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ESTRUTURA

POLÍTICA E
ELEITORAL
BRASILEIRA

Filipe Moreno Horta


Adriana Marques Aidar
Estrutura política e eleitoral
brasileira

Filipe Moreno Horta


Adriana Marques Aidar
© 2022 by Universidade de Uberaba

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Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário

Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube

Horta, Filipe Moreno.


H788e Estrutura política e eleitoral brasileira [livro eletrônico] / Filipe
Moreno Horta, Adriana Marques Aidar. – Uberaba: Universidade de
Uberaba, 2022.
209 p. : il. color.

Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.


Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-88363-92-8

1. Política e governo. 2. Direito eleitoral – Brasil. I. Aidar,


Adriana Marques. II. Universidade de Uberaba. Programa de
Educação a Distância. III. Título.
CDD 324
Sobre os autores

Adriana Marques Aidar

Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos


(IESP/UERJ). Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialização em
Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Especialização em Direito Processual pela Universidade de Uberaba
(Uniube). Graduação em Direito pela UFU. Experiência como advogada
e nas áreas de Direito, Filosofia e Sociologia.

Filipe Moreno Horta

Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos


(UFSCar). Mestrado em Sociologia pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Graduação em Ciências Sociais pela UFSCar.
Atua como membro da equipe do projeto “Varredura digital, modelos
inteligentes e realidade virtual para documentação, gestão e divulgação
da paisagem cultural da Unidade de Conservação Parque Estadual
da Ilha Anchieta (PEIA)”. Experiência como pesquisador associado e
voluntário do Observatório Aura, núcleo de estudos, pesquisa e extensão
nas áreas de Direito, Democracia e Política Pública.
Sumário

Apresentação........................................................................................IX

Capítulo 1 Pensamento marxiano, sociedade, economia e política


no Brasil colonial ............................................................... 1
1.1 Evolucionismo, materialismo histórico e a família.................................................... 6
1.2 Da família monogâmica ao Estado ........................................................................ 10
1.3 Economia, sociedade e política no Brasil colonial................................................. 14
1.3.1 A economia colonial....................................................................................... 17
1.3.2 Escravidão e o clã patriarcal......................................................................... 20
1.3.3 Administração política, militar e fazendária .................................................. 24
1.4 Considerações finais.............................................................................................. 29

Capítulo 2 Pensamento weberiano, sociedade e política no Brasil


imperial (séc. XIX)............................................................. 33
2.1 Estado, poder e violência em Max Weber.............................................................. 37
2.2 Dominação pessoal e formação do estado nacional brasileiro.............................. 41
2.2.1 A violência e o conflito como constituinte da relação social......................... 42
2.2.2 Dominação pessoal e legitimidade............................................................... 47
2.2.3 Dominação patrimonial, administração e burocracia no Estado................ 55
2.3 Considerações finais.............................................................................................. 59

Capítulo 3 Pensamento weberiano, política e partido no Brasil


republicano (1889-1930) .................................................. 63
3.1 Estado, poder e violência em Max Weber.............................................................. 68
3.2 O partido político..................................................................................................... 73
3.2.1 O chanceler Bismarck e a reconstituição alemã........................................ 79
3.3 Os partidos políticos no Brasil (1822-1930)........................................................... 83
3.4 Do Primeiro ao Segundo Reinado (1822-1889)..................................................... 83
3.4.1 A Primeira República (1889-1930)................................................................ 88
3.5 Considerações finais.............................................................................................. 93
Capítulo 4 A República e as alterações no sistema político: de
1930 ao auge do Estado Novo......................................... 97
4.1 Considerações sobre as décadas que antecederam 1930................................. 101
4.2 A década de 1930: direitos, sistema político e eleitoral .......................................111
4.3 O Estado Novo: controle social e o redimensionamento do conceito de
democracia........................................................................................................... 118
4.4 Considerações finais............................................................................................ 124

Capítulo 5 A estrutura partidária brasileira entre golpes (1945-1985)... 127


5.1 A 4ª República (1946-1967).................................................................................. 131
5.1.1 A anistia, o Código Eleitoral e a volta dos partidos e de Vargas (1945-1954)........ 131
5.2 O suicídio de Getúlio Vargas (1951-1954)........................................................... 136
5.2.1 UDN combatendo o varguismo: a posse de JK (1955).............................. 139
5.2.2 UDN combatendo o varguismo: o governo de João Goulart (1961-1964).142
5.2.3 Uma análise sobre o sistema partidário, o clientelismo e a crise de 1964.150
5.3 A 5ª República (1967-1988).................................................................................. 152
5.3.1 Do AI-2 ao AI-5: Arena e o MDB (1965-1968).......................................... 155
5.3.2 Retomada do pluripartidarismo e fim da Ditadura Civil-Militar (1979-1985)....... 161
5.4 Considerações finais............................................................................................ 165

Capítulo 6 Entre ditadura e democracia: vida política e sistema


eleitoral no Brasil............................................................ 170
6.1 Direito eleitoral e eleições na contemporaneidade.............................................. 177
6.2 Direitos políticos.................................................................................................... 179
6.3 Princípios do direito eleitoral................................................................................. 182
6.4 Partidos políticos................................................................................................... 185
6.5 Sistema eleitoral................................................................................................... 189
6.6 Considerações Finais........................................................................................... 193
Apresentação
Prezado(a) aluno(a), é um prazer tê-lo(a) conosco!

Quando não olhamos para o passado, tudo que nos é apresentado parece
novo, maior, único. Títulos sensacionalistas apontam, paradoxalmente, que
algo é “nunca antes visto”, “o maior caso”, “nunca antes na história deste
país” e tantos outros. Ultimamente, vemos com frequência a utilização do
termo “polarização” em referência a nossa estrutura partidária e eleitoral,
sobretudo ao embate que ocorre na arena política brasileira. Ao juntar
os dois pontos anteriores, tornou-se comum vermos nos noticiários que
passamos pela “eleição mais polarizada de toda história”, tratando a
“polarização” como algo negativo e como se a história do Brasil não fosse
repleta de conflitos de classes econômicas, sociais e políticas, como se
as rachaduras que foram escancaradas no momento atual fossem novas,
que tivessem sido criadas recentemente.

Primeiro, falta o mínimo de reflexão sobre o que significa vivermos em um


país democrático e com pluralismo partidário, que pressupõe o embate
de ideologias, grupos e ideias diferentes que visam à superação das
questões nacionais. Há distintas formas de se observar um problema
e há tantas outras possibilidades de resolução, apresentadas pelos
diversos partidos, cada qual com seu programa partidário, com sua
ideologia, propostas e interesses. Desde a Grécia Antiga, já se sabia as
vantagens que a democracia apresenta: participação popular e pluralismo
de ideias divergentes que, na esfera pública e através da comunicação,
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proporcionam maior segurança na formulação de políticas, garantem maior


representatividade e aumentam consideravelmente o leque de alternativas
no enfrentamento dos problemas coletivos. Ora, como é possível esperar
uma eleição não polarizada? Como é possível esperar, ainda mais em um
segundo turno, que os projetos de país não sejam diferentes? Ausência de
pluralidade e visão única de mundo é característico de regimes totalitários
e/ou autoritários; é característico de uma estrutura unipartidária.

Segundo, falta o mínimo de conhecimento histórico. Como não mencionar,


em termos de polarização, o antagonismo entre dois abolicionistas e
jornalistas durante o final do século XIX: o negro monarquista José
Carlos do Patrocínio e o branco republicano Antônio da Silva Jardim.
Ou o ano de 1910, quando houve o embate entre a campanha civilista
de Rui Barbosa, derrotada, contra a campanha militarista do marechal
Hermes da Fonseca. Como não apontar a eleição do paulista Júlio
Prestes em 1930, derrotando o gaúcho Getúlio Vargas, que veio a dar
um golpe de estado meses depois. E o que dizer da polarização entre
a UDN e os partidos getulistas, como o PTB e o PSD, que levou os
udenistas a tentarem golpes em 1951, 1954, 1955, 1956, 1959, 1961
e 1964. Como não lembrar o senador Arnon de Mello (UDN/AL), pai de
Fernando Collor de Mello, que em 1963 assassinou, dentro do Senado
Federal, o senador José Kairala (PSD/AC), quando tentava, na verdade,
assassinar o senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro (PDC/AL).
Polarizadas também foram as eleições bipartidárias e que clamavam
por democracia, constantemente modificadas pelo Regime Militar, na
polarização entre Arena e MDB durante a Ditadura Civil-Militar. E logo
após a redemocratização, foi possível observar a disputa de 1989, entre
Collor (PRN) e Lula (PT), assim como outras, essas frescas na memória.

E este livro pretende navegar com você por todo o aparato e histórico
que representa a nossa Estrutura política e eleitoral brasileira. Vertentes
teóricas da Antropologia, Ciência Política, História e Sociologia apontam
como uma estrutura é, ao mesmo tempo, diacrônica e sincrônica. A
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estrutura é algo construído, alimentado e modificado dentro das suas


próprias regras, abarcando simultaneamente o passado e o presente,
tempos distintos que, quando unidos, fornecem elementos para exercícios
de reflexão, inclusive para os futuros possíveis. E o que sustenta essa
estrutura? Há diversas explicações: a ideologia e a superestrutura, o
habitus, a linguagem, os sistemas totêmicos e tantas outras explicações.
Todavia, no campo prático, as estruturas são sustentadas pela prática
humana, pela ação, pelo indivíduo/sujeito/agente/ator e destes em seus
coletivos e instituições sociais.

Portanto, este livro possui algumas especificidades. Uma delas é


composta por breves abordagens que partem da Ciência Política, da
Economia Política e da Sociologia Política. Para compreendermos a
organização da estrutura política, passaremos por observações sobre a
formação da nossa sociedade e como foi constituída nossa economia e
rede local de se fazer política, para depois analisarmos o nosso sistema
partidário, nossas leis e as formas pelas quais ocorrem nossas eleições.
Outra característica é que este livro, embora dividido em seis capítulos,
não está repartido em partes: em uma perspectiva diacrônica, seguiremos
uma linha cronológica possível e que se inicia no Brasil colonial e se finda
na vida política do pós-1988.

Assim, o primeiro capítulo passa pela teoria marxiana e por algumas


observações do economista Caio Prado Jr. (1907-1990), trazendo uma
análise da economia colonial, do sistema escravocrata, do clã patriarcal
e da administração portuguesa em terra brasileira. Pegando o mesmo
fio, o segundo capítulo nos traz a relação entre a teoria weberiana e as
constatações da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco (1930- )
sobre o final do período monarquista: a constituição do nosso Estado
burocrático, as relações sociais e políticas entre os diversos agentes da
nossa sociedade, principalmente a nível local.
XII Uniube

Já no terceiro capítulo, iniciaremos a concepção teórica dos partidos,


também bebendo da tradição weberiana. Veremos brevemente sobre a criação
de alguns dos primeiros partidos políticos durante o Segundo Reinado
(1840-1889) e um dispositivo financeiro que limitava excessivamente
a participação popular no processo eleitoral. Abordaremos também
a Primeira República (1889-1930) e a criação de partidos políticos
modernos, observando as eleições presidenciais do período, que
trouxeram a hegemonia de um partido republicano agrário e conservador.
No quarto capítulo, estudaremos o período histórico entre os anos 1930 e
1945, que foram marcados pela escalada do autoritarismo e também por
trazerem à tona uma série de conflitos de interesses que já eram velhos
conhecidos no Brasil, inclusive, e talvez principalmente, em relação ao
tipo de Estado que seríamos.

Na reta final deste livro, o quinto capítulo trata de um longo e conturbado


período da história nacional, que se estende da deposição de Getúlio
Vargas (1945) ao fim da Ditadura Civil-Militar (1985). Veremos a atuação
do Executivo e Legislativo no campo político e, principalmente, a
constituição de novos partidos em dois momentos distintos: após o fim
do Estado Novo, quando os partidos estiveram extintos, e após o fim
do Regime Militar, quando imperava o sistema bipartidário. Por fim, o
sexto capítulo traz os processos relativos à redemocratização, como as
Diretas Já e a promulgação da Constituição de 1988. A partir dos direitos
políticos discutidos naquele contexto, foi traçado o direito eleitoral e as
normas que regem o atual processo eleitoral brasileiro e seus partidos,
que desempenham papel fundamental na coesão do sistema.

Por fim, é importante frisar que divergências ideológicas, diferenças


sociais e econômicas e opressões por parte daqueles que detêm o poder
sempre existiram e continuarão a existir. Há quem defenda torná-las
invisíveis, tal como ocorreu com o mito da “democracia racial” criado
no início do século XX, pressupondo que as três “raças” conviviam em
harmonia no Brasil, mesmo após quase quatro séculos de violência racial
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das mais distintas formas. Cabe dar visibilidade a esses problemas e


investigar cientificamente suas causas, consequências e propor ferramentas
para a sua superação. Reconhecer que problemas existem não criará
rachaduras para além daquelas que já estão presentes há séculos, mas
permitirão construir pontes e amenizar diversos desafios que o Brasil
necessita superar. E a única forma de chegar a esse ponto é através do
estudo crítico, da pesquisa fundada em métodos científicos e do diálogo.

O autor e a autora.
Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 1

Pensamento
marxiano,
sociedade,
economia e
política no
Brasil colonial
Filipe Moreno Horta
Introdução

Não é possível falar de política sem as interlocuções com a


vida social, a vida econômica e como todas elas, em relação,
foram construídas historicamente. Viver é um ato político. Somos
atravessadas e atrevessados cotidianamente pelas mais diversas
ações que são tomadas nas diversas instâncias do Executivo e
do Legislativo, mas também por instituições financeiras, como
os bancos internacionais e nacionais, por associações civis e
tantas outras formas de organização social cujos representantes
agem e impactam, direta ou indiretamente, nossa experiência de
vida. Renda, imposto, educação, saúde, segurança, mobilidade
urbana, legislação trabalhista, atividades culturais, todas essas
faces da vida individual e coletiva estão configuradas, no presente,
por ações políticas constituídas historicamente. Não é possível
compreender totalmente os porquês de determinado assunto
sem adentrarmos no seu aspecto social, o campo de luta no qual
discursos, interesses, teorias e ideologias díspares se encontram.

Portanto, é fundamental pensarmos como as condições sociais e


econômicas, herdadas historicamente, dialogam com a política,
e como esta influencia e determina, reciprocamente, os outros
campos da vida cotidiana. Para Karl Marx e Friedrich Engels, a
vida social está condicionada por dois tipos de produção: de um
lado, pelo desenvolvimento do trabalho, a divisão da propriedade
e renda; e, de outro, pela constituição familiar.

Dessa forma, neste primeiro capítulo, focaremos na política


econômica do Brasil colonial, assim como o surgimento da
família patriarcal brasileira e suas bases sociais e materiais.
É esse o patriarca que será o senhor de engenho, o provedor
da Casa-Grande, “o homem de bem”, o indivíduo que deteve,
ao longo de nossa história, as maiores posses econômicas,
o domínio sobre dezenas e centenas de escravizados e
“trabalhadores livres”; foi também o homem que deteve algum
cargo de funcionário público ou, pela nossa formação eleitoral, o
único candidato possível de ser votado – além, claro, de ser, em
certos momentos e localidades, o “Coronel” da Guarda Nacional,
responsável pela segurança interna do país. É esse indivíduo, o
patriarca, que concentrou diversos poderes sob seu mando e julgo.
Assim, este e o próximo capítulo trarão não apenas os conceitos
do patriarcalismo e patrimonialismo, mas também a história da
usurpação dos bens e dos espaços públicos pelo ente privado, e
de como as desigualdades foram criadas e sendo atualizadas a
cada momento de nossa vida, seja ela a colonial, a monárquica
ou a republicana. É imperioso construir essas relações para
compreendermos, mais à frente, os impactos na formação do
sistema partidário brasileiro e da atuação parlamentar.

Parada para reflexão

Você sabia que “homem de bem” significa aquele que possui a virtude da política
e foi definido pelo iluminista francês Montesquieu (1973)? Sabia ainda que, nos
tempos da Monarquia, só poderia votar o homem que possuía posses, bens?

A Constituição de 1824 definiu que somente homens com renda líquida anual
acima de 200 mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego poderiam
votar e serem votados. Aqueles com renda de 100 mil réis estavam aptos a
votarem apenas para sua Paróquia, enquanto os mais abastados votavam
também para os representantes da Província e do Senado. Portanto, o “homem
de bem” do voto censitário recortava, principalmente, os homens acima de 25
anos, brancos, católicos, com renda mínima hoje que seria próxima a R$ 1
milhão, possivelmente proprietários de latifúndios e escravizados.

Você ou alguém da sua família se encaixa totalmente na categoria “homem de bem”?


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Objetivos
Qual a importância do núcleo familiar na constituição de uma
sociedade? Qual a relevância de se analisar um núcleo familiar na
constituição política de um Estado? Família, Estado e patriarcalismo
são conceitos utilizados frequentemente nas Ciências Humanas,
sobretudo nas Ciências Sociais e Ciências Sociais Aplicadas.

Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja


capaz de identificar os termos trabalhos em suas leituras, assim
como possa perceber a diferença analítica que há entre as teorias
– principalmente as europeias – para a realidade de cada local e
os contextos histórico e social presentes em um estudo de caso.
São objetivos deste capítulo:

• correlacionar os conceitos vistos a partir de novos conteúdos;


• correlacionar o desenvolvimento do núcleo familiar com a
economia e política de uma sociedade;
• apresentar o conceito de patriarcalismo;
• correlacionar os conceitos vistos a partir de um estudo de
caso da realidade brasileira.

Esquema
1.1 Evolucionismo, materialismo histórico e a família
1.2 Da família monogâmica ao Estado
1.3 Economia, sociedade e política no Brasil colonial
1.3.1 A economia colonial
1.3.2 Escravidão e o clã patriarcal
1.3.3 Administração, organização militar e fazendária
1.4 Considerações finais
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Com o desaparecimento das classes, desaparecerá


inevitavelmente o Estado. A sociedade, que reorganizará a
produção na base da associação livre e igual dos produtores,
mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe dá de
corresponder: o museu de antiguidades.
Friedrich Engels

1.1
Evolucionismo, materialismo histórico e a família

Publicada em 1884, A origem da família, da propriedade privada e do


Estado, de Friedrich Engels (1820-1895), é uma obra referencial –
apesar de datada – sobre o desenvolvimento histórico do núcleo familiar
das “sociedades primitivas” às sociedades “civilizadas”. Coerente
com o método que desenvolvera conjuntamente com Karl Heinrich
Marx (1818-1883), isto é, o materialismo histórico, Engels funda suas
análises a partir de diálogo com as obras do antropólogo evolucionista
estadunidense Lewis Henry Morgan (1818-1881), principalmente com
as obras Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family
(1871) e Ancient Society (1877).

Saiba mais

O processo evolucionário a respeito dos processos de diferenciação na


suposta evolução da humanidade e da sociedade, tal como caracterizado
por Herbert Spencer (1820-1903), foi um dos maiores influenciadores das
obras da chamada “Antropologia evolucionista”, de autores como o já citado
Lewis Morgan, Edward Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941),
seus principais expoentes. Semelhante ao materialismo histórico e ao que
Engels e Marx se referiam aos modos de produção (antigo, feudal, asiático,
capitalista, comunista), a perspectiva evolucionista dessa Antropologia
Uniube 7

baseava-se num raciocínio fundamental: reduzir as diferenças culturais a


estágios – considerados por eles como “pré-históricos” – de um mesmo
caminho evolutivo, tendo em Morgan o primeiro a sistematizar tais estágios
culturais em: “selvagem”, “barbárie” e “civilização”. O postulado básico do
evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do
mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos
e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente. Toda a
humanidade passaria pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que era
do mais simples ao mais complexo. Dois importantes marcos de ruptura com
a tradição evolucionista, tanto em seus aspectos teóricos quanto analíticos,
foram as obras de Franz Boas (1858-1942) e de Bronislaw Malinowski
(1884-1942).

A concepção materialista da história afirma que a mudança social é


promovida por fatores econômicos e não pelas ideias ou valores dos
indivíduos – o que contrasta com o pensamento weberiano. Em suma,
a preocupação de Engels e Marx é como a sociedade se constrói a
partir das relações sociais de produção, determinadas pelo estágio de
desenvolvimento das forças produtivas.

E assim, Marx desenvolverá extensamente a questão do trabalho e


do capital, ancorado também na mercadoria, retomado por Engels em
sua própria obra.
Segundo a concepção materialista, o fator determinante,
em última instância, na história, é a produção e
a reprodução da vida imediata que, no entanto,
se apresentam sob duas formas. De um lado,
a produção de meios de subsistência [...] De outro
lado, a produção do mesmo homem, a reprodução da
espécie. A ordem social em que vivem os homens de
determinada época histórica e de determinado país
está condicionada por esses dois tipos de produção:
de um lado, pelo grau de desenvolvimento do trabalho
e, de outro, pela família. (ENGELS, 2009, p. 14).
8 Uniube

Em A origem da família, Engels propõe traçar as transformações sociais


ocorridas na esfera familiar, através da análise de distintas gens. É
importante lembrarmos que o processo histórico ao qual Engels e Marx
se referem corresponde, basicamente, a três momentos:

1) o primeiro ato histórico, a geração dos meios para a satisfação das


necessidades básicas; 2) o primeiro fato histórico, a criação de novas
necessidades tendo sido satisfeitas as primeiras; 3) a primeira relação
propriamente social, a necessidade de renovação e reprodução da
própria vida: “começam ao mesmo tempo a fazer outros homens, a
se reproduzir – a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a
família.” (ENGELS; MARX, 2007, p. 51).

E em A Origem da família, Engels (2009) tratará da evolução do núcleo


familiar desde o primeiro estágio, o “selvagem”, à passagem para o
segundo, a “barbárie”, e, por fim, o da “civilização” e da instituição do
matrimônio monogâmico. E por que a família emerge como objeto?
Porque tal núcleo constitui, no princípio do processo histórico, a única
relação propriamente social.
A família é produto do sistema social e refletirá sua
cultura. Como a família monogâmica se aperfeiçoou
consideravelmente desde o começo da civilização e,
de maneira realmente notável nos tempos modernos,
é lícito pelo menos supor que seja capaz de continuar
seu aperfeiçoamento até que a igualdade entre os
dois sexos seja atingida. Se, num futuro distante a
família monogâmica não mais atender às exigências
sociais, é impossível predizer a natureza da família
que irá sucedê-la. (ENGELS, 2009, p. 106).

E tal como no movimento dialético das contradições inerentes ao


sistema capitalista, o parentesco monogâmico também apresenta suas
relações antagônicas.
Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por
Marx e por mim, encontro o seguinte: “a primeira
divisão do trabalho é a que se fez entre o homem
e a mulher para a procriação de filhos”. Hoje posso
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acrescentar que a primeira oposição de classes que


apareceu na história coincide com o desenvolvimento
do antagonismo entre o homem e a mulher, na
monogamia e que a primeira opressão de classe
coincide com a opressão do sexo feminino pelo
masculino. A monogamia foi um grande progresso
histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugura, juntamente
com a escravidão e as riquezas privadas, aquele
período que dura até nossos dias, no qual cada
progresso é simultaneamente um relativo retrocesso
e no qual o bem-estar e o desenvolvimento de uns se
realizam às custas da dor e da repressão de outros.
Ela é a forma celular da sociedade civilizada, na qual
já podemos estudar a natureza das oposições e
contradições que atingem seu pleno desenvolvimento
nessa sociedade. (ENGELS, 2009, p. 85).

Saiba mais

Durante a década de 1930 em São Paulo, mulheres e crianças trabalhavam


as mesmas horas que os homens nas indústrias, tempo que poderia chegar
a mais de 10 horas por dia. Além da mulher receber 64% do salário pago a
um homem adulto (que já era uma remuneração baixa e insuficiente para
as despesas mais básicas) e uma criança receber 39% daquele valor, os
contratos eram verbais e não havia férias ou licença de qualquer tipo, não
havia também descanso remunerado, indenizações por dispensa ou acidente
nem mesmo limitação da jornada de trabalho (BARBOSA, 2008; CHAVES, 2012).

E, partindo principalmente da concepção de gens e do estudo do


parentesco de Morgan, Engels analisa e caracteriza tal núcleo social
como constituintes de uma descendência comum e que está unido por
certas instituições sociais ou religiosas, formando uma comunidade
particular.
Em resumo, a organização gentílica ia chegando ao
fim. A sociedade, crescendo a cada dia, ultrapassava
o círculo da gens. [...] Enquanto isso, o Estado se
desenvolvia sem se notar. Os novos grupos criados
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pela divisão do trabalho – primeiro entre a cidade e o


campo e depois entre os diferentes ramos de trabalho
nas cidades – haviam criado novos órgãos para a
salvaguarda de seus interesses, além da instituição
de cargos públicos de toda espécie. (ENGELS, 2009,
p. 143).

Agora, verificaremos os fundamentos da organização social do Estado.

1.2
Da família monogâmica ao Estado

Engels detalha diversas características de distintas gens localizadas


em diferentes contextos temporais e espaciais: a gens iroquesa, a
gens grega, o Estado romano e o Estado germânico. Após analisá-las,
colocando-as em perspectiva comparada, o ponto essencial para o
autor restringe-se a duas constatações principais e a um conjunto de
práticas próprias a cada uma delas:

1) o caráter comunista da “tribo” iroquesa, o sentido de coletividade, a


economia doméstica, as relações de poder dissipadas e a ausência da
noção de propriedade privada, sendo a terra um bem comum da tribo,
na qual ainda não há o antagonismo de classes;

2) a formação inicial do Estado e supressão da organização gentílica e


a instituição da propriedade privada.
Introduzia-se agora, portanto, um elemento totalmente
novo na constituição: a propriedade privada. Os
direitos e os deveres dos cidadãos do Estado
eram determinados de acordo com o tamanho da
propriedade fundiária possuída e, na medida que
ia aumentando a influência das classes abastadas,
iam sendo abandonadas as antigas corporações
consanguíneas. A organização gentílica sofria outra
derrota. (ENGELS, 2009, p. 145).
Uniube 11

Aqui ocorre uma transformação importante em relação ao núcleo


familiar: na medida da transição do matrimônio sindiásmico à monogamia,
opera-se a transição da propriedade coletiva à propriedade privada,
na qual a família individual assume o papel de unidade econômica da
sociedade.

Saiba mais

Matrimônio sindiásmico é um dos estágios de evolução das relações de um


núcleo familiar. Associada ao estágio da “barbárie” e não da “civilização”,
a família sindiásmica é aquela que os laços são facilmente dissolvidos,
matriarcal e não monogâmica.

Assim, com a expansão das populações, com a invenção do dinheiro,


com os progressos da indústria e das comunicações, a sociedade é
perpassada pela divisão do trabalho, pela criação de novas instituições
políticas e sociais. Faltava, portanto, apenas uma instituição que
assegurasse as riquezas individuais contra a tradição comunista da
organização gentílica, que consagrasse a propriedade privada e que
regulasse as novas formas de aquisição; uma instituição que não só
perpetuasse a acumulação e a nascente divisão da sociedade em
classes, mas também garantisse o direito da classe possuidora em
explorar a não possuidora, assim como o domínio da primeira sobre a
segunda: o Estado.
O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder
que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é “a
realidade da ideia ética”, nem “a imagem e a realidade
da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto
da sociedade, quando essa chega a um determinado
grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que
essa sociedade está enredada numa irremediável
contradição com ela própria, que está dividida em
oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se
livrar. (ENGELS, 2009, p. 211).
12 Uniube

Conclusivamente, para Engels (2009), a civilização é o estágio


da sociedade em que a divisão social do trabalho, a troca entre os
indivíduos e a produção mercantil atingem seu pleno desenvolvimento,
tendo como seus sustentáculos a propriedade privada dos meios de
produção, a família monogâmica e o Estado. Baseado nesta tríade,
o “progresso” da civilização se fez sob um alto custo social: as
contradições inerentes ao modo capitalista de produção, ancorado no
antagonismo entre as forças produtivas e as relações de produção, só
fariam acelerar a concentração da riqueza, da pauperização da massa
– proletária e camponesa – e na distinção e diferenciação de classes.

Engels refere-se principalmente à propriedade da terra, dos escravizados


e às mercadorias (a produção mercantil e a troca). Sendo uma questão
-chave da análise do materialismo histórico e a alienação, seja essa
em relação ao trabalho ou à produção. A alienação é estimulada
por consequência da propriedade privada, da divisão do trabalho
e da produção material, que se dá sobre o sujeito, através de uma
atividade prática, o trabalho, ou o seu produto, a mercadoria – por isso
as várias referências de Engels ao Capital de Karl Marx. A alienação
é a situação na qual o material – como o dinheiro ou a mercadoria
que foi produzida – é exterior e abstrato ao trabalhador, mas que é
dotado de um valor “idealizado”, que passa a ser essencial na vida
humana. Essa representação é uma força efetiva sobre a ação humana,
passando assim a determinar a existência social, representando
consequentemente um pensamento passivo desse em relação
a sua situação, sendo alienado, sem a consciência de si. Isso leva
posteriormente a uma crescente exploração do trabalhador – através
da mais-valia e expropriação – já que não participa conscientemente do
processo produtivo, além de uma indução fetichista a partir da aparência
material. Essa situação paradoxal pode ser ilustrada, por exemplo, em
um trabalhador que produz determinado produto de alto valor e desejo
de consumo em sua sociedade, mas esse mesmo trabalhador não
só não possui poder aquisitivo para possuir aquilo que o seu próprio
Uniube 13

trabalho produziu, como permanece inserido nessa lógica limitante,


em busca de satisfazer materialmente os seus anseios que nunca
são alcançados. Portanto, o trabalhador não possui consciência de si,
de sua situação de exploração, nem mesmo possui a consciência de
classe em poder observar que há milhares de outros trabalhadores em
situação semelhante a sua.

Essa alienação pode corresponder também não só à estrutura (instituições


político-sociais, na qual há o conjunto das forças produtivas e das relações
sócias de produção), mas como uma subjugação dos indivíduos à
superestrutura (religião seria, para Marx, a alienação humana no nível
superestrutural), que são nada mais do que as formas de consciência
social (como moral, religião, metafísica etc.), já que a superestrutura
influencia e determina a estrutura. Assim, Marx afirma que a supressão
da alienação é a condição fundamental da emancipação política e social
dos indivíduos. E o rito do casamento pode ser lido também como uma
esfera de dominação e subjugação, sacramentada pela moral religiosa
e pelas leis.
Acabava de surgir, no entanto, uma sociedade que, em
virtude do conjunto de suas condições econômicas,
havia sido obrigada a dividir-se em homens livres e
escravos, em exploradores ricos e explorados pobres,
uma sociedade em que os referidos antagonismos não
só podiam ser conciliados, como também tinham de
ser levados a seus limites extremos. Uma sociedade
desse tipo não podia subsistir senão em meio a uma luta
aberta e permanente dessas classes entre si ou sob a
dominações de um terceiro poder que, aparentemente
situado acima das classes em luta, reprimisse esses
conflitos abertos e só permitisse que a luta de classes se
travasse no campo econômico, numa forma dita legal.
A organização gentílica já havia chegado ao fim de sua
existência. Foi destruída pela divisão do trabalho que
dividiu a sociedade em classes. Foi substituída pelo
Estado. (ENGELS, 2009, p. 208).
14 Uniube

E o que dizer quando a alienação e a expropriação ocorrem sobre


aquele que tudo produz e não recebe, nem ao menos, um básico
salário? Quais os efeitos de concentração de renda e submissão
quando há trabalho escravizado?

Parada para reflexão

Você se lembra de um certo jusnaturalista iluminista que também pautou a


questão da propriedade privada? Se você pensou em Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), está correto! Para o pensador genebrino, “O verdadeiro fundador
da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se
de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.”
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao
gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor;
estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra
não pertence a ninguém!” (ROUSSEAU, 1973, p. 265).

1.3
Economia, sociedade e política no Brasil colonial

O historiador marxiano, economista e advogado Caio da Silva Prado


Júnior (1907-1990), preso político durante a ditadura de Getúlio Vargas,
forneceu importantes interpretações sobre a história do nosso país,
como A Formação do Brasil Contemporâneo, publicada em 1942 e A
História Econômica do Brasil, publicada em 1945. Apesar de serem
datadas e superadas em muitos pontos pela historiografia posterior,
suas obras continuam relevantes como fontes de informações e
ferramentas de pensamento crítico e análise sobre um longo período
da história nacional, indo desde a invasão portuguesa em 1500 à
“revolução burguesa” de 1930.
Uniube 15

Em A Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior (2009)


oferece uma explicação sobre a constituição e formação do país e
suas consequências para a contemporaneidade. E busca elencar
a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 e a
emancipação política de 1822 como etapas decisivas para nossa
“evolução”, esses momentos marcam avanços no aspecto social,
político e econômico na formação histórica do Brasil.

Para o autor, mesmo que o Brasil seja um organismo em ativa transformação


– lembrando que, na época, o nosso país passava pelo início de um
processo de êxodo rural e industrialização durante a II Guerra Mundial
–, mantivemos pontos comuns com o nosso passado: trabalho livre,
mas ainda com altas taxas de informalidade; produção extensiva para
o mercado externo; um mercado interno oscilante e a subordinação
da econômica nacional ao capital estrangeiro. Para Caio Prado Júnior,
não completamos a evolução da economia colonial para a economia
nacional, permanecendo ainda arcaicos nas relações sociais, nos
sistemas de produção e nos sistemas de comunicação que predominam
na sociedade brasileira.

Se isso era uma realidade no Brasil de 1940, assim se mantém no Brasil


de 2020: ainda somos um país patriarcal, patrimonialista, machista,
misógino, racista – estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas
que nos acompanham desde a invasão portuguesa e nossa colonização;
ainda, passamos atualmente por um processo de desindustrialização,
na qual as produções industriais e tecnológicas possuem cada vez
menos peso em nossa economia, dominada politicamente pelos
representantes do setor agropecuário que, historicamente, desmobilizam
os projetos de industrialização do país em prol de suas commodities:
matéria-prima em estado bruto, de baixo valor agregado e que reforçam
nosso subdesenvolvimento e agravam a dependência econômica e
tecnológica ao mercado externo; por fim, somos um país em que há
forte concentração da mídia (TV, rádio, jornais impressos ou on-line etc.),
16 Uniube

com a formação de oligopólios e monopólios dominados por poucas


empresas familiares, desqualificando a nossa democracia, uma vez que
não há pluralidade ou diversidade de informações e análises ofertadas
à maior parte da população.

Parada para reflexão

Maior exemplo nesse quesito, a família Marinho, proprietária do Grupo


Globo, além de possuir a maior audiência da TV aberta, garantida pelo seu
sinal que atinge quase todo o território nacional, possui jornal impresso (O
Globo), jornal on-line (G1), canal em TV fechada (GloboNews e outros) e
rádios AM e FM. Você sabe citar outros exemplos? Quais? Você sabia que a
família Macedo controla, além do Grupo Record, a Igreja Universal do Reino
de Deus e o Partido Republicano Brasileiro (PRB)? Ou que a TV Gazeta
Alagoas (afiliada ao Grupo Globo), jornais e rádio FM pertencem à família
alagoana de Arnon de Mello, pai do ex-presidente e atual senador Fernando
Collor de Mello?! O mesmo acontece com o grupo Massa, de propriedade
do apresentador “Ratinho” no Paraná, com TV afiliada ao SBT e jornal; ou
o grupo RBA de Comunicação no Pará, de propriedade do senador Jader
Barbalho, que aglomera uma TV afiliada ao Grupo Globo, jornal e rádio.
Quais são as consequências de um sistema de comunicação concentrado
nas mãos de poucas famílias e que possuem interesses econômicos e
políticos particulares? Que tipo de informação ou análise esses veículos de
mídia fornecem? Até onde vai a liberdade e autonomia de um empregado, por
exemplo, um jornalista ou apresentador, quando a matéria não está alinhada
à pauta definida pelo empregador?
Uniube 17

1.3.1 A economia colonial

Uma das primeiras preocupações de Caio Prado Júnior (2009) foi


precisar o da colonização portuguesa no Brasil. Portugal, estado
formado em 1143 e consolidado em 1383 com a Revolução de Avis,
após conquistar a cidade estratégica de Ceuta em 1415, passou
a incentivar as pesquisas marítimas na Escola de Sagres. Com o
estabelecimento de feitorias ao longo da costa africana e a contínua
superação de rotas e seus limites, como quando Bartolomeu Dias
contornou o Cabo da Boa Esperança em 1488, a expansão marítima
portuguesa, via parceria entre o estado monárquico e as empresas
mercantilistas, tornou Portugal uma das principais potências nesse
quesito, um vasto império marítimo e colonial e em competição com as
monarquias espanhola, francesa e inglesa.

Para o autor, o mercantilismo, fruto das transformações econômicas


na Europa ocidental que resultaram na centralização dos estados e
no desenvolvimento dos mercados internos, determinou o sentido
da colonização brasileira: exploração para o comércio da metrópole.
Ou seja, o tipo de colonização de povoamento que ocorreu na Zona
temperada, tal como ocorreu nos Estados Unidos, não foi o mesmo
que ocorreu nas Zonas tropicais, habitat visto como inadaptável para
os possíveis colonos europeus.
A colonização dos trópicos toma o aspecto de uma
vasta empresa comercial, destinada a explorar os
recursos naturais em proveito do comércio europeu.
Este é o sentido da colonização que explicará
os elementos econômicos, políticos e sociais da
formação e evolução dos trópicos. (PRADO JÚNIOR,
2009, p. 29).

No caso brasileiro, as primeiras décadas após a invasão portuguesa


foram inteiramente voltadas para o abastecimento do mercado europeu,
na qual o primeiro produto foi o pau-brasil, que, aliás, outras nações
18 Uniube

e empresas mercantis também passaram a explorar. As capitanias


hereditárias, criadas somente em 1534, fracassaram. Diante do
isolamento, da falta de investimentos e dos recursos por parte da
Coroa, da incapacidade administrativa dos donatários e seus capitães,
assim como a resistência indígena e os ataques de corsários, das
quatorze capitanias apenas duas se mantiveram: São Vicente e
Pernambuco, através das incipientes produções de açúcar. Apesar da
tentativa portuguesa em mudar o cenário, criando então um Governo-
Geral em 1549 e fundando a capital em Salvador, nem mesmo essa
medida impediu a invasão francesa na Baía da Guanabara em 1555
ou o ataque holandês a Salvador em 1604, uma prévia das investidas
que retornaram com mais força duas décadas depois.

Ou seja, ao contrário da colonização de povoamento que foi estabelecida


em outras colônias, a formação colonial brasileira se constituiu, em um
primeiro momento, do mais simples extrativismo costeiro. Depois, com
a economia açucareira, as amplas faixas de terra demandavam uma
intensa mão de obra que trabalhasse pelo donatário, já que não havia
uma população a ser contratada – não que isso fosse interessante,
afinal, reduziria o lucro e dificultaria e extração e exploração máxima dos
recursos possíveis. É assim que surgem as plantations e a necessidade
da escravização de indígenas e o tráfico de escravizados africanos
para trabalharem nos latifúndios e monoculturas. E se a escravização
permaneceu por mais de trezentos anos, até 1888, a nossa relação
econômica agrária, extrativista e mineradora, totalmente focada no setor
primário, assim permaneceu até 1930, voltada a abastecer o mercado
internacional: depois do pau-brasil e do açúcar, vieram o algodão, o
tabaco, o ouro e os diamantes, para depois serem superados pelo café
e pela borracha.

Dado, pois, o sentido da nossa colonização, há o essencial para


compreensão da política econômica para a Colônia, subordinada
a fornecer gêneros tropicais e minerais para a metrópole. O nosso
Uniube 19

principal setor, a agricultura, foi organizada em torno de três aspectos


que se repetem em outras colônias: 1) a grande propriedade; 2) a
monocultura; 3) o trabalho escravizado. A estrutura agrária, centrada no
engenho ou na Casa-Grande, que Caio Prado Júnior chama de a grande
unidade produtora e possuía um grande número de escravizados e
trabalhadores subordinados sob ordem do “empresário”, surgem
unicamente para a produção de gêneros de grande valor comercial
no mercado externo, calcada em uma exploração não diversificada e
sem alto nível técnico. Importante destacar que o trabalho escravizado
não foi apenas uma alternativa encontrada pelos colonos portugueses
para a exploração agrária no Brasil, mas também um lucrativo tráfico
para a Coroa. Não à toa, “cerca de um terço da população colonial
era composta de escravos negros” (PRADO JÚNIOR, 2009, p. 122),
que se somam ainda aos egressos do sistema escravocrata, pelo
grande contingente de trabalhadores livres, sem posição econômica
e social definida na sociedade estamental colonial e monárquica.
Toda essa estrutura era voltada exclusivamente ao setor primário, na
qual outros empreendimentos brasileiros, que porventura surgisse
de forma independente aos interesses da metrópole, eram cessados
pela administração portuguesa, como ocorreu com as manufaturas
nacionais, a siderurgia e até mesmo com a produção de sal. E qual foi a
consequência de toda essa configuração para a evolução econômica do
país, quando não há um sistema organizado de produção e distribuição
de recursos para a subsistência material dela própria, uma vez que toda
produção e renda é voltada para acumulação de capital e ao mercado
externo?
Uma evolução cíclica, tanto no tempo como no
espaço, em que se assiste sucessivamente a fases
de prosperidade estritamente localizadas, seguidas,
depois de maior ou menor passo de tempo, mas
sempre curto, do aniquilamento total [...] de cada
uma e de todas as áreas povoadas e exploradas do
país. Uma conjuntura internacional favorável e um
produto qualquer que é capaz de fornecer, impulsiona
o seu funcionamento e dá a impressão puramente
20 Uniube

ilusória de riqueza e prosperidade. Mas basta que


aquela conjuntura se desloque, ou que se esgotem
os recursos naturais disponíveis, para que aquela
produção declina e pereça [...] O que fica atrás
são restos, farrapos de uma pequena parcela de
humanidade em decomposição. (PRADO JÚNIOR,
2009, p. 127-128).

Ou seja, não há consolidação dos empreendimentos, não há desenvolvimento


econômico e toda aquela riqueza gerada é expropriada pelas unidades
produtoras, nesse momento, em prol da Coroa.

1.3.2 Escravidão e o clã patriarcal

Para Caio Prado Júnior, a vida social e política foram determinadas pelo
sentido da colonização portuguesa. A criação de uma vasta empresa
comercial voltada à exploração dos recursos naturais, à qual se juntaram
três “raças” e culturas largamente díspares: “brancos europeus, negros
africanos, indígenas do continente” (PRADO JÚNIOR, 2009, p. 341). E
o que tornava a sociedade colonial uma estrutura organizada? Quais
eram os laços e as relações sociais que a formaram?

Em primeiro lugar, é importante destacar que o modelo de família


que se formou na Colônia foi o patriarcal, que mesclou elementos do
feudalismo português e desse com as influências mulçumanas dos
tempos da invasão árabe na Península Ibérica. Portanto, no Brasil,
o homem, o pai, o patriarca, é o senhor e chefe do clã, dos parentes
com laços de sangue ou por rito religioso (casamento, batismo), aquele
também que exerce total controle sobre os bens econômicos e ações
sociais da família – por exemplo, definindo o casamento de seus filhos
e filhas não com base ao respeito à escolha individual ou afeto, mas
com base nas alianças familiares e proveitos financeiros.
Uniube 21

O autor identifica o embrião dessa instituição familiar, o patriarcalismo,


nas instituições portuguesas, mas que, em nossa experiência, adotou
especificidades próprias. Segundo Prado Júnior (2009), a organização
desenvolvida era determinada pelo nosso regime econômico, a
dominação desses patriarcas sobre a riqueza colonial, unidade que
passa a se relacionar materialmente e socialmente com outros grupos,
como homens livres e escravizados. Nesse jogo de relações, aliado
à distância da autoridade e da administração pública, esta é obrigada
a reconhecer a autonomia do grande proprietário, o senhor rural,
como aquele que realmente possui autoridade e prestígio. Ainda, para
solidificar todo esse sistema de dominação, a Igreja Católica oficializava
títulos e ritos, sancionando novas relações e posições, tais como o
batismo com seus padrinhos, afilhados e compadres.

E para o autor, a escravidão foi o núcleo central que sustentou o que


mais de sólido houve de organização no Brasil colonial. Caio Prado
Júnior (2009) toma a escravidão como chave fundamental para pensar
a formação nacional em todos os seus aspectos. Se por um lado a
escravidão tinha uma função produtiva, por outro, atuava também
nos serviços domésticos e, por vezes, com grande quantidade de
escravizados desempenhando essas funções.

A escravidão desempenhava dois conjuntos de funções: de um lado,


o fator trabalho, de outro, o fator sexual e as relações de família
que daí resultam. Ambos, puramente materiais e elementares, “não
frutificaram numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas
para momentaneamente conservar o nexo social da colônia” (PRADO
JÚNIOR, 2009, p. 342). Para o autor, os costumes sexuais da colônia
estavam relacionados à escravidão, à instabilidade e à insegurança
econômica, mas também assentados nas relações de dominação sobre
mulheres e “raças” – ou seja, dominação de gênero e racial sobre as
nações indígenas e africanas escravizadas. Diz Caio Prado Júnior
que a constituição da família no Brasil, na massa da população, não
22 Uniube

possuía bases sólidas e estáveis, devendo ainda ser contabilizada


a dificuldade financeira e logística para o casamento nas camadas
inferiores. Com exceção, ainda que limitado e deficiente, estavam as
classes superiores da Casa-Grande. Nesse caso, que correspondia à
mínima parte das constituições familiares naquele tempo, o núcleo é a
família, mas “a família do senhor” (PRADO JÚNIOR, 2009, p. 351), um
sistema de vida na qual há relações sexuais irregulares e com uso de
violência sobre as mulheres africanas escravizadas, pontuando o autor
a questão da formação educacional, moral e disciplinar que estavam
limitadas às gerações coloniais.

Portanto, para Caio Prado Júnior (2009), o “clã patriarcal” era a principal
unidade econômica, social e administrativa, fundada principalmente
no meio rural. Um dos aspectos a ser tomado em relação ao “clã
patriarcal” foi a relação sexual entre escravizados e colonizadores, que
estimulou o surgimento de novos personagens sociais que, em parte,
irão compor o contingente de homens livres da sociedade escravocrata,
indivíduos isolados e marginalizados, como os “tapuias”, “caboclos”,
“agregados”, “moradores de engenho”, “vadios” e tantos outros. Essas
“subcategorias” sociais compuseram a massa popular, situada nos
extremos sociais da Colônia ao Império, mas mantendo sempre as
características da antiga estrutura do sistema de produção colonial.

Essa questão do ambiente doméstico e da escravidão é tão importante


que diversos estudiosos e pesquisadores já debruçaram sobre esse tema,
dentre eles o mais conhecido é Gilberto Freyre (1900-1987). Mas, para
efeitos de uma análise mais atual, Jessé de Souza (2003), um atuante
sociólogo brasileiro, traz em sua tese a singularidade da formação social
brasileira, a instituição da escravização como fio condutor de análise para
compreender a constituição de uma modernidade tipicamente brasileira.
Para o autor, mais do que os interesses organicamente articulados para
sua manutenção e abrangência sobre o território nacional, a escravização
determinou o modo de vida peculiar dos indivíduos livres no Brasil. Para
Uniube 23

Souza (2003), a forma peculiar desenvolvida se remete à vinculação entre


despotismo e proximidade, enorme distância social e íntima comunicação,
baseada numa herança da estratégia política e psicológica de dominação
implementada pelos portugueses, ligada à experiência de “escravidão
mulçumana”. Ambos se relacionam e proporcionam, num jogo simultâneo,
a distância e a segregação com proximidade e intimidade. Mas como
reforçado por Jessé de Souza, não se limita ao sistema escravocrata e
ao Brasil Colônia, mas também ao Brasil moderno. Essa particularidade
brasileira, frente a outras colônias dominadas por metrópoles escravagistas,
traz distinções sociologicamente significativas e traços de diferenciação
política e cultural que dizem muito sobre a nossa formação social.

Observe a Figura 1, a seguir:

Figura 1 – Um funcionário a passeio com sua família, 1839

Fonte: Pintura de Jean Baptiste Debret (1768-1848).

O importante artista francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) foi


responsável por retratar dezenas de imagens do Brasil colonial,
hoje já sob domínio público. Compondo a Missão Artística Francesa,
24 Uniube

patrocinada pela família real, publicou a obra Viagem Pitoresca e


Histórica ao Brasil, entre os anos de 1834 e 1839. A imagem mostra a
formação comum da sociedade monárquica, fundada no patriarcalismo
e nas hierarquias. Na pintura, o homem à frente, um funcionário,
provavelmente da Coroa e até mesmo, possivelmente, com título
nobiliárquico, ou seja, pertencente à aristocracia. Em fila indiana,
o homem guia sua família pela rua ao sair de sua casa, seguido
pelas crianças, a esposa, provavelmente a ama de leite e demais
escravizados, retratando o papel do status social que compunha aquele
núcleo social e cada um dos indivíduos.

Conclui Caio Prado Júnior (2009), ao apontar que outro fato fundamental
da formação contemporânea da sociedade brasileira foi quando o
grande proprietário compra seu título e se aristocratiza. Assim, estão
reunidos todos “os elementos que constituem a base e a origem de
todas as aristocracias: riqueza, poder e autoridade. A que se unirá a
tradição, que a família patriarcal, com a autoridade política absoluta
do chefe, dirigindo e escolhendo os casamentos, assegura” (PRADO
JÚNIOR, 2009, p. 287).

1.3.3 Administração política, militar e fazendária

Caio Prado Júnior (2009) analisou também as constituições que


percorrem a administração do Estado brasileiro ainda na época colonial.
O autor traz a organização militar, administrativa, jurídica, fazendária
e, brevemente, a questão clerical. Segundo o autor, a administração
colonial era organizada pela monarquia portuguesa a partir das
Ordenações Filipenas (1643). Baseado em um sistema assimétrico,
havia na Colônia a alta concentração e centralização de poder nas
sedes e capitais, que levou à enorme disparidade em relação à atuação
da administração nos locais mais afastados (PRADO JÚNIOR, 2009,
p. 300).
Uniube 25

Observe a Figura 2, a seguir:

Figura 2 – Organograma da administração política

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Prado Júnior (2009, p. 302-307).

O Conselho de Secretário de Estado do Governo, formado pelos


secretários de Estado, Negócios, Marinha e Domínios Ultramarinos,
estava acima do Conselho Ultramarino (assuntos relativos à colônia) e da
Mesa de Consciência e Ordens (assuntos eclesiásticos). O governador
de capitania era uma “figura híbrida”, que englobava assuntos
relacionados à Justiça e das armas; a instância “Relações” englobava
órgãos judiciários e administrativos; as “Juntas de Arrecadação”
correspondiam aos órgãos fazendários; as “Mesas de Inspeção” e as
“Intendências de Ouro e Diamantes” eram subordinadas diretamente
ao Conselho Ultramarino e à Coroa, não recebendo intervenção, pelo
menos legal, dos governadores. Na colônia, os órgãos, muitas vezes
não seguiam uma rigidez hierárquica e, segundo o autor, “todas estas
limitações da autoridade do governador são consequência do sistema
geral da administração portuguesa: restrição de poderes, estreito
controle, fiscalização opressiva das atividades funcionais” (PRADO
JÚNIOR, 2009, p. 307).
26 Uniube

E em relação à administração jurídica, para Caio Prado Jr,


confusão de poderes e atribuições que hoje nos
parecem substancialmente distintos. Não só se ocupam
dos negócios de ambos (justiça e administração) os
setores as mesmas autoridades, como não há diferença
substancial no seu modo de agir num e noutro terreno.
(PRADO JÚNIOR, 2009, p. 311).

Observe a Figura 3, a seguir:

Figura 3 – Organograma da administração política

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Prado Júnior (2009, p. 302-307).

As “Relações” funcionavam sob a presidência do governador da


capitania (vice-rei do Rio de Janeiro) e contavam com “agravistas”,
“procuradores” e “juiz da coroa”, todos exercendo função atualmente
semelhante a de um desembargador; a “Comarca” era representada
por um corregedor e pelos ouvidores (nomeados pelo soberano),
sendo hierarquicamente superior à Câmara e demais juízes; o
“Senado da Câmara” tinha sede nas vilas ou cidades, representando
a administração local. Esta era composta por um “juiz-de-fora”
(presidente da Câmara, nomeação régia, remunerado), por dois juízes
ordinários, três vereadores e um procurador (cidadãos leigos eleitos,
sem remuneração); havia nomeações por parte da Câmara, o “juiz
almotacel” (responsabilidade de fiscalizar o comércio e gêneros de
primeira necessidade) e pelo “juiz vintenário”.
Uniube 27

Já para a organização fazendária sobre o Erário Real, diversos


órgãos paralelos eram responsáveis pela arrecadação dos tributos
e efetuação das despesas nas capitanias do Brasil. A “Junta de
Arrecadações” englobava vários órgãos, como as juntas próprias de
cada capitania. Havia a “Junta da Fazenda”, órgão colegiado e presidido
pelo governador. Havia também a “Junta Arrecadação do Subsídio
Voluntário” e a “Alfândega”, esta destinada à arrecadação de direitos
de importação. Um órgão, parcamente fiscalizador, era o “Tribunal da
Provedoria da Fazenda”, responsável pelas procuradorias fiscais e
tributos da colônia.

Figura 4 – Organograma da administração militar

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Prado Júnior (2009, p. 308-310).

Por fim, a organização das forças militares se baseava em critérios de


etnia, (português ou “brasileiro”), cor (branco, mulato, pardo, negro); se
observava também diferenças regionais na composição e nomenclaturas
das forças, por exemplo das “tropas urbanas” e do “capitão-de-mato”
na Bahia.

A primeira força era a “Tropa de Linha”, formada quase em sua totalidade


por regimentos portugueses, aceitando voluntários e recrutando
brancos para suas linhas. As “Milícias” eram tropas auxiliares, formadas
através do serviço militar obrigatório da população da colônia, não
28 Uniube

remunerado, sendo sua base territorial a da “Freguesia”; os “Corpos


de Ordenanças” eram a 3ª linha, formada pelo resto da população
masculina entre 18 e 60 anos, na qual todos os residentes do local eram
considerados aptos. As “Ordenanças” eram compostas pelos “terços”,
comandadas pelo capitão-mor; pelas “companhias”, comandadas por
capitão, tenente e alferes (sargento); e pelas “esquadras”, comandadas
por um cabo.

Para Caio Prado Júnior, a administração portuguesa no Brasil colonial


era caracterizada pela
falta de organização, eficiência e presteza do seu
funcionamento. Isto sem contar os processos brutais
empregados, de que o recrutamento e a cobrança dos
tributos são exemplos máximos e índice destacados
do sistema geral em vigor. A complexidade dos
órgãos, a confusão de funções e competência; a
ausência de método e clareza na confecção de
leis, a regulamentação esparsa, desencontrada e
contraditória; o excesso de burocracia dos órgãos
centrais que se acumula um funcionalismo inútil e
numeroso (...); a centralização administrativa (...);
tudo isto, que vimos acima, não poderia resultar
noutra coisa senão naquela monstruosa, emperrada e
ineficiente máquina burocrática que é a administração
colonial. (PRADO JÚNIOR, 2009, p. 331).

É importante sempre destacarmos que todos esses cargos e funções


eram desempenhados por governadores, senhores de terra e seus
próprios familiares, estamento majoritariamente aristocrático da sociedade
brasileira. Os poderes político, militar, jurídico e econômico estavam
sempre concentrados nas mãos de poucos funcionários, tornando
indistinta qualquer divisão de poderes na vida cotidiana. Até mesmo
a questão clerical, para Caio Prado Júnior (2009), assumiu tamanha
importância na esfera pública que se emparelhava à administração civil,
sendo difícil a distinção prática entre uma e outra. E veremos no próximo
capítulo um pouco mais de como essa concentração de poder, aliada à
violência, pode ser observada no período Imperial, mais especificamente
no Vale do Paraíba ao final do século XIX.
Uniube 29

1.4
Considerações finais

Por mais de trezentos anos, a economia colonial foi voltada exclusivamente


à exploração agrária, extrativista e mineradora. De um lado, uma
produção organizada entorno da grande unidade produtora, com seu
latifúndio, monocultura e trabalho escravizado, ocasionando em enorme
concentração de riqueza: afinal, não há salários a serem pagos nem
lucros a serem divididos. Por outro, a organização econômica voltada
para o mercado internacional, como simples fornecedora para o
comércio da Coroa e suas companhinas empresariais. Para Caio Prado
Júnior (2009), a estrutura da economia colonial brasileira foi centrada
na grande unidade produtora, um pequeno número de empresários
que senhorearam uma grande massa da população escravizada que
lhe serviu de mão de obra, objetivando o funcionamento enquanto
fornecedor de gêneros primários para o comércio internacional, em uma
evolução que visa somente à exploração extensiva e especuladora,
instável no espaço e tempo, dos recursos naturais do país.

Para o autor, a pobreza dos vínculos sociais e as forças dispersivas, em


uma sociedade totalmente servil, fazem com que a nossa sociedade
colonial possa ser definida enquanto desagregadora e inerte, que
justamente garantiram a estabilidade da estrutura colonial:
Para manter a precária integridade do conjunto,
bastaram os tênues laços materiais primários,
econômicos e sexuais, ainda não destacados de seu
plano original e mais inferior, que se estabelecem
como resultado imediato da aproximação de
indivíduos, raças, grupos díspares, e não vão além
deste contacto elementar. É fundada nisto, e somente
nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra
da colonização pôde progredir. (PRADO JÚNIOR,
2009, p. 343).
30 Uniube

E “enquanto a classe oprimida, ou seja, o proletariado em nosso caso,


não estiver ainda madura para promover ela mesma a emancipação,
a maioria de seus membros reconhecerá a ordem social existente
como a única possível [...].” (ENGELS, 2009, p. 213). Marx e Engels
acreditavam que deveria haver uma transformação da consciência
de classe da esfera em si, para si. A classe social dos trabalhadores
passaria e deter os meios de produção e se organizariam politicamente
para defender seus interesses como classe. A formação de partidos
e sindicatos seria imprescindível como forma de organização para
uma revolução, fundada nos conflitos entre as forças produtivas e
nas estruturas econômicas, sociais e políticas, na qual a sociedade
comunista seria orientada pela liberdade e não alienação; um sistema,
regulado pelas necessidades humanas, voltado para emancipação
individual e coletiva, possibilitando o desenvolvimento de todas as
faculdades do ser social.

Resumo

Vimos conceitualmente nesse capítulo como a formação e a perpetuação


de um Estado pode estar relacionada ao tipo de família, a orientação
econômica e ao tipo de propriedade que nele existe. Engels mostra
como a constituição familiar e o casamento constituem desdobramentos
de dominação e atividade econômica, e como tal, no estágio “civilizado”,
adquire a feição patriarcal e monogâmica. Essa unidade social
passa a ser também a unidade econômica que ascende ao Estado
para a garantia de suas posses e de manutenção das relações já
estabelecidas. É essa a família que ocupará as principais posições
do Estado moderno e ditará a forma pela qual a sociedade seguirá.
No Brasil, a família patriarcal e aristocrática foi a mesma unidade que
assumiu as propriedades econômicas e expropriou, de milhares de
Uniube 31

indígenas e africanos escravizados, o seu trabalho, a sua crença, suas


relações sociais, suas mercadorias e suas rendas. Essa mesma unidade
ocupou os postos de administração colonial, da administração monárquica
e imperial, repartindo todos os cargos com seus familiares, de sangue,
batismo ou por aliança matrimonial. É essa família que ascendeu aos
postos do Estado e que continuou governando para si, alienando toda a
massa popular que era aquela que trabalhava e produzia toda a renda.
É também essa família que, mais à frente, criará os principais partidos e
encabeçará a defesa dos seus próprios interesses ocupando o Estado,
fazendo-se valer de seus filhos, bacharéis em Direito formados no Brasil
ou no exterior, assim como das intensas redes de parentesco que foram
sendo criadas.

Referências
BARBOSA, Alexandre Freitas. O mercado de trabalho antes de 1930: emprego e
“desemprego” na cidade de São Paulo. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo,
n. 80, p. 91-106, 2008.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 1998. v. 1.

CHAVES, Marcelo Antônio. Perus dos operários na construção de São Paulo


(1925-1945). Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2012.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.


3. ed. São Paulo: Escala, 2009.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2007.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e


desenvolvimento urbano. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
32 Uniube

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora


Brasiliense, 2009.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

SOUZA, Jessé de. A construção social da subcidadania: para uma sociologia


política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2003.
Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 2

Pensamento
weberiano,
sociedade e
política no
Brasil imperial
(séc. XIX)
Filipe Moreno Horta
Introdução

Não é possível compreender adequadamente a democracia,


os partidos políticos, a ação parlamentar e demais pontuações
sobre o funcionamento da política na sociedade moderna
sem levarmos em conta aspectos constitutivos dessa mesma
população em seu território. Não é possível compreender
analiticamente, seja na área do Direito, da Ciência Política
ou da Sociologia, de que forma se dá a configuração política
de uma comunidade, muito menos as possibilidades de ação,
se não nos atermos a sua constituição, às etapas de sua
formação no processo histórico. Paralelamente, é inócua
também uma política pública ou lei que, ao ser elaborada,
não leve em consideração as mesmas particularidades.

E por que atualmente falamos em “afilhado político”,


“apadrinhamento” e “patrimonialismo”? Por que os editais de
concursos públicos se preocupam em evitar o nepotismo e
outras formas corruptivas à democracia, às práticas constantes
em regimes monárquicos e aos governos autocráticos? Pois
bem, neste capítulo retomaremos alguns conceitos da teoria
política de Max Weber para um diálogo com uma importante
obra sociológica que analisa uma etapa da formação social
e política brasileira.

Saiba mais

Segundo Norberto Bobbio (1998), a corrupção é, em geral, a ação na


qual um funcionário público age de modo diverso aos padrões normativos
do Estado, favorecendo interesses particulares em troca de algum tipo
de recompensa material ou imaterial, para si ou para terceiros. Uma
36 Uniube

forma de corrupção é, justamente, o nepotismo, quando há concessão de


empregos ou contratos públicos baseados não no mérito, mas nas relações
de parentela. É por isso que, em vários setores do funcionalismo público, o
servidor possui estabilidade de seu emprego. Imagine se, a cada governo,
toda a máquina pudesse ser preenchida com partidários e parentes do chefe
político. Imagine se não houvesse concurso público e todos os cargos fossem
por indicação. Imagine se um gestor mal-intencionado pudesse simplesmente
demitir aquele servidor que não acatasse as ordens ilegais solicitadas por
seu chefe. Funcionalismo público com estabilidade e escolhidos por concurso
público são garantias do Estado permanente contra os governos temporários
e seus excessos e práticas corruptivas.

Objetivos
Estado, poder, violência e patrimonialismo são conceitos utilizados
frequentemente nas Ciências Humanas, sobretudo nas Ciências
Sociais e Ciências Sociais Aplicadas.

Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja


capaz de identificar os termos trabalhos, assim como possa perceber
a diferença analítica que há entre as teorias – principalmente as
europeias – para a realidade de cada local e os contextos históricos
e sociais presentes em um estudo de caso.

São objetivos deste capítulo:

• correlacionar os conceitos vistos a partir de novos conteúdos;


• apresentar os conceitos de Estado, patrimonialismo, poder e
violência em Max Weber;
• correlacionar os conceitos vistos a partir de um estudo de
caso da realidade brasileira.
Uniube 37

Esquema
2.1 Estado, poder e violência em Max Weber
2.2 Dominação pessoal e formação do Estado moderno brasileiro
2.2.1 Tropeiros e vendeiros: favores e serviços
2.2.2 Sitiantes: compadrio e poder político
2.2.3 Agregados e camaradas: ruptura da associação moral
2.2.4 Dominação patrimonial, administração e burocracia no Estado
2.3 Considerações finais

Nem sempre o fato de algumas pessoas terem em comum


determinadas qualidades ou determinado comportamento ou se
encontrarem na mesma situação implica uma relação comunitária.

Maximilian Weber

2.1
Estado, poder e violência em Max Weber

Quando falamos em Ciência Política, em Sociologia e, principalmente,


em Sociologia Política, pensamos rapidamente em um dos autores
clássicos que moldaram não apenas o debate acadêmico europeu,
mas que também subsidiou as análises sobre o Brasil contemporâneo
realizadas por autoras e autores nacionais. Vimos em Fundamentos de
Filosofia e Sociologia a biografia e as principais contribuições de Max
Weber, um dos intelectuais mais versáteis de sua época, que deixou um
legado de análises nos mais diversos campos do conhecimento: Ciência
Política, Direito, Economia, Filosofia, História e Sociologia, passando
também por múltiplos estudos culturais que trataram desde a religião a
até a música clássica. Naquela oportunidade, um dos conceitos vistos
foi o de poder. Voltaremos a ele antes de prosseguirmos.
38 Uniube

A formação do Estado moderno é uma das grandes preocupações


analíticas de Max Weber. Em um ponto nevrálgico de sua teoria, o
conceito de Estado articula não apenas outras palavras-chaves para o
pensador, tais como “vocação” ou “burocracia”, mas principalmente o
poder, a legitimidade, a dominação e a coação física legítima – a violência.

Como alertado por Santos e Aidar (2018) , poder e dominação não são
sinônimos. Segundo Weber, poder é “a probabilidade de impor a própria
vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência
e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (2015, v. 1, p.
33). Devemos observar que, além da capacidade de submeter alguém
àquele que executa a ação, o poder também é relacional – não à toa nos
leva às “relações de poder” em Michel Foucault, uma vez que o poder
não se possui por si só, se exerce, é ação e é relação – precisa estar em
movimento. Para Weber, só existe poder se há alguém para exercê-lo e
outro para ser submetido a ele, e os meios de alcançá-lo são diversos:
desde o emprego da simples violência até a propaganda
e o sufrágio por procedimentos rudes ou delicados:
dinheiro, influência social, poder da palavra, sugestão
e engano grosseiro, tática mais ou menos hábil de
obstrução dentro das assembleias parlamentares.
(WEBER, 2015b, p. 186).

Ou seja, como explicado por Barbosa e Quintaneiro (2002, p. 119), o


conceito de poder weberiano é amorfo, não se limita à circunstância
social específica, uma vez que a imposição da vontade de um agente
pode ocorrer em diversas situações. Ressaltamos que, para Weber, o
agente, o indivíduo que age, é a unidade de análise sociológica que
confere significado as suas ações – não à toa o autor apresentou a
“Sociologia Compreensiva” e foi enquadrado, por seus leitores, dentro
do quadro do “individualismo metodológico”. Portanto, difere totalmente
de Émile Durkheim ou Karl Marx, que viam a primazia da sociedade
sobre o indivíduo.
Uniube 39

E qual instituição social possui a prerrogativa de utilizar o poder


de forma mais abrangente e ostensiva sobre a sociedade e seus
indivíduos? O Estado. É importante relembrar o que foi sintetizado
por Santos e Aidar (2018) no capítulo A Política em Fundamentos de
Filosofia e Sociologia,
A necessidade de apresentar uma forma de gerir o
poder político é que será a responsável direta pelo
surgimento do terceiro e último estado: o civil. A
forma encontrada receberá o nome de Estado: uma
instituição social responsável por organizar a vida
coletiva, administrar o que é público, coordenar o
poder político e centralizar a formação das leis
(conjunto de valores importantes para o coletivo, que
deve ser observado por todos). Como o Estado não
existe fisicamente e não há a possibilidade de que ele
funcione sozinho, de maneira independente, cria-se
o Governo: a instância de administração executiva; o
núcleo diretivo do Estado. (SANTOS; AIDAR, 2018, p. 82).

E para Max Weber, o Estado exerce diferentes tipos de dominação


sobre os agentes sociais que compõem determinada sociedade,
fundada no instrumento da violência legítima. O autor é taxativo ao
afirmar que “o Estado só pode existir sob a condição que os homens
dominados se submetam à autoridade” (WEBER, 2015b, p. 526).

E como se dá essa dominação? Primeiro, é importante lembrar o


conceito geral de dominação do autor:
Por “dominação” compreenderemos, então, aqui,
uma situação de fato, em que a vontade manifesta
(“mandado”) do “dominador” ou dos “dominadores”
quer influenciar as ações de outras pessoas
(do “dominado” ou dos “dominados”), e de fato as
influências de tal modo que estas ações, num grau
socialmente relevante, se realizam como se os
dominados tivessem feito do próprio conteúdo do
mandado a máxima de suas ações (“obediência”).
(WEBER, 2015b, p. 191).
40 Uniube

A submissão do indivíduo a uma autoridade se dá por três vias:


dominação racional/legal, tradicional e carismática/afetiva. Para Weber,
a burocracia é a forma mais racional de dominação legítima, que se
baseará na crença, na legalidade e na racionalidade de uma ordem e
é a forma mais eficaz de exercer a dominação na vida social moderna.
A autoridade do Estado e de seus agentes está legitimada a partir da
dominação racional ou legal, ou seja, é a autoridade que se impõe pela
legalidade, pela crença em um estatuto legal, regras estruturadas de
forma racional e estabelecidas, ou em outras palavras, a autoridade
fincada na obediência, que reconhece obrigações (WEBER, 1979).
Ainda, segundo o autor, a máquina burocrática conseguiu despersonalizar
a relação entre o indivíduo e o seu cargo, privando os funcionários
burocratas de quaisquer meios de gestão do Estado, garantindo assim
a impessoalidade perante ao aparato estatal e perante a sociedade.

É importante frisar que a dominação legítima não se dá apenas no


campo político ou no funcionamento institucional do Estado, mas se
dá em todas as instâncias da vida coletiva. Como bem sintetizado por
Barbosa e Quintaneiro (2002), a dominação mantém a coesão social
também ao definir os conteúdos válidos e validados pelos participantes
das relações sociais, pautando suas atitudes subjetivas, que passam
a se orientar pela crença numa ordem, que também corresponde aos
interesses, valores e vontades dominantes de determinada sociedade.

É assim então que Max Weber passa a definir o Estado racional


ocidental moderno,
uma associação de dominação institucional, que
dentro de determinado território pretende com êxito
monopolizar a coação física legítima como meio
da dominação e reuniu para este fim, nas mãos de
seus dirigentes, os meios materiais de organização.
(WEBER, 2015b, p. 529).
Uniube 41

A dominação racional, originada na modernidade do Estado, deve-se


à necessidade de uma dominação organizada perante as novas
atribuições daquela instituição social e política, a qual se apoia em uma
máquina burocrática e que se utilizará da força física para assegurar a
estabilidade. Mas não só. Como visto em Marx, o Estado é controlado
por uma classe, e esta se utiliza de seus meios materiais de gestão para
permanecerem no poder. Weber não refuta tal caráter da composição
dos quadros estatais. Segundo o autor, os agentes lutam por seus
interesses e buscam aqueles locais em que possam acessar o poder
ou influir na sua distribuição, e não apenas visando retorno financeiro,
mas também prestígio e honras sociais que o pode pede proporcionar
– inclusive visando a interesses econômicos. (WEBER, 2015b).

Quais os meios materiais de gestão que podem exercer o monopólio da


violência legítima em uma sociedade?

2.2
Dominação pessoal e formação do estado nacional
brasileiro

Veremos agora um exemplo de como é possível empregar a análise


weberiana para analisarmos um caso real e nacional. Afinal, o Brasil e o
brasileiro precisam ser estudados, não é mesmo? E isso cabe justamente
às Ciências Humanas. Para este capítulo selecionamos a importante
obra da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na
ordem escravocrata, tese defendida em 1964 e orientada pelo também
sociólogo Florestan Fernandes, na Universidade de São Paulo (USP).
42 Uniube

A autora analisa as relações de dominação pessoal entre os diferentes


personagens da sociedade brasileira (fazendeiros, tropeiros, vendeiros,
condutores de tropa, camarada, sitiantes, agregados) principalmente
a figura do homem livre e pobre no sistema social monárquico na
região do Vale do Paraíba durante o século XIX, região cafeicultora
nas áreas do Rio de Janeiro e São Paulo. Importa destacar que, nessa
época, o nível de pobreza da região era significativo a ponto de não
haver muita distinção entre o homem abastado para o “roceiro”, na
qual uma das raras distinções eram notadas pelo vestuário. A situação
modifica-se à medida que as terras se aproximam da área fluminense:
em direção ao norte acentua-se a prosperidade, tornando-se frequente
os cafezais e as fazendas importantes. A região do Vale do Paraíba
representava uma forte região de pobreza e escassez que, ao longo do
tempo, cobriu-se de cafezais ao final da Monarquia e com os processos
migratórios financiados na República.

Para realizar a reconstrução histórica das relações comunitárias,


Maria Sylvia recorreu aos processos-crimes e às Atas da Câmara
de Guaratinguetá, analisando-os à luz da teoria weberiana: agentes,
associação, burocracia, compreender, Estado, estratificação, dominação,
legitimidade, tipo ideal e sentido são alguns dos conceitos e referências
diretas que a autora traz para auxiliá-la na compreensão da formação
social e política do Brasil.

2.2.1 A violência e o conflito como constituinte da relação social

A autora é taxativa: a violência aparecia por toda a parte, como um


elemento constitutivo das relações sociais e como forma de ajustamento
das mesmas. A violência estava entranhada na realidade social. Para
Maria Sylvia , a relação comunitária era marcada por elementos de ruptura
e tensão, situações concretas em que a violência atuava como elemento
constitutivo, uma vez que havia a existência de um consenso, uma
Uniube 43

partilha das vontades, dos valores e da inclinação de ambas as partes, na


qual o conflito e a luta aparecem como inerentes à relação comunitária.
Fosse a relação social na vizinhança, no trabalho, no lazer ou em
família, a violência era acionada de forma regular (FRANCO, 1997).

Na vizinhança a violência era costumeira. A resolução dos conflitos era


básica e radical: a manutenção das prerrogativas de uma das partes
implicava eliminar as adversárias. Portanto, situações comuns a todos
daquela comunidade, tais como a preservação do roçado, utilização de
animais e benfeitorias de uso coletivo, coleta de recursos naturais e outros,
desembocavam em drásticos e localizados incidentes de violência:
os ajustes violentos não se verificam unicamente em
situações que comprometem as probabilidades de
sobrevivência. Ligam-se, em boa parte das vezes,
acontecimentos que são irrelevantes desse ponto de
vista [...] O uso da força é difundido, como a ela se
recorre mesmo quando estão em jogo meios de vida
inteiramente prescindíveis. (FRANCO, 1997, p. 28).

A violência também era institucionalizada no trabalho, como nos mutirões,


e no lazer. A autora cita como mesmo em uma atividade coletiva de
cooperação, um mutirão, não há pesos que orientem a ação e integrem a
comunidade naquela interação. Pelo contrário, havia o “desafio” lançado
por um dos participantes, técnica carregada de tensão, componente de
ruptura fundamental nas relações naqueles grupos de trabalho. Maria
Sylvia descreve um conflito coletivo iniciado por uma “provocação” de
“Arsênio”: segurando uma enxada com as duas mãos indagou aos colegas
de trabalho: “Quem quer?”, dando início a um confronto que envolveu
todos os participantes do mutirão. A autora argumenta que as soluções
violentas aparecem como um comportamento regular, um padrão de
conduta e não ficam restritas aos sujeitos envolvidos, mas se propagam
rapidamente e uniformemente por todo o grupo. Mesmo que o sentido
inicial da ação social fosse a solidariedade e a execução de um trabalho
coletivo, o recurso à violência aparece repentinamente, ocasionando a
interrupção do processo de produção e na dissolução temporária do grupo
(FRANCO, 1997).
44 Uniube

A família é outro espaço relacional no qual a violência se faz presente


de forma cotidiana. Graves agressões aparecem associadas às mais
rotineiras atividades domésticas e de confraternização. Em sua análise,
a autora faz duas pontuações, sendo uma distinção e uma análise
comparativa:

a) a distinção se refere à organização da família tradicional e patriarcal


brasileira nas camadas mais altas da sociedade do século XIX,
discutida pelo também sociólogo Antônio Candido: aquela família
apresentava uma dupla estrutura: o núcleo legal, composto pelo
casal e os filhos legítimos; e o núcleo periférico, constituído por
dependentes e servidores. O casamento era decidido de forma
impessoal e de acordo com os interesses da família enquanto grupo,
propiciando alianças intrafamiliares que se fortaleciam mutuamente
em suas redes de parentesco, responsáveis também pelos grupos
socioeconômicos que passavam a comandar empresas, fazendas
e órgãos públicos, constituindo assim um poderoso sistema de
dominação socioeconômica e política que sobreviveu ao fim da
Monarquia e permaneceu na República. Portanto, na “família rica”,
além do controle exercido sobre os demais setores da sociedade,
havia a necessidade da dominação interna, tal como: a sujeição
dos jovens aos mais velhos, a observação de convenções sociais
que regulamentavam as condutas; a limitação imposta pelos rígidos
papéis sociais no seio familiar, que consolidavam a hierarquia e as
linhas de autoridade. Portanto, nesse tipo de constituição familiar,
no qual a empresa, o poder público e o lar se misturam, a integração
não depende de sentimentos de identidade construídos pelo afeto,
mas sim da situação de interesses e manutenção do poder que
garantiam a preservação dos vínculos e da fidelidade, apesar das
insatisfações e dos problemas pessoais que poderiam surgir de tal
sistema. Ainda, os controles tradicionais de dominação favoreciam
a preservação do grupo e a dissipação das tensões e conflitos.
Uniube 45

b) já a análise comparativa se dá entre a “família rica” e a “família


pobre”: para a autora, na camada livre e sem posses, a família
foi organizada sob laços diferentes, dada a inexistência de
propriedade econômica relevante e a impossibilidade de participação
no poder político. Isso levou a uma ausência de controles fundados
nas situações de interesse, assim como a uma isenção de uma
disciplina, tal como vimos em relação ao mutirão. As associações
estabelecidas entre os homens livres e pobres refletiam também
a própria condição estrutural da produção mercantil, situação em
que havia ausência de formas de controle entre esses grupos, e
cuja coordenação das atividades se dava de forma instável e frágil
– muito diferente, como veremos em breve, da relação que esses
mesmos homens livres e pobres teciam com os fazendeiros, que
eram os detentores do poder econômico e político nas localidades.
Portanto, mesmo que formalmente, uma família pobre e uma família
rica possuíssem instituições idênticas, com os mesmos personagens
e nexos a ligá-los, o que as diferenciava era a força coercitiva em seu
interior: na família pobre os “controles tradicionais” eram rompidos
facilmente – por exemplo, quando um interesse econômico, mínimo
que fosse, rompia com a autoridade paterna a ponto da própria
violência ser acionada. Por mais que valores tradicionais estivessem
presentes, eram superficiais e pouco resistentes enquanto fator de
integração e controle familiar (FRANCO, 1997).

Diante de tal cenário, Maria Sylvia aponta outro aspecto da violência:


seu caráter moral. Enquanto padrão de comportamento, a violência
corresponde a todo um sistema de valores centrados na bravura,
coragem, honra e valentia. Se em algum momento da interação social
há um desarranjo causado, por exemplo, por dúvidas sobre atributos
pessoais de um dos envolvidos, a violência irrompe como conduta
46 Uniube

legítima para restabelecer a integridade, um recurso socialmente aceito


frente à inexistência de canais institucionalizados para a resolução
de conflitos. E não só em situações particulares, mas a incorporação
da violência como modelo socialmente válido de conduta é também
admitida em situações públicas, colocando em evidência a coação
física às condutas socialmente sancionadas, não apenas desimpedidas
de juízos restritivos, mas positivamente valorada no sistema de valores
daquela cultura (FRANCO, 1997). Assim, a violência é também
moralidade gerada pela própria ordem social e como força negadora
dessa mesma ordem. Mesmo que o direito fosse contrariado, algumas
ações violentas estavam perfeitamente legitimadas pela ética local
que sancionava a resposta radical e violenta como possível – às vezes
acatadas pelos juízes da região.

Entretanto, é fundamental lembrarmos que o material coletado, os


processos criminais que retratam basicamente a violência ocorrida nas
camadas das “famílias pobres”, implicam um questionamento óbvio:
só as “famílias pobres” de homens livres cometiam violência? Não.
As “famílias ricas” também o praticavam, fosse no meio urbano ou no
meio rural. Porém, eram as “famílias ricas” que forneciam seus filhos de
cada nova geração para ocuparem os cargos de vereadores, de juízes
de comarca e também nas delegacias. O processo não era instaurado
ou tinha por foco um “capataz” ou um “agregado” que trabalhava a
mando do senhor. O mesmo sistema de interesses compartilhados, os
de proteção mútua e alianças regidas por matrimônios, fortaleceu os
estamentos mais elevados da sociedade brasileira, dominantes até os
dias atuais.
Uniube 47

Parada para reflexão

Como é o cotidiano em um país que socialmente aceita a violência em todos


seus estratos, apesar das leis e dos códigos jurídicos? Como são as taxas ou
as taxas violência e assassinato? Se a violência no meio social é legitimada
pelo sistema de valores, como é a violência exercida pelos aparatos estatais
que detêm a legitimidade social e jurídica de exercerem o monopólio da
coação física? Como isso se reflete nas estatísticas? Quanto de violência
cometida contra nós e contra o outro nós toleramos?

2.2.2 Dominação pessoal e legitimidade

Como dito anteriormente, Maria Sylvia analisou as relações de


dominação pessoal entre os diferentes personagens da sociedade
brasileira (fazendeiros, tropeiros, vendeiros, condutores de tropa,
camarada, sitiantes, agregados) principalmente a figura do homem livre
e pobre no sistema social monárquico na região do Vale do Paraíba/SP
durante o século XIX. A autora observou, principalmente, as relações
de dependência e interdependência, entrelaçadas por compromissos,
favores, apoio político e proteção (FRANCO, 1997).

Naquela época, segunda metade do século XIX e rumando para o


fim da Monarquia, havia no Vale do Paraíba a fusão da economia de
subsistência e a economia de mercado no ciclo do café. Nesse sistema
econômico dual, organizado para a produção e comercialização do café,
emergiram diversas atividades que eram executadas pelos homens
livres e pobres, serviços residuais que não podiam ser efetuados
por escravizados e que não interessavam àqueles que possuíam
patrimônio. Podemos ver melhor no Quadro 1 a seguir:
48 Uniube

Quadro 1 – Categorias sociais típico-ideias e as relações de interdependência e dominação

TIPO DE
CATEGORIA O QUE ERAM LOCAL
DOMINAÇÃO

Fazendeiro Liderança política, econômica (latifundiário) e até militar (coronel da Guarda Nacional)

“Consciência de
indiferenciação”;
Habita as terras
Agregado Morador em terra alheia. dominação pessoal
do fazendeiro.
baseada em
associações morais.

Dominação pessoal
Em situação de Detentor de pequena
baseada na lealdade,
compadrio, o “afilhado” propriedade terra
na fidelidade, em
Sitiantes recebia favores em torno ou dentro
valores religiosos
econômicos do da propriedade
do batismo e pela
“padrinho” (o fazendeiro). do fazendeiro.
filiação política.

Se estabelecem nos Pontos de “Consciência de


pontos de abastecimento, estabelecimento: indiferenciação”;
Vendeiros muitas vezes em terras o rancho, a venda, dominação pessoal
e com negócios com a estalagem e baseada em troca de
os fazendeiros locais. a fazenda. favores e serviços.

Negociantes e Na cidade (tropas “Consciência de


condutores de tropas. de aluguel) ou indiferenciação”;
Comercializavam animais nas fazendas dos dominação pessoal
e mercadorias e os próprios senhores. baseada em troca de
condutores de tropas; favores e serviços.
Tropeiros
podiam ser usados
também camaradas
da própria fazenda,
surgindo aqui também
a figura do capanga.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Vejamos com mais detalhes essas categorias e suas histórias.


Uniube 49

2.2.2.1 Tropeiros e vendeiros: favores e serviços

Segundo a autora, o tropeiro foi um dos tipos para o qual mais se


abriram as possibilidades de integração ao outro lado da sociedade,
principalmente com o comércio de burros, que constituiu um importante
canal de ascensão socioeconômica, mesmo que limitada. Alguns
tropeiros mantinham tropas de aluguel nas cidades e vilas, enquanto
outros eram os próprios camaradas das fazendas, condutores de
mercadorias para viagens curtas aos centros mais próximos, até
a condução de grandes caravanas por caminhos mais longos. O
importante é ressaltar que, para subsistir e alcançar seus objetivos,
o tropeiro supõe a existência do senhor de terras. Embora itinerante
e submetido circunstancialmente a proprietários diferentes, haverá
sempre um senhor sob cuja égide de proteção e amparo se encontrará,
e de cuja mercê dependerá o êxito de seu trabalho (FRANCO, 1997).

Comparados aos outros trabalhadores livres, os tropeiros e condutores


de tropa estavam pouco ligados ao grande fazendeiro, uma vez que
ambos entravam em contato em termos de uma relação de mercado,
sem a interferência de obrigações necessárias de ordem pessoal.
Mas, conforme havia uma maior relação entre tropeiro e fazendeiros,
a dependência passava a ser interdependente: seja pelo fato do
fazendeiro estar ligado ao tropeiro, dependendo do fornecimento de
animais ou na regularidade dos suprimentos, ou do tropeiro se ligar ao
fazendeiro, pela hospitalidade ao ceder terra para a criação de animais
ou pelas atividades desenvolvidas pelo tropeiro ao longo de sua estada
na fazenda. A partir desse momento se renova as suas ligações com o
fazendeiro, o seu débito e suas obrigações.

O movimento de tropas foi responsável, em grande parte, por


outra ocupação proporcionada ao homem livre, ligada ao pouso (o
rancho, a venda, a estalagem e a fazenda) e o abastecimento das
caravanas: os vendeiros. Segundo Maria Sylvia, a posição do simples
50 Uniube

vendeiro é oscilante: em certos momentos há relações recíprocas de


comprometimento e de dependência entre ele e os estratos superiores (e
em casos excepcionais relações de dependência do próprio fazendeiro
com o vendeiro), ora, pelo contrário, ocorria o seu nivelamento com
as camadas mais pobres. Os vendeiros eram vistos como indignos de
confiança por sua “bisbilhotice imprudente” e “insistência enganosa”
em busca de informações, colocando-os em uma situação marginal,
principalmente pela aproximação que possuíam junto aos escravizados
(FRANCO, 1997).

Conclui a autora que, para aquela área estudada, a sociedade senhorial


estava longe de estar bem organizada em estratos definidos e apresenta
uma considerável fluidez, mas isso não significa, entretanto, ausência
de hierarquização social. A observação dos tropeiros e dos vendeiros
evidenciam a vigência da dominação pessoal assentada, principalmente,
na troca de favores e serviços.

2.2.2.2 Sitiantes: compadrio e poder político

Para Maria Sylvia , as relações entre fazendeiros e sitiantes eram


aparentemente niveladas. O compadrio era uma instituição que permitia
essa aparente quebra das barreiras sociais. Porém, claramente se
tornava uma relação de dominação e dependência: o patrocínio
do superior, o parente rico, e uma submissão do inferior, o parente
pobre, através do batismo, implicava uma troca desigual: por um lado,
obrigações decorrentes do apadrinhamento e, de outro, as promessas
religiosas de encaminhar a nova criança na vida (FRANCO, 1997).
E qual era o meio financeiramente menos custoso para os senhores
cumprirem sua promessa? Era a criação e oferta de cargos públicos
aos “afilhados”.
Ampliando-se as trocas do compadrio para situações
sociais, compreende-se como deriva dele toda uma
intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis
Uniube 51

porque sempre renovadas em cada uma de suas


amortizações, num processo que se regenera
em cada um dos momentos em que se consome.
(FRANCO, 1997, p. 85).

Assim, o sitiante, uma vez batizado, apadrinhado e adotando o nome


de família de seu padrinho, tem o reconhecimento de ser uma “pessoa”,
portador dos mesmos atributos de humanidade, aqueles negados aos
escravizados e também aos tropeiros e vendeiros. A autora chama de
“consciência de indiferenciação” e é uma questão relevante na obra:
A formulação ideológica dessa dimensão da realidade
social postula a desigualdade inata entre os seres
humanos, mistificando as diversidades das situações
de existência, que condicionam as probabilidades de
destino, com o simulacro de diferenças individuais de
ordem psicológica, intelectual ou biológica, apontadas
como os fatores decisivos para definição do curso da
vida de cada sujeito. (FRANCO, 1997, p. 92).

Portanto, a instituição do compadrio tornava o sitiante e o fazendeiro


como potencialmente iguais, mas toda essa potência autônoma era
usurpada em um sistema de encargos e favores e, também, na adesão
total e indiscutida do sitiante ao fazendeiro enquanto seu chefe político.

A dominação no caso dos sitiantes apresentava então outra particularidade: a


dominação política. O fazendeiro prestava auxílio econômico enquanto o
sitiante retribuía com filiação política: se tornavam um “eleitor” ou “cabo”,
em uma adesão tão simbiótica que não eram tomadas providências que
assegurassem os votos ou que tentassem atrair eleitores oposicionistas.
A autora afirma que as técnicas institucionalizadas para a tomada
e a manutenção do poder política não eram direcionadas para a
manipulação do eleitorado ou aliciamento, mas para a interferência
direta no processamento e resultado das eleições, na qual a fraude,
decidida a “bico de pena” ou por meios violentos, contava ainda com
a força policial e corporações militares, como a Guarda Nacional –
comandada pelos “coronéis” locais, ou pelos chefes de polícia, muitas
vezes indicações políticas dos mesmos fazendeiros.
52 Uniube

As relações desenvolvidas entre sitiantes e o fazendeiro estavam


dotadas de durabilidade, lealdade e fidelidade, uma vez que ambos
eram donos de terras e seus interesses estavam em torno da mesma
propriedade. Um dos efeitos da dominação pessoal foi a própria asfixia
da consciência política; cessava possíveis processos que poderiam
garantir a sua presença nas camadas socialmente dominadas; e
reforçava a não integração dessa camada aos mecanismos de participação
da vida política. Se na perspectiva weberiana, o Estado moderno
pressupõe uma instituição social como um aparelho despersonificado e
uma entidade coletiva,
o Estado na consciência desses homens se
confundia com a pessoa do príncipe e governo se
identificava com seus atos e decisões ou com as de
seus representantes. As mudanças de governo, que
resultariam da autonomia da colônia, simplesmente
não caíam na esfera de consciências desses
homens como mudança de instituições, mas como
substituição de pessoas. (FRANCO, 1997, p. 89).

A autora conclui que a admissão do dependente como pessoa é


essencial para sua integração em uma ordem social que dele retira
seus predicados de humanidade, por mais que seja reconhecido como
“pessoa”. A dominação é construída pelos valores de lealdade, respeito
e veneração e, por mais que as relações aparentem uma harmonia
entre as vontades e os interesses, é na verdade uma imposição da
vontade do fazendeiro, na qual todas as tensões e potenciais conflitos
permanecem ocultos.

2.2.2.3 Agregados e camaradas: ruptura da associação moral

Para Maria Sylvia , as facilidades de acesso à terra (antes da Lei de


Terras de 1850) possibilitaram o ajustamento do homem pobre pela sua
incorporação a grupos rurais relativamente autossuficientes. Entretanto,
esse equilíbrio se rompeu com o desenvolvimento da exploração
lucrativa da terra, desaparecendo o pequeno lavrador independente e
Uniube 53

em seu lugar surgiu o sitiante proprietário ou os camaradas e agregados,


moradores em terra alheia. A constituição do agregado como categoria
social se completa quando se conclui a ocupação da terra na forma de
grande propriedade privada, com a expansão da agricultura comercial
baseada no trabalho escravizado (FRANCO, 1997).

Nesse novo universo de relações sociais, o camarada representa


uma possibilidade de absorção do caipira, aquele pequeno lavrador
independente, já sem seus atributos após as mudanças econômicas.
O agregado ou morador, ao contrário, reelabora o antigo estilo de vida,
embora carente de suas próprias bases: a livre disposição da terra e a
participação em pequenos grupos sociais coesos. As próprias condições
nas quais foi organizada a exploração mercantil, com seus latifúndios,
monocultura dispendiosa e escassa de mão de obra, possibilitaram
a sobrevivência do caipira independente: a terra improdutiva podia,
sem prejuízo ao fazendeiro, ser cedida a seu favor, sem o direito a
posse, mas também sem vínculo ocupacional. Assim passou a existir
o morador em terra alheia, por sua conta e risco, fruto também de
ajustamento baseado na cordialidade entre as partes (FRANCO, 1997).

Para a autora, naquela sociedade economicamente diferenciada e


autocrática, o destino do homem livre e pobre estava limitado por dois
princípios divergentes de ordenação das relações sociais. De um lado, as
associações morais, de outro as ligações de interesse, que ocasionavam
efeitos deletérios recíprocos: ocasionavam uma total assimetria de
poder e não havia limites à arbitrariedade. Para aquele que fosse um
agregado ou camarada havia a anulação de sua autonomia, a ausência
do reconhecimento social, jurídico e até mesmo colocando-o em situação
subumana frente aos interesses de seu superior, por sua desqualificação
social e também moral.
54 Uniube

Saiba mais

Segundo Norberto Bobbio (1998), o termo autocracia não tem uma precisa
conotação histórica e não se refere a um sistema político concreto. Pode
se referir a um grau máximo de absolutismo e personalização do poder, tal
como o czarismo russo, mas também se refere a um governo absoluto e
com poder ilimitado sobre os súditos, tornando o seu chefe independente
mesmo de outros governantes dentro do território – ou seja, não divide seu
poder, diferentemente, por exemplo, de alguns monarcas que precisavam
compartilhar de seu poder com outros membros da aristocracia.

Complementa o filósofo e cientista político italiano que


as Ditaduras são, por vezes, regimes autocráticos, que se
concentram na figura de um chefe e podem levar muito
adiante a personalização do poder. Existem, porém,
Ditaduras não-autocráticas, nas quais o poder está nas
mãos de um pequeno grupo de chefes, que dependem
reciprocamente um do outro. (BOBBIO, 1998, p. 372).

Assim, a ação orientada pelos fazendeiros frustrava as expectativas


de seus dependentes, colocando de forma prioritária os negócios
particulares, independentemente da quebra da cadeia de compromissos
firmados na cordialidade, levando não somente a expulsões desses
moradores em terras alheias, mas também a outras formas de violência
e, inclusive, homicídio. Portanto, Maria Sylvia afirma o quanto era
precária e transitória as relações de dependência, independentemente
dos compromissos firmados sob os costumes e valores: “a orientação
racional, necessária para a preservação de seus privilégios, solapava
as formas institucionalizadas para a dominação, baseada em associações
morais, e punha em risco os canais estabelecidos para seu exercício”
(FRANCO, 1997, p. 107).
Uniube 55

2.2.3 Dominação patrimonial, administração e burocracia no


Estado

Uma forma de lermos a história política brasileira até os dias atuais é


através do binarismo centralização e descentralização, um debate que
envolve os três níveis do atual Executivo (federal, estadual e municipal)
desde, pelo menos, o período imperial. Maria Sylvia resgata a revisão
do sistema tributário durante a década de 1830, com a implementação
de medidas racionalizadas das finanças da administração pública.
Na década seguinte, com a consolidação de um governo imperial
centralizador, o repasse da renda pesava favoravelmente ao Estado,
parcamente atendendo aos interesses das províncias e municípios.
Para a autora, esse duplo jogo de fatores favoreceu a burocratização
do aparelho administrativo via poder central, mas também criou os
entraves e limites (FRANCO, 1997).

Em situação crônica de penúria pela ausência de repasse do Estado e


da Província, os órgãos municipais, convivendo com a falta de recursos
para as obras públicas mais essenciais, desprovidos de prédios e
instalações para o funcionamento dos serviços, adotou duas medidas:
de um lado, o pedido de donativos e a cobrança de impostos sobre o
cidadão comum e do próprio servidor público; de outro, e extremamente
relevante para a compreensão político-social brasileira, a utilização
de bens particulares. Ou seja, o administrador público fornecia sua
residência, aplicava seu dinheiro e fornecia seus escravizados nas
benfeitorias municipais. Assim se concretizava a mistura entre a coisa
pública e o negócio privado, era a extensão do controle pessoal a todo
patrimônio do Estado, bens e valores públicos que eram apropriados
pelo administrador para seus interesses particulares e vice-versa. Sem
mencionar, por exemplo, no caso de funcionários comissionados em
repartições que não possuíam um quadro efetivo, tal como na força
policial do município.
56 Uniube

Há então uma ruptura direta com a burocratização e o Estado moderno


na teoria weberiana, que previa a expropriação do agente público dos
meios materiais de gestão, separando os bens privados dos bens
públicos. Como aponta Maria Sylvia,
o processo de expropriação, no Brasil do século
XIX, foi sustado pelo insuperável estado de penúria
a que estavam sujeitos os órgãos públicos. [...]
Em lugar do funcionário público tornar-se cada
vez mais um executivo que apenas gerir os meios
da administração, manteve-se preservada a
situação em que ele detinha sua propriedade. Isto
significa, evidentemente, que ele os podia controlar
autonomamente, pois ele os possuía. Seu, era o
dinheiro com que pagava as obras; seu, o escravo
cujos serviços cedia; sua, a casa onde exercia as
funções públicas. (FRANCO, 1997, p. 130-131).

No âmbito municipal, argumenta a socióloga que a conduta do agente


governamental em suas atribuições funcionais era orientada pelos
interesses e influências que envolviam sua vida cotidiana, e não pelos
longínquos e abstratos controles legais. O funcionário público possuía
mais vínculo aos grupos e interesses sociais do qual participava na
municipalidade, do que com as obrigações assumidas com o governo
central. Em parte, essa conduta também se dava pelo rudimentar
conjunto de ordenações e preceitos jurídicos que disciplinavam o
funcionamento do Estado e seus meios de gestão.

A autora ressalta como, em um mesmo grupo social, dois códigos


distintos de orientação de conduta se justapõem, ambos com iguais
possibilidades de serem válidos e legitimados: de um lado o Direito
e suas leis, de outro a força do costume e a tradição compartilhada
pela população em geral. Em um dos exemplos, um coletor de renda
provincial, eleito pelos seus pares de paróquia, foi denunciado pelo
promotor público por consumir de forma fraudulenta o valor do imposto
em benefício próprio. Em sua defesa, o réu alegou não só que a
acusação era uma violência aos princípios do Direito, mas questionou
Uniube 57

como ele poderia ser culpado de peculato se o dinheiro em questão


estava a seu cargo – e mais, afirmou que não era fraude porque
possuía as condições e a intenção de reembolsar. As testemunhas,
compartilhando dos mesmos interesses, valores e compromissos
pessoais, não reconheceram o crime cometido, ao contrário do juiz.

Maria Sylvia conclui que a distinção rudimentar entre a vida privada e


a função oficial permitiu a extensão da dominação pessoal e com seus
fins particulares a partir do poder oriundo do cargo público, tal como as
formas de exploração do bem público em favor a parentela, relações de
amizade ou negócios. No sentido contrário, os administradores também
voltavam a estrutura do Estado contra os adversários. A mescla das
atividades públicas e privadas se articulavam em meio a precariedade
material dos poderes públicos, o uso dos meios de gestão como
propriedade privada e incremento das técnicas pessoais de dominação,
aliando-se àquelas já discutidas neste capítulo, tais como os favores e
apadrinhamentos (FRANCO, 1997).

É fundamental, agora, que regressemos a Max Weber. O autor tratou


da questão do patrimonialismo e delimitou diversos tipos que vão do
antigo Egito e Índia aos Estados patrimoniais ocidentais ainda durante
os regimes absolutistas. Mas o eixo central, independentemente da
variação, traz a situação de quando a dominação tradicional atua
sobre as formas de gestão econômica. Por exemplo, ao falar do
patrimonialismo que privilegia determinados estamentos, explica como
esse tipo limita o desenvolvimento do mercado e cujas associações
de dominação são voltadas para fins próprios; ou quando fala sobre o
patrimonialismo monopolista, que leva o mercado ao desenvolvimento
irracionalmente limitado, na qual as maiores oportunidades aquisitivas
se encontram nas mãos do senhor e de seu quadro administrativo.
O patrimonialismo normal inibe a economia racional
não apenas por sua política financeira, mas também
pela peculiaridade geral de sua administração, isto
58 Uniube

é: pelas dificuldades que o tradicionalismo opõe à


existência de estatutos formalmente racionais e com
duração confiável, calculáveis, portanto, em seu
alcance e aproveitamento econômicos;
b) pela ausência típica de um quadro de funcionários
com qualificação profissional formal [...]
c) pelo amplo espaço deixado à arbitrariedade
material e vontade puramente pessoal do senhor e do
quadro administrativo [...] Em caso de arrendamento
de cargos, o funcionário, para obter lucro de seu
capital investido, vê-se imediatamente obrigado a
aplicar meios de extorsão, por mais irracionais que
sejam seus efeitos;
d) pela tendência, inerente a todo patriarcalismo
e patrimonialismo e consequência da natureza da
vigência da legitimidade e do interesse de ver
satisfeitos os dominados, à regulação materialmente
orientada da economia – por ideais “culturais
utilitários ou ético-sociais ou materiais – e, portanto,
ao rompimento de sua racionalidade formal orientada
pelo direito dos juristas. (WEBER, 2015a, p. 157-158).

Para Max Weber, o capitalismo de plantations e o patrimonialismo


colonial são exemplos de como a dominação, através de poderes
patrimoniais, estava totalmente enraizada e florescendo exuberantemente.

Saiba mais

Diversos países desenvolvidos tiveram suas próprias experiências de


Reforma Agrária: Alemanha, Espanha, EUA, França, Itália, Inglaterra, Japão
etc. Trata-se de uma política reformista que reprograma o funcionamento do
sistema capitalista, aumento a diversidade de produtos, gerando emprego e
renda, reforçando o aumento da produção e da produtividade para o mercado
externo e interno. No Brasil, país que foi colônia de exploração e dependente
do sistema de plantation, atualmente 0,95% das propriedades rurais
(latifúndios) possui 45% da área rural, realidade similar à América Latina como
Uniube 59

um todo. Na Bahia, por exemplo, 1% das propriedades (latifúndios) ocupam 75%


da área total dos estabelecimentos agropecuários. A desigualdade não se traduz
apenas na concentração de terras e em largas áreas totalmente improdutivas,
mas também no acesso ao crédito agrícola, mesmo em uma realidade em
que 70% da alimentação que chega à mesa do brasileiro é produzida pelo
pequeno produtor, pela agricultura familiar e assentamentos do MST. Como
Max Weber poderia analisar compreensivamente o motivo de parte das elites
políticas e econômicas brasileiras, diante dos números expostos acima e de
exemplos internacionais que demonstram positivamente o desenvolvimento de
novas dinâmicas capitalistas, serem contra a Reforma Agrária e, em diversos
momentos, terem agido contra as políticas de industrialização.

2.3
Considerações finais

Foi possível aprender nesse capítulo como alguns conceitos básicos


de Max Weber se interconectam e podem ser utilizados em trabalhos
multidisciplinares na explicação de uma determinada realidade. Os
fatos sociais possuem uma explicação, uma compreensão e um lastro
histórico que os atualizam constantemente em nosso presente.

Além do termo “apadrinhamento político”, não à toa surgiu no Brasil


o termo “carteirada” e a conhecida indagação: “você sabe com que
está falando?”. Ambas implicam em uma ação social em que o agente
faz referência a todo um sistema de valores e símbolos que implicam,
para esses agentes, atributos condizentes à dominação pessoal ou
patrimonial que podem exercer. Nesse momento, status, superioridade
hierárquica, atribuição de valor ao parentesco e outras atribuições
sociais e morais também se encontram. Geralmente são ações
utilizadas de forma a corromper ou reestabelecer uma relação que entra
em algum desajuste, levando-a um desfecho favorável àquele agente
que reclama uma posição distinta na interação. Geralmente é uma
60 Uniube

ação que também é chamada de “jeitinho brasileiro” que, no caso de


uma situação social e política, implica a corrupção de alguma norma
jurídica ou de alguma ética social tacitamente estabelecida, porém é um
ato que muitas vezes não é percebido como imoral ou criminoso, uma
vez que uma parcela da população compartilha dos mesmo valores,
independentemente de sua posição social, econômica ou política.

Resumo

Vimos conceitualmente nesse capítulo como o Estado burocrático,


o que melhor caracteriza o desenvolvimento do Estado moderno, é
um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional,
que detêm força administrativa e detêm os meios materiais de
gestão, detendo o direito jurídico e político de monopolizar e acionar a
violência física legítima, dentre outras prerrogativas possíveis. Porém,
observamos os mesmos conceitos em um estudo de caso específico:
as situações dos homens livres e pobres e suas relações sociais e
políticas no Vale do Paraíba durante o fim do regime monárquico. Do
micro para o macro, Guaratinguetá diz muito também sobre outras vilas
e regiões brasileiras, mostrando como se dava, no cotidiano, na prática,
a formação social e política paulista e brasileira, assim como demonstra
como se deu a consolidação da burocracia e do Estado moderno frente
as nossas configurações histórico-sociais.
Uniube 61

Referências
AIDAR, Adriana Marques; SANTOS, Savio Gonçalves.
A política. In: Fundamentos de Filosofia e Sociologia.
Uberaba: Universidade de Uberaba, 2018, p. 75-100.

BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; QUINTANEIRO, Tania. Max Weber. In:


QUINTANEIRO,T.; BARBOSA, M. L. O.; OLIVEIRA; M. G. (org.). Um toque de
clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília:


Editora Universidade de Brasília, 1998. v. 1.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem


escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015a. v. 1.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015b. v. 2.

WEBER, Max. Ensaios sobre Sociologia: a política como vocação.


H.H. Gerth e C. Wrigth Mills (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 3

Pensamento
weberiano,
política e
partido no Brasil
republicano
(1889-1930)
Filipe Moreno Horta
Introdução

Vimos, nos dois últimos capítulos, como não é possível falar em


política sem dialogá-la com outros aspectos da vida humana.
Já sabemos que viver é um ato político. E, para Max Weber
(1864-1920), “toda política, em sua essência, é luta” (WEBER,
2015b, p. 572). Cada ato que um agente social toma, por ele
ou através de uma instituição, possui consequências. Algumas
são visíveis e sentidas por uns, enquanto para outros passam
despercebidas. Vimos como, para falar em política, é necessário
conhecermos a constituição social daquela sociedade, seus
valores, seus costumes, sua constituição familiar e as suas
relações de dependência e interdependência.

Vimos também que, para falar em política, temos que observar


o sistema de produção, como é feita a distribuição dos meios
de produção e renda. Vimos também como a sociedade e a
economia dialogam de forma dependente e não é possível
dissociar as esferas. No caso brasileiro, um senhor de terras
é o chefe patriarcal; é também latifundiário, possui dezenas
senão centenas de escravizados, possui também tantos outros
“homens livres” em regime servil; essa mesma pessoa poder ser
o “Coronel” da Guarda Nacional, responsável pela segurança
de sua região; é o “pai de família” também que estabelece as
alianças através do matrimônio e batismo; é quem acessa os
cargos administrativos e judiciários de seu território, e o distribui
entre seus parentes, de sangue ou “afilhados”. Essa unidade
detentora e acumuladora de todos os poderes será também,
por séculos, a representação da elite política em nosso país.
66 Uniube

Todos os partidos possuem uma base ideológica e possuem


o interesse em ocupar posições da administração do Estado.
Não existe partido “neutro”, a não ser em propagandas
demagógicas nas quais muitos acreditam. Todos os partidos
possuem diretrizes e pensamentos ideológicos, teóricos
e analíticos que fundamentam a visão de mundo de seus
partidários, assim como sustentam as propostas que constam
em suas plataformas e programas.

Parada para reflexão

Você já procurou as plataformas dos partidos brasileiros? Já leu seus projetos


e percebeu as diferenças teóricas entre eles? Já perceberam que para um
problema social existente, por exemplo, mercado informal e desemprego, há
várias abordagens diferentes, às vezes divergentes e às vezes complementares
que podem ser empregadas para a redução do problema? Você consegue
distinguir o que é propaganda política e demagogia das reais ações dos
partidos e os desdobramentos concretos na sua vida cotidiana?

Durante toda a história, diversas associações com essas


formas foram criadas. Max Weber concentra sua atenção na
configuração moderna de tal associação, principalmente aquela
que, com a modernidade, tornou-se o partido político legal, que
disputará votos eleitorais para ocupar a administração de um
Estado representativo. Veremos neste capítulo um pouco mais
sobre a constituição do partido político no Estado Moderno, seu
objetivo e suas orientações racionais, a partir das considerações
de Max Weber. E, ao final, veremos como estavam configurados
os partidos políticos do Brasil no início da República, momento
marcado pela “Política Café com Leite” e a dominação dos
partidos republicanos.
Uniube 67

Objetivos
Política, comunidade política, partido e partido político são conceitos
utilizados frequentemente nas Ciências Humanas, sobretudo nas
Ciências Sociais. E é um tema que está constantemente nos
nossos noticiários.

Ao final dos estudos deste capítulo, esperamos que você seja


capaz de identificar os termos trabalhandos em suas leituras,
assim como possa perceber a diferença analítica que há entre a
teoria e o mundo prático, mas sobretudo indagar as pontes para
pensarmos o Brasil em sua história e em seu presente.

São objetivos deste capítulo:

• correlacionar os conceitos vistos a partir de novos conteúdos;


• apresentar os conceitos de política, comunidade política,
partido e partido político em Max Weber;
• compreender os conceitos vistos a partir do estabelecimento
de partidos políticos modernos no Brasil, especialmente na
Primeira República.

Esquema
3.1 Política, comunidade política e partido em Max Weber
3.2 O partido político
3.2.1 O chanceler Bismarck e a reconstituição alemã
3.3 Os partidos políticos no Brasil (1822-1930)
3.3.1 Do Primeiro ao Segundo Reinado (1822-1889)
3.3.2 A Primeira República (1889-1930)
3.4 Considerações finais
68 Uniube

O “espírito” da administração patrimonial, interessado na


tranquilidade, na conservação do “sustento” tradicional
e do contentamento dos súditos, opõe-se com repulsa e
desconfiança ao desenvolvimento capitalista que revoluciona
as condições dadas da vida.

Maximilian Weber

3.1
Estado, poder e violência em Max Weber

“Entenderemos por política o conjunto de esforços feitos visando


participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre
Estados, seja no interior de um único Estado”, disse Max Weber em A
política como vocação (2001). O Estado não é uma entidade apartada
das relações sociais e das ações dos agentes em uma comunidade
política. O Estado é ocupado por associações e agentes que buscam
participar do poder ou influencia na divisão desse. Um desses esforços
é, milenarmente, a constituição de associações em torno de um partido,
algumas vezes chamadas de facções, alas, grupos, entre outras
nomenclaturas que podem existir nas diversas associações (religiosas,
econômicas, educacionais, esportivas, entre outras).

Se não fossem os optimates da república romana, os guelfos e gibelinos


florentinos do século XII, os jacobinos da Revolução Francesa, os
sovietes da Revolução Russa ou partidários trabalhistas do Labour
Party inglês, todas essas experiências dizem respeito a um mesmo tipo
de associação que, em cada momento, local e ordem jurídica, possuiu
características próprias, mas também apresentam, em maior ou menor
grau, outras que são compartilhadas.
Uniube 69

Saiba mais

E o que é uma comunidade política? Para o pensador alemão,


A comunidade política é aquela em que a ação social
se propõe a manter reservados, para a dominação
ordenada pelos seus participantes, um “território” (não
necessariamente um território constante e fixamente
delimitado, mas pelo menos de alguma forma delimitável
em cada caso) e a ação das pessoas que, de modo
permanente ou temporário, nele se encontram, mediante
a disposição do emprego da força física, normalmente
também armada (e, eventualmente, a incorporar outros
territórios). (WEBERb, 2015, p. 155).

Com várias diferenças históricas, atualmente a comunidade política


por excelência é o Estado moderno, que se transformou em uma
relação associativa contínua, com caráter institucional e amparada
em uma legitimidade específica, chamada por Weber de “ordem
jurídica”. O lento desenvolvimento do que hoje temos como “Estado”
é também a história da monopolização de poderes e dissolução de
outras comunidades políticas, que tiveram seus poderes limitados ou
até mesmo extintos. Por outro lado, novos interesses foram surgindo,
principalmente econômicos, que foram sendo assegurados pelas
ordenações racionais.

Toda ordem jurídica, seja aquela do Estado ou de outra associação,


influencia na distribuição do poder dentro daquela comunidade. Ainda,
essa distribuição possui relação com outros fenômenos sociais que
devem ser observados: as “classes”, os “estamentos” e os próprios
“partidos”.
Enquanto “as classes” têm seu verdadeiro lar na
“ordem econômica”, e os “estamentos” na “ordem
social”, isto é, na esfera de destruição da “honra”,
exercendo a partir dali influência uns sobre os outros
e ambos sobre a ordem jurídica, além de também
70 Uniube

serem influenciados por esta, os “partidos” têm seu lar


na esfera do “poder”. Sua ação dirige-se ao exercício
de “poder” social, e isto significa: influência sobre
uma ação social, de conteúdo qualquer: pode haver
partidos, em princípio, tanto num “clube” social quanto
num “Estado”. (WEBER, 2015b, v. 2, p. 185).

Então, o que é um partido para Max Weber? Para o autor, o partido


é uma relação associativa que pressupõe um recrutamento livre –
chamado por ele de “princípio voluntário” – que busca obter poder a
seus dirigentes e por consequência aos seus membros, possibilitando
oportunidades ideais ou materiais para a realização de fins objetivos
ou obtenção de vantagens pessoais (WEBER, 2015b, v. 1). Dentro
dessa definição, o “partido” pode ser uma associação política, mas
também outros tipos de associações com distintas formas: carismáticas,
tradicionais ou partidárias racionais.

E qual é o objetivo? Nos diz o autor que o “partido” só é possível


dentro de comunidades que possuem relações associativas, possuem
alguma ordem racional e um grupo de pessoas dispostas à ação, “pois
o objetivo dos partidos é influenciar precisamente este aparato e, se
possível, compô-lo com seus adeptos” (WEBER, 2015b, p. 186).

Para o autor, a ação social típica dos “partidos” implica sempre na


existência de uma relação associativa que pretende, de maneira
organizada, a um determinado fim, que pode ser de natureza “objetiva”
(com a imposição de um programa por motivos materiais ou ideais) e/ou
“pessoal” (por exemplo, poder e honra para seus partidários e líderes)
(WEBER, 2015b).

Essa associação pode ser orientada, de forma típica, ou seja, enquanto


tipo-ideal, por diferentes matrizes:
Uniube 71

– Partido de patronato: orientado exclusivamente à obtenção do poder


para o seu líder e a subsequente ocupação da administração pública
por seu quadro de membros. Weber cita como exemplo os dois grandes
partidos estadunidenses, o Democrata e o Republicano, partidos
com fins objetivos ou “ideológicos” em seu próprio tempo, passando
por clivagens como “conservadorismo”, “liberalismo”, “democracia
burguesa”, “social-democracia” etc.
– Partido estamental ou de classe: orientado predominantemente
pelos interesses de determinado estamento ou classe. Weber cita como
exemplo os guelfos (partidários do papado) e gibelinos (partidários do
Sacro Império Romano-Germânico), partidos florentinos rivais do século
XIII com caráter estamental. Na política moderna, um partido operário
ou socialista, por exemplo, possui um caráter classista.
– Partido ideológico: orientado por princípios abstratos.

Relembrando

Você se lembra do conceito de “tipo-ideal” para Max Weber? É um método


que permite ao pesquisador construir, de forma geral e a partir de certos
atributos particulares, conceitos abstratos que possam ser classificados,
categorizados e comparados. O tipo-ideal não pretende esgotar as ações
do mundo real, muito menos limitá-las, mas são ferramentas que permitem
um olhar ao fenômeno social e histórico que auxiliam a análise sociológica
e política. Por exemplo, os tipos ideais de dominação são: carismático,
legal, tradicional – cada um com um grupo de características próprias. Na
análise empírica, entretanto, podemos não apenas identificar instituições
sociais que predominantemente possuem mais características de uma, mas
não deixam de apresentar outras. Um templo religioso, por exemplo, exerce
uma dominação tradicional sobre seus fiéis, mas também pode-se utilizar da
dominação carismática de seu líder, assim como da dominação legal de seu
estatuto, regimento, entre outras normas e burocracias.
72 Uniube

Max Weber (2015) chama de partido legal aquele que possui uma
direção determinada por eleições, por estatutos e livre recrutamento.
As atividades cabem aos interessados políticos (apesar da existência
dos “interessados econômicos”), orientados por alguma ideologia e pelo
poder. O autor é taxativo ao afirmar que, apenas com o Estado legal e
com constituição representativa, os partidos adotaram a feição moderna
que atualmente possuem. Em um partido legal há:

1) os líderes e os quadros de partido;


2) os membros ativos que atuam em instâncias de controle e discussão;
3) as massas não associadas, “apenas objetos de solicitação em
tempos de eleição ou votação (“simpatizantes” passivos), cuja
opinião só interessa como meio de orientação para o trabalho de
propaganda [...] em casos de luta efetiva pelo poder” (WEBER,
2015a, p. 188);
4) por fim, há um quarto agente, oculto, cujas mãos estão sobre as
atividades políticas: os mecenas de partido. Max Weber destaca
o papel importante que o financiamento de um partido possui e
que isso interfere na distribuição de influência e nas ações que são
tomadas pela direção. Porém, apesar da importância dessa questão,
ressalta o autor que a finança de um partido é o capítulo menos
transparente da história da associação.

Além dos partidos organizados de forma legal, há também outros


partidos que podem surgir nas associações legais apontadas por Max
Weber:

– Partido carismático: dissensão sobre a qualidade carismático do senhor;


– Partido tradicionalista: dissensão sobre o modo de exercício do poder;
– Partido doutrinal: dissensão sobre o conteúdo de ideologias ou doutrinas;
– Partido puramente de apropriação: dissensão com o senhor e seu
quadro administrativo sobre a forma de recrutamento dos próprios
quadros, geralmente também calcado na questão tradicionalista.
Uniube 73

Exemplificando

Podemos pensar, hipoteticamente, em algum partido político nacional. Dentro


desse partido, “alas” ou “correntes” surgem criando dissensões que não
necessariamente levam a uma ruptura da associação como um todo, mas
representam lutas políticas pelo poder central do partido. Esses grupos e seus
partidários criam relações em prol de determinado objetivo, adotando alguma
determinada posição que é comum aos participantes: por exemplo, uma “ala”
pode ser ligada a um chefe de executivo ou legislativo, como governador,
senador, deputado etc., outra “corrente” pode ser criada para defender pautas
específicas ou ideológicas, enquanto outra “ala” pode se aliar a um líder mais
carismático; ou também pode haver um grupo motivado apenas por interesse
econômico, buscando a divisão de cargos da administração do partido e/
ou do Estado. Isso também ocorre em associações religiosas, associações
educacionais e em diversas outras organizações sociais.

3.2
O partido político

É interessante destacar o contexto de quando Max Weber concluiu o


texto sobre a “Sociologia do Estado”, que consta no segundo volume
de Economia e Sociedade, já em seus últimos anos de vida. Com o
fim da Primeira Guerra Mundial em 1918 e a assinatura do Tratado
de Versalhes no ano seguinte, em 1919 foi constituída a República
de Weimar, sacramentando o fim do império de Guilherme II, rei
prussiano que abdicou ao final da guerra, marcando a abolição da
monarquia alemã. Com a formação de uma assembleia constituinte na
cidade de Weimar, a Alemanha adotou o parlamentarismo republicano
e bicameral, ou seja, duas câmaras: o Parlamento (Reichstag) e a
Assembleia (Reichsrat). Nesse sistema havia também dois chefes:
74 Uniube

o chanceler, chefe de governo e responsável pela administração


geral da república; e o presidente, chefe de Estado e responsável
pelas questões relativas às forças armadas, diplomacia, entre outras
questões. Na ocasião, o primeiro presidente eleito foi Friedrich Ebert,
do Partido Social Democrata Alemão (SPD).

Segundo Max Weber, o Estado moderno, ancorado no capitalismo


racional, passou a exigir calculabilidade e confiabilidade no funcionamento
da ordem administrativa e jurídica. Essa racionalização formal em
diversas áreas da economia e do próprio Estado é uma necessidade
vital para o desenvolvimento capitalista, que levou, por exemplo, à
limitação do poder do príncipe patrimonial e da nobreza feudal pela
burguesia. E qual o caminho para atuação dessa burguesia frente aos
negócios do Estado? O desenvolvimento do direito eleitoral, a criação
dos parlamentos e a burocratização dos partidos políticos.

Ao descrever sobre os partidos e a organização partidária, Weber


aponta um aspecto curioso: não havia menção a partidos políticos na
constituição alemã nem em outra lei do país, mesmo “que precisamente
eles representem, hoje em dia, os portadores mais importantes de
todo querer político dos dominados pela burocracia, dos “cidadãos”
(WEBER, 2015b, p. 544).

Saiba mais

Atualmente, no Brasil, a Constituição Federal de 1988, a Lei n.º 9.096/95 e a


Resolução do TSE n.º 23.571/18 dão o ordenamento jurídico nacional para
a criação e registro de partidos políticos. Apesar do termo “partido” já circular
no Brasil desde a Idependência (1822), uma das primeiras menções legais
a “partido político” ocorreu na Lei n.º 1.269, de 15 de novembro de 1904,
chamando-o, de passagem, de “agremiações políticas”. O termo “partido
político” e sua regulação aparecem somente com o nosso primeiro Código
Eleitoral, com o Decreto n.º 21.076, de 24 de fevereiro de 1932.
Uniube 75

Reforçando o que foi mencionado no início deste capítulo, os partidos


políticos também são organizações voluntárias e baseadas no livre
recrutamento, com constante renovação de seus quadros. E qual é o
objetivo? Nos diz o autor que é “a obtenção de votos nas eleições para
cargos políticos ou em corporações com voto” (WEBER, 2015b). Em um
primeiro momento, conta um núcleo permanente reunido sob um líder
ou um “grupo de notáveis”, que contam com apoio de uma burocracia,
cuidam do financiamento (através de mecenas e contribuições de
associados), do programa do partido e de seus candidatos.

Segundo o autor, os partidos políticos em Estados modernos possuem


dois princípios básicos:

1) organizações de patronagem de cargos, ou seja, buscam eleger seu


chefe na posição de dirigente e, assim, ocupar os demais cargos
estatais com seus partidários – por exemplo, a disputada eleitoral entre
o Partido Democrata e o Partido Republicano nos Estados Unidos
da América, considerado por Weber um “Estado parlamentar”;
2) organizações representantes de ideologias, propondo a realização de
ideias com conteúdo político – por exemplo, partidos religiosos, partidos
que se denominam “liberais”, “conservadores”, “socialistas” entre outros.

Para Max Weber, os partidos têm simultaneamente os fins políticos


objetivos, transmitidos pela tradição, mas aspiram também à patronagem,
na qual buscam os cargos diretivos para selecionarem para a “máquina”
os demais partidários enquanto durar o domínio do partido. E é
justamente a luta por cargos o grande embate entre os partidos.

E assim como ocorreu na administração estatal e na economia, a


burocratização também ocorreu nos partidos. Com a racionalização
crescente e a organização burocrática, o poder político de um partido
passa a se fundamentar também na qualidade da organização dos
quadros e dos funcionários, assim como nas técnicas de campanha
76 Uniube

eleitoral. Com a democracia, o voto das massas e a necessidade de


atraí-las e organizá-las, aprofundou-se o desenvolvimento da unidade
partidária e de disciplina rigorosa: aumentou assim o número de “políticos
profissionais” e “funcionários remunerados”, restritos, no momento anterior,
aos núcleos centrais, saindo de cena o “grupo de notáveis”.

Diz Weber, de forma completa e em resumida passagem,


a moderna propaganda em massa faz da racionalização
do empreendimento partidário, dos funcionários, da
disciplina, das finanças, da imprensa e da propaganda
do partido o fundamento dos sucessos eleitorais. A
organização dos partidos fica cada vez mais rigorosa.
Estes se esforçam por integrar já a juventude em
seu séquito. Organizam cooperativas, uniões de
consumidores e sindicatos e colocam seus homens
de confiança como funcionários nos cargos partidários
assim criados. Criam escolas para oradores e outros
institutos para a instruções de agitadores, redatores e
funcionários, em parte com fundos milionários. Nasce
toda uma literatura partidária, alimentada pelos mesmos
capitais, doados por interessados, que compram
jornais e fundam agências de anúncios e outras coisas
semelhantes. Crescem imensamente os orçamentos
dos partidos, pois aumentam continuamente os custos
das eleições e o número dos necessários agitadores
remunerados. Cresce a importância do aparato do
partido e, no mesmo grau, decresce a importância dos
notáveis. (WEBER, 2015b, p. 569).

Para o autor, independentemente da estrutura social interna dos partidos,


a racionalização da burocracia e da gestão financeira são fenômenos
concomitantes da democratização. Se os partidos se modernizam e
a luta por votos fica cada vez mais acirrada, o aparato do governo,
representante de um outro partido momentaneamente em posse do
poder, também participa da relação. Destaca Max Weber a imprensa
do chanceler Otto von Bismarck (1815-1898), um dos responsáveis
pela unificação alemã, durante o império de Guilherme II. Segundo o
autor, a imprensa do governo era financiada pelo “fundo dos Welfen”
(Welfenfonds) e era destaque pelo tom e pela “inescrupulosidade dos
meios”, com tentativas constantes de criação de uma imprensa local
completamente dependente do aparato oficial dominante.
Uniube 77

Independentemente se as corporações eleitorais selecionarão


líderes politicamente responsáveis ou aqueles que praticarão “uma
política negativa” de interesses e propinas; se a luta dos partidos
costumeiramente é alimentada por interesses puramente materiais
e pessoais, a aplicação do direito penal, segundo o autor, pode ser
uma forma de combater os “ataques contra honra pessoal”, “contra a
vida particular do adversário” e, dialogando diretamente com o nosso
contexto atual de fake-news, “divulgação irrefletida de afirmações
sensacionais falsas” (WEBER, 2015b, p. 570).

Um dos questionamentos finais é: quais são as consequências


da democratização progressiva dos meios e das organizações da
luta política para as formas de sua ação, tanto parlamentar quanto
extraparlamentar? Weber responde então pela necessidade de um
“político profissional”:
Homem que pelo menos idealmente, mas na maioria
dos casos sem sentido material, faça das atividades
políticas dentro de seu partido o conteúdo de sua
existência”. Em sua forma atual, esta figura é o
produto inevitável da racionalização e especialização
do trabalho político dos partidos, sobre o fundamento
das eleições de massas. (WEBER, 2015b, p. 570).

E há dois tipos: os que vivem materialmente “do” partido e das atividades


políticas e aqueles que, ainda mais por “idealismo”, vivem “para” a política,
faz da política o ideal de vida e que não buscam recompensas materiais.

O segundo questionamento final feito é: em que direção se desenvolve


a liderança dos partidos sob a pressão da democratização e da
importância dos políticos profissionais, dos funcionários partidários, e
como é a repercussão sobre a vida parlamentar?

Um dos efeitos, para Max Weber, é a figura do demagogo: “e um


demagogo bem-sucedido é quem tem menos escrúpulos na aplicação dos
meios para atrair as massas” (WEBER, 2015b, p. 571). Democratização e
78 Uniube

demagogia formam um par independe da Constituição estatal, na análise


do autor. No Estado moderno, o líder político não é mais proclamado
um candidato, em virtude do seu reconhecimento e competência em
determinado estamento aristocrático (em certos regimes monárquicos
eletivos) ou pela atuação no Parlamento (em certas eleições indiretas,
em que a câmara elege o chefe político do Estado – chamadas de
parlamentar, pelo autor), mas sim pela crença e confiança depositada
pelas massas em torno de uma pessoa através do voto direto – eleição
chamada de plebiscitária, pelo autor.

Relembrando

Lembre-se de que há distintas formas e sistemas de governo, distintas


posições de chefias políticas, distintos regimes políticos, distintas câmaras
de representantes legislativos e distintas formas de se eleger um chefe
político. Tudo dependerá de cada Estado e sua constituição e lei. Em geral,
temos, como formas e sistemas de governo: monarquia absoluta (os reis
absolutistas e a atual Arábia Saudita, por exemplo), monarquia constitucional
parlamentar (atualmente a Espanha, Japão, Suécia e Países Baixos),
república presidencial (como é no Brasil e nos EUA), república parlamentar
(na África do Sul, Índia e Finlândia), república semipresidencial (tal como
na França e Rússia). E há também os diferentes tipos de chefes políticos,
principalmente o Presidente (eleito pelo voto direto) e o Primeiro-Ministro
(indicado pelo Parlamento). No Reino Unido, por exemplo, a chefe de Estado
é a rainha Elizabeth II, mas o primeiro-ministro é o chefe de governo e é ele
quem detém diversos poderes – eleito pela House of Commons (Câmara dos
Comuns). A Alemanha, por exemplo, é uma república federativa com grande
autonomia dos estados, cujo o posto de Presidente, chefe de Estado, é quase
simbólico devido à limitação de seus poderes, enquanto o chanceler federal
é o chefe de governo e eleito pela Bundestag (Câmara Baixa). Há ainda
diferentes regimes políticos, como os autoritários e os democráticos: a China,
por exemplo, é uma república e um regime autoritário.
Uniube 79

Apesar de todas as diferenças que estavam vigentes na Europa, Weber


afirma que para uma política estável é necessário um parlamento forte
e partidos parlamentares responsáveis. Escreve ainda que um perigo
político que a democracia de massas traz é a forte preponderância
de elementos emocionais na política. Weber denomina “política de
rua” o que impera em países nos quais o parlamento é impotente ou
desacreditado, o que significa a ausência de partidos racionalmente
organizados (WEBER, 2015b, p. 580).

Veremos então uma análise política de Max Weber para a o período


da unificação alemã.

3.2.1 O chanceler Bismarck e a reconstituição alemã

No interessante texto, Parlamentarismo e governo numa Alemanha


reconstruída: uma contribuição à crítica política do funcionalismo e
da política partidária, Max Weber (1980) analisa as ações e os jogos
políticos na formação do II Reich após a unificação alemã. O autor
retrata uma Alemanha marcada por uma monarquia constitucional
durante as décadas de 1870 e 1880, cujo imperador era o rei da
Prússia, Guilherme II, enquanto Otto von Bismarck (1815-1898) era
o primeiro-ministro, ou chanceler (reichskanzler), como é chamado
na Alemanha. Bismark foi um nobre, general e político prussiano e,
quando primeiro-ministro desse estado germânico, foi o responsável
por promover o militarismo alemão, atuando na condução das guerras
contra a Dinamarca (1864), a Áustria (1866) e a França (1870-1871).
Esses conflitos desempenharam um papel importante na unificação dos
estados e criação do Império Alemão em janeiro de 1871, estabelecendo
uma monarquia parlamentarista.

Conhecido como “chanceler de ferro”, atuou como chefe de governo de


1871 a 1890, e foi responsável pelo direito ao voto, uma problemática
central na obra de Weber, assim como por propor alguns sistemas
80 Uniube

de seguridade social e focar no desenvolvimento econômico do país.


Por outro lado, dotado de valores conservadores, foi responsável pela
perseguição aos socialistas, sendo um dos percussores da propaganda
e leis anticomunistas e anarquistas, assim como foi em seu governo que
o Império Alemão adotou uma política colonial na África.

O objetivo de Max Weber (1980) é analisar como se configurava, naquele


momento, a organização política alemã; qual a relação do então Reichstag
com as questões referentes à democracia, à liberdade, à liderança política,
ao Estado e à burocracia – temas e conceitos importantes para a sua teoria
sociopolítica. O autor também questiona qual a herança de Bismarck para
a política alemã e conclui afirmando como essa relação foi, apesar da
genialidade política do chanceler, prejudicial à Alemanha.

O quadro abaixo sintetiza os agentes e as relações de dominação em


questão:
Quadro 1 – Agentes políticos e tipos puros de dominação legítima

AGENTE/INSTITUIÇÃO TIPO PURO DE DOMINAÇÃO


Otto von Bismarck (Líder) Dominação Carismática
Reichstag e os partidos políticos
Dominação Tradicional
(Sistemas representativos)
Burocracia Dominação Legal

Fonte: Elaborada pelo autor.

A liderança política é uma questão fundamental em diversas obras do


pensador alemão. Para o autor, Bismarck foi um político exemplar, não
só pelas jogadas políticas desde antes da unificação, mas pela sua
atuação parlamentar: adotou mecanismos de cooptação e alianças para
que pudesse dominar os demais partidos; utilizou-se habilmente dos
debates sobre as questões tarifárias, o orçamento militar e, principalmente,
a legislação antissocialista, o que ocasionou a extinção de partidos
socialistas e do socialdemocrata, um dos mais importantes naquele
momento. E o conhecimento do chanceler sobre a atuação do parlamento
era vasta, afinal, ele próprio havia redigido a Constituição.
Uniube 81

Apesar dessa genialidade política para permanecer no governo e controlar


o parlamento, Max Weber ressalta o processo de desarticulação do
parlamento alemão, já que essas medidas de controle sobre os demais
partidos, em torno da figura carismática de Bismarck, ocultou a formação
de novos líderes políticos e não promoveu a conscientização das massas.
Há uma espécie de política falida, não funcional, na qual o parlamento não
exerce sua real função. Por exemplo, não havia a criação de consenso,
diálogo e tomada de decisão coletiva na câmara. Para o autor, o chanceler
inviabilizou a construção de uma classe política mais competente, fragilizando
a democratização alemã.

Uma outra preocupação é a burocratização. Para Weber, é preciso


compreendê-la enquanto uma criação moderna, do mundo moderno
e que representa um poder paralelo ao do monarca e do parlamento.
Assim, a burocracia transforma-se em ator político. No âmbito da
política moderna, além de desempenhar papel decisivo na formação
do partido político, possui um outro papel que é garantir a aplicação do
direito a todos. E a crítica recai sobre o conservadorismo do burocrata.
O burocrata é oposto ao líder político. Essa relação entre burocratização
e liderança política pode vir a ser maléfica no sentido de que, se o líder
político não cumprir seu papel, a lacuna é ocupada pelo burocrata. Isso
traz outros dois pontos de discussão: a especialização e o treinamento
racional e como essas questões se tornam relevantes no exercício de
um papel dentro do Estado. Um dos desdobramentos é a “tecnocracia”
e o Brasil viveu isso sob o regime ditatorial de Getúlio Vargas.

Saiba mais

Segundo Norberto Bobbio (1998), há o técnico (ator social, especialista,


dotado de competência num determinado setor específico) e há o tecnocrata
(um perito em ideias gerais e não um especialista). Na tecnocracia, há
82 Uniube

uma situação em que o burocrata do Estado se torna esse tecnocrata, um


funcionário que visa à aplicação de conhecimentos científicos e técnicos a
diversos processos, uma tradição que vem do cientificismo e do positivismo.
Diversas vezes, várias categorias socioprofissionais foram referidas como
tecnocráticas: engenheiros, economicistas, burocratas do Estado-Maior das
forças armadas etc. Parte-se do princípio de que, em um sistema tecnocrata,
a emancipação frente aos poderes tradicionais da política torna a gestão
despolitizada: com “peritos” e “técnicos” ocupando o lugar de políticos, o resultado
seria melhor gestão e eficiência. Esse sistema teve maior amplitude no
Brasil de Getúlio Vargas, com a criação de conselhos técnicos integrados
à administração do Estado, tais como: de Águas e Energia, do Café, do
Comércio, do Comércio Exterior, do Petróleo, de Serviços Públicos etc.

O diagnóstico de Weber acusa o enfraquecimento do parlamento, a


culpa do líder carismático e a predominância do poder burocrático sobre
o poder político. Liderança forte e carismática, aliada a uma burocracia
forte, diminuiu a atuação do parlamento e enfraqueceu a nascente
democracia alemã. Isso ocorre porque somente o parlamento pode
frear a máquina burocrática através da seleção de líderes políticos,
dinâmica cerceada pelo governo de Bismarck e herança política de seu
governo. Não à toa, a República de Weimar (1919-1933), pós fim do
Império Alemão, sofreu diversas turbulências políticas e sérios conflitos
partidários, entre eles duas tentativas de golpe de estado: enfrentou a
“Revolução Alemã” (1918-1919), uma tentativa da Liga Espartaquista,
dissidência do Partido Comunista; e em 1923 o “Putsch da Cervejaria”
ou “Golpe da Baviera”, uma tentativa nazista liderada por Adolf Hitler.
Com a deterioração econômica, com partidos inábeis e sucessivos
estados de emergência sendo decretados, em quase quatorze anos
da República de Weimar, quinze foram os chefes de governo que
ocuparam a chancelaria, sendo o último deles o austríaco Adolf Hitler.
Uniube 83

3.3
Os partidos políticos no Brasil (1822-1930)

3.3.1 Do Primeiro ao Segundo Reinado (1822-1889)

Em 1824, a Constituição Política do Império do Brazil definiu o governo


como monárquico hereditário, constitucional e representativo. Definiu
também que teríamos quatro Poderes políticos: Legislativo, Moderador,
Executivo e Judicial, sendo o Poder Legislativo delegado à Assembleia
Geral, composta pela Câmara de Deputados e a Câmara de Senadores,
ou Senado. Nos estados, chamados naquela época de províncias, eram
eleitos os membros dos Conselhos Gerais das Províncias e toda essa
estrutura era via eleição indireta, sendo o voto direto apenas para as
câmaras municipais e juízes de paz (BRASIL, 1824).

Durante o Primeiro Império (1822-1831), reinado de D. Pedro I, ainda


não havia partidos políticos organizados de forma oficial. Entretanto,
havia na atividade legislativa a presença de uma elite econômica e
política que se dividia majoritariamente entre dois grupos: de um lado,
monarquistas que pregavam a defesa da ordem monárquica, a garantia
da propriedade e desejavam um país centralizador, com a figura de
um imperador forte; do outro lado, liberais que também defendiam
a manutenção da ordem e a garantia da propriedade, mas também
defendiam liberdades constitucionais e uma certa descentralização do
poder político (ALMEIDA, 2015).

Com a “Revolução de 7 de Abril de 1931”, que culminou com a abdicação


de D. Pedro I e início dos períodos regenciais (1831-1840), houve a
formação oficial dos primeiros partidos políticos no Brasil. Naquele
momento alguns grupos tentavam se organizar: havia o grupo restaurador,
que defendia a volta de D. Pedro I; havia o republicano, que desejava
84 Uniube

a abolição da monarquia; e, por fim, o liberal, que buscava reformas


na Constituição, mas conservando a forma monárquica. Um dos
primeiros a ser formado foi justamente o Partido Liberal (1831), com
ideias vistas como mais “democraticas” e defendendo uma monarquia
federativa e que não reconhecia o imperador como poder político,
propondo que o Poder Executivo tomasse as atribuições do Poder
Moderador, criado pela Constituição de 1824. Anos mais tarde houve
o aparecimento do Partido Conservador (1837), durante os embates
entre o Legislativo, o Executivo e a regência do senador liberal Diogo
Antônio Feijó (1835-1837). Defendia o Partido Conservador um menor
poder para as assembleias provinciais – que havia ganhado espaço
durante o período regencial –, reforçando novamente a centralização do
poder no governo central e sob o regime representativo e monárquivo.
O partido também recebeu aqueles “restauradores” e “regressitas”
quando D. Pedro I faleceu, em 1834 (MELO, 1878).

Já no Segundo Império ou Segundo Reinado (1840-1889), iniciado em


23 de julho de 1840 com a “Declaração da Maioridade” ou o “Golpe da
Maioridade”, o partido tinha por objetivo cessar as disputas políticas do
período regencial, assim como os diversos conflitos civis que ocorriam
pelo país, como a Revolta dos Malês (1835), a Cabanagem (1835-1840),
a Guerra dos Farrapos (1835-1845), a Sabinada (1837-1838) e a Balaiada
(1838-1841). Com a aclamação da maioridade de D. Pedro II pela
Assembleia Geral, o imperador, então com 14 anos, assumiu de fato o
Império e foi coroado no ano seguinte, em julho de 1841.

Durante o seu reinado houve a criação do Partido Progressista


(1862), formado por liberais e conservadores moderados. Apesar do
nome, o partido era monarquista e contra a reforma da constituição.
Era também contra a eleição direta e sufrágio universal, assim como
era contra a descentralização política e a favor da severa punição
dos crimes. Em contrapartida, era a favor da liberdade individual,
da descentralização administrativa para a província e municípios e
Uniube 85

a separação da polícia e do sistema judiciário. Pouco tempo depois


esse partido teve um cisma: os “liberaes históricos”, em um processo
de cisão desde 1864, fundo-se o Partido Liberal-Radical (1868) que
atuou através do jornal Opinião Liberal. Defendiam a extinção do Poder
Moderador, eram partidários do sufrágio direto e geral, defendiam
o ensino livre nas escolas e a abolição da Guarda Nacional. Eram
favoráveis também a uma “substituição lenta e gradual do trabalho
escravo pelo livre”, a uma polícia eletiva e a uma descentralização
política (MELO, 1878).

É importante destacar nesse momento o que é chamado de


“parlamentarismo às avessas”. Com o Poder Moderador, o Imperador
tinha amplos poderes sobre a Constituição e sobre o legislativo
nacional. Um dos vários exemplos ocorreu em julho de 1868. Após o
poder imperial derrubar o ministério progressista organizado desde
1866 e estabelecer um novo gabinete ministerial conservador em 16 de
julho, a Câmara apresentou uma moção de desconfiança ao governo,
com 85 votos a favor (a maioria progressista e a minoria liberal) e
10 contrários (9 conservadores e 1 progressista). O resultado foi que,
dois dias depois, D. Pedro II dissolveu a Assembleia Geral através
do decreto n.º 4.226. Um dos desdobramentos foi a reformulação do
Partido Liberal (1869) em um novo programa em defesa do regime
constitucional representativo e diversos princípios fundamentais,
entre eles: “a máxima – o rei reina e não governa”, a descentralização
política e administrativa; maior liberdade de comércio e indústria, e
contra privilégios e monopólios; garantia da liberdade de consciência;
independência do Poder Judiciário; reforma do Senado e supressão
da vitacilidade; reforma eleitoral, policial e judicial; abolição da Guarda
Nacional e “emancipação dos escravos, consistindo na liberdade de
todos os filhos de escravos, que nascerem desde a data da lei e na
alforria gradual dos escravos existentes pelo modo que oportunamente
será declarado” (MELO, 1878, p. 43).
86 Uniube

De uma forma ampla, todo o período foi permeado pela disputa


entre o Partido Conservador (Saquaremas) e o Partido Liberal
(Luzias): saquaremas porque parte de seus partidários residiam na
região do município fluminense de Saquarema, enquanto os liberais
tinham sua alcunha por causa da vila mineira de Santa Luzia, palco
da fracassada Revolta Liberal (1842). Ambos eram comandados
por barões, viscondes, condes e todo o estamento aristocrático do
Império: defendiam a manutenção do poder monárquico e do sistema
escravocrata. Os partidos, apesar de pertencerem a uma mesma
camada política e econômica, com poucas diferenças de posição
ideológica e favoráveis à manutenção de seus privilégios, possuíam
algumas diferenças: enquanto os conservadores eram favoráveis a uma
maior centralização do poder na figura do Imperador, os liberais eram
partidários de uma maior autonomia local para as províncias, já calcadas
no federalismo. Ainda, segundo Lilia Schwarcz e Heloísa Starling
(2015), os conservadores representavam a aliança da burocracia com
o grande comércio e as grandes lavouras de exportração, enquanto os
liberais representavam a aliança de profissionais liberais urbanos e a
agricultara voltada para o mercado interno.

Como já deve ser de seu conhecimento, durante grande parte do


Império, somente homens com mais de 25 anos e com renda líquida
anual acima de 200 mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou
emprego poderiam votar e exercer a política: era o voto censitário.
Aqueles com renda de 100 mil réis, chamados “votantes”, estavam
aptos a votarem apenas para sua Paróquia, na chamada eleição
primária para a Assembleia Paroquial, enquanto os mais abastados e
eleitos nas eleição primárias, chamados “eleitores”, votavam também
para os representantes da Província e Senado. Ou seja, em uma livre
conversão para os dias atuais, seria um valor mínimo superior a R$
1 milhão. Ainda, candidatos a deputado deveriam ter renda mínima
de 400 mil réis, enquanto para o Senado chegava a 800 mil réis. Em
relação aos senadores, o Imperador ainda escolhia o terço da totalidade
Uniube 87

a partir de uma lista tríplice (BRASIL, 1824). Somente com a reforma


da legislação eleitoral em 1881, a chamada “Lei Saraiva”, é que foram
estabelecidas eleições diretas para o Senado, Câmara e Assembleias
Legislativas Provinciais. Entretanto, manteve apto a votar apenas o
cidadão brasileiro com renda líquida anual não inferior a 200 mil réis
e aumentou ainda mais a renda mínima para o cargo de deputado,
passando este para 800 mil réis e o de senador a 1 conto (mil mirréis)
e 600 mil réis (BRASIL, 1881).

Quadro 2 – Eleição no Brasil imperial antes da Lei Saraiva (1824-1881)

CARGO VOTO QUEM VOTA? QUEM PODE SER VOTADO?

“Votantes”: cidadão
brasileiro a partir dos Cidadão brasileiro, a partir
Assembleia
Direto 25 anos e com renda dos 25 anos, com renda
Paroquial anual líquida mínima líquida anual de 200 mil réis.
de 100 mil réis

“Eleitor”: cidadão brasileiro a


“Eleitores”: eleitos
Conselho Provincial Indireto partir dos 25 anos, com renda
pelos “votantes” líquida anual de 200 mil réis.

“Eleitor”: cidadão brasileiro a


partir dos 25 anos, com renda
“Eleitores” da
Câmara Indireto líquida anual de 400 mil réis
Província
e que professa a Religião do
Estado.

“Eleitores” da
Cidadão brasileiro, a partir
Província e o terço
Senado Indireto dos 40 anos, com renda
escolhido pelo
líquida anual de 800 mil réis.
Imperador

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da Constituição de 1824.

Em 1881, o Brasil possuía 12 milhões de habitantes e apenas 150 mil


eleitores, ou seja, 1,25% da população tinha direito ao voto, número que
diminuía ainda mais caso desejasse concorrer a cargos eletivos como
de deputado ou senador. Com a Lei Saraiva, o eleitorado brasileiro
reduziu para 0,8% (GRANHAM, 1997). Situação bem diferente da atual,
com 211, 8 milhões de habitantes e 147,9 milhões de eleitores, em que
quase 70% da população está apta a votar.
88 Uniube

3.3.2 A Primeira República (1889-1930)

Em 3 de dezembro de 1870, o recém-criado Partido Republicano (1870)


lançou seu manifesto em seu órgão de imprensa, o jornal A República.
Um dos princípios fundamentais que regia o partido era a autonomia
provincial sob o regime federativo, elevando as províncias à categoria
de Estados próprios, unidos pela nacionalidade e solidariedade. Dois
anos mais tarde, em São Paulo, o Club Radical declarou-se republicano,
assim como aconteceu em outras localidades. O jornal Correio
Paulistano (1854-1930), que nasceu liberal e se tornou conservador,
passou a ser o órgão do recém-criado Partido Republicano Paulista
(1872), independentemente do Partido Republicano estabelecido na
Côrte. Em 18 de janeiro de 1872, o partido apontou diversas diretrizes
que condizem com a formação do partido político no Estado Moderno,
tal como pontuado por Weber, e podemos destacar os seguintes:
2º [...] empregar os meios legítimos de organizar e
fortalecer o partido nas condições de achar pronto
para entrar na próxima luta eleitoral, quando assim
seja necessário.
3º O mais amplo e eficaz apoio deve ser prestado à
imprensa republicana, principalmente a da Côrte e da
Província.
4º Dada a necessidade de acordo para qualquer fim
entre os diversos clubs ou núcleos, a qualquer destes
pertence a iniciativa de fazer a comunicação por
escritos circulares, ou de convocar um congresso dos
representes dos núcleos locais, o qual se reunirá em
qualquer localidade, conforme for combinado.
Das bases expostas, fica evidente que o elemento
essencial de vida e marcha regular do partido é a
plena liberdade de ação e iniciativa dos clubs ou
núcleos locais, conservando-se estes no possível
pé de igualdade, quer entre si, quer em relação ao
central atualmente na Côrte [...]. (MELO, 1878, p.
104-106).
Uniube 89

É possível observar como o PRP já buscava o desenvolvimento e


organização racional do partido, destacando a luta eleitoral e o papel
da imprensa. Posteriormente, em abril de 1873, foi definida a criação
de uma assembleia de representantes do partido na capital, existindo
em cada município da província um representante. Para as eleições
internas, foi adotado também o sufrágio universal, com direito de voto o
“republicano maior de 21 anos” e sem condenação por setença criminal,
que, reunidos em Congresso do partido, teriam por objetivo elegerem a
assembleia responsável pelos negócios da sigla e entendimento com
os clubes municipais (MELO, 1878).

Com o golpe republicano em 15 de novembro de 1889 e após a “República


da Espada” (1889-1894), o Partido Republicano assumiu o governo central
e elegeu a maioria dos presidentes estaduais durante a Primeira República
(1889-1930). Vejamos no quadro abaixo algumas características:

Quadro 3 – Presidentes do Brasil, com destaque para a idade e partido dos candidatos (1889-1930)

PRESIDENTE IDADE PARTIDO FORMA OBS.:

Mal. Deodoro
62 ─ Golpe  
da Fonseca
Mal. Deodoro Eleição O Presidente
─ ─
da Fonseca indireta renuncia

Mal. Floriano Peixoto 52  ─ ─ O Vice assume

Prudente J. de Eleição
53 PRP  
Moraes e B. direta
Manoel F. de Eleição
57 PRP  
Campos Salles direta
Francisco P. Eleição
54 PRP  
Rodrigues Alves direta
Eleição O Presidente
Affonso A. M. Penna 59 PRM
direta falece
90 Uniube

Nilo P. Peçanha 42 PRF ─ O Vice assume

Mal. Hermes Eleição


55 PRC  
da Fonseca direta
Eleição
Wenceslau Braz P. G. 46 PRM  
direta
Francisco P. Eleição Falece antes
70 PRP
Rodrigues Alves direta de assumir
Delfim Moreira
50 PRM ─ O Vice assume
da C. R.
Epitácio L. da Eleição
54 PRM  
S. Pessoa direta
Arthur da S. Eleição
47 PRM  
Bernardes direta
Washington Eleição
57 PRP Deposto em 1930
Luís P. de S. direta
Eleição Eleito em 1930,
Júlio Prestes 47 PRP
direta mas não assume

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da Biblioteca da Presidência da República.

Observamos que, em doze eleições realizadas, em onze delas houve vitória


de algum partido republicano, fosse o paulista (PRP), o mineiro (PRM) ou o
conservador (PRC), sobretudo do PRP, com seis candidatos eleitos, seguido
pelo PRM com quatro. A dominação republicana se mostra ainda maior
quando analisarmos os partidos dos vices, também republicanos, como foi
o caso de Nilo Peçanha, vice pelo Partido Republicano Fluminense (PRF).

Saiba mais

Você sabia que, segundo o IBGE, a expectativa de vida de um brasileiro era


de 33,7 anos em 1900? E que em 2019 chegou a 76,6 anos?
Uniube 91

E a dominação do PRP não era por falta de concorrência. Além dos demais
partidos republicanos estaduais, tais como o baiano, o rio-grandense, o
catarinense e outros, havia ainda o Partido Democrático de São Paulo,
aliado da Aliança Liberal na tomada de São Paulo no golpe de 1930, o
Partido Libertador, o Partido Comunista, o Bloco Operário e Camponês
e outros partidos estaduais – ressaltando que, na “República Velha”, a
grande maioria dos partidos tinha abrangência estadual e não possuíam
organização a nível nacional, tal como é obrigatório hoje em dia.

Há outras características interessantes a respeito dos primeiros presidentes


republicanos. Vejamos um outro quadro:
Quadro 4 – Presidentes do Brasil, com destaque para a naturalidade e formação profissional
(1889-1930)

PRESIDENTE NATURALIDADE PROFISSÃO FORMAÇÃO

Mal. Deodoro Marechal


Militar ─
da Fonseca Deodoro/AL

Mal. Deodoro
─ ─ ─
da Fonseca

Floriano
Mal. Floriano Peixoto Militar ─
Peixoto/AL

Prudente J. de Fac. Direito de


Itu/SP Advogado
Moraes e B. São Paulo (1863)

Manoel F. de Fac. Direito de


Campinas/SP Advogado
Campos Salles São Paulo (1863)

Francisco P. Guaratinguetá/ Fac. Direito de


Advogado
Rodrigues Alves SP São Paulo (1870)

Santa Bárbara/ Fac. Direito de


Affonso A. M. Penna Advogado
MG São Paulo (1870)

Fac. Direito de
Nilo P. Peçanha Campos/RJ Advogado
Recife (1887)

Mal. Hermes
São Gabriel/RS ─
da Fonseca

Fac. Direito de
Wenceslau Braz P. G. Brasópolis/MG Advogado
São Paulo (1890)
92 Uniube

Francisco P. Guaratinguetá/ Fac. Direito de


Advogado
Rodrigues Alves SP São Paulo (1870)

Fac. Direito de
Delfim Moreira da C. R. Cristina/MG Advogado
São Paulo (1890)

Epitácio L. da Fac. Direito de


Umbuzeiro/PB Advogado
S. Pessoa Recife (1886)

Fac. Direito de
Arthur da S. Bernardes Viçosa/MG Advogado
São Paulo (1900)

Washington Fac. Direito de


Macaé/RJ Advogado
Luís P. de S. São Paulo (1891)

Fac. Direito de
Júlio Prestes Itapetininga/SP Advogado
São Paulo (1906)

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da Biblioteca da Presidência da República.

O quadro nos mostra que, dos quatorze presidentes que tivemos no


período, onze eram advogados, todos do interior e nove deles formados
na Faculdade de Direito de São Paulo. Podemos observar que alguns
frequentaram, inclusive, a mesma turma que outro presidente, como
Prudente de Moraes e Campos Salles em 1863, assim como os mineiros
Wenceslau Braz e Delfim Moreira em 1890. Ou seja, por quatro décadas,
não tivemos representatividade de qualquer outro profissional no cargo
máximo da República, fosse um industriário, um comerciário, um operário
ou tantas outras possibilidades.

A República Velha ficou marcada pela “política dos governadores”, pela


“política café com leite”, pela continuidade das fraudes eleitorais, pelas
cíclicas crises econômicas e pelos diversos estados de sítio que foram
decretados. Com a insatisfação crescente das elites oligárquicas de
outros estados que não se sentiam contempladas com a divisão do poder,
somada também à insatisfação popular que aumentou ainda mais com a
crise de 1929, vimos um ano mais tarde o golpe militar de Getúlio Vargas.
A Aliança Liberal, derrotada na eleição de março de 1930, defendia o que
outras plataformas liberais já defendiam: reforma política, reforma eleitoral
e o fim do domínio oligárquico da elite cafeeira paulista. Angariando força
Uniube 93

política junto às classes médias favorecidas pelo crescimento burocrático


do Estado, com a cooptação de parte do movimento “tenentista” em suas
mais díspares ideologias, com as oligarquias do nordeste, do Rio Grande
do Sul e com a ex-aliada de São Paulo, Minas Gerais, o assassinato de
João Pessoa em julho de 1930, ex-candidato à vice na chapa de Getúlio,
serviu como estopim para o início do golpe.

Entretanto, a “Revolução de 1930”, também representou interesses do


setor agropecuário, extrativista e voltado para o mercado externo de outras
elites estaduais, tais como os estancieiros gaúchos. Paralelamente, políticas
que beneficiaram os cafeeicultores paulistas foram tomadas, apesar
da perda da autonomia estadual através da política de interventores
federais. O Brasil viveu uma ditadura que durou até 1945, com um breve
período de fôlego com a Constituição de 1934, logo solapada pela Lei de
Segurança Nacional (1935) e pelos decretos de estado de sítio (1935)
e de guerra (1936), enterrada de vez com o golpe do “Estado Novo” e a
Constituição de 1937. Com o fechamento dos congressos, Vargas criou
o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), esterilizando
ainda mais as discussões políticas e qualquer resquício de exercício da
democracia parlamentar.

3.5
Considerações finais

Durante quase sete décadas, tivemos o poder Moderador atuando


sobre o Poder Legislativo nacional, conferindo aos autocratas, nossos
imperadores, a prerrogativa de dissolverem as câmaras legislativas,
os gabinetes ministeriais e a extinção dos nascentes partidos – apesar
de, em boa parte desse tempo, os principais partidos defenderem a
manutenção do regime monárquico.
94 Uniube

Com o golpe republicano, feito por um marechal monarquista, a República


Federativa não trouxe sorte aos partidos políticos. Entre 15 de novembro
de 1889 a 24 de outubro de 1930, em um período de quarenta e um anos,
o Brasil teve: vinte e cinco meses sob governo provisório; um presidente
foi deposto e um renunciou; uma vez ocorreu a destituição das câmaras
legislativas; nove anos sob governo de presidentes militares; ao mínimo,
quatorze conflitos bélicos internos, mais da metade ocorrendo ainda
antes da Primeira Guerra Mundial; e ao menos três declarações de
estado de sítio a nível nacional, sem contabilizar os decretos estaduais,
resultando em quase toda a década de 1920 sob um regime de exceção
legal, levando também a criação de polícias políticas estaduais. Ainda, no
período varguista, ao menos duas vezes as câmaras legislativas foram
dissolvidas, as eleições, quando havia, eram indiretas, e os partidos
políticos foram extintos com à criação do “Estado Novo” (HORTA, 2020).

Em meio a tanta autocracia, autoritarismo e rupturas, o que era possível


esperar dos partidos políticos? Menos de vinte anos depois, um novo golpe
fechou as câmaras legislativas e extinguiu os partidos políticos, sendo
restabelecidos depois sob um regime bipartidário que perdurou até 1985. O
que Weber pensaria do caso brasileiro? Sobre a atuação desses políticos no
ambiente parlamentar ou do funcionalismo partidário no extra-parlamentar?
Quais as formas de dominação utilizadas? E quais foram as formas de
cooptação dos partidos e a inibição do desenvolvimento de novas lideranças
políticas? O campo da teoria política é vasto e permite aprofundar em
diversas questões que dialogam não apenas com a Alemanha ou o Brasil,
mas também em diversas áreas da vida social e Max Weber traz algumas
referências conceituais importantes que auxiliam nessa análise.
Uniube 95

Resumo

Foi possível aprender neste capítulo alguns conceitos básicos de Max


Weber e como podemos usá-los para compreendermos determinada
realidade partidária. Vimos conceitualmente como o partido político
moderno é um desdobramento de um Estado moderno, racional, burocrático
e também com interesses econômicos de certas classes ou estamentos
sociais que se encontram na luta partidária, nas eleições e plebiscitos. O
partido político moderno é o que melhor caracteriza o desenvolvimento da
“democracia” na busca pelo poder político, pelo controle dos meios de gestão
de um Estado. Vimos brevemente também como ocorreu, no Brasil, a
formação dos primeiro partidos no sentido moderno e como estes foram
se constituindo até o final da Primeira República.

Referências
ALMEIDA, Felipe. Partidos políticos. Dicionário Período Imperial. MAPA
– Memória da Administração Pública Brasielira, Arquivo Nacional. 24 fev.
2015. Disponível em: http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-
2/297-partidos-politicos-no-periodo-imperial. Acesso em: 30 maio 2021.

BRASIL. Carta de Lei de 25 de março de 1824. Constituição Política do Império


do Brazil. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 30 maio 2021.

BRASIL. Decreto no 3.029, de 9 de janeiro de 1881. Reforma a legislação


eleitoral. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: https://www.
tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/lei-saraiva. Acesso em: 30 maio 2021.

GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil


do século XIX. Rio de Janeiro: EdUFRJ,1997.
96 Uniube

HORTA, Filipe Moreno. O presídio político da ilha anchieta (1931-1942):


comunistas, “indesejáveis” e “trabalhadores” sob sigilo em Ubatuba.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Departamento de Sociologia,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos-SP, 2020.

MELO, Américo Brasiliense de Almeida e. Os programas dos partidos e


o 2º Império. São Paulo: Typ de Jorge Seckler, 1878. Disponível em: http://
www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/179482. Acesso em: 30 maio 2021.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil:


uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações.


13. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015a. v. 1.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015b. v. 2.

WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída:


uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária.
In: ABRIL. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, p. 1-85, 1980.
Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 4

A República e
as alterações
no sistema
político: de
1930 ao auge do
Estado Novo
Adriana Marques Aidar
Introdução

Bem-vindos e bem-vindas!

Vamos retomar nosso percurso de aprendizado, deixando


os períodos do Império e a Primeira República. Sobre eles,
no entanto, vamos relembrar algumas características da
organização tanto política quanto administrativa, antes de
passarmos para o período histórico que estudaremos neste
capítulo.

Os anos entre 1930 e 1945 são marcados pela escalada do


autoritarismo e também por trazerem à tona uma série de
conflitos de interesses que já eram velhos conhecidos no
Brasil, inclusive, e talvez principalmente, em relação ao tipo
de Estado que seríamos. No mundo, nós nos ajustávamos
a uma série de importantes descobertas científicas, algumas
delas, inclusive, tiveram muita importância para os debates nas
ciências humanas e sociais, inclusive no campo antropológico
(tão marcado pelo embate entre os eugenistas e a antropologia
cultural) – especialmente no que diz respeito à questão da
identidade/pertencimento. Vínhamos de um período caracterizado
pela exclusão e as perspectivas não eram boas (como de fato se
confirmaram).

Nesses 15 anos tivemos duas Constituições, mas foram


efetivados apenas os direitos, e nos termos, interessantes ao
Governo Federal (encarnado na figura controversa de Getúlio
Vargas). Observe que a relação entre a sociedade e o direito
é tensionada, pois os interesses de cidadãos e os detentores
100 Uniube

do poder nem sempre convergem. Desse tensionamento


nasceram inúmeros direitos e outros tantos foram retirados e
é esse movimento dialético que caracteriza a história.

Vamos juntos mergulhar em mais um importante momento


para a formação do Brasil que conhecemos hoje.

Bons estudos!

Objetivos
• explicar acontecimentos relevantes entre o final do Império e
os anos da primeira República brasileira;
• descrever a política implementada no Brasil na década de
1930 e os impactos dela no conceito de cidadania;
• explicar o sistema político e eleitoral do Brasil durante os anos
do governo de Getúlio Vargas.

Esquema
4.1 Considerações sobre as décadas que antecederam 1930
4.2 A década de 1930: direitos, sistema político e eleitoral
4.3 O Estado Novo: controle social e o redimensionamento do
conceito de democracia
4.4 Considerações finais

Análises e interpretações relativas à história do Brasil


republicano têm, na maior parte das vezes, destacado uma
questão recorrente: a de que a construção e consolidação da
cidadania e da democracia são, simultaneamente, dilema e
desafio que perpassam o cotidiano nacional brasileiro.
Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado.
Uniube 101

4.1
Considerações sobre as décadas que antecederam 1930

Como nação, mal havíamos nos constituído e, portanto, ainda estávamos


bastante ligados às estruturas europeias. Tudo era inspirado no velho
continente (eventualmente, também nos Estados Unidos da América).
Nas palavras de José Murilo de Carvalho:
O Império Brasileiro realizara uma engenhosa
combinação de elementos importados. Na organização
política, inspirava-se no constitucionalismo inglês,
via Benjamin Constant. Bem ou mal, a Monarquia
brasileira ensaiou um governo de gabinete com
partidos nacionais, eleições, imprensa livre. Em matéria
administrativa a inspiração veio de Portugal e da
França, pois eram estes os dois países os que mais
se aproximavam da política centralizante do Império.
O direito administrativo francês era particularmente
atraente para o viés elitista dos políticos imperiais. Por
fim, até mesmo certas fórmulas anglo-americanas,
como a justiça de paz, o júri, e uma limitada
descentralização provincial, serviam como referência
quando o peso centralizante provocava reações mais
fortes. (CARVALHO, 2005, p. 90-91).

Estamos falando de um momento nevrálgico. Tudo era muito recente e


incerto. O objetivo, então, era manter o básico: instituições funcionando,
a unidade da federação e a ordem social (CARVALHO, 2005). Os
desdobramentos da formação da nação brasileira seriam construídos
com os anos. Quem eram seus cidadãos naquele período? Indígenas,
negros, mulheres seguiam às margens do interesse político, ainda que
fossem tão relevantes para a sustentação do Império quanto quaisquer
outros. A questão da miscigenação ainda haveria de ser tratada ora
como problema, ora como marca distintiva. Com o tempo também
se enfrentaria a questão da imigração, que marcou a substituição
da mão de obra recém-liberta. Negros e negras, mesmo livres, não
encontraram lugar na vida nacional que se estava construindo, muito
menos como participantes do processo político. Assim mostra José
Murilo de Carvalho:
102 Uniube

O império tinha, por outro lado, enfrentado o problema


da definição da cidadania de maneira a dificultar a
incorporação de libertos. A lei eleitoral de 1881, que
introduzia o voto direto em um turno, sob pretexto
de moralizar as eleições, reduziu drasticamente a
participação eleitoral. Ao exigir dos eleitores saber ler
e escrever, reduziu o eleitorado, que era de 10% da
população, a menos de 1% numa população de cerca
de 14 milhões. Se o governo imperial contava com
simpatias populares, inclusive da população negra,
era isto devido antes ao simbolismo da figura paternal
do Rei do que à participação real desta população na
vida política do País. (CARVALHO, 2005, p. 92).

Saiba mais

A Lei à qual José Murilo de Carvalho faz referência foi denominada de Lei Saraiva,
mas era, em verdade, o Decreto no 3.029, de 9 de janeiro de 1881, resultado de
um processo de reforma eleitoral. Conforme Christian Edward Cyril Lynch (2008,
p. 116), sobre as reformas que aconteceram ainda no Império:
A primeira campanha foi a da reforma eleitoral. Para os
liberais, era a introdução da eleição direta que regeneraria
o sistema representativo brasileiro. Acabando com as
fraudes eleitorais, a reforma fortaleceria a dependência
do governo em relação à Câmara dos Deputados,
acabaria com as intervenções do gabinete nas eleições e
com a necessidade de a Coroa periodicamente alternar
os partidos no poder. Numa palavra, a reforma eleitoral
renovaria o sistema político, permitindo a prática do
parlamentarismo à inglesa no Brasil.

O decreto já dizia logo em seu início: “art. 2º: E’ eleitor todo cidadão brazileiro,
nos termos dos arts. 6º, 91 e 92 da Constituição do Imperio, que tiver renda
liquida annual não inferior a 200$ por bens de raiz, industria, commercio ou
emprego”.[sic]
Uniube 103

Mas as limitações propostas eram bem maiores que só a renda líquida anual.
Também ficaram de fora do processo os analfabetos. Isso reduziu o conjunto
de eleitores para 1% da população brasileira (na época de, aproximadamente,
14 milhões de pessoas). Ainda conforme Lynch, tratava-se de um movimento
“privando os analfabetos do voto e excluindo os pobres restantes por meio da
elevação do censo pecuniário, os fazendeiros poderiam melhor coagi-los aos
rigores do trabalho rural – sob pena de expulsá-los da terra” (2008, p. 116).

Lembremos que a Justiça Eleitoral só foi criada em 1932 (o Decreto nº


21.076 instituiu o primeiro Código Eleitoral do Brasil, com novidades
como o voto feminino, por exemplo). E, mesmo assim, estamos falando
de uma estrutura bem diferente daquela que você conhece hoje.
Nos anos do Império e da República, as eleições eram terra sem lei.
Corrupção e fraude eram usuais, considerando que o objetivo era evitar
que quaisquer outros grupos políticos chegassem ao poder.

O período final do Império, de acordo com Christian Edward Cyril


Lynch, marcou-se por uma diversidade nos discursos que clamavam
pela “modernização democrática” das instituições. O autor escolhe dois
dos mais importantes expoentes liberais daquela época para ilustrar a
dicotomia presente no pensamento político:
Rui Barbosa era o defensor por excelência da
modernização política: para ele, as reformas políticas
eram um imperativo civilizador e, como tal, elas
deveriam ser impostas de cima para baixo, com ou
sem a monarquia. Joaquim Nabuco, ao contrário,
entendia que as reformas políticas teriam pouco ou
nenhum alcance enquanto a maioria da população
continuasse excluída da vida cívica pela dependência
em relação a senhores e patrões. Do contrário, não
haveria opinião pública capaz de conferir substância
às instituições democráticas, que acabariam por
esgarçar o abismo entre elas e o país real. (LYNCH,
2008, p. 113).
104 Uniube

A escolha feita por Lynch é interessante para observarmos, como


ele mesmo aponta, o nem sempre convergente entendimento sobre
reformas políticas e reformas sociais naquele período. Ainda que
estas últimas estivessem sempre em segundo plano, em um dado
momento foi preciso reestruturar as premissas liberais para concorrer
com a “ameaça socialista” e com a organização do operariado. Esse
liberalismo mais tendente ao fornecimento de direitos básicos buscava
fortalecer a ideia de uma sociedade com mais proprietários, ou seja,
mais pessoas tendo acesso às benesses da vida burguesa e, dessa
forma, assegurar que eles tivessem gosto pela estrutura antes por
eles mesmos ameaçada. Mas também apresenta como Rui Barbosa,
foi ferrenho defensor e partícipe no processo de reforma eleitoral
que excluiu grande parte dos brasileiros do processo de tomada de
decisão democrática. Na interpretação de Rui Barbosa, a reforma não
era excludente e sim tinha por objetivo qualificar o eleitorado para que
as escolhas fossem mais bem feitas. Joaquim Nabuco, ao contrário,
achava que era necessário cuidar dos problemas sociais para que
mais e mais pessoas pudessem se tornar eleitores não suscetíveis
aos desmandos das elites políticas.

Também serve para comparações com divergências semelhantes na


contemporaneidade. Seguimos, mesmo pós 1988, sem priorizar as
reformas sociais e contando que o direito e a administração pública
sabem sempre o que é melhor para a população. No século XXI,
experimentamos a ampliação dos institutos de democracia participativa,
mas sem o devido fomento da participação política nas próprias
esferas da sociedade, tais espaços participativos não se fortaleceram
o suficiente para enfrentar o advento de um governo conservador.

Mas voltemos à história. Joaquim Nabuco e Rui Barbosa também estiveram


muito presentes nos debates sobre a estrutura que a República deveria
assumir. De acordo com Lynch, Rui Barbosa defendia ferrenhamente que
o Brasil deveria se organizar como as instituições liberais que existiam nos
Estados Unidos da América e se afastar do pensamento francês. Já
Nabuco seguia defendendo que antes de debater sistemas de governo,
Uniube 105

era premente lidar com a questão da escravidão e, por isso, termina


defendendo a manutenção da monarquia. Segundo ele, não adiantava
pensar a república sem que a própria população não estivesse apta
a se orientar democraticamente o suficiente para legitimar as novas
instituições. Esse problema ficou cristalino em sociedades como a
mexicana e alemã após a promulgação das constituições de 1917 e
1919, respectivamente. Ainda que os textos constitucionais trouxessem
novidades e importantes conquistas em termos de direitos sociais, a
imposição vertical das mudanças não encontrou guarida no meio social
e a consequência é o enfraquecimento da própria norma que carece de
legitimidade. Esse é um problema enfrentado no Brasil até hoje.

Mas lembremos um pouco da República. Ela, conforme Hamilton de


Mattos Monteiro (1990, p. 302),
representou o fim do “unitarismo” do Império,
consagrado na Constituição de 1824 e utilizado até
o fim como uma arma dos setores dominantes do
Sudeste contra qualquer tentativa de autonomia
regional. O advento da República e, com ela, de
Federação, consagrou os desejos de largas camadas
das elites dominantes do país que, no sistema
anterior, não tiveram até então, qualquer possibilidade
de ascensão ao poder. Ou, de outra forma, sua
participação no poder dependia do grau de submissão
e colaboração com a elite dominante do Império, no
caso a poderosa classe de senhores de terras – os
plantadores de café – associados com os interesses
comerciais, tanto nacionais, quanto do imperialismo.
O estabelecimento da República, a bem da verdade
o estabelecimento da Federação, permitiu que as
diversas oligarquias locais ascendessem ao poder,
no seu âmbito regional, assumindo o controle da
máquina administrativa, em particular da fiscalidade,
construindo mecanismos para a sua eternização no
poder. Era a alma do coronelismo.

Quando cessa o poder imperial, delineiam-se dois cenários bem


distintos no Brasil. O primeiro corresponde aos estados nos quais o
poder foi tomado por grupos familiares com bastante força, normalmente
latifundiários, e o outro, nos quais já existiam partidos políticos bem
106 Uniube

constituídos. (MONTEIRO, 1990, p. 302) Em ambos os contextos,


a política vai se desenrolar de forma bem diferente. Prática muito
presente em nosso sistema político na contemporaneidade, o
nepotismo se constituiu como um meio de “reprodução do poder
político local, não só através do emprego de familiares diretos, como
através de apaziguados e clientes, o que de forma simultânea garantia
a solidariedade pessoal e o controle eficaz sobre a máquina política”
(MONTEIRO, 1990, p. 303).

No mesmo sentido, a pressão exercida pela elite econômica do


Sudeste sobre o Governo (como no caso do setor cafeeiro e sua
política do café com leite) também nos remete aos tempos atuais.
O Governo federal concentrou de tal forma os seus esforços na
manutenção dos preços de café, que essa política intervencionista
afrontou diretamente as expectativas liberais idealizadas na passagem
do Império para a República. É importante lembrar que um dos pilares
do liberalismo econômico clássico, conforme defendia Adam Smith, era
justamente a não intervenção do Estado na economia.

Nesse período, como assevera ainda Hamilton de Mattos Monteiro,


o cidadão já era um elemento um tanto desconsiderado. Isso porque,
sem espaço para ação política, termina se convertendo em “mero
elemento legitimador das decisões da elite oligárquica” (1990, p. 303).

Parada para reflexão

Peço que você, neste momento, aproveite para refletir sobre como consideramos
a cidadania nos dias atuais. Será que muito mudou em relação a como nos
enxergamos dentro da ciranda política?
Uniube 107

Naquele período, os coronéis se consolidaram como as referências


maiores para as sociedades, a figura paterna que socorre a todos e
todas, que sabe o melhor para cada indivíduo, mas que exige de volta
obediência e fidelidade cegas.

O projeto de 1889 termina fracassando, o que terminou por estimular a


busca por uma identidade coletiva para o Brasil. Conforme nos mostra
José Murilo de Carvalho:
Tratava-se, na realidade, de uma busca das bases para
a redefinição da república, para o estabelecimento de um
governo republicano que não fosse uma caricatura de si
mesmo. Porque foi geral o desencanto com a obra de
1889. Os propagandistas e os principais participantes do
movimento republicano rapidamente perceberam que não
se tratava da república de seus sonhos. Em 1901, quando
seu irmão exercia a Presidência da República, Alberto Sales
publicou um ataque virulento contra o novo regime, que
considerava corrupto e mais despótico do que o governo
monárquico. A formulação mais forte do desencanto talvez
tenha vindo de Alberto Torres, já na segunda década do
século: “Este Estado não é uma nacionalidade, este país não
é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens
não são cidadãos”. (CARVALHO, 2005, p. 101-102).

Nesse período, ainda de acordo com Carvalho (2005), houve uma tentativa
de compreender quais foram os motivos que levaram a República a não
realizar a promessa de progresso e emancipação, bem como da falta de
êxito da política. No início desse processo é que acontece a Guerra de
Canudos e compreendê-la é relevante para entender o quão frágeis eram
as instituições na primeira República. Inclusive, conforme destaca Hamilton
de Mattos Monteiro (1990, p. 303) não se pode esquecer que “os dois
maiores movimentos de rebeldia em massa contra República Velha foram
os movimentos camponeses denominados Guerra de Canudos, na Bahia
(1897) e a Guerra do Contestado (1915), no Paraná”. Monteiro ainda destaca
um ponto bastante relevante. Ambos os conflitos foram capitaneados por
líderes carismáticos, com promessas de caráter salvacionista, figuras fortes
que, em alguma medida, remetiam aos coronéis. Estava-se trocando a
liderança, mas não o modus operandi do povo.
108 Uniube

Relembrando

A Guerra de Canudos aconteceu poucos anos após a proclamação da


República, em 1896. Liderados por Antônio Conselheiro, moradores de uma
comunidade do sertão da Bahia lutaram contra miséria e à exploração, mas
também contra as novas instituições, a separação da Igreja e do Estado e
a nova forma de cobrança dos impostos. Conselheiro e seus seguidores,
aproximadamente 25 mil pessoas, foram identificados como monarquistas,
passando a representar um risco para a recente República. Entre o primeiro
desentendimento dos moradores das circunvizinhanças com a população
de Canudos até o grande embate que resultou na morte de todos os seus
moradores, o que se observa é o uso do conflito para reafirmar o novo sistema
de governo. A questão é que as tentativas só expunham ainda mais as
fragilidades da República – a morte de centenas de membros do exército nas
primeiras três expedições levou ao pânico muitos que julgavam ser Canudos
o início do retorno à Monarquia. Na derradeira tentativa, o governo brasileiro
enviou mais de 5000 mil homens fortemente armados a Canudos (inclusive
metralhadoras e um canhão) e ceifou a vida de todos e todas que lá estavam.

Saiba mais

Para saber um pouco mais sobre a Guerra de Canudos assista ao minidocumentário


feito pela TV Senado e que se encontra disponível no seguinte endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=OtytnH59p3o.

A história de Canudos ficou eternizada na obra de Euclides da Cunha, Os


Sertões. Por meio dela foi possível, conforme aponta Carvalho (2005),
conhecer uma parte da população brasileira castigada pela fome, seca e o
Uniube 109

abandono. Esse pedaço do país, distanciado dos centros decisórios, era,


em verdade, muito mais representativo do povo do nosso país que fazia
crer o Governo e a intelectualidade da época. Focados em transformar
as grandes capitais em reproduções fiéis dos centros europeus e mostrar
os habitantes como brancos, os representantes da República não tinham
interesse em deixar prosperar a imagem do sertanejo.

Nos trinta anos seguintes, tem-se um esforço de vários autores no


sentido de identificar e explicar a identidade do povo brasileiro e os
problemas que assolavam o país. Se voltarmos ao embate entre Rui
Barbosa e Joaquim Nabuco, lembraremos que este último já havia
apontado que problema semelhante poderia acontecer se o problema
da escravidão não fosse adequadamente tratado no país. Nesse
contexto, Carvalho (2005, pp. 103-104) afirma que “seria necessário,
no entanto, esperar a década de 1930, já finda a Primeira República,
para que o lento movimento de descoberta do Brasil, de definição da
nacionalidade, chegasse à população negra”. Estamos falando da obra
emblemática de Gilberto Freyre chamada Casa Grande e Senzala,
publicada em 1933. Inaugura-se com ela uma nova era de debates
que, de alguma forma, ainda se faz presente.

A pergunta sobre quem eram os brasileiros importa especialmente aos


estudos deste capítulo porque ao se pensar o período de governo de
Getúlio Vargas necessariamente se debate “o problema da incorporação
do povo ao sistema político” (CARVALHO, 2005, p. 104).

É nesse contexto de (re)descoberta que se desenrolam acontecimentos


que são referências das primeiras duas décadas no século XX, como a
Primeira Guerra Mundial e a quebra da Bolsa de Nova York. Dito isso,
vamos recuperar um pouco desse período para, então, passar para
nosso debate propriamente dito.
110 Uniube

Quando a Primeira Guerra eclode em 1914, observamos o rompimento


das relações diplomáticas entre os Estados e uma grande corrida
armamentista envolvendo os países diretamente envolvidos nos
conflitos capitaneados pela Alemanha, o Império Austro-Húngaro,
Bulgária e Turquia. Em relação à Guerra, interessa-nos especificamente
o posicionamento do Brasil e quais os efeitos dela para o nosso país,
especificamente sobre as exportações de café, esteio da economia
brasileira naquele período. Nossa entrada na Guerra se deu de forma
tardia, em 1917.

A justificativa do Brasil para não participar do conflito era a Convenção


de Haia, da qual era signatário. Nela havia assumido a condição de
país neutro, o que nos assegurava alguma proteção em relação aos
demais países em guerra. Além disso, as relações do Brasil eram
cordiais com os países que se organizaram ao lado da Alemanha.
Nesse ínterim, a Liga de Defesa Nacional, associação criada por
Olavo Bilac e outros intelectuais, buscava fomentar a importância da
participação do Brasil na Guerra, ao lado dos Aliados. Defendia-se a
ideia do “cidadão soldado”, ou seja, que o exército era um espaço de
formação dos indivíduos e que o nacionalismo era o caminho para
a manutenção das tradições no Brasil. Eventualmente, nosso país
se une aos esforços aliados, mas em uma posição de assistência
e não de combate propriamente dito é relevante lembrar que essa
guerra acabou expondo uma crise dos valores vigentes, principalmente
representada pela exposição de ideologias autoritárias que já eram
gestadas desde o século XIX.

Interessante notar que a Liga também se constituiu como espaço de


oposição ao governo de Getúlio Vargas e depois de luta antifascista
contra a Itália e Alemanha no período da Segunda Guerra. Ela segue
em funcionamento até os dias de hoje.
Uniube 111

Entre os acontecimentos mais relevantes das três primeiras décadas do


século XX está a quebra da bolsa de Nova York, em 1929. Conforme
Maria Helena Capelato (2007), os problemas da economia brasileira
foram potencializados e acabaram acelerando um processo que já
estava em curso. A autora está falando dos inúmeros movimentos
“revolucionários” de caráter conservador existentes na América Latina
que tinham objetivo duplo: afastar novamente o fantasma do socialismo
e “questionar as instituições liberais vigentes pela incapacidade de vencer
o “atraso” e controlar a “desordem” reinante no país” (2007, p. 110). O
resultado é um governo de quase 15 anos ininterruptos, a diminuição
das liberdades individuais e uma série de modificações na estrutura
normativa do Brasil. Vejamos um pouco desse período a partir de agora.

4.2
A década de 1930: direitos, sistema político e eleitoral

Foi em 10 de novembro de 1937 que Getúlio Vargas comunicou ao


Brasil que tínhamos uma nova Constituição. Ela veio para substituir o
texto de 1934, já promulgado no curso de um processo político que teve
início oficialmente em 1930, mas que era resultado de acontecimentos
anteriores, como vimos.

No fluxo incessante da história brasileira, são flagrantes as disputas pela


narrativa oficial. No período da Primeira República, isso é especialmente
notado. Ela desagradava gregos e troianos e, desde meados da
década de 1920, observava-se a tentativa de um grupo de jovens
oficiais do Exército que, através das armas, buscava derrubar o regime
(os tenentistas). Alguns deles faziam parte da Aliança Liberal, uma
coligação partidária de oposição que contava com um coletivo peculiar
de indivíduos. De ex-Presidentes da República a governadores, o grupo
era heterogêneo, mas os interesses eram convergentes, como “temas
relacionados com justiça social e liberdade política. Os aliancistas
112 Uniube

propunham reformas no sistema político, a adoção do voto secreto e


o fim das fraudes eleitorais” (PANDOLFI, 2007, p. 16). Outras defesas
feitas pelos membros da Aliança eram as que diziam respeito a direitos
sociais ligados à esfera do trabalho, a diversificação da economia e a
redução das desigualdades regionais.

As eleições de 1930 chegam, mas o resultado não é o esperado. O


candidato aliancista, Getúlio Vargas, perde o pleito. Um primeiro racha
na Aliança é verificado no momento de legitimação do resultado da
disputa. Alguns se conformaram e outros, ao contrário, decidiram que
se o poder não viesse pelas vias oficias, viria de outra forma. Civis e
tenentes se organizam para a insurreição. Foram pouco mais de 180
dias entre as eleições e o movimento revolucionário.

Uma vez dado o golpe, começam as mudanças: “de imediato o Congresso


Nacional e as assembleias estaduais e municipais foram fechados, os
governadores de estado depostos e a Constituição de 1891, revogada.
Vargas passou a governar por decretos-lei” (PANDOLFI, 2007, p. 17).
Como toda revolução, no entanto, não se passou sem divergência e racha
entre os seus idealizadores. Se as orientações de fundo eram para o
desmatelamento da estrutura oligárquica, os meios para se alcançar tal
resultado não estavam claros. O governo de Vargas, que deveria ter um
caráter provisório, seguia entre disputas.

Nesse contexto é que se cria a Justiça Eleitoral, em 1932, como vimos,


mas em 1937 o novo golpe a extingue, eliminando os partidos políticos
existentes e suspendendo as eleições livres – a presidência seria escolhida
de forma indireta a partir de então (também definiu o mandato como de
seis anos). Ela só seria reestabelecida em 1945, com o fim do Estado
Novo. O Código Eleitoral que foi promulgado trouxe o sufrágio universal,
direto e secreto, que ainda não era tão universal assim: militares de baixa
patente (os praças de pré), religiosos de ordens monásticas, menores de
21 anos e analfabetos não votavam. A representação classista também
Uniube 113

era regulada pelo Código para que fizessem parte da Assembleia Nacional
Constituinte (e, consequentemente, votassem conforme os interesses do
Governo Federal).

Outro ponto importante ao nosso estudo neste capítulo é a relação do


Governo Federal com os estados que se constituiram no modelo de
intervenção, na qual os interventores estavam diretamente ligados ao
presidente. Como as intervenções se deram de acordo com os interesses
do governo central, não foram direcionadas às necessidades regionais e as
características de cada espaço social. Isso levou a crises muito frequentes
e, conforme Pandolfi, “entre 1930 e 1935, os vinte estados da federação
e o Distrito Federal foram governados por 94 interventores” (2007, p. 18).
Havia, inclusive, um Código dos Interventores, promulgado em 1931, que
impunha condutas obrigatórias aos interventores de modo que eles não
tivessem espaço para manobra.

O Executivo também empreendeu diversos movimentos orientados a


cumprir parte das intenções da Aliança. Como a criação dos Ministérios
do Trabalho, Indústria e Comércio, bem como o da Educação e Saúde
Pública. Entre as diversas novidades em termos de direitos sociais,
temos a fixação da jornada de trabalho em 8h, a regulamentação tanto
do trabalho da mulher, quanto dos menores, desenvolveu-se legislação
específica para as férias e a previdência social dá seus primeiros
passos. Além disso, é nos primeiros anos do governo Provisório que
se cria a carteira de trabalho. Trata-se de um período controverso.
Ao tempo que ampliam-se de forma inédita os direitos referentes ao
trabalho, subordina-se os sindicatos ao Estado por meio da limitação
do reconhecimento a um único por categoria e vincula-se os direitos
recém-adquiridos por trabalhadores e trabalhadoras à sindicalização.
Veja que, dessa forma, os direitos eram restritos àqueles e àquelas com
contrato de trabalho formal (PANDOLFI, 2007).
114 Uniube

Durante o processo de alteração das normas envolvendo os sindicatos


e a modificação das relações trabalhistas (fortemente intermediadas
pelo próprio Estado), há uma alteração no quadro das lideranças e o
afastamento da classe operária de ideais comunistas, por exemplo.
Assim, resolveu-se duas das maiores preocupações do movimento
revolucionário: a influência dos princípios norteadores da revolução
russa e a implementação de direitos trabalhistas.

Outra característica que não pode ser deixada de lado quando se


fala dos primeiros anos dos muitos governados por Vargas é o fato
de a política econômica ter se tornado totalmente voltada para o
intervencionismo e a centralização de todos os processos e decisões
nas mãos do Governo Federal – não há espaço para uma interpretação
liberal de governo, em verdade, não há espaço para qualquer
interpretação que não seja aquela dada por Vargas.

Ao pensar sobre todas as informações trazidas até agora, você poderia


pensar que o governo de Getúlio Vargas seguiu em brancas nuvens
durante os seus primeiros anos. No entanto, cabe lembrar o que
aprendemos no capítulo anterior. O Estado e o Direito são instituições
construídas para a conservação e eventual distribuição de poder. Em
todo processo revolucionário, observam-se indivíduos com interesses
similares, mas também existem aqueles que apenas temporariamente
se associam para a consecução de um objetivo comum. Esse foi o caso
do movimento que resultou na tomada de poder em 1930.

Eram muitos os que buscavam poder e, pelo que já foi apresentado,


vocês já têm condições de compreender que nada na história se dá de
uma hora para a outra. Acontecimentos do tipo da Revolução de 1930
são resultado de décadas de complexas relações sociais e políticas,
especialmente aquelas que inauguram o século XX com a franca
animosidade em relação à oligarquia agrária e seus interesses. De
acordo com Sônia Regina de Mendonça (1990, p. 317),
Uniube 115

A institucionalização do sistema oligárquico fez-se a


partir de uma reapropriação do tradicional localismo,
elevado ao estatuto de “sistema nacional” de
dominação. Nessa engrenagem, restava às oposições
uma sobrevivência apenas marginal, pelo menos até
que os efeitos das transformações processadas na
própria divisão social do trabalho, ao longo do período,
assumissem foros e espaços de crítica política
consistente, o que ocorreria na década de 1920.

Mas nem só de agricultura gostaria de viver o país. No final da década de


1920, a industrialização já havia se ampliado o suficiente para inserir no
jogo um novo conjunto de interesses. Ainda conforme Mendonça (1990,
p. 319),
A década de 1920 foi palco, no Brasil, da séria crise
socioeconômica e política, cuja solução somente se
daria, de fato, com a instalação do Estado Novo, em
1937. Políticamente falando, tratou-se de uma crise de
hegemonia que pode ser desdobrada em dois momentos.
O primeiro, abarcando os anos 20, teve como sentido
último a contestação à preponderância da burguesia
cafeeira, culminando com a conhecida “revolução de
1930”; o segundo estendeu-se pelo período de 1930 a
1937, assinalando, como aponta Aureliano, uma crise de
hegemonia em sentido estrito, na medida em que nenhuma
classe ou fração de classe lograra o controle inconteste do
aparelho de Estado.

O Brasil do século XXI, ainda que conte com outros players, mantém o
Estado firmemente ligado aos interesses do agronegócio e dos grandes
latifundiários, o que demonstra ser a questão muito mais persistente do
que imaginariam os sujeitos do início do século passado.

O contexto era absolutamente caótico. Havia uma distribuição muito


desigual das atividades no Brasil, tanto em relação à agricultura, quanto
à indústria. A concentração de riquezas acompanhava tal ritmo e a
desigualdade social tinha contornos diferentes a depender da região.
Especificamente sobre o movimento operário, Mendonça (1990, p. 320)
assevera:
116 Uniube

Convém apontar alguns dos seus limites. Evidentemente,


num país cujo regime baseava-se, em última instância,
na possibilidade de controle sobre o campo – onde
alocava-se a maioria da população, submetida
diretamente à grande propriedade e sobre tutela da
dominação pessoal do coronel, fica evidente o caráter
secundário da mobilização política operária no conjunto.
Esse mesmo parâmetro nos serve para indicar a
primeira das determinações estruturais do movimento
operário: seu caráter parcial e limitado, representando
um pequeno setor no todo da população do país, ïlhado”
nas poucas capitais em processo de industrialização.
De igual forma, um segundo fator contribuiria para
cercear as possibilidades de organização do movimento:
a preponderância dos imigrantes na configuração da
classe, fazendo com que à condição de estrangeiros se
adicionasse um projeto de ascensão social. Além disso,
do ponto de vista doutrinário, deve-se ter em conta o
papel pouco positivo desempenhado pelo anarquismo,
corrente preponderante no seio do movimento – pelo
menos até a emergência do Partido Comunista em 1922.

Correndo por fora dos tradicionais espaços de organização política, os


militares (tenentistas), que se alinhavam mais ao espectro defendido
pelo segmento industrialista, mas sem romper com a elite dominante.
Portadores de um ideário altamente elitista – voltado
ao mesmo tempo para a purificação das Forças
Armadas e da sociedade como um todo – os tenentes
apresentavam um programa de traços autoritários
e nacionalistas, defendendo a maior centralização
do Estado, a uniformização legislativa e o ataque à
oligarquia paulista. (MENDONÇA, 1990, p. 321).

A própria escolha de Getúlio Vargas para representar os interesses de


Minas Gerais e do Rio Grande do Sul contra Júlio Prestes, indicado por
São Paulo para as eleições, já seria suficiente para compreendermos
como a política estava centrada nos interesses do “café com leite”.
Prestes ganha, mas não leva, como a história se encarrega de mostrar.
O movimento revolucionário em 1930 não melhorou o clima entre os
três grandes grupos, e se seguiram inúmeras situações que apontavam
para crise institucional iminente e racha, mesmo entre aqueles que se
uniram temporariamente para promovê-lo.
Uniube 117

Nesse sentido, o levante dos paulistas é acontecimento de estudo


obrigatório para nossa disciplina, porque representa este mencionado
estado de tensão entre os grupos envolvidos na revolução. Segundo
Pandolfini (2007, p. 26), “a pior guerra civil vivida pelo país”. Foi o mais
longevo e o que melhores resultados teve entre as demais crises com
civis e militares, mas não sem custos. Depois de três meses da chamada
Revolução Constitucionalista, seus participantes foram encurralados pelo
Governo Federal e muitos dos que foram presos perderam seus direitos
políticos e outros, além disso tudo, também foram exilados.

É essencial compreender que os anos de governo de Getúlio Vargas


não foram todos iguais, assim como suas ações enquanto governante
não possuem um padrão definido. Da mesma forma não se pode
afirmar que houve uma substituição da condição de país agrário/
exportador para urbano/industruial durante esses vinte anos. Mas se
pode considerar que ambos os “Brasis” passaram a coexistir e, cada
vez mais, lutando pela maior fatia do bolo.

Figura 1 – Os anos de governo de Vargas

Fonte: Elaborada pela autora.

A Constituição de 1934, teoricamente organizada para redemocratizar


o país, é um exemplo dessa dualidade e resultado da revolta dos
paulistas. Era preciso uma resposta rápida para silenciar possíveis
118 Uniube

grupos que se sentissem encorajados pelos paulistas e fortalecer a figura


de Getúlio Vargas, que é eleito pelo voto indireto. Dada a vida curta do texto
constitucional, não é difícil entender que a expectativa da redemocratização
não se concretizou. Em 1937 se anuncia um dos períodos mais
controversos da história recente de nosso país. Vejamos o porquê.

4.3
O Estado Novo: controle social e o redimensionamento
do conceito de democracia

Passamos agora a analisar alguns dos acontecimentos mais marcantes


no período conhecido por Estado Novo (1937-1945). Maria Helena
Capelato nos aponta que esse período recebeu maior atenção de
historiadores e historiadoras a partir da década de 1980, influenciados
pelo movimento de enfraquecimento do Regime Militar e pela
perspectiva de redemocratização. Estavam interessados em saber
melhor o que havia de fato acontecido, principalmente porque a narrativa
que se sustentava até aquele momento era de que a chamada “Era
Vargas” havia consolidado nossa já forte tendência a sermos pacíficos.
Fez-se, segundo a autora, um esforço de pesquisa para reconstituir a
democracia brasileira nesse período e identificar as fórmulas autoritárias
empregadas por Vargas. Capelato nos apresenta uma divisão entre os
anos de governo da seguinte forma:
1930 a 1937 – foram os anos de indefinição, quando
inúmeros projetos e propostas estavam sendo
postos em pauta e quando, também, a sociedade se
mobilizou intensamente em torno deles. O campo de
possibilidades, nessa ocasião, era imenso e o governo
se movia em terreno movediço.
1937 a 1945 – correspondem à vigência do Estado
Novo, que se caracterizou pela introdução de um novo
regime político orientado por novas regras legais e
políticas. No entanto, esse momento também não
é homogêneo porque as circunstâncias externas e
internas são responsáveis por mudanças significativas
no jogo político. A entrada do Brasil na Segunda
Guerra constitui um marco de mudança importante
nos rumos do Estado Novo.
Uniube 119

Por esse motivo, propõe-se a divisão desse período


em dois momentos: a)1937-1942: caracterizou-se
pelas reformas mais significativas e pela tentativa
de legitimação do novo regime; b)1942-1945: com
a entrada do Brasil na guerra, ao lado dos aliados,
as contradições do regime ficaram explícitas. Nesse
período, o governo se voltou, de forma mais direta,
para as classes trabalhadoras, buscando apoio.
(CAPELATO, 2007, p. 112-113).

Como se observa, até que o golpe fosse dado em 1937, o caminho


de Getúlio Vargas seguia tortuoso. Mesmo depois da eleição e da
promulgação da Constituição em 1934 (texto que nem ele mesmo
defendia), o clima no país era de franco descontentamento com o
governo. Em 1935 teríamos novos levantes, e questões importantes
como a inexistência de partidos com atuação nacional levantavam
bandeiras vermelhas acerca da ausência de representatividade e da
qualidade da democracia em nosso país. Outro problema que seguia
cada vez mais presente era a ideia que a população possuía sobre a
participação democrática, completamente vinculada à noção de que
grupos específicos da sociedade estavam naturalmente destinados a
tomar as decisões em nosso país. Na palavras de Marly de Almeida
Vianna (2007, p. 67):
Em nossa sociedade, com a tradição – e o peso – do
autoritarismo e da exclusão, gerados e alimentados
em quatro séculos de escravidão, mesmo os setores
mais democráticos viam a participação popular a
partir de uma perspectiva elitista: achavam que seria
preciso tutelar as massas pobres e ignorantes para
ajudá-las a evoluir.

Trata-se de uma interpretação que não deixou o imaginário do povo


brasileiro. Seguimos compreendendo o espaço político como de poucos
e ainda ansiamos por alguém que nos mostre os caminhos como se
fôssemos incapazes de decidir sobre nosso futuro e interesses. Mas
voltemos a 1935, às figuras da Aliança Nacional Libertadora e ao
Partido Comunista Brasileiro, porque ambos são as figuras centrais
dos levantes que aconteceram naquele ano.
120 Uniube

A “Intentona Comunista” teve início em 27 de novembro daquele ano


e começou no Terceiro Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro,
acompanhando outros que já haviam se iniciado em Natal e em Recife
(sem que eles tivessem articulados (em qualquer maneira que fosse).
Eram acontecimentos desconectados e que, individualmente, não
possuíam qualquer agenda organizada, mas que terminaram unidos
pelo fio da história. Por meio da atuação de Luís Carlos Prestes, a
rebelião foi articulada com a Internacional Comunista, em Moscow,
mas não logrou êxito. Foi o suficiente, no entanto, para a criação
de uma Comissão de Repressão ao Comunismo que envolveu a
inteligência britânica e a Gestapo nazista para identificar os estrangeiros
que participaram do movimento. Além disso, houve uma repressão
sem precedentes a todo e qualquer indivíduo que se declarasse um
democrata, para sufocar de vez qualquer intenção de novo levante
orquestrado pelo Partido Comunista (VIANNA, 2007).

No momento em que Luís Carlos Prestes e Olga Benário são presos,


começa o mais abjeto movimento daquele período com o governo
brasileiro entregando não apenas Benário, mas Elise Berger para a
alemanha nazista. Olga Benário (grávida de sete meses) e Elise Berger
foram assassinadas em um campo de concentração. Nas palavras de
Marly de Almeida Vianna:
Os movimentos desencadeados em novembro de
1935 foram a última manifestação da rebeldia
tenentista, o que se evidencia tanto nos objetivos
do movimento quanto na forma de luta escolhida e,
inclusive, na própria composição dos movimentos,
cuja esmagadora maioria era de militares. Luís
Carlos Prestes, o líder tenentista já convertido ao
socialismo, possibilitou a unidade dos tententes
revolucionários e o PCB. (...) Muitas calúnias foram
escritas sobre novembro de 1935. As rebeliões
foram depreciativamente chamadas de “intentona”,
e “intentona comunista”, o que dava aos levantes
conotações terríveis, uma vez que o comunismo era
considerado o próprio anticristo. No entanto, apesar
da participação de comunistas, a insurreição não
teve sequer um caráter socialista. A plataforma do
Uniube 121

movimento era a dos tenentes, de luta contra a


exploração do Brasil pelo capitalismo internacional,
pela reforma agrária e pela democracia – por pão,
terra e liberdade – plataforma, aliás, bastante atual.
(2007, p. 101):

Não nos cabe tecer comentários mais aprofundados sobre as tentativas


dos tenentes do Rio, de Natal e do Recife, principalmente no que
diz respeito aos erros de avaliação política, sobre a prematura ação
descordenada ou, mais ainda, sobre o fato de que se seguia acreditando
que revoltas eram os melhores meios para se corrigir os problemas em
curso no País. Recomendamos, fortemente, o aprofundamento do tema
para aqueles que têm interesse em conhecer mais sobre a ANL e o PCB em
sua luta para restaurar os ideais republicanos e ampliação da cidadania.

Seguimos em nosso percurso de mostrar o que a combinação de


excessivo controle social com a figura de um lider carismático significou
para o Brasil. Perceba que fórmula semelhante já estava sendo aplicada
em países da Europa, como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha (cujo
resultado já conhecemos). Nas palavras de José Murilo de Carvalho
(2005, p. 263),
O regime de 1937, ao mesmo tempo em que
interpelava o povo, calava-lhe a voz ao fechar os
partidos e movimentos políticos de esquerda e direita,
ao fechar o Congresso Nacional, ao abolir todas as
atividades políticas, ao cancelar as eleições em todos
os níveis, ao outorgar uma constituição autoritária, ao
proibir greves operárias, ao implantar o sindicalismo
corporativista dependente do Estado.

Foi um regime, ainda de acordo com Carvalho (2005), que usou com
bastante inteligência os recursos da propaganda (por meio da atuação
forte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) não só para
o convencimento da população, a partir da construção de uma política
cultural do Estado (inclusive com o uso da música), mas também na
constituição de sujeitos coletivos como o operariado brasileiro. Sobre a
formação da consciência coletiva, inclusive, Maria Helena Capelato destaca:
122 Uniube

As imagens e os símbolos eram difundidos nas


escolas com o objetivo de formar a consciência do
pequeno cidadão. Nas representações do Estado
Novo, a ênfase no novo era constante: o nome regime
prometia criar o homem novo, a sociedade nova e o
país novo. O contraste entre o antes e o depois era
marcante: o antes era representado pela negatividade
total e o depois (Estado Novo) era a expressão
do bem e do bom. Havia promessas de um futuro
glorioso. As crianças aprendiam o que significava
o novo através de publicações de texto em forma
de diálogo: as perguntas e respostas ensinavam
didaticamente o sentido das mudanças. (CAPELATO,
2007, p. 123).

Mas não foi só no campo do imaginário coletivo que atuou Vargas. A


repressão alcançou um outro patamar a partir de 1937, passando a
utilizar a tortura como recurso recorrente. Os interventores voltam a
exercer seu papel.
O interventores reproduziram nos estados a política
determinada pelo governo central, que terminou com
o sistema federativo da Primeira República. Após o
golpe, apenas uma bandeira passou a existir para
todos os estados e, para demonstrar que o sistema
federativo tinha sido derrotado, realizou-se, no Rio
de Janeiro, um ato simbólico: numa cerimônia cívica
ocorreu a queima das bandeiras estaduais para
marcar a vitória do poder central sobre os estados.
(CAPELATO, 2007, p. 117).

Outro recurso amplamente empregado durante o Estado Novo foi a


censura, empregada para impedir que qualquer tipo de manifestação
acontecesse contra o regime que havia sido instalado e, com o auxilio
da propaganda, o que era autoritarismo passa a ser vendido para a
população como “cuidado contra inimigos internos e externos, enquanto
o silenciamento dos estados significaria “unificação e consciência
cívica”. Da mesma forma, era evidente o interesse do governo em intevir na
cultura. Como elemento importante de transmissão de padrões e valores,
as manifestações culturais seriam óbvio espaço de disputa. Nesse caso
Uniube 123

O regime varguista concebeu e organizou a cultura


com os olhos voltados para as experiências européias
nazi-fascistas. Na Alemanha e na Itália a cultura
era entendida como suporte da política. No Estado
Novo brasileiro essa concepção também orientou a
política cultural, mas os resultados foram diferentes.
No Estado Novo a função do artista foi definida
como socializadora em nível internacional. Deveria
cumprir a missão de testemunho do social, que em
muito ultrapassava a mera produção de beleza.
(CAPELATO, 2007, p. 125-126).

Como de praxe, havia uma espécie de toma lá, dá cá, nas relações
de Getúlio Vargas. Assim como ele foi o responsável pela ampliação
dos direitos trabalhistas e, com isso, ganhou a simpatia do operariado,
também o fez com os artistas o mesmo processo ao regulamentar o
exercício de profissões correlatas e os direitos autorais, por exemplo.

Tratava-se de um programa destinado a assegurar o progresso dentro


da ordem. E o que seria isso? Lembremos momentaneamente de nossa
bandeira: Ordem e Progresso. O entendimento positivista que inspira
o lema pregava que devíamos buscar sempre o progresso necessário
para a sociedade, mas isso não poderia acontecer em meio à desordem.
Para caminhar, havia a obrigação de silenciar quaisquer ruídos que se
colocassem contra esse movimento, e o regime de Vargas não mediu
esforços para ser a única voz que se ouvia entre 1937 e 1945.

Em uma próxima oportunidade, trataremos com mais vagar sobre os


anos finais do Estado Novo e aproximações possíveis desse período
com outro momento de rompimento com a democracia: o Regime Militar
que foi inaugurado em 1964. Além disso, é importante lembrar que o
Estado novo cessa em 1945, mas a importância de Getúlio, não. Ele foi eleito,
por voto direto, em 1951, novamente se tornando presidente do Brasil.
124 Uniube

4.4
Considerações finais

Nossos estudos buscaram compreender um pouco mais sobre os


anos de governo de Getúlio Vargas. Para fazê-lo recuperamos vários
acontecimentos do período do Império e da primeira República.
Pudemos observar que conflitos da década de 1930 tinham raiz nas
desigualdades que vinham sendo cuidadosamente construídas há
séculos em nosso país. Essa situação só se agravou durante as quatro
primeiras décadas do século XX. Ao estudarmos o período do governo
de Vargas, conseguimos observar ter se tratado de regime autoritário
e centralizador, que utilizou de diversos recursos para sufocar qualquer
tipo de questionamento. No entanto, de forma contraditória, é desse
período uma série de normas que mudariam a vida de muitos brasileiros
e brasileiras.

Referências
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In:
DELGADO, Lucila Almeida Neves; FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano.
O tempo do Nacional Estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu
do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de


história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG: 2005.

DELGADO, Lucila Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (org.). O Brasil


republicano: o tempo do nacional estatismo – do início da década de 1930 ao
apogeu do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

LINHARES, Maria Yedda (org.). História geral do


Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.
Uniube 125

LYNCH, Christian Edward Cyril. A primeira encruzilhada da democracia


brasileira: os casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Rev.
Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. supl., p. 113-125, ago. 2008.

MENDONÇA, Sônia Regina. Estado e sociedade: a consolidação


da República Oligárquica. In: LINHARES, Maria Yedda (org.).
História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

MONTEIRO, Hamilton de Mattos. O aprofundamento do Regionalismo


e a Crise do Modelo Liberal. In: LINHARES, Maria Yedda (org.).
História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

PANDOLFI, Dulce. Os anos 1930: as incertezas do regime. In: DELGADO,


Lucila Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (org.). O Brasil republicano: o
tempo do Nacional Estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu
do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

VIANNA, Marly de Almeida. O PCB, a ANL e as insurreições de novembro de


1935. In: DELGADO, Lucila Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (org.). O Brasil
Republicano: o tempo do Nacional Estatismo – do início da década de 1930 ao
apogeu do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 5

A estrutura
partidária
brasileira
entre golpes
(1945-1985) Filipe Moreno Horta
Introdução

O ano de 1945 coadunou o fim da Segunda Guerra Mundial com


o término da ditadura de Getúlio Vargas. Em um momento em
que os principais regimes ditatoriais estavam sendo derrotados
pelos regimes democráticos e liberais – com exceção da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que compusera
a coalização aliada – o Estado Novo varguista, iniciado em
1937, era combatido por diversas frentes políticas e setores
econômicos. Período rico de acontecimentos da nossa história,
veremos apenas os pontos principais que estruturaram o
ambiente político e eleitoral do Brasil naquele pós-guerra: as
mudanças implementadas por Vargas em 1945 fomentaram
não apenas a sua vitória na eleição presidencial de 1950, mas
também trouxeram os atores e os dramas de seu próprio suicídio
em 24 de agosto de 1954.

Em um verdadeiro xadrez político e diante de um golpe militar, a


Getúlio, pela segunda vez, restava a renúncia ou a resistência militar,
entrincheirado no Palácio do Catete. Mas o estrategista escolheu
uma terceira saída, não imaginada pelos atores envolvidos: adiou a
concretização do golpe em dez anos, que veio a ocorrer em 1964.
Década que ficou conhecida pelo combate aos herdeiros políticos
de Vargas, como Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart
(1961-1964). Com o fim da 4ª República (1946-1967) e o início da
Ditadura Civil-Militar (1964-1985), a estrutura eleitoral e partidária
foi novamente redesenhada. Dessa vez, um sistema fechado e de
fachada foi estabelecido sob o alicerce do bipartidarismo. Portanto,
passaremos neste capítulo por todo o período que vai de 1945 a
1985, mostrando um pouco de cada fase para, no próximo capítulo,
adentrarmos na Constituição de 1988 e no Brasil em que, apesar de
nele vivermos, carrega toda essa história a reboque.
130 Uniube

Objetivos
Atualmente, a atuação de partidos políticos e a possibilidade de
golpes de Estado estão em alta nos noticiários. Assim como nós,
atualmente, outras brasileiras e brasileiros viveram isso em diveros
momentos do passado, tal como ocorreu em 1930, 1932, 1935,
1937, 1938, 1940, 1945, 1951, 1954, 1955, 1956, 1959, 1961 e
1964 – mas que, recentemente julgávamos estarmos livres de
tamanha ação retrógrada. Portanto, são objetivos deste capítulo:

• discutir alguns instrumentos jurídicos expedidos pelo Executivo


e Legislativo que moldaram a história da estrutura partidária
brasileira durante 1945-1984;
• mencionar importantes partidos políticos do período estudado,
como o PTB, o PSD, a UDN (1945-1966), e a ARENA e o MDB
(1966-1979);

Esquema
5.1 A 4ª República (1946-1967)
5.1.1 A anistia, o Código Eleitoral e a volta dos partidos e de
Vargas (1945-1951)
5.1.2 O suicídio de Vargas (1951-1954)
5.1.3 UDN combatendo o varguismo: a posse de JK (1955)
5.1.4 UDN combatendo o varguismo: o governo de João
Goulart (1961-1964)
5.1.5 Uma análise sobre o sistema partidário: o clientelismo e
a crise de 1964
5.2 A 5ª República (1967-1985)
5.2.1 Do AI-2 ao AI-5: a Arena e o MDB (1965-1968)
5.2.2 Retomada do pluripartidarismo e fim da Ditadura Civil-
Militar (1979-1985)
5.3 Considerações finais
Uniube 131

5.1
A 4ª República (1946-1967)

O surgimento da 4ª República (1946-1967) é fruto direto do período que


a antecedeu. O ano de 1946 marca a data da Constituição, promulgada
em setembro daquele ano, após as eleições ocorridas em 1945 e que
definiram os novos representantes dos Poderes Executivo e Legislativo.
Eleições amplamente configuradas pelo regime anterior, o Estado Novo
varguista, garantiu não só a vitória de um correligionário de Vargas,
mas garantiu a sua própria vitória ao mandato de senador e, depois,
de presidente.

5.1.1 A anistia, o Código Eleitoral e a volta dos partidos e de


Vargas (1945-1954)

O ano de 1945 coadunou o fim da 2ª Guerra Mundial com o término


do governo de Getúlio Vargas. No Brasil, algumas frentes políticas e
setores econômicos se aliavam em prol do fim da ditadura do Estado
Novo. Não à toa, já em outubro de 1943, houve na capital federal
o Manifesto dos Mineiros, um programa em defesa dos princípios
democráticos e contra diretrizes autoritárias e totalitárias, que provocou
grave crise política – mineiros que, aliás, apoiariam o Golpe Militar de
1964. Diante da pressão cada vez maior e com o fim da guerra se
aproximando, aquele último ano trouxe importantes dispositivos: 1)
alteração na Constituição de 1937 e a convocação de eleições por
sufrágio direto para o Poder Executivo e para o Poder Legislativo;
2) a anistia geral àqueles que cometeram crimes políticos; 3) o novo
Código Eleitoral, reestabelecendo os partidos políticos e configurando
o sistema de registro de candidatos e alistamento eleitoral.
132 Uniube

Em fevereiro de 1945, a Lei Constitucional nº 9 determinou que haveria


novamente eleições por sufrágio direto e que seria reestabelecido o
Poder Legislativo. Portanto, eleições diretas ocorreriam para os cargos
do Poder Executivo, como presidente e governadores, mas também
para as assembleias legislativas estaduais, assim como restituiu a nível
federal o sistema bicameral, composto pela Câmara dos Deputados e
pelo Conselho Federal (BRASIL, 1945a).

Outra modificação ocorreu em abril de 1945. O então Supremo Tribunal


Federal (STF) concedeu habeas corpus aos exilados políticos, seguido
pelo Decreto-Lei nº 7.474 (BRASIL, 1945b), que anistiou de forma geral
todos aqueles envolvidos em crimes políticos posteriores a 16 de julho
de 1934, abrangendo os comunistas, os integralistas, os armandistas e
tantos outros que foram detidos na década anterior, que estavam como
presos políticos ou exilados.

No mês seguinte, em maio de 1945, houve o novo Código Eleitoral,


conhecido como Lei Agamenon, elaborado sob supervisão do então
ministro da Justiça, Agamenon Magalhães (BRASIL, 1945c). O Código
reestabeleceu a Justiça Eleitoral, criada pelo governo provisório
em 1932 e abolida pela Constituição de 1937 (art. 6). Determinou
o alistamento e o voto obrigatório e, ainda, garantiu às mulheres,
pela primeira vez, o direito ao voto para o cargo de presidente.
Com sufrágio universal para acima de 18 anos e alfabetizados, voto
obrigatório, direto e secreto, a eleição para os cargos do Executivo
(presidente, governadores e prefeitos) e para senadores seguiu
o sistema majoritário, enquanto para as Câmaras Municipais, a
Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas estaduais, foi
adotado o sistema proporcional (art. 38), determinando os cálculos
do quociente eleitoral (art. 45) e partidário (art. 46). Em relação ao
registro de candidatos, definiu que somente poderiam concorrer
aqueles registrados por partidos ou em aliança partidária (art. 39). Um
outro ponto relevante foi em relação ao alistamento eleitoral ex-officio,
Uniube 133

que permitia o registro de eleitores com base em listas preparadas


por empregadores e agências governamentais, abolido somente pelo
Código Eleitoral de 1950. E muito diferente dos dias atuais, a apuração
começava somente no dia seguinte ao da eleição e as juntas eleitorais
e os tribunais regionais tinham o prazo de 30 dias para sua finalização
(art. 86).

Saiba mais

Assim como a renda foi instrumento de exclusão política durante a Monarquia,


a proibição do voto aos analfabetos também foi um dispositivo extremamente
excludente na República. Segundo Ricardo Gama Neto (1995), em 1945,
mesmo o Brasil, possuindo uma população de aproximadamente 45.5 milhões
de habitantes, dos quais 22 milhões tinham mais de 18 anos, apenas 7.4
milhões eram eleitores, cerca de 16,8% do total.

A Lei Agamenon garantiu o retorno dos partidos políticos, extintos


pelo golpe do Estado Novo. A grande inovação foi a obrigatoriedade
dos partidos possuírem base nacional, visando à desarticulação das
tradições regionalistas da pregressa política partidária brasileira. Agora,
para ser considerada associação política, a organização partidária
era obrigada a possuir ao menos dez mil eleitores em pelo menos
cinco circunscrições eleitorais, ou seja, nos estados (art. 109), para
ser considerada uma organização de âmbito nacional (art. 110). A lei,
inclusive, continuou a proibir “a criação de milícias cívicas ou formação
auxiliar dos partidos, bem como o uso de uniformes e estandartes (art.
142)” (BRASIL, 1945c, p. 1).

Apesar do clima de corrida eleitoral ter retornado, a pressão para a


saída de Getúlio era crescente. Houve tempo ainda para o crescimento
da campanha do “Queremismo”, que defendia a permanência de
134 Uniube

Vargas no poder. Um outro movimento do núcleo ditatorial foi a


nomeação de Benjamin Vargas, irmão do presidente, como chefe de
polícia do Distrito Federal. Com o crescimento da insatisfação de parte
das forças armadas e aos ultimatos e ameaças de um golpe militar,
Getúlio foi oficialmente deposto em 29 de outubro de 1945, assumindo
a presidência o ministro do STF, José Linhares, que também substituiu
os interventores por membros do Poder Judiciário até que as eleições
fossem realizadas (LIRA NETO, 2013).

Pouco mais de um mês, após o fim do Estado Novo, em eleição


realizada em 2 de dezembro de 1945, o general Eurico Dutra (PSD)
venceu o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN). O PSD também conseguiu
a maioria dos votos para Câmara dos Deputados e o Senado. Getúlio
Vargas foi eleito senador (pelo seu estado natal, Rio Grande do Sul,
mas também por São Paulo), e deputado constituinte por outros sete
estados nacionais, recebendo mais de um milhão de votos, o que era
possível pelo Código Eleitoral. Em 31 de janeiro de 1946, Dutra assumiu
a presidência e, em 2 de fevereiro, foi instalada a Constituinte, cuja
Constituição foi promulgada em setembro daquele ano.

Ou seja, todo o processo de redemocratização em 1945 esteve sob


responsabilidade da elite política que governava o país nacionalmente
e estadualmente, com os interventores – estrutura que, apesar de
mudanças regionais ou oposições específicas, principalmente entre
1934-1937, ocupava os postos de governo desde 1930. Essa mesma
elite não apenas conduziu também as primeiras eleições, como também
participou da formulação da nova Constituição. Foi justamente essa
elite, apossada de toda a máquina burocrática do Estado, que conseguiu
maior efetividade em estabelecer partidos de abrangência nacional, a
partir da legislação partidária e eleitoral criada por ela própria: e não foi
um partido, foram dois.
Uniube 135

Foi assim que surgiu o Partido Social Democrático (PSD), fundado por
interventores e burocratas em julho de 1945, tendo Getúlio Vargas como
primeiro presidente de sua comissão diretora. A capilaridade do PSD se
dava não só pelo fato dos interventores terem constituído o partido, mas
também pelos prefeitos, que eram os interventores a nível municipal e
indicados pelo interventor estadual. No mesmo sentido, em setembro de
1945, foi criado o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), cujo presidente
de honra era o próprio Getúlio Vargas, organizado entorno de servidores
do Ministério do Trabalho e ligados aos sindicatos. Com a perspectiva
de fazer frente ao Partido Comunista do Brasil (PCB), o PTB defendia a
ampliação da legislação trabalhista para o trabalhador da cidade e sua
expansão para o trabalhador do campo, assim como tratar da reforma
agrária e o direito à greve.

Já a oposição se juntou, principalmente, a União Democrática


Nacional (UDN), em abril de 1945. De tendência liberal-conservadora,
estava vinculada às classes médias urbanas, aos grandes proprietários
rurais e também a setores financeiros internacionais a União reuniu os
opositores do Estado Novo, parte das oligarquias regionais pré-1930 e
até mesmo antigos aliados e conhecidos membros da esquerda, como
o ex-porta-voz da Aliança Nacional Libertadora (ANL) de Luís Carlos
Prestes, o agora direitista Carlos Lacerda (BENEVIDES, 1981).

Em São Paulo, houve a criação, em 1946, do Partido Social Progressista


(PSP), pelo ex-interventor Adhemar de Barros. Surgido através da
fusão de partidos paulistas recém-criados, como o Partido Republicano
Progressista (PRP), o Partido Popular Sindicalista (PPS) e o Partido
Agrário Nacional (PAN). Já em sua primeira eleição, em 1947, elegeu
Adhemar de Barros a governador, derrotando o PSD e a UDN. O PSP
também elegeu a maior parte dos prefeitos no estado e saiu vitorioso na
eleição estadual de 1950, mas ficou em segundo na de 1954, derrotado
136 Uniube

por Jânio Quadros (Partido Trabalhista Nacional – PTN) e em 1958, por


Carvalho Pinto (Partido Democrata Cristão – PDC). O PSP voltou ao
governo em 1962, com nova eleição de Adhemar de Barros, derrotando
Jânio Quadros (SAMPAIO, 1982).

O Partido Comunista do Brasil (PCB) e o Partido Socialista Brasileiro


(PSB) voltaram à legalidade e puderam, com permissão do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), registrar seus partidos. O PCB se tornou a quarta
maior força eleitoral no pós-guerra ao obter 10% dos votos na eleição
de dezembro de 1945. Seu secretário-geral, Luís Carlos Prestes, foi o
segundo senador com maior votação, atrás somente de Getúlio Vargas,
além dos quatorze deputados federais eleitos para a Constituinte. Nas
eleições de janeiro de 1947, o partido ainda conseguiu eleger a maior
bancada para a Câmara Municipal do Distrito Federal, com dezoito
vereadores ao todo. Porém, quatro meses mais tarde, o TSE cassou mais
uma vez o registro do partido e, em outubro, o governo Dutra rompeu as
relações diplomáticas com a URSS.

Em janeiro de 1948, os mandatos de todos os parlamentares comunistas


eleitos pelo voto direto foram cassados, em uma tensa sessão
parlamentar (BOHOSLAVSKY, 2014). No pós-guerra, parlamentares do
PSD e da UDN pautavam um discurso antidemocrático e anticomunista
nas bancadas legislativas, dando justificativas às violações dos direitos
políticos e individuais frente ao que alegavam ser uma ameaça à ordem
social e política brasileira (CAMARGO; MARIANI; TEIXEIRA, 1983;
POMAR, 2002).

5.1.2 O suicídio de Getúlio Vargas (1951-1954)

A UDN, que no papel era uma defensora das liberdades democráticas,


tentou cooptar setores das forças armadas para impedirem a posse de
Getúlio Vargas em 1951, após o seu candidato, o brigadeiro Eduardo
Uniube 137

Gomes, ser derrotado em 1946 e 1950. Porém, sem o apoio da direção


do Clube Militar, que possuía afinidade com o eleito e possuía caráter
nacionalista e próxima às esquerdas, Getúlio assumiu mais uma vez a
presidência do Brasil.

A historiadora Maria Celina D’Araújo (1999) sintetiza muito bem a


segunda presidência de Getúlio, época extensa e intensa que durou
apenas quatro anos. Vários fatores, porém, levaram o governo a
sucessivas crises. Citaremos apenas algumas dessas: 1) Getúlio
tentou um governo de coalização, distribuindo ministérios até mesmo
aos partidos oposicionistas, como a UDN, buscando governar sem
oposição. Na prática, apenas camuflou os conflitos existentes e
crescentes, não conseguindo formar blocos estáveis; 2) em 1952, houve
substituição da direção do Clube Militar por uma ala antigovernista
que retirou a estabilidade militar; 3) no contexto da Guerra Fria, um
acordo econômico e um acordo militar entre Brasil e Estados Unidos,
no qual o país recorreu a empréstimos de bancos internacionais e que
fornecia minérios estratégicos aos EUA em troca de material bélico,
desagradou a ala militar nacionalista; 4) a instabilidade das alianças
políticas no Parlamento, principalmente entre PTB-PSD, não era efetiva
nas votações e na sustentação do governo; 5) a Lei de Remessa de
Lucros que limitou a 10% os dividendos para o exterior e, em 1953,
uma política para regular os lucros extraordinários foram fatores que
desagradaram os representes do capital internacional; 6) um dos
maiores embates do governo foi a campanha de “O petróleo é nosso”,
num conflito entre os setores nacionalistas, que defendiam a ação
do Estado sobre um setor estratégico da economia, enquanto outros
defendiam a abertura da Petrobrás para os monopólios internacionais;
7) no ano de 1953, greves também começaram a ocorrer, como a dos
300 mil em São Paulo, demonstrando que o apoio da área sindical
era sensível e, em parte, até mesmo conservadora, mesmo com João
Goulart (PTB), o Jango, como ministro do Trabalho, que possuía apoio
entre os sindicalistas; 8) no início de 1954, o mesmo Goulart anunciou
138 Uniube

uma proposta de valorização de 100% do salário mínimo, que levou


a uma resposta imediata e contrária dos militares, que publicaram o
“Manifesto dos Coronéis”, levando o ministro a pedir sua exoneração
– entretanto, Getúlio Vargas, na comemoração do 1º de Maio de 1954,
manteve a concessão do aumento: setores empresariais, militares e
políticos desembarcaram do governo, temendo que a aproximação do
presidente e apelo aos trabalhadores e sindicatos fosse, na verdade,
o estímulo a uma situação golpista.

Já sem o apoio da imprensa, os últimos meses do governo foram


bombardeados por constantes “denúncias” e “escândalos” dos mais
diversos: de que havia o objetivo de transformar o Brasil e outros
países do cone sul em uma “República Sindicalista” contra os EUA a
denúncias de corrupção. Nesse clima, em junho de 1954, o Congresso
votou o impeachment do presidente, rejeitado pela grande maioria:
apenas 35 votos de 211 deputados. Segundo D’Araújo (1999, p.113),
“depois disso, a decisão final de depor o presidente partiu dos militares
em aliança com a UDN. Juntos, sustentaram a tese de que, para
moralizar o país, Vargas precisava renunciar”. Era o começo do fim.

A turbulência política, crescente a cada dia, arrefeceu-se com o


suicídio. Exímio estrategista e consciente do jogo político em que se
encontrava, não à toa, Getúlio iniciou sua carta testamento com “Mais
uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se
e novamente se desencadeiam sobre mim” (VARGAS, 1954, p. 1),
mote de toda sua argumentação. Referindo-se diretamente ao célebre
camaleão político e incentivador de golpes militares e constitucionais,
o deputado e jornalista Carlos Lacerda (UDN), pontuou que “(...) não
me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o
direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha
ação [...]” (VARGAS, 1954, p. 1).
Uniube 139

Saiba mais

Caso esteja passando por um período difícil ou conheça alguém que


precise de ajuda por estar considerando o suicídio uma saída, saiba que há
serviços que podem acolher e auxiliar nesse momento. No Brasil, o Centro
de Valorização à Vida (CVV) e serviços da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS) estão disponíveis e acessíveis à
população. O CVV conta com atendimentos via telefone e on-line. Já os CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial) e UBSs (Unidades Básicas de Saúde) da
região de moradia de cada cidadão podem ser acessados sem agendamento
prévio para escuta e acolhimento iniciais a partir da necessidade do cidadão.

5.1.3 UDN combatendo o varguismo: a posse de JK (1955)

É importante lembrar que a criação do PSD e do PTB em 1945, ambos


de orientação varguista, foram vitoriosos na eleição de 1946, 1950 e
1955, tanto para o cargo de presidente quanto para vice-presidente,
época em que se votava separadamente para ambos os cargos. Em
sua primeira eleição para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), o
PSD também elegeu a maioria dos deputados, senadores e ocupou a
maior parte dos ministérios, elegendo também o presidente da ANC e
da Comissão Constitucional. Nas eleições gerais para governadores,
em 1947, elegeu onze. A oposição só teve uma vitória, e através de um
pequeno partido, em 1960 com o populista de direita Jânio Quadros
(PTN), apoiado pela UDN, que governou apenas por sete meses.
140 Uniube

Quadro 1 – Eleições presidenciais e as vitórias dos partidos varguistas, PSD e PTB (1945-1960)

ELEIÇÃO PRESIDÊNCIA VICE-PRESIDÊNCIA


1945 PSD PSD (1946)
1950 PTB PSP
1955 PSD PTB
1960 PTN PTB

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da Biblioteca da Presidência da República.

Porém, destacamos que, apesar da disputa no palanque nacional, em


alguns estados, a UDN fez coligações com o PSD e também com o
PTB. E como sabemos há facções e dissidências dentro de um partido.
O PSD, por exemplo, possuía uma ala que apoiava Dutra, e uma ala
que apoiava Vargas, que disputavam internamente o controle do partido
na sua primeira década de existência.

Após a morte de Getúlio Vagas, seu vice, o paulista Café Filho (PSP),
assumiu e buscou apoio de setores da UDN para compor os ministérios
e do próprio brigadeiro Eduardo Gomes, alçado ao posto de ministro da
Aeronáutica. A eleição de 1955, ocorrida em outubro daquele ano, teve
a vitória do então governador mineiro Juscelino Kubitschek (PSD) e,
como vice João Goulart (PTB) – ambos considerados herdeiros políticos
de Getúlio Vargas, derrotando o general Juarez Távora, outro célebre
“tenentista” que havia sido o comandante da Escola Superior de Guerra
(ESG) e um dos apoiadores do golpe contra Getúlio em 1954, e que
agora era filiado à UDN e chefe do Gabinete Militar de Café Filho. Ou
seja, por mais que o golpe não tenha sido concretamente dado, militares
de alta patente que conspiraram diretamente para a queda de Getúlio
haviam chegado ao primeiro escalão do Executivo.

Skidmore (2010) reconta bem todo esse processo. No mesmo mês de


novembro, a UDN e Carlos Lacerda lançaram campanha contra a posse
de JK e seu vice, João Goulart (PTB), apoiada por setores das forças
Uniube 141

armadas, novamente o brigadeiro Eduardo Gomes e, principalmente,


o coronel do Exército, Jurandir de Bizarria Mamede. A UDN desejava
que fosse criado um “governo de emergência” até que novas eleições
fossem feitas. E um ponto central se iniciou quando o coronel Mamede,
que foi um dos conspiradores contra Vargas, cometeu ato de indisciplina
ao proferir ataques à democracia e aos representantes eleitos,
defendendo abertamente um golpe militar. Diante do crime cometido, o
marechal Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, solicitou a punição
de seu subalterno, negada por Café Filho.

O presidente interino, que também era contrário à chapa JK e Jango,


em seguida se afastou, alegando ter sofrido um ataque cardíaco. Ao
acirrar ainda mais o ambiente político, assumiu o posto máximo do
Executivo, o presidente da Câmara dos Deputados, o mineiro Carlos
Luz (PSD), um dos nomes da facção dissidente do próprio PSD que
havia sido contra a escolha de JK na convenção nacional do partido
– e que manteve os ministros de Café Filho, procurando apoio na
mesma cúpula militar. Na segunda semana de novembro, panfletos do
Movimento Militar Constitucionalista (MMC) começaram a circular nos
quartéis, denunciando que um golpe seria dado pelo Executivo com
apoio da UDN e de setores militares, comandado pelo coronel Bizarria
Mamede. No dia 10 de novembro, mais uma vez o ministro Lott solicitou
a punição para Mamede, agora negada por Carlos Luz.

Com a quebra de hierarquia, com a impunidade e sabendo que seria


substituído do Ministério da Guerra, o Marechal Lott pediu demissão,
causando imediata repercussão nas fileiras militares. Na mesma noite,
por ordem do ex-ministro, tanques e tropas do I Exército ocuparam
postos-chave na capital federal, como telefonia e centrais de energia e, na
madrugada de sexta-feira, 11 de novembro, interditaram os acessos ao
Palácio do Catete e ocuparam os quartéis de polícia. Carlos Luz (PSD),
políticos udenistas como Carlos Lacerda e o coronel Bizzaria Mamede
embarcaram no cruzador Tamandaré e partiram em direção a Santos,
de onde pretendiam lançar um movimento de resistência – porém,
142 Uniube

interceptados pelo cruzador Barroso, regressaram dias depois à capital.


Conhecido como “Golpe Legalista Preventivo” ou “Movimento de 11 de
Novembro”, na mesma noite de sexta-feira, o Marechal Lott empossou
o presidente do Senado, Nereu Ramos (PSD), como presidente da
República. Dias depois Café Filho (PSP) alegou que estava recuperado
para reassumir, mas sofreu um impeachment, concretizado em uma
votação no Senado em 21 de novembro (SKIDMORE, 2010).

Enfim, em 3 de janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek (PSD) tomou posse.


Mas os problemas não acabaram. Em 10 de fevereiro de 1956, uma
rebelião ocorreu em parte da Aeronáutica. Liderada pelo major Haroldo
Veloso e um capitão, ligados ao mesmo brigadeiro Eduardo Gomes, a
Revolta de Jacareacanga foi estabelecida na base aérea em Itaituba (PA)
e pretendia a destituição do recém-empossado presidente. Após controlar
Santarém e cidades próximas, em dezenove dias, a rebelião foi derrotada
por tropas legalistas e seu líder preso – porém, no dia seguinte, foi anistiado
por um projeto de autoria do próprio JK. E já ao final de seu mandato, em
2 de dezembro de 1959, outra tentativa de golpe aconteceu: a Revolta
de Aragarças, liderada pelo tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier
e, novamente, pelo major Haroldo Veloso, pretendiam livrar o país dos
governantes corruptos e comprometidos com o comunismo. Em posse de
três aviões da FAB e sequestrando um avião da antiga empresa PanAir, o
plano era bombardear o Palácio do Catete e a ocupação de bases no Pará.
A rebelião, porém, foi restrita a Aragarças e derrotada em três dias. Seus
líderes fugiram para os países vizinhos e retornaram ao país somente no
governo de Jânio Quadros (PTN).

5.1.4 UDN combatendo o varguismo: o governo de João Goulart


(1961-1964)

Com Brasília recém-inaugurada, as eleições para escolha do sucessor


de JK ocorreram em outubro de 1960. Dela saiu vitorioso o populista
de direita Jânio Quadros, então governador de São Paulo. Eleito pelo
Uniube 143

pequeno Partido Trabalhista Nacional (PTN), já que se dizia apartidário,


e com o mote de “varre, varre, vassourinha”, prometendo varrer a corrupção
que havia no país e moralizar a política, a aliança PTN/UDN derrotou
a governista PSD/PTB, que havia lançado a candidatura do marechal
Henrique Teixeira Lott, este já na reserva. Porém, o candidato a
vice-presidente eleito foi João Goulart (PTB), ex-ministro do Trabalho
de Vargas e ex-vice-presidente de JK: de novo, a sombra de uma
“República Sindicalista”, do perigo do “comunismo internacional” ecoavam
em parte da política e da sociedade brasileira – que não procedia
enquanto fato concreto, mas o discurso anticomunista no Brasil sempre
foi uma força discursiva e que, evidentemente, angariava votos na
eleição e clamava apoio nos golpes militares. E assim é até hoje, mais
de 70 anos depois.

Despreparado para o cargo que ocupava, Jânio Quadros (PTN)


renunciou com sete meses de mandato, que durou de 31 de janeiro a
25 de agosto de 1961. Uma de suas célebres polêmicas foi sua política
externa independente: apesar de eleito com discurso anticomunista,
em 19 de agosto, condecorou Che Guevara, então ministro no governo
cubano. Além de defender reatar as relações diplomáticas com a URSS
e com Cuba. No campo econômico, ações de austeridade para conter
a inflação e o endividamaento do Estado foram postas em práticas,
além de adotar medidas impopulares, como a desvalorização da moeda
nacional em 100% e o corte de subsídios de produtos indispensáveis no
cotidiano nacional, como o petróleo e o trigo, ocasionando um rápido e
enorme aumento no valor do pão e do combustível (FAUSTO, 2013).
O governo também ficou marcado pela proibição do uso de biquínis e
maiôs, a proibição de transmissão na televisão de desfiles de misses, da
rinha de galo e do lança-perfume, regulou o carteado e proibiu corridas
de cavalo durante os dias de semana (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
144 Uniube

Dois dias após condecorar Che Guevara, Jânio acirrou ainda mais
a hostilidade com o partido aliado, a UDN, ao discursar sobre a
nacionalização da Hanna Mining Company, mineradora estadunidense
que explorava as jazidas de ferro no Vale do Paraopeba, Minas Gerais.
Quatro dias mais tarde, 25 de agosto, renunciou:
Fui vencido pela reação e assim deixo o governo [...]
Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando,
nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que
subordinam os interesses gerais aos apetites e às
ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do
exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis
levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam,
até com a desculpa de colaboração. (QUADROS,
1961, p. 1).

A historiografia aponta que Jânio Quadros apostou que haveria uma


reação popular, relembrando o que acontecera com Getúlio Vargas.
Assim, poderia aplicar um autogolpe e governar com poderes ilimitados
e sem resistência do Congresso, que havia barrado várias de suas
iniciativas, como uma inicipiente lei de reforma agrária, a lei antitruste,
a lei de limitação de remessa de lucros ao exterior, entre outras. Enquanto
Carlos Lacerda (UDN) chamava Jânio Quadros de golpista, o Congresso
aceitou a renúncia e tomou posse o deputado Ranieri Mazzilli (PSD),
presidente da Câmara, uma vez que o vice-presidente estava ausente
do país. E o que já era tumultuado, ficou ainda pior.

A rejeição de parte da classe política e militar sobre o vice-presidente


caía também sobre a íntima ligação de João Goulart a Getúlio. Ambos
nasceram em São Borja (RS) e suas famílias tinham relações de
sociedade nos negócios, além de relações de amizade. Filiado ao PTB
e lançado por Getúlio, Jango foi eleito deputado estadual e federal pelo
PTB, sendo ele a anunciar, oficialmente, a volta de Getúlio para disputa
da eleição de 1950 (VILLA, 2004).
Uniube 145

Voltando a 1961: onde estava o vice quando Jânio Quadros renunciou?


Na República Popular da China. Era o motivo perfeito para, novamente,
militares e a UDN se aliarem contra a posse de um presidente
democraticamente eleito. E mais, a rejeição era tamanha que foi
elaborada a “Operação Mosquito”: planejada pela FAB e revelada pelo
coronel-aviador Roberto Baere à Comissão Nacional da Verdade (CNV)
em março de 2014; o plano consistia em abater o avião que levaria
Jango de Porto Alegre à Brasília, mesmo depois da solução encontrada
para a crise. E justamente por não ter um salvo conduto ao Brasil, Jango
retornou pelo Uruguai e de lá foi para Porto Alegre, onde o governador
Leonel Brizola (PTB), também herdeiro político de Vargas, havia criado
a Campanha da Legalidade, com participação do general José Machado
Lopes, comandante do III Exército, e o Marechal Henrique Teixeira Lott.

Entretanto, o Congresso repudiou o veto militar à posse de João


Goulart, enquanto uma articulação de facções do PSD e da própria
UDN, apoiadas pela ala legalista das Forças Armadas, conduziu a
crise e propôs uma solução: a posse estava garantida desde que fosse
sob um regime parlamentarista – tal como reconta e analisa a cientista
política Argelina Figueiredo (1993). Jango se encontrou com Tancredo
Neves (PSD), ex-ministro da Justiça de Vargas e que seria empossado
como primeiro-ministro, aceitando as condições impostas e negociadas
entre ministros, militares e parlamentares. A Emenda Constitucional nº
4, de 2 de setembro de 1961, instituiu então o sistema parlamentar de
governo (BRASIL, 1961). No dia 5 de setembro, após uma complexa
operação aérea extremamente planejada pelos legalistas de forma a
despistar possíveis caças da FAB, João Goulart chegou a Brasília.

Dois pontos sobre a Emenda são relevantes:

1) o presidente não poderia dissolver o Congresso ou promover novas


eleições;
2) o presidente poderia receber um impeachment se fosse alegado,
subjetivamente, “risco para a segurança nacional”.
146 Uniube

O parlamentarismo também deveria passar por um referendo nove


meses antes do fim da posse de Goulart e estava sujeito à legislação
complementar. Ou seja, a institucionalização do regime passava,
primeiro, pela legislação complementar ao Ato Adicional, a qual pela
demora das discussões permitiu uma brecha no processo decisório em
relação à atuação do Conselho de Ministros. E que Parlamento João
Goulart encontrou? Com predominância dos partidos conservadores
nas casas legislativas (57% das cadeiras da Câmara dos Deputados
e 62% no Senado), as reformas sociais e econômicas desejadas por
movimentos sociais e grupos nacionalistas possuíam mínimas chances
de prosperarem. O projeto de lei complementar do Executivo, lançado
em setembro de 1961, não tinha apoio do Legislativo e, para se
contrapor ainda mais, foi criado um anteprojeto de Lei Complementar
que restringia ainda mais o poder do gabinete presidencial. O anteprojeto,
com modificações ainda mais restritivas, foi aprovado somente em julho
de 1962, um mês após a queda de Tancredo Neves. Segundo Argelina
Figueiredo (1993), dois pontos foram fundamentais para o atraso no
processo decisório de institucionalização do parlamentarismo em
relação à legislação complementar: 1) forte coalização antiparlamentarista;
2) preocupação de setores da UDN e do PSD em garantir resultados
eleitorais satisfatórios para as eleições gerais que aconteceriam
em outubro de 1962, pois já se sabia o fraco apoio popular ao novo
regime. E eleições em que, tanto a esquerda quanto a direita, se
posicionaram contrárias ao presidente. Assim, o acirramento crescia a
cada movimento.

Com a queda de Tancredo em junho, o deputado gaúcho Francisco


Brochado da Rocha (PSD) assumiu como primeiro-ministro em julho,
tendo por meta o combate à inflação e a antecipação do plebiscito, de
1965 para dezembro de 1962, conforme também defendiam alas do PSD
e da UDN. No mesmo mês, Jango nomeou o general gaúcho Nelson
Mello, ex-chefe da Casa Militar no governo de JK e então comandante
do II Exército, a ministro da Guerra. Mesmo com um sopro de apoio, em
Uniube 147

13 de setembro, a proposta de Brochado da Rocha para a antecipação


do plebiscito foi rejeita pelo Congresso, a “Emenda Oliveira Brito”. No
dia seguinte, uma greve geral organizada pelo Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT) pressionou o Legislativo, que cedeu e aprovou o
“Projeto Valadares”, marcando o plebiscito para 6 de janeiro de 1963.

Segundo Argelina Figueiredo (1993), a eleição de outubro de 1962


indicava que os conservadores haviam perdido a hegemonia, tendo o
PTB a segunda maior bancada. Mas a principal mudança ocorreu em
6 de janeiro de 1963, domingo: 83% dos votos válidos foram contra o
parlamentarismo e garantiram a volta do regime presidencialista. Após
um ano e quatro meses, o Palácio do Planalto passava a ser ocupado
apenas por João Goulart.

Jango, defendendo as “reformas de base” – agrária, bancária, fiscal,


infraestrutura, política (estendendo o voto universal para analfabetos,
oficiais não graduados e legalização do PCB), universitária, urbana –
lançou o Plano Trienal, ao final de setembro de 1962, criando o cargo
de ministro extraordinário do Planejamento, nomeando o importante
economista brasileiro, Celso Furtado. O Plano atingia a todos os
setores, sendo necessários acordos entre os distintos grupos, nos
quais o governo desempenharia o papel principal de intermediário,
conciliando grupos que politicamente, economicamente, socialmente e
ideologicamente se encontravam em posições opostas.

De acordo com Argelina Figueiredo (1993), do lado da esquerda, o


PCB de Luiz Carlos Prestes foi contra o Plano. Já o CGT observou
que as propostas estavam distantes das proposições sindicais, que
levou à criação da Frente de Mobilização Popular (FMP) para pressionar
o governo. Do lado da direita, a Confederação Nacional da Indústria
(CNI) e as federações das indústrias estaduais de São Paulo (FIESP)
e Rio Grande do Sul (FIERGRS) apoiavam o Plano Trienal, enquanto
estavam contra as Associações Comerciais e a Confederação Nacional
148 Uniube

do Comércio (CNC). Para a autora, a problemática estava nas garantias


institucionais: o governo poderia atuar como o mediador, provendo
garantias institucionais. Porém, a máquina administrativa do Estado
era incapaz de exercer um controle sobre os preços, e a eliminação
de subsídios provocou alta dos preços em determinados produtos. Se
a direita não havia embarcado no governo e, além, queria destituí-lo,
o apoio da esquerda também começava a se afastar de Jango: sem
ampliar a base governista, as reformas ficavam cada vez mais distantes
(FIGUEIREDO, 1993).

Durante o segundo semestre de 1963, o presidente ficava cada vez


mais isolado. Enquanto Carlos Lacerda (UDN) pedia pela intervenção
militar dos EUA no Brasil, Goulart insistia no estado de emergência e,
em 4 de outubro, uma sexta-feira, fez o pedido formal ao Congresso.
A oposição foi ampla: a direita não estava disposta a ceder poderes
excepcionais ao presidente, enquanto a esquerda expressava desconfiança
em relação às intenções do presidente. Na segunda-feira, a proposta
foi rejeitada. Descartada essa possibilidade, Jango tenta reconstruir sua
base, formando uma coalização de centro, se distanciando da esquerda
para restabelecer a aliança PSD-PTB, apoiando uma futura candidatura
de JK. Porém, num possível erro de cálculo, em dezembro, João
Goulart não nomeia Leonel Brizola (PSD) para ministro da Fazenda,
mas Nei Galvão, antigo “tenentista” e que havia sido presidente do
Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. Frustrando a FMP e
o PSD, a ruptura entre este partido e o governo chegou ao limite,
reforçando a radicalização e as polarizações das forças no Congresso
(FIGUEIREDO, 1993).

Sem apoio da direita, que falava abertamente em intervenção militar,


e sem a coalização com o centro, somente no início de 1964, em um
cenário cada vez mais isolado, João Goulart procurou a esquerda
Uniube 149

para a criação da Frente Progressista. Iniciativa de San Tiago Dantas


(PTB), a aliança seria atrelada em pontos pragmáticos, abrangendo
os grupos sociais e políticos defensores das “reformas de base”.
Porém, há nova ruptura dentro da Frente: enquanto Brizola se alia à
esquerda radical e adota posição ambígua frente a algumas medidas
das reformas, o PCB, pensando nas eleições futuras, pede exclusão
do PSD, de forma a não promover a eleição de JK.

Com o fracasso da FP, a cada dia o presidente estava mais acuado:


havia a UDN e Carlos Lacerda; os comandantes das forças armadas,
sobretudo da Escola Superior de Guerra (ESG) e do Clube Militar; as
passeatas da Tradição, Família e Propriedade (TFP) e a “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”; pelos empresários anticomunistas
do Instituto de Pesquisas Sociais (IPES), do Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD) – inclusive, o IBAD sofreu uma CPI em 1962 por
ter recebido enorme quantia de dólar para financiamento de campanha
de centenas de políticos contrários às reformas de base; havia todo
um apoio financeiro e militar oferecido pelos EUA, conhecido como
“Operação Brother Sam”; pelas campanhas midiáticas de O Globo,
a Folha de S. Paulo, Tribuna da Imprensa, O Estado de S. Paulo,
defendendo abertamente a intervenção militar. Diante de tal cenário,
Goulart radicaliza. Apoiando agora a Frente Única de Esquerda,
defendida pelo grupo brizolista e que contava também com União
Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas, a Juventude
Universidade Católica (JUC) e a Ação Popular (AP), em 13 de março
de 1964, há o comício na Central do Brasil: diante de mais de 100 mil
pessoas e organizado pelo CGT, PCB e contando com apoio de setores
de baixo escalão das forças armadas – defendendo a reforma da
Constituição, a ampliação do direito ao voto e pedindo a convocação de
um plebiscito popular referente as “reformas de base”, as repercussão
foi imediata na oposição. Após 19 dias, no dia 1º de abril, Dia da
Mentira, ocorreu o Golpe Militar, com a promessa de pacificar o país e
convocar as novas eleições.
150 Uniube

5.1.5 Uma análise sobre o sistema partidário, o clientelismo e


a crise de 1964

Para a cientista política brasileira Maria do Carmo Campello de Souza


(1983), em sua clássica obra Estado e partidos políticos no Brasil (1930
a 1964), aponta a importância de uma análise que leve em conta a
institucionalização e a estrutura partidária frente o papel condicionante
do Estado. Para a autora, para compreender o golpe civil-militar
de 1964, é necessário não apenas a análise do momento histórico
imediato, mas também a própria estrutura partidária e a Constituição
de 1946, que trouxeram resíduos da Era Vargas.

Até o início da década de 1980, três abordagens principais analisavam


a baixa representatividade dos partidos: 1) apontava-se que os
partidos não possuíam um sentido político ou ideológico; 2) discutia-
se a “carência ideológica” e o papel das oligarquias, colocando em
pauta também o “personalismo” de suas lideranças; 3) apontava-
se a estrutura partidária ligada às classes sociais, oferecendo uma
explicação classista para a análise dos partidos e de suas alianças.
Souza (1983) refuta as abordagens anteriores.

A autora parte então do fenômeno do “clientelismo” por dois pontos:


1) a literatura até então não havia debatido a relação entre o sistema
partidário e o Estado como base estrutural para as funções objetivas
do clientelismo; 2) as manifestações de clientelismo estavam presentes
nas crises de representatividade que ocorreram de 1946 a 1964. Ou
seja, é preciso estudar e analisar as relações entre o sistema partidário
e o Estado, toda uma relação entre sua capacidade deliberação, os
processos de policy-making, com a burocracia estatal, levando em
consideração a prática clientelista. Segundo a autora, não houve a
institucionalização (representação e autonomia) do sistema partidário:
os partidos tinham no clientelismo uma estratégia de aquisição e
consolidação do poder, oferecendo então obstáculos e impedimentos
a sua própria institucionalização.
Uniube 151

Em sua conclusão, Souza (1983) afirma que o caráter crítico da


conjuntura se deu por dois fatores simultâneos: o fortalecimento do
Estado e do sistema partidário. Para a autora, não se pode afirmar
precisamente que a crise institucional teria se configurado de
um confronto entre um Executivo reformista e urbano contra um
Legislativo agrário e conservador. De forma lenta, e pelos processos
de urbanização, industrialização e incorporação das massas no jogo
político, havia um realinhamento das principais forças partidárias (PSD,
PTB, UDN) – e o aumento do número de alianças e coligações se
deu pela própria disputa eleitoral, ocasionando em forte racionalização
das estratégias partidárias, visando às possibilidades de situação
majoritária/minoritária; quociente eleitoral/partidário e as alianças a nível
federal, estadual e municipal. A transformação do sistema partidário (em
sua dimensão eleitoral) esteve atrelada não a uma estrutura organizada
voltada à ação política, mas a uma organização político-eleitoral, uma
vez que o Legislativo estava extremamente limitado pelo Executivo,
favorecendo a “política clientelística” dos partidos.

E quando chegamos ao governo João Goulart (1961-1964), Figueiredo


(1993) pontua que, mesmo com a ampliação da bancada pró-reforma
no Legislativo e com a vitória de Jango no plebiscito, para realizar as
desejadas reformas, o Executivo ainda dependeria de um Congresso
que possuísse maioria conservadora, o que ajudou a ampliar cada vez
mais a radicalização e polarização dos dois lados. Segundo a autora,
“ambos os grupos subscreviam a noção de governo democrático
apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava
a incerteza inerente às regras democráticas” (FIGUEIREDO, 1993, p.
202). Apesar de certa maturidade institucional ter auxiliado os partidos a
negociarem uma saída para a crise de 1961, o mesmo não foi possível
para 1964.
152 Uniube

5.2
A 5ª República (1967-1988)

Em 24 de janeiro de 1967, terça-feira, “o Congresso Nacional, invocando


a proteção de Deus, decreta e promulga” a nova Constituição, dando
início ao período chamado de 5ª República. Mas para compreender
o que foi esse intervalo histórico e a qual Congresso o texto da carta
constitucional se refere, é preciso voltar um pouco no tempo.

Na noite de 31 de março e início da madrugada de 1º de abril de 1964,


tropas do Exército marcharam contra a presidência de João Goulart (PTB).
Em Juiz de Fora, o comandante da 4ª Região Militar, o general Olympio
Mourão Filho, mobilizou suas forças em direção ao Rio de Janeiro. Ao
contar ainda com algum apoio militar em São Paulo e no Rio Grande Sul,
principalmente pela rede da legalidade criada por Leonel Brizola – já desde
1963 deputado federal pela então Guanabara – Jango permaneceu inerte:
sabendo que poderia desencadear uma guerra civil, não emanou ordens
para deter as tropas que marchavam contra ele, e o pedido que fez para
a prisão de um coronel foi recusada pelos demais oficiais.

Então, o presidente, que estava no Rio de Janeiro voou para Brasília.


Enquanto isso, o general Amaury Kruel, comandante do II Exército em São
Paulo e que representava um dos últimos obstáculos para o golpe, mudou
de lado após receber a visita do presidente da FIESP e, supostamente, ter
recebido uma gratificação em dólar. No mesmo dia, Jango então voou para
Porto Alegre, onde Brizola ainda incentivava a resistência armada. Porém,
em Brasília, e com o presidente ainda em solo brasileiro, o presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade (UDN) declarou na noite de sábado,
ilegalmente e inconstitucionalmente, que estava vaga a presidência da
República e passou o comando do executivo para o deputado Ranieri
Mazzilli (PSD).
Uniube 153

O golpe de 1964 teve início em 31 de março, mas foi concretizado somente


no dia 1º de abril, Dia da Mentira. No dia 2 de abril, domingo, foi organizado
o Comando Supremo da Revolução, composto pelo general Artur da
Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Rademaker o brigadeiro Francisco
de Assis Correia de Melo, junta que governou o país por duas semanas.
Já nos primeiros dias, milhares de civis, políticos e militares foram presos
de forma irregular, já com casos de tortura e, inclusive, exibições públicas
(GASPARI, 2002). Enquanto isso, alguns governadores apoiavam o golpe,
como Carlos Lacerda (UDN-Guanabara), Magalhães Pinto (UDN-MG) e
Adhemar de Barros (PSP-SP).

Uma semana após a junta militar ser formada, foi publicado um Ato
Institucional, um decreto sem fundamentação jurídica e que não estava
previsto na Constituição de 1946. Os atos tinham por objetivo reforçar
os poderes do Executivo frente ao Legislativo e Judiciário, assim
também sobre a própria sociedade, estabelecendo os fundamentos
para a repressão e autoritarismo que ocorreriam.

O AI-1, portanto, apresentou “modificações introduzidas pelo Poder


Constituinte originário da revolução Vitoriosa”. Em seu preâmbulo,
afirma que o “movimento civil e militar [...] é uma autêntica revolução”,
na qual se “traduz o interesse e a vontade da Nação” – apesar das
votações de outubro de 1962 e janeiro de 1963 terem deixado clara
sua preferência pelo respeito ao mandato presidencialista de Jango e
pela quebra da hegemonia da oposição, elegendo mais congressistas
favoráveis às reformas de base. Continua o texto ao dizer que “o
presente Ato Institucional só poderia ser editado pela revolução
vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que
respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários”.
Segue afirmando que cabe apenas ao Comando Supremo “ditar as
normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os
poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do
Poder no exclusivo interesse do País”. Apesar das incompatibilidades
discursivas, enquanto afirmavam que “não pretendemos radicalizar o
processo revolucionário” e que por isso estava mantida a Constituição
154 Uniube

de 1946 e o Congresso, afirma-se em seguida: “a revolução não


procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste
Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente
a todas as revoluções, a sua legitimação” – ou seja, a revolução se
autolegitima, o Congresso e o deputado Ranieri Mazzilli tornam-se
apenas figurantes no Poder Executivo, uma vez que o Comando podia
alterar a Constituição e cassar leis legislativas, sem necessidade de
votação ou apoio do Legislativo.

Com o objetivo de “tomar as urgentes medidas destinadas a drenar


o bolsão comunista” (BRASIL, 1964, p. 1), centenas de Inquéritos
Policiais-Militares (IPMs) foram abertos: parlamentares foram
cassados, civis tiveram seus direitos políticos suspensos por dez anos
e funcionários públicos e militares foram demitidos ou aposentados.
Nomes como Jânio Quadros, João Goulart, Leonel Brizola, Luís
Carlos Prestes, Miguel Arraes e quase outros cem foram cassados só
naquele mês. E mais, o AI-1 convocou eleições indiretas para o cargo
de presidente e determinou a extensão do cargo até 1966, cancelando
então as eleições marcadas para outubro de 1965. Entre 1964 a 1969,
foram 17 atos institucionais, regulamentados por mais de cem atos
complementares. Aqui destacaremos alguns em particular.

Saiba mais
Durante a Constituição de 1946, o governo militar de Castelo Branco (1964-1967)
publicou quatro Atos Institucionais e promulgou mais de cento e noventa decretos
e leis. Sem contabilizar os Atos Complementares, que muitas vezes operaram
como emendas constitucionais, que chegaram a cento e cinco até junho de 1978.

Com a Constituição de 1967, em um período de pouco mais de dois anos,


sete Atos Institucionais foram editados no governo de Artur Costa e Silva
(1967-1969), e outros dois durante o governo de Emílio Garrastazu Médici
(1969-1974), dando alterações à CF.
Uniube 155

A CF/1967 assegurou o sufrágio universal (mas mantendo a exclusão de


analfabetos e daqueles que perderam seus direitos políticos) e, tal como a
de 1946, não faz distinção dos sexos. Entretanto, com caráter autoritário,
os direitos políticos eram limitados, por exemplo, restringindo o voto direto e
secreto a poucos cargos do Executivo e Legislativo. É essa Constituição que
também traz novamente à história brasileira a criação do Colégio Eleitoral.
Em relação aos partidos políticos, ela reserva a possibilidade de extinção em
lei federal complementar, assim como proíbe as coligações partidárias – o
que impedira, por exemplo, uma aliança entre ARENA e MDB.

Entretanto, é preciso salientar que, durante a transição de Costa e Silva


para Médici em 1969, o governo militar editou dois Atos Institucionais e
publicou a Emenda Constitucional n° 1, cuja redação diz “Edita o novo texto
da Constituição Federal”. Editada em 17 de outubro de 1969, ela alterou
diversos dispositivos da CF/1967 e foi realizada somente pelo Executivo, fez
que o Congresso Nacional estava fechado de 13 de dezembro de 1968 e só
foi reaberto em 25 de outubro de 1969, para referendar a eleição e posse
do general Emílio Garrastazu Médici.

5.2.1 Do AI-2 ao AI-5: Arena e o MDB (1965-1968)

Em 11 de abril de 1964, o marechal Castello Branco venceu a eleição


indireta no colégio eleitoral, derrotando os generais Juarez Távora (que
migrou da UDN para o PDC) e o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra (PSD).
Já o vice-presidente eleito foi José Maria Alkmin (PSD). Esse governo,
que perdurou até 15 de março de 1967, editou os AI-2, AI-3 e AI-4.

Após a Lei de Inelegibilidades, aprovada em julho de 1965 e que


tornava inelegível diversos atores políticos ligados de forma direta
ou indireta ao governo Jango ou àquele que “contrarie o regime
democrático” (BRASIL, 1965a, p. 1), o governo militar esperava que,
nas eleições diretas de outubro de 1965, destinadas a preencher o
156 Uniube

cargo de governador em onze estados, fosse obtida uma maciça vitória.


Mas saiu vitorioso em apenas seis, tendo a oposição conquistado dois
dos principais estados daquele pleito: Guanabara (PTB-PSD) e Minas
Gerais (PSD). Pouco mais de vinte dias depois, o governo baixou a
primeira resposta à derrota na eleição: o AI-2. Enquanto o AI-1 tinha
onze artigos, o AI-2 tinha trinta e três. Em seu preâmbulo, o tom: “A
revolução está viva e não retrocede. Agitadores de vários matizes e
elementos da situação eliminada teimam e já ameaçam e desafiam a
própria ordem revolucionária” (BRASIL, 1965b, p. 1).

O AI-2, além de manter a eleição indireta para presidente, dissolveu os


partidos políticos (art. 18), aumentou o número de ministros do STF e
definiu que o presidente poderia decretar estado de sítio por seis meses
sem consultar o Congresso, assim como intervir nos estados e decretar
o recesso do Congresso. E mais, assim como em 1930, definiu que “ficam
excluídos da apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo
da Revolução e pelo Governo Federal” (art. 19). (BRASIL, 1965b, p. 1).

Ligado ao AI-2, o Ato Complementar (AC) nº 4 dispôs sobre a criação,


por membros do Congresso, de organizações que teriam atribuições
de partidos políticos para a disputa eleitoral de 1966, definindo que “em
número não inferior a 120 deputados e 20 senadores, caberá a iniciativa
de promover a criação, dentro do prazo de 45 dias” (BRASIL, 1965c,
p. 1). Ou seja, seria possível que apenas dois partidos fossem criados.
De um lado, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e, do outro, o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição, mas
controlado pelo regime militar. Cerca de 90% do quadro da UDN foi para
a ARENA; cerca de 65% do PSD foi para a ARENA; e cerca de 70% do
PTB foi para o MDB. E a segunda resposta do regime militar às derrotas
nas eleições de 1965 veio em fevereiro de 1966: o AI-3 estabeleceu
eleições indiretas para governadores a partir de colégio eleitoral
Uniube 157

formado pelos deputados estaduais; e mais, os prefeitos das capitais


seriam indicados pelos governadores. Definindo também o calendário
eleitoral até o fim daquele ano, a ARENA elegeu 17 governadores e
277 cadeiras no Congresso, contra 132 do MDB. Em outubro de 1966,
o Marechal Artur da Costa e Silva, então ministro da Guerra, foi eleito
presidente, ainda por via indireta e como único candidato. A eleição de
Costa e Silva marcava também a vitória da facção “linha dura” dentro
das forças armadas. A facção “moderada”, da qual fazia parte Castelo
Branco e defendia discursivamente eleições livres e diretas para o cargo
de presidente da República, foi internamente derrotada.

Ainda no governo Castelo Branco, houve o AI-4, que convocava o


Congresso para a formulação de uma nova Constituição. Nesse ínterim,
é sancionada a Lei de Imprensa em fevereiro de 1967, que buscava
regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação.
No mês seguinte, 15 de março, assumiu a presidência o marechal Costa
e Silva e, no mesmo dia, editou o Decreto-Lei nº 314, que estabeleceu
a Lei de Segurança Nacional.

Com uma resistência crescente frente ao governo ilegítimo e que havia


quebrado a promessa de convocar eleições diretas, passeatas são feitas
em São Paulo e no Rio de Janeiro e há a “Passeata dos Cem Mil” que,
além de apresentar diversas reinvindicações, denunciava a morte do
estudante secundarista Edson Luís, morto por policias militares em frente
ao Restaurante Central dos Estudantes. Em setembro, após o Congresso
recusar a quebra da imunidade parlamentar do deputado Márcio Moreira
Alves (MDB) e, em 12 de dezembro ter recusado o pedido de processo
contra o mesmo deputado, contando inclusive com apoio da ARENA na
votação, o governo Militar reagiu com o AI-5 logo no dia seguinte, em 13
de dezembro de 1968, o mais autoritário ato até então.
158 Uniube

Em seu preâmbulo, o “Poder Revolucionário” afirmou que “atos nitidamente


subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais,
comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução Vitoriosa
outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu
povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la”.

Ao conceder amplos poderes ao Executivo, o presidente poderia decretar


o “recesso” de todo o Legislativo do país (art. 2); poderia também, “sem
as limitações previstas na Constituição”, “suspender os direitos políticos
de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos
federais, estaduais e municipais” e aos mandatos cassados não seriam
dados substitutos – e poderiam ser aplicadas medidas de segurança,
como a liberdade vigiada, a proibição de frequentar determinados lugares
etc. (art. 4); “ficaram suspensas as garantias constitucionais ou legais
de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade”, podendo também, por
decreto, demitir, remover ou aposentar quaisquer titulares das garantias
referidas, assim como empregados de autarquias, empresas públicas
ou sociedades de economia mista – e não apenas civis, militares das
forças armadas e das polícias também estavam sujeitos à demissão,
transferência, reserva ou reforma (art. 6); o presidente também poderia
decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, sem necessidade de aval do
Congresso (art. 7); foi suspensa a garantia de habeas corpus nos casos de
crimes políticos, contra a segurança nacional e contra a ordem econômica
e social (art. 10); e por fim, “excluem-se de qualquer apreciação judicial
todos os atos praticados de acordo com esse Ato Institucional e seus Atos
Complementares, bem como os respectivos efeitos” (BRASIL, 1968, p.
1). E não era só o AI-5. No mesmo dia, o governo decretou o AC nº 38,
impondo o recesso ao Congresso Nacional por tempo indeterminado.
Se iniciava, ainda com mais violência e controle do Estado, os “anos de
chumbo”, período de maior repressão da Ditadura Civil-Militar.
Uniube 159

Importante

Durante a Ditadura Militar, toda as eleições para Presidente da República


foram indiretas: três foram feitas pelo Congresso Nacional, conforme informa
o TSE: Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Artur da Costa e
Silva (1967-1969) e Emílio Garrastazu Médici (1969-1974); e outras três foram
feitas pelo Colégio Eleitoral: Ernesto Geisel (1974-1979), João Baptista de
Oliveira Figueiredo (1979-1985) e Tancredo de Almeida Neves (1985). A eleição
de Médici seria pelo Colégio Eleitoral, como ordenava a CF/1967, mas por causa
da Emenda Constitucional n° 1 de 1969, não ocorreu – como o Congresso havia
sido fechado em dezembro de 1968, ele foi convocado para a eleição.

Segundo a Constituição Federal de 1967, foi definido que o presidente seria


eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral reunido ao final de cada mandato
no dia 15 de janeiro. O Colégio Eleitoral era composto pelos membros do
Congresso Nacional e mais quatro Delegados indicados por votação em cada
uma das assembleias legislativas estaduais, sendo que três eram deputados
e o quarto era escolhido a cada 500 mil eleitores inscritos naquele estado.
O sufrágio era através em sessão pública e nominal, com sua composição
e funcionamento regulados por leis complementares (art. 76). A CF também
determinou que o vice-presidente da República exerceria o cargo de
presidente do Congresso Nacional.

Já a eleição para governador, que passou a ser indireta com o Pacote de Abril
de 1977, a Emenda Constitucional n° 8 definiu o Colégio Eleitoral como sua
forma de sufrágio: em cada estado, o Colégio era composto pelos deputados
estaduais e os delegados municipais indicados pelas Câmaras Municipais.
Esses eram escolhidos na proporção de um vereador e mais um por 200 mil
habitantes do município, sendo dois o número mínimo de delegados por cada
localidade. A EC manteve a votação direta para prefeitos e vereadores.
160 Uniube

Tabela 1 – Cronologia das eleições durante a Ditadura (1962-1988)

Cargos eletivos

Ano do Senador,
Prefeito,
pleito Presidente e Governador e Deputado Federal Vice-Prefeito
Vice-presidente Vice-governador e Deputado
e Vereador
Estadual
Eleição direta Eleição direta Eleição direta
1962 —
07/10 07/10 07/10
Eleição
1964 — — —
indireta 11/04
Eleição direta Eleição direta
1965 — —
03/10 03/10
Eleição indireta Eleição indireta Eleição direta Eleição direta
1966
03/10 03/10 15/11 15/11
Eleição direta
1968 — — —
15/11
Eleição indireta Eleição direta
1969 — —
25/10 30/11
Eleição indireta Eleição direta
1970 — —
03/10 15/11
Eleição direta
1972 — — —
15/11
Eleição indireta Eleição indireta Eleição direta
1974 —
15/01 03/10 15/11
Eleição direta
1976 — — —
15/11 e 20/12
Eleição indireta Eleição indireta Eleição direta
1978 —
15/10 01/09 15/11
Eleição direta Eleição direta Eleição direta
1982 —
15/11 15/11 15/11
Eleição indireta Eleição direta
1985 — —
15/01 15/11
Eleição direta Eleição direta
1986 — Eleição direta 15/11
15/11 15/11
Eleição direta
1988 — — —
15/11

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados do Tribunal Superior Eleitoral (2021).
Uniube 161

5.2.2 Retomada do pluripartidarismo e fim da Ditadura Civil-


Militar (1979-1985)

O Congresso voltou à atividade somente em outubro de 1969 para


referendar a eleição indireta do general Emilio Garrastazu Médici
(1969-1974). Depois, o Congresso foi novamente fechado em 1º de abril
de 1977, pelo então ditador Ernesto Geisel (1974-1979). Nas eleições
de 1974, diante da insatisfação popular pelo regime ditatorial, pela crise
econômica e pelo desejo por eleições diretas para presidente, o MDB
atingiu expressiva votação: dobrou o número de deputados federais,
chegando a 43,9% das cadeiras, e conseguiu 16 cadeiras no Senado,
ocupando 72,7% do total. Com a ARENA não controlando mais os 2/3
necessários para aprovação de emendas constitucionais na Câmara
Federal, e sendo a minoria no Senado, os militares temiam que a
eleição de 1978 aprofundasse ainda mais as distâncias, já que, a partir
daquele ano, haveria eleições diretas para governador. Os assassinatos
do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho e da estilista
Zuzu Angel, entre o final de 1975 e o início de 1976, enfraqueciam a
facção “linha-dura” e fortaleciam o processo de transição. Mas houve
um contratempo, o Pacote de Abril.

Quadro 2 – Composição do MDB nas eleições (1966-1974)

DEPUTADOS
ELEIÇÃO SENADORES GOVERNADORES
FEDERAIS

1966 4 – 17,3% 132 – 32,2% 10

1970 5 – 10,8% 87 – 28,0% 1

1974 16 – 72,7% 160 – 43, 9% 0

1977 – Pacote de Abril

1978 8 – 34,7% 189 – 45, 0% 1

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados do Tribunal Superior Eleitoral (2021).
162 Uniube

Logo o ditador general Ernesto Geisel, que havia dito que faria um
processo de transição lento, gradual e seguro para a redemocratização,
no dia 1º de abril de 1977 fechou o Congresso e, utilizando-se do AI-5,
fez uma série de reformas constitucionais nos quatorze dias seguintes,
chamadas de Pacote de Abril, de forma a minar a votação do MDB
(SANTOS, 1995):

1) Em um grave retrocesso, definiu que a eleição para governador não


seria mais direta, mas indireta e com ampliação do Colégio Eleitoral,
o que favoreceria a ARENA;
2) Ampliação das bancadas que representavam os estados menos
desenvolvidos, nos quais a ARENA possuía maiores votações;
3) Criou o que ficou informalmente conhecido como “senador biônico”,
no qual cada estado elegia três senadores pelo voto direto; o terceiro era
eleito pela convenção do partido governista, a ARENA, e permaneceriam
oito anos com o mandato;
4) Ampliou a Lei Falcão, restringindo a propaganda política eleitoral no
rádio e televisão para as eleições estaduais e federais. Lei criada em
1976 e aplicada no âmbito municipal para auxiliar a ARENA, uma vez
que a oposição não podia criticar o governo;
5) Alterou o quórum de 2/3 para maioria simples (50% + 1) para a
votação de emendas constitucionais pelo Congresso;
6) Ampliou o mandato presidencial de cinco para seis anos, voltando
ao que foi em 1945.

O Pacote de Abril surtiu efeito e é um exemplo de como um governo,


através de dispositivos constitucionais, pode influenciar em uma
eleição: não só garantiu que a ARENA retomasse a maioria no Senado,
como pelo novo quórum simples conseguiria aprovar as emendas
constitucionais solicitadas pelo Regime Militar. Mas Geisel seguia na
linha da reabertura, apesar das pressões internas da “linha-dura”: em
Uniube 163

um episódio único desde 1964, em outubro de 1977 demitiu o ministro


do Exército, general Sylvio Couto Coelho da Frota, que desejava ocupar
a presidência e novamente endurecer o regime.

Nos últimos meses, Geisel ainda revoga o AI-5 através da Emenda


Constitucional nº 11 e abriu caminho para fazer o seu sucessor, o general
João Baptista de Figueiredo, que tomou posse em 15 de março de 1979.
No mesmo dia, metalúrgicos do ABC deflagraram greve geral e mais de
200 mil operários cruzaram os braços, parando a produção da Volkswagen,
Scania, Ford e outras montadores e fábricas de peças. Liderados pelo
sindicalista Luiz Inácio da Silva, mais de 60 mil pessoas compareceram ao
estádio da Vila Euclides em São Bernardo do Campo para a assembleia
que manteve a greve, mesmo com a repressão do governo. No dia 1º de
maio, 150 mil pessoas participaram de uma manifestação pelas ruas de
São Bernardo, desencadeando greves em outras localidades, virando a
década de 1980.

Diante do cenário de deterioração econômica e política, o ditador


general João Figueiredo, em seu primeiro ano de governo, promoveu
duas importantes mudanças em relação à estrutura política: em agosto,
a promulgação da Lei nº 6.683, a Lei de Anistia, que beneficiou os
cidadãos banidos, os exilados, os presos políticos, mas também
beneficiou os militares e policiais que cometeram crimes hediondos,
crimes contra a humanidade e sua própria população. A lei abrangeu o
período de 25 de agosto de 1961 a 15 de agosto de 1979.

E meses depois foi reestabelecido o pluripartidarismo, em 20 de


dezembro de 1979, com sanção da Lei nº 6.767. Com a retomada do
pluripartidarismo, em 1980 a ARENA deu lugar ao Partido Democrático
Social (PDS). Enquanto isso, do MDB surgiram as agremiações: Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Democrático Trabalhista (PDT),
Partido Popular (PP), Partido Movimento Democrático Brasileiro
164 Uniube

(PMDB) e Partido dos Trabalhadores (PT). Outra vitória da oposição


foi o reestabelecimento do voto direto e secreto para as eleições para
governador estadual e senador, dada pela Emenda Constitucional nº
15 de 19 de novembro de 1980, que também estabeleceu a chapa, na
qual “o candidato a Vice-Governador será considerado eleito em virtude
da eleição do candidato a Governador com ele registrado”.

Até o final do regime ditatorial, a facção “linha-dura” tentou cessar


o processo de abertura. No primeiro semestre de 1980, dezenas de
atentados com explosões em bancas de jornais ocorreram. Casos
que até hoje não foram investigados ou foram arquivados. E até o
final houve contratempos para a redemocratização. Ao final de 1983,
o general João Figueiredo passou a coordenação para a sucessão
presidencial para o PDS, antigo ARENA, em uma disputa que envolvia
militares e também civis, como o então ex-governador de São Paulo e
aliado da ditadura, Paulo Maluf. Com a inflação fechando o ano acima
dos 200%, recessão e mobilização de sindicatos, ainda em 1983, o
deputado Dante de Oliveira (PMDB) apresentou uma emenda que
reestabeleceria eleições diretas para presidente, a serem realizadas em
novembro do ano seguinte. Simultaneamente, teve início o movimento
“Diretas Já”, que retomou a ocupação das ruas e passeatas pedindo o
fim da ditadura e exigindo eleição direta. Mas em 25 de abril de 1984,
a emenda entrou em votação na Câmara Federal: apesar de 298 votos
favoráveis e 25 contrários, 112 deputados do PDS, antigo ARENA,
se abstiveram, não chegando ao quórum necessário de 310 votos.
Mantida a eleição indireta, em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral
elegeu Tancredo Neves (PMDB), derrotando o deputado Paulo Maluf
(PDS) por uma diferença de 300 votos, obtendo 72,4% dos votos.
Uniube 165

5.3
Considerações finais

É inegável o papel dissolvedor da democracia que a UDN teve durante


a 4ª República: quis impedir a posse de Getúlio em 1951; conspirou
para um golpe militar o levou ao suicídio em 1954; conspirou para
que Juscelino Kubitschek (PSD), então governador de Minas Gerais
e eleito presidente não assumisse em 1955; depois, em 1961, a
UDN e Carlos Lacerda se viraram contra Jânio Quadros (PTN), até
então parte da mesma aliança; mais uma vez e ainda em 1961, a
UDN conspirou contra a posse de João Goulart (PTB); por fim, a UDN
apoiou efetivamente o Golpe Militar de 1964: e quando acharam que
finalmente chegariam ao poder presidencial, os militares fecharam o
Congresso e extinguiram os partidos. É inegável também o dano que
militares da ativa, que ocuparam posições no Executivo, causaram
à estabilidade das instituições e do funcionamento da democracia,
principalmente quando observamos que os principais instigadores da
ruptura democrática eram justamente aqueles derrotados nas eleições.

Durante a Ditadura Civil-Militar, 173 deputados federais foram cassados


em pleno exercício do mandato. Segundo a Comissão Nacional da
Verdade (CNV), houve, ao menos, 434 mortes durante a Ditadura
Militar, sendo que 210 ainda estão desaparecidos. Só para o ano de
1964, a estimativa de presos políticos chega a 5 mil, mas documentos
liberados recentemente indicam que o número pode chegar a 20 mil. O
número de detidos arbitrariamente, alvos de prisões para averiguação
e submetidos a interrogatórios, ainda é uma incógnita. Entre 5 a 10 mil
seguiram para o exílio, enquanto 130 presos políticos foram banidos
do território nacional. Com a Lei de Anistia, cerca de 2 mil pessoas
puderam retornar ao Brasil. Segundo Frei Beto, em Brasil: Nunca Mais,
pelo menos 1.918 presos políticos foram torturados entre 1964-1979,
descrevendo 280 formas – tortura, aliás, que foi ensinada e ministrada
166 Uniube

aos agentes de segurança a partir de acordos do governo brasileiro


com governo estadunidense. Mulheres, mulheres grávidas e filhas
e filhos de presos políticos eram também torturados nos porões das
delegacias e nos centros clandestinos da repressão. Através de uma
rede de unidades militares e policiais, navios-prisões e assim como
toda uma estrutura clandestina para a prática de tortura e assassinatos,
houve a violação e terrorismo de Estado contra a sociedade civil e
política; houve violação de direitos humanos no meio militar, dos
trabalhadores, dos camponeses, nas igrejas cristãs, nos povos indígenas
e na universidade.

Resumo

De forma breve, passamos por 40 anos de história do nosso sistema


partidário. Iniciado em 1945, observamos como as mudanças na
política eleitoral traçadas por Getúlio Vargas fizeram não só o seu
partido e candidato vitoriosos, mas moldaram a Constituição de 1946
e auxiliaram a volta de Getúlio. Porém com as transformações sociais
ocorrendo e os novos personagens políticos entrando em cena, os
partidos vão se reconfigurando e mudando suas orientações. Dentro
de um sistema partidário clientelista e não institucionalizado, com
baixa representatividade e autonomia, os choques constantes entre
Poder Executivo e Poder Legislativo levaram a diversas crises a nossa
recente democracia.

Os derrotados nas urnas, como a UDN, assim como outros atores, por
sua ação ou inércia, forjaram o caminho do Golpe Militar de 1964 e que
perdurou até 1985. Da volta aos partidos em 1945, do bipartidarismo em
1966 e novamente o pluripartidarismo em 1979, vimos juntos o quanto o
Brasil de hoje é, também, o Brasil de 1930, o Brasil de 1945 e o Brasil de 1964.
Uniube 167

Referências
BENEVIDES, Maria Victoria. A UDN e o udenismo: ambiguidades do
liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

BOHOSLAVSKY, Ernesto. Os partidos de direita e o debate sobre as estratégias


anticomunistas (Brasil e Chile, 1945-1950). Varia hist., Belo Horizonte, v. 30, n.
52, p. 51-66, Apr. 2014. https://doi.org/10.1590/S0104-87752014000100003.

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Janeiro: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
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Estrutura política e eleitoral
brasileira • Capítulo 6

Entre ditadura
e democracia:
vida política
e sistema
eleitoral
no Brasil
Adriana Marques Aidar
Introdução

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Chico Buarque

Chegamos ao final de nosso percurso nesta disciplina, e que


felicidade foi ter vocês conosco durante esse processo. Fomos
do Império até os anos da Ditadura. Agora caminhamos para
o derradeiro de nossos debates: o sistema político eleitoral
contemporâneo.

Já conhecemos um pouco do período ditatorial e seus


reflexos na organização da vida política de nosso país. Sobre
o período que antecedeu a Ditadura Militar, cabe fazer um
adendo a respeito da importância dos movimentos populares
organizados e o papel desempenhado por eles em vários dos
acontecimentos que estudamos. Assim também o foi para
o movimento de retomada da democracia. Exemplo são os
anos compreendidos entre 1961 e 1964, quando se observou
o surgimento e/ou a retomada de inúmeros movimentos que
potencializaram, nas palavras de Daniel Aarão Reis (2014, p.
78), “a conjuntura mais quente da história republicana”.
Segundo o autor, o clima de polarização experimentado
no mundo em razão das disputas entre os Estados Unidos
da América e a União Soviética não dava espaço para
posicionamentos brandos sobre as coisas e, por todo o mundo,
e também na América Latina, os tempos eram extremos.

No Brasil, especificamente, a República convivia com debates


cada vez mais acirrados sobre temas como reforma educacional
e agrária, por exemplo. Questões nevrálgicas que até hoje
afligem nosso país. O escopo das reivindicações era extenso
e não se esgotava nestes dois pontos. Conforme Reis (2014,
p. 78), via-se a consolidação de um “programa abrangente”,
das “chamadas reformas de base”. Mas não se tratava de
uma questão só para os movimentos sociais, mas também
uma bandeira defendida pelo governo de João Goulart (1961).
Entre os pontos defendidos estava estender aos analfabetos
a possibilidade de votar.

A relação do governo de Jango com pautas progressistas


incomodou os setores mais conservadores do Brasil e logo
o colocou no radar dos norte-americanos e sua sanha em
detectar e combater governos “comunistas”. Pois, “aquelas
reformas, se realizadas, provocariam uma radical distribuição
de renda e poder e uma ampliação notável da noção de
cidadania” (REIS, 2014, p. 80).

A vontade de Jango de promover as reformas encontrava


cada vez mais resistência.
O fortalecimento dos movimentos populares,
concretizado através do aumento do
poderio dos trabalhadores urbanos e da
crescente organização das massas rurais,
intensificou as pressões sobre o governo
para a implementação das reformas.
A eclosão, em setembro de 1963, da
Revolta dos Sargentos – movimento que
reivindicava o direito de que os chamados
graduados das forças armadas (sargentos,
suboficiais e cabos) exercessem mandato
parlamentar em nível municipal, estadual ou
federal, o que contrariava a Constituição de
1946 – foi mais um fator para a polarização
política e para denunciar a urgência das
reformas de base. (FERREIRA, 2020, p. 1).

O governo se encontrava, portanto, sob a pressão dos


movimentos populares e das forças conservadoras. O medo
do caos social e político levou grande parcela da população
brasileira, bem como inúmeras instituições da sociedade civil,
a se alinharem às direitas (REIS, 2014).

A Ditadura se arrastou por muito tempo, e a violência foi a


tônica dos governos na América Latina. O Brasil passou a ser
identificado como um país que fazia uso frequente da tortura,
com liberdades e garantias individuais, inexistentes. Mas, como
diria Chico Buarque em sua canção Apesar de você, “amanhã há
de ser outro dia” e esse amanhã chegou, o esperado momento
da redemocratização finalmente havia chegado.

De pronto cabe notar que estamos diante de um processo


de mais de cinco anos que, eventualmente, levou ao final
da Ditadura (1979 já tínhamos a lei de anistia e em 1980
o pluripartidarismo seria reestabelecido). Os movimentos
populares se constituem como atores essenciais para que
tal processo se iniciasse e, para os próprios movimentos,
o momento foi decisivo. Conforme Marcelo Ridenti (2007,
p. 157), ficava “cada vez mais evidente a necessidade de
renovar parâmetros da esquerda, em busca da revalorização
da democracia, da individualidade, das liberdades civis, dos
movimentos populares espontâneos, da cidadania”. Nesse
período de renovação no “pensamento e prática de esquerda”
que surge o Partido dos Trabalhadores.
Ainda de acordo com esse autor, “paralelamente, surgia uma
literatura para teorizar a importância e a autonomia desses
movimentos em relação ao Estado e outras instituições, inclusive
os partidos” (2007, p. 158). Pesquisadoras e pesquisadores
desse período abriram caminho para que, hoje, vocês tenham
uma cena de debates em teoria e ciência política que seja
brasileira.

Mas voltemos a 1979 e à transição democrática. Esse ano é,


de acordo com Daniel Aarão Reis (2014, p. 103), um marco
relevante inclusive no debate sobre a legislação autoritária
que configurava o estado de exceção que o período ditatorial
representou. Para Reis, o período entre 1979 e 1988 é
sui generis porque não era mais uma ditadura no sentido
estrito dos mecanismos e normas, mas tampouco era uma
democracia. Reis aponta alguns elementos para corroborar
seu entendimento: “ausência de instrumentos de exceção
como recurso de intervenção política; a inexistência de presos
políticos, o retorno dos exilados, autonomia do poder judiciário
e o pluralismo político-partidário e sindical, alternância do poder,
liberdade de imprensa e de expressão” (2014, p. 104).

Em 1982 temos as primeiras eleições diretas para governadores


e para parlamentares (desde 1965) e os movimentos sociais
realizam mobilizações massivas. As Diretas Já representaram
o anseio pelo retorno das eleições diretas para presidente e
seus comícios uniram milhões de pessoas nas ruas, o que não
foi suficiente, entretanto. A emenda constitucional não atingiu
o quórum necessário para a sua aprovação, seria mais uma
eleição indireta, aquela que levaria à escolha de Tancredo Neves
e José Sarney pelo Colégio Eleitoral.
Seria o primeiro ato de um período que se consolidaria com
a promulgação da Constituição de 1988, após a Constituinte
(formalmente instalada em 1987). Sobre o período de debates,
é essencial destacar a participação de cidadãos e cidadãs,
organizados ou não.
Durante cinco meses, cidadãos e entidades
representativas encaminharem suas sugestões
para a nova Constituição. Cinco milhões de
formulários foram distribuídos nas agências
dos Correios. Foram coletadas 72.719
sugestões de cidadãos de todo o País, além
de outras 12 mil sugestões dos constituintes
e de entidades representativas. (BRASIL,
2018, p. 1).

Esse processo mobilizou o Brasil de forma única e levou à


garantia de direitos individuais, políticos e sociais em um texto
que mesclava inúmeros interesses e pautas. Reis (2014, p.
109) destaca que o Brasil se colocou na “contracorrente do
que se passava no mundo”, isso porque estamos falando do
momento histórico de consolidação do neoliberalismo em
detrimento do modelo do welfare state, que se esgotou após
a crise do petróleo de 1979.

Ao inserir no texto constitucional uma série de direitos sociais,


culturais e econômicos, o Brasil assumia um modelo híbrido, parte
alinhado ao neoliberalismo, parte ao Estado de bem-estar social.

Terminado nosso momento de relembrar a história, seguimos.


Para encerrar nosso percurso, chegamos ao momento de
compreender de que forma nosso sistema político eleitoral passou
a se constituir e como se configura contemporaneamente.
Para tanto, trabalharemos direitos políticos, princípios do
direito eleitoral, partidos políticos e sistema eleitoral. Espero
que vocês estejam animados!
178 Uniube

Objetivos
São objetivos deste capítulo:

• explicar o papel desempenhado pelos partidos políticos no


processo eleitoral contemporâneo;
• descrever o funcionamento do sistema eleitoral brasileiro;
• distinguir os sistemas eleitorais majoritário e proporcional.

Esquema
6.1 Direito eleitoral e eleições na contemporaneidade
6.1.1 Direitos políticos
6.2 Princípios do direito eleitoral
6.3 Partidos políticos
6.4 Sistema eleitoral
6.5 Considerações finais

6.1
Direito eleitoral e eleições na contemporaneidade

Como apresentado anteriormente, especialmente a partir de 1985,


tivemos um processo gradativo de retomada e consolidação de um
regime democrático, com a “[…] concessão de votos aos eleitores
analfabetos; liberalização das regras para a criação de novos partidos;
eleições diretas para cargos que haviam perdido a elegibilidade
durante o regime militar (presidente, senadores biônicos e prefeitos
de capital e de áreas de segurança nacional); promulgação de uma
nova Constituição” (NICOLAU, 2012a, p. 108). É sobre essa estrutura
que os direitos políticos e o sistema eleitoral contemporâneos foram
constituídos.
Uniube 179

Para tratar de como são realizadas as eleições hoje, é necessário


estudar o ramo do direito responsável pela organização e regência da
vida política do país: o direito eleitoral. Caminho que estamos tratando
neste capítulo desde os estudos sobre o Império. Frente ao que foi
exposto até o momento, pode soar um tanto quanto anacrônico o fato
de que o instrumento basilar deste ramo do direito, o Código Eleitoral,
date de 15 de julho de 1965, com o Regime Militar a plenos pulmões.
Entretanto, como destaca José Jairo Gomes (2020, p. 10),
[…] o Direito Eleitoral ainda se encontra empenhado
na construção de sua própria racionalidade, no
desenvolvimento de sua lógica interna, de seus
conceitos fundamentais e de suas categorias.
Importa considerar que a realidade em que incide e
que pretende regular encontra-se, ela mesma, em
constante mutação.

Seu estudo é de extrema importância para a matéria que abordamos


justamente porque é
Essencial à concretização do regime democrático de
direito desenhado na Lei Fundamental, da soberania
popular, da cidadania e dos direitos políticos, por ele
passam toda a organização e o desenvolvimento do
certame eleitoral, desde o alistamento e a formação do
corpo de eleitores até a proclamação dos resultados
e a diplomação dos eleitos. Da observância de suas
regras, exsurgem a ocupação legal dos cargos
político-eletivos, a pacífica investidura nos mandatos
públicos e o legítimo exercício do poder estatal.
(GOMES, 2020, p. 11).

Importante destacar que, muito longe de esvaziar o assunto, pretendemos


focar a abordagem em temas acessíveis que possibilitem uma
compreensão geral do funcionamento do processo eleitoral contemporâneo.
Nesse sentido, concentra-se a abordagem nos seguintes tópicos:

I – direitos políticos
II – princípios do direito eleitoral
III – partidos políticos
IV – sistema eleitoral
180 Uniube

6.1.1 Direitos políticos

Os direitos políticos são a base do regime democrático. De forma ampla,


a expressão se refere “[…] ao direito de participação no processo político
como um todo, ao direito ao sufrágio universal e ao voto periódico,
livre, direto, secreto e igual, à autonomia de organização do sistema
partidário, à igualdade de oportunidade dos partidos” (BRANCO;
MENDES, 2018, p. 1.146). São as prerrogativas e deveres inerentes à
cidadania, compreendidos na participação direta ou indireta do governo,
garantidos indistintamente a todos os habitantes do território nacional
que cumprem alguns requisitos expressos no texto Constitucional
(GOMES, 2020, p. 44).

Essa garantia indistinta a todos os nacionais da possibilidade de votar,


ser votado e participar da organização do Estado caracteriza o sufrágio
universal (BRANCO; MENDES, 2018, p. 1.147). Esse sufrágio universal
é característica importante da soberania popular – princípio inscrito
ao parágrafo único, art. 1º, da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB) – que se exerce não somente através do
voto – forma de participação indireta –, mas também do plebiscito, do
referendo e da iniciativa popular – formas de participação direta –, nos
termos do art. 14 da CRFB.

No que diz respeito aos mecanismos da democracia direta presentes no


Texto Constitucional, existem algumas especificidades. A realização de
plebiscito e referendo depende de autorização do Congresso Nacional
(art. 49, XV, CRFB, e Lei n. 9.709, de 18 de novembro de 1998). O
plebiscito “[…] configura consulta realizada aos cidadãos sobre matéria
a ser posteriormente discutida no âmbito do Congresso Nacional […]”,
já o referendo “[…] é uma consulta posterior sobre determinado ato
ou decisão governamental, seja para atribuir-lhe eficácia que ainda
não foi reconhecida (condição suspensiva), seja para retirar a eficácia
Uniube 181

que lhe foi provisoriamente conferida (condição resolutiva)” (BRANCO;


MENDES, 2018, p. 1.183). Já a iniciativa popular, regulada pelo art.
61, §2º, CRFB, poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos
Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do
eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não
menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

O alistamento eleitoral (matéria que será abordada de forma específica


mais adiante) e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos
e facultativos para os analfabetos, maiores de dezesseis e menores
de dezoito anos e maiores de setenta anos. Essa obrigatoriedade
se traduz tão somente na obrigação de comparecer às eleições ou
justificar a ausência, já que o eleitor pode escolher livremente como
votar (BRANCO; MENDES, 2018).

Dentro do meio eleitoral, ao grupo de indivíduos que preenche esses


requisitos, “[…] a que se reconhece o direito de participar na formação da
vontade estatal, elegendo ou sendo eleitos, ou seja, votando ou sendo votados
com vistas a ocupar cargos político-eletivos” (GOMES, 2020, p. 47), dá-se
o nome de povo. Também nesse meio, cidadão é o indivíduo detentor de
direitos políticos, capaz de participar do processo governamental, seja
elegendo ou sendo eleito (GOMES, 2020). Destaca-se que o conceito é
apresentado de forma restritiva ao direito eleitoral porque, de acordo com
o conceito apresentado, uma pessoa pode ser detentora da nacionalidade
brasileira e não ser compreendida como cidadã, como é o caso dos
menores de dezesseis anos.

O voto, no direito brasileiro, é direto, secreto, periódico e de igual valor.


O voto direto implica que “[…] o voto dado pelo eleitor seja conferido
a determinado candidato ou a determinado partido sem que haja
mediação por uma instância intermediária ou por um colégio eleitoral”
(BRANCO; MENDES, 2018, p. 1.151). Nesse sentido, o voto indireto
implicaria no voto para pessoas incumbidas de eleger os ocupantes dos
mandatos – como é o processo eleitoral estadunidense, por exemplo.
182 Uniube

O voto secreto implica, diretamente, na liberdade do eleitor de escolher


em quem votar. “Ninguém poderá saber, contra a vontade do eleitor,
em quem ele votou, vota ou pretende votar” (BRANCO; MENDES,
2018, p. 1.152), o que implica a obrigação do Estado de tomar medidas
no sentido de garantir segurança não só ao eleitor, mas ao processo
democrático. A periodicidade do voto traduz-se nas ideias de renovação
dos cargos eletivos e da temporariedade dos mandatos (BRANCO;
MENDES, 2018). Já a igualdade do voto estabelece-se na vedação de
qualquer tratamento discriminatório entre os eleitores ou à eficácia de
sua participação (BRANCO; MENDES, 2018).

Já no que diz respeito ao outro polo da relação eleitoral, o da elegibilidade,


o Texto Constitucional também não se queda silente, estabelecendo
critérios objetivos para a elegibilidade. São eles:

I – a nacionalidade brasileira (seja nata ou naturalizada);


II – o pleno exercício dos direitos políticos;
III – o alistamento eleitoral;
IV – o domicílio na circunscrição eleitoral de candidatura;
V – filiação partidária;
IX – idade mínima (35 anos para Presidente, Vice-Presidente e Senador;
30 anos para Governador e Vice-Governador; 21 anos para Deputados
federal, estadual ou distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e Juiz de Paz; e 18
anos para Vereador).

A plenitude de exercício de direitos políticos diz respeito à não incidência


do candidato nas penas de suspensão ou perda de direitos políticos.
O alistamento eleitoral, como destacado anteriormente, é obrigatório –
salvo as exceções mencionadas, além dos estrangeiros e os conscritos
no serviço militar obrigatório. O domicílio eleitoral, segundo a legislação
eleitoral, diz respeito àquele que considera o lugar onde o interessado tem
vínculos políticos e sociais, com ligação material ou afetiva (BRANCO;
MENDES, 2018). Já a idade mínima, diz respeito à idade que o candidato
tem na data de sua posse.
Uniube 183

6.2
Princípios do direito eleitoral

Apresentados os direitos políticos e a forma como se instrumentalizam


no ordenamento brasileiro, o caminho lógico impõe que se discuta o
direito eleitoral e os princípios que fundamentam e regem seu funcionamento.

Como destacado anteriormente, o Direito Eleitoral é o ramo do direito que


regula o exercício da soberania popular, a ocupação de cargos políticos e a
legitimação do poder estatal (GOMES, 2020). “A observância dos preceitos
eleitorais confere legitimidade a eleições, plebiscitos e referendos, o que
enseja o acesso pacífico, sem contestações, aos cargos eletivos, tornando
autênticos o mandato, a representação popular e o exercício do poder
político” (GOMES, 2020, p. 77).

A análise dos princípios que o constituem é importante porque, dentro


de um sistema jurídico, referem-se à essência de um fenômeno, aos
“preceitos inspiradores que presidem e alicerçam um determinado
conhecimento” (GOMES, 2020, p. 105). Considerando a controvérsia
doutrinária acerca de quais, exatamente, são os princípios adotados dentro
do direito eleitoral, arrolam-se, aqui, tão somente os apresentados por
José Jairo Gomes (2020), que opta por não considerar como princípios
alguns preceitos, como a anualidade ou anterioridade, por entender
que se caracterizam melhor como regra. Nas palavras de José Jairo
Gomes (2020, p. 116):
[…] nos termos do artigo 16 da Constituição Federal:
‘A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor
na data de sua publicação, não se aplicando à eleição
que ocorra até um ano da data de sua vigência.’
Parte da doutrina e da jurisprudência atribui status
de princípio à norma inscrita nesse dispositivo. No
entanto, dada sua densidade e elevado grau de
especificação, essa norma melhor se harmoniza com
o conceito de regra.
184 Uniube

Assim, o primeiro dos princípios apresentado pelo doutrinador é o –


já apresentado – da soberania popular. Percebe-se que os direitos
políticos estão profundamente entranhados com o funcionamento do
direito eleitoral brasileiro, justamente pela forma de organização do
Estado Brasileiro, o Estado Democrático de Direito, que “É aquele que
respeita os direitos e garantias fundamentais, individuais, políticos,
sociais e coletivos” (GOMES, 2020, p. 127). Nesse sentido, “O poder
soberano emana do povo: todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente (CF, art. 1o, parágrafo
único). A soberania popular é concretizada pelo sufrágio universal, pelo
voto direto e secreto, plebiscito, referendo e iniciativa popular (CF, art.
14, caput)” (GOMES, 2020, p. 127).

O segundo, é o republicano, que “[…] liga-se às formas de governo.


Essas referem-se à estruturação do Estado com vistas ao exercício
do poder político; dizem respeito ao modo de atribuição do poder
aos agentes que exercerão a dominação política e, pois, comporão
o governo” (GOMES, 2020, p. 128). Nesse modelo, o chefe do Poder
Executivo e os membros do Legislativo cumprem mandato popular,
diretamente apontados pelos cidadãos através de eleições diretas,
gerais e periódicas (GOMES, 2020).

Em terceiro lugar, o sufrágio universal, que “[…] designa o direito público


subjetivo democrático, pelo qual um conjunto de pessoas – o povo –
é admitido a participar da vida política da sociedade, escolhendo os
governantes ou sendo escolhido para governar e, assim, conduzir o
Estado” (GOMES, 2020, p. 130).

Em quarto lugar, o princípio da legitimidade das eleições, que tem


por base a ideia de justiça, de observância do procedimento legal, e
de reconhecimento geral acerca da ocupação e exercício do poder
(GOMES, 2020). Segundo José Jairo Gomes (2020, p. 135):
Uniube 185

Hodiernamente, dúvida não há de que a legitimidade


do exercício do poder estatal por parte de autoridades
públicas decorre da escolha levada a cabo pelo povo.
Em uma sociedade verdadeiramente democrática, os
cidadãos governados é que elegem seus governantes,
reconhecendo-os como autoridades investidas de
poder político. Essa escolha deve ser feita em
processo pautado por uma disputa limpa, isenta
de vícios, corrupção ou fraude. A escolha é sempre
fruto do consenso popular, que, de certa maneira,
homologa os nomes dos candidatos, consentindo que
exerçam o poder político-estatal e, pois, submetendo-
se a seu exercício.

Em seguida, Gomes (2020) trata dos princípios da moralidade, que


autorizam o legislador infraconstitucional a instituir inelegibilidade a
fim de proteger a moralidade para exercício do mandato, levando em
consideração a vida pregressa do candidato, e da probidade, ligado à
ideia de integridade e honestidade, também sendo critério autorizado
para tratar de inelegibilidade.

O princípio da igualdade ou isonomia é o próximo, previsto de forma


mais abrangente, no texto da CRFB, tendo elevada importância no seio
do direito eleitoral, destacando a “importância para o desenvolvimento
equilibrado do processo eleitoral, bem como para a afirmação da liberdade
e do respeito a todas as expressões políticas” (GOMES, 2020, p. 140).

Ligado ao princípio da liberdade ou isonomia, surge o do pluralismo


político, que “propugna um modelo de sociedade baseado na existência
de diversos grupos ou centros de poder, os quais não necessariamente
convivem em harmonia, podendo conflitar entre si. Tais grupos situam-se
entre o indivíduo e o Estado, constituindo uma contraforça capaz de
impedir abusos por parte dos governantes” (GOMES, 2020, p. 142).
186 Uniube

6.3
Partidos políticos

Lançadas as bases teóricas, o momento é propício para o início do estudo


da prática. Nesse sentido, as instituições basilares para o funcionamento da
complexa estrutura democrática contemporânea são os partidos políticos.
Tecnicamente, um partido político pode ser compreendido como
[…] a entidade formada pela livre associação de
pessoas, com organização estável, cujas finalidades
são alcançar e/ou manter de maneira legítima o poder
político-estatal e assegurar, no interesse do regime
democrático de direito, a autenticidade do sistema
representativo, a alternância no exercício do poder
político, o regular funcionamento do governo e das
instituições políticas, bem como a implementação dos
direitos humanos fundamentais. (GOMES, 2020, p.
198).

Como destacado por Gomes (2020, p. 194):


Constituem canais legítimos de atuação política e social;
captam e assimilam rapidamente a opinião pública;
catalisam, organizam e transformam em bandeiras de
luta as díspares aspirações surgidas no meio social,
sem que isso implique ruptura no funcionamento do
governo legitimamente constituído.
Os partidos políticos são importantes instituições na
formação da vontade política. A ação política realiza-
se de maneira formal e organizada pela atuação
dos partidos políticos. Eles exercem uma função de
mediação entre o povo e o Estado no processo de
formação da vontade política, especialmente no que
concerne ao processo eleitoral. Mas não somente
durante essa fase ou período. O processo de
formação de vontade política transcende o momento
eleitoral e se projeta para além desse período.
Enquanto instituições permanentes de participação
política, os partidos desempenham função singular na
complexa relação entre o Estado e a sociedade. Como
nota Grimm, se os partidos políticos estabelecem a
mediação entre o povo e o Estado, na medida em que
apresentam lideranças pessoais e programas para a
eleição e procuram organizar as decisões do Estado
consoante as exigências e as opiniões da sociedade,
não há dúvida de que eles atuam nos dois âmbitos.
(BRANCO; MENDES, 2018, p. 1.213).
Uniube 187

Nesse sentido, está claro que a CRFB atribuiu alta relevância a sua
participação no processo eleitoral, estabelecendo como critério de
elegibilidade a filiação partidária. E não só isso, mas garante autonomia
para definir sua estrutura interna, funcionamento, garantindo que seus
estatutos disciplinem suas normas de disciplina e fidelidade partidária.
Claro, essa autonomia partidária deve se ater aos parâmetros básicos
da Constituição “[…] especialmente o respeito à soberania nacional,
o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais
da pessoa humana” (BRANCO; MENDES, 2018, p. 1.218). Outras
limitações apresentadas pelo Texto Constitucional dizem respeito à
necessidade de organização nacional, vedação do recebimento de
recursos estrangeiros e proibição de organização em caráter paramilitar.

Outra observação relevante diz respeito à natureza dos partidos políticos,


que transitam entre o privado e o público; nesse sentido, Branco e Mendes
(2018, p. 1.219):
Embora se afirme o caráter privado do partido sob
a Constituição de 1988, é certo que o seu papel,
enquanto instituição que exerce relevante função
de mediação entre o povo e o Estado, confere-lhe
características especiais e diferenciadas, que não se
deixam confundir com uma simples instituição privada.
Daí ressaltar-se que o partido é dotado de natureza
complexa, que transita entre a esfera puramente
privada e a própria esfera pública.

Gomes (2020, p. 205) também traça considerações nesse sentido,


destacando que
[...] o partido não é ente privado comum ou convencional,
mas especial e diferenciado devido às relevantes
funções que lhe foram conferidas pela Constituição
Federal com vistas ao adequado funcionamento do
sistema político e do regime democrático-representativo.
Situando-se entre a sociedade e o Estado, é submetido a
regime legal próprio, do qual resultam diversos deveres
e obrigações, inclusive a de prestar contas de todos os
valores arrecadados e gastos com suas atividades.
188 Uniube

A constituição de um novo partido político é processo complexo, que


deve respeitar os preceitos da CRFB, do Código Civil (Lei n. 10.406,
de 10 de janeiro de 2002) (já que são compreendidos como entidades
de direito privado, em um primeiro momento), da Lei dos partidos
políticos (Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995), e da Resolução
n. 23.571, de 29 de maio de 2018, do Tribunal Superior Eleitoral. O
processo é apreciado pelo Tribunal Superior Eleitoral, só se admitindo o
registro de partido que tenha caráter nacional (dentro do critério objetivo
apresentado pelo § 1º, art. 7º, da Lei dos partidos políticos), vedada a
constituição de agremiações regionais ou locais.
Só é admitido o registro do estatuto de partido político
que tenha caráter nacional, considerando-se como
tal aquele que comprove, no período de dois anos, o
apoiamento de eleitores não filiados a partido político,
correspondente a, pelo menos, 0,5% (cinco décimos
por cento) dos votos dados na última eleição geral
para a Câmara dos Deputados, não computados os
votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço,
ou mais, dos Estados, com um mínimo de 0,1% (um
décimo por cento) do eleitorado que haja votado em
cada um deles. (BRASIL, 1995 ).

A filiação, desfiliação, suspensão e cancelamento da filiação também


são disciplinadas pela Lei dos partidos políticos. O ato de filiação vincula
o cidadão à agremiação política, garantida a igualdade de direitos e
deveres entre os filiados. Além disso, devem ser respeitadas as
normas do estatuto do partido, já que, sob o fundamento da autonomia
partidária, as agremiações têm poder para definir critérios que entender
pertinentes para a admissão de filiados (GOMES, 2020).

Outro ponto digno de destaque no que concerne às agremiações


partidárias diz respeito ao seu financiamento. Como destaca José Jairo
Gomes (2020, p. 222):
Dada sua relevância para o regime democrático-
representativo e, sobretudo, a influência que exerce
nas ações governamentais, muitos entendem que o
custeio deveria ser exclusivamente público, vedando-
se o privado. Argumenta-se que neste último estaria
Uniube 189

uma das fontes da corrupção e de todas as mazelas


da nossa política e Administração Pública, porque
por essa via a elite econômico-financeira promove a
captura do Estado e impõe seus próprios interesses
particulares em detrimento dos interesses da
sociedade.

Nesse sentido, vigora no país uma estrutura mista de financiamento, em


que podem receber financiamento público e privado. De forma geral,
os recursos dos partidos advêm de algumas fontes específicas, quais
sejam:

I – fundo partidário;
II – doações privadas de pessoas físicas ou outros partidos políticos;
III – alienação (compra e venda) de bens;
IV – eventos;
V – locação de bens;
VI – sobras de campanhas eleitorais anteriores;
VII – rendimentos de aplicações;
VIII – empréstimos de instituições financeiras; e
IV – Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Importante
destacar que a prestação de contas é obrigatória para a manutenção
do registro do partido político, nos termos apresentados no art. 17, da
CRFB.

A última pauta digna de destaque no que concerne aos partidos políticos


é a da fidelidade partidária. Como apresentado anteriormente, a CRFB
disciplina que compete aos partidos disciplinarem a questão em seus
estatutos. Trata-se de questão relevante porque garante “[…] que o
mandatário popular paute sua atuação pela orientação programática
do partido pelo qual foi eleito” (GOMES, 2020, p. 230).

A fidelidade partidária é, nada menos, do que a possibilidade de o


partido aplicar punições ao mandatário que desrespeitar seus preceitos.
Essas podem ir de desligamento temporário, suspensão de direito de
190 Uniube

voto até a perda do cargo que ocupa na Casa Legislativa. Sobre o


tema, Gomes (2018 , p. 230) destaca que “É indiscutível o proveito
que resulta para a democracia, já que o debate político deve ter em
foco a realização de ideias e não de projetos pessoais ou o culto à
personalidade”.

A questão mais polêmica das punições apresentadas é, sem sombra


de dúvidas, a questão da perda do cargo por infidelidade partidária.
Essa situação acontece somente em caso de desfiliação imotivada.
O candidato que ocupa cargo eletivo só pode se desfiliar em caso
de mudança ou desvio do programa partidário, discriminação política
pessoal e uma mudança dentro da janela específica dentro do processo
eleitoral. Importante destacar que essa perda do cargo acontece
somente nos casos de eleição proporcional, não sendo possível em
eleições majoritárias, questões que serão tratadas logo a seguir.

6.4
Sistema eleitoral

Apresentadas as entidades-chave no desenvolvimento do processo


eleitoral, agora é o momento de entender como efetivamente os
candidatos são eleitos. As normas que compreendem esse processo
constituem o sistema eleitoral. Nessa toada,
sistema eleitoral é o complexo de técnicas e
procedimentos empregados na organização e
realização de eleições, ensejando a conversão de
votos em mandato. Em outras palavras, trata-se do
método que permite organizar e aferir a manifestação
de vontade dos cidadãos nas urnas, de modo a
propiciar a legítima representação do povo na gestão
do Estado. (GOMES, 2020, p. 261).

Trocando em miúdos, é o conjunto de normas que define como serão


contabilizados os votos para efetivamente transformá-los em mandato
(NICOLAU, 2012b, p. 11; GOMES, 2020). Reconhecem-se a existência de
Uniube 191

três sistemas eleitorais distintos: o majoritário, o proporcional e o misto. No


Brasil, consagram-se tão somente o majoritário e o proporcional, assim, a
explicação aqui apresentada atem-se somente a estes dois.

O sistema majoritário é o praticado nas eleições para os cargos de


Senador da República e chefe do Executivo (Presidente da República,
Governador e Prefeito), contando com uma premissa direta: o candidato
mais votado é eleito. São dois os modelos adotados: o de maioria simples
e o em dois turnos. O de maioria simples é autoexplicativo e; o modelo de
dois turnos, por sua vez, é um pouco mais complexo: para que seja eleito,
o candidato tem de contar com a maioria absoluta – mais de 50% – dos
votos válidos (não computados os votos brancos e nulos) e, caso isso
não aconteça, procede-se para uma nova eleição, levando em conta tão
somente os candidatos mais votados.

O modelo de maioria simples é o adotado nas eleições para os cargos


de Senador e Prefeito em cidades com menos de 200 mil eleitores.
Já o de dois turnos é o adotado para os cargos de Presidente da
República, Governador e Prefeito em cidades que contam mais de
200 mil habitantes.

O sistema proporcional é o adotado para a eleição das Casas Legislativas


– a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas e as Câmaras
de Vereadores. Em verdade, o sistema adotado no país é o sistema
proporcional de lista, em que
[…] a unidade fundamental é o partido político.
Nas eleições, cada partido apresenta uma lista de
candidatos. O eleitor vota em uma dessas listas –
alguns países permitem que o eleitor escolha um ou
mais nomes. As cadeiras em disputa são distribuídas
segundo determinada fórmula eleitoral, que procura
garantir que cada lista partidária receba um número
de cadeiras proporcional à sua votação [...].
(NICOLAU, 2012b, p. 47).
192 Uniube

Esse sistema foi concebido de forma a tentar refletir a diversidade de


tendências presente no meio social, tornando equânime a disputa pelo
poder e, principalmente, garantindo a representação de segmentos
sociais minoritários (GOMES, 2020). O voto, nesse sistema, tem caráter
dúplice: destina-se não só ao candidato, mas também ao partido, sendo
possível, inclusive, votar somente na agremiação – o voto de legenda.
É importante destacar que
Não retira o caráter de eleição direta a adoção do
modelo proporcional para a eleição para a Câmara
de Deputados (CF, art. 45, caput), que faz a eleição
de um parlamentar depender dos votos atribuídos a
outros colegas de partido ou à própria legenda. É que,
nesse caso, decisivo para a atribuição do mandato
é o voto concedido ao candidato ou ao partido e não
qualquer decisão a ser tomada por órgão delegado
ou intermediário. Anota Canotilho, porém, que “se a
votação por lista escolhida pelos partidos tem sido
considerada como compatível com o princípio da
imediação, já o abandono do partido na lista do qual
foi eleito pode levantar problemas se o princípio da
imediaticidade for analisado com o devido rigor”.
(BRANCO, MENDES, 2018, p. 1.151).

Para críticos desse sistema,


[…] a ênfase demasiada na ideia de que a função das
eleições é produzir uma boa representação acabaria
prejudicando a outra dimensão das eleições, que é a
da governabilidade. Por mais favorável aos pequenos
partidos, o sistema proporcional acabaria contribuindo
para aumentar a fragmentação parlamentar e,
consequentemente, dificultando a construção de
bases de apoio (no presidencialismo) ou de formação
de gabinetes (no parlamentarismo). (NICOLAU,
2012b, p. 48).

O procedimento para distribuição de cadeiras é um tanto quanto


complexo e não seria exagero dizer que a maior parte dos eleitores não
entende seu funcionamento. O primeiro passo para apurar como seriam
distribuídas as cadeiras é o cálculo do quociente eleitoral, que é o
Uniube 193

resultado da divisão do número de votos totais pelo número de cadeiras


a serem distribuídas. O segundo passo é a exclusão dos partidos cujo
número de votos não atingiu o quociente eleitoral. O terceiro passo é
a divisão do total de votos obtidos pelo partido pelo quociente eleitoral,
resultando no número de cadeiras que serão concedidas àquele partido.
Via de regra, esse cálculo ainda não supre todas as cadeiras a serem
distribuídas, assim, o último passo é a distribuição das sobras, dividindo
o número de votos totais obtidos pelo partido pelo número de cadeiras
por ele obtidas mais um; se ainda restam cadeiras a serem ocupadas,
faz-se a divisão novamente, somando mais um ao divisor, até que todas
sejam ocupadas (NICOLAU, 2012b, p. 56-58).

É importante destacar que esse é o método de distribuição brasileiro.


O sistema proporcional de listas é o adotado em mais da metade dos
países democráticos e são tantas considerações a serem levadas em
conta que não se encontram dois países que tenham o mesmo método
de eleição por esse sistema (NICOLAU, 2012b, p. 48).

Considerando o sistema empregado no Brasil, José Jairo Gomes


(2020, p. 280) traz uma série de críticas a sua estruturação. Primeiro,
à multiplicação dos partidos políticos e a já citada dificuldade de
governabilidade. Para ele:
O excesso de partidos contribui para emperrar a ação
governamental. Essa é a grande objeção que sempre
se faz, no mundo todo, ao sistema proporcional. O
excesso de partidos políticos provoca instabilidade
no poder, haja vista que fragmenta em demasia as
forças políticas, impedindo a formação de maiorias
sólidas e consistentes. Não contando com maioria
no Parlamento, o governante é impelido a realizar
inúmeros acordos – muitos deles inconfessáveis,
concluídos na calada da madrugada – para manter a
governabilidade e a estabilidade política, de maneira
a implantar as medidas e as políticas públicas
entendidas como necessárias ou adequadas ao país.
194 Uniube

Em seguida, cita a elevação dos custos de campanha, a necessidade


de o candidato contar com votos de outros candidatos para que se atinja
o quociente eleitoral e seja eleito e, por último, a pouca transparência
na destinação do voto do eleitor (GOMES, 2020). Entretanto credita
essas críticas à incompreensão da essência do sistema proporcional;
nele, como já destacado, há uma preponderância do partido, sendo
que candidatos pouco votados podem muito bem ser eleitos (GOMES,
2020). É justamente pela essência desse sistema que é possível a
perda do cargo por infidelidade partidária: a cadeira ocupada não é do
candidato, mas do partido.

6.5
Considerações finais

Como apontado no início, todos os aspectos teóricos apresentados,


muito longe de esgotar a matéria, apenas a introduzem. No mesmo
sentido, a jornada que a sociedade brasileira empreendeu até chegar
a eles é muito mais vasta do que se pode contemplar em uma única
obra, quiçá, muito mais vasta do que se pode compreender em uma
única vida. Todos os conceitos, estruturas e questões apresentadas
nos capítulos anteriores contribuíram para a estruturação do sistema
político brasileiro como é hoje. Todos os percalços e todas as benesses
que experimentamos na contemporaneidade são fruto de um passado
conturbado e cheio de meandros. Nesse sentido, esse ponto é muito
distante de ser o fim da jornada. O Brasil vive uma democracia
extremamente jovem, se comparado com muitos dos países que vivem
a mesma tradição e, sendo assim, ainda muito tem a evoluir.
Uniube 195

Resumo

Esse foi um capítulo de fôlego, breve, mas denso em conteúdo.


Primeiro, ponderou-se acerca dos principais direitos políticos, apontando
sua previsão constitucional e sua importância para o desenvolvimento
do processo democrático. Logo, deu-se início ao desenho do direito
eleitoral, ramo do direito responsável pela regência e coordenação da
vida política do país, através do estudo de seus princípios, normas
basilares que estruturam toda a estrutura dessa ciência. Lançadas as
bases, estudamos os principais atores do processo eleitoral brasileiro,
os partidos políticos, e entendemos o papel importantíssimo que
desempenham na coesão do sistema. Por último, empreendemos
jornada pelos meios complexos do sistema eleitoral adotado em
território nacional, que se revelou como múltiplo e variado, adotando
diversas especificações, de acordo com o cargo a que se pretende
competir.

Referências
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constitucional. [e-book] 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

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Pró- Reitoria de Pesquisa,
Pós Graduação e Extensão
PROPEPE

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