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ENTRE A DILAPIDAÇÃO MORAL

E A MISSÃO REDENTORISTA:
o processo de alienação no trabalho
dos professores do ensino básico brasileiro

Profª Dr' Aurea C. Costa

Introdução

No âmbito das análises da Educação capitalista, uma crítica


clássica é a de que a lógica de mercado invade, cada vez mais, a orga-
nização do trabalho na escola. E uma das consequências necessárias
Jesse processo é a alienação do trabalhador diretamente relaciona-
do à atividade-fim da escola: o professor. Entretanto, indagamo-nos:
cm se tratando de um trabalhador como o professor, cujo trabalho
t.' imaterial, é possível falar em alienação do trabalho? Em caso afir-
mativo, como se dá esse processo?
O professor é o intelectual que exerce profissionalmente o ensi-
no - atividade-fim da escola. Trata-se de trabalho de natureza ima-
\_) terial, pois o seu aspecto substantivo é o

(...) ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo sin -


gular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens (...) para produzir materialmente o homem pre-
cisa antecipar em idéias e objetivos da ação que significa que ele repre-
senta mentalmente os objetivos reais. Essa representação inclui o as-
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pecto das propriedades do mundo real (dênda), de valorização (ética) obrigado a desenvolver seu trabalho em condições mínimas. Isso
e de simbolizaçãn (arte). Tais aspectos, na medida em que são objetos fnfluencia diretamente na relação com os alunos e, por isso consiste
de preocupação explícita e direta, abrem a perspectiva de uma outra num aspecto importante da violência no trabalho que o professor
calegoria de produção que pode ser lraduzida pela rubrica "trabalho tem sofrido na conjuntura atual, exemplificado de forma comovente
não-material" Trata-se aqui da produção de idéias, conceitos, valores, no prólogo do texto de Edgar Fernandes Neto, neste mesmo livro, e
símbolos, hábitos. Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja que discutiremos a partir do conceito de alienação.
do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o con- Impõe-se ao professor que atue a partir de seu enquadramen-
junto da produção humana. Obviamente, a educação situa-se nessa to numa escola pautada pela lógica dos relações mercantis, em que
ca1egoria de trabalho nâo-materiaJ (Saviani, 2008, p. 12-13). ek enfrenta na sala de aula as consequências de políticas educa-
cionais que concorrem para a deterioração da escola pública e sua
Um dos espaços hegemônicos em que o professor exerce sua ati- privatização.
vidade profissional é a escola capitalista, que reproduz a luta entre Estabelece-se no sistema escolar a dialética da descentralização
as classes burguesa e trabalhadora pela direção da sociedade. Nessa e da centralização, segundo a qual, por um lado, se tem um Esta-
luta, por um lado. a classe burguesa busca usar a escola não só como do que descentraliza a responsabilidade sobre as tarefas de prover a
lugar de reprodução de ideologias, mas também da força de traba- educação escolar, fazendo uso de fontes privadas de financiamento
lho para atuar nos processos produtivos, por meio de uma educa- e. por outro lado, se assume uma posição centralizadora no estabele-
ção adestradora, disciplinadora, que introduz nos sujeitos o modus cimento das normas de funcionamento e avaliação dos resultados.
operandi do mundo do trabalho e, assim, participando ativamente Trata-se uma nova forma de regulação do sistema educativo, com
na "produção" da mercadoria força de trabalho. Por outro, a classe are-alocação do papel do Estado que altera as relações sod,lis no inte-
trabalhadora se apropria da escola como locus de aquisição de co- rior da instituição escolar. para a implementação de um modelo neo-
nhecimentos que são as armas de luta contra a alienação, a opressão liberal de fundonamento da escola pública, de marca privatista:
e a exploração, bem como constituem aí espaços de aprendizagem
das formas de resistência, em diferentes níveis de organização (Cf. O grande desafio de umagestclo local da educação consíste em mudar
Frigotto, 2000, p. 25 e ss.; Costa, 1994). os modos d~ pilotagem e de regulação do sistema educativo através,
O professor te m um papel estratégico nesse processo, uma vez nomeadamenle, de uma alteração do ~istema de alianças, entre os
que é o mediador entre os alunos e o conhecimento. Ele é o intelec- principais pólos de influência local na escola: o Estado. os professores
tual que deverá entregar nas mãos dos trabalhadores as armas, na e os pais dos alunos (Barroso, 2002. p. 175, grifo do autor).
forma de conhecimento, para a luta contra a opressão e a exploração.
Ao professor cabe a difícil tarefa de confrontar o senso comum dos Estudos sobre os sistemas escolares na Espanha, em Portugal e
alunos com o conhecimento sistematizado. científico, a chamada 11,1 França apontam que ocorre uma re-significação do direito à edu-
norma culta, que não é propriedade da burguesia, mas de todo o '-'aÇão em serviço educacional, nas reformas educacionais que visam
gênero humano, e por todos deve ser apropriada. Entretanto, muitos ú redistribuição de poderes e recursos do Estado, para além da libe-
são os obstáculos no cumprimento dessa tarefa histórica. ralização e privatização da escola pública (IJ, p. 177).
O Estado burguês convoca o professor. a todo o momento, a atu- Nesse quadro, Barroso (2002) propõe a hipótese de que se tem
ar irradiando ideologjas, representando o Estado opressor, sendo l·.stabelecido polarizações, em que Estado, pais e professores são ora
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associados entre si, ora jogados u ns contra os outros, de modo que A maior parte da população brasileira adulta é funciona1mente anal-
se manifestam tres formas de associações, as quais podem se apre- fabeta. Quero dizer que, se bem que sejam capazes de assinar o nome
sentar numa mesma instituição educacional simultaneamente ou se e de decifrar o letreiro do ônibus que tomam diariamente, não conse-
sucederem no tempo. gui riam ler com compreensão adequada uma página completa. ainda
A primeira é a associação de interesses entre Estado e professo- que se tratasse de assunto dentro da sua competência (Perini, 1988).
res em oposição aos interesses dos pais, que o autor chama de regu-
lamentação burocrática da escola. Nessa forma, tem-se um Estado De fato, m esmo após uma <lécadn, as palavras do autor ainda se
interventor na dinâmica da administração escolar, por meio de po- fazem presentes. Na atualidade, pelo menos 60% dos nossos alunos
líticas, assumindo a educação escolar pública como serviço estatal, 1le quarta série não identificam ideias principais de textos simples
aliado à organização dos profissionais da educação corporativista, ou não sabem interpretar um texto dissertativo e essa discussão já
a qual excluiria os pais da participação da escola. Tal associação se ganha a mídia ampla (Bencini, 2006, p. 41).
inspira no modelo organizacional burocrático, oposto ao modelo Ocorre que esse modelo é antagónico ao de gestão, necessário
centrado nas finalidades pedagógicas, estabelecendo uma tensão ,111 funcionamento da escola para a satisfação das necessidades da
entre a ''racionalidade administrativa" e a "racionalidade pedagógi- classe trabalhadora, que enfatize a dimensão pedagógica, qual seja,
ca" (Id., p. 183). n sucesso da relação entre ensino e aprendizagem, a socialização de
Entendemos que o antagonismo entre os modelos burocrático e umhecimentos na escola, sob a mediação do professor, que assume
pedagógico de organização do trabalho escolar é insolúvel, pois, no uma tarefa estratégica de produzir o nexo entre a instrução e a d i-
primeiro, tem-se como objetivo a intensificação do fluxo de alunos mensão mais ampla da educação:
pela escola, com mínimos de rcpc1ênd:1. ,·vasão e de dispêndios e
máximos de efidé:nda; no 1.t·gufülo o nu xo Jc .llunos é, necessaria- O ..certo" se torna ~verdadeiro" na cabeça dn criança. Mas a consd-
mente, condicionado pda ciualídack da ~ua ftlrm,\çáu e, nesse aspec- ência da criança não é algo "individual'' (e muito menos individua -
to, a repetência sinaliza problema~ de ordem qualitativa no proces- lizado), i: o reflexo da fração de sodedade civil da qual participa, das
so de ensino e aprendizagem, para além do problema do fluxo de relações sociais tais como elas se concentram na família, na vizinhan-
alunos no sistema escolar, que se resolve com programas visando à ça, na aldeia, etc. A consciencia individual da esmagadora maíoria
modificação do quadro estatístico. dts crianças reflete relações civis e culturais diversas e antagônicas às
Em última análise, os antagonismos entre as racionalidades bu- que são refletidas pelos programas escolares: o "certo" de uma cultura
rocrática e pedagógica na gestão da escola reproduzem o antagonis- c•volttída torna-se "verdadeiro" nos quadros de uma cultura fossilizada
mo de classes: a formação imposta dentro de um modelo burocráti- 1• anacrônica, não existe unidade mtre a escola e a vida, e, por isso,

co pela classe burguesa visa à mera certificação da força de trabalho, 11110 existe unidade entre instrução e educação. Daí porque é possível
garantida pela passagem dos alunos por um sistema. independente- dizer que, na escola, o nexo instrução-educação somente pode ser re-
mente da qualidade da aprendizagem. prtsentado pelo trabalho vivo do professor, na medida em que o mestre
Disso resulta o que hoje já se assume, mesmo nos meios gover- é consciente dos contra~tcs entre o tipo de sociedade e de cultura re-
namentais: a ocorrência do analfabeto funcional, ou seja, o indiví- presentado pelos alunos, sendo também consciente de sua tarefa, que
duo que passa pelo sistema, integra as estatísticas dos aprovados, eonsiste em acelerar e em disciplinar a formação da criança conforme
sabe ler, mas não domina conteúdos: 11 tipo superior em luta com o tipo inferior (Gramsci, 1991, p. 131).
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Durante o período de governo militar no Brasil, havia uma ten- ela ~e efetiva sob o modelo do cidadão-cliente, aquele que influen-
dência à hegemonia do modelo hurocrático, de modo que o Estado cia nas políticas educacionais a partir do consumo de um serviço
se organizava com caráter fortemente interventor na organização do educ.:acional.
trabalho escolar, inspirado nas orientações internacionais, materia- Os professores são vistos socialmente como meros funcionários
lizadas sob a forma dos acordo!> MEC/USAID. com a extensão da Ja escola, destituídos da liberdade de cátedra necessária para sua
obrigatoriedade do ensino para a intensificação do fluxo de alunos atuação como mediadores entre o conhecimento e as futuras gera-
pela escola, aumentando as possibilidades de acesso, entretanto, me- ções em formação e, por vezes, culpabilizados pelos problemas de
nosprezando a orientação para o planejamento e a implementação seu local de trabalho.
de políticas de marca pedagógica, relacionada à qualidade do ensi- Consequentemente, a assimetria na relação professor e aJuno.
no, às avaliações diagnósticas e à aprovação. decorrtmte de seu conhecimento, é subsumida em nome do demo·
Assim, o Brasil chega à década de 1980 com baixas taxas de es- cratismo, em que se afirma uma falaciosa igualdade. Ocorre que,
colarização e altas taxas de evasão e repetência, indicando que não num determinado momento específico da vida do jovem em forma-
houve sucesso nem administrativo, nem pedagógico: as taxas de es- ção, no contexto da sala de aula e em relação a um conteúdo que de
colarização eram de 73% entre crianças de 7 a 11 anos, e de 74% não domina, existe sim uma assimetria, a qual só pode ser negada
entre crianças de 11 a 14 anos. Na faixa etária entre 15 e 18 anos, cm nome do populismo. Entretanto, ela tem sido sistematicamente
a taxa de escolarização era de 74,1% e entre 19 e 24 anos, de 49% destruída no âmbito das propostas pedagógicas fundamentadas na
(Carvalho,1982, p. 33). centralidade do aluno no processo ensino.aprendizagem, de tradí·
A segunda forma de associação para gestão da escola no capita- ção escolanovista, como a pedagogia das competências, produzin-
lismo, identificada por Barroso, consiste na aliança entre o Estado do-se falsas d icotomias entre o que o aluno aprende sozinho e o que
e os pais, em polarização com us professores. Esse modelo traz de o aluno aprende pela mediação do professor, entre o ensino centrado
forma mais explícita a lógica privatista para o interior das organiza. no aluno e o ensino centrado no professor, produzindo-se hierar-
ções escolares públicas: a gestão proposta pelo Estado se estabelece (fUias entre os conhecimentos a partir da forma como são aprendi·
como forma de "democratização" da participação dos pais na gestão ,los (Duarte, 2001).
da escola e se dá de modo que os pais, ao escolherem as escolas, ope· Diante dessas constatações, questionamo-nos: a que vem a re-
ram como um conjunto de consumidores de serviços educacionais, edição do ensino centrado no aluno, em que ao professor se impõe
que deverão estimular a concorrência entre escolas com vistas a res- .1 tarefa de gerenciador da classe, de colaborador, em detrimento
ponder ao chamado direito de escolha, proporcionando a satisfação ,la sua função social predpua de ensino? Trata-se de uma faceta do
dos pais e alunos, situados como consumidores nessa relação. Nesse processo de alienação do seu trabalho, em que se lhe destituem os
caso, as liberdades de escolha e de consumo são levadas às última~ conteúdol> e o controle sobre o mesmo?
consequências e a comunidade passa a ter a ilusão de controle so- A bibliografia especializada tem apontado que, na conjuntura
bre a qualidade do ensino pelo simples exercício da escolha do que antcrnacional, a tendência que se desenha é de desvalorização do
consideram como o melhor estabelecimento de ensino, segundo cri- professor, ao mesmo tempo em que se difunde uma grande expecta-
térios subjetivos. Mas, na verdade tais escolhas se dão num rol de es- tiva depositada nele de que cumpra seu dei.tino como agente de mu-
colas regidas por uma normatizaçâo que se impõe verticalmente do Jança. Entretanto, esse "reconhecimento" social não está vinculado
Estado, produzindo uma certa padronização. Quanto à cidadania, ã valorização dos salários e da carreira. Ainda uma vez, impõe-se
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ao professor a tarefa de irradiador da ideologia da tolcráncia, num se observa é que em todas as situações colocadas, t• Estado mantém
mundo em que o problema não é a falta de tolerância, mas a ex- .i centralidadt· na normatização e na avaliação, de modo que per-
ploração do homem pelo homenn em níveis que já se apresentam manece a dialética da centralização e da descentralização na gestão
íntoleráveís: t·scolar. Nessa terceira situação, ainda uma vez, cria-se a ilusão da
gestão autônoma da escola, num contexto em que as escolas passam
Os professores têm um papel determinante na formação de atitu- a competir entre si por uma avaliação positiva elaborada pelo Esta-
des - positivas ou negativas - perante o estudo. Devem despertar a do, segundo seus critérios, bem como pela captação de alunos.
curiosidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e O autor pondera que a aliança entre Estados e professores de-
criar as condições necessárias para o sucesso da educação formal e da veria se dar na perspectiva da preservação da eficácia pedagógica
educação permanente. A importância do papel do professor enquanto tia escola e da preservação do seu caráter público. O Estado deve
agente de mudança.favorecendo a compreensão mútua e a tolerância, resgatar o papel de garantidor da educação como direito, cultivar
nunca foi tâo patente ramo l1oje em dia. Este papel será ainda mais .t participação dos cidadãos nos serviços públicos, como condição
decisivo no século XXI. Os nacionalismos mesquinhos deverão dar necessária do caráter público, não na condição de súditos ou con-
lugar ao universalismo, os preconceitos étnicos e culturais, à tolerân- sumidores, mas como atores sociais efetivos. Quanto ao rprotessor, a
cia (Delors, 2006, p. 153, grifos n1ossos). (ategoria deve assumir um papel militante pela causa da educação,
participando da organização do próprio trabalho (ld., p. 193-194).
Finalmente, Barroso aponta como a terceira forma de associa- Embora se apresentem ponto!! de rctll'~ao i mport..rnk~, (omo a
ção aquela entre os professores e os pais de alunos, em oposição ao ,1utodeterminação da categoria docente na organização do seu tra-
Estado com vistas a um esforço de gestão democrática da escola. A halho na escola, essa análise não ultrapassa a lógica da democracia
comunidade é eleita como a protagonista na gestão escolar, partin- burguesa, posto que a perspectiva é de resgate do Estado como árbi-
do-se do principio de que ela deve se dar no âmbito da chamada so- tro dos interesses da sociedade.
ciedade civil, os pais e professores, dentro da lógica da minimização Entendemos que não basta os professores assumirem a militância
da ação estatal, burocratizada e ineficiente: da causa da educação, o Estado garantir os direitos, e os pais de alunos
terem participação efetiva na escola, se não houver uma mudança na
Ao contrário do que acontece ria situação anterior (..regulação pelo mstitucionalidade capitalista, ou seja, na forma como as práticas so-
mercado") em que o Estado, através de pollticas neoliberais, tenta pro- ciais se dão, em que cidadão é um conceito fetichizado (Dias, 1999).
mover a separação entre "fomec:edores" (professores) e "consumido-
res" (pais dos alunos). com um reforço claro do poder desses últimos Na escola atual, graças à crise profunda da tradição cultural e da concep-
sobre os primeiros ("o consumidor tem sempre razão"), na uregulaç.ão ção da vida e do homem, verifica-se um processo de progressiva dege-
comunitária" professores e pais devem cooperar enquanto uco-educa- nerescência: as escolas do tipo profissional, isto é, preocupadas em satis-
dores", "parceiros" e "cidadãos" (Barroso, 2002, P. 187). fazer interesses práticos imediatos, tomam a frente da escola formativa,
imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em que
Nessa situação permanece o caráter neoliberal, em que o Estado este novo tipo de escola aparece e é louvada como democrátka, quando
é considerado como m ínimo, ineficaz, induzindo os cidadãos a as- na reaJidade, não só é destinada a perpetuar as diferenças sociais, como
sumirem a gestão da escola, numa perspectiva "comunitária". O que ainda a crístalizâ-las em formas chinesas (Gramsci, 1991, p. 136).
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O paradoxo da cstratifkação da escola versus democratização é com as necessidades do mundo do trabalho (Rosa, 1998). Para a
apenas aparente. Na essência, Hata,-se de verdadeira dissimulação., elaboração dessa tarefa, o perfil de professor traçado no âmbito do
pois "a multiplicação de tipos de escola profissional, portanto, tende capital náo é o do intelectual. mas o do reprodutor de informações
a eternizar as diferenças tradicionais; mas dado que ela tende, nestas e ideologias, pois,
diterenças, a criar estratificações internas. faz nascer a impressão de
possuir uma tendência democrática" (Id, p. 137). Na realidade, um professor medíocre pode conseguir que os alunos se
Para além dos muros da escola, r.etir.am•se os direitos da classe tornem mais instruíd,,s. mas não conseguirá que sejam mais cultos;
trabalhadora, a todo o momento, destitui-se essa classe da partici- ele desenvolverá - com escrúpulo e com consciência burocrática - a
pação socia'I efetiva, depois, impõe-se uma cidadania foticlüzada, parte mecânica da escola, e o aluno, se for um cérebro ativo, organiza-
sob forma de tralbalho voluntário, filantropia, relações mercantis na rá por sua conta - e com ajuda de seu ambiente social - a "bagagem"
esoola, transformação de dfreitos em serviços, clientelismo, como acumulada. Com os novos programas, que coincidem com uma queda
se o indivíduo, sozinho, aderíndo a ,u m "p.r ojeto de boa vontade", geral do nível do corpo docente, simplesmente não exístirá mais "baga·
adquir,isse poderes mágicos de transformar a sociedade. gem" a organizar (Gramsci, 1991, p. 132, grifos nossos).
A classe trabalhadora necessita de urna escola preparada para o
at.endime,n to de sua'S necessidades de formação integral, não subor- Essas palavras poderiam ter sido escritas por qualquer estudioso
dinada .aos interesses imediiatrstas e utilitaristas do capital, de for- critico da pedagogia das competências nos dias de hoje. Isso signi-
mação de força de t rabalho adequad~ às novas dt'mandas -ímpositas fica que o esvaziamento dos conhecimentos da categoria docente -
pela nova ,o ,r,gauização lio ,trahaJh11. P11rt.mtn, ,1 t:Jucaçào é, de fato, como ocorre com toda classe trab.t1hadnr,1 -, desde a :ma formaçi10
,u m campo de disputa hegemônka, em lJUC se verifica uma luta da escolar, é elemento estrutural da alienação do trabalho, tãn esscn
classe burguesa pela apropria~ão da i:scola, como aparelho para a eia! ao modo de produção capitalista conforme a caracterização qut:
produção de consensos e de distribuição dos indivíduos na divisão já era realizada pelo pensador italiano, no período de 1929 a l 935,
social do trabalho. quando sistematizou, nos cadernos do cárcere, sua crítica da educa-
ção capitalista.
O duplo ,caráter da a1ie.nação do professor: o Contudo, Gramsci alue a possibilidade para refletirmos sobre
estranhame11to na re:tação ~om o emsirmo e a alienação de si .1 existêncía de uma contradição nessa tarefa atribuída ao profes-
-;or. Ao mesmo tempo em que lhe é imposto o ensino da disciplina
A disputa pela hegemonia na institu,i ção escolar se verifica na do trabalho. não pode deixar de possibilitar aos alunos com "cére-
estruturação do currículo, na organização .do trabalho escolar, nas bros ativos" a apropriação autônoma dos conhecimentos, pois não
práticas pedagógicas e, como não poderia ser díferente, nas orien- é possível controlar a apreensão do conhecimento pelos alunos,
tações 1ntemadonais para a formação e atuação dos professores. mesmo em se tratando de um professor medíocre. Imaginemos,
O professor é o profissional a quem a esco'l a capi.talista ,i mpõe a t·11tào, quão revolucionário será o papel do professor quanto me-
tarefa estratégica de preparar a elas.se trabalhadora para atuar na 1hor for a sua formação, com todo o instrumental necessário em
produção, disciplinando-a desde os a.nos i,nkiais da vida para su- lermos de conteúdos específicos de sua área de conhecimento e de
portar o uso de seu corpo e sua mente por outrem, praticar a obe- e.on.hecimentos pedagógicos para promover a formação integral da
díênda e desenvolver um repertório comportamental compatível dasse trabalhadora.
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O professor é um tipo de trabalhador que, ao produzir seu "pro- O objeto em MW estado natural é resultante da ação de forças flsico-
duto", o ensino, por meio das atividades de apropriação, elaboração, químicas e, dependendo do objeto, de forças biológicas. Como instru-
sistematização e socialização de conhecimentos, imediatamente re- mento ele passará a ser resultante também da vontade humana. O ser
aliza a sua objetivação, com possibilidades de novas apropriações, o humano cria uma nova função para aquele objeto (tal criação re111iza·
que é uma característica humana; e a natureza imaterial desse tra- se inicialmente de forma necessariamente intencional. sendo, muita~
balho torna a análise do processo de alienação tão complexa quanto vezes, até totalmente incidental) e busca, pela sua atividade. fazer com
daquele diretamente ligado à produção de bens materiais. que o objeto assuma feições e características desejadas. Ou seja. existe
A alienação compreende diversos aspectos: o aspecto da pro- aí um processo no qual o objeto, ao ser transformado em instrumento.
priedade privada, em que o trabalhador produz, mas é privado da passa a ser uma objetivação (como produto da atividade objetivadora),
posse e do direito do usufruto dos produtos; a separação entre saber pois o ser humano objetivou-se nele, transformou-o em objeto huma-
pensar e saber fazer, em que, quanto mais parcelar e específico é o no, portador de atividade humana (Duarte, 2003, p. 27).
trabalho, mais ignorante é o trabalhador sobre a atividade que ele
exerce durante a maior parte do tempo de sua vigília, e mais des- No processo de produção capitalista de bens materiais, a obje-
cartável; a contradição em que quanto mais o trabalhador traba- tivação ocorre no momento em que a força de trabalho é incorpo·
lha, menos vale o seu trabalho e mais se empobrece; a conversão do rada ao objeto - fixando-se no produto - na atividade laboral. A
trabalho humano numa simples mercadoria, desqualificando sua apropriação se dá de forma distorcida, como algo estranho, que não
característica humana e afirmando-o como coisa. Tudo isso se fun- pertence ao seu produtor. Sob a vigência do contrato de trabalho as-
damenta num fato: em relações de produção capitalistas, o traba- salariado no capitalismo, o trabalhador vende a mercadoria força de
lhador se relaciona com o que produz como algo que lhe é estranho, trabalho: seu tempo, sua força física e mental e seu comprometimen-
externo, embora seja fruto Jo seu esforço físico e intelectual, ocupe to moral, durante uma jornada semanal, em troca da mercadoria di-
a maior parte do seu tempo e em Jetrimento de outras esferas que nheiro, de modo que, nesse período de sua vida cotidiana, tudo que
lhe são vitaís, como o comer, dormir, relacionar-se com outros hu- ele fizer não lhe pertence. Em tese, sequer o controle sobre o uso do
manos, desenvolver suas potencialidades humanas: seu tempo e de suas decisões lhe pertence. embora, na realidade, isso
seja alvo de disputa entre o capitalista e o trabalhador (Rosa, 1998).
A alienação do trabalhador no objeto revela-se assjm nas leis da eco- A atividade do professor - a ação pedagógica - é um trabalho
nomia política: quanto mais o trabalhador produz, menos tem de
de elaboração e sistematização do saber, adaptando-o aos n íveis de
consumir; quanto mais valores cria, mais em valo r e mais despre-
compreensão das crianças, adolescentes e adultos, segundo seu nível
zível se torna; quanto mais refinado seu produto, mais desumano o
trabalhador; qu.into mais poderoso o trabalho, mais impotente se
de desenvolvimento biopsicossocial e não pode ser expropriado do
torna o trabalhador; quanto mais magn ífico e pleno de inteligência o professor pelo capital - ou seja, o mantenedor da escola privada, ou
trabalho, mais o trabalhador diminuí em intdig~ncia e se torna mais do Estado, operando segundo o modelo das empresas capitalistas.
escravo da natureza (Marx, 2001, p 113). A objetivação ocorre quando o professor prepara as aulas e en-
sina, proporcionando o confronto entre o senso comum do aluno e
A atividade humana se caracteriza por um processo de objetiva- u conhecimento sistematizado cientificamente. Esse conhecimento
ção e apropriação, que consiste em dar novo sentido aos objetos. em pode sempre ser reelaborado, sendo objeto de compreensões cada
satisfação a novas necessidades, produzindo a cultura: vez mais profundas e sob novas dimensões.
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O que o professor adquire no processo de preparação de aulas, ma d~sse $Oda! que,, uma vez assujeitados, não se identificam mais
ensino e outras atividades relacionadas à vida escolar só se lhe apre- como trabalhadores de uma mesma classe social, a proletária.
sentará como algo estranho na medida em que ele for forjado pelas Nas reações entre professor e aluno marcadas pela alienação,
circunstâncias do seu próprio trabalho a se tornar um mero repeti- ocorre o ocultamento de que o professor é o trabalhador que fornece
dor de informações e de hábitos decorrentes de uma formação prag- ao.s traballhadores as armas para a luta pela sua emancipação da re-
mática e, em trajetória profissional, subordinar-se aos conteúdos lação alienada com o trabalho, <-1ue lhes nega como seres humanos,
dos livros didáticos, das diretrizes curriculares mecanicamente. e de ()l!lC os a,l unos são os filho~ da classe trabalhadora, sujeitos de
Assim, o processo de alienação do trabalho do professor, em que uma revolução social q,ue não deverá se dar a partir da "conscienti-
se constrói uma relação estranhada entre ele e os conhecimentos, zação'' das contradições sociajs na escola, mas a partir da experiên-
só pode se efetivar pela formação esvazíada e pela destítuíção da cia teóríca e prática das consequências nefastas da contradição entre
prerrogativa do professor de seleção e organização dos conteúdos e o capital e o trabalho: muitos trabalham, mas poucos se apropriam
da avaliação do rendimento escolar dos alunos, retirando o controle pr,i vadamente de seus resultados.
sobre seu trabalho, ao lhe retirarem a autonomia. A materialidade dessa violência está no fato de que o conjunto
Essa alienação produz um efeito até mesmo nas relações entre dos trabalhadm::es da produção, por meio <la parcelização das tare-
professores e alunos: os professores passam a não reconhecer os alu- fas, vai perdendo os saberes sobre ,o contetÍldo de seu tnibalho, bem
nos como uma das ..matérias-primas" de seu trabalho, ao lado do como o controle sobre o mesmo, uma vez que, após algumas gera-
conhecimento, e os alunos passam a não reconhecer os professores ções, categorias profissionais de difeientes ramos da produção, que
como os mediadores entre eles e os conhecimentos, resultando num dominavam todo o processo de produção, passam a realizar apenas
falso antagonismo, llUe inlcre:.-isa ao fü1taJo burguês, ao converter o tarefas -cada vez mais parciais, restritas, simplificadas. Assim, de ge-
professor em seu reprcs~ntante direto na sala de aula, reproduzindo ração em geração, os trabalhadores vão p.e rdendo ,paulatinamente
o monopólio da violência do Estado mls relações entre professor e os saberes e o controle sobre o processo de produção e se coisificam,
aluno. tornando-se meros portadores da mercadoria força de trabalho, des·
Dá-se uma relação professores/alunos distorcida em que os se- tituídos do .c onforto, da !beleza e da dignidade que seu trabalho pro-
gundos passam a imputar aos professores o tratamento que deveriam porciona à outra classe socíal:
dar aos reais representantes da violência do Estado burguês, que os
tem oprimido durante toda a sua trajetória escolar. E os professores É evidente, o .trabalho pmduz coisas boa& para os ricos, mas produz
passam a ver os alunos como aqueles que materializam a falta de a ,e.scassez para o trabalhador. Prncluz paiJác,ios, ma1, ,choupanas ipa,ra
respeito e o desprestígio da categoria profissional na sociedade, nas o traba1Jihador. Pmduz beleza, mas deformidade para o trabalhador.
manifestações de falta de respeito, e, até mesmo, a violência. Substih1ii o trabalho por máquinas, mas encaminha uma parte dos
O primeiro aspecto da alienação é aquele que se refere à relação trabalhadores para um trabalho cruel e transforma os outros em má-
do trabalhador com os produtos do trabalho. O segundo situa-se no quinas. Produz inteligência, mas também produz estupidez e a creti-
processo de produção, em que o trabalhador se auto-aliena. Enten- nice ipara os trabalhadores {Marx, 2001, p. 113).
demos que esse aspecto é identificado nessa forma estranhada da
relação do professor com os alunos e deles com o professor, durante Uma vez coisificados, tomam-se peças facilmente substituí-
a atividade de ensino. Em última análise. trata-se de sujeitos da mes- veis. Se, por um lado, somente ítrnbafüo humano produz riqueza,
74 A proletanzação dm professores Entre a dilapidaçào moral e a missão reden torista 75

por outro, os trabalhadores <.:ada vez mais são reduzidos a objetos A frw,traçJo que tal situação desencadeia em ambas as partes
descartáveis. constitui-se uma das font es dos conflitos entre professores e alunos.
E o protessor estaria imune a esse processo? Não. No processo de alienação dos trabalhadores diretamente ligados
No capitalismo, a alienação alcança todas as categorias de toda â produ~ão de bens materiais, a destituição do produto do trabalho
a classe trabalhadora, pois é condição sine ,7ua nvn para a amplia- e do co,1/wcimento de seu~ conteúdos se Já em dois níveis: no ime-
ção da exploração da mais-valia, sem a qual n ão ocorre produção de diato, o trabalhador jamais tem a posse do produto do seu trabalho;
riqueza. no mediato, ele vai perdendo os conhecimentos sobre o processo de
Se fizermos uma comparação, constataremos que a alienação do produção daquele produto, gerações após gerações de trabalhadores,
produto e do processo de trabalho ocorre simultaneamente no tra- chegando à situação de contingentes de trabalhadores produzirem,
balho do professor, pois ainda durante sua formação ele é destituído por exemplo, peças cujas utilidades desconhecem.
dos conhecimentos sobre o processo de trabalho - os conhecimen- No professor esses dois aspectos da alienação ocorrem simul-
tos pedagógicos - e dos conteúdos do trabalho - os conhecimentos taneamente, pois ele, ainda durante sua formação, sofre o esva-
específicos de cada área de conhecimento. ziamento dos conhecimentos sobre o processo do trabalho - os
A forma privilegiada de se efetivar a alienação do professor é ~nhecimentos pedagógicos - e dos conteúdos do trabalho - os co-
oferecer uma formação esvaziada do conteúdo do seu trabalho - o tihecimentos específicos.
saber - desde a sua formação inicial pois, dessa maneira, se interdi- Enfim, todas as características do trabalho aJknaJo c~táo pre-
ta o desenvolvimento de um processo de objetivação e apropriação sentes no exercício da docência, senão vejamos.
não-alienada. Ao mesmo tempo em que se esvazia os conteúdos do A primeira é a exterioridade - o professor não pode ensinar o
seu trabalho na sala de aula, reduz-se os conh~cimentos sobre o seu que quiser, como quiser. na ordem que achar a mais indicada para
processo de trabalho, os ,onhecimentos pedagógicos. que lhe possi- cada nível e modalidade de ensino, aplicando a avaliação do rendi-
bilitam dirigir a relação de ensino-aprendizagem. mento dos alunos da maneira que achar mais conveniente segundo
Cada vez mais, o professor tem uma formação pedagógica em ~eus conhecimentos técnicos, mas ensinar de acordo com imposi-
que o pragmatismo prevalece sobre os estudos teóricos da relação ções de políticas públicas para a educação que contrariam a própria
entre o ensino e a aprendizagem, seus fundamentos gnosiológicos natureza da atividade de ensino, qual seja. proporcionar o desenvol-
e psicológicos, o sistema educacional e a relação entre o Estado e a vimento humano das novas gerações .
escola, e outros temas da Educação (Costa, 2004). Não defendemos a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender
Um a das consequências mais perversas disso é que os alunos, abstratamente, pois temos consciência de que se trata de princípios
que vão à escola com a expectativa de aprender, encontram pro- liberais para a educação que se prestam à justicativa para o finan-
fessores em luta contra os empecilhos ao exercício do magistério. damento público da educação privada. Entretanto, reivindicamos a
d esde a formação inicial cada vez mais aligeriada, conforme discu- liberdade de cátedra e a autonomia para o professor, circunscritas a
tiremos, até a falta de condições para se aperfeiçoar, de tempo para um projeto de educação escolar que se paute pela racionalidade pe-
estudar e preparar aulas, a extenuante jornada de 40 horas, sendo dagógica, materializada num sistema único de educação escolar, um
de 20% a 33% a percentagem de horas-atividade a serem cumpri- programa de educação unitária, que supere a primeira grande con-
das no domicílio do professores e na escola, fora da sala d e aula tradição d a escola capitalista: a dicotomia entre a formação geral,
(Cf. Brasil, 1985). enciclopédica para os futuros governantes, e a educação rebaixada,
76 A proletanzação dos professores Entre a d1lapidação moral e a missão redentorista 77
1

imediatamente interessseira e utilitarista que se presta à inserção dos Embora experimente a deterioração de sua saúde, a negação da
jovens da classe trabalhadora no mundo do trabalho tão logo consti- natureza formativa da educação presente todos os dias nas ingerên-
tuam forças físicas mínimas para tal (Cf. Gramsci, 1991) - no Brasi l. cias das tnantcnedoras e do Estado na !>Ua atividade laboral, o pro-
já aos 14 anos de idade, sob a forma do trabalhador-aprendiz. fessor nâ,o pode se furtar ao trabalho como meio de subsistência,
A segunda característica é imposição. Hoje, o trabalho Jo pro- devido à sua dependência total da vida urbana e do consumo que
fessor é um sacrifício. Cada vez mais ele se sujeita para obter os ela impõ,e, assim como ocorre com todas as outras categorias do
proventos necessários à satisfação das suas necessidades imediatas. proletariado.
Como pode haver fruição, satisfação, num trabalho em que o pro- A ali1enação no processo de formação de professores pode ser
fessor deve (orrer de escola em escola para cumprir sua jornada, observada na história da educação brasileira em diversos momen-
submeter-se aos maus tratos dos alunos e às legislações abusivas, que tos, os quais pontuaremos.
retiram seus direitos, nas escolas públicas; trabalhar sem condições Nossa hipótese é de que o professor sofre um processo de alie-
mínimas necessárias, assumir tarefas extras, não-relacionadas ao nação desde a sua formação, que permanece durante toda a sua vida
processo de ensino, exercer o magistério em condições de deteriora- profissional. Compreendemos que as deficiências de formação pro-
ção da sua saúde física e mental? duzidas no professor não explicam per si o atual cst ..ígio de orgnni
O terceiro aspecto é o próprio estranhamento, o fato de o produ- zaçào da ,categoria, posto que as condições cnncrct as de.· 1rahn lho ~.io
to de seu trabalho não lhe pertencer, especialmente nas situações em empecilhos tão ou mais importantes do t}llL' a falta <il- form.ii,:,10 para
que o professor leciona em instituições privadas de ensino. Ele ensi- n engajamento da categoria nas lutas. Seríamos idealistas se empre-
na, mas os lucros decorrentes dessa atividade, os ganhos, pertencem endêssemos uma defesa de que a elevação nos níveis de formação
ao mantenedor. Num contexto de franca privatização da educação dos professores é fator determinante para a sua qualificação técnica
escolar, delineia-se uma situação em que essa tendência deverá se e no engaijamento nas lutas em defesa da educação pública, gratuita,
tornar preponderante. Entretanto, esse aspecto não afeta o professor obrigatória, laica, universal e de qualidade.
como afeta o trabalhador produtor de bens materiais, uma vez que Entretanto, faz-se necessário analisar o processo de alienação
conhecimento que o professor organiza e elabora com fins de ensino desde a formação dos professores no Brasil. que guarda a mesma
ninguém pode lhe roubar. perversidade e o mesmo cinismo intrínseco ao discurso ardiloso da
O quarto aspecto é a auto-alienação, a desumanização. Esse é o empregabilidade, no mundo da produção. O capital estabelece um
mais violento de todos os aspectos, pois provoca no trabalhador um perfil ele trabalhador, o qual muda a todo o momento, conforme as
retrocesso para uma condição inferior à do animal. O animal, diante suas demandas do capital, então o responsabiliza por não possuir
do perigo da desintegração física, faz uso de suas faculdades instin- esse p erfil!.
tivas e empreende ações de proteção. Os seres humanos submetidos No c aso do professor, o perfil exigido no âmbito interna-
à alienação, mesmo vivendo o sofrimento no trabalho, o desgaste doml l é aquele prescrito, por exemplo, desde 1993, no relatório
físico e mental, a dilapidação moral, ainda assim, permanecem em Jaques Delors, bem como em outros documentos de agências
relações de trabalho destrutivas até esgotarem os limites de suas ca- internacionais:
pacidades ou até serem descartados pelo capítal. Nesse momento,
em geral, as consequêncías das violências vividas no trabalho já são Tendo assim perdido, em grande parte, a preemínéncia que tinham
irreversíveis. na educação, professores e escola encontram-se confrontados com no-
78 A proletarização dos professores 'Entre a d1lap1dação moral e a missão redentorista 79

vas tareias: fazer da es~ola um lugar mais atraente para os alunos e oria/práHca por me,io da formação pragmática; ênfase na formação
fornecer-lhes as chaves de uma compreensão verdadeira da sociedade em serviço, em detrimento da inicial; alijamento da participação do
da informação. Os problemas da sociedade envolvente, por outro lado, professor nas decisões sobre as políticas educacionais. O professor é
não podem mais ser deixados à porta da escola: pobreza, fome, vio- confrang,ido entre a formação esva:áada de conteúdos e uma atua·
lência, droga entram wm os alunos nos estabelecimentos de ensino, ção profissfomaJ ~m condições limítrofes de trabalho, por ,um lado,
quando até há pouco tempo ainda ficavam de fora com as crianças não e, por outro , a expectatíva da sociedade, d:e que ek protagonize uma
escolarizadas. Espera-se que os professores sejam capazes, não só de verd.uileir.:i revolução cultural q,ue deverá, necessariamente, levar ao
enfrentar estes problemas e esclarecer os alunos sobre um conjunto de desenvolvimento econômico., a partir da elevação do nível da for-
questões sociais desde o desenvolvimento da tolerância ao controle da mação dos alunos, como num passe de mágica (Ludke, Moreira,
natalidade, mas também obtenham sucesso em áreas que os pais. íns· Cunha,, 1999, p. 282).
tituições religiosas e poderes públicos falhamm. muitas veus (Delors,
2006, p. 154, grifos nossos). Os indido.s de ,alienação do trabalho 1Da ~onstitui~ão
da cate:goria docent,e na educação básica brasilleir:a 1
A princípio, pode causar assombro a convocação para que o pro-
fessor assuma responsabilidades dos pais, pastores, padres, gover- No Brasil, a formação de professores tem sido tema de discussão
nantes, mas tal é a realidade. desde o alvorecer do século XIX, no período imperial sob a vigência
Enfim, chamamos a atenção para o fato de que o próprio siste- de D. Pedro J, no Pr,í me,i ro Reinado. A primeira escola Normal para
ma capitalista de produção empreende todo um esforço de produção a formação de professoras das primeiras letras foi fundada em 1835,
da alienação no trabalhador, notadamente, o professor, para, então. já no segundo reinado, sob vigência de D. Pedro II. na província do
culpabilizá-lo por problemas que não decorrem do seu nível de qua- Rio de Janeiro. Entretanto, até 1870, a história da formação de pro-
lificação, mas do fato de o governo brasileiro assumir acriticamente fessores no Brasi~caraeiterizou-se pelo elitismo: o atendimento a um
as diretrizes das agências internacionais para estabelecimento de número restrito de norma'Ji.stas e a du,r ação etemera dos estabeleci-
políticas educacionais. mentos de ensino (Tanuri, 2000, p. 62-66).
Entretanto, a história da educação brasileira nos mostra que, Na constituição do professorado brasileiro como categoria pro-
desde sempre, o direito a uma educação escolar, cujo exercício da fissional, um marco é o ano de 1827, ,d evido ao fato de ser o momen-
docência se desse por professores habilitados, com formação ade- to da outorga da Lei Geral de Ensino, a qual é a pr,i meira intervenção
quada, sempre foi uma luta entre os setores organizados da classe :-.istemátka do lmpér,i o para a implementação de uma política de
trabalhadora - defensores da educação de qualidade - e o Estado Estado no ,c ampo da formação de professores (Villela, 2003).
burguês. Ainda hoje permanece a permissividade para que docen- Até então, o magistério era exercido por mestres-escoia, os quais
tes com formação inicial rebaixada e mesmo professores leigos rram professores leigos, que ensinavam nas casas de familias de a,ris-
exerçam a profissão, ao lado de uma parca política de carreira e locrJtas aulas avulsas de díiererntes disciplinas. O Ato Adicional de
de salários. 1834 outorgou às províncias a responsabilidade sobre a formação de
Além disso, na conjuntura atual, as políticas alienadoras do tra-
1 Esse subitem foi desenvolvido a partir do artigo "Quatrn questões sobre a n<•·
balho do professor têm se estabelecido, cada vez mais, no Brasil e çAo de competências na formação de profossores: o caso brasileiro". Costa, 200,t,
no mundo, através de: controle externo do trabalho; separação te- 1,. 115. t or,.
80 A pro!etarizaçáo dos professores Entre a dilapidação moral e a missão redentorista 81

professores e, a partir desse momento, estabeleceram-se as escolas primeiras associações de professores. A efetiva sindicalização dos
normais para a formação de professores primários. Conforme Vil- professores, que se constitui na etapa superior da constituição da
leia (2003), os conteúdos dessa formação se organizavam segundo categoria docente, é recente na H istória da Educação brasileira. A
dois eixos: a promoção da ideologia do reconhecimento da rcpre- emergência de uma associação de natureza corporativa se realiza so-
sentat ividade da Coroa como a "vontade geral" e a instrução como mente na década de 1930, com a criação do Centro do Professorado
arma contra a criminalidade. Tal formação visava à preparação dos Paulista (Villela, 2003).
professores para difundir a ideologia da Coroa como a mais legítima Havia uma correspondência direta entre a qualificação e os
instância representativa da sociedade, e a escola tinha a dupla fun - critérios de seleção de professores, secundarizando o domínio de
ção: profilaxia da criminalidade e redentora da delinquência: "Foi conteúdos em favor da idade, da nacionalidade e da moral. docu-
nesse sentido, da busca do consenso no plano ideológico, que valo- mentada por meio de um atestado de conduta emitido pelo Juiz
rizavam a instrução, concebida como um espaço importante para a Je Paz. Quanto à exigência de um perfil, naquele momento. dizia
difusão de "ordem" e "civilização" que regiam o ideal conservador" respeito antes aos atributos do professor do que ao seu nível de
(Villela., 2003, p. 105). domínio dos conhecimentos.
Tratava-se do assujeitamento dos professores, na medida em Procedeu-se, entretanto, a uma mudança de conjuntura que
que se lhes impunha, desde a sua formação, uma futura atuação culminou na proclamação da Repúblíca. Após uma década da ou-
como instrumentos da administração da questão social 2 naquele torga do Ato Adicional de 1834, realizava-se unrn <.Hst:ussào i.obre
contexto. Na década de 1830, a formação do professor já se dava a inclusão de novos conteúdos de formação geral nos currículos de
de forma esvaziada, de modo ao Estado garantir o controle sobre formação de professores, bem como a disciplina Didática (Idem).
o seu trabalho: Durante a Primeira República, cuja constituição data de l89l,
houve uma redistribuição de deveres referentes à educação entre os
Comparando-se os currículos <la escola normal e os das escolas pri · três poderes, na qual coube à União a competência de legislar sobre
márias observa-se que eles quase não diferiam, a não ser pela parte o ensino superior, com exclusividade; quanto ao ensino secundário,
metodológica, já que os futuro:) mestres deveriam dominar, teórica e a responsabilidade era compartilhada entre estados, Distrito Fede-
praticamente, o método lancasteriano. Isso indica que inexistia uma in- ral e União; a instrução primária e profissional ficou a cargo dos
tenção de oferecer ao futuro mestre da escola primária uma formação estados e municípios.
mais aprofundada em termos de conhecimentos laicos, ao passo que a Como a União não assumisse a responsabilidade de participar
formação moral e religiosa era muito enfatizada (Villela, 2003, p. 107). e financiar um sistema de formação de professores, nesse perí-
odo, tal tarefa foi assumida pelos estados. São Paulo tornava-se
O Estado, ao mesmo tempo em que instituía as primeiras polí- referência para os outros estados, no que concerne às políticas de
ticas de formação de professores, também estabelecía as de profis- formação de professores.
sionalização, realizando a seleção por concursos e a inserção des- Os currículos referentes à formação nos chamados cursos nor-
e
tes como funcionários do Estado. nesse momento que surgem as mais ganhavam mais disciplinas cientificas e traziam discussões
lemáticas educacionais, sob a influência das teorias de Pestalozzi.
2 Utilizamos o conceito questão social com o significado de problema social que Durante os primeiros anos da história da formação de professores
se torna alvo de ações do Estado (Castel, 1995). no Brasil, evidenciava-se
82 A proletarização dos professores Entre a dilapidação moral e a missão redentorista 83

1••. ) a tendência de progressiva elevação do nível do curso normat den- nimalísta, ao estabelecer como requisito <JUe esses profissionais te-
tro da estrutura vertical do sistema de ensíno. Dentro dessa tendênda nham uma "preparação conveniente" em "cursos apropriados", mas
situam-se, além da unificação, o aumento do número de anos de for- não estabelece qual seria a titulação do professor. Por outro lado,
mação, com a criação dos cursos complementares como in.termcdi- a lei assegura que a formação continuada seja provida pelo Estado
árit)S entre o primário e o normal, em 19)7 com dois anos, elevados (Brasil, 1942, 1943, 1946, l946A).
para três em 1920 Hanuri, 2000, p. 69). O não estabelecimento do nível de formação do professor, téc-
nico ou superior, para cada nível e modalidade do ensino abriu
Após a primeira Grande Guerra, os, cursos normais passaram precedente na lei para a permanência da figura do professor leigo.
a ser concebidos em dois ciclos: um de formação geral, de mar- Em 1964, o Censo Escolar revelou que dos 289.865 professores em
ca enddopédica 3 , e, outro dedicado, à formação profissional, que exerdcio, apenas 56% possuíam formação profissional e dos 44% de
ad()tava os princípios do mov,imenlo da Escola No,va. A partir de professores leigos, 71,60% tinham frequentado, no máximo, apenas
1935, as escolas de professores foram incorporadas por Unlvers~- as primeiras 4 séries iniciais da formação escolar. (Brasil, 1967, apud
dades, partkularmente em São Paulo e no Distrito Federat sob o Tanuri, 2000, p. 77).
nome de Faculdades cfe Educação. Três anos, mais ta rde, fundou- A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
se o Instituto nacional de Estudos, Pedagógicos, para atender às 4.024/61, estabeleceu um currículo mínimo para a formação em
necessidades de formação de professores. Em 1939, criou-se na cursos de licenciatura, de modo a instituir um grupo de disciplinas
Universidade do Brasi,l a Faculdade Nacional de Filosofia, com o obrigatórias para todos os licenciandos - o chamado tronco comum
objetivo de formar bacharéis para atuarem na educação e licen- (Souza Neto, 1999, p. 62).
ciados para os cursos normais. Asliim surgiu o chamado, "esque- Em 1968 foi realizada a reforma universitária por meio d,1 Lei
ma 3+1", ou seja, três anos Je formação específica e um ano de 5.540/68, que estabeleceu: 1) os cursos de licenciatura curta, de 3
formação pedagógica (Idem, p. 74). Esse esquema foi adotado, até anos, que conferiam habilitações para o exercício do magistério até
a recente reforma dos cursos de formação de professores de edu- a 6° série do ensino fundamental; 2) a licenciatura plena, de 4 anos,
cação básica, e.m nível superior, para a licenciatura na modalidade que conferia habilitação para o magistério no ginásio (Sª à 8ª) e no
graduação plena. colegial (l• a 3°), a contar, nesse momento, com o estabelecimento
O ensino normal foi regulamentado pda primeira vez durante dos currículos mínimos para a formação pedagógica, que consis-
a ditadura do presidente Getúlio Vargas, em ll937, mas somente em tiam nas disciplinas Psicologia da Educação, Didática, Estrutura e
1946 foi promulgada a Lei Orgânica do Ensino Normal. Funcionamento do Ensino do 2• grau, Prática de Ensino e Estágio
As leis orgânicas do ensino primário, secundário e profissional Supervisionado, a compor, no mínimo, 1/8 da carga horária do cur-
nas diferentes, áreas estabeleceram oos respectivos te.xtos o tipo de so (Resolução CFE n. 894/69), o que reforçou o esquema do "3+1'' e
profüsionaJ demandado para a.s, ativídade.s de ensino e orientação. levou as faculdades a adotarem o currículo mínimo como o defini-
No que tange aos niveis de qualificação dos docentes, a lei é mi- tivo (Cf. Souza Neto, op. cit., p. 63).
No que tange ao nível da qualificação para a atividade docente, a
3 Cuftura enciclopédka. refere-sr aquela formação conteudista, meneumônka,
Lei 5692/71 continuou abrindo precedentes para a presença do pro·
em que o educando memoriza informações sem, necessariamente fazer relações
entre elas, assim como nas enciclopédias os termos e respectivas definições se su- fessor leigo, conforme se pode observar na tabela abaixo:
cedem em ordem sem ter uma articulação entre si.
84 A proletarizaçâo dos professores Entre a dilapidaçáo moral e a missão redentorista 85

Tabela 1- Níveis de forma\ão e possibilidades A forma adotada pelos sistemas de ensino, desde 2000, para a for-
de atuação docente, cstabclecídc1s na Lei S.692/71.
mação superíor dos professores em exercício m\ educação básica,
Atuação em situações responde. corno indicamos em 2003 (Freitas, 2003), à recomendação
cmergenciais. na Jaha
dos organismos internacionais para a formação de professores, como
Nível de formação Atuação de habilitados inscritos
para a docência no siste- forma de atender massivamente à demanda emergente por formação,
ma público de msino com ..:ustos reduzidos. Introduz os tutort•s, mediadores ,ta form,1çiio.
Até a 8• série do 1° grau . supervisionado~ por docentes universitários, alterando radicalmente
Licmcíatura plena
e 2"gcau a concepção e o caráter do trahalho docente no ensino superior. A
Licenciatura curta Até a 6• série do 1• grau Até a 8ª série do l" grau iniciativa de localizar polos presenciais em vários municípios com a
Habilitação fapedfíca presença circunstancial dos estudantes, representou novas formas de
para o Magistério
1• a 4• série -
organização da formação, mediante ,oncessào de bolsas a professo-
ProfossM leigo . l• a 4• res das próprias redes de educação básica ou a pós-graduandos, para
Fonte: RomaneHi, O .. 1991. atuarem como tutores, e se desenvolveu, no período de 2003-2006, em
continuidade à política de formação continuada de professores (Frei-
tas, 2007, p. l 209).
A li..eí de DiretFi1z.es e Bases d.a Educação Nacional. n. 9394/96.
trou1xe novas possibilidades para a carreira do professor, tais como A formação inicial aligeirada foi estabelecida desde as diretrizes
o estabelecimento de planos de carreira baseados na titulação e lilO dos cursos de tormaçâo de professores da educação básica cm nível
desempenho, a elevação <la exigência mínima de qualificação dos superior para as licenciaturas, modalidade graduaçáo pk·na, proposta
professores, Jc nívd universitário para lecionar a partir da quinta pelo Conselho Nacional de Educação. Nas diretrizes a ,.nga horária
série do ensino fundamental, a ínstituição de uma base comum na- dedicada à formação pedagógica aumentou, passando a competir com
cional para formação de professores, de modo a romper. com a idéia a carga horária dedicada aos estudos específicos de cada habilitação.
de currkulo mínimo e a extinção das Hcendaturas curtas. Mas, Contudo, tal formação pedagógica deverá se dar por meio de estágios
não podemos deixar de considerar, essa lei trouxe também algumas e práticas, prevalecendo sobre estudos teóricos no campo da ciência
orientações que representam retrocessos tm luta da categoria dos da Educação (Cf. resolução l/2002, Resolução 1/2002).
professores pela melhora da profüsão, nomeadamente uma tendên · Um outro aspecto revela o esvaziamento do conhecimento, que
eia ao pragmatismo na elaboração dos currículos, o que inspirou a é o conteúdo do trabalho do professor, já durante a sua formação:
elaboração de diretrizes curriculares para a formação de professores apesar de se ter suprimido na lei a figura da licenciatura curta, que
{Brzezinsky. 1997, p. 148-156). fora instaurada quando da reforma universitária, lei 5.540/68, pas-
No que tange às políticas públicas de formação de professo- sou-se a admitir a formação de professores nos Institutos de Ensino
res, na realidade brasileira, reflete-se a tendéncia à subordinação Superior, os ISE's, em que qualquer bacharel ou graduado pode se
às agências internacionais. Estas presuevem que se. deve priorizar tornar professor mediante uma complementação pedagógica:
a formação continuada, em d.e t rimento da formação em serviço,
posto que se trata d.e uma estratégia de barateamento desta mào- Art. l" A formação de docentes no nívd superior para as disciplinas
de-obra: que integram as quatro séries finais do ensino fundamental. o ensino
86 A proletarização dos professores Entre a dilapidação moral e a missão redentorista 87

médio e a educação profissional em nível médio, será feita em <.:urso~ Assim, abre-se o precedente para que se organizem cursos au-
regulares de licenciatura, em cursos regulares para portadores de di- xiliares de educação de jovens e adultos, preparatórios, cujas aulas
plomas de educação superior e, bem assim, em programas especiais de deverão ser ministradas por alunos de graduação, voluntários sem
formação pedagógica estabelecidos por esta Resolução. habilitação para o magistério, muito embora, nos artigos 9 e 17 das
Parágrafo único: Estes programas destinam-se a suprir a falta nas es- diretrizes da educação de jovens e adultos haja uma preocupação
colas de professores habilitados, em determinadas disciplinas e locali- com a qualificação dos docentes e com a instituição das orientações
dades, em caráter especial. das diretrizes para o ensino fundamental e médio na escolha dos
Art. 2° O programa especial a que se refere o art. 1° é destinado a por- professores (Idem).
tadores de diploma de nfvel superior, em cursos relacionados à habilita- Na realidade, há estados brasileiros, como São Paulo, em que até
ção pretendida, que ofereçam sólida base de conhecimentos na área de mesmo na rede estadual de ensino, quando da falta de professores
estudos ligada a essa habilitação (Brasil, 1997. grifos nossos). habilitados para aulas livres e em substituição, admite-se, por meio
de contratos temporários {ACT's) alunos de graduação, conforme
Embora não se trate, propriamente, da reedição do professor lei- se exemplifica no parágrafo 2° da resolução 97/2008 da Secretaria
go, tal resolução consiste em um retrocesso à situação da formação de EdlKação do Estado de São Paulo. Esses alunos ministram aulas
em que o profissional tem contato com os conteúdos pedagógicos antes mesmo de adquirir a licença para ensinar, conforme podemos
somente ao final do processo de formação profissional, muito si- constatar na tabela a seguir:
milar ao já mencionado "verniz pedagógico", estratégia formativa
de professores exaustivamente avaliada como negativa na literatura, Tabela II - Níveis de formação e possibilidade~
conforme discutimos anteriormente. de atuação docente na Educação Básica
Paradoxalmente, a LDB, do ponto <le vista legal, elimina defini-
tivamente a figura do professor leigo, mas deixa uma possibilidade
para a sua existência. Analisemos o caso da educação de jovens e Aluação em situações
Nivd Je forma·
Atuação emergenciais,
adultos: no Brasil, não há uma rede pública de EJA consolidada, de çào e certificação
(LDBEN 9394/96) no estado de São Paulo
modo que urna das formas mais comuns de se efetivar a educação de do prolessor
(Resolução 97/2008)
jovens e adultos é por meio de programas de educação presencial ou
I• a 9· série do
a distância, como os telecursos, em que qualquer pessoa - até mes- ensino fundamen-
mo um ator de televisão - pode apresentar o material didático, na tal, ensino médio. Professor com fü:enciatura
ensino profissional plena em outra disciplina
forma de vídeo-aulas e livros didáticos e os alunos estudam e fazem "'
o Licenciatura
,:. de nível técnico, que não aquela na sua
os exames de suplência para eliminação de matérias. plena
< educação de jovens área de conhecimento
O supletivo é regulamentado nas diretrizes nacionais para edu- !::
--l
e adultos, educação específica;
cação de jovens e adultos (Brasil, 2000). A rigor, os alunos podem cc especial (artigo 62
< da LDBEN)
estudar até mesmo sozinhos, pois não há nenhum pré-requisito de :e:
frequência necessária de escolas para a realização das provas, uma Participam da atribuição
Licenciatura Exclusivamente no
logo após os professores da
vez que, no artigo 22, as diretrizes consideram processos formativos .:urta ensino fundamental
licendatu ra plena
extra-escolares, cuja regulamentação não é alcançada pela Lei.
88 A proletarização dos professores Entre a dilapidação moral e a miss~o redentorista 89

Atuação cm situaçúei. Atuação em siluaçõe~


Nível de forma - Nívd de form.1-
Atuação cnwrgenciais, Atuação enicrgcndais,
ção e ccrllficaçllo çãn I.' certificação
{I.DHEN 93".14/96) no cs1adu Jc Sóo Paulo (WBEN 9.W4N6) nu estado Jc S:i.o Paulo
Jl) pruli:ssor do prnfci-sor
(Rcsoluçilo 97/2008) (Resoluç.io 97/2008)

Professor com licenciatura Alunos da licenciatura,


plena em outra d isciplina pd3 ordem: do último ano;
Estudante de
1• a 4• série do en- que não aquel,1 na i;ua área
licenciatura
. com mai~ de 50% do curso;
sino fundamenta!, Je ..:011hccimcnto c~pcdfica em qualquer momento da
Lkenciatu ra pie- educação infantil, - partu:ipam da atribuição licenciatura
na cm Pedagogia educação profissio- após os bacharéis, os habili-
nal de nfvel médio e tados em licenciatura curta Participam da atribuição
..,, após todos os outros, so-
pós-médio, EJA e o alunos de último ano oo Estudante do
da licenciatura (Resolução
< bacharelado - mente antes dos alu nos de
licenciatura em qualquer
SESP97/08) t::
,..l momento do curso.
Professor com licenciatura ~
plena em outra disciplina
<
::i:: Cursos livres, con-
Licenciatura o
V,
qui:: não aquela na sua án:.i
o em Pedagogia
1• a 4• série do en- de conhecimento específica
•<
:z
siderados Educação
Q não-formal: pré-vcs-
< em Instituto de
!- sino fundamental, - participam da atribuição t ibulares, prepar.i-
Educação Supe-
::i educação infantil após os bacharcis, os habili- Professor leigo tórios para exames .
iii rior Magistério 1
(artigo 63, inciso 1) tados em licenciatura curta
< nível superior i.upldivos, C(lu,ação
:e e o alunos de último ano profis.~ional de nível
1

habilitado
da licenciatura (Resoluçào bàsíco, modalidade
SESP 97/08) não-formal
Habilitação
1• a 4• série e educa-
Específica para Fonte: Legislação referente à Educação Básica
o Magíst~rlo
çào infantil (artigo -
62 da LDBEN)
- habilitado
A polêmica conceituai sobre a proletarização
Licenciatura, des-
do professor mediante a materialidade
de que da mesmo. Educação em comu-
etnia da localida- nidadesindígenas . do processo de alienação do trabalho docente4
de onde deverão
ministrar aulas Nesse texto, buscamos evidenciar o processo de alienação no
<I) trabalho docente, entretanto, ainda se discute muito até que ponto
o Bacharel/g ra-
o duado com
tal processo pode ser caracterizado como proletarização do profes-
~ complementa-
Participam da atribuição sor. Uma vez que já discutimos o conceito alienação na categoria
:J após os alunos de último
õ:i ção pedagógica (Artigo 63, indso U) docente da educação básica, depois fizemos uma breve retrospec-
< ano da licenciatura, e dos
em Institutos
:e docentes habilitados;
o Superiores de
....:: Educação -1 Esse subitem foi desenvolvido a partir do artigo "Da missão do professor: a
z
prod ução de uma ideologia".
90 A proletarização dos professores Entre a dilap1dação moral e a missão redentorista 91

tiva histórica identificando a alienação em diferentes momentos da aumento da produtividade. Isso tem requerido outra formação da
constituição d a categoria docente no Brasil, nossa última tarefa é, à classe trabalhadora para o mesmo trabalho alienado.
guisa de conclusão, indicar elementos da nova organização do tra- Assim, a escola assume a tarefa de formar trabalhadores com
balho na atuação da categoria docente - ainda que seja um aspecto competências aplicáveis às diferentes situações, constituindo uma
que foi melhor explorado neste mesmo livro por Gilberto Pereira de força de trabalho cada vez mais plástica, correspondente à plastici-
Souza - provocando uma reflexão no leitor sobre o processo con- dade exigida para a atuação em células de produção, trabalhando
creto de alienação do professor, buscando contribuir para o deb,1te em equipes, produzindo, mantendo o ambiente de trabalho limpo,
sobre a proletarização da categoria docente do ensino básico. solucionando problemas relacionados a avarias nas ferramentas de
No que tange às relações entre a organização capitalista do trabalho e/ou processo de produção, vigiando os colegas para evitar
trabalho e as demandas que esta impõe à escola, desde a passagem o absenteísmo. a "cera" no trabalho, a queda na produtividade da
do século XX para o século XXI, a organização taylorísta-fordista célula. Enfim, a colaboração, a adesào ao projeto da empresa, a dela-
já guardava uma racionalidade que cedo se introduziu na organi- ção. a vigilância, a subsunção aos ritmos da produção são as chama-
zação do trabalho escolar, com vistas a aumentar a produtividade, das competências pessoais:
ampliando as tarefas do professor na escola e fo ra dela, otimizan-
do o seu trabalho de atendimento a números cada vez maiores Na Indústria, especialmente para os operadores e os técnicos, o domí-
de alunos, e buscando níveis de controle cada vez maiores sobre nio cognitivo e do informativo nos sistemas de produção, torna um
seu trabalho. Nesse sentido, o tecnicismo na educação, sob ins- pouco obsoleta a noção de qualificação profo,sional e leva a que se dê
piração taylorista-fordisla, prestou uma importante contribuição muila importância à competência pessoal. O progresso técnico modi-
para a racionali zação do trabalho na escola, supervalorizando os fica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos processos
métodos de ensino em detrimento do trabalho do professor, im- de produção (Delors, 2006, P. 93).
pondo uma prática da parcelízação dos conhecimentos em unida-
des de conteúdos mais simples1 materializada na forma do ensino De fato, tal perfil de trabalhador confronta com aquele decor-
apostilado. rente de uma fomação integral, pois o perfil requerido em tais re-
Desde o fina] do século XX, notadamente a partir da crise ener- lações de trabalho refere -se antes aos atributos pessoais do que ao
gética dos anos 1970, a sociedade tem sofrido as consequências da conhecimen to sobre o processo do trabalho, justificando ideologi-
mais recente crise estrutural do capital, decorrente da crise energéti- camente uma formação cada vez mais alienada para os alunos, bem
ca em todo mundo e da queda na taxa de lucros. um fenômeno ten- como para os professores que deverão formá-los, pois se parte da
dencial no capitalismo. Nas conjunturas de crise, a primeira estraté- seguinte premissa:
gia utilizada pelo capital é reduzir os dispêndios na compra de força
de trabalho. Nessa crise, essa estatégia se concretizou sob a forma Nesta visão prospectiva, uma resposta puramente quantitativa à ne-
de reestruturações na organização laboral, de marca toyotista, em cessidade insaciável de educação - uma bagagem escolar cada vez mais
que se rompe com a ideia de trabalhador qualificado especializa- pesada - já nào é possível nem me.Hno adequada. Não basta, de fato,
do, em prol de uma formação dos trabalhadores polivalentes, con1 que cada um acumule no começo da vida uma determinada quantida-
prontidão para a administração de conflitos, a detecção e resolução de de conhecimentos e que possa abster-se indefinidamente. :É, antes,
de problemas, a elaboração de propostas criativas, tendo em vista o necessário estar à altura de aproveitar e explorar, do começo ao fim
92 A proletarização dos professores t ntre a dilapidaçâo moral e a missão redentor,ista 93

da vída, todas as ocasiües de atualizar, aprofundar e enriquecer esses que se obtém a partir da experiência - o saber.fazer - e, a partirdes-
primeiros conhecimentos, e de se adaptar ao mundo em mudança (Id, sas premissas, estabelece-se uma hiernrqui7.açào entre o ,profissional
p. 89, grifos nossos). (com os saberes intelectuais.) e o oficia.! (com saberes práticos) .
O autor faz uso do recurso da naturalização da d,ivisão entre co-
Note-se que, nesse documento de orientação da educação para o n.hecimento intelectual e oonhedmento prático, fundamentando-o
mundo no século XXI, os autores primeiro desqualificam a educa- coro o argumento da tradição, explicita o conceito de "'profissiona-
ção como processo de apropriação do patrimônio cultural da huma- lismo " con'lo uma ideia que sur.ge num co111lexto de-e.rise.do em,pre,go,
nidade, em prol de uma formação adaptada ao mundo em transfor- numa perspectiva de conciliação entre os interesses do capital e do
mação, como se os conhecimentos hi!>tóricos pretéritos acumulados trabalho, em que o capitalismo precisa de traba1hadores mul,t ifun-
1

pela huma nidadc sofressem processos de obsolescência; depois, pro- donais e os trabalhadores precisam desenvolver tais competências
duzem uma hierarquia entre o conhecimento inicial e~ educação ao par.a serem empregáveis.
longo da vida, para justificar o aligeiramento da formação inicial em O "profissionaf.ismo" e a "situação profissional" são pmpostos
todos os níveis e modaUdadcs llc ensino. Isso produz a justificativa como conceitos mais dinâmicos e rep~esentativos de uma rea.lidade
ideológica para a formação superficial, pragmática e esvaziada de supostamente mais evoluída em relação à ideia ,d e profissional com
conteúdos do professor, o qm: caracterizamos anteriormente como uma qualificação técnica especifica. Tal retórica presta~se à detesa
uma dimensão da afü.•n,tçílo do seu traba)ho (Duarte, 2001). da ~ese de que .o profissional da atualidade deve ter uma gama de
Entret.inlo, há uma "-onlradiç.io: se, por um lado, o capital es- competências que o permita ~ompdir por cmprl·go~ em difere1Jtes
força-se por apreender do 11-.1h.1 lhador seus saberes sobre o trabalho, lugares, v:ender·se, ter empregabHilladc, 1.·m wz 1.k um,\ qualilk,u;âtl
por outro. jamais conse:gue o domínio completo sobre eles (Rosa, térnica esp,e daliiza1.fa, estática. (Le Botert: 2003, p. 22 3, 24).
1998 p. 130 e ss). É a valorização dos saberes práticos, em detrimento dos conhe-
No que tange, especificamente, ao trabalhador da educação, es- cimentos sobre o trabalho. Com relação ao profissional da educação,
sas tentativas de destituir o professor de i.ua função de intelectual como em outras situações profissionais, o apelo é para que o traba-
orgânico não logram êxito, ele continua tendo ascendência sobre os lhador esteja em estado de permanente requalificação. E, conforme
alunos, e a estratégia mais recente do Estado neoliberal de interferir analisamm Minto e Muranaka (1991), tal entendimento está presen·
nisso é o estabelecimento de políticas que visam ao oferecimento te nas políticas públicas brasileiras de formação de ,professores de
de uma formação inicial empobrecida, alienada dessa função social, Educação Básica, em caráter de complementação. Í o ;princípio de-
reduzindo-o a técnico de alto nível, interditando essa ascendência. loriano da educação permanente aplicado à formação continuada de
O capitalismo produz e se nutre da divisão sociaJ do trabalho e tal p11ofessores, a qtaa'l tem se efetivado simultaneamente à aplicação de
divisão alcança o professor informando, orientando a constituição de políticas para o aligeiramento da formação inicial dos professores.
sua identidade profissional num sentido pré-determinado Na Idade O que se tem ·em vista, especificamente, .são as necess:id.ades do
Média, o termo profissão dizia respeito a aquisição e uso privado de me,ri.:aJo de ,tra'ba,lho teapRafütn, cambiante ,e subordinador da educa·
um conjunto de saberes sobre um ramo específico da produção, por ção ao mundo do tmbalho. E, pior, é o professor que tem arcado com
uma corporação, resguardada pela lei, segundo a qual os profissionais as despesas dessa formação, uma vez que, por vezes, ele tem que desen-
só poderiam exercer a profissão mediante licença. De acordo com Le volver essas atividades no .seu tempo 'livre, ou, até mesmo, ;em cursos
Boeterf. diversamente, ofício é definido como conjunto de saberes pagos ministrados em instituições privadas ou fundações públicas.
94 A proletarização dos professores Entre a dilap1dação moral e a missão redentorista 95

Enfim, denomina-se "profissionalismo" a capacidade de um mentando-~c nos seguintes argumentos: 1) o empobrccimcnlo dos
indivíduo vender su~\ força de trabalho nes~e mercado excludente, professores de educação básica; 2) o assalariamento aflsociado à pre-
aproximando-se do modelo de profissional liberal, no sentido de carizaliâo profissional; 3) a perda do controle sobre o seu trabalho; 4)
prestador de serviços, com plasticidade para se adaptar às variações a tramformaçào da categoria num trabalhador coletivo, ncg.anJu s~
do mercado: sua:, peculiaridades de lr,tbalhador individual; 5) a caracteri1;1\.tO
do professor como produtor de mais-valia.
O profissional se taracteriza por uma forte "empregabilidade". Possui Entretanto, o autor. como tantos outros estudiosos da temátkJ,
a dupla característica de dominar bem suas competências e de ter su- se delimita nessa posição, na medida em que o professor só produz
ficiente recuo em relação a elas para poder adaptar-se a mudanças ,11: valor na condição de assalariado em instituições privadas, em que o
empregos ou de setores de atividade. Ele sabe "manter-se preparado" para ensino assume feições de mercadoria stríctu sensu. Tumolo e Fontak
estar pronto pam mudar. À imagem c.lo'i esportistas. "mantém-se em na analisam que todas as argumentações referentes à detesa da tese
forma para". Seu potencial torna-o disponível para evoluir, para ser "re- da prolctarizaçào do professor referem-se antes ao processo de tra-
empregável" em outra empresa (Le Ruterf, 2003, p. 23, grifos nossos). balho do que ao processo de produção, esse último fator definidor
do proletário, no seu entendimento (Op. dt. p. 168).
Quando se estabekcc t'!>tril.iml'llh.' eo;!.e perfil profissional ,omo A proletarização é um conceito que, embora forjado no conte-
o desejável, rompe-se com o .:u1Kcilo Je qualifk.ição, o qual, na xo do Império romano para se referir aos que nada tinham de sua
verdade, guarda lrés dinu~m,<ies: ,l u1nu~itu,,I, que ~e refere aos CO· propriedade. a não ser ~ua prole. foi apropriado por Karl Marx nos
nhecirnentos teóricos e técnko!. !,Obre o trabalho; a da experiência, Manuscritos econômico-filosóficos (1844-1846) para dar relevo à ca-
relativa aos saberes prático,; l' a social, ou seja, a consciência de seu racterística despossufda dos trabalhadores no século XIX:
papel social a partir do fato Jc ser um profissional. que se refere à
importância social da profissão (Schwartz, 1998). Torna-se evidente que a economia poHtica considera o proletário,
O mercado de trabalho tende a tornar-se cada vez mais plástico ou seja, aquele que vive smt c:apítal ou renda, ape11as do tabdlhu e
e elástico, demandando trabalhadores, ora com umas competências, ,le um tral,,~IJw unilateral, abstrato, coml, simples trabalhador. Por
ora com outras e, por isso, forte capacidade adaptativa. Nessa con- consequência. pode sugerir a tese de que ele, assim como um cava-
juntura, a educação permanente, a formação continuada, a capaci· lo, deve receber somente o que precisa para ser capaz de trabathar. A
tação e a chamada "reciclagem" de profissionais são imposições do economia polflica não se ocupa dele ou seu tempo livre como homem,
mercado aos trabalhadores, para que o recrutamento e a seleção de mas deixa este aspecto para o direito penal. os médicos, a religião. as
profissionais se deem segundo critérios sempre variantes, conforme tabelas estatísticas, a política e o funcionário de manicômio (Marx,
as demandas de cada momento, !.ubsumindo-se e esvaziando-se a 2001. p. 72, grifos nossos)
formação inicial. De fato, é no processo de trabalho que se identifica
a violência decorrente da alienação do professor; por isso mesmo, é Em seguida, no Man~festo Comunista (1848), Engels define pro-
onde localizamos a materialidade do processo de proletarização. letários como "a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os
Conforme Tumolo e Fontana (2008), a produção acadêmica so- quais. não tendo os próprios meios de produção, estão reduzidos ,1
bre a temática da proletarização do professor tende a ratificar a tese ve,rder sua força de trabalho para poderem sobreviver" (Marx; En-
de que essa categoria sofre um processo de proletarização funda- gels, 1998. p. 68, gnfos nossos).
96 A proletanzaç:io dos professores Entre a d1lap1dação moral e a m,ssâo redentorrsta 97

Destacamos de ambas as passagens que a característica distin- administração da res pública. Ess.t realidade é tão evidente que há
tiva do proletário é o estado de destituição dos meios de produção, autores que já falam em crise do Estado republicano (Cunha. 2007).
o que o força a vender a força de trabalho para prover a sobrevi- Sobretudo, é peciso apreender cada vez mais concretamente a
vência. Entendemos que a destituição é a essência do processo de materialidade da alienação do trabalho do professor, como condição
proletarízaçào do professor, o qual, antes mesmo de ser despossuído básica para a luta contra as múltiplas destituições que ele sofre e que
de qualyuer outrn propriedade, que não sua força de trabalho, ainda o proletarizam. A mais difícil de todas as lutas é aquela em que não
durante sua formação é destituído dos conhecimentos sobre o seu se enxerga o~ contornos do inimigo, porque dessa forma não se pode
trabalho. golpeá-lo. O trabalho alienado venda os olhoi. do profe~or. enquanto
Conforme discutimos, essa realidade tem consequências sobre o destitui, o destrói pouco a pouco, no cotidiano violento do seu tra-
todo o processo de tabatho, desde o polo da formação esvaziada e balho, e impede que a sua categoria possa se identificar como parte de
atuação precarizada do profe5,sor habilitado até o polo do professor uma classe social, com interesses antagônicos aos da classe burguesa.
leigo, figura presente em toda a hil-tori.1 da l'ducação brasileira e que A partir da consciência teórica e prática, decorrente da experi-
ainda hoje perdura. ênl ia de relações opressivas no trabalho, o professor deverá progre-
Para os refutadores da tese dJ proletarização do professor, as- dir na organização sindical, e participar do esforço de coordenação
sumir essa categoria prot1ssiunal l.Omo proletarizada consistiria, das lutas da classe proletária, de nível internacional, classista e so-
no máximo, um exercídt1 de analogia à situação dos trabalhadores cialista, como parte de uma totalidade, pela superação das relações
diretamente relacionados ao trahalhu material, uma vez que "(...) de trabalho capitalistas. As revoluções não sairão das escolas e dos
o professor da escola públk,1, .tpt·~r lie ser vendedor da força de livros, tampouco das fábricas de armas, mas surgirão como neces-
trabalho, não t·staht.'leu· rd.,,.,o l',pt.·dficamc:-nte capitalista" (Id. p. sidades, mediante o sofrimento vivido no processo violento de alie-
171}, poi~. llc\ e.'tlcr., 1.·om l'II u.11. "~- 1111prn,:-1vd apreender dasse prole- nação do trabalho.
tária no âmbito <lo pro..:t·M,o de trabalho" (ld. p. 170).
Mediante tudo o que discutimo~. afirmamos que impossível REFERÊNCIAS BIBIIOGRÁFICAS
não é caracterizar o professor como em processo de proletarização a
partir da sua insersão no processo do trabalho: impossível é assumir BRASIL, DECRETO-LEI N . 4.244 - DE 9 DE ABRIL DE l942
que o professor da escola pública não estabelece relações capitalis- Lei orgânica do ensino secundário. ln www.soleis.adv.br
tas, numa situação em que é regido por um Estado capitalista, que BRASIL, DECRETO-LEI N. 6.141 - DE 28 DE DEZEMBRO DE
opera, cada vez mais, segundo a lógica privatista das empresas e, 1943 Lei Orgânica do Ensino Comercial ln www.soleis.adv.br
por isso mesmo, desenvolve relações de exploração capitalista sobre BRASIL, DECRETO - LEI N.8.529 - DE 2 DE JANEIRO DE
todos os trabalhadores a ele subordinados, seja na condição de fun - 19·l6 L<!i Orgânica ,Jo Ensino Primário ln www.soleis.adv.br
cionários públicos temporários ou permanentes, seja na condição BRASIL, DECRETO-LEI N. 9.613 - DE 20 DE AGOSTO DE
de trabalhadores prestadores de serviço terceirizados, ou de efeti- 1946 Lei Orgânica do Ensino Agrícola ln www.soleis.adv.br
vos. Aliás, tais subdivisões não revelam outra coisa que não relações BRASIL, Lei Complementar N° 444, de 27 de dezembro de 1985
capitalistas. BRASIL, Ministério da Reforma do Estado. Câmara da Reforma do
Basta uma rápida análise das diretrizes para a reforma do Estado Estado. Plano diretor da reforma dv Estado. Brasília, 1995. www.planal-
para constatar a metodologia empresarial adotada pelo Estado para to.gov.br/publi_04/COLEÇÃ0/ PLANDI. Htm. Acessado em 26/5/07.
98 A proletarização dos professores Entre a dilap1dação moral e a missão redentorista 99

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TU MOLO, P. S.; FONTANA, K. B. Trabalho docente e capitalismo: propaganda do sistema privado de ensino, atraindo para si os filhos
um estudo crítico da produção acadêmica da década de 1990. Educação
e Sociedcide. Campinas: v. 29, nº 102, p. 159-180, jan. jun. 2008. 1 O .iutor dedica este artigo à sua esposa, Ana l,uci a, e 1-ua filha, lsadord.
VIU.ELA, H. O. S. O mestre-escola e a professora. ln: LOPES, 1 PISA é o Programa lnternadonal de Avaliação Jc Estudantes promovido pcl(l
E. M. T.; FARIA F0 , L. M.; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no OCDE, Organização Para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, organ11.,1-
çào que reúne os países mais rico., do mundo. Participam do PISA os membros dc1
Brasil. 3.ED. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 95-134. OCDE e paísc:. con\'idados, como o Brasil.
102 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorânoa universal 103

de uma dasse média desesperada com a de-cadênda do ,e nsino pú- em torno ao seu projeto político e social, construir uma nova ordem
blico e que ainda vê na educação um investimento no futuro de seus social mais humana e racional. levantou a bandeira do direito à edu-
filhos, u,ma forma de asceiisão social. O acesso à cuiltura universal, cação como condição sine qua 11011 para a cidadania e a igualdade.
ao saber historicamente acumulado pelas sociedades humanas no A nova ordem social burguesa em construção tinha como parte
tempo, está cada vez mais difícil para ,a maioria da população. de seus fundamentos a reforma moral da sociedade partindo da for-
Analisa.remos a crise da escola pública, a partir de São Pau:lo. mação do "homem novo" - -. e a formação deste último seria tarefa
Primeiramente por ser pública, ou seja, atender a maioria da popu- da educação.
lação, a parcela de menor poder aquisfütivo, os que não podem com· O direito à educação é, portanto, um legado, uma conquísta so-
prar serviços educacionais no mercado, os filhos da dasse t,r abailha- cial fundamental, da era das revoluções burguesas; principalmente
dora. Partindo de São iPaulo por ser 111ão apenas o estado mais rico da revolução dupla, das revoluções francesa e industrial.
do pais, mas também por ser :a maior rede de ensino do Brasil. e a Como disse o historiador Eric Hobsbawm, úa economia do sé-
grande refei;ênda nacional. culo XIX veio da revolução industrial, mas a política e a ideologia
São Paulo tem .sido, <lo ,gov,e r11;10 Jtcmando Henrique Cardoso a1t,ê vieram da revolução francesaº (Hobsbawm, 1982). Ou seja, o capi-
nossos dia'$., uma espécie dc iahomtc'.,,rfo tlé antecipação dus ipoHtica~ talismo, como qualquer formação social, nào é apenas um conjun-
,edo.cacionais :adotadas nos vários ,·s111<los ,do ípaís, mernce.ndo por to de relações econômicas e sociais - indústria, proletariado - mas
isso um ,e xame mais acurado. Como dizia a propa,gantla de uma também um ordenamento político-jurídico e ideológico - cidadania
.c er.t a !bebida, "eu - no caso, São Paulo -, sou você amanlhã ", uma universal, igualdade jurídica, sufrágio universal- legados da revolu·
antecipação do futuro para os outros t?Stados. ção francesa; tendo corno um dos seus centros a educação pública.
Mas, a bem da verdade dos fatos, o acesso à cultura. à arte e à
Do rlumín~:smo ao Neofüberalismo ma Edue:ação. ciência não foi apenas uma bandeira da burguesia na sua fase revo-
lucionária; foi também parte do programa do movimento operário
".....no fim ,fos ,rmit 11s a ,l,urguesítJ -nlio tem ,os meios., avançado e da esquerda socialista.
nem vontade, de ,ofere.-a ,u-1 pcwo ,mw l'erdaileim edurnção". Para a burguesia a educação era parte de seu projeto de erigir um
{Ka rl Mau. ·tc.dos Sc1bre 'Erluu 1çiio <' é1tsi 110;)
mundo mais racionaJ - ou melhor, racional - em oposição ao obs\':U·
rantismo e atraso cultural do antigo regime, estabelecendo a cidada-
O pi;ojeto íluminis·t a, liberal-burguês radical. de univer.salização nia universal e a igualdade jurídica entre os homens; sendo a educação
da cultura e da educação vive u:ma .c rise histórka, e a escola ,públi- a garantia de que todos, agora cídadãos e juridicamente iguais, rece-
ca como seu agente agoniza. A burguesia fracassou na tentativa, no beriam as qualificações mínimas para se diferenciarem na sociedade
projeto de educar as amplas massas, d,e colocá-las em contato com a de acordo com suas capacidades, talentos ou méritos; a educação seria
herança culltura! ,e científica da !humanidade. parte essencial desse novo mundo livre, guíado pela razão e baseado
Para usar o linguajar dos advogados ianques, a dúvida plausível na livre competição entre os homens que se diferenciariam uns dos
é: será que um dia ela, a burguesia enquanto classe dominante, quis outros de acordo com os méritos individuais; a educação sería um dos
realmente un~V'ersaHzar o acesso à ed\Jlcação? pilares da sociedade merítocrática, filha das revoluções burguesas.
Na sua luta contra a nobreza feudatl e o antigo regime a burgue- Não por acaso, foi na França como produto da grande revolução
sia, a fim de acaudilhar e mohii1izar as amplas massas da população de 1789 que se instituiu o primeiro sistema público-estatal de en-
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sino, inicialmente na ditadura radirnl e popular dos jacobinos que matar "a galinha dos ovos de ouro". Ou seja, era necessário garnnt11
estabeleceu, na constituição de 1793, ano Ida nova era segundo eles, a reprodução da mão-de-obra e a formação do exército industrial Jt!
o acesso universal ao ensino público. reserva, evitando a entrada precoce no mercado de trabalho das fu-
Napoleão Bonaparte, mesmo não sendo um continuador do ja- turas gerações de proletários; também escolarizar significaria "hu-
cobinismo, críou, de fato, um sistema público, estatal e laico de en- manizar" o trabalhador, impedindo que sua imperkia destruísse o
sino universalizado, da educação básica à universidade. Napoleão caríssimo maquinário.
não era ex.atamente um homem do Termidor, da contrarrevolução Na França, a criação do ensino público, estatal e laico por Napo-
burguesa que derrubou a ditadura jacobina através de um golpe de leão Bonaparte tem relação direta com a dinâmica do processo revo-
estado. O seu ultimato - "ou eu ou o caos"- não era apenas contra a lucionário, que teve como inimiga mortal a igreja católica, a "grande
esquerda jacobino-revolucionária em revolta, mas também se volta- infame" segundo Voltaire. A igreja católica era uma defensora fer-
va contra os setores mais reacionários, que queriam, pura e simples- renha do antigo regime e detinha o monopólio <lo ensino: portanto,
mente, a volta do antigo regime, <la sociedade de privilégios nobres. o sistema público foi criado para enfraquecer a igreja, subordiná-la.
A revolução deveria continuar, de forma moderada, a obra de cons- de fato, ao Estado, dentre outras coisas.
trução da nova ordem. Mas, também se tratava de atender as demandas de uma econo-
Na Inglaterra, o segundo país da revolução dupla, também se mia e uma sociedade em processo de industrialização e, consequen-
estabeleceu um sistema público de ensino, não sem oposição de se- temente, urbanização, formando uma mão-dc-obrJ minimamente
tores importantes da burguesia (Marx e Engels, 1983). qualificada para o trabalho fabril.
Contada assim, nossa hist6ria seria lm:nmpleta, idílica e pue- A pressão da luta de classes, por um lado, e as nec~ssidades do
ril, no pior estilo positivista de grandes heróis e grandes aconteci- próprio desenvolvimento capitalista, por outro, fizeram com que
mentos. Estão faltando personagem; fundamentais para o desenvol- a burguesia tolerasse a expansão do ensino público. O desenvolvi-
vimento do nosso enredo, os movimentos sociais, os herdeiros do mento e a diversificação da economia trouxeram novas necessidades
jacobinismo francês e o movimento operário em formação. num mercado de trabalho em expansão e crescente diversificação;
Os movimentos soci.1is não-burgucsc~, proletários e semi-prole- novas profissões com melhor qualificação exigiam trabalhadores
tários, as massas populares urbanas apoiadas na pequena burguesia mais instruídos; além de melhorar a qualificação dos trabalhadores
radical, no caso francês, ou no movimento operário, no caso inglês, da máquina estatal, já não mais preenchida apenas por critérios de
desempenharam um papel fundamental na luta pela educação uni- apadrinhamento ou origem. Burocratas, técnicos, gerentes, profis-
versal, pública-estatal. sionais especializados e outros profissionais vão justificar a expan-
Na Inglaterra tratava-se de combater o trabalho infantil e o em- são da educação pública e estatal. Pelo menos até o início do século
brutecimento do trabalhador devido às péssimas condições de tra- XX, durante a etapa "progressista e civilizadora" do capitalismo. na
balho, particularmente as jornadas excessivas. O acesso à escola pú- época do crescimento econômico ilimitado; encerrada com a pri-
blica seria uma forma de retardar a entrada no mercado de trabalho meira guerra mundial.
e de reduzir a jornada diária; não se pode trabalhar enquanto se está Até a década de l 970 do século XX, nos países centrais do capi-
na escola e, além disso, a escolarização serviria também para me- talismo e mesmo em alguns periféricos, a educação continuou sen-
lhor qualificar o trabalhador. Com o tempo a própria burguesia se do uma política de Estado, sendo a iniciativa privada algo marginal,
convence da necessidade de um sistema público de ensino para não exceto nos Estados Unidos. Não por obra da boa vontade da classe
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dominante, mas devido à luta de classes, mais propriamente à guer- A "viradeira" da burguesia na questão da educação póblka con-
ra fria . solidou -se de vez ao longo das décadas de 1980-1990 com a onda nc
A formação do "bloco socialista'' no pós-guerra, que chegou a oliberal, a derrocada do blo,o socialista e o esperado fim da guerra
governar um terço da população do planeta, e apesar de todas suas fria com o lado capitalista triunfante.
aberrações, como as ditaduras burocráticas, em muitos casos geno- O que veio depois é de domínio público; o circo de horrores de
cidas, demonstrou a superioridade da economia estatal e planifica- uma ofensiva termidoriana em todos os campos: ideológico, políti-
da. O acesso a serviços públicos, como educação e saúde, foi univer- co, econômico-social e até militar. "Fim do socialismo e da história
salizado, garantiu-se o pleno emprego; tudo isso cm países muito com o triunfo da democracia liberal, a retomada do mercado como
atrasados em comparação com o centro capitalista. único regulador da economia e das relações sociais, privatizações e
A alternativa, a terceira via entre socialismo e capitalismo selva- retirada de direitos sociais em nome da livre negociação e da har-
gem, foi a construção do Estado de Bem-Bstar Social, o Welfare State, monia entre capital e trabalho", tornaram-se verdadeiros m,1ntras
a junção do "melhor dos dois mundos": a democracia liberal e o mer- dos fundamentalistas do mercado; o obscuro Fukuyama, com a sua
cado, com o pleno emprego e a universalização dos serviços públicos, fanfarronice sobre o fim da história, tornou-se um ícone pop, ou
entre eles a educação. O Estado de Bem-Estar somente existiu devido talvez cult.
ao temor dos capitalistas em rel.iç.io à L'XJXHl1ião do socialismo, mes- A educação não poderia ficar de fora desse enquadramento: ela
mo na sua forma distorcida e ckgc11aada. autoritária e burocrática, deveria ter o mesmo destino dos demais serviços públicos e ser, na
exemplificada pelas ditaduras stali11h,t,1s <lo Leste Europeu, China e medida do possível, privatizada.
URSS. O fato de o capitalismo mundial viver um período de cresci- No Brasil, a expansão da educação pública e sua trani,formação
mento econômico. com alguns J'lt.'C)ucnos dclm, recessivos, até o início em direito seguiu a dinâmica do processo de cxpan~ão do capitalis-
da década de 1970 do sécuk> passado também contribuiu para a "polí- mo; ou seja, acom pa nhou, de forma condensada, as etapa~ de forma ·
tica social" de universalizar a educação pública e estatal ção e desenvolvimento do modo de produção capitalista, mas se deu
A década de 1970 do século XX marca uma inflexão nas políti- de forma tardia, com poucas das virtudes e muitos dos vícios que
cas sociais dos detentores do capital motivada por uma conjugação ocorreram nos países centrais do capitalismo.
de fatores. Uma forte recessão nos países centrais da economia capi- Durante o império, a legislação previa a obrigatoriedade e o di-
talista a partir da crise do petróleo em 1973, os sinais de esgotamen- reito ao ensino primário para todos os cidadãos - mas esse era o pro-
to do bloco socialista com a estagnação da economia soviética e o blema: a esmagadora maioria da população era composta por não-
início das reformas pró-capital na China com a abertura de sua eco- cidadãos, escravos e ex-escravos. Somente na primeira república, após
nomia ao capital estrangeiro e a privatização da agricultura foram o fim da escravidão e da cidadania censitária (baseada na riqueza),
claros indícios de que a guerra fria iria terminar com um resultado foi possível falar seriamente sobre a universalização do ensino públi-
favorável ao bloco ocidental; a isso tudo soma-se o crescente endi- co como direito; porém, as oligarquias dominantes, que controlavam
vidamento dos Estados pelos altos custos dos serviços públicos e da o poder político nos estados, aproveitando-se do regime federalista
rede de proteção social. que lhes dava total autonomia, jamais permitiram o ensino público
O bloco socialista já não era uma ameaça, o dinheiro público obrigatório. Numa economia essencialmente agrária, onde não havia
tornara-se escasso, os lucros dos capitalistas estavam diminuindo; o uma demanda muito grande por mão-de-obra qualificada, o acesso à
cobertor não era mais tão grande para todos. educação era privilégio das elites e seus herdeiros.
108 A proletarizaçáo dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 109

Somente a partir da década de 1930 temos a formação de um sis- incorporá-las ao mercado de trabalho. O que fez com que os péssi-
tema nacional de ensino, com o fim da hegemonia das oligarquias, mos indicadores de qualidade de ensino e o grande número de anaJ-
e com uma pnlítica consciente da burguesia nacional, via Estado, fabetos nunrn incomodassem os governos militares (Horta, 1998).
de desenvolver uma economia urbano-industrial; o que demanda , Isso nos autoriza a faur uma condusão aterradora; os neolibe-
necessariamente, uma mão-de-obra mais instruída e qualificada. :É rais, e mesmo os reformistas do lulo-petismo, de uma certa forma,
somente a partir das reformas da década de 1930, sob o governo continuaram a "obra" dos militares no poder; um ensino aligeirado
Vargas, que surge o Ministério d a Educação e o nível corresponden- para as amplas massas da população e uma cumplicidade, mistura-
te ao ciclo 1 do Ensino Fundamental torna-se gratuito e obrigatório. da com muitas benesses, com a expansão da rede privada de ensino
O avanço da urbanização e da industrialização nas décadas se- no Brasil.
guintes, décadas de 1940-1950-1960, consolida o ensino públ ico e No Brasil, a expansão do ensino público, sua extensão como di-
gratuito e faz surgir e se expandir o ensino profissionalizante, a par- reito de toda a população, ocorreu paralelamente à sua mercantili-
tir da fundação do SENA! e do SENAC. zação e privatização; quem chega no fim da festa fica com o pior, ou
Por uma dessas nmitas ironias da história, é somente na dita- com o que sobrar.
dura militar {l 964- 1985} que a escolaridade obrigatória é estendida Agora podemos voltar à nossa dúvida plausível. A burguesia foi
para os atuais oito anos, todo o ensino fundamental. com a então obrigada pela luta de classes, pela pressão dos movimentos sociais
LDB, lei 5692/1971. Nesse perfo,.to houve uma expansão nunca vista organizados e, durante algum tempo, pelas necessidades da pró-
do ensino profissionalizante e do ensino superior privado para aten- pria economia capitalista, a universali1.ar o ensino, a permitir que
der um mercado de trahalho urb.1110-industrial cm expansão e um amplas massas das chamadas "dasses populares" - leia-se filhos de
clamor das classe~ médini. urbanas pelo acesso ao ensino superior. trabalhadores e trabalhadores mesmo - acessassem a escola pública.
Ao final do ciclo militar, mais de 75% dos matriculados no ensino Se me permitem uma digressão, assinalo aqui a observação de que
superior estavam na rt!J~ privada . mesmo negando Marx, os capitalistas são obrigados a confirmá-lo:
Os "milicos" não ampliaram o acesso à escola por boas inten - os homens fazem sua história sob condições herdadas, como po-
ções: era necessário atender os interesses do capital; o crescimento dem e não como querem - e essa lei também vale para as classes
econômico acelerado do milagre econômico demandava urna oferta dominantes.
crescente de mão-de-obra, qualificada e semi-qualificada. Por isso, A burguesia desfraldou a bandeira do direito universal à educa-
o ensino médio, nas escolas públicas, tornou-se diretamente profis- ção contra a decadente nobreza feudal, tolerou sua expansão durante
sionalizante e houve uma expansão recorde, incentivada pelo Esta- um longo período histórico; agora, a burguesia é a principal inimi -
do, do sistema S - SESl, SENAI, SENAC. Antes que me questionem ga da escola pública, é o grande agente da ignorância universal, da
sobre a repressão política; esclareço que não é objetivo desse ensaio destruição do sistema público de ensino e da negação da educação
abordá·la; mas que existiu e influenciou nessas medidas é fato. como direito, transformando-a em serviço ou mercadoria.
O princípio dessa expansão do acesso à educação era bem sim- Isso nos leva a uma conclusão de natureza política importante:
ples: uma educação aligeirada para as amplas massas, em alguns nenhum movimento burguês, mesmo com uma fachada progressis-
casos apenas a alfabetização rudimentar, via Mobral - Movimen- ta, pode ser considerado aliado dos trabalhadores e da juventude na
to Brasileiro de Alfabetização, cujo critério para consjderar alguém defesa da escola pública e gratuita; a burguesia liberal, ou neoliberal,
alfabetizado era ser capaz de ler e escrever o próprio nome-, para atravessou o Rubicão da história.
11 O A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorancia universal 111

Os movimentos cm prol da educação da "sociedade civil'' que não somente de privatizar ao máximo os serviços educacionais, mas
são liderados por setores burgueses e incorporam os setores mé- também de reduzir ao máximo os investimentos públicos e admi-
dios da sociedade são, na sua essência, reacionários e inimigos da nistrar os parcos recursos nol. moldes das empresas privadas, com
educação pública. São os porta-vozes não-oficiais das políticas de "eficiência e produtividade".
mercantilização e privatização do ensino; querem impor a lógica da Mas não é o bastante transformar tudo em mercadoria - priva-
"eficiência" na escola pública, são parte da campanha movida pelo tizar, no limite, todos os serviços públicos e a educação. O Estado
governo e empresários de criminalizar os professores e a escola pú- neoliberal precisa estar Jiretamente a serviço do capital; garantir a
blica. Não por acaso, nenhum desses movimentos reivindica mais retomada das taxa~ de lucro, que não pararam de cair, literalmente
verbas para a educação, melhoria salarial e redução da jornada de despencando entre 1947 e 1982, segundo dados da OCDE.
trabalho dos professores - e, também não por acaso, apelam para o Isso significa criar um ambiente favorável para a acumulação de
voluntariado e as parcerias público-privadas. capital, um conjunto de leis que permitam flexibilizar ao máximo
o mundo do trabalho - leia-se retirar direitos sociais históricos dos
A hora do mercado: o tsunami termidoriano na educação3 trabalhadores, desonerar ou isentar de impostos, ao máximo possí-
vel, os empresários privados e transferir, por uma série de mecanis-
Ao longo dos anos l980-1990, começando com a dupla Reagan- mos, recursos públicos para o capital privado.
Thatcher nos países centrais e com figuras como Menem na Argen- A transferência direta de fundos públicos para o capital foi favo-
tina e Collor e FHC no Brnsil, o neoliberalismo passou a dar o tom recida por uma característica intrínseca ao neoliberalismo: a desre-
das políticas públicas na Am~rka Latina. no mundo e, consequen- gulamentação financeira e sua consequência natural, ou irmã siame-
temente, no Brasil. sa, a especulação financeira global, grande vilã da crise mundial que
Reinando sozinha no mundo, a burguesia não precisava mais começou em 2008. Segundo fontes para lá de isentas, ou seja, fontes
suportar o fardo dos serviços públicos e da rede de proteção social; pró-mercado como a famigerada revista Veja, entre 1986 e 2006 o
o socialismo morreu, a história acabou e os serviços públicos deve- capital fictício ou especulativo cresceu praticamente dez vezes - isso
riam tomar o mesmo destino; o Weljare State, e tudo o que possa mesmo, não é engano do escriba, dez vezes mais - que o capital pro-
lembrá-lo, deveriam ser abolidos por inteiro, pedra sobre pedra. dutivo. Especulação financeira que trouxe consigo a elevação brutal
A OMC4 e o Banco Mundial declararam a educação como ser- das taxas de juros e, como não poderia deixar de ser~ um colossal
viço, ou seja, mercadoria; é o caminho aberto para sua privatização. aumento da dívida pública e do seu serviço, juros e amortizações;
"Estudos rigorosíssimos" vaticinaram que a solução para a crise da operar no mercado especulativo de compra e venda de títulos do
educação não tinha relação com os investimentos, com o aumento governo tornou-se um grande negócio, rentável e seguro, em muitos
das verbas, mas sim com a gestão eficiente dos recursos. Trata-se casos substituíndo os investimentos na produção.
Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,
3 Os tsunamis são ondas gigantescas que se formam em algumas regiões do pia· 1995 a 2002, os governos federal e estaduais privatizaram quase
neta e carregam consigo tudo o que encontram. }á termidoriano é o termo em tudo o que havia do setor estatal no nosso país - portos, ferrovias e
referencia ao golpe de estado .:ontrarrevolucionário da alta burguesia durante a rodovias, operações de eletricidade e telefonia, a indústria nacional
revolução francesa que derrubou o governo popular dos jacobinos, ocorrido no
mês de Termidor do calendário instituído na revolução. N. do ed. de siderurgia etc. - passando empresas altamente lucrativas para o
4 OMC, Organização Mundial de Comércio. setor privado, com um colossal aumento das tarifas desses serviços
112 A proletanzaçáo dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 113

para o pobre consumidor. O ministro da educação, Paulo Renato, foi o ensino privado não apenas continuou se expandindo, mas também
cúmplice de uma expansão recorde do ensino superior privado, en- recebeu uma injeção recorde de dinheiro público com o Prouni.
quanto a universidade pública se viu asfixiada por cortes de verbas e A privatização dos serviços educativos ocorre por meio de três
estagnação do número de vagas oferecidas. processos. O primeiro é a tentativa de privatização direta; foi o caso
As privatizações, feitas sob a falácia de que a qualidade melho - da proposta de municipalização total, de uma só tacada. feita pelo
raria, que o preço final dos serviços seriam mais baratos e que a governo Quércia cm 1989 no estado de São Paulo, pois tal política
receita gerada reduziria drasticamente a dívida pública, resultaram nada mais era do que uma cópia do modelo chileno que levou à pri-
no seu contrário. O capital ganhou duas vezes: apropriou-se de uma vatização do ensino público naquele país feita durante a ditadura
fatia do mercado monopolizada antes pelo Estado, garantindo uma Pinochet. Quércia, embalado pela vitória obtida na privatização da
nova "galinha dos ovos de ouro" para os lucros, e continuou rece- Vasp, companhia aérea estatal que foi doada ao empresário Vagner
bendo os serviços da dívida pública que, pelos altos juros, não só não Canhedo, achou que poderia "resolver'' de uma vez por todas o pro-
diminuíram, mas aumentaram de R$ 514, 24 bilhões em 1995 para blema educacional a favor dos empresários, mas uma greve de mais
R$ 1,03 trilhões em 2006, segundo dados do 1PEA5. desmentindo de 90 d ias com ações radicalizadas dos professores e com enfrenta-
todo o discurso ufanisla e mentiroso cm prol das privatizações. menlos entre grevistas e polícia militar nas principais vias públicas
Apenas mais alguns dados para dar uma ideia da sangria dos da cidade de São Paulo impediu a municipalização do ensino, e o
cofres públicos e d o super-h1.;ro dn!> capitalistas-rentistas-agiotas: então secretário da educação perdeu o emprego.
entre 2000 e 2005 foram pagos pelo governo federal R$ l,2 trilhão a Uma segunda tentativa de privatização direta da educação em
título de serviço das dlviJni; interna e externa, juros e amortizações/ São Paulo foi feita pelo sucessor de Quércia, Antonio Fleury, com
prestações; só cm 2007, os scrviçm, Ja dívida púbJica consumiram a criação do projeto escola-padrão, cópia do modelo inglês de re-
R$ 237 bilhões, mais do ~uc cduça~ão e previdência social juntas, forma privatista da educação feita pela u ltraneoliberal Margareth
que receberam respectivamente ll$ 20 bilhões e RS 213 bilhões; algo Thatcher. As escolas se tornariam, de fato. fundações de direito pri-
parecido ocorreu em 2008: os scrvi\os da d ivida levaram R$ 282 bi- vado, podendo fazer parcerias com empresas para arrecadar fundos:
lhões do orçamento, superando mais uma vez educação e previdên- gradativamente o governo estadual retiraria as verbas investidas nas
cia social juntas, que abocanharam respectivamente RS 23,7 bilhões escolas, ficando apenas os recursos das parcerias; cada unidade de
e R$ 257 bilhões do bolo orçamentário - todos os dados são da Au- ensino deveria atingir metas e deveria receber recursos de acordo
ditoria Cidadã da Dívida - Jubileu Sul. A vida e o futuro de milhões com o percentual das metas atingidas; haveria, portanto, uma com-
de jovens, idosos e crianças valem bem menos, na lógica do capital petição entre as unidades escolares pelas escassas verbas públicas. A
e do Estado burguês, do que os super-lucros de alguns milhares de cereja do bolo, a piece de résistance ou o grcind fina/e desse mirabo-
agiotas-rentistas. lante projeto, seria o "voucher", o cheque-educação que cada família
O suposto reformismo dos dois mandatos do governo Lula não receberia para cada filho em idade escolar com o valor que o go-
apenas manteve o centro dessa política, mas a aprofundou. A dívida verno estadual estipulasse para o ano letivo: de posse desse cheque,
pública e seus serviços aumentaram, como vimos; da mesma forma, a família poderia matricular o seu pimpolho em qualquer escola,
pública ou privada, e se o valor nominal do "voucher" não cobris-
5 IPEA, Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadai., é um órgão vinculado se as despesas escolares do aluno caberia à família complementar
ao governo federal. esse valor, mesmo se ~e tratasse de uma escola pública. Um número
114 A proletarizaçâo dos professores Das luzes da razão à ignorfmoa universal 115

significativo de escolas aderiu a esse modelo. Mais uma vez ia tudo reais de dinheiro público, para fornecer o material do telecurso para os
muito bem até que o "time adversário", ou seja, os professores, resol- cursos profissionalizantes, e por isso a emissora, em seus noticiários,
veu jogar; o governo "não combinou com os russos", como afirmou assume a postura de diário oficial eletrônico do governo estadual.
Garrincha ao técnico Feola em 1958 na famosa preleção antes do O terceí ro mecanismo é o manjadíssimo sucateamento, a redu-
jogo entre Brasil e URSS. Várias mobilizações dos professores es- ção das verbas e o abandono das escolas, os péssimos salários pagos
taduais, culminando com urna greve de 89 dias em 1993 que teve aos professores e as jornadas estafantes de trabalho; tudo isso para
como ponto alto a ocupação da Assembleia Legislativa por quatro fazer com que as famílias que ainda têm algum poder aquisitivo mi-
dias, mais o desinteresse dos empresários, levaram o projeto escola- grem seus filhos para a escola privada e os professores mais antigos,
padrão a pique. O ódio dos governadores e secretários de educação experientes, mais resistentes às políticas do governo, com melhor
de São Paulo contra os professores e o seu sindicato, a APEOESP, remuneração e estabilidade no emprego, também migrem para fora
faz sentido e é perfeitamente compreensível: os professores têm sido da rede estadual d e ensino. O sucateamento tem como parte inte-
a "pedra no meio do caminho" dos governos paulistas, o principal grante a ideologia do "choque de gestão", a "racionalização", a busca
obstáculo às medidas privatistas contra a escola pública no estado. da máxima "eficiência" na gestão dos recursos públicos, uma justifi-
O segundo método para privati?.ar o ensino básico são as cha- cativa para a redução das verbas para a educação, colocando a culpa
madas parcerias, que permitem a drt'nagem de verbas públicas da na .. ineficíência" das escolas e dos professores.
educação para empresas privadas. Por exemplo, com a municipa- A mercantilização e a privatização do ensino têm reflexo direto
lização implantada pelo Fundcf e .1profundada pelo Fundeb, 25% na gestão da escola com métodos privados e, parlkularmente, nus
dos municípios lêm parcnia!-. ~mn ,;i1,temas privados de ensino para relações capital-trabalho. Os professores pa~,a ram a s~r tratados
fornecimento de apostilas para os alunos, o que significa bilhões de com os mesmos métodos dos trnbalhadores dn iniciativa privad.1,
reais para os bolsos do Positivo, COC, Objetivo etc. é a proletarizaçào completa da categoria e a destruição da carreii·a
O governo paulista tem parcerias com vários grupos privados na docente. Estabilidade no emprego, evolução funcional por tempo de
área da educação: o grupo Abril participa do programa "Veja na Esco- serviço e titulação, hora-atividade, entre outras conquistas funcio-
la" e vende todo mês à secretaria da educação milhões de excmplare~ nais, começam a se tornar relíquias de um passado distante, algo
da revista Nova Escola, um encalhe nas bancas que só sobrevive gra- desconhecido para as novas gerações de professores que ingressa-
ças ao governo esladual; também participa, com três editoras - Ática. ra m no mercado de trabalho a partir dos anos 2000.
Scipione e a própria Editora Abril - que, pasmem. ele m esmo contro- Precarização do trabalho, remuneração flexível, fixação de me-
la, da licitação para livros didáticos e, como se não bastasse, fornece tas a serem atingidas pela escola, e outras pérolas da reestruturação
material didático para as disciplinas de apoio curricular da 3• série do produtiva do capital, passaram a fazer parte do cotidiano do traba-
ensino médio. Começamos assim a decifrar o «enigma" por trás do lho dentro da escola.
ódio com que a revista Veja vocifera quase toda semana contra a esco-
la pública e os professores estaduais: essa revista é muito bem paga por "A tecnologia do século XXI com as relações laborais
seu patrão, o governo do estado mais rico do país, para fazer o serviço do século XIX": a reestruturação produtiva na educação
sujo de caluniar e difamar os professores e seu movimento.
As parcerias não param por aí: a Fundação Roberto Marinho, No início da década de 1990 virou moda na América Latina a
Rede Globo para os íntimos, também recebe a sua parte, milhões de chamada reestruturação produtiva; na verdade desde o final da dé-
116 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 117

catia de 1970 se te11ta i111por esse processo, que ati11git1 sett auge no tição de todos contra todos, t1111 fiscaliza o 0L1tro e o outro f-iscaliza
fi11al d(>S anos 1980 - i11ício dos a11os 1990. Trata-se de au111entar a 0 um para garantir o cum1,ri1nento das n1etas, e cada 11n1 dispt1ta
exploração do trabalhador e au1ne11tar as taxas de lucro do capital 1ma recompe11sa 1naior do que o outro. O que tem levado n1uitos
n1ediante a intensificação do processo de trabalho, com un1 mesn10 trabalhadores a trabalhar doe11tes e ao aun1e11to das doe11ças profis-
trabalhador realizando ao mes1no tempo várias tarefas diferentes, ionais e ocupacio11ais, LER e DORT, que estão se11do consideradas,
que no passado perte11ciam a profissões distintas: é o trabalhador 1a Inglaterra, problemas de saúde pública, ou seja, epide111ias.
111ulti ft1ncional. Aumenta-se o ritmo de trabalho e a produtivida- Termos como toyotismo, método Ka11ban e outros incorpora-
de do trabalhador, aumentando a produção ao mesmo tempo em r am-se ao universo do trabalhador comt1n1. Esses processos de ges-
que se redt1z o número de empregos; ou seja, temos o crescimento tão do trabalho fabril não surgiran1 do nada, de forma repentina;
da produção de bens e serviços enquanto aumenta o desemprego. ão filhos do Japão no pós-gt1erra, u111a econo1nia en1 crise, com os
Segundo dados da Anfavea (associação da indústria automobilísti- lucros das grandes corporações em queda, 011de as "zaibatsu", gr,1n-
ca), em 1980 foram produzidos l.l65.174 au omóveis com 133.683 des en1presas controladas por famílias, enfrentavam um combativo
trabalhadores en1pregados na indústria automobilística, porta11to 1novimento sindical, protagonista de várias greves. Tratava-se de
un1a média de 8,7 veículos por trabalhador.; em 1996 foran1 produ- au 1nentar as taxas de lucros e, consequentemente, reton1ar o pro-
zidos 1.813.881 automóv is c.:01 · 102.G7.2, portanto uma média de cesso de acumulação de capital a taxas mais ac itáv is pe]os grandes
17,8 carros por traball1ador.. 1 ... é m exemplo bem ilustrativo do capitalistas das '<zaibatsu». Para jsso fora1111 , dotad n1 todos para
que estamos falando. a11mentar a produção sem au1~1entar o nível de emprego, fazendo
Algo 111 IJ1a11tc o or1 li 1] s t, 1cos: segundo a Febraban, na um trabalhador realizar várias tarefas simultaneamente e operar vá-
década de 1990 · n pri nei · .... ~ta e º"" a110s 2000, os lucros dos r ias máquinas ao mes1no tempo; também seriam evitados aumentos
bancos e os serviços oferecidos aos clientes não par.aram de aumen- nos salários e, obviamente, eliminados vários direitos sociais que
tar, ao passo que foram eliminados, aproximadamente, 250.000 pos- encareciam a mão-de-obra e redt1ziam os lucros; foram introduzi-
tos de trabalho. da~ a remuneração por prodt1tividade e a bonificação por 111etas e
O desemprego com at1mento da produção vem acompa11hado resultados, levando os trabalhadores a competir e11tre si no local de
da redução ou flexibilização de direitos; é o caso do banco de horas t rabalho - a base do chamado toyotismo. Esse método de gestão do
,
através do qual as empresas, além de não pagar horas extras, podem trabalho fabril foi co1nplementado co1n outra novidade importada
eliminar o descanso semanal remunerado nos fins de semana, e da dos Estados U11idos, da gestão dos supermercados: a formação de
introdução da "remuneração flexível'>, que permite a redução do po- <4:t1ase nenht1m estoqt1e para não imobilizar mt1ito capital e atender
der de compra dos salários regulares e a sua substituição por polí- a u m mercado pequeno, muito segmentado ot1 diferenciado; os es-
ticas de recompensas pecuniárias vinculadas às metas de desempe- t0ques son1ente seriam repostos à medida que os produtos fossen1
nho (bônus, participação nos lucros e resultados etc.). v.endidos. Esse é o método kanban.
Tudo isso se completa com a implantação de formas ditatoriais Para impor tais medidas foi necessário derrotar os trabalhadores
de controle do traball1ador, fiscalização permanente e aumento do e os seus si11dicatos, o que a burguesia japonesa conseguiu. A Toyota
poder dos chefes ou capatazes, para garantir que as metas sejam conseguiu derrotar um movimento grevista contra demissões em 1nas-
atingidas, e por fim uma política deliberada para romper os víncu- .. a e1n 1950; urna onda de greves nos anos 1952/1953 que atingiu várias
los de solidariedade entre os trabalhadores, instituindo uma con1pe- empresas e era contra a implantação dos métodos de racionalização
118 A prolet arização dos professorPs Das luzes da razão à ignorância universal 119

do traball10 foi derrotada - e111presas co1110 a Nissa11 apelara1n par,\ o Co111 o perdão pela co11tradição em termos, é necessário con-
lockout. Foi uma derrota l1istórica dos trabalhadores japoneses. crluir, mais uma vez, qt1e São Paulo está na vanguarda do retrocesso
A i1arti r daí, os capitalistas jap<)neses desencadearam ttma na edt1cação, como ve1n sendo desde os anos 1990.
feroz repressão ao 1novimento sindical combativo e in1pttseram Na esfera da ad1ni11istraçào e dos serviços públicos, a reestru-
uma estrutt1ra si.ndical total1nente controlada e atrelada às empre- tL1ração produtiva tem por f11n último reduzir os investimentos e
sas: os sindicatos por local de traball10, qt1e participam da gestão o número de ft111cionários, 111antendo ou an1pliando a população
das empresas num regime de colaboração, partindo do princípio atendida para permitir un1a n1aior transferência de recursos oficiais
de que cada empresa é, antes de mais nada, un1a família (Antune , à iniciativa privada, o qt1e implica, evide11temente, o oferecimento
1995). de um serviço de qualidade decrescente.
Esta é a síntese da reestruturação produtiva: repressão e coop- É exatamente essa a política que está sendo implementada em
tação das direções sindicais, flexibilização de direitos e co1npetição São Paulo pelo gover110 estadual, tendo à frente a secretaria da
e11tre os trabalhadores em cada local de trabaJho a fim de atingir as educação.
metas e obter a mell-1or bonificação_ Isso produziu no Japão um pro- Um conjt1nto de medidas., cuja essência se resume em redtizir
letariado com os piores salários e co11dições de tfabalho dos países os investimentos públicos na educação, transferir o máximo de re-
capitalistas avançados. Gt1rsos possível para o capital privado e, é lógico, aumentar a explo-
A pergunta que um pro_{ess r '11or1r1al,'faria é: e eu com isso? ração e o controle do governo, através da burocracia escolar, sobre
Ocorre que tais 1n ' t ,o <r • i nalização do processo de tra- 0 professores para garantir o cumprimento integral de 1netas pré-
balh,o e super-exploraçã d l' "'1 1 tl1ad01· nã0 e limitam à esfera da e tabelecidas pelo próprio governo, faze11do com que seja possível,
produção e d s :rv·q p '; v4àcs 1n atingemtamhém,ecomtoda através de um verdadeiro "milagre da n1ultiplicação" de recursos ou
força, os serviç s pt1bli os, \;;·- ·- - ~ t1~ çã0. ('choque de gestão», atender mais pessoas na escola com a mesma
É exatamente o qt1e está faze1ldo 0 g v ·no de ão Paulo, se g_uantidade de recursos ou 1nesmo com um inv.estimento menor.
tornando um exemplo aos demais govern s taduais e um pre- Isso tudo implica reduzir a qualidade dos serviços educacionais
cedente perigoso para os professores do Bra il. O primeiro passo prestados à população, limitando a for111ação escolar a u1n conjun-
para imposição desses "novos» métodos de gestão, tal como no Ja .. to de habilidades relacionadas a ler e escrever e transformando, de
pão, é destruir as organizações sindicais do priofessorado, evitan- ,rez, a escola num lugar para formar mão-de-obra barata ou exér-
do qualquer forma de resistência organizada à racionalização do Gito industrial de reserva a serviço do capital. A implementação de
trabalho. tal política passa, primeiramente, por disciplinar a n1ão-de-obra, os
Isso explica a cruzada fundamentalista, a guerra santa, a cam- professores, e reduzir ou flexibilizar direitos.
panha de difamação e calúnias, contra os professores e suas orga- A flexibilização vem, principaln1ente, con1 o fim do reajuste li-
nizações sindicais movida pelo governo pau.lista, principalmente, e 11ear de salários. As escolas e os professores serão avaliados e cobra-
pela grande imprensa, que é sua sócia nessa empreitada devido aos d0s por metas fixadas pela secretaria da educação; as equipes esco-
negócios sujos, ou muito mal explicados, de convênios e parcerias, lares serão recompensadas ou sancionadas monetaria1nente através
qt1e permitem, como já dissemos anteriormente, a transferência de de um «bônus-resultado", o que significa que cada escola e cada pro-
recursos públicos às etnpresas privadas - muitas delas ligadas, de fessor deverão "buscar'' sua própria remuneração> todos competi11-
uma forma ou de outra, a esses órgãos de imprensa. d0 entre si pelo maior "bônus». É u1na tentativa de romper os laços
120 A proletarização dos professores Das f uzes da razão à ignorância universal 121

de solidaried,1de e11tre <>s que traball1a11111a escola, e au111e11tar o po- bas para a edt1cação, que a política educacional não é o problen1a, o
der dos chefes. Chefes agora transformatlos em gestores, qt1e terão proble11)a é a qualidac.ie do professor e o aproveitamento dos recur-
poder para avaliar o professor e detern1inar seu ritmo de trabalho, as. egu11do ela, se a repeté11cia e a evasão no e11sino fundamental
con10 gestores do currículo e dos próprios professore . É a aplicação os e111 abolidas, as verba disponíveis, sem nenhum novo investi-
da velha e surrada política romana de" dividir para reinar,, - "divide me11to, auinentariam em 25%, pern1iti11do, inclt1sive, reajustar os
. n
et rn1pera . al,irios dos professores.
A política de controle e divisão dos professores pelo gover110 ten1 As escolas disputarão entre si o 111e) hor bônus, os professores, in-
seu ponto culminante com a criação do bônus-resultado e do IDESP. dividual1nente e de cada segn1ento no i11terior de cada e cola, também
O governo estadual, seguindo o PDE do governo federal, crio11 o se dividirão na busca do n1elhor resuJtado para ter a mell1or bonifica-
IDESP, Índice de desenvolvime11to da Educação Básica do Estado de ção pcJssível. As metas pré-fixadas e vinculadoras do salário flexível
~ .
São Paulo; tan1bém estabeleceu o IDESP por escola e, no interior de sao un1 111ecan1smo para n1anter e aprofundar a pron1oção automáti-
cada escola, criou o IDESP por nível d.e ensino, ciclo Ido ensino fun- ca, co11tando agora com a cumplicidade dos professores, e legitimadas
da mental, ciclo II do ensino fundamental e en it10 médio. Portanto, por um processo de avaliação institucional feito pelo próp1io governo,
cada escola e cada nível de ensi110 t rão set:ts IDESP calculados a11u- o já mencio11ado SARESP, baseado 11a leitura e escrita.
almente e terão metas de evolu ã d ell respectivos í11dices esta- A flexibilização ou redução de direitos é irmã sia1nesa da dita-
belecidas pela secretaria dct e lt1 a~~ ; b0nu -resultado será pago dura no processo de trabalho, a i1nposição do currículo e das ati -
somente àqueles que ati11gi · 11 u \ up rare1n as metas pré-fixadas. vidades, o fortalecimento da autoridade dos ((chefes», e tudo isso se
O IDESP é un1 índic tril,taí(l a cacla esG0la e a cada nível de completa com a perseguição aos "faltosos,, através da dimint1ição
ensino no interior d la, qu s ·1 e11tre z ro (quando nenhuma do "bônus» para eles e para suas escolas e da repressão do governo;
das n1etas pré-fixada é atingida) e u111 (qua11do todas as metas são o DPME (Departamento de Perícias Médicas do Estado) e o IAMS-
atingidas), tendo como quesitos funda1nentais o desempenho dos PE (I11stituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual)
alunos no SARESP - prova que avalia os alunos da rede pública es- estão sendo transferidos para a secretaria de gestão, e os peritos 1né-
tadual, que co11ta a partir de 2009 com a adesão da rede privada de dicos serão investigados e afastado do t!argo ci1so concedam mais
6
ensino - e o índice de aprovação em cada série da escola. licenças que a ''média,, aceitável pelo gover·no. Os pr0fessores estão
A determinação das metas de cada escola pela secretaria da edu- sendo obrigados a trabalhar doe11tes, devido à 00mpetição social-
cação reforça a centralização e o autoritarismo, alén1 de abstrair a darwinista pelo melhor «bônus" ou pela repressão; com o governo
falta de verbas para a educação e as péssimas condições de trabalho instituindo, por decreto, a avaliação de desempenho dos ingressan-
dos professores; se o ensino vai mal, de agora em diante é culpa da tes para fins de demissão, 11a qual o item "faltas" tem bastante peso.
escola e dos docentes. O governo e sua política educacional anti- Além disso, o governo limitou as faltas médicas a seis por ano 7, isto
social simplesmente não aparecem no final da contas. é, os professores somente poderão ficar doentes seis dias no ano -
Maria Helena Guin1arães, secretária da educação entre 2007 e evidentemente, eles precisam apenas combinar com as doenças para
início de 2009, chegou a afirmar que não são necessárias mais ver- que nada dê errado.

6 Lei Complementar 1078/2008 e Resolução Conjunta Casa Civil, Secretarias da 7 Decreto 52344/2007 e Resolução Secretaria da Educação 66/2008; Lei Com-
Fazenda e Gestão 1/2009. plementar 1041 /2008.
122 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 123

Essas 1nedidas fazem com que os professores sejam obrigados a mental e 24 no Ensino Médio, sendo que em países mais desenvol-
abrir 111ão de seus direitos e co11quistas sociais. Que1n exercer o « di- vidos como uíça e Dinamarca a n1édia é de 20 alunos por turma;
reito,, de ficar doente poderá fazê -lo, 111as 11ão in1puneme11le: todas na Finlândia, co11siderado o 1nelhor ensi110 do mundo, a média é de
as faltas e licenças de toda natureza e até a licença-prên1io - con- 1nenos de 15 alunos por sala de aula. No Brasil as classes são gigan-
cessão de três meses de afastame11to remunerado do tr,1balho para tescas; no estado de São Paulo, para se ter t1ma ideia do despautério,
quem for frequente ao longo de cinco anos - são descontadas do a 1nédias são de 34,3 alunos por classe 110 E11sino Fundamental e
bônus-resultado. A evolução na carreira por titulação e ten1po de 37,6 alt1nos por turma no Ensino Médio. 9
serviço desaparece com as várias gratificações fixas nos salários. As Nesta lógica as pessoas começam a se tornar coisas, capital hu-
mesmas gratificações acabam com a paridade entre ativos e inati- mano; aluno retido 11a série é capital constante fixo. Explico-me:
vos, outro "direito" flexibilizado. Assim é imposta a remuneração para Marx, o capital pode ser de dois tipos. O primeiro é o capital
flexível, por eficiência e n1etas na educação. co11stante (meios de produção em geral), que é a parte do capital que
O professor, como operário do ensino, deverá ser também n1ul- não agrega valor novo à 1nercad0Fia, mas o repassa para os produtos
tifuncional, ou seja, realizar ao n1 smo tempo v.árías tarefas, relati- aos poucos, através de un1a a 1n0rtiza9ã0 ao longo da vida í1til de
vas a diferentes profissões, e ate11dc · a0 maioii número possível de uma máqt1ina> por exemplo. Já o Gapital variável é aquele que cor-
alunos. É a «pedagogia difer 110J, a": fornecer formação individua - responde ao trabàlho huma110, CJLl ·odaz mais-valor) a mais-valia,
lizada, a la carte - wn car<láJ~i >d · ~itt1ações de aprendizagem - aos isto é, produz o valor corrcsp 11 11 a alár:0 . 0 traball1ador e o
alunos, cada um deYci1d tei 1 aessaria1nente um percurso escolar valor que será apropriado p la I ss â > • t:>itali~l '"'. 1nedida, por
eficiente e i11div.i iu ] i~,1cl · , 1 l at11da a0 infeliz docente a rea- exen1plo, que uma máqui11a vai r . ~1 -- u Vil~ r : oisas das
lização de vários t .tros ;pa1 i. i1~1t ltanea n1ente para intervir a fim quais ela é parte da fabricação, '""'r-..,._1 vf. r e t1 1.. -ir ul ã ,ju11ta-
l

de assegurar a e fiei r1cia da x di~ag '11 , t11na yez q11e o profes- mente com as coisas fabricada, , tor11 11d0- u1 1a 1, art d< l1arnaâo
sor é o único responsável pela aprendizage11, de todos os alunos, capital circulante; o valor 11ão repassado permanece capital fixo, a
independente das suas condições de trabalho - tratar da afetividade parte. do capital consta11te cuj0 v;alor 11ã0 foi i11c0rporado às mer-
dos alunos, alfabetizá-los quando for o caso, dominar libras e braile, cadorias e não entrou na circulação; quanto mais rápido o capital
além de ser capaz de intervir clinicamente - isso mesmo, diagnosti- constante se tornar capital circulante, tnelhor para os 11osso capi-
car e tratar certas deficiências nos pimpolhos, fazer papel de médico talistas (Marx, 1999). Por isso as empresas operam com un1 nível
como propõe Phillippi Perrenoud com a maior cara de pau, deste e 1nínimo de estoque, vide o método Kanban.
de outros mundos (Perrenoud, 2000 e 2000b). Moral da história: aluno retido é estoque, capital imobilizado,
Cabe ao professor, como já foi dito, atender, física ou virtualmen- capital fixo, gasto que não pode ser amortizado; por isso a aprovação
te, o maior número possível de alunos num mesmo intervalo de tem- at1tomática, reclassificação e correção de fluxo, permitindo que alu-
po. Isso reforça o ensino à distância e a progressão continuada, que os nos eventualmente retidos possam ascender à série correspondente
professores, corretamente, chamam de aprovação automática. 8 à sua idade, «pulando" anos de estudo, dando de uma só vez um
Não esquecendo também da superlotação das turmas; nos países '(salto quântico" de várias séries ou "galgando vários parâmetros»,
da OCDE as médias são de 22 alunos por c]asse no Ensino Funda- cotno disse o ex-técnico da seleção brasileira Sebastião Lazaro11i, co-

8 LDB, Lei Federal 9394/1996. 9 Conforme dados do MEC/ INEP.


124 A proletarização dos professores Das luzes da razão à 1gnor~ncia universal 125

nhecido pelo "lazaronêsn - t1m li11gL1,1jar en1polado, i11i11teligível - e pelo canal de tevê a cabo HBO. "A tec11ologia do século XXI co111 as
11or ser u111 dt1s fundadores da «era Du11ga" 110 futebol brasileiro) relações laborais do sécttlo XIX» é a st1perexploração do trabalhador
caracterizada por ttn1 f t1tebol cl1eio de volantes) feio e retranqueiro. através da tec11ologia mais sofisticada, dos processos 111ais eficientes
A ditadura no trabalho também é exercida através da imposição de racionalização do traball10, a serviço de uma nova servidão.
do c11rríct1lo, através de grade ct1rricular única pc:1ra todo o estado As co11seqt1ências de tal reengenharia já se fazen1 11otar 11as con-
fixada pela secretaria da edticação e dos co11teúdos das disciplinas dições de vida e trabalho dos professores, na qualidade decrescente
com os "cadernos)) do aluno e do professor todos centrados nas c.io ensino e na relação dos alu110s com a escola e as aprendizagens.
"con1petê11cias de ler e escrever,,; c0mpetências essas que o gover-
no aferirá através do SARESP - avaliação institucional toda voltada "Só o trabalho liberta"?
para a leitura e escrita, como já foi dito.
Com essas n1edidas, além de segi1ir o receitt1ário do governo fe- A frase acima estava escrita no portão de 11trad11 do campo de
deral ao aplicar o PDE em São Paulo, o governo estadual pretende concentração nazista de Auschwjtz, um dos "fc 11es'' ô.o Hol0causto,
controlar o processo de trabalho Glo professor, com o currículo {1ni- do qual a maioria dos q,u e entravam ja111ai s~lía1n,viv0s.
co, a avaliação de dese1npe11ho, o forta leGin1e1:ito do poder: dos che- O trabalho, em particular o traba1l10 d0ca11te, de lidar co1n o
fes. Prete11de oferecer uma e e:olaviza ão _. igeirada aos alunos-tra- conhecin1e11to, a arte e a cu]tt1ra u11ivefsai ; qaa êieveria ser: pela sua
ball1adores ou filhos deles; redttzi 011 ~cxibilizar direitos e repassar própria natureza um ato d€ lib~re:la e criativa do Homem, sua at1-
verbas públicas pa;ra ,1s e1J1pr ~ ·1lriv.a a , <!orno já dissemos antes. torrealização con10 ser hun1a110, torRa-se sua prisão, a 1nortificação
A pa1·te diversificada do Gt1r ~í 11) da l r jra série do ensino médio do Hor11em.
está sendo tercei riz d~, l ar~, gr~u11d s· n111r St s como a Rede Globo/ Os professores, na sua grancle maioria, mesmo os qt1e ainda
Fundação Roberto Ma~i1ill10; reVii tas com ·Vi'Ja teGebem verbas pú- conseguem escapar da violênci no local de trabalho e lecio11ar, não
blicas e isenções fisc::ais por: pr,ogra1nas como "Veja 1ia EsGola)). sentem prazer no trabalho; da~ aulas é tim fardo, um peso cada vez
Isso, mais uma vez, explica porque esses «veículos de imprensa e mais difícil de ser carregado; 711aitos se sentem como quem vive t1ma
comunicação» se juntam ao governo Serra numa eampanha sórdida per1nanente e cotidiana maldição de Sísifo - aquele personagem da
contra o ensino e a escola públicos. mitologia grega que era obrigado a carregar u1na pedra mo11tanha
Portanto, não se trata de uma nova política educacional, mas sim acima enquanto a mesma, obeéleGendo à lei da gravidade, insistia em
do aprofundamento de uma política já em curso. rolar montanha abaixo.
É a versão repaginada da política educacional de n1ais de treze A liberdade e a criatividade foram st1bstituídas pelas atividades
anos de governos do PSDB, agora reforçada pelo PDE do gover110 pré-fabricadas, impostas de cima para baixo, pela fiscalização e con-
federal, de promoção automática, mu11icipalização do ensino, su- trole dos chefes, pela rotina burocrática de cumprir ordens e entre-
perlotação e fechamento de salas de aula, abandono das escolas etc., gar papéis e relatórios de pouca ou nenhuma utilidade; a «liberdade
qt1e a população, os alunos e os profissionais do ensino tanto repu- de ensinar» dos professores tomou-se uma das grandes ini1nigas a
diaram nos últimos anos. serem combatidas pelo gover110, em oposição ao "direito de apren-
O título dessa seção é a síntese da reestruturação produtiva na edu- der" dos alunos, jogando uns contra os outros no cotidiano escolar.
cação; é a frase de um personagem de tima mini-série, «Capadócia'\ A escola tornou-se palco de confrontos permane11tes entre alu-
que trata da privatização dos presídios no México, exibida no Brasil nos, direção e professores, todos brigando e11tre si, enquanto o go-
126 A proletanzação dos professores Das luzes da razão à 1gnorancia universal 127

vemo, com sua política de banditismo social, de "despotismo escla- da dignídade do Homem, pela nossa re-humanízaçâo, pelo nosso
recido" contra a escola pública, procura seguir incólume. Professores reencontro com o nosso processo de trabalho, resgatando a criati -
se enfrentam com alunos e com a direção das escolas, e até entre si; vidade e o prazer do trabalho docente; é o nosso reencontro com o
os alunos brigam com a direção, com os professores, e também entre produto do nosso trabalho, com o que há de mais sublime na cria -
si; as direções escolares, cada vez mais abertamente e sem pudor, tividade humana, a arte e a ciência: inseparável, portanto, da luta
assumem o papel de prebostes do governo de turno. pela construção de uma ordem social mais justa, sem explorados
Como se pode ver, não sobra muito tempo para socializar o co- e exploradores.
nhecimento; estão todos muito ocupados dentro da escola.
No capitalismo, independente da atividade, o trabalho não traz·
a dignidade e o enobrecimento do Homem, como acreditava Calvi- As mais belas mentiras sobre
no; essa dura realidade é a que os professores estão vivendo na carne. a educação e o encontro com a realidade.
Isso faz com que muitos docentes ..joguem a toalha", se deem por
vencidos, dando aulas burocraticamente; ou seja, sem nenhum pra- "Apesar disso, a ficção científica ,lt· lwj1•fn·1tttt·11tcmente
zer. A violência cotidiana no ambiente escolar, física e simbólica, os é o fato cíentlfirn de ;.111111111,d. Scgunimente,
i 1t1le a pena m1·cst1.~m· 11 Fisic11 wlm: 11 c1u,1'
derrotou. Muitos somalizam a crise estrutural da escola e adoecem.
Jornc1das 11as Estrdas St' 11pói11 . lfr~t, lngir 1ws!it1 atenção
Os professores e a escola púhlica no estado mais rico do país aos assuntos terrestres seria lit11ift1r a t·s;,íritv lwmano"
estão doentes. Segundo o jornal folha de S. Paulo, mais de 70% das (Stt'phcn 11.,wkíng; in Krnuss, 1996)
escolas não têm l.1borntc'irio-. de ciências, a maioria não possui bi-
blioteca e mais de ~0% dos professores já presenciaram algum caso O mito, nas sociedades ditas primitivas ou tribais, tem uma fun-
de violência em seu local de trabalho. Pesquisa feita pelo DIEESE. a ção importante de socializar os indivíduos, incutir em cada um as
pedido da APEOESP em 2003, aponta dados semelhantes: mais de regras de convívio social e passá-las adiante pela tradição, geralmen-
74% dos professores dão aulas em salas superlotadas, mais de 40% te oral. Mas na sociedade burguesa a existênda de mito~ se confun-
dos docentes são obrigados a ter outro emprego para completar o de com as ideias da dominação da burguesia sohrc as demais classes
orçamento doméstico; 45% da categoria sofre de estresse e 24% sofre da sociedade, perdendo completamente sua função social original;
de depressão, ambos diagnosticados clinicamente (DIEESE/A PEO- são parte da ideologia e, sob a forma de palavras de ordem repetidas
ESP, divulgada em 2006). à exaustão, se integram ao senso comum, tornando-se a maneira
Esse é o resultado direto de uma política delíberada e conscien- "natural" de ver as coisas.
te do governo estadual contra a escola pública e da reestruturação Dessa forma os fundamentalistas do mercado, ou neoliberais,
produtiva na educação; as escolas se tornaram fábricas, campos de transformaram seus pontos de vista e interesses em palavras de or-
concentração, onde a liberdade e as luzes da razão, da cultura, da dem, verdadeiros mantras. Alguns desses mantras dizem respeito
arte e do conhecimento dão lugar ao obscurantismo das ditaduras à educação: a educação seria fator da ascensão social pelo trabalho,
do governo e dos chefetes de plantão. garantindo emprego a todos e reduzindo as desigualdades, qualifi-
A luta cm detesa da escola pública laica, estatal e gratuita, cando o trabalhador e, logicamente, garantindo o acesso à cidadania
acessível a todos, não é apenas uma batalha em defesa de um di- universal ou planetária, como afirmou uma dessas "penas de alu-
reito social fundamental, é um combate sem tréguas pela defesa guel" a serviço do capital (Morin, 2005).
128 A proletarizaçào dos professores Das luzes da razao à ignorância universal 129

Vamos aos fatos e desmontar, um a um. esse~ sofisma!>. condição sócio-econômica e sair da vala comum da marginalidade
Primeiro sobre o acesso ao trabalho, ou emprego formal. Segun- social". Mais um sofisma, no sentido grego do termo - um argu -
do a OIT (Organização Internacional do Trabalho), mais de 180 mi- mento equivocado que não resiste à prova dos fatos.
lhões de pessoas no mundo estão em situação de desemprego aberto O governo federal, juntamente com estados e municípios, co-
(procuram emprego e não encontram), das quais mais de 1/3 são memora o índice de quase 100% da população em idade es~olar.
jovens de 15 a 24 ano:> de idade; além disso, mais dt• 1/3 da mão- entre 6 e 14 anos, frequentando a escola e a diminuição da re-
de-obra do planeta está em condição de sub-emprego ou trabalho petência e da evasão escolar - logicamente à custa da aprovação
precário. No Brasil, segundo o IBGE. aproximadamente 50% dos automática, que se tornou regra em quase todos os sistemas de
trabalhadores, na sua maioria jovens. não têm direitos sociais. estão ensino do Brasil. No estado mais rico do país. São Paulo, meta-
em regime de trabalho precário. No Brasil, o índice de desempre- de dos alunos que concluem o Ensino Médio não dominam os
go é três wzes maior entre os jovens de 15 a 24 anos do que entre conteúdos básicos de ciências e matemática e mais de 40% não
os demais trabalhadores; mais da metade dos jovens são desempre- dominam os conteúdos de português (de acordo com o jornal Fo-
gados (dados do site Folha Online e da OJT, ambos referentes ao lha de Stfo Paulo de meados de abril de 2009). Embora o governo
ano de 2008). Trabalhamos com dados anteriores à crise econômica federal grite a plenos pulmões para todos ouvirem e repetirem
mundial que começou no final de 2008 e até agora não dá sinais de que o analfabetismo praticamente acabou, os fatos - mais uma
acabar, o que significa que a situação real entre os jovens já deve ser vez os fatos - insistem no contrário: segundo o IBOPE, instituto
bem pior. privado de pesquisa, apenas 28% da população entre IS e 64 anos
Desmascarado o mito da empr<.>gahilidade, vamos seguir nosso pode ser considerada alfabetizada no Brasil. o restante, mais de
périplo e encarar n segundo mito, o da redução das desigualdades 70%, oscila entre a condição de ágrafos (não sabem ler e escrever)
pelo emprego formal. aquele que os fatos demonstram ser algo ina- e de analfabetos funcionais (não são capazes de ler/interpretar e
tingível para a maioria dos nossos jovens. escrever corretamente um texto de 20 linhas). Sem falar no pífio
Segundo análise da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem desempenho do Brasil no PISA da OCDE; o que faltou dizer é que
de Domicílios) de 2007, feita pelo IPEA, órgão vinculado ao governo o PISA avalia tanto os estudantes das escolas públicas como das
federal, portanto "insuspeito", o Brasil é um dos países mais desi- escolas privadas.
guais do mundo. A parcela da renda nacional apropriada pelos 1% Ou seja, a má qualidade da educação e sua decadência não se
mais ricos é semelhante à fatia que cabe aos 50% ma is pobres da refere apenas à escola pública mas também ao tão decantado e devi-
população; os 10% mais ricos abocanham mais de 40% da renda na- damente subsidiado pelo poder público sistema privado de ensino;
cional enquanto a metade mais pobre da população fica com apenas como já dissemos anteriormente, a decadência da educação anda de
15%; dos 126 países no mundo que têm informações sobre distribui- braços dados com sua mercantilização e privatização.
ção de renda, o Brasil supera apenas cinco; mais de 40% da popula- Mas a decadência da educação de massas não é um fenômeno
ção brasileira pode ser considerada pobre ou miserável. típico do Brasil. uma invenção tupiniquim; ela é parte da deca-
Se o emprego é cada vez mais escasso e a desigualdede social cada dência global do capitalismo. A lógica moderna nos ensina que
vez maior, os seguidores-discípulos do deus-mercado podem ainda o todo e as partes se interrelacíonam: portanto, a decadência do
insistir: "mas é possível com uma boa educação o jovem sobreviver primeiro implica, necessariamente, a decadência de suas partes
à 'seleção natural', se qualificar e ter um emprego, melhorando sua constitutivas.
130 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignor~ncia universal 131

O que existe é uma dccadéncia global da sociedade de consu- ta, os Estados Unidos. Os EUA tem um dos três maiores gastos por
mo capitalista que tem seus reflexos na cultura e na educação. Na estudante nos Ensinos Fundamental e Médio do planeta, beirando
sua fase dvilizadora o capital elevou a padrões nunca vistos o nível a U$ 10 mil por aluno-ano; dl"lS 5 milhões de cientistas do mundo,
cientifico e artístico da maioria dos povos da terra, particularmen- 20% ou l milhão estão na terra do Tio Sam, e foi apenas o 26" colo-
te dos povos da Europa Ocidental e dos Esta<lm, Unidos e Canadá. rndo no PISA /2006 entre 'i7 pa í~es: bem abaixo dos demais países de
Os séculos XVIII e XIX viram o florescer da química e da biologia primeiro mundo (Kerstenetzky e Alvarenga, 2009).
como ciências. nossa capacidade de compreender o mundo atingiu Mas ainda falta o pior: quase 50% dos estudantcl> de Ensino
patamares inimagináveis, mm a teoria da evolução de Darwin e a Médio daquele país acham que o homem foi contemporâneo dos
descoberta da código genético, por exemplo; as artes floresceram e dinossauros; em pesquisas feitas com profissionais de nível uni-
se massi ficaram graças aos avanços tecnológicos e à criação de um versitário o descalabro foi maior: entre 24 físicos, apenas três con-
verdadeiro mercado de artes, tornando a arte produto de consu- seguiram diferenciar DNA de RNA; entre 23 formandos na presti-
mo de masas, pelo menos nos centros do capitalismo e em alguns giosa Universidade de Harvard em 1987, apenas dois conseguiram
países da periferia; sem falar no surgimento da arte de vanguarda, explicar por que faz mais calor no verão do que no inverno e meta-
das vanguardas artísticas, movimentos de ponta sempre buscando de dos alunos da Universidade George Mason, exceto os calouros,
inovar, seja nos temas seja na forma ou na estética, produto de uma não conseguiu deferenciar um átomo de uma molécula (Hazen e
constante inquietação cultural. O início do século XX viu as revo- Trefil, 1996).
luções da teoria da relativiJa<lc e da física quântica, juntamente O personagem Homer Simpson, da série de tevê "Os Simpsons", é
com a geração de cientistas mais brilhante que o mundo conheceu um retrato tragicômico do nível cultural do cidadão ianque médio.
nas figuras de Einstein. Nids Hohr. Heisenberg, entre outros, que O que explica tamanho investimento médio por estudante, uma
revolucionaram nossa visão do mundo e do universo. enorme concentração de cérebros em pesquisa de ponta e resultados
Mas o caráter predatório do capitnlismo e o início de sua de- tão pífios?
cadência .com a Primeira Guerra Mundial se fizeram notar. Ateo- É a dura realidade dos fatos: a ideologia da qualificação profis-
ría da evolução gerou seu oposto, o darwinismo social, o "racismo sional pela educação é só uma ideologia, uma mentira. O capitalis-
científico" para justificar a dominação dos povos da periferia pelos mo, na sua etapa imperialista-monopolista, a rigor desde o adven-
centros imperialistas; a genética serviu de " inspiração" para a euge- to da indústria moderna, não qualifica os trabalhadores como um
nia. a pseudo-ciência do nazismo, mas que ~urgiu de fato nos EUA. todo: o que existe é uma massa cada vez maior de trabalhadores com
Toda a capacidade teórica da grande geração de cientistas do início formação profissional rudimentar em oposição a um número cada
do século XX foi sintetizada nas bombas atômicas de Hiroshima e vez menor de profissionais altamente qualificados, pesquisadores e
Nagasaki; de tanto serem transformadas em negócio, as artes entra- gestores/planificadores. Marx já havia previsto isso no século XIX
ram num período de estagnação e hoje estão em plena decadência. ao dizer "Não desejamos destacar a absurda contradição segun-
cuja expressão mais evidente é o conformismo cultural, a falta de do a qual a indústria moderna substitui o trabalho complexo pelo
ousadia e o fim dos movimentos de vanguarda (Hobsbawm; 1979, simples, o qual não necessita de nenhuma formação; não queremos
1982, 1989 e 1995). assinalar que colocou, cada vez mais, crianças atrás das máquinas,
Mas vamos diretamente ao "centro", como faziam os hunos na convertendo-as em fonte de benefícios, tanto para a burguesia como
Antiguidade, diretamente ao "núcleo duro" da economia capitalis- para seus pais (Marx e Engels, 1983).
132 A proletanzação dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 133

Estudos feitos por Harry Braverman sobre a degradação do tra- 150 melhores escolas privadas do Brasil, ou seja, comparando as
balho no século XX comprovaram, com o aval de pesquisas feitas na escolas dl' elite Je cada um dos dois si:,;temas rivais, os resultados
Universidade de Yale, que 65% dos trabalhadores da indústria au- surpreendem: as escolas públicas de elite são melhores que ases-
tomobilístka dos Estados Unidos precisavam de menos de um mês colas privadas de elite 1°. A grande maioria da população tem uma
para se qualíficar, isso na década de 1970, bem antes da automação escola pública aligeirada e de péssima qualidade e uma pequena
e da robotizaçâo virarem moda (Braverman, 1987). dite, que pode preparar-se para os exames de seleção, frequenta
Eric Hobsbawm, ao comentar o impacto dos avanços tecnoló- uma escola püblica de ótima qualidade; é lógico que o governo pre-
gicos sobre a vida das pessoas no século XX, foi mais longe: "(...) tende\ acabar com esta festa - em última instância, como já vimos,
novos avanços científicos foram se traduzindo, em espaços de tem- o plano da burguesia nacional e de seus representantes no governo
po cada vez menores, numa tecnologia que não exigia qualquer é a privat izaçào total do ensino, é transformar a educação em mer-
compreensão dos usuários finais. O resultado ideal era um conjun- cadoria como prescreve a OMC; quem quiser ensino de qualidade
to de botões ou teclado inteiramente à prova de erro, que requeria que pague por ele. Mesmo assim esses resultados confirmam nossa
apenas apertar-se no lugar certo para ativar um procedimento que lese.
se movimentava, se corrigia e .•tté onde possível, tomava decisões, Justamente pelo fato de não ser uma necessida<le para o capital
sem exigir maiores contríbui\úcs das qualificações e inteligên- e de ser, na prática, um fardo, um peso morto que con:,ome recur-
cia limitadas e inconfi..\wis do ser humano médio". E completou sosdos quais os capitalistas querem se apropriar, a eduúlÇào passa a
seu ponto de vista para nào ddxar dúvidas: "(...) esses milagres de sofrer ataques permanentes dos governos burgueses, principalmen-
tecnologia científica de íinl' Jo i.tkulo XX niio exigiam mais dos te na periferia do capitalismo.
operários que o rccunhcdmcnto dos números cardinais, um míni- No Brasil, o governo federal ressuscitou o projeto de reforma do
mo de atenção e uma capacidade um tanto maior de concentrada Ensino Médio do governo tucano de FHC, com a finalidade de re-
tolerância e tédio. Não exigia sequer alfabetização." (Hobsbawm, duzir a carga horária e o custo por aluno: as atuais doze disciplinas
1995). do currículo seriam fundidas em quatro grandes áreas, com ênfase
Voltando à nossa via sacra pelos sofismas sobre a educação na em português e matemática e as outras duas áreas seriam humanas,
decadência do capitalismo: a educação não garante o emprego, não com a volta dos estudos sociais dos tempos da ditadura militar, e
reduz as desigualdades e não qualifica a maioria dos trabalhado- ciências exatas. Em São Paulo, nas redes estadual e municipal, todo
res, sua decadência é parte da decadência dessa sociedade, é parte o ensino se limita a ensinar as "competências de leitura e escrita''; ou
do embotamento e da desumanização do Homem sob o jugo do seja, a alfabetizar os alunos.
capita l. O máximo que existe é uma polarização cada vez maior Para cada classe social um tipo de educação diferente, um tipo
entre uma minoria altamente qualificada a serviço dos capitalistas de escola; é o que um dos ideólogos oficiais chamou de "regulação
e a grande massa da população com uma formação cada vez mais das aprendizagens", para cada um, um ensino de acordo com as
aligeirada e superficial. suas expectativas na vida (Perrenoud, 1999). Não é preciso ~nsi-
No Brasil isso se expressa, por exemplo, nos vários ENEM nar arte, ciência e cultura geral para quem vai compor o exército
(Exame Nacional do En~ino Médio). É verdade que as piores es- industrial de reserva do capital, para os que serão mão-de-obra
colas nesse exame são públicas, mas o oposto não é verdadeiro: se
tomarmos as 150 melhores escolas públicas e compará-las com as IU MEC/INEP <lado!> do ENEM/2008.
1134 A proletanzação dos professores Das luzes da razão à ignorâncía universal 135

barata; tais preciosidades ficam para os donos do capital e seus Os bons ventos somente sopram
herdeiiros e para, na me.lhor das hipóteses, os futuros gestores e para aquele que sabe onde quer chegar
pesquisadores.
Por fim, finalmente, o último argumento falacioso. Se a ju- "(...) a 'realização' do Homem é um fenômeno de totalidade,
ventude· não tem empreg.o pela educação, não se qualifica e as permanente, sempre em curso, o todo de um processo em marcha,
e 11,io admite um instante que o condense e lhe marqut o termo inicial."
des~gualdades sociais continuam alarmantes, resta um consolo: a
(Alvaro Vieira pinto, Cietrcin I! Existência)
cidadania . A escola, formará o cidadão do novo mHênio, sabendo
que mais de 90% da população em idade escolar está matfículada "(. ..) deixa de ser um produzido puro para se tornar um produzido
em estabelecírnentos de ensino. Para não me estender muito, va- produtor do que o pro,iuz."
mos aos fatos: nossos jovens sào as maiores vítimas da violência (idem)

urbana, mais de 50% das vítimas de horniddios são pessoas entre


"(... ) ,w buscar c1 harmonia da vida, nunca se deve esquecer que,
zero e 29 anos, quase sempre não-brancos e moradores das peri-
no drama ,la existênd,1, nós mesmos somos,
ferias pobres dos médios e grandes centros urbanos, relembran- a 11111 tempo. /.ltores e espectadores."
do que o desemprego e o trabalho precário atingem em cheio a (Níels Bohr, Física At3míca e Cottliccimtnto Hum11110)
juventude.
Se, como, se diz por aí, ua juventude é o futuro da nação", es- Os professores e a juventude vivem uma ,risc de projeto, de
tamos matando nosso futuro, .t ''nação" está assassinando a ga- perspectiva. Os mestres, todos os dias, nu seu trabalho cotidiano,
linha dos ovos de ouro; o upih1Usmo não garante o futuro de sentem a contradição entre a "missão'' que a sociedade lhes impõe e
ninguém. o seu resultado; educados na tradição liberal-burguesa tle que pos-
A escota, na decadênda final do capitalismo, só tem a função de suem uma missão de reformar o mundo a partir <lo ddadão, da for-
"abrigar" a juventude: é o único lugar do jovem na sociedade, um mação do homem-novo. sentem-se como sacerdotes sacrílegos ou
grande depósito de gente, no mâximo o.ma babá coletí:va. Já náo há hereges, não conseguem mais caregar seu fardo; a apatia, o desin-
mais razão ou sentido para o professor ensinar e o jovem aprender; teresse e todas as formas de violência, físka e simbólica, praticadas
educação em demasia, ensino al,ém do estritamente 1,)ecessário, na pelos alunos no ambiente escolar levam muitos a pensar em desistir
lógica do capital. é"(...) um fator importante para explicar a insatis- da "missão divina".
fação entre os trabalhadores em muitas categorias ocupacionais( ...)" Os professores devem entender que o projeto que os educou não
(Braverman, 1987). existe mais, se é que um dia existiu de fato; a fase revolucionária da
Isso explica as: políticas de formação, aligeirada para os alunos burguesia enquanto classe de há muito se foi, a educação e o ensino
proposta pelo governo; e também para os profe.ssores, corno vimos não podem e não devem cumprir o papel de antes.
no ensaio da professora Áurea nesse livro. Os alunos, diante da contradição evidente entre a teoria e a práti-
Após tudo isso, ficam as perguntas que não querem calar. por que ca, entre o que os governos e seus prebostes falam e o que realmente
os professores devem ensinar? Por que os alunos devem estudar? fazem na área da educação, entre as promessas de um futuro radian-
Na realidade, alunos e professores dentro das escolas vivem U!t:lila te via escola e a dura realidade, se rebelam negando o conhecimento
crise de perspectiva, de projeto estratégico. e a autoridade dos mestres, que eles muitas vezes identificam como
É do que trataremos na parte final desse ensaio. o braço do Estado opressor. Isso faz com que. no cotidiano escolar,
136 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 137

profesores e alunos apareça1n em cam110s oposto , co1n i.nteresses nos e parlamentos corruptos, devem tirar t1rna grande lição de anos
antagô11icos, se er1carem como inimigos. (ver e11saio da professora e a110s de luta sindical pelo Brasil afora: a deD sa da escola pública e
Áurea Costa). gratt1ita, laica e de qualidade para todos implica a t1nidade com pais
O primeiro passo para respondern,os às perguntas - por que e11- e alunos e un1a lt1ta pela transformação da sociedade.
sinar e por que aprender - da sessão anterior é professores e alunos Mas 1nudar o 111undo, como já dissemos, implica mudar a nós
se vere1n co1no aliados, como representando os n1esmos interesses. mesmos. Mesmo sendo portadores de um projeto de emancipação
Os professores são os guardiães de um direito u11iversal: o acesso ao humana, 11ós vive111os imersos nessa sociedade decadente; acaba-
conhecimento e a escola pública - os alt1r10s são a razão da defesa mos, (<sem querer querendo», como costuma dizer um personagem
desse direito; a liberdade de ensinar dos n1estres é a garantia do di- atrapalhado da tevê, reproduzindo essa decadência em nosso coti-
reito de aprender dos jovens. diano, inclusive na escola; não queremos apenas, como bons sama-
Professores e juventt1de são os sujeitos históricos e sociais, o ritanos, ema11cipar a humanidade em geral; qu remos emancipar a
únicos possíveis, na defesa pela e e la pública e gatuita, na defesa nós mesmos e nossos descendentes.
do direito de ter acesso e t1s11fr~1 i t d todo o patrimônio científico Como afirmou Karl Marx, não basta i11terrpr 'l, r mundo, é
e cultural da humanidade; o ver: . eiro inimigo são os governos e preciso transformá-lo. O conhecimento, que. 11d rnater.ializado
seus representantes dentro da e cola, a burocracia escolar. num movimento de transformação social, tor11a-\,; l 111,1 f ,n a social
Mesmo assim, continua o llil n l. ~a quê ensinar e para quê poderosíssima.
aprender, se a escola não gara11t futt1r d .. 1~1N:entude sob a ditadu- Cabe ao movimento dos professores ser a pa t e 1~ i nte, o ní1-
ra do capital, se a educação 11ão Vr~ i r 1ar 1J nilem-novo? cleo duro, dessa luta política.
Os professores deven1 e11sía1" r, ca l# vez nais e melhor, e os jo-
vens devem aprend r, e, da~ z n is 1elho 1 ara mHdar o mundo.
l

Ni11guém modifica o qt1 Ilã G:01~ 11 ce: Biaget 10 n in0u, de acor- Para iniciar uma longa caminhada
do com a Teoria do Conhecimento ou, como ele preferia, Epistemo- é preciso dar o primeiro passo-
logia Genética, que sujeito e objeto do conhecimento int ragem, que
o sujeito ao se apropriar do objeto o conhece cada vez melhor e o (Confúcio. filós fo milenar chinês)
modifica, mas também modifica a si próprio.
Ou seja, para mt1dar o mundo é preciso conhecê-lo; ninguém Não podemos bancar os fundamentalistas religiosos e vivermos
muda o qtie não é capaz de conhecer, ninguém muda o que não co- apenas em fu11ção de um futuro distante: a construção de uma soci-
nhece. Educar, ensinar, mais do que 11unca, deve ser um ato político dade sem exploração e opressão, de uma sociedade socialista, deve
e de rebeldia - aprender também. ser a estratégia de q11alquer movimento social ou indivíduo mini-
Professores e alunos, e suas organizações sindicais e políticas, mamente coerente, mas é necessário garantir a sobrevivência nesse
devem pôr-se a serviço da luta pela escola pública, que é parte da mundo e, principalmente, que as amplas massas da população, prin-
luta contra o mundo do capital. cipalmente professores e alunos, sejam cl1amados a lutar pela sobre-
Os professores, que, na sua maioria, tanto negam a luta política vivência da escola pública contra a burguesia e seu Estado, através
devido à propaganda ideológica da burguesia por t1m lado, e por ou- de um programa de reivindicações transitórias que só poderão ser
tro por identificar a política com os balcões de negócios dos gover- atendidas atacando, duramente, os interesses do capital.
138 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorancia universal 139

É 11ecessário 1nais investin1entos en1 educação, co1no r~ivin li- Para tanto, o ensino deve ser em te1npo i11tegral, com cada aluno
cam os movimentos sociais: o Brasil é u1n dos paí es que men s i11 - re be11do t1m bol a de estudos do govern ; com um currículo que
vesten1 no mun<.lo, gastamos oito vezes menos que a Finlândia con1 a una o ensino de ciências, arte e cultura universal ao co11vívio social
educação de nosso jove11s (Kerstenetzlcy Alvarenga, 2009). Estados e à prática desportiva.
como ão Paulo e Paraná chegam a gastar quatro vezes mai por a110
com os presidiários do que com os alunos de Ensino Médio - nem
caso de polícia a educação con egue ser na cabeça dessa gente, um Conclusão
bandido é mais importante que wn aluno e depois as "autoridades"
ficam chocadas quando parcelas da juventude entram para o crime You,11 Never Walk Alone
organizado.
"Caminhe sobre... (cami11he sobre)
«Mais verbas para a ed11cação'> significa romper con1 o paga- Caminhe sobre... (caminhe sobre)
mento das dívidas interna e ext rna, estatizar o sisten1a financeiro Com esperança (com esperança)
e as escolas privadas e obrigar o 1~ tado a desti11ar 10% do PIB para No seu coração
a educação. E você nunca caminhará sozinho
As escolas devem pert nccr , s alltnos, pais e professores; a es- Você nunca carninhará sozi11ho
Soz inho ... "
cola pública não deve, en1 11 1l1t1111 1nomento, sofrer qualquer tipo
de intervencio11i n10 , t tal; t<>l 11 'n1o~racia, total liberdade de
ensinar e aprender. oi 'gi< J s , rit·í,.i êde alunos, funcionários, Essa é parte da letra de uma antiga balada inglesa adotada como
pais e profesores, con1 attt n 111 h ,1 · 11-ti 0-1eâagógica e financeira, hino pela torcida do Liverpool para apoiar o time nos n1omentos
garantia de emprego e jornada t1 11i n l tral) II-10 para todos os do - difíceis, um dos maiores clubes de futebol do mundo e com uma das
centes; total liberdade de orga11izc. . atJ · ._ i 11 ~ • at · , grêmios e orga- mais fanáticas torcidas do planeta, famoso por viradas impossíveis.
nizações políticas de esquerda en t las. Onde o futebol entra nisso tudo?
As escolas devem unir o con11cci111 nto teórico à prática, r10 Sem, obviamente, defender as torcidas organizadas, voltemos à
limite dando uma profissão a cada alt1110; i o não significa ensino lógica moderna: o todo não é apenas a somatória ou justaposição
profissionalizante, somos contrário a e cola unitária-stal<liano- das suas partes constitutivas. Quando milhares se u11em em prol de
vista inspirada no 111odelo stalini ta da Nnião Soviética, queremos um programa comum, por mais elementar que ele seja, criam um
que nosso jovens dominem e control 111 todos os fundamentos da movimento social mais poderoso do que a somatória dos esforços
produção material e 11ão sejam apen.as operários-padrão, como foi individuais isolados de seus membros.
a brigada Stakhanov na era stalini ta. A propósito, stakan em rus- É o caso dos professores; somente isso explica como uma cate-
so significa copo, o que sugere bebedor ou consumidor de vodka, goria individualn1ente tão frágil conseguiu, ao longo dos últimos
consumo esse que entre os operários era tão combatido pelos bu- anos, no país inteiro, protagonizar rnovimentos de tão gra11de porte
rocratas de Moscou, a fim de aumentar a produtividade dos tra- que chegou ao ponto de ser considerada pelos governos de plantão
balhadores. Não queremos apenas que nossos jovens trabalhem, um inimigo per1nane11te a ser combatido; as campanhas pela gran-
queremos que dirijam a produção, e que começem a fazer isso a de mídia contra os professores, seu 1novimento e suas organizações
partir da escola. sindicais é, de acordo com a terceira lei de Newton - ação e reação-,
140 A proletarização dos professores Das luzes da razão à ignorância universal 141

um tributo involuntário dos governantes ao peso social dessa cate- IIAWI<ING, Stephen. Prefácio.111: KRAUSS, Lawrence M. A Fí-
goria profissional. sica cie ]ortzada nas Estrelas. São Paulo: Makron Books, 1996.
Mas, voltando à parte e ao todo, lembramos Plekhanov, u111 HAZEN, Robert M.; TREFIL, James. Saber Ciência. São Paulo:
grande 1narxista ru so que escreveu um livro clássico sobre o papel Cultura, 1995.
do indivíduo 11a l1istória (Plekhanov, s.d.). O sujeito individual ten1 HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz
importância e decide os run1os da história quando está no lugar cer- e Terra> 1982.
to, no mo1nento certo e tem autoridade sobre aqt1eles que pretende _ _ _ . A Era do Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
coma11dar. Mas, fundamentalmente, o sujeito faz a diferença qua11- --·- - · A Era dos I1npérios. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.
do é porta-voz, representa os interesses de uma classe progressista ·- - - · Era dos Extremos. SP, Cia das Letras, 1995.
e revolucionária, qua11do expressa, em sua ação, as ideias da 1nu- HORTA, José Silvério Baia. Educação Como Direito Social. São
dança; assim ele torna-se genuinamente livre. A liberdade é a plena Paulo: Cadernos FCC, 1998.
co11sciência da necessidade. KERSTENETZKY, Celia Lessa; ALVARENGA, Lfvia Vilas-Bôas
Os professores podem ron1per aom a paralisia e a impotência acker. Déficit de Educação no Brasil: uma estimativa. Rio de Janei-
que tomam conta de parte da categoria ao perceberen1 que não estão r0: CEDE/UFF, 2009.
caminhando sozinhos, ao t r 111 1,lena c0nsciência da necessidade MARX, Karl. El Capital - Crítica de La Economía Política. Ciu-
de romper com o 111u11do cl capital e construir um outro mundo Ll,1de dei México: FCE, 1999. Libro II.
socialista, quando s viren1 con10 parte de um movimento social - ·- - · Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitem-
mais amplo d r d .11 ;- L~ l u1na11ida~ie, de passagem do reino da po, 2004.
necesidad para o rei110 d, 1·berdade; qu,1ndo, no seu dia a dia, no MARX, I<arl; ENGELS, Friedrich. Textos Sobre Editcação e En-
fazer cotidiano dentro da escola, 110 processo do ensinar, s011ham sirzo. São Paulo: Moraes) 1983.
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