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Sobre os perigos de uma sociedade polarizada

Sara Toledo
Ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho
saber.
Parece que sou um pouco mais sábio que ele exatamente
por não supor que saiba o que não sei.”
Sócrates

Caio Prado Júnior, um dos maiores historiadores brasileiros, já anunciava em 1966,


ao escrever o clássico “A Revolução Brasileira”, sobre os perigos de se pensar de maneira
dicotômica: segundo ele, além de se cair em um maniqueísmo, o principal problema seria
não considerar os diversos matizes presentes entre o preto e o branco. O raciocínio
polarizado trabalha de maneira dualista e exclusiva: se não é o preto, só pode ser o branco!
Tal lógica se levada ao paroxismo e difundida em uma sociedade como a nossa, pode levar
a desdobramentos perigosos. Quando Caio Prado falava do tema, se referia a duas maneiras
rigidamente pré-estabelecidas pela esquerda que então discutia acerca do modus
operandi da revolução socialista, quais sejam: a “revolução democrático-burguesa” e a
revolução socialista. Para o historiador, utilizar modelos apriorísticos importados de
realidades diversas à nossa configurava-se como o maior de todos os problemas, pois,
deveria-se analisar a concretude da realidade social e econômica do país para então criar
mecanismos de intervenção em tal realidade. Daí a importância de compreender as coisas
pelas próprias coisas e não pela ideia que criamos delas. Pode até parecer o óbvio ululante,
porém será que neste contexto de embates políticos cada vez mais polarizados temos feito
isso? Posto em termos concretos: há vida além dos arquétipos ideológicos que moldam a
realidade através dos polos PT e PSDB?
Um artigo de Guilherme Fiuza me chamou a atenção neste sentido: chama-se ”Os
companheiros privatizaram a verdade””[1]. Nele, o escritor e cineasta destaca os perigos
horrendos da ideologia que considera como “petista” de se apropriar das escolas e
instituições, tomando como exemplo uma prova de 3º ano de ensino médio, em que o
professor afirmava que o governo FHC consolidou o neoliberalismo a partir de alguns
critérios. Fiuza rebate os critérios defendendo o que considera avanços no governo de FHC
e ao fazer isso, trabalha de maneira generalista e, sobretudo, polarizada. Generalista porque
considera que todos os professores e instituições estão contaminados pelo vírus ideológico
petista” e polarizada, pois não haveria uma outra maneira de se pensar além da dualidade
PT/PSDB. Logo, se um professor trabalha a ideia de que o neoliberalismo brasileiro foi
negativo, é petista e está contaminado pela ideologia cega que apenas serve para lavar
cérebros. Ora, tal maneira de se pensar só reitera todos os problemas dessa gradativa
polarização ideológica diante de uma criação de modelos ideais muito rígidos que
obstaculiza qualquer tentativa de ir além de um dos dois modelos político-ideológicos.
Resultado: maniqueísmo que resulta em ódio; que intensifica os embates de maneira rígida
levando a leitura dos problemas não pelos próprios problemas, mas sim pela ideia que foi
criada deles. É quase uma questão epistemológico-filosófica em que cabe a seguinte
questão: o que é real? O que é criação? Critico a ideia que tenho das coisas e essa ideia me
cegou para a própria coisa?
Sei, caro leitor, é complicado, porém necessário. Sejamos justos com a nossa
realidade e tentemos separar nossas criações fantásticas do que realmente as coisas são. Isso
exige jogar fora todo o tipo de dogmatismo, toda a sorte de referências equivocadas e, por
fim, um esforço monumental de compreender que uma mentira repetida várias vezes pode
se tornar uma verdade. E é exatamente isso que retroalimenta esse processo caótico de
polarização social que se baseia numa suposta polarização política, que tem dividido
amigos nas redes sociais, criado brigas nos almoços de domingo e chamado o PT de
bolivariano, marxista, comunista que almeja transformar o Brasil em Cuba ou Venezuela, e
o PSDB como neoliberal, direitista privatizador e defensor da ordem. Não, nada é tão
simples assim. O que ocorre é que precisamos de certo didatismo ao compreender os
processos políticos e ao mesmo tempo, todos buscamos referências, pois, como diz Slavof
Zizek[2], pensamos melhor quando criamos referências e canalizamos todas as nossas
insatisfações em símbolos que ao mesmo tempo explicam como as coisas devem ser e por
que elas ainda não são. É muito mais fácil pensar de maneira dualista e, portanto,
polarizada, pois, compreendemos o mundo a partir da lógica de que se não é preto só pode
ser branco e assim, criamos respostas para tudo e atribuímos sentido ao estado de coisas tais
como elas se apresentam. O resultado já temos visto: pedidos por intervenções militares,
brigas de rua e discussões acaloradas alimentadas também pela mídia polarizada. A
realidade parece estar do avesso e, em tempos de tanta obscuridade de razão, é bem
provável que a lógica socrática do só sei que nada sei confira um gotejo de luz às nossas
pseudoverdades ou pelo menos nos estimule a lermos a realidade das coisas pelas próprias
coisas, isentos de óculos ideológicos maniqueístas. Caio Prado Júnior também parece
valioso! Sobre os perigos desta polarização? Não nos esqueçamos: há raízes similares na
ascensão do nazismo e do fascismo...

[1] Disponível em: http://www.imil.org.br/artigos/os-companheiros-privatizaram-


verdade/ Último acesso: 18.11.2014
[2] Ver https://www.youtube.com/watch?v=XM2qIJTlDgo

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