. O cerco se tornou um negócio lucrativo para eles, que já
possuíam o expertise graças às suas atividades em tempos de paz. Em uma
sociedade onde a força era um determinante para a sobrevivência, seus ganhos
eram notáveis e a manutenção das condições de violência se mostravam propícias
para os negócios. A colaboração entre atacantes e sitiados proporcionaria a
continuidade da violência, que servia como forma de relação social entre ambos.

Sem constrangimentos oficiais que os impedisse de agir da maneira como


entendessem, acabaram por estreitar as relações com as forças chetniks. Isso
permitiu um esforço colaborativo que, ao longo do cerco, aferiu lucros para ambos
os lados. A facilidade era maior àqueles que possuíam o cartão azul, que permitia
a livre circulação pelos checkpoints e as linhas de combate, além de acesso aos
vôos que transportavam a ajuda humanitária (Andreas, 2008, p. 46-48). Esse
Marcelo Mello Valença 284

comportamento criava um processo de continuidade na violência, dado que era ela


o que permitia a manutenção das condições favoráveis que esses grupos
encontravam.

It was not only the humanitarian effort that sustained the city, but also the
opportunities that the UN aid and presence created for black marketeering and
maintenance of a criminalized war economy. Officially, humanitarian aid helped
feed Sarajevo’s civilian population; unofficially, it also fed soldiers on both sides
of the line through skimming and diversion (Andreas, 2008, p. 10).

Os bens desviados ou apreendidos dos comboios de ajuda humanitária eram


negociados entre os adversários, permitindo que fossem novamente
redirecionados para a cidade, mas na forma de mercadorias destinadas ao
comércio, não mais à distribuição. Isso acabava por limitar a quantidade de
recursos que chegava à cidade, criando grande demanda nos mercados.
Entretanto, para uma cidade sitiada, Sarajevo era relativamente bem abastecida.

O destino das mercadorias obtidas irregularmente era os mercados de


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Sarajevo, que ofereciam bens que não estavam disponíveis nos pacotes ordinários
de ajuda humanitária por preços elevados. A impunidade era tanta que os
produtos ainda apresentavam em suas embalagens os logotipos da ONU e do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados200 (“Acnur”) (Carter, 2003,
p. 35).

O cerco impunha condições limitadoras a ambos os lados, mas propiciava


condições que os tempos de paz não ofereciam. Era possível fazer grandes somas
de dinheiro em poucas horas, através de parcerias bastante lucrativas com
soldados da Unprofor (Sacco, 2003, p. 28-30) e com os chetniks do VRS (The NY
Times, 1993, sp.). Segundo Celo Bajramovic, um dos líderes dos grupos
criminosos, ucranianos e egípcios eram os principais negociadores dentre os
soldados das forças de paz (Romeo and Juliet in Sarajevo, 1994, meio
audiovisual), mas havia acusações de que tropas francesas também
proporcionavam fácil acesso aos bens (Andreas, 2008, p. 47).

Outras condições, além da cooperação entre os envolvidos na violência,


existiam e estimulavam a manutenção da guerra como forma de alcançar os
objetivos de poder e riqueza desses grupos. O controle de mercado era

200
No original, em inglês, Office of the United Nations High Commissioner for Refugees ou
UNHCR.
O cerco a Sarajevo 285

relativamente realizável, dado que eram os grupos criminosos de Sarajevo quem


controlava a entrada e saída de bens por suas “áreas de jurisdição”. Mais
importante, havia impunidade.

O comportamento das lideranças políticas de ambos os lados, que


estimulavam o apoio da população e proclamavam a necessidade de agir em nome
da sua nacionalidade, minimizavam atos de violência contra etnias diferentes em
nome dos objetivos políticos. Isso proporcionava aos criminosos e aos atacantes
as condições estáveis e a liberdade de ação para que os negócios acontecem.

6.3.2.3.
A continuidade do conflito

A participação dos grupos privados, especialmente os criminosos, na defesa


da cidade abriu oportunidades para estes grupos ascenderem social e
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economicamente. O status que eles receberam durante a guerra possibilitou a eles


um tratamento diferenciado e uma importância que os deixou impunes diante de
certas práticas e vínculos de colaboração com o adversário.

Enquanto houvesse a guerra, haveria a colaboração entre sitiados e


atacantes. Com a colaboração, ambos os lados aferiam lucros. Percebe-se aí que
a continuidade da guerra era interessante para ambos e poderia ser justificada com
bases nas estratégias desenvolvidas pelas lideranças políticas. Restringir o acesso
a bens e mantimentos a Sarajevo iria promover a violência necessária para a
quebra da harmonia multi-étnica que lá havia e promover as tensões desejadas
pelas políticas de identidade. Por outro lado, a interação entre atacantes e
defensores, com estes conseguindo roubar armas e bens para trazer à cidade
contribuía para a sua defesa. O que as lideranças políticas não contavam – ou não
se opunham – era com o desenvolvimento de um sistema econômico oficioso, que
mantinha os esforços ativos e perpetuaria as condições desumanas do cerco – ao
menos para os cidadãos comuns de Sarajevo.
Marcelo Mello Valença 286

6.4.
A securitização do cerco

O envolvimento internacional no cerco a Sarajevo, assim como em toda a


guerra da BH, foi, grosso modo, marcado pela não-intromissão. As ações
tomadas o foram feitas com certa relutância – desde a mobilização da Otan até a
troca de acusações quanto à responsabilidade para agir diante da violência entre
EUA e Europa (Glenny, 1996, p. 212; Economides e Taylor, 2007, p. 83-84). O
embargo internacional de armas estabelecido contra os beligerantes foi uma
medida que serviu somente para aumentar a assimetria entre as partes. O
estabelecimento da Unprofor não fora unânime e eventuais alterações em seu
mandato e composição eram cuidadosamente estudados antes de serem aprovados
(Patriota, 1998, p. 85).201

O não-envolvimento dos Estados na guerra se estendeu pelos dois primeiros


anos, considerados os mais violentos em termos de ataques a Sarajevo. Alguns
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dos principais acontecimentos da guerra, como a destruição da Biblioteca


Nacional, do prédio da presidência bósnia e da TV local foram destruídos nesse
período. Também foi nesses anos que as construções na cidade foram bastante
abaladas, bem como ataques maciços aos cidadãos eram realizados em bases
sistemáticas, além dos crimes sexuais.

Uma participação mais ativa dos Estados aconteceu apenas depois do


primeiro massacre de Markale, em fevereiro de 1994: “[d]iferentemente do que
ocorrera no Golfo, não se configurava nos Bálcãs um caso de agressão destituído
de ambigüidades (...)” (Patriota, 1998, p. 88). Foi aí que as forças internacionais,
principalmente a Otan, se posicionaram mais decididamente contra o exército do
VRS e os governantes sérvios. O cerco se tornou menos intenso a partir daí, com
os bombardeios e ataques da artilharia chetnik diminuindo sensivelmente.

Pressure against the Serbs were now accumulating. They were facing an
international organization which seemed to be threatening to move from
peacekeeping to enforcement with the overt use of the military might of NATO
under UN supervision (...) (Economides e Taylor, 2008, p. 90).

201
Exemplos são os casos das resoluções do Conselho de Segurança n. 770 de 1992 e 816
de 1993 que autorizavam, respectivamente, o uso da força necessária para acabar com a violência e
a participação da Otan nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU. Podemos citar também as
resoluções n. 819, 824 e 836 de 1993, que criavam as áreas de segurança na BH. Em todos esses
casos, houve ao menos uma abstenção.
O cerco a Sarajevo 287

Apesar da ONU reportar avanços que indicavam a possibilidade de


negociação com o governo sérvio, a violência contra a população continuava. O
desejo das grandes potências era simplesmente que o conflito armado saísse de
cena (Andreas, 2008, p. 41; Miss Sarajevo, 1993, meio audiovisual). Isso,
entretanto, não era possível. Sarajevo era um pólo de atração para a imprensa
internacional, que via na cidade um micro-cosmos do restante do país.

6.4.1.
A impossibilidade de securitização da violência através do nível
estatal

A violência inicialmente se inseriu nas estruturas políticas da federação


iugoslava. A repressão à manifestação étnica durante o governo de Tito deu
espaço, após pressões políticas, a uma maior liberdade e autonomia das repúblicas
que colocava as elites sérvias em uma posição desconfortável. A reação das
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demais nacionalidades veio através da exacerbação de um discurso nacionalista


com bases étnicas que colocou em risco não apenas a unidade do Estado, mas a
sobrevivência das demais nacionalidades.

A independência bósnia foi logo reconhecida pela comunidade internacional


em 1992, mas o que se seguiu foi uma guerra virulenta. Além da violência
“normal” da guerra, dos confrontos entre exércitos e dos bombardeios a cidades, a
guerra da BH evidenciou o retorno das práticas genocidas ao continente europeu
(Montgomery, 2008) através da violência étnica no território bósnio (Rae, 2002,
p. 210). A violência manifestava-se através de discursos políticos que incutiam
políticas de identidade exclusivas e excludentes, evidenciando a diferença entre
povos que conviviam há décadas juntos e criando o perigo e a ameaça nessa
diferença.

As identidades coletivas estavam em risco, ameaçando o setor social, mas o


discurso de securitização não foi recepcionado pela audiência. As práticas
políticas de repressão e uso da força contra essas nacionalidades era colocada
como uma política de Estado, logo inserir-se-iam em um rol de medidas que não
mobilizariam excepcionalmente medidas de segurança. O próprio discurso
securitizador era comprometido pela reciprocidade no tratamento à diferença pelas
Marcelo Mello Valença 288

nacionalidades na guerra. O tratamento violento não era exclusividade de nenhum


dos grupos étnicos.

The Western expectation that recognition of Bosnian sovereignty would calm


things down was naive, if not willfully blind. This recognition was not backed
with any offers of protection for the vulnerable new state which [sic] was the object
of the aspirations of Serb and Croatian nationalists both inside and outside Bosnia,
and the newly fledged state was rendered even more vulnerable by the
internationally sanctioned arms embargo. Thus, recognition without material
support exacerbated the situation and “unleashed a wave of systematic rape,
murder, and evacuation of Croats and Muslims in those parts of Bosnia coveted by
Miloševic” (Rae, 2002, p. 199).

As práticas adotadas pelas lideranças dos dois lados silenciavam eventuais


discursos domésticos de securitização, dado que a violência partia da própria
estrutura do Estado e dirigir-se-ia contra seus cidadãos e assemelhados. Isso
impedia que a audiência para a qual se dirigia o discurso o recebesse e aceitasse,
tornando a violência étnica uma questão de segurança. O que havia era uma série
de movimentações políticas.
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Tal contexto, somado à pré-disposição internacional em não intervir, fez


com que a guerra na BH assumisse aspectos marginais aos principais eventos da
agenda política internacional. Isso não significava, todavia, que não houvesse a
percepção internacional do que estava acontecendo naquele país: a ONU apontava
a necessidade de agir, mas sem qualquer capacidade de mobilizar o aparato
necessário (Zametica, 1992, p. 67; Economides e Taylor, 2007, p. 82). Mas a
indecisão e a relutância de definir quem seria o responsável por agir fez com que
se ignorasse os apelos e, conseqüentemente, os impactos da guerra, tanto
domésticos, quanto regionais e internacionais.

Com a preferência internacional era pela não-intervenção, medidas


paliativas para auxiliar as populações em crise foram desenvolvidas entre os anos
de 1992 e 1995, já que a dimensão da guerra já não mais se restringia às fronteiras
bósnias. A designação da Unprofor para prestar assistência humanitária e guardar
as áreas de segurança, ainda que sem a capacidade militar necessária, foi uma
dessas medidas. Sua capacidade limitada – em parte pela hesitação política em
mobilizar a capacidade material necessária e por mexer com interesses de grandes
potências, como a Rússia, na região – refletia o pessimismo internacional com a
possibilidade de intervir de maneira bem sucedida em conflitos internos (Farrell,
2002).
O cerco a Sarajevo 289

Apenas com a intensificação da agressão chetnik a níveis intoleráveis houve


uma reação mais efetiva da comunidade internacional (Economides e Taylor,
2007, p. 93-94). Eventos como o massacre de Srebrenica, o bombardeio ao
mercado de Markale e a invasão das áreas de segurança da ONU, ainda que não
assumindo uma dimensão diferente daquela que norteou a prática da violência
durante toda a guerra, tornaram a situação insustentável.

Essas reações foram tardias. Elas somente foram tomadas em um momento


no qual as práticas de exclusão já estavam consolidadas na estrutura política e no
imaginário popular através dos discursos nacionalistas e da impunidade. A
violência tinha escalado para níveis não esperados e a comunidade

Mas qual o motivo que fez com que as atenções se voltassem para a BH e
enxergassem a violência da guerra – seja na forma dos ataques militares, como
nas práticas de limpeza étnica e de políticas excludentes institucionalizadas –
como uma ameaça à sobrevivência? De onde surgiu o discurso securitizador da
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violência na BH?

6.4.2.
Atores securitizadores, audiência e o discurso de securitização

“We are not here to help, we are here to report”. É com essas palavras que
um dos personagens de “Bem-vindo a Sarajevo”, um jornalista, resume seu papel
na guerra. O sofrimento humano servia como combustível para as matérias e
ações de ajuda humanitária que eram realizadas em Sarajevo, impactando na
política e fazendo com que se buscasse soluções para encerrá-lo. Em outro filme
sobre o conflito, um dos repórteres assume posição diferente e afirma que
“[n]eutrality does not exist in the face of murder. Doing nothing to stop it is, in
fact, choosing. It is not being neutral” (Terra de Ninguém, 2001, meio
eletrônico).202 Nessa relação aparentemente paradoxal entre o trabalho dos atores
não-estatais internacionais e sua relação com o ambiente da guerra é que se
estabelecia o discurso que securitizaria a violência.

202
A frase foi dita pelo Sargento Marchand, também conhecido como Arizona Deux,
criticando a inoperância da Unprofor, mas foi transmitida pela jornalista Jane Livingstone para se
referir à necessidade de se intervir na guerra para ajudar aqueles que realmente precisavam.
Marcelo Mello Valença 290

ABC, CBS, NBC, CNN, CBC, SKY, BBC, ITN, WTN, the news of the world. It
was all beamed direct from here, from behind the front lines to living rooms, and it
all seemed so easy, so much less than it should be. As far as I could tell, most
foreign journalists sat in this building or in the Holiday Inn easting cold
sandwiches and drinking soft drinks, waiting for their local contacts to radio them
with news of a disaster (Carter, 2003, p. 240).

O principal agente securitizador do cerco a Sarajevo e da guerra da BH foi a


mídia. Apesar de ser um observador no meio da violência, a mídia tinha a
capacidade de produzir as imagens e reproduzir as narrativa de violência que
permitiriam criar para a audiência a figura da ameaça existencial decorrente da
violência. Essas imagens e histórias, veiculadas para todo o mundo, juntamente
com o relatos trazidos por voluntários e trabalhadores de agências internacionais,
aumentavam a pressão sobre a opinião pública internacional (Sacco, 2001,
p. 131), a audiência do discurso.

A opinião pública internacional, ao aceitar o discurso de securitização,


promovia a pressão sobre os governos e instituições internacionais, de modo a
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mobilizá-los. Esse processo de mobilização não resulta necessariamente na


tomada de medidas excepcionais por países em específico, mas leva a medidas a
serem tomadas em nível internacional para acabar com a ameaça existencial.

Foram esses relatos, principalmente, que levaram ao mundo a violência que


se abatia sobre a BH. Diante de uma comunidade de Estados praticamente
inoperante, foram os atores não-estatais internacionais que romperam o silêncio
sobre a guerra e trouxeram a realidade de uma guerra onde a violência não se
apresentava da forma usual – e que por isso era ignorada pela comunidade
internacional.

A participação desses atores não-estatais no discurso de securitização se


voltava para acusar a violência estrutural e a violência cultural como formas de
reduzir a dignidade humana e demandavam o apoio internacional para acabar com
essa ameaça existencial. Exemplificamos o discurso securitizador promovido por
esses atores em dois casos. O primeiro caso ilustra o discurso securitizador da
mídia na oferta de ajuda humanitária através da Operação Irma. O segundo
envolve o discurso securitizador promovido em combinação pela mídia e por
personalidades internacionais. No caso, falamos do discurso de securitização
promovido pela turnê Zooropa, do U2. O principal objetivo desses discurso era
O cerco a Sarajevo 291

humanizar as pessoas envolvidas na violência, de modo a não ser mais uma morte
em mais um país isolado.

6.4.2.1.
A Operação Irma

O caso que ficou conhecido como Operação Irma consistiu no uso de


imagens para retratar o estado caótico e a incapacidade dos hospitais de Saravejo
de tratar dos feridos em decorrência da violência da guerra. A denúncia se dirigia
a insuficiência da assistência humanitária enviada para os habitantes de Sarajevo,
que mais servia como paliativo do que propriamente uma ajuda.

O mercado de Markale, em Sarajevo, foi alvo de dois ataques de morteiros


lançados pelos chetniks. No primeiro deles, em julho de 1993, cerca de sessenta
pessoas morreram e mais de uma centena ficaram feridos. Os hospitais da cidade,
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já sobrecarregados, não foram capazes de oferecer o tratamento para os


removidos, inclusive Irma Hadzimuratovic, uma menina bósnia de cinco anos que
foi gravemente ferida na explosão. Ela sofrera uma fratura muito severa na
coluna, mas que seria tratável em condições normais, o que não seria possível na
cidade sitiada.

Indignados com as suas condições de trabalho e o que isso repercutia para


os pacientes, os médicos fizeram circular a sua foto pela mídia – representada
pelos correspondentes internacionais presentes em Sarajevo –, em busca de apoio
medico não apenas para a menina, mas para as dezenas de feridos que lotavam os
hospitais da cidade todos os dias (Duncan, 2000, p. 123). Em um misto de
reportagem e apelo humanitário, a fotografia da menina foi amplamente
divulgada, juntamente com a sua história.

A imagem provocou comoção internacional e colocou a opinião pública


contra os políticos europeus, que preferiam uma abordagem que privilegiasse um
menor envolvimento com as questões da guerra. Mas, diante de tamanho apelo e
pressão, especialmente junto aos governos de países democráticos, o primeiro-
ministro inglês John Major mandou um avião resgatar a menina e trazer para
tratamento na Inglaterra. A ação de resgate ficaria conhecida como Operação
Irma e trouxe, além da menina, outros trinta e oito feridos em estado grave.
Marcelo Mello Valença 292

Essa foi a primeira de algumas poucas incursões para evacuar feridos em


Sarajevo, mas sem se tornar uma prática habitual. Não obstante a pouca
recorrência desse tipo de ação, a Operação Irma pode ser considerada como uma
espécie de catalisador do Efeito CNN na BH (Glinieck, 1993, sp.; Redmond,
1993, p. 1452).

6.4.2.2.
A turnê Zooropa do U2

O caso da turnê ZooTV, da banda irlandesa U2, é outro exemplo da dos


impactos do discurso de securitização promovido pela mídia e direcionado a
opinião pública exigindo um envolvimento maior internacional na guerra.
Curiosamente, tanto a Operação Irma quanto o primeiro link ao vivo com Sarajevo
estabelecido na turnê aconteceram no mesmo mês de julho de 1993. Mas os
preparos começaram alguns meses antes.203
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O lema da turnê do U2 era “por uma Europa unida”. A banda se referia à


queda do muro de Berlim e ao processo de integração europeu, então em curso.
Bill Carter, um funcionário de uma ONG de assistência humanitária que morava
em Sarajevo, aproveitou a oportunidade e entrou em contato com a produção da
banda, mandando cartas e faxes com relatos e fotos do que acontecia em Sarajevo.
O conteúdo dessas era esperançoso, ainda que ele não tivesse a certeza de que o
grupo chegaria sequer a receber as informações.

Para a sua surpresa, o contato entre ele e a banda foi estabelecido e


negociações foram iniciadas. O grupo parecia bem entusiasmado e queria fazer
um show em alguma área aberta de Sarajevo, como forma de mostrar o seu apoio.
Durante a negociação, eles foram desaconselhados a prosseguir com essa idéia por
duas razões: (i) uma aglomeração de pessoas em terreno aberto somente facilitaria
o ataque chetnik e (ii) o alcance da mensagem seria muito restrito. Para algo que
realmente mudasse a percepção da opinião pública, motivando e pressionando a
ação internacional, algo maior deveria ser feito.

203
Para um relato mais detalhado da idealização, negociação e realização dos links de TV
com os shows do U2, ver Flanagan (1995) e Carter (2003). As imagens com os links abertos nos
shows da turnê estão disponíveis nos materiais extras do documentário Miss Sarajevo, mas podem
ser acessados também pelo site YouTube. Disponível em <http://www.youtube.com/> e acesso
em 01 de fevereiro de 2007.
O cerco a Sarajevo 293

O resultado foi a montagem de uma transmissão via satélite, ao vivo, de


Sarajevo para um dos shows, em Bolonha. A transmissão se repetiu outras nove
vezes, sempre levando moradores de Sarajevo para serem entrevistados e contar a
sua história para os milhares de fãs da banda. O impacto sobre a platéia sempre
era grande e gerava ondas de protestos e mobilizações a favor de Sarajevo. Houve
ainda a composição de uma música sobre a cidade, Miss Sarajevo, baseada em um
concurso de beleza realizado em 1992, em pleno cerco chetnik, que era tocada
como forma de manter o pensamento voltado para a capital bósnia. Em termos
mais práticos, a renda obtida com a canção foi destinada à ajuda humanitária.

6.4.2.3.
Condições facilitadoras do discurso de securitização

Além dos dois exemplos que mostramos acima, outros discursos foram
promovidos, diariamente e com maior ou menor grau de sucesso. Afinal, a
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transmissão da guerra acontecia quase que em tempo real e, sendo na Europa, uma
miríade de veículos de comunicação estava cobrindo a violência.

Essa presença maciça de veículos de imprensa e de informação


proporcionavam que as matérias sobre a guerra chegassem minutos depois de
serem gravadas aos telespectadores. Os noticiários eram tomados por lideranças
políticas, imagens de sofrimento humano e números de vítimas formando
estatísticas gritantes, ainda mais considerando que a nevo da guerra havia se
dissipado do mundo após o fim da Guerra Fria, ao menos no ocidente. A opinião
pública internacional era alimentada com essas informações e se conscientizava
com o que estava acontecendo.

Mas, mesmo sendo uma violência que acontecia no coração da Europa,


ainda havia o distanciamento entre observador e objeto. Aquelas eram estatísticas
alarmantes. Mas eram apenas estatísticas. Faltava algo para tornar aquelas
vítimas humanas.

É nesse aspecto que entram as produções culturais a que nos referimos ao


longo deste capítulo. Elas serviram como condições facilitadoras para a aceitação
do discurso de securitização, proporcionando as condições para que a
humanização das vítimas acontecesse e produzisse o impacto nas audiências.
Marcelo Mello Valença 294

A guerra da BH foi particularmente fértil no tocante à produção de uma


filmografia, seja ela de ficção ou não-ficção, que retratava o conflito, sua história
e a sua repercussão social. Isso sem mencionar as obras que focavam a ausência
de envolvimento internacional, especialmente nos primeiros anos da guerra.

Filmes como “Bem-vindo a Sarajevo”, “Terra de ninguém” e “Resolução


819” são particularmente ácidos quanto ao papel – ou a ausência de um papel – da
ONU na guerra. Documentários como “Miss Sarajevo”, “Bosnia – Children of
War” e “Romeu e Julieta em Sarajevo” retratavam a violência étnica e as
condições estruturais que permitiram que a guerra se prolongasse por vários anos,
sem que houvesse respostas da comunidade internacional. Criticando
fundamentalmente a sua incapacidade de se envolver de fato na guerra mesmo
dispondo de condições para tanto, esses filmes criavam uma narrativa que
evidenciava o distanciamento ocidental da questão étnica na BH.

A combinação entre evento da guerra que mostravam um padrão de


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violência recorrente que remetia aos horrores da II Guerra Mundial com a


sensibilização das produções culturais serviu como aspecto facilitador do discurso
de securitização. As vítimas da violência étnica eram humanizadas nessas
histórias e deixavam de ser apenas os números frios trazidos pela imprensa. Elas
recebiam nome, parentesco e suas histórias de vida poderiam se confundir com a
do público que ouvia os relatos.

A forma como as narrativas eram desenvolvidas proporcionava uma


comoção e identificação com a situação que aproximava o espectador/leitor do
objeto de descrição. Isso facilitou a transformação de uma discussão política para
uma dimensão pública e, a partir daí, tornando-se um problema de segurança.

6.5.
Conclusão

Encerramos esse capítulo sintetizando o caso aqui apresentado para ilustrar


nosso argumento. Podemos perceber a ocorrência das três formas de violência
trabalhadas no capítulo anterior – violência direta, violência estrutural e violência
cultural – na guerra da BH. Aliás, uma coisa que se deve explicitar é que a
O cerco a Sarajevo 295

incidência da violência, na forma de violência cultural e estrutural, começou antes


mesmo do Estado bósnio se tornar independente.

Durante a década de 1980 houve o desenvolvimento de discursos


nacionalistas que justificavam a violência e a exclusão com base em etnia, religião
e cultura na ex-Iugoslávia. Era o início das políticas de identidade, que excluíam
segmentos da sociedade e privilegiavam outros, com base em uma história
anterior ao Estado. A repressão política acontecia através de ações do JNA para
silenciar eventuais manifestações nacionalistas e também pela institucionalização
de práticas políticas que caracterizavam a utilização da força na política.

Com a independência das ex-repúblicas iugoslavas no início da década de


1990, veio a guerra. A violência direta. Mas a legitimação para o uso da força se
dava em duas dimensões distintas: era uma guerra e havia a necessidade de se
atingir fins políticos. Logo, o uso da força se justificaria para os beligerantes com
base nisso. Mas também havia o problema da diferença: o uso da força contra
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culturas diferentes se baseava em um discurso de superioridade. A violência


cultural legitimava e autorizava a violência direta. O uso da força assumia um
papel social, legitimando a exclusão e proporcionando o acesso a bens e prestígio
– principalmente por parte dos sitiados – que não seriam possíveis em tempos de
paz. Colaborações entre inimigos étnicos eram freqüentes, assim como alianças
entre o poder formal e o submundo de Sarajevo na manutenção do seu status. A
continuidade da guerra era útil para ambos os lados – ainda que alguns grupos de
indivíduos sofressem com a situação.

Por conta disso, a securitização da guerra não se tornou possível, não ao


menos a partir dos atores domésticos envolvidos. Aquela era uma ação política e
como tal era tratada. A omissão internacional também não caracterizou uma
preocupação em mobilizar recursos excepcionais para encerrar a guerra. A
alocação da Unprofor serviu como forma de resposta à pressões, mas se mostrava
ineficiente, mesmo para os seus limitados propósitos.

Restou a atores internacionais não-estatais trabalharem com o discurso da


macro-securitização. Foram eles quem trouxeram à audiência internacional – a
opinião pública – a necessidade de medidas urgentes para resolver o problema de
segurança e retornar à política normal. A combinação entre relatos e narrativas de
trabalhadores humanitários, imprensa e a produção cultural em torno do conflito
Marcelo Mello Valença 296

humanizou as vítimas da guerra, aproximando-as do restante do mundo e atraindo


a atenção da opinião pública. Eventualmente, em 1995, o Acordo de Paz de
Dayton seria assinado, levando a uma presença militar mais efetiva no país,
conduzindo a BH a um processo de paz, que ainda levaria anos para se encerrar.
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Conclusão

Começar essa conclusão com a pergunta sobre “qual o valor analítico do


estupro inter-étnico” ou “qual a contribuição de um grupo privado liderado por
um músico para os estudos de Segurança” certamente soa, no mínimo, impactante
– senão pouco sensível. Mas esses questionamentos são apropriados para fechar o
argumento que desenvolvemos nesta tese.

Esses questionamentos proporcionam o espaço de reflexão para


compreender a dimensão e a importância da violência como eixo para analisar a
Segurança. Eles permitem também refletir sobre como as novas guerras ressaltam
tal dimensão, evidenciando lacunas na literatura da área.
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Desenvolvemos nossas conclusões em cinco etapas. Nas duas primeiras,


apresentamos os desafios que a violência traz para a Segurança e como esses
desafios podem ser percebidos nas novas guerras e no nosso estudo de caso.
Depois, com esses desafios em foco, recuperamos o argumento do nosso terceiro
capítulo para evidenciar a lacuna da violência na literatura de Segurança.

O resgate da violência pela Segurança é feito na quarta parte. Trazemos as


principais contribuições dos dois instrumentais analíticos propostos no capítulo
cinco, explicitando como podem recuperar a relação produtiva entre teoria e
prática na Segurança. Isso é feito primeiramente através da tipificação e
operacionalização da violência; depois, por mecanismos analíticos que permitem
enxergar a sua presença na sociedade.

Encerramos a tese mostrando as contribuições do estudo para as Relações


Internacionais. Os estudos de Segurança são um instrumental que permitem a
construção de conhecimento relevante para as Relações Internacionais. Ao
aproximar a teoria do processo decisório na Segurança, contribui-se para a
realização das Relações Internacionais.
Marcelo Mello Valença 298

Uma nova face da violência

O cerco a Sarajevo, narrado no capítulo seis, é apenas um dos muitos casos


na guerra da BH – mas também na Croácia, Serra Leoa e em outras regiões do
mundo – em que podemos perceber um novo papel para a violência. Ela se se
torna uma forma de relação inter- e intra-grupos, com o propósito de estimular a
intolerância perante a diferença e reforçar a identidade comum, reverberando
discursos e práticas de exclusão.

A ruptura na institucionalização da guerra é um primeiro aspecto que se


percebe associado à violência. Com a quebra do monopólio do Estado, novos
atores políticos assumem o uso da força e o fazem direcionados a fins políticos
bem específicos – ainda que ilógicos caso entendidos fora do contexto em que se
inserem.

Por isso o questionamento que fizemos no início dessa conclusão sobre o


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valor analítico do estupro inter-étnico – ou de qualquer outro ato semelhante. O


estupro por si já representa uma agressão física, caracterizando a violência direta,
prática mais comum nas guerras. Mas a violência não se esgota no ato sexual em
si, nem tampouco se limita à mera satisfação do agressor. Ela se insere em um
contexto maior, politicamente criado, onde a sua realização sistemática visa
alcançar propósitos políticos, prolongando a agressão psicológica e socialmente
não apenas na vítima, mas também no fruto da agressão.

Atos dessa natureza – e não nos referimos apenas aos estupros, mas à
homogeneização patológica em geral – caracterizam práticas excludentes calcadas
em políticas de identidade que fundamentam a violência em rótulos ou
características simbólicas. O fato de ser diferente é o suficiente para a
desumanização da vítima, legitimando a prática da violência. A eliminação da
diferença é o fim a ser buscado e essa violência, sistematizada, constitui o meio
para atingir o objetivo político.

A escolha de Sarajevo é bastante significativa. A cidade mais cosmopolita


da ex-Iugoslávia, a mais miscigenada e, ainda assim, a mais igual. Manter aquela
cidade unida implicaria o fracasso de toda uma retórica nacionalista e o
reconhecimento de que as diferenças construídas não eram tão significativas a
Conclusão 299

ponto de impedir a convivência. Por isso a necessidade de desumanizar o outro.


Por isso a violência empregada de forma tão incisiva.

Um estupro passa a ser mais que um estupro. É uma prática de purificação


da linhagem em nome de um objetivo maior. Mutilar crianças é uma forma de
limitar as condições futuras daquele grupo, criando o medo e difundindo a
insegurança por gerações vindouras. A destruição de marcos religiosos, culturais,
simbólicos é a erradicação das lembranças identitárias que fazem um grupo de
indivíduos se sentirem como um grupo, perdendo as suas referências e os
expulsando forçosamente dos locais onde habitam.

Esses atos são práticas de violência que, ressaltamos, não se esgotam no ato
em si: eles buscam prolongar o dano, estender no tempo a violência e, através da
força, impor condições insustentáveis de convivência. A manifestação na sua
forma direta é somente a prática mais visível da violência: a sua extensão no
tempo acaba sendo mais violenta do que a agressão em si. É o uso da violência
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estrutural como forma de atingir objetivos. Justamente por essa capacidade de se


estender os efeitos da violência pelo tempo é que fazem com que a Segurança não
tenha a capacidade explicativa adequada para reagir, impedindo a sua completa
compreensão.

A Segurança explica o uso da força militar para atingir fins políticos –


quando trabalhamos com as suas bases realistas – ou as condições que limitam e
impedem da realização a política e ameaçam a sobrevivência dos grupos e
indivíduos, quando utilizamos o arcabouço dos defensores do aprofundamento da
Segurança. Uma compreende a agressão em si, a outra foca as conseqüências da
condição de insegurança. Falta o elemento que permite unir essas duas dimensões
e atribuir a elas um caráter político. Falta problematizar e tipificar a violência
como uso deliberado da força para atingir fins políticos, entendendo as suas
formas de manifestações.

O caso de Sarajevo e a guerra da BH são ricos nessas formas de violência,


em que o fim é mascarado pela magnitude da agressão em si. Nesses casos,
corremos o risco de caracterizar a violência como bárbara e, assim, perder a lógica
política e racional que a guia. Devemos enxergar a violência como fenômeno
social e inserido na lógica política para que caracterizemos os fins buscados pelos
atores que dela se valem.
Marcelo Mello Valença 300

A violência como fim

As novas guerras, que exemplificamos com o caso de Sarajevo, trouxeram


uma nova dimensão da violência que não se esgota no ato de agressão em si, mas
se estende no tempo, caracterizando seus efeitos em outras dimensões. Mas ela
não deve ser restrita apenas aos atos que davam forma a ela. Além de um
instrumento para atingir objetivos, a violência assumia também a dimensão de um
objetivo em si.

Ao nos focarmos na violência e na maneira como ela se manifestou e foi


continuada na guerra da BH, buscamos trazer para essa tese a idéia de que há algo
mais do que a vitória na guerra. As dinâmicas sociais sustentadas pela violência
evidenciam que esta deixou de ser meramente um meio, um instrumento de
política para alcançar interesses, algo a ser buscado. A violência passou a ser
percebida como a resposta para os problemas enfrentados pelos grupos políticos e
conforme era buscada, proporcionava ganhos, status e poder.
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A violência-objetivo constituía a situação ideal para os envolvidos no


conflito e seria buscada através da violência-meio. Desse modo, não havia
incentivos – sociais, políticos e econômicos – para encerrar a guerra: poder-se-ia
atingir condições melhores durante a guerra do que em períodos de paz. A
violência era praticada em nome da violência. Além de instrumento de política,
temos a caracterização da violência como assumindo um papel social.

As novas guerras e a quebra da institucionalização que delam decorriam


trouxe novos atores e grupos para a guerra. Com a entrada desses grupos, a forma
como a guerra era lutada se alterava, de modo a se adequar aos meios e práticas
que traziam. E, sustentando essas duas mudanças, mudava-se também os
mecanismos de financiamento do uso da força.

As novas guerras evidenciam Estados fracos e incapazes de sustentar o


monopólio do uso da força. O caso da BH e de Sarajevo não é diferente: o Estado
não possuía os recursos para fazer a guerra, mas necessitava dela para continuar a
existir. O surgimento de grupos paramilitares foi uma conseqüência dessa
incapacidade estatal. A forma como a violência era praticada caracterizava a
disparidade de recursos e equipamentos desses grupos em relação a seus
adversários. Não à toa, escaramuças e confrontos indiretos eram os meios usados
Conclusão 301

para lutar, empregando armas simples e menos poderosas que aquelas disponíveis
aos seus inimigos, mantendo-os afastados dos limites da cidade.

Ocupando o espaço deixado pelo Estado, esses grupos cresciam em poder e


prestígio a medida em que seus feitos mantinham a segurança da cidade. Era a
defesa patriótica de Sarajevo, realizada por grupos e indivíduos que sempre
estiveram às margens da sociedade. Atuando em coordenação com as forças
oficiais, em muitas regiões esses grupos tinham mais poder e influência que o
próprio Estado – a atribuição de títulos honoríficos era um exemplo disso e,
mesmo vazios de importância prática, repercutiam junto à população tal como
verdadeiros fossem.

Essa dinâmica lhes garantia ganhos e prestígio, pois a defesa da cidade


permitia o desenvolvimento de atividades lucrativas, como o controle de mercado,
o acesso a entrada e saída da cidade e a venda de proteção. Essas atividades já
eram realizadas irregularmente, mas a guerra permitiu que isso fosse feito de
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maneira explícita e formal – ainda que oficiosamente.

A guerra configurava-se, pois, como uma extensão das atividades


irregulares que esses grupos praticavam no submundo de Sarajevo. Seu
comportamento na guerra refletia a forma como interagiam com grupos rivais no
crime: através da força, da troca de favores e da colaboração, mesmo que com as
forças atacantes. A violência servia para trazer benefícios aos envolvidos, mesmo
que de lados opostos: a guerra era mais que política, era um negócio lucrativo.
Daí a opção pela sua continuidade: a relação de inimizade com o adversário
mascarava uma relação colaborativa e lucrativa para ambos os lados, que
ganhavam mais perpetuando a guerra do que atingindo os fins políticos
inicialmente propostos.

Essa é outra dimensão assumida pela violência nas novas guerras e que
caracteriza o seu papel social. A violência se torna um mecanismo de interação
intra- e inter-grupos. Ela proporciona não só a consolidação do poder dentro do
seu próprio grupo, mantendo o status quo através da utilização da força – não
necessariamente a violência direta, mas através de mecanismos e instituições,
formais ou não – para atender a propósitos políticos, como também entre os
grupos. A violência era a maneira como o engajamento se dava, caracterizando a
Marcelo Mello Valença 302

busca pelos fins políticos definidos pelos discursos nacionalistas e políticas de


identidade, mas mascaravam interesses imediatos e egoístas.

A Segurança também peca em entender essa dimensão da violência. O uso


da força é encarado de formas distintas. Pelos realistas, é uma maneira de
alcançar objetivos políticos, o que explicaria a violência para manter o poder, mas
não encontraria justificativas para a colaboração inter-grupos. Os liberais, por sua
vez, não promovem a explicação a partir de suas bases calcadas na
interdependência e nos interesses econômicos, mesmo que o uso da força
constituísse o elemento que justamente tornava essa interdependência possível.
Mais uma vez, falta a problematização da violência para garantir o poder
explicativo e a relação produtiva entre teoria e prática para a Segurança. A
questão das novas guerras é um elemento que explicita essa carência.

A contribuição para a relação produtiva entre teoria e prática na


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Segurança

A pergunta de pesquisa que guiou nosso argumento questionava por que a


literatura deixou de associar teoria e prática de forma produtiva ao marginalizar o
tema da violência. Nossa hipótese principal respondia a essa pergunta apontando
que a ausência de um debate sobre violência e a depuração de seu conceito, levou
a essa ruptura na relação entre teoria e prática. A definição de violência que
utilizamos a relacionava com o uso deliberado da força para atingir fins políticos,
podendo se manifestar através da coerção ou da prática de danos físicos ao objeto.

A relação produtiva entre teoria e prática acontece quando há a mútua


colaboração entre essas duas dimensões, tornando-as indissociáveis: o
conhecimento produzido pela teoria é útil para a prática, que proporciona as
condições para o conhecimento se desenvolver e se refinar a partir da experiência.
Em outras palavras, a relação entre teoria e prática, quando produtiva, permite a
produção de conhecimento politicamente relevante, desenvolvendo estratégias de
ação e alternativas para o burocrata.

A revisão da literatura de Segurança nos mostrou que a gradual


marginalização do tema “violência” das agendas de pesquisa da área se deu pela
reação ao Realismo e pela própria incapacidade dessa teoria de perceber as
Conclusão 303

mudanças na Segurança. A defesa da coerência do campo proporcionou a


produção de conhecimento abstrato em níveis não operacionalizáveis pelos
burocratas.

Mostramos que o Realismo, que estabelecera as fronteiras disciplinares


especialmente por conta do contato estreito entre o burocrata e o intelectual,
acabou por se mostrar inflexível diante das mudanças no cenário político e perdeu
a sua capacidade de estabelecer uma relação produtiva entre teoria e prática. A
defesa da manutenção dos mesmos elementos e princípios que criaram o campo
acabou sendo inadequado diante da necessidade de oferecer respostas relevantes a
uma esfera que enfrentava novos desafios. Por equiparar o objeto e escopo da
Segurança aos seus próprios pressupostos epistemológicos, os realistas não foram
capazes de lidar com a mudança na natureza da violência, nem tampouco com a
nova demanda política que surgia no pós-Guerra Fria. A manutenção dos
elementos analíticos da Segurança acaba sendo mais uma defesa da coerência do
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Realismo político do que da coerência da Segurança em si.

O Liberalismo ampliacionista, sob a alegação de que o uso da força entre


Estados era cada vez menos freqüente e relevante para a política internacional, se
dirige para o problema da legitimidade política como foco da Segurança. Nesse
sentido, traz em sua esteira uma variedade de novos temas, principalmente
relacionados a governança política e economia, ampliando a agenda do campo,
que antes se focava apenas no uso da força. Estabilidade se tornaria um sinônimo
de segurança e essa ampliação do campo evidenciaria a nova preocupação – que
explicitamente rejeitaria o uso da força. Fala-se muito em segurança, mas pouco
se produz sobre Segurança.

As teorias que defendem o aprofundamento surgem influenciadas pelas


teorias críticas de Relações Internacionais e procuram entender a lógica da
Segurança de forma a permitir uma análise histórico-interpretativa da disciplina.
Sua preocupação, grosso modo, é com as condições que afetam a sobrevivência
do objeto referente, que deixa de ser o Estado para se focar no individuo, em
comunidades políticas e identidades. O Estado é visto como principal obstáculo
para tanto, sendo o maior causador de insegurança. Deixa-se de falar em
violência como uso da força para pensar em violência como a ausência de espaço
para um pensamento político criativo. As bases propostas pelo aprofundamento
Marcelo Mello Valença 304

da segurança contribuem para entender as mudanças políticas, mas falta-lhes o


foco na violência para sua operacionalização e a caracterização de um
conhecimento politicamente relevante.

Ainda assim, sugerimos que a Escola de Copenhague poderia resgatar a


relação produtiva entre teoria e prática desde que superasse dois problemas: (i) a
sua teoria de Estado, restrita a Estados democráticos e desenvolvidos, e
(ii) problematizasse a violência como ameaça existencial.

Trazendo a violência para a Segurança: os Estudos para a Paz e a


macro-securitização

A complexidade que a violência assume nas novas guerras é perdida pela


Segurança justamente por marginalizar o tema da violência de seus programas de
pesquisa. De forma a devolver os instrumentos conceituais para compreender
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violência, trouxemos os Estudos para a Paz e a macro-securitização como


ferramentas analíticas para o restabelecimento de uma relação produtiva entre
teoria e prática. Essa constitui a nossa terceira hipótese de trabalho.

Ainda que não defina a violência de forma precisa e descritiva – isso


limitaria o seu entendimento –, os Estudos para a Paz caracterizam-na de forma
muito próxima da definição operacional que estabelecemos no início desta tese,
entendida como o uso deliberado da força para fins políticos. Para os Estudos de
Paz, violência seria a presença deliberada de determinadas condições que
impediriam o pleno desenvolvimento das capacidades do objeto de estudos. Essa
proximidade nas definições permite que incorporemos a tipologia da violência –
cultural, direta e estrutural – e a associemos com as manifestações de violência
presentes nas novas guerras. Os atos de violência descritos no capítulo seis e
caracterizados amplamente no estudo das novas guerras no capítulo quatro passam
a ser mais bem compreendidos a partir dessa operacionalização da violência.

Os discursos nacionalistas e as estruturas de exclusão que formavam as


políticas de identidade foram associados à violência cultural. Aquelas práticas
caracterizavam e rotulavam a diferença como justificativas para a agressão e a
limitação da participação política, fundamentando as bases da guerra nessas
identidades. A guerra e os atos de violência que dela decorreram foram
Conclusão 305

caracterizados como a violência direta; é a forma mais comum de perceber o uso


da força e no caso de Sarajevo não foi diferente.

A violência estrutural surge como produto da perpetuação de estruturas


opressoras e da continuidade dos efeitos da violência ao longo do tempo – como
no caso do estupro inter-étnico, que retomamos acima. A violência estrutural
também se caracteriza nas práticas desenvolvidas pelos grupos privados para a
continuidade da guerra, como o controle de mercados, a perpetuação da estrutura
de poder e o controle de bens e pessoas pelas fronteiras da cidade.

Nos três casos, havia deliberadamente a imposição de condições que


limitavam o potencial dos indivíduos e grupos políticos causados pelo uso da
força para fins políticos. O arcabouço instrumental dos Estudos para a Paz
permitiam resgatar o conceito de violência, tão útil para a Segurança, mas que foi
marginalizado do seu campo de estudos.

Trouxemos também o instrumental analítico da macro-securitização como


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forma de aproximar o aparato teórico da Escola de Copenhague das novas guerras,


reconhecendo a importância da violência como elemento caracterizador da
ameaça existencial. Como a teoria de Estado de Copenhague não possibilita
vislumbrar o processo de securitização em estruturas não-democráticas, a macro-
securitização apresentou dupla função.

Primeiro, possibilitou que a violência se tornasse parte da agenda de


segurança, sendo apontada por outros atores da constelação de segurança como
uma ameaça. Depois, permitiu que se identificasse a própria violência estrutural
como condição limitadora do discurso de securitização: como a audiência era
silenciada por estruturas opressoras, a condição deliberada de impedir o
desenvolvimento do objeto de estudo estava presente ali, perpetuando-se em um
processo que se estende ao longo do tempo.

Contribuições para a disciplina de Relações Internacionais

Mostramos no capítulo dois que a disciplina de Relações Internacionais é


voltada para a resposta de problemas. O conhecimento produzido na área,
Marcelo Mello Valença 306

principalmente em seus momentos iniciais, era direcionado a problemas práticos


enfrentados pelos burocratas. Não à toa os principais pensadores das Relações
Internacionais na primeira metade do século XX e em boa parte da segunda são
diplomatas e assessores políticos, diretamente envolvidos com o processo
decisório. Esses intelectuais sabiam a importância de prover resultados práticos e
condizentes com os interesses dos burocratas, em uma forma de conhecimento
que pudesse ser útil a eles.

A Segurança nasceu com esse propósito, mas se perdeu com a entrada das
teorias e dos temas da agenda de Relações Internacionais, principalmente no final
da Guerra Fria. Essa contribuição, se por um lado proporcionou falar mais de
segurança, por outro prejudicou a teorização do campo. As teorias e temas que
entraram na Segurança trouxeram seus próprios pressupostos de realização e a
violência era um tema estranho a eles. A violência e o uso da força, que
caracterizam a própria relação entre atores políticos definida como segurança,
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foram abandonados. Estudos de Segurança e Relações Internacionais foram


equiparados, ainda que se tratassem de temas diferentes.

Para as Relações Internacionais, é necessário que se trabalhe com violência


organizada. Mas entender o que é violência e como organizá-la é preciso que se
traga outros instrumentais analíticos para fazê-lo: o campo das Relações
Internacionais afasta esse recurso da política como ilegítimo, mas depende dele –
ainda que por exclusão – para a sua própria realização. Assim, Segurança como
uma área útil para o burocrata implica um melhor entendimento da própria
disciplina de Relações Internacionais.

De modo que a Segurança se mantenha como uma disciplina útil para as


Relações Internacionais é preciso que ela continue a produzir conhecimento
relevante e que a relação entre teoria e prática seja produtiva. Mais do que
entender o que estar seguro, do que se deve estar seguro ou quem estará seguro,
Segurança se trata de relações entre atores políticos em que o uso da força é
possível. Manter a relação produtiva entre teoria e prática na Segurança é
reconhecer que a teoria forma a prática e esta impacta naquela. Entendo essas
possibilidades, a Segurança se mostrará útil para o conhecimento necessário para
o processo decisório nas Relações Internacionais.
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