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Expresso – 27/1/23

Quantos euros recebeu


Camões por ter escrito
5 “Os Lusíadas”?

10 O valor da tença atribuída a


Camões — uma análise
comparativa feita por economistas em relação aos salários médios atuais e às
tenças mais elevadas de que beneficiaram outros contemporâneos
TEXTOS ANTÓNIO VALDEMAR JORNALISTA. ILUSTRAÇÃO HELDER OLIVEIRA
15
Camões decidiu regressar a Lisboa em 1567. Trazia consigo o manuscrito de “Os
Lusíadas”, para o concluir e publicar. Partiu de Goa desgastado por intrigas, por raivas e por
invejas. Foi julgado e condenado por não pagar uma dívida a um agiota. A prisão transformou-o
radicalmente. Deixou de ser o homem enérgico e desenvolto que se movimentava quer na roda
20 de fidalgos da Corte quer no Malcozinhado, a mais turbulenta tasca de Lisboa, frequentada por
rufias, prostitutas e outros marginais. O retrato desse tempo áureo apresentava-o “de corpo alto
de estatura, largo das espáduas, de cabelo ruivo, no rosto sardo, torto de um dos olhos e de
entendimento agudo e raro engenho”.
Para conseguir o dinheiro para a viagem contou com a disponibilidade de alguns amigos.
25 Depois de 17 anos no Oriente e em África, desejava voltar a Lisboa. A Índia permitiu-lhe o
convívio com o sábio Garcia de Orta (1501-1568), que o honrou com a primeira publicação de
versos na abertura do “Colóquio dos Simples e das Drogas”, impresso em 1563 na oficina de
Joannes de Endem, em Goa, e com o jovem cronista Diogo do Couto (1542-1616), que lhe
preencheu tempos de ócio e registou para a História a realidade quotidiana da vida e da obra do
30 poeta. Camões teve, ainda, outros amigos leais e afetuosos, mas, de resto, a Índia tornara-se “um
imenso bolo de mel atacado por um espesso enxame de moscardos vorazes e zumbidores que se
atropelavam a devorar quanto podiam”. Em suma: tal como escreveu Camões numa carta, “a
Índia era mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”.
A viagem de regresso teve de ser interrompida, e Camões permaneceu em Moçambique e
35 depois na ilha de Moçambique. O mar arrebatou alguns dos que lhe acudiram nas horas de
infortúnio. Diogo do Couto relatou a situação de Camões em extrema penúria e marcado pelo
sofrimento. Mas uma coisa é certa: na “dura Moçambique”, para usar as próprias palavras de
Camões, o poeta procedeu à revisão de “Os Lusíadas”.
Durante cerca de 25 anos elaborou a conceção do poema e o apuro da escrita. Carolina
40 Michaëlis de Vasconcelos, a propósito, afirmou: “Principiada com ímpeto juvenil, quando tudo
parecia sorrir ao apaixonado e genial fidalgo-cavaleiro e quando o sol da pátria estava perto do
seu apogeu, a epopeia foi adiantada devagar; após graves estudos e duras experiências, só saiu à
luz quando a velhice batia à porta e as provas de decadência do país se haviam multiplicado.”
Um dos seus biógrafos, Aquilino Ribeiro, evidencia “a agudeza de retina insuperável” de
45 Camões quando faz a “anotação do real”. Isto só foi possível — observou — por ter sido “soldado
raso, sujeito a todos os trabalhos da mareação, calejando os dedos a puxar as adriças,
tressuando a dar à bomba e ouvindo, com torva, mas obediente cara, as ordens, descomposturas
e impropérios” dos mestres das naus em que viajou. Daí a obra de Camões ser um relato “da sua
vida incerta, precária, cheia de baldões e rica de polpa, tanto para o bem como para o mal”.
50 “Os Lusíadas”, através dos dez cantos, recriaram as origens de Portugal e a evolução da
sua história política, cultural, social, até ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
Camões teve atividade militar, bateu-se com valentia em Ceuta; no Oriente tomou parte na
expedição contra o rei de Chembé; e esteve na expedição de vigilância dos estreitos de Meca e de
Ormuz. Naufragou na foz do rio Macom. Envolveu-se na fúria dos combates em terra e no mar.
55 Partilhou as horas de confusão e de fascínio em todos os oceanos e continentes. Da ilha de
Moçambique embarcou, de novo, com destino a Lisboa, em novembro de 1569. Vinha “na
matalotagem” de Antão de Noronha e também de Diogo do Couto, o cronista do “Soldado
Prático” e das “Décadas”.
A CHEGADA A CASCAIS
60 Foram surpreendidos, ao atracar em Cascais a 7 de abril de 1570, com um surto de peste
que grassava em Lisboa e arredores. Tamanha calamidade mantinha a população em
sobressalto. Um documento da época descreve que, no ano anterior, o ano inesquecível da peste
grande, não houve dia de junho, julho e agosto em que não falecessem 500, 600, 700 pessoas.
Esgotaram-se os espaços dos adros das igrejas para as sepulturas. Daí alargarem-se outras covas
65 para enterrar, em cada uma, dezenas de mortos.
Correram, entretanto, vaticínios tenebrosos: uma sucessão de sismos arrasaria Lisboa — e
com tal intensidade e tal violência que o Castelo de São Jorge se juntava ao Convento do Carmo.
Um outro contemporâneo, o padre jesuíta Diogo de Carvalho, acerca dos boatos sobre os
tremores de terra em Lisboa, referiu: “Não havia na cidade mais do que gritos, desmaios e andar
70 a gente doida e sem siso. Ocupou a gente que desta cidade saía sete ou oito léguas ao redor de
Lisboa, e porque não havia casas se punham pelos campos ao pé das oliveiras: e como não havia
água e não iam providos de comer bastante [...] morrem por lá com fome, sede” e outras
fatalidades.
A CENSURA DA INQUISIÇÃO
75 Camões aguardou em Cascais o momento propício para chegar a casa. Encontrava-se
velho, doente, alquebrado, reduzido à miséria. Aos 45 anos tinha as marcas de um homem
exausto e desamparado. Perdera a exuberância. Mas ganhara humanidade: “As estrelas e o fado
sempre fero,/ com meu perpétuo dano se recreiam,/ mostrando-se potentes e indignados/
contra um corpo terreno,/ bicho da terra vil e tão pequeno.”
80 Confrontava-se, ainda, com outra “peste”. A Inquisição, fundada em 1536, foi endurecida
pelo Concílio de Trento (1545-1664), que estabeleceu regras e dogmas inflexíveis para as
estruturas do Tribunal do Santo Ofício. Além do domínio eclesiástico, interferia em todos os
sectores políticos, sociais e culturais. O terror prolongou-se até à eclosão da Revolução Liberal,
em 1820. A população de Lisboa assaltou o Palácio, implantado onde viria a ficar o Teatro
85 Nacional D. Maria II. A estátua da Fé,
obra monumental de Machado de
Castro voltada para o Rossio, foi
apedrejada e destruída. Abriram os
cárceres. Estava abolida a censura.

90
VIAJANTE Luís de Camões em Goa
(1581) BIBLIOTECA
NACIONAL/DEAGOSTINI/GETTY
IMAGES
95

Camões residiu — até à morte — entre


a Mouraria e a Calçada de Santana, em
cujo cemitério terá sido sepultado.
100 Ficava a curta distância da Igreja de
São Domingos, a ordem religiosa que
tinha a seu cargo o funcionamento da
Inquisição e abrangia, portanto, a
censura literária. Alguns eruditos
105 admitem que Luís de Camões —
garantido o apoio de um mecenas —
aproximou-se dos Dominicanos, como
visita assídua, para trocar impressões
acerca dos temas mais escaldantes de “Os Lusíadas”. Terá sido a primeira leitura crítica, antes
110 de requerer, nos termos habituais, a censura oficial.
Coube depois a frei Bartolomeu Ferreira fazer o exame. Admitem alguns eruditos, como
Sousa Viterbo, que houve conversações e reajustamentos entre o censor e o autor. No despacho
que exarou frei Bartolomeu Ferreira pode ler-se: “Não achei neles [“Os Lusíadas”] cousa alguma
escandalosa, nem contrária à fé e aos bons costumes.” A justificação sobre as narrativas pagãs,
115 os versos incendiados de exaltação sexual, nomeadamente no Canto Nono, o da ilha dos
Amores, salientou: “Como, isto é, poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais
que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na obra. E por isso me
parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas
ciências humanas.”
120 Ultrapassados estes requisitos imprescindíveis, Camões solicitou à Mesa dos
Desembargadores do Paço e ao regedor da Justiça a licença para impressão. Um alvará régio, de
4 de setembro de 1571, não só autorizou a impressão como garantiu, a favor de Luís de Camões,
a propriedade literária por dez anos.

125 O EDITOR DA COSTA DO CASTELO


Ao tempo havia 16 oficinas em Lisboa. Uma das autoridades na matéria, António Joaquim
Anselmo (“Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI”, Biblioteca Nacional,
1926), enumera desde as mais famosas até às mais modestas. Camões optou por António
Gonçalves, com oficina própria na Costa do Castelo. Não tinha o prestígio de outros impressores
130 que lançaram obras de personalidades de relevo oficial, hoje colocadas na devida dimensão
perante a grandeza do génio de Camões.
António Gonçalves, segundo António Joaquim Anselmo, depois de “Os Lusíadas”, foi
impressor de Jorge Arco, bispo de Lisboa. Depois editou, por exemplo, em 1573 o “Comentário
do Cerco de Goa e Chaul”, de António de Castilho, em 1574 o “Sucesso do Segundo Cerco de
135 Diu”, de Herónymo Corte Real, e em 1576 a “História da Prouíncia Sãcta Cruz”, de Pero de
Magalhães de Gandavo.
Publicaram-se, em 1572, duas edições de “Os Lusíadas”, sem qualquer prefácio e
dedicatória. Apenas se refere na primeira página: “Com privilégio real. Impresso em Lisboa com
licença da Santa Inquisição e do Ordinário: em casa de Antonio Gonçalvez, Impressor.” Existem
140 nas edições de 1572 assinaláveis diferenças, a começar pela capa: a disposição do pelicano. Os
investigadores de estudos camonianos indicaram: no alto da portada, o pelicano tem o bico
voltado para a esquerda de quem olha; na outra edição, o mesmo pelicano tem o bico voltado
para a direita.
Mas logo nas primeiras estrofes verificam-se alterações relevantes. Serão erros de
145 impressão ou o poeta quis modificar o texto? Entre os investigadores portugueses que nos
séculos XIX e XX escreveram sobre Camões destacam-se, entre outros, os estudos biográficos,
as interpretações críticas e a coordenação editorial do visconde de Juromenha, Teófilo Braga,
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Sousa Viterbo, José Maria Rodrigues, Epifânio Dias,
Hernâni Cidade, António José Saraiva, José Hermano Saraiva e Jorge de Sena. Mais próximo de
150 nós temos os estudos de Vítor Aguiar e Silva e Maria Vitalina Leal de Matos.
Todavia, David Jackson, ao consultar 34 exemplares de “Os Lusíadas” de 1572, não só em
Portugal e no Brasil mas em bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, Inglaterra,
Itália, Espanha, França e Alemanha, detetou, nos respetivos textos, mais de duas mil diferenças.
E numa longa entrevista que me concedeu, para o “Diário de Notícias”, David Jackson, na altura
155 professor da Universidade de Yale, pronunciou-se acerca da tradicional controvérsia em torno
das edições de 1572.
No seu entender, não terá havido duas edições, “mas apenas uma grande sequência da
impressão com numerosas correções e, ainda, novos erros”; a diferenciação não se reduz ao
pelicano incluído na portada, umas vezes virado à esquerda e outras à direita; nem se deverá
160 circunscrever a E e EE, classificação de José Maria Rodrigues, em 1921, correspondente às
variantes do verso 7 da primeira estrofe do primeiro canto.
O REI, O ALVARÁ E A TENÇA
Garrett, no poema “Camões”, publicado em 1820, contribuiu para uma visão romântica,
lendária e fabulosa da vida e da obra de Camões, que virá a ser desmontada por muitos dos
165 eruditos que recorreram às fontes documentais. O pintor António Carneiro (1872-1930)
imaginou a leitura aos frades de São Domingos. Outros artistas imaginaram a leitura ao rei D.
Sebastião.
Contudo, não resta dúvida de que Camões deu conhecimento de “Os Lusíadas” ao rei D.
Sebastião. A obra define os contornos de Portugal, seguindo a disposição do cartógrafo Álvaro
170 Seco no primeiro mapa impresso (1561) que representou a nossa extensão geográfica e que se
mantém até hoje: “Eis aqui, quase cume da cabeça/ da Europa toda, o Reino Lusitano,/ onde a
terra se acaba e o mar começa.” É com orgulho que Camões a identifica: “Esta é a ditosa Pátria
minha amada.”
Camões celebrou a ação dos portugueses nas descobertas e conquistas: “Assim fomos
175 abrindo aqueles mares,/ que geração alguma não abriu,/ as novas ilhas vendo e os novos ares/
que o generoso Henrique descobriu.” Ao dirigir-se a D. Sebastião, incentiva o rei a defender
Portugal entre os povos europeus: “Fazei, Senhor, que nunca os admirados/ alemães, galos,
ítalos e ingleses,/ possam dizer que são pera mandados,/ mais que para mandar, os
Portugueses.”
180 Encontra-se na Torre do Tombo o alvará lavrado a 27 de julho de 1572 que, em nome do
rei D. Sebastião, atribuiu a Camões uma tença, tendo em apreço o serviço prestado “nas partes
da Índia, por muitos anos e aos que ao diante me fará e a informação que tenho do seu engenho
e habilidade e suficiência [sic] que mostrou no livro que fez das cousas da India [sic]. Hei por
bem e me praz de lhe fazer mercê de quinze mil réis de tença em cada um ano [...] a contar de
185 doze dias do mês de Março deste ano presente de mil quinhentos e setenta e dois em diante e a
serem pagos no meu Tesoureiro-Mor ou quem seu cargo servir”.
Foi muito? Foi pouco? O que representou em face de outras tenças? São alguns aspetos a
pormenorizar, noutro local, desta retrospetiva camoniana. Com a informação disponível há 100
anos, Almada Negreiros emitiu este comentário fulminante na “Cena do Ódio”, ao interpelar “a
190 pátria onde Camões morreu de fome/ e onde todos enchem a barriga de Camões!”.
Se há uma maioria de opinião que elege “Os Lusíadas” como a obra máxima da cultura
portuguesa da época, outros inclinam-se para a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e
ainda outros para os relatos que constituem a “História Trágico-Marítima”. Embora não haja
unanimidade de critério (e não esqueçamos que Eça de Queirós preferia as “Décadas”, de João
195 de Barros, em vez de “Os Lusíadas”), há um ponto de convergência: a afirmação do “humanismo
universalista” — definido por Jaime Cortesão — que caracteriza o português, em qualquer obra,
ou em qualquer autor, mais conhecido ou menos conhecido, mas que exprime as contingências,
os riscos e as proezas da viagem. A força de ousadia e a capacidade de irradiação através do
Velho Mundo e Novo Mundo.
200 “Os Lusíadas” constituem à escala nacional e internacional o exemplo mais significativo.
Portugal e os portugueses continuam dentro de “Os Lusíadas”. Camões menciona qualidades e
não oculta defeitos no comportamento do povo português. Sentimentos nobres como a
generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como o suborno, a corrupção e a
inveja. Também fixou a língua portuguesa que falamos hoje e seguiu de perto os grandes
205 problemas do seu tempo, muitos dos quais continuaram a ser objeto de reflexão das gerações
seguintes. É um moderno perante os clássicos e um clássico perante os modernos.

200 EUROS POR MÊS?


Três análises comparativas da equivalência, em moeda atual, da tença de 15
210 mil réis por ano atribuída pelo rei D. Sebastião
A agenda cultural de 2022-2023, no âmbito das comemorações dos 450 anos da
publicação de “Os Lusíadas”, tem realizado em todo o país conferências, debates, até exposições
e organização de percursos e, ao mesmo tempo, tem promovido no estrangeiro idênticas
atividades culturais onde existem núcleos de ensino, de investigação e de difusão da língua
215 portuguesa.
Estão por esclarecer aspetos fundamentais da vida e da obra de Camões. Quando nasceu?
Terá sido em 1524 ou em 1525? E onde nasceu? Terá sido em Lisboa? Quando faleceu em
Lisboa? Terá sido em 1579 ou em 1580? Como sentiu a derrota de Alcácer-Quibir e a morte de D.
Sebastião? Como reagiu perante a sucessão e a morte do cardeal D. Henrique e as decisões nas
220 Cortes de Lisboa e de Almeirim? Faleceu antes da invasão comandada pelo duque de Alba, as
lutas de D. António Prior do Crato ou a entrada de Filipe I para integrar Portugal na Espanha?
Um dos temas possíveis reside em saber o atual valor da tença de 15.000 réis por ano
atribuída a Luís de Camões, a partir do alvará lavrado a “doze dias do mês de março de mil
quinhentos e setenta e dois”; renovado por duas vezes ate à morte do poeta e que terá sido
225 solicitado pela mãe, Ana de Sá, que lhe sobreviveu.
TRÊS DEPOIMENTOS
Para o efeito recorremos a autoridades na matéria: Nuno Alves, diretor do Gabinete de
Estudos do Banco de Portugal, Maria Eugénia Mata, catedrática da Universidade Nova de
Lisboa (que nos responderam por escrito), e Helena Garrido, jornalista de Economia e Finanças.
230 Agradecemos os depoimentos prestados acerca deste tema bastante problemático.
“Em relação à informação acerca da equivalência, em moeda atual, da tença anual de
15.000 réis (quinze mil réis) atribuída por D. Sebastião, o Departamento de Estudos
Económicos calculou com um mínimo de fiabilidade a equivalência monetária”, declarou Nuno
Alves. Reconheceu, todavia, que “constitui matéria complexa, para a qual não dispomos,
235 infelizmente, de uma resposta direta. Não obstante, podemos recorrer a várias medidas que,
apesar de mais ou menos simplistas, fornecem uma aproximação ao poder de compra dos
15.000 reais de 1572, quer atualmente, quer à época”.
“Se combinarmos”, prosseguiu, “o índice de preços apresentado nas ‘Estatísticas
Históricas Portuguesas’ (2001) com o Índice de Preços no Consumidor disponibilizado pelo
240 Instituto Nacional de Estatística, os 15.000 reais de 1572 equivaleriam a cerca de 2200 euros de
2021. Porém, se optarmos pela paridade ouro desse valor (ou seja, o valor de mercado atual do
ouro fino a que equivaliam, em 1572, os 15.000 reais), então a equivalência atual subiria para
cerca de 5780 euros, assumindo o preço da onça à cotação de 1700 euros. Como o valor do ouro
está em alta, poderíamos usar uma cotação pré-pandemia (p. e., €1300/onça), caso em que a
245 equivalência desceria para cerca de 4400 euros, ainda assim o dobro do sugerido pela
conjugação de índices.”
Esclareceu Nuno Alves que “importa realçar que estes valores são meramente indicativos”.
“Um alqueire de trigo poderia custar, em Évora, 100 a 200 reais. Tomando o preço mais
elevado, a tença que refere permitiria adquirir 75 alqueires de trigo, ou cerca de 1050 litros. Em
250 Lisboa, uma arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais, ou seja, a tença permitiria
comprar entre 19,4 e 25,9 arrobas (286 a 380 kg). Seria ainda suficiente para adquirir mais de
um quintal de pimenta (51 kg), que era um importante produto de reexportação na capital.”
A concluir, referiu: “Comparemos ainda a tença com o ordenado de alguns oficiais da Casa
da Moeda de Lisboa: o tesoureiro e o escrivão da casa auferiram ambos 30.000 reais (tal como
255 um cirurgião no Hospital de Todos-os-Santos), o mestre da balança ganhava 20.000 reais e o
conservador 15.000 reais.” Por último, Nuno Alves indicou, “para mais informações sobre
preços históricos portugueses, a consulta do site ‘Prices, Wages and Rents in Portugal, 1300-
1910’” (acessível através da ligação pwr-portugal.ics.ul.pt/).
As mesmas questões foram submetidas ao critério de Maria Eugenia Mata, outra
260 conceituada especialista na matéria. Respondeu-nos, também por escrito (recorrendo a Carlos
Bastien, “Prices and Wages” in Nuno Valério; e ”Portuguese Historical Statistics”, Lisboa, INE,
págs. 629-664), que entre 1580 e 1997 os preços multiplicaram-se por 19.235. Considerando
também o índice de preços de 1997 até hoje e as mudanças para o escudo e para o euro, cada
real de 1580 valerá hoje cerca de 15 a
265 16 cêntimos do euro”.
“A tença de 15.000 réis”,
acentuou Maria Eugenia Mata, “serão
2250 a 2400 euros, muito acima do
rendimento médio português da época.
270 Esse rendimento médio à época seria
de 800 a 880 euros a preços de 2000
(segundo Nuno Valério, “Portuguese
Economic Performance, 1850-
2000” in J. Morilla, J. Hernández
275 Andreu, J. L. García Ruiz, J. Ortiz-
Villajos (organizadores), Homenaje a
Gabriel Tortella, LID, Universidad de
Alcalá, Alcalá de Henares, 2010, págs.
431-444). Possivelmente, concluiu
280 Maria Eugénia Mata, “o problema seria
a tença ser realmente paga”.
285
BIBLIOTECA GERAL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA/ DEAGOSTINI/GETTY
IMAGES

290 QUATRO ASPETOS FUNDAMENTAIS


A morte de Camões terá sido em 1579 ou em 1580. Assim ficou registado numa das
entradas do dicionário temático “Camões”, nos textos de Maria Vitalina Leal de Matos,
catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa. Para saber os quantitativos mensais ou a
totalidade do pagamento contactei Helena Garrido, que realçou quatro aspetos fundamentais
295 nesta síntese. “Dificilmente conseguiremos um valor exato. Usaria os valores fornecidos por
Nuno Alves e Maria Eugénia Mata, que são calculados com a evolução dos preços e a conversão
para o euro. Diria que a tença de Camões está estimada entre 2200 e 2400 euros anuais, ou seja,
de 183,3 euros a 200 euros mensais (dividido por 12). A utilização da cotação do ouro parece-me
mais complicada.”
300 Qual o poder de compra mensal dessa tença? “Usando os dados de Nuno Alves — uma
arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais —, com essa tença de 15.000 reais ou 1250
reais por mês podia comprar no mínimo 2,1 arrobas de arroz (cerca de 30 kg de arroz, com a
arroba a equivaler a 14.688 kg). Levando em conta o valor do rendimento médio na altura de
800 a 880 euros que se supõe anuais, Camões tinha uma tença que era, pelos mínimos, 2,75
305 vezes o rendimento médio. O rendimento disponível médio português em 2020 foi de 34.798
euros (INE, coligido pela Pordata), cerca de 2342 euros mensais multiplicado por 14.”
A questão formulada por Maria Eugénia Mata — “o problema seria a tença ser realmente
paga” — tem pleno cabimento. O camoniano visconde de Juromenha assinalou no “Livro da
Fazenda” que houve atrasos no pagamento.
310 Uma última questão intensifica a polémica. O matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, por
lecionar ao infante D. Luís, recebia uma tença anual de 40.000 réis. Numa investigação sobre
tenças, da autoria de Afonso Mexia, verifica-se, nomeadamente, que a tença paga a Afonso de
Albuquerque era de 150.000 réis e a tença paga a João de Barros era de 400.000 réis. Todos os
comentários são legítimos. E demonstram, através dos séculos, os critérios de avaliação do
315 poder, em cada época, em relação aos protagonistas da cultura. Camões teve direito ao
rendimento social mínimo. / A.V.

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