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DOI: 10.5747/ch.2020.v17.h469
ISSN on-line 1809-8207

Submetido: 08/06/2020 Aceite Final: 28/08/2020

ATIVIDADES EDUCATIVAS EMANCIPADORAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES


Rafael Rossi1, Aline Santana Rossi2
1
Doutorado e pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Presidente Prudente, SP.
Docente na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU - da Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS, MS. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-8544-3756. E-mail:
rafaelrossied@gmail.com
2
Mestre em Ensino de Ciências, pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul – UFMS, MS. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-8460-317X. E-mail:
alinesantanarossi@gmail.com

RESUMO
O presente artigo é instrumento por meio do qual problematizamos a discussão sobre as possibilidades de
desenvolvimento de atividades educativas emancipadoras nos cursos de formação de professores a partir
das reflexões de Tonet (2013), bem como a partir da pedagogia histórico-crítica. Elencamos quatro
possíveis atividades desta natureza, levando em consideração a especificidade da dimensão educativa, as
contradições que perpassam a educação no capitalismo, a distinção entre os interesses imediatos dos
alunos empíricos e os interesses essenciais dos alunos concretos e, ainda, a reciprocidade dialética dos
conteúdos escolares e as formas de ensino, com a prioridade ontológica dos conteúdos sobre as formas.
Desse modo, tais atividades são propostas tendo como preocupação maior uma prática docente que preze
pela promoção crítica do nível intelectual, científico, artístico e filosófico de professores e alunos. Trata-se
de uma postura humanista, que defende a elaboração da crítica e a integridade humana contra todas as
deturpações que esta forma de sociabilidade nos impõe.
Palavras-chave: Formação de Professores. Educação. Professor. Conhecimento.

EMANCIPATING EDUCATIONAL ACTIVITIES IN TEACHER TRAINING

ABSTRACT
This article is an instrument through which we problematize the discussion about the possibilities of
developing emancipatory educational activities in teacher training courses based on Tonet's reflections
(2013) and from de critical-historic pedagogy. We list four possible activities of this nature, taking into
account the specificity of the educational dimension, the contradictions that permeate education in
capitalism, the distinction between the immediate interests of the empirical students and the essential
interests of the concrete students and, still, the dialectical reciprocity of the contents and forms of
teaching, with the ontological priority of content over forms. Thus, such activities are proposed with the
greatest concern for a teaching practice that values the critical promotion of the intellectual, scientific,
artistic and philosophical level of teachers and students. It is a humanist stance, which defends the
elaboration of criticism and human integrity against all the misrepresentations that this form of sociability
imposes on us
Keywords: Teacher training. Education. Teacher. Knowledge.

ACTIVIDADES EDUCATIVAS EMANCIPANTES EN LA FORMACIÓN DE PROFESORES

RESUMEN
Este artículo es un instrumento a través del cual problematizamos la discusión sobre las posibilidades de
desarrollar actividades educativas emancipadoras en cursos de capacitación docente basados en las
reflexiones de Tonet (2013), así como de la pedagogía histórico-crítica. Enumeramos cuatro actividades
posibles de esta naturaleza, teniendo en cuenta la especificidad de la dimensión educativa, las
contradicciones que impregnan la educación en el capitalismo, la distinción entre los intereses inmediatos

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de los estudiantes empíricos y los intereses esenciales de los estudiantes concretos y, aún, la reciprocidad
dialéctica de los contenidos. y formas de enseñanza, con la prioridad ontológica del contenido sobre las
formas. Por lo tanto, tales actividades se proponen con la mayor preocupación por una práctica docente
que valore la promoción crítica del nivel intelectual, científico, artístico y filosófico de profesores y
estudiantes. Es una postura humanista, que defiende la elaboración de la crítica y la integridad humana
contra todas las tergiversaciones que esta forma de sociabilidad nos impone.
Palabras clave: Formación de profesores. Educación. Profesor. Conocimiento.

INTRODUÇÃO financeiros, controlam e determinam os rumos


Neste texto discutimos a possibilidade de de todos os complexos sociais (educação, arte,
desenvolvimento de algumas atividades política, ideologia, etc.). Com efeito, no campo
educativas emancipadoras nos cursos de educacional, nesta sociedade capitalista não é
formação de professores. O objetivo é contribuir uma possibilidade real e concreta a existência de
com o debate sobre atividades educativas que uma “educação emancipadora”. O que a
prezem pela emancipação humana na formação realidade social coloca como possibilidade é o
de professores. Nossa base teórica e desenvolvimento de “atividades educativas
metodológica são as contribuições da ontologia emancipadoras”, ou seja, atividades que
marxiana e da pedagogia histórico-crítica. permitam os indivíduos se conectarem com a
Defendemos a tese de que, numa emancipação humana. Emancipação humana, por
perspectiva humano-genérica, é necessária a sua vez, indica uma forma de sociedade para
realização de atividades educativas além do capital, na qual todos os indivíduos
emancipadoras nos cursos de formação de possam ter suas diversas necessidades
professores levando em conta: 1) a especificidade plenamente atendidas e, também, possam se
da educação no processo de reprodução social, desenvolver livremente em todas as direções
sem qualquer tipo de romantismo, idealismo, (artísticas, filosóficas, científicas, culturais, etc.)
utopia, relativismo ou irracionalismo (LUKÁCS, de acordo com os ensinamentos de Tonet (2013).
2013); 2) a relação educação e sociedade Neste texto propomos a reflexão de
capitalista na atual sociedade (TONET, 2013); 3) a atividades educativas emancipadoras nos cursos
distinção entre aluno empírico e aluno concreto de formação de professores que permitam, com
(SAVIANI, 2011) e; 4) a reciprocidade dialética base na história e na ciência, a partir dos
entre conteúdos escolares e formas de ensino interesses da classe trabalhadora, compreender a
com a prioridade ontológica dos conteúdos. gênese e o funcionamento da sociedade
Em primeiro lugar precisamos deixar capitalista, bem como os limites e as
claro a expressão “atividades educativas potencialidades que permeiam a dimensão
emancipadoras”. Vivemos ainda na sociedade educativa de modo a não supervalorizá-la de
capitalista. Isto significa que existem classes modo idealista.
sociais com interesses antagônicos. A classe dos Tal elaboração tem por base uma
capitalistas precisa se preocupar, acima de tudo, determinada articulação entre a teoria e a prática
com a reprodução de seus lucros e a expansão de social. Aliás, este debate é decisivo na formação
seus negócios e, por isso mesmo, apresentam de professores. Em nosso entendimento, uma
interesses particulares. A enorme classe correta relação entre teoria e prática pode ser
trabalhadora, por seu turno, possui como assimilada quando estudamos a perspectiva
horizonte máximo a eliminação de toda e ontológica (LUKÁCS, 2013). Como Rossi e Rossi
qualquer forma de exploração do homem pelo (2018) já demonstraram, na mesma linha de
homem e, justamente em decorrência deste Lukács, o conhecimento teórico é a reprodução,
objetivo, ela é a única classe que apresenta uma no plano do pensamento, do movimento real do
perspectiva universal e emancipadora para todo objeto, em sua essência, desenvolvimento e
o gênero humano e não apenas para algumas estruturação com a totalidade social. O objetivo
parcelas ou grupos (TONET, 2013). da teoria é fornecer um conhecimento correto, o
Nesse sentido, em segundo lugar, mais próximo possível, da essência do objeto. A
precisamos compreender que o capital, isto é, as prática, portanto, em sua dialética entre
grandes corporações e grupos econômicos e aparência e essência é o critério para a

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verificação dos avanços, lacunas ou desvios das qualidade deste processo formativo, são
teorias. questões passíveis de entendimento em face do
Nossa reflexão possui como norte as momento histórico e da totalidade social que
necessidades humanas de formação para além estivermos analisando.
das análises que priorizam as demandas do O ser humano surge na Terra a partir do
mercado. Além disso, é preciso afirmar que não momento em que começa a desempenhar atos
temos a ilusão de que todos os cursos de de trabalho. Não estamos nos referindo ao
formação de professores podem abraçar trabalho assalariado, trabalho feudal ou trabalho
plenamente o objetivo de contribuir com uma escravo. O trabalho a que estamos nos referindo
autêntica formação humano-genérica e não é a interação orgânica da sociedade com a
mercadológica. Nós ainda vivemos, nos natureza para a produção dos meios de produção
educamos e nos tornamos professores no âmbito e de subsistência humanos. O trabalho não
da sociedade capitalista. Isso significa que o aparece entre os seres humanos de modo
objetivo máximo da produção social nesta forma isolado, mas sim, em articulação recíproca com a
de sociabilidade é a reprodução dos lucros a comunicação e as relações sociais (LUKÁCS,
partir da exploração sobre o processo de trabalho 2013).
(MÉSZÁROS, 2002). O trabalho é a única categoria que funda
É necessário sempre defender a ideia de o ser social, ou seja, a humanidade, pois ele
que a “tarefa precípua dos professores é dominar permite a produção de novas necessidades,
e transmitir aos seus alunos o conhecimento novos atos de trabalho e novas dimensões sociais
científico, artístico e filosófico em suas formas com funções distintas no processo de reprodução
mais desenvolvidas” (DUARTE, 2011, p. 138). social. Entretanto, afirmar que o trabalho funda a
Todavia, trata-se de uma tarefa de apropriação humanidade não significa que ele a esgote! A
dos conhecimentos clássicos das ciências, das realidade social será formada pela determinação
artes e da filosofia a partir dos interesses da recíproca e ininterrupta entre os vários
classe trabalhadora como defende Tonet (2013). complexos sociais (educação, arte, ciência,
filosofia, política, ideologia, trabalho, etc.),
A ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO constituindo uma totalidade. A totalidade nesse
Para que os professores em seu processo aspecto é sempre fruto de um movimento
formativo possam compreender a sua função histórico passado, apresentando o campo de
social é da mais absoluta importância que eles limites e de possibilidades para nossa atuação no
conheçam e compreendam a particularidade da presente e, também, no que se refere às
dimensão educacional. Nesse aspecto, os cursos potencialidades e os obstáculos para a
de formação de professores precisam combater o construção do futuro (LUKÁCS, 2013).
irracionalismo, o romantismo, o idealismo e as Com os atos de trabalho podemos
utopias. Isto é necessário, pois é preciso analisar observar uma articulação nova entre a
a educação como ela de fato é em sua essência, consciência humana e a realidade. A partir de
em seu movimento histórico, em suas uma necessidade real e existente, a consciência
articulações com a totalidade social. Para isso, passa a analisar os elementos da realidade
não devemos deixar que nossos sonhos, desejos, objetiva e refletir sobre seus possíveis vínculos
vontades ou anseios atrapalhem o objetivo em para que o fim previamente determinado possa
traduzir o movimento real do objeto que estamos ser alcançado (abater um animal para saciar a
investigando (PAULO NETTO, 2011). fome, por exemplo). Com isso, a partir da escolha
A educação não é a “arma mais poderosa da melhor estratégia, tem início o processo de
capaz de transformar o mundo”. A educação não objetivação, ou seja, de execução daquele
é a “ponte de amor que conecta os indivíduos projeto que a consciência elaborou. Desse modo,
para o sonho da liberdade”. A educação é uma ao final dos atos de trabalho, os seres humanos
dimensão social. Portanto, em primeiro lugar, puderam criar uma série de conhecimentos,
devemos remontar o processo histórico de habilidades e valores, por exemplo, que antes
autoconstrução humana. não possuíam. Isto é algo importantíssimo, pois
Os indivíduos não nascem já membros do estes conhecimentos poderão ser utilizados em
gênero humano. Nós nascemos com outras situações distintas da situação original e,
potencialidade para nos tornarmos seres dessa forma, a reprodução das sociedades
humanos. Se isto irá ocorrer ou não e, ainda, a demonstrará uma complexificação crescente dos

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complexos sociais, das individualidades humanas natureza mais íntima da educação. Tonet (2013)
e das próprias organizações sociais (LUKÁCS, possui uma análise histórica e realista do
2013). fenômeno educativo:
Estes conhecimentos, todavia, precisam A educação é, certamente,
ser apropriados pelas novas gerações para que uma das dimensões de
elas possam continuar com o desenvolvimento grande importância para a
humano. Este processo de transmissão e reprodução social. Ela
existe desde os primeiros
apropriação de conhecimentos perante as
momentos da vida social,
demandas de uma determinada totalidade social pois, ao contrário dos
historicamente construída, constitui, com efeito, animais, os homens não
a especificidade da educação. Saviani (2011), nascem sabendo o que
nesse aspecto, afirma que: devem fazer para se
Portanto, o que não é reproduzir socialmente. A
garantido pela natureza educação é condição
tem que ser produzido imprescindível para que
historicamente pelos os seres humanos
homens, e aí se incluem os singulares se tornem, de
próprios homens. fato, membros do gênero
Podemos, pois, dizer que a humano. Por isso eles
natureza humana não é precisam se apropriar do
dada ao homem, mas é patrimônio – material e
por ele produzida sobre a intelectual/cultural –
base da natureza biofísica. acumulado, em cada
Consequentemente, o momento, pela
trabalho educativo é o ato humanidade contribuindo,
de produzir, direta e ao mesmo tempo, para a
intencionalmente, em construção deste mesmo
cada indivíduo singular, a patrimônio. A forma e a
humanidade que é medida em que este
produzida histórica e processo de
coletivamente pelo apropriação/efetivação se
conjunto dos homens. der nos permitirá aferir o
Assim, o objeto da estágio concreto em que
educação diz respeito, de se encontra o ser social.
um lado, à identificação (TONET, 2013, p. 03-04,
dos elementos culturais grifos nossos).
que precisam ser
assimilados pelos Portanto, uma importante atividade
indivíduos da espécie educativa emancipadora a ser realizada nos
humana para que eles se
cursos de formação de professores é o
tornem humanos e, de
outro lado e
entendimento concreto da educação. Se os
concomitantemente, à alunos, que serão futuros professores, tiverem
descoberta das formas visões irracionais, românticas ou utópicas sobre a
mais adequadas para educação, tenderão a efetivar práticas
atingir esse objetivo. espontaneístas, ingênuas e simplistas.
(SAVIANI, 2011, p. 13,
grifos nossos). A EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE CAPITALISTA
Os alunos e professores precisam
A análise empreendida por Saviani (2011) compreender a gênese histórica da escola e, mais
a respeito da particularidade da educação, em precisamente, a educação escolar no interior do
nosso entendimento, demonstra a importância processo de constituição e desenvolvimento da
de uma abordagem ontológica (isto é, respaldada sociedade capitalista. Certamente a escola já
na essência do processo histórico) na análise dos existia antes do capitalismo. Entretanto ela era
fenômenos investigados. Por outro lado, a partir frequentada pelas classes que viviam da
do exame do processo de autoconstrução exploração do trabalho alheio. Com o
humana, ele extraiu elementos para explicitar a capitalismo, algo novo ocorre nessa relação. A

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escola passa a ser o lócus por excelência do conhecimento que esteja,


processo educativo na sociedade. Para a pela sua própria
reprodução da sociedade burguesa é configuração,
imprescindível que todos os seus cidadãos intimamente articulado
com a transformação
possam passar pelas escolas e terem um mínimo
radical do mundo. Esta
de apropriação dos rudimentos da cultura compreensão não lhe é,
letrada, das ciências, das artes e das filosofias de modo nenhum,
(SAVIANI, 2011). fornecida pelo simples
No âmbito do capitalismo é impossível acesso ao conhecimento
uma “educação emancipadora” em que todas as sistematizado. Este
escolas e universidades possam permitir o livre simples acesso contribuirá,
desenvolvimento das individualidades no máximo, para uma
intelectuais dos alunos e a plena socialização dos formação de alto nível,
conhecimentos elaborados e acumulados ao mas conservadora. É o que
se pode observar
longo da história. Por isso mesmo, concordamos
cotidianamente. (TONET,
com Tonet (2013) ao afirmar que o possível seria 2013, p. 06, grifos nossos).
o desenvolvimento de atividades educativas
emancipadoras, ou seja, atividades que prezem Precisamos combater os posicionamentos
pelas ciências, pelas artes e pela filosofia a partir pós-modernos na formação de professores que
dos interesses da classe trabalhadora e que desprezam os conhecimentos científicos e
prezem pela defesa da emancipação humana. tentam desvalorizar a educação escolar. Nesse
Importante compreender que: sentido, precisamos considerar sempre que:
No entanto, dada a Faz-se necessário, então,
natureza específica – combater a tendência a
contraditória – do ato que formar professores para
funda a sociedade tudo quanto é coisa. Isso
burguesa, com todas as conduz a uma grande
suas consequências, é dispersão na formação do
possível, no interior desta educador postulando-se
mesma sociedade, que o pedagogo e o
desenvolver atividades professor precisam
educativas que estudar, além da educação
contribuam para que a escolar, toda uma
classe trabalhadora e multiplicidade de
integrantes de outras modalidades educativas, o
classes tenham acesso ao que leva a sobrecarregar
que há de mais elevado no os currículos formativos
patrimônio acumulado com uma grande
pela humanidade. De quantidade de
forma limitada, mas é componentes
possível. Pois uma coisa é fragmentados que só
certa. Não basta, à classe podem ser
trabalhadora, ter acesso superficialmente
aos conteúdos aprendidos.
tradicionais. A classe Diferentemente disso
trabalhadora tem penso que se formamos
necessidade de um bem, isto é, de maneira
conhecimento de caráter sistemática, consistente e
revolucionário, isto é, de crítica os novos
um conhecimento que lhe professores assegurando-
permita compreender o lhes o domínio pleno da
conjunto do processo forma mais desenvolvida
histórico de tal modo que que é a forma escolar, as
ela se veja como sujeito demais formas de
capaz de transformar educação serão
radicalmente o mundo. compreendidas sem
Portanto, de um maiores dificuldades. Se

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assim procedermos A Revolução Industrial, nesse aspecto, foi


estaremos evitando a algo extremamente inovador na história humana:
descaracterização do pela primeira vez os seres humanos conseguiram
processo formativo como superar os limites de sua própria força física. O
se o curso pudesse dar
capitalismo desenvolveu as forças produtivas, ou
conta de tudo e tudo
tivesse o mesmo peso o
seja, a capacidade em transformar a natureza
que, aliás, é uma para o atendimento das necessidades sociais, de
característica também da modo acentuadamente sofisticado. Podemos
visão pós-moderna, em produzir, por exemplo, em nossos tempos,
que tudo parece ter o gêneros alimentícios em grau suficiente para
mesmo peso, inclusive as alimentar o dobro da população mundial. A
modalidades de Revolução Francesa, por seu turno, também
conhecimento nivelando passou a demonstrar aos seres humanos que a
ciência, senso comum, história pode ser alterada significativamente. O
folclore, religião, bruxaria
poder do clero e da nobreza teve de se curvar
etc. Isto só pode se
explicar pela consideração
perante o poder da burguesia, o poder do capital
de que a forma social (PAULO NETTO; BRAZ, 2012).
vigente atingiu sua fase de A nova organização social dispensa a
decadência quando não necessidade de súditos e coloca como exigência
mais consegue se justificar para o seu funcionamento a existência da
racionalmente, restando- cidadania moderna. Para ser cidadão é preciso
lhe apelar para elementos que todos os indivíduos apresentem três
irracionais que se fazem características básicas: igualdade, propriedade e
presentes na visão dita liberdade. Trabalhadores e capitalistas são iguais
pós-moderna. (SAVIANI,
perante a lei. Trata-se de uma igualdade formal
2014, p. 29, grifos nossos).
que, na prática, se conforma numa desigualdade
real, uma desigualdade estrutural. Além disso,
Todavia, a sociedade burguesa é marcada
todos precisam ser proprietários: os capitalistas
por intensas contradições, por exemplo: ao
são proprietários dos meios de produção e do
mesmo tempo em que estimula o
capital e os trabalhadores, por seu turno, são
desenvolvimento de certas áreas da ciência, joga
proprietários apenas da sua força de trabalho
na ignorância e na miséria a maior parte da
que precisa ser vendida em troca de um salário
população mundial; ao mesmo tempo em que
para garantir a sua sobrevivência. Por fim,
impulsiona a sofisticação dos conhecimentos da
capitalistas e trabalhadores são livres: os
área médica, condena à dor e ao sofrimento
capitalistas são livres para utilizar seu capital na
todos aqueles que não podem pagar pelo acesso
atividade que julgarem mais lucrativa e
de tais tratamentos. O mesmo se passa com a
comprarem a força de trabalho daqueles
educação escolar: por um lado, pela lógica do
trabalhadores que julgarem mais aptos e
mercado e das classes dominantes, interessa que
qualificados e os trabalhadores são livres para
os trabalhadores se apropriem o mínimo possível
vender a sua força de trabalho aos capitalistas
das objetivações intelectuais das ciências, artes e
que estiverem dispostos a compra-la (TONET,
filosofia. O conhecimento profundo, elaborado,
2005).
sistematizado e crítico pode esclarecer sobre o
O lema dos revolucionários franceses de
modo de funcionamento desta forma de
“liberdade, igualdade e fraternidade” demarca
sociabilidade em suas raízes e isto, por sua vez,
bem o horizonte e os limites da cidadania
não é do interesse da burguesia.
moderna. Na prática social, o que vivenciamos é
A sociedade capitalista possui os germes
a máxima “diga-me o teu poder aquisitivo e te
de sua constituição no interior ainda da antiga
direi até onde poderás ir e viver”. O imenso
sociedade feudal. O longo processo de transição
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, por
do feudalismo ao capitalismo é constituído por
exemplo, não estão livremente acessíveis para
uma série de dinâmicas que explicitam a
todos os indivíduos. A barreira do dinheiro
superioridade civilizatória e social da sociedade
seleciona aqueles que poderão usufruir das
burguesa frente àquela regida pela nobreza e
conquistas do capitalismo e aqueles que terão
pela Igreja.
que sofrer nesta sociedade.

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Aqui reside uma questão importantíssima qualidade única, um traço


para os cursos de formação de professores: que a distingue de todas
Trata-se de formar professores para a as outras mercadorias: ela
reprodução da sociedade capitalista em todas as cria valor – ao ser
utilizada, ela produz mais
suas desigualdades estruturais e barbáries como
valor que o necessário
a pobreza, miséria, concentração de renda, para reproduzi-la, ela gera
devastação ambiental, etc.? Ou, por outro lado, um valor superior ao que
trata-se de formar professores a partir dos custa. E é justamente aí
interesses da classe trabalhadora que são, por que se encontra o segredo
sua vez, os únicos interesses que apresentam um da produção capitalista: o
panorama real para todas as necessidades da capitalista paga ao
humanidade? trabalhador o equivalente
É importante lembrarmos que a enorme ao valor de troca da sua
classe trabalhadora é marcada pelo processo de força de trabalho e não o
valor criado por ela na sua
exploração. Todavia, os únicos trabalhadores que
utilização (uso) – e este
efetivam a transformação da natureza nos meios último é maior que o
de produção e de subsistência da existência social primeiro. O capitalista
(casas, pontes, estradas, alimentos, etc.) são os compra a força de
proletários. Isto é significativo para o debate trabalho pelo seu valor de
educacional, pois as lutas por uma educação que troca e se apropria de
permita o livre desenvolvimento e evolução todo o seu valor de uso.
intelectual de todos os seres humanos precisam (NETTO; BRAZ, 2012, p.
contar com o entendimento teórico e com a 113)
atuação prática das lutas dos proletários rumo ao
fim da exploração do homem pelo homem Ou seja: os trabalhadores ao produzirem
(TONET, 2020). Fundamental, neste aspecto, o conteúdo material da vida em sociedade (casas,
compreender que a luta da “classe trabalhadora portos, mercadorias, estradas, roupas, alimentos
pela sua emancipação e de toda a humanidade etc.) produzem um valor imensamente maior do
implica o conhecimento, o mais amplo e que aquele que lhes é restituído sob a forma de
profundo possível, da realidade social a ser salário. Está dada uma desigualdade estrutural
transformada” e, em razão disto nada menos “do nesta sociedade que, com uma série de
que a verdade pode interessar à classe mediações, irá impactar cada dimensão social,
trabalhadora e como a verdade não é algo incluindo a educação escolar. Portanto, de um
evidente, o trabalho sério e livre de sua busca ponto de vista que se conecta positivamente com
impõe-se como uma tarefa inescapável, mesmo os interesses universais do gênero humano e,
que tenha que ser muito dura” (TONET, 2010, p. portanto, dos trabalhadores, é imprescindível, na
01). formação de professores, investir esforços no
A base desta sociedade se estrutura – desenvolvimento de atividades educativas
assim como o escravismo antigo e o feudalismo – emancipadoras que prezem pela compreensão
na exploração sobre o processo de trabalho. histórica, científica e racional da dimensão
Todavia, trata-se de uma forma diferente de educacional para não romantizá-la de modo
explorar o trabalho: a relação de assalariamento idealista e, além disso, que permitam
entra em cena. Com o trabalho assalariado o que compreender a relação da educação com a
ocorre é: sociedade capitalista. Não estamos afirmando
Com efeito, comprando a que nas escolas e universidades nada pode ser
força de trabalho do realizado num caráter emancipatório. O que
proletário pelo seu valor, o estamos argumentando é que a realidade social
capitalista tem o direito de contemporânea coloca como possibilidade
dispor do seu valor de uso, efetiva a promoção de atividades educativas
isto é, de dispor da sua emancipadoras.
capacidade de trabalho,
capacidade de
movimentar os meios de
produção. Mas a força de
trabalho possui uma

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ALUNO EMPÍRICO E SEUS INTERESSES realidade concreta dos


IMEDIATOS; ALUNO CONCRETO E SEUS alunos, pois é justamente
INTERESSES ESSENCIAIS a partir das condições
A realidade natural e social não se revela concretas que se tenta
captar por que e em que
plenamente ao nosso olhar ou à nossa percepção
medida esses
sensorial. A realidade é uma síntese histórica instrumentos são
extremamente dinâmica entre aparência e importantes. (SAVIANI,
essência. As aparências são as manifestações 2011, p. 71, grifos nossos)
diversas e singulares do movimento da essência.
A essência, por sua vez, são os aspectos de Esta reflexão de Saviani (2011) é muito
continuidade que marcam determinado objeto rica para medir a qualidade nos cursos de
ou fenômeno. Por exemplo: a aparência da formação dos professores. Em primeiro lugar:
sociedade capitalista mudou enormemente qual o objetivo da atividade docente? É a
desde o século XIX até este início de século XXI; promoção e desenvolvimento intelectual,
contudo, a sua essência ainda permanece, ou científico, cultural, artístico e filosófico dos
seja, a exploração sobre o processo de trabalho. alunos. Em segundo lugar: qual a importância em
Os dados oficiais sobre a concentração de renda, trabalhar com a elevação e o enriquecimento dos
as desigualdades sociais e a apropriação da alunos? A importância reside em trabalharmos
riqueza socialmente produzida, comprovam este com os seus interesses reais, concretos e não
argumento (LUKÁCS, 2013). imediatos e espontâneos.
Desse modo, é fundamental resgatar a O processo educativo precisa ser
distinção entre aluno empírico e aluno concreto, coordenado pelos professores para atingir esta
explicada por Saviani (2011): meta de contribuir com o desenvolvimento
O objetivo do processo humano-genérico dos alunos. Isto é necessário,
pedagógico é o pois se articula diretamente aos seus interesses
crescimento do aluno,
concretos. Quem frequenta as escolas públicas,
logo, seus interesses
devem necessariamente
de modo geral? São os filhos da classe
ser levados em conta. O trabalhadora, ou seja, daquela classe social que,
problema é o seguinte: como já explicamos anteriormente, apenas
quais são os interesses dos possui a sua força de trabalho para ser vendida
alunos? De que aluno em troca de um salário. Os interesses imediatos
estamos falando, do aluno dos trabalhadores são relacionados às
empírico ou do aluno necessidades de seu cotidiano: melhorar seu
concreto? O aluno salário, pagar as contas, comprar determinado
empírico, o indivíduo produto etc.
imediatamente
Entretanto, os interesses essenciais que
observável, tem
determinadas sensações,
correspondem à natureza mais íntima da classe
desejos e aspirações que trabalhadora é compreender em profundidade,
correspondem à sua com rigor, com conhecimentos científicos,
condição empírica artísticos e filosóficos o modo de funcionamento
imediata. Estes desejos desta sociedade e eliminar por completo toda
não correspondem forma de exploração do homem pelo homem.
necessariamente aos seus Dessa maneira, para atingirmos os interesses
interesses reais, definidos concretos dos alunos concretos e não
pelas condições sociais simplesmente dos alunos empíricos, é preciso
que o situam enquanto
desenvolver um processo educativo que
indivíduo concreto. Em
contrapartida, conteúdos
possibilite que professores e alunos se apropriem
que ela tende a rejeitar das objetivações intelectuais mais desenvolvidas
são, no entanto, de seu que a humanidade já produziu, numa abordagem
maior interesse enquanto crítica, isto é, numa abordagem que confronte
indivíduos concretos. estes conhecimentos com o movimento essencial
Assim, a ênfase nos da realidade enquanto totalidade.
conteúdos instrumentais De modo geral, os cursos de formação de
não se desvincula da professores invertem essa relação e trabalham

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com os interesses imediatos dos alunos exemplo, em tom de hipótese, que muitos alunos
empíricos, acreditando que, dessa maneira, não considerem importante estudar o modo de
estariam levando em conta os interesses funcionamento da sociedade feudal enquanto um
essenciais dos alunos concretos. O ensino não conteúdo escolar na disciplina de história. Muitos
pode ficar refém do cotidiano, do superficial e alunos, categoricamente, poderiam afirmam: “De
das aparências. É necessário partir do cotidiano e que me adianta na vida real saber sobre o
do aparente e transmitir criticamente aquilo que feudalismo?” E muitos professores, por sua vez,
de mais elevado a humanidade construiu no poderiam ficam sem resposta. Do ponto de vista
campo das ciências, das artes e da filosofia. Com imediato, realmente não será necessário
a transmissão crítica destes conhecimentos entender a relação de suserania e vassalagem
elaborados os alunos poderão apreender as típica da Idade Média. Contudo, do ponto de
múltiplas articulações dos fenômenos estudados vista dos interesses dos alunos concretos é muito
com a totalidade social e, com isso, poderão importante entendermos como o ser humano se
compreender de modo mais profundo, forma enquanto um ser humano e, inclusive, o
sistematizado e erudito a própria realidade para processo de constituição e destruição das
além de suas aparências. Em outras palavras: sociedades passadas. O capitalismo não surgiu
A importância dos como uma “graça dos céus”. A sociedade
conteúdos escolares para capitalista foi erguida num longo processo secular
o aumento do campo de que teve como base as contradições inerentes ao
escolhas dos indivíduos movimento essencial da própria sociabilidade
das novas gerações
feudal. Se não compreendermos, com base na
conecta-se ao fato de que
esses conteúdos nada
ciência e na história, por exemplo, como surgiu e
mais são do que como se estrutura a atual forma de sociabilidade,
experiência humana nossas análises e compreensões de mundo serão
acumulada e sintetizada sempre epidérmicas, rasas e efêmeras.
nas ciências, nas artes e na Aqui reside a importância de
filosofia. Ao se apropriar compreender que, para a classe trabalhadora,
desses conteúdos, os interessa um conhecimento de caráter
alunos estão incorporando revolucionário. Isto significa que é sim muito
à sua atividade, sua vida e relevante a apropriação e transmissão dos
sua individualidade,
conhecimentos clássicos amealhados ao longo da
condensações da
experiência social. Dessa
história, todavia, é indispensável refletirmos
maneira o indivíduo sobre qual a concepção de mundo, de sociedade
desenvolve a capacidade e de ser humano que estes conhecimentos foram
de agir guiado não apenas transmitidos e apropriados. Por isso que:
por percepções imediatas Para evitar mal-
da realidade ao seu redor, entendidos, vale
mas pela compreensão esclarecer, com precisão,
das conexões não visíveis o que se entende por
entre processos e conhecimento de caráter
fenômenos. Isso se aplica revolucionário. Não se
à compreensão do trata de discutir a
movimento tanto da problemática do poder
natureza quanto da político e nem sequer de
sociedade. Não é por buscar politizar todo tipo
acaso que os de conhecimento. Afinal,
obscurantistas atacam as não existe uma física, uma
ciências da sociedade e matemática ou uma
também as ciências da química, etc., reacionária
natureza, além, é claro, da ou revolucionária. Mas,
filosofia e das artes. mesmo a física, a
(DUARTE, 2018, p. 144) matemática ou a química
são, elas mesmas,
Os alunos em muitos casos não possuem mediações para o
ainda este entendimento. Pensemos, por conhecimento da natureza
e estarão, ainda que de

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forma muito mediada, a preocupado com os interesses essenciais dos


serviço da construção de alunos concretos.
alguma forma de
sociabilidade. Antes de ser A PRIORIDADE ONTOLÓGICA DOS CONTEÚDOS
físico, matemático ou
ESCOLARES E A RECIPROCIDADE DIALÉTICA COM
químico, o sujeito é um
ser humano, faz parte de
AS FORMAS DE ENSINO
uma sociedade concreta e De modo geral há um incentivo desta
também a ele dizem forma de sociabilidade para desprezarmos a
respeito os destinos da teoria e pensarmos em respostas rápidas para a
totalidade da sociedade. prática educativa. Sem sombra de dúvida é
Independente da importante refletirmos sobre as formas de
consciência desses ensino, todavia, esta reflexão se mostra mais
cientistas, seu campo precisa se tivermos a clareza do objetivo a atingir
específico de atuação e, portanto, os conteúdos escolares a serem
implica uma determinada
trabalhados.
concepção de mundo
mais geral. Implícita ou
Em nossa compreensão, os professores
explícita. Não é, pois, de em seu processo de formação precisam ter
modo nenhum, condições de se apropriarem criticamente dos
indiferente que um conhecimentos clássicos das ciências (sociais e
cientista da natureza naturais), das artes e da filosofia. Como já
tenha uma concepção de afirmamos, a crítica, nesta perspectiva, implica o
mundo revolucionária ou confronto das teorias pedagógicas, por exemplo,
conservadora. Uma com a essência do movimento real do conjunto
concepção revolucionária do processo histórico (LUKÁCS, 2013).
lhe permitirá perceber a
A tarefa dos professores é justamente
serviço de que e de quem
está o conhecimento que
converter e pensar nas mediações didáticas
ele produz! Além disto, necessárias para produzir os conteúdos escolares
uma concepção de mundo a serem transmitidos, tendo como preocupação e
revolucionária permitirá como norte geral às objetivações intelectuais
que os conhecimentos mais elaboradas produzidas pelo gênero. Os
produzidos nos diversos conteúdos escolares possuem prioridade
campos da ciência da ontológica, com efeito, perante as formas de
natureza contribuam para ensino. Isso significa que quando “atribuímos
a construção desta mesma uma prioridade ontológica a determinada
concepção de mundo ao
categoria com relação à outra, entendemos
invés de ficarem
confinados em suas
simplesmente o seguinte: a primeira pode existir
esferas específicas e, sem a segunda, enquanto o inverso é
muitas vezes, se ontologicamente impossível” (LUKÁCS, 2012, p.
colocarem lado a lado com 307). Em nosso debate isto quer dizer que, no da
crenças religiosas e/ou formação de professores, as reflexões sobre as
místicas e irracionalistas. formas de ensinar precisam ser refletidas à luz
(TONET, 2013, p. 06-07, dos conteúdos que se pretende transmitir – e,
grifos nossos) ainda, na concepção de tal processo educativo -
para atingir determinados objetivos conectados
Aqui chegamos a outra reflexão de suma com a tarefa primordial de contribuir com a
relevância para a realização de atividades elevação do nível intelectual e crítico dos alunos.
educativas emancipadoras nos cursos de Trata-se, então, da defesa dos
formação de professores: a articulação entre conhecimentos históricos, científicos, artísticos e
conteúdos escolares e formas de ensino. Em filosóficos clássicos, transmitidos a partir dos
muitos casos, de maneira geral, tende-se a interesses da classe trabalhadora numa
supervalorizar as formas de ensino em perspectiva revolucionária. Os alunos, que serão
detrimento dos conteúdos. Entender como se dá futuros professores, precisam se apropriar de
este equacionamento é um conditio sine qua non uma teoria social que apresente a especificidade
para a promoção de um processo educativo do conhecimento científico, artístico e filosófico.

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Estes conhecimentos avançam sobre as historicamente


aparências do real e possibilitam nossa ampliação determinadas – a cercar
da concepção de mundo, de ser humano e de cada vez mais a realidade
sociedade. objetiva. (LUKÁCS, 1979, p.
240-241).
De modo extremamente rápido,
podemos afirmar que a particularidade dos
A arte, por sua vez, possibilita nos
conhecimentos científicos é “capturar o objetivo
conectarmos com a trajetória do gênero humano
ser-em-si de tudo aquilo que se relaciona com o
de modo extremamente positivo, para além das
trabalho e para comportar-se em relação aos fins
alienações que imperam em nosso cotidiano. A
e aos seus meios de maneira adequada ao seu
autêntica obra de arte:
ser-em-si” (LUKÁCS, 2013, p. 78). Isto é: à ciência
A verdadeira arte,
cumpre fornecer um conhecimento aproximado portanto, sempre se
mais fiel possível à essência da realidade objetiva. aprofunda na busca
É nesse aspecto que a categoria da totalidade, daqueles momentos mais
enquanto uma categoria efetivamente existente essenciais que se acham
na realidade mostra a sua importância na ocultos sob a superfície
pesquisa educacional, por exemplo, já que a dos fenômenos, mas não
educação é uma totalidade própria, com representa esses
dinâmicas inerentes ao seu movimento e, ao momentos essenciais de
mesmo tempo, se relaciona com a totalidade do maneira abstrata, ou seja,
suprimindo os fenômenos
próprio conjunto social, pois:
ou contrapondo-os à
O conhecimento, na
essência; ao contrário, ela
medida em que é justo,
apreende exatamente
isto é, total, reflete
aquele processo dialético
sempre um conjunto
pelo qual a essência se
composto de totalidades
transforma em fenômeno,
unidas por laços orgânicos,
se revela no fenômeno,
mas só acede a ele por
mas figurando ao mesmo
aproximação. Isto é assim,
tempo o momento no qual
primeiro porque cada
o fenômeno manifesta, na
“todo” (cada círculo, para
sua mobilidade, a sua
retomar a expressão de
própria essência. Por
Hegel) que o
outro lado, esses
conhecimento toma por
momentos singulares não
objeto (a estrutura
só contêm neles mesmos
econômica de tal país, por
um movimento dialético,
exemplo) faz ao mesmo
que os leva a se
tempo parte de uma
superarem
totalidade ainda mais
continuamente, mas se
vasta, tanto histórica
acham em relação uns aos
quanto teoricamente, o
outros numa permanente
que significa que
ação e reação mútua,
objetivamente sua
constituindo momentos de
totalidade é relativa. E isto
um processo que se
é assim ainda, porque o
reproduz sem interrupção.
conhecimento que
A verdadeira arte,
podemos ter da totalidade
portanto, fornece sempre
é necessariamente
um quadro de conjunto da
relativo, sendo apenas
vida humana,
uma aproximação. É
representando-a no seu
somente apreendendo
movimento, na sua
correlações móveis,
evolução e
multilaterais e sempre
desenvolvimento.
mutáveis dos elementos,
(LUKÁCS, 2010, p. 26).
que chegaremos – nos
limites de nossas
possibilidades

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A filosofia, por seu turno, reflete sobre as os interesses aparentes e essenciais do processo
grandes questões e conflitos que marcam o formativo e intelectual dos alunos e; 4) a
gênero humano, problematizando as reciprocidade dialética entre conteúdos escolares
potencialidades para a construção do futuro, os e formas de ensino com a prioridade ontológica
obstáculos sociais no presente e as bases dos conteúdos.
edificadas com o movimento histórico passado. A Temos clareza, assim como Tonet (2013),
filosofia, dessa forma, “aprofunda as de que no interior do capitalismo não será
generalizações das ciências, antes de tudo, por possível que todos os indivíduos se apropriem
estabelecer uma relação inseparável com o dos conhecimentos intelectuais clássicos
nascimento histórico e o destino do gênero construídos pela humanidade. Contudo, isto não
humano, com a essência, o ser e o devir inviabiliza em absoluto o desenvolvimento – com
humanos” (LUKÁCS, 2013, p. 540). todas as inúmeras dificuldades que o cotidiano
Em todos os conhecimentos gerados nos coloca – de atividades educativas
pelas ciências, pelas artes e pela filosofia, a partir emancipadoras, isto é, atividades no campo
da crítica ontológica, é preciso distinguir aquelas educativo que prezem pela integridade humana
ciências, obras de arte e filosofias que deturpam contra todas as deturpações irracionalistas e
a essência humana e a rebaixam, daquelas que mercadológicas.
explicitam as contradições da dinâmica histórica Tais elaborações possuem como
em suas rupturas e continuidades. É fundamento a defesa do humanismo nos cursos
imprescindível defendermos os conteúdos de formação de professores. Um humanismo que
clássicos, a crítica ontológica e a defesa do ser não fica refém do cotidiano, que não se limita à
humano contra todas as deturpações sociais que superfície do real, que não se rende ao
intentam o seu esfacelamento. relativismo irracionalista e que não se curva
Este ponto é primordial na estruturação perante as demandas egoístas do mercado. O
de atividades educativas emancipadoras nos humanismo combativo, de que nos fala Lukács
cursos de formação de professores: o (1979), tem como defesa a crítica e a transmissão
conhecimento clássico numa postura do conhecimento científico, artístico e filosófico
revolucionária que criticamente defende o mais desenvolvidos que foram produzidos pelo
humanismo, ou seja, “a integridade do homem gênero, no compromisso autêntico com a
contra todas as tendências que a atacam, a integridade humana contra as alienações que
envilecem e a adulteram” (LUKÁCS, 2010, p. 19). reinam em nossa sociedade.
Os conhecimentos clássicos com a crítica são
fundamentais para uma “aproximação adequada
da realidade inesgotável pelo conhecimento” que
“postula o homem completo, que reencontrou
sua totalidade”, isto é, trata-se de um REFERÊNCIAS
humanismo combativo, “que engaja os homens DUARTE, N. Luta de classes, educação e
na luta, no conhecimento e na conquista do revolução. Germinal, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-
mundo e que trabalha – sendo ao mesmo tempo 138, 2011.
teoria e prática – para o nascimento do homem
novo, com a totalidade humana reencontrada” DUARTE, N. O currículo em tempos de
(LUKÁCS, 1979, p. 251-252). obscurantismo beligerante. Revista Espaço do
Currículo, v. 11, n. 02, p. 139-145, 2018.
CONCLUSÕES Disponível em:
Com o presente texto abordamos o tema https://periodicos.ufpb.br/index.php/rec/article/
de atividades educativas emancipadoras que view/ufpb.1983-1579.2018v2n11.39568. Acesso
podem ser desenvolvidas nos cursos de formação 01 mar. 2020. DOI: 10.22478/ufpb.1983-
de professores: 1) a compreensão histórica, 1579.2018v2n11.39568.
científica e racional da dimensão educacional
sem idealismos de qualquer tipo; 2) a relação da LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo. São
educação com a sociedade capitalista Paulo: Ed Ciências Humanas, 1979.
contemporânea e o correspondente esforço de
compreensão da gênese e do funcionamento LUKÁCS, G. Introdução aos escritos estéticos de
desta forma de sociabilidade; 3) a distinção entre Marx e Engels. In: MARX, K.; ENGELS, F. Cultura,

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arte e literatura: textos escolhidos. São Paulo:


Expressão Popular, 2010. p. 11-38.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – I.


São Paulo: Boitempo: 2012.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – II.


São Paulo: Boitempo: 2013.

MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital. São Paulo:


Boitempo, 2002.

PAULO NETTO, J. Introdução ao estudo do


método de Marx. São Paulo: Expressão Popular,
2011.

PAULO NETTO, J.; BRAZ, M. Economia política:


uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2012.

ROSSI, A. C. S.; ROSSI, R. Lukács, Ciência e


Ontologia. In: JIMENEZ, S.; ALCANTARA, N.
(Orgs.). Anuário Lukács 2018. São Paulo: Instituto
Lukács, 2018. p. 107-122.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: Primeiras


Aproximações. Campinas – SP: Autores
Associados, 2011.

SAVIANI, D. A Pedagogia Histórico-Crítica. Revista


Binacional Brasil Argentina, v. 03, n.02, p. 11-36,
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TONET, I. Educação, cidadania e emancipação


humana. Ijuí: Unijuí, 2005.

TONET, I. Trabalho associado e revolução


proletária. 2010. Disponível em:
http://ivotonet.xp3.biz. Acesso em: 01 mar. 2020.

TONET, I. Atividades educativas emancipadoras.


2013. Disponível em: http://ivotonet.xp3.biz.
Acesso em: 01 out. 2019.

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