caminhar. Todos os dias ela ia para longe muito longe. A menina era mais ou menos do seu tamanho e vinha de uma terra que ninguém sabe onde. Se você ficou com muita vontade em saber onde a menina vai chegar, leia já este livro! Mas fica aqui uma dica, caro leitor: caminhar é tão importante quanto chegar…
Para vovó Irene, que partiu para longe muito longe.
E ficou para sempre. Para Anna Claudia Ramos, que de longe está sempre por perto.
Era uma vez uma menina que adorava
caminhar. Todos os dias ela ia para longe muito longe. A menina era mais ou menos do seu tamanho e vinha de uma terra que ninguém sabe onde. A menina subia morro, descia serra, dançava nas águas do rio. Às vezes sentia frio, às vezes, calor. Porém o clima não a incomodava em nada. Gostava mesmo era de uma longa caminhada. Até que um dia… A menina chegou ao caminho mais florido do mundo. E respirou bem fundo para melhor sentir o perfume das flores: rosas, lírios, jasmins, margaridas… Tão cheirosas e coloridas, que até dava vontade de comê-las. “Mas meninas não comem flores”, ela pensou, já com um pouco de fome. E continuou seu caminho. A fome aumentando, a menina andando. A fome apertando, a menina aflita. “Nenhuma árvore frutífera”, ela estranhava. O caminho florido também era comprido muito comprido. E não é que uma estradinha apareceu de repente? Bastava dobrar em frente e acompanhar o rio pela beirada. Foi o que a menina fez. Saiu do caminho florido comprido e entrou na estrada. Menina mais sortuda e sabida! Você nem acredita… Logo no início da estrada, salpicada de capim-de-cheiro, encontrou sua árvore favorita: um cajueiro. Um cajueiro-do-campo todo enfeitado de flores brancas e de cajus… Verdinhos? Fora do ponto? “Ainda não estão maduros”, suspirou a menina. No entanto, ao reparar direitinho, lá em cima, no galho mais alto da árvore… Um caju vermelhinho! A menina tentou, tentou subir no cajueiro. Difícil demais. Pelejou mais e mais até arranhar a barriga, desistindo de vez da tentativa. Vai que, nesse exato momento, ela lembrou o jeito que o avó fazia. Pegou um pedaço de bambu e danou a cutucar o caju. Cutuca aqui, cutuca lá, cutuca já, cutuca jó… O bambu derrubou o caju que caiu em cima de um pé de capim-cheiroso! O cajuzinho tinha uma cara de cheiroso! E lá foi a menina estrada afora com o cajuzinho na mão. Ela procurava um lugar à sombra para se sentar, fazer sua refeição. Achou um banco no canto do rio, onde afinal se acomodou. E quando ia dar a pri-mei-ra mordida, foi interrompida pelo Fevereiro, que passava por ali. Ele, muito magrelo, pediu: - Estou com uma fome danada. Posso dar uma dentada no seu cajuzinho? - Só um pouquinho – a menina foi logo avisando, mas não adiantou. Morde daqui, morde dali, morde de cá, de acolá… Não é que o Fevereiro comeu o cajuzinho inteiro? Chateada muito chateada, a menina reclamou: “Fevereiro, me dá meu cajuzinho. Cajuzinho que eu custei tanto apanhar…”. - A fome é grande, garotinha. Desculpe. Quer ficar com a minha machadinha? – perguntou o Fevereiro. - Sim – ela respondeu. E mais uma vez a menina caminhou para longe, pela estrada afora. Agora com uma machadinha na mão. Lá adiante, encontrou um pica-pau tirando mel da árvore. - Gente, o que é isto? – perguntou a menina assustada. – Pica-pau da minha terra tira mel com o bico? - Tiro – respondeu o Pica-pau, que de tão cansado, mal se aguentava acordado. Estava com sono muito sono. E pediu a machadinha emprestada. - Presta atenção – avisou, então, a menina. Emprestar eu empresto, mas só um pouquinho. Assim, meio sonâmbulo, o Pica-pau danou a martelar a árvore com vontade. Bate daqui, bate de lá, bate dali, bate de cá… E não é que a machadinha quebrou? A menina não chorou porque não era chorona. E disse: “Pica-pau, me dá minha machadinha. Machadinha que o Fevereiro me deu. Fevereiro comeu meu cajuzinho. Cajuzinho que eu custei tanto a apanhar…”. O Pica-pau soltou um bocejo profundo e respondeu: - A machadinha está quebrada, meu bem. Não serve mais pra nada, nem pra ninguém. Você quer um pote de mel? Claro que a menina aceitou. Ela sentia uma baita de uma fome. Nem escutou o Pica-pau perguntar seu nome, toda lambuzada que estava de mel! Eu também ainda não sei o nome dela, não. Sei que, depois de comer um tanto, a menina guardou um tiquinho de mel para comer no caminho. E foi-se embora estrada afora, enquanto o Pica- pau, enfim, adormecido, roncava ao longe muito longe. A menina andando, pássaros voando. A menina cantando, sombras balançando, balançando… Até que a tardezinha cobriu a campanha, e a menina topou com uma coisa meio estranha: uma vaca que comia lama. Espantada muito espantada, perguntou: - Gente, vaca da minha terra come lama? - Cansei de comer grama todo dia – respondeu a Vaca irritada. E o que aconteceu? Adivinha. Isto mesmo! A Vaca pediu do mel um pouquinho, mas acabou comendo tudinho. Bastante zangada, a menina falou, quase como se fosse uma ordem: “Vaca, me dá meu mel. Mel que o Pica-pau me deu. Pica-pau quebrou minha machadinha. Machadinha que o Fevereiro me deu. Fevereiro comeu meu cajuzinho. Cajuzinho que eu custei tanto a apanhar…”. Não houve jeito. A ingrata da Vaca não aceitava que a culpa fosse dela. Ainda por cima, teve a coragem de mugir: - Bem feito, menina. Aprendeu que não se deve ser tão boazinha assim? Mas, por fim, arrependida, a Vaca trocou de juízo. Sei lá o motivo. Talvez pela beleza da tarde, ora essa! E deixou a menina tirar seu leite à beça. Deu para encher duas cuias bem grandinhas! A menina bebeu uma cuia ali mesmo, todinha. A outra ela guardou para a viagem. E mais uma vez a menina seguiu para longe muito longe. Andando, andou… subiu, pulou… cantou, dançou, até… o sorriso da Lua no céu se abrir, e se ouvir um ruído esquisito. “O que é isto?”, procurou a menina sem nada encontrar. “Ah, deixa pra lá”, ela pensou. Porém o barulhinho ainda mais pertinho, aumentou: - Piripiri… buá! Piripiri… Buá! Piripiri… - Lá! A menina achou! Uma galinha ali escondida, que chorava triste da vida. Chorava e bebia as próprias lágrimas. Compadecida, a menina perguntou: - Gente, galinha da minha terra bebe lágrimas? - Bebo sim. Sou muito sozinha. Dá um golinho desse leite pra mim? Como de costume, a menina respondeu: - Só um pouquinho. E aquela mesma velha história aconteceu. Um golinho cá, um golinho lá, um golinho aqui, outro acolá… A galinha bebeu todo o leite da cuinha! Aborrecida muito aborrecida, a menina falou: - “Galinha, me dá meu leite. Leite que a Vaca me deu. Vaca comeu meu mel. Mel que o Pica-pau me deu. Pica-pau quebrou minha machadinha. Machadinha que o Fevereiro me deu. Fevereiro comeu meu cajuzinho. Cajuzinho que eu custei taaanto apanhar…”. E não é que, depois de beber o leite, a Galinha ficou supercontente? Daí ela ofereceu: - Amiga, aceita um presente? - Claro que sim! – respondeu a menina, que nunca-nunquinha tinha ganhado presente de Galinha. “O que será?”, ela imaginava curiosa. Talvez um ovo… um pintinho novo… um ninho cor-de-rosa…” Que nada! Toda prosa, a Galinha disse para a menina arrancar as penas que quisesse. Ah, então eram penas o presente dela. Belas! Valia a pena escolher. No entanto, a menina sentiu pena da Galinha e escolheu apenas uma peninha. Vupt!, Puxou depressa para não doer. - Adeus – cacarejou a Galinha –, mande lembranças a todos! E mais uma vez tudo de novo. A menina seguiu estrada afora para longe muito longe. Desta feita, com uma bela pena na mão. Anoitecia. A menina agora caminhava em silêncio, um silêncio bem silencioso. Acontecerá algo perigoso? Vezenquando se ouvia um piado de coruja, um chiado de morcego, um barulhinho de bicho lambendo água do rio. Dava um medinho gostoso… E de repente uma luzinha diferente! Vizinha da lamparina, um tipo de abajur que se usava antigamente. A lamparina estava em cima de um toco de árvore que servia de mesinha para um homem escrever. Um escrivão. Naquele tempo não existia caneta nem lápis de cor, não. Já pensou? As pessoas escreviam com uma pena, molhada em um tinteiro. Demoravam o dia inteiro para escrever tão pouquinho… Devagarinho, a menina se aproximou da lamparina e viu o dedo do Escrivão Lambrecado de tinta preta. Sentado em uma banqueta, o Escrivão nem notou a presença da menina. Ele estava ocupado muito ocupado, com a escrevinhação. Admirada, então, a menina perguntou: - Gente, escrivão da minha terra escreve com o dedo? No mesmo instante, levantando a cabeça, o Escrivão reparou na menina e disse: - Escrevo com dedo, pois hoje cedo minha pena voou para longe-não-sei-onde. Você pode me emprestar a sua? - Emprestar eu empresto, mas só um pouquinho. - Combinado – respondeu o Escrivão, que desatou a escrever bem ligeiro. Cansado de trabalhar o dia inteiro, ele estava louco para voltar à casa. Enquanto isso, a luzinha da lamparina cada vez mais fraca… Bastante apressado, o Escrivão enfiava a pena no tinteiro com sofreguidão. E molha daqui, molha de lá, molha de cá, de acolá… Não é que a pena se partiu pela metade? A menina sentiu uma baita vontade de chorar, mas não chorou. Ficou com vergonha. E tristonha muito tristonha, resmungou: “Escrivão, me dá minha pena. Pena que a Galinha me deu. Galinha bebeu meu leite. Leite que a Vaca me deu. Vaca comeu meu mel. Mel que o Pica-pau me deu. Pica-pau quebrou minha machadinha. Machadinha que o Fevereiro me deu. Fevereiro comeu meu cajuzinho. Cajuzinho que eu custei taaanto apanhar…”. O Escrivão não disse coisa alguma. Nenhuma palavra. Nem uma. Ergueu a lamparina, iluminou o rosto silencioso da menina e por um longo curto tempo ficou a olhá-la: de cima a baixo, de lado a lado, de baixo a cima… O Escrivão tentava adivinhar a menina. Por fim, ele enfileirou uma porção de perguntas mais ou menos assim: “Qual o seu nome, meu bem?... Está perdida? Onde é que você mora? Quantos anos você tem? Você já vai à escola?... Anda à procura de alguém?...” Calada, a menina não falava nadica de nada. Apenas sorria com seu olhar negro muito negro que agora brilhava dentro da noite. E não é que o Escrivão descobriu o segredo? (A menina não tinha família nem casa.) E com uma voz carinhosa ele disse: - Você já deve estar cansada de andar por aí, o dia inteiro, trocando coisas pela estrada. Não é mesmo? A menina pulou para cima da banqueta do Escrivão e respondeu então: - Cansada que nada! Gosto mesmo é de uma longa caminhada. - Muito bem. Você pode caminhar, caminhar, caminhar… E voltar pra minha casa! – ofereceu o Escrivão. – Quer vir morar com a gente? Minha mulher ficaria tão contente… Minha filhinha também. Ela teria alguém pra brincar! Sabe, lá em casa só tem menino… Vem comigo, vem! Enquanto a menina pensava se ia ou não, uma rajada de vento tremeu a mata, e ela caiu sentada no chão. Na mesma hora, o Escrivão deu-lhe a mão para que se levantasse. A menina achou tão bom segurar a mão suja de tinta do Escrivão, que não conseguiu mais largá-la. De mãos bem dadas, seguiram os dois em direção à casa do Escrivão. E, apesar da fome, da ventania e da escuridão, a menina sentia-se feliz muito feliz. Assim, ela ganhou casa, comida e uma família querida. Porém jamais desistiu das caminhadas. Vez por outra, ainda caminhava para longe muito longe... Mas depois voltava, sempre voltava. E não é que um dia, ao voltar, ela encontrou uma surpresa gigante? Era uma coisa que a menina nunca na vida tivera antes: Uma festa de aniversário! Música, brincadeira, dança… Uma imensa de uma festança! Batata frita, sorvete, pizza, pão de queijo… A maior comilança! Todas as crianças da cidade foram convidadas para cantar parabéns. Cantar e comer bolo. Um enorme bolo. Um enorme bolo de chocolate, recheado de leite condensado e enfeitado com cajusinhos de amendoim. Pode acreditar em mim, também fui convidado. Eu vinha até trazendo um docinho pra você, mas caiu pelo caminho. Meu bolso estava furado… Marta Lagarta