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Centro Espírita Léon Denis

DEOLINDO AMORIM

Tema:
Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas

Dia 25 de março de 2012


Coordenador Geral: Jair Ricardo
Organização de Conteúdo: Jair Ricardo
Finalização: Depto. Editorial do CELD
3o Congresso de Estudos Espíritas

O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas X O Cristianismo

INTRODUÇÃO – Prefácio

1 – Publicando O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas, Deolindo Amorim elaborou um oportuno


e completo estudo comparativo de nossa doutrina com as outras correntes reencarnacionistas, como o
Esoterismo, a Teosofia, a Rosa-Cruz e a Umbanda.

2 – Conseguiu mostrar, sem rebuços, que, apesar do traço comum, que é a crença nas vidas sucessivas,
essas doutrinas guardam fidelidade à sua origem oriental, permanecendo impregnadas das alegorias e
simbolismos tão ao sabor das civilizações do outro hemisfério, enquanto o Espiritismo não se deixou
envolver por essas tendências místicas, preferindo harmonizar-se, desde o seu aparecimento, com o
espírito científico que revolucionou o mundo ocidental nos dois últimos séculos e que se estende, hoje,
a passos largos, em direção ao Oriente.

3 – Todas as doutrinas organizadas têm o seu corpo de princípios, seus postulados, sua orientação. O
espiritualismo, em sua amplitude, é a matriz de muitas escolas, religiões e correntes filosóficas, mas a
própria disciplina da inteligência exige que se dê a cada religião ou doutrina o seu lugar inconfundível:
Espiritismo é Espiritismo; Teosofia é teosofia; Ecletismo é ecletismo. É melhor discernir do que
confundir, pois é discernindo que se põe ordem nas ideias para procurar a Verdade.

4 – Allan Kardec veio a acentuar, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. I, item 5: “O


Espiritismo é a nova ciência que veio revelar aos homens, com provas irrecusáveis, a existência e a
natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal”.

5 – Allan Kardec foi bastante claro ao afirmar que: O Espiritismo não reconhece por seus adeptos
senão aqueles que lhe praticam os ensinos e se esforçam por se melhorarem. Significa isso que pouco
ou de nada vale estabelecermos o complexo intercâmbio com o outro plano, para tentarmos obter dos
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Deolindo Amorim
guias os benefícios materiais almejados, sem que aprendamos os ensinamentos da Doutrina dos
Espíritos, através das obras fundamentais, e sem que procedamos à nossa urgente reforma moral,
penosa, mas imprescindível.

6 – Também no que toca à interpretação do Evangelho, objeto de um dos capítulos deste livro, ficou
comprovado que o Espiritismo é que interpreta o Evangelho em consonância com a lógica e à luz da
razão, em vez de ser por ele interpretado. A nossa doutrina leva o homem a se compenetrar de que as
promessas de Jesus estão condicionadas ao mérito pessoal de cada um e que pelas obras é que se
podem alcançar as bem-aventuranças anunciadas pelo Cristo. (Prefácio do livro – por Lauro Salles.)

7 – Hoje, coroando o trabalho vindo dos fins do século passado, o Espiritismo acabou por se firmar
entre nós. Foi o fruto de abnegados pioneiros que por muito tempo souberam enfrentar tantas
campanhas. Revelaram-se no terreno da assistência social, no da divulgação e, acima de tudo,
propagaram a doutrina pelo exemplo, mostrando que ela empreende a reforma moral e incute no
homem o sentimento do amor, revivendo os ensinamentos de Jesus, como o Consolador Prometido.

8 – Temos que reconhecer, desapaixonadamente, que Deolindo Amorim foi um dos artífices dessa
revolução. A dezena de livros que escreveu, os artigos nos jornais e revistas espíritas nacionais e
estrangeiros, a presença constante na tribuna dos Centros, as conferências em ambiente estranho, as
palestras radiofônicas, a participação em congressos, a volumosa correspondência trocada entre
confrades e curiosos, não espíritas, daqui e de outros países e, sobretudo, a fundação do Instituto de
Cultura Espírita do Brasil, celeiro de estudiosos, tudo isto realizado dia a dia, num labor incessante, até
sua partida, fez de Deolindo Amorim um dos maiores vultos do Espiritismo. (Complemento de Lauro
Salles.)

9 – Desejamos apenas que a nossa intenção seja bem compreendida. Escrevemos este trabalho com o
sincero propósito de concorrer, embora despretensiosamente, para que se esclareça cada vez mais a
verdadeira posição do Espiritismo perante as doutrinas e os cultos espiritualistas. Todas as doutrinas,
como todos os credos, sejam quais forem as suas origens, nos merecem o mais justo respeito.
(Introdução de Deolindo Amorim.)

10 – Não pretendemos estabelecer gradações ou estimativas, principalmente porque, em se tratando de


problemas de consciência, matéria de natureza muito individual, só mesmo o foro íntimo é que pode
optar pela melhor doutrina ou religião, de acordo com a receptividade e o discernimento de cada
pessoa. (Introdução de Deolindo Amorim.)

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A Reencarnação e as Escolas Orientais – Capítulo I

11 – Um dos aspectos que bem caracterizam a doutrina codificada por Allan Kardec, precisamente
porque estabelece a diferença entre o Espiritismo e as outras doutrinas espiritualistas, é a sua
organização, a sua contextura de princípios.

12 – O Codificador deixou muito claro que o espiritualismo, como generalidade, abrange o Espiritismo
e tantas outras doutrinas imortalistas, o que não impede, contudo, que a Doutrina Espírita se apresente
com definições e particularidades que lhe são próprias.

13 – Na realidade, enquanto não consideramos os elementos discriminativos, todos os movimentos


espiritualistas se identificam naturalmente. Diz-se, frequentemente, que tudo é espiritualismo, e jamais
negaríamos o acerto desta generalização.

14 – Não é por este motivo, todavia, que se deve desfigurar o verdadeiro caráter do Espiritismo como
doutrina organizada, querendo que se amolde ou seja adaptado a qualquer tipo indefinido de
espiritualismo, perdendo o que lhe é intrínseco e distintivo.

15 – Para o Espiritismo, a experimentação mediúnica é uma necessidade, não propriamente como fim,
mas logicamente como meio indispensável. Sem o fenômeno, que é a prova objetiva da imortalidade da
alma, não haveria espiritualismo experimental. Então, a filosofia espiritualista seria apenas a crença na
vida do Além, uma crença tão discutível, tão insustentável como as tradições da teologia.

16 – Há, inegavelmente, três pontos em que o Espiritismo, a Teosofia, o Esoterismo, a Escola


Rosacrucianista e outras correntes espiritualistas se igualam sem discrepância: a imortalidade do
Espírito (tese oposta ao materialismo), a reencarnação e a existência de Deus.

17 – O espiritualismo dos teólogos, justamente porque afirmava sem demonstrar os seus postulados,
não resistiu às críticas do espírito científico e, ainda mais, abriu caminho para o agnosticismo, a
descrença, o materialismo em que mergulharam muitos espíritos de escol, porque não encontraram
segurança em suas crenças.

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18 – A fé, especialmente na Europa, que era o foco mais brilhante do pensamento ocidental, estava em
crise quando se iniciou a Codificação do Espiritismo, nove anos depois dos fenômenos de Hydesville,
verificados em 1848, nos Estados Unidos.

19 – É justo, portanto, reconhecer que o Espiritismo reergueu o Espiritualismo no Ocidente e, ao


mesmo tempo, revigorou a fé sobre alicerces racionais. O Espiritismo demonstrou que a existência do
Espírito não é simples problema de credulidade, não é uma nebulosidade metafísica, como diziam
certos apologistas do espírito positivo.

20 – O movimento iniciado na França, em 1854, por Allan Kardec, movimento esse que deu causa à
formação de um corpo de doutrina com o nome de Espiritismo, tomou um sentido diferente, apesar de
se haver firmado também na fenomenologia extra-humana.

21 – Quando se formou a doutrina com o nome de Espiritismo? No século 19. As doutrinas orientais,
aquelas que têm mais afinidade com o Espiritismo, em virtude da velha crença na reencarnação, já
existiam há milênios.

22 – Diz-nos o Codificador do Espiritismo: Como meio de elaboração, o Espiritismo procede


exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos
se apresentam e, não podendo ser explicados pelas leis conhecidas, ele os observa, compara, analisa e,
remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhe as consequências e busca
as aplicações.

23 – O ensino da reencarnação, apesar de antiquíssimo, não chegou ao Espiritismo pelas doutrinas


secretas, mas pelas comunicações dos Espíritos. Ainda assim, não foi aceito passivamente, mas pelo
raciocínio, pela comparação, pela confirmação coletiva.

24 – Allan Kardec verificou, em primeiro lugar, que, sendo a reencarnação uma crença muito difundida
no Oriente, diversos espíritos, sem dissonância, vieram reafirmá-la com esclarecimentos aceitáveis,
sem o véu do pensamento oculto.

25 - Em segundo lugar, o próprio Kardec, pelos seus raciocínios, pelo seu senso analítico, se convenceu
de que a reencarnação é uma tese lógica, sobretudo porque é a solução mais racional para certos
problemas transcendentais, como a Justiça Divina em face das desigualdades humanas, o livre-arbítrio
e o determinismo, antipatias e afeições, como tantos outros problemas filosóficos.

26 – Vejamos o que afirma a Doutrina Espírita sobre as relações do perispírito com o meio ambiente:
do meio onde se encontra é que o espírito extrai o seu perispírito, isto é, esse envoltório, ele o forma
dos fluidos ambientais. Resulta daí que os elementos constitutivos do perispírito naturalmente variam
conforme os mundos.

27 – Se, por um lado, existe relação imediata entre o perispírito e o meio de onde pode o espírito
absorver a matéria fluídica que lhe é necessária, também existe, por outro lado, relação direta entre o
perispírito e o grau de adiantamento ou de atraso moral do espírito.

28 – A Doutrina Espírita não deixa a menor dúvida sobre este ponto: “A natureza do envoltório fluídico
está sempre de acordo com o grau de adiantamento moral do espírito. Os espíritos inferiores não podem
trocar de envoltório a seu bel-prazer e, por consequência, não podem passar, à vontade, de um mundo
para outro.” (Allan Kardec. A Gênese. Cap. XIV, item 9.)
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29 – O Espiritismo vê o perispírito ou corpo fluídico como um todo, embora sujeito às influências que
lhe determinam modificações em cada mundo, na razão lógica do progresso ou do retardamento.

30 – O corpo fluídico é íntegro, e nenhuma classificação de categoria (superior ou inferior) quebrar-


lhe-ia a unidade substancial; suas aparências, variando sempre, em cada estado evolutivo, são aspectos
do mesmo corpo, são manifestações da mesma realidade em graus diferentes.

31 – Quanto ao perispírito, que não é uma criação do Espiritismo, porque a noção de corpo
intermediário já existia na Pérsia, na Índia, no Egito, na Grécia, por exemplo, o material que a literatura
espírita oferece, e com a documentação das provas, é suficiente para justificar e demonstrar a
necessidade desse corpo, apesar da negação sistemática dos teólogos.

32 – O Espiritismo diz apenas que existem mundos diversos. Já o Cristo ensinava: Há muitas moradas
na casa de meu Pai. Paraíso e inferno, para o Espiritismo, são duas ficções, não exprimem realidade.
Cada espírito vive, durante uma ou mais de uma existência, no mundo que seja compatível com o seu
embrutecimento ou progresso.

33 – Uma existência pode ser infernal, figuradamente falando, quando o espírito cria ambiente ruim,
como pode ser feliz se o espírito melhora o seu modo de vida. São estados de consciência.

34 – O pensamento da doutrina está resumido, todo ele, neste ponto fundamental: a reencarnação do
espírito ocorre em diversos mundos. Há mundos superiores e inferiores à Terra.

35 – A doutrina é satisfatoriamente explícita: Nossas diversas existências corporais efetuam-se todas na


Terra? Resposta: “Nem todas, mas em diversos mundos; a deste mundo não é a primeira, nem a última,
e é uma das mais materiais e das mais distantes da perfeição” (LE, questão 172). Nenhuma outra
explicação nos parece mais racional, mais concordante com o princípio da progressividade do espírito.

36 – O Espiritismo aceita a existência de graus hierárquicos no desenvolvimento moral dos espíritos. A


hierarquia moral é, aliás, a única hierarquia cabível na trajetória dos espíritos.

37 – Entretanto, não se pode deixar de reconhecer que qualquer doutrina, por mais visíveis que sejam
as semelhanças, tem aquilo que lhe é próprio, aquilo que marca as diferenciações no conjunto.

38 – Mais racional do que mística, mais experimental do que metafísica, a doutrina codificada por
Allan Kardec muito se liga aos raciocínios positivos sem chegar, todavia, ao exagero daqueles
experimentadores que, dominados pela quase obsessão do espírito científico, fecham os olhos às
claridades da vida espiritual.

39 – A verdade é universal, mas nem todos podem percebê-la na mesma esfera de compreensão.
Apesar da predominância de uma verdade transcendente, que se sobrepõe às limitações da inteligência
humana, existem balizas demarcadoras entre todas as searas do conhecimento. Todas as doutrinas
organizadas têm o seu corpo de princípios, seus postulados, sua orientação.

40 – O Espiritismo é uma doutrina universalista, e tanto quanto as doutrinas que mais o sejam; mas é
indispensável não levar a noção de universalismo ao arbítrio de acomodações inconvenientes senão
prejudiciais à clareza do espírito analítico.

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41 – Repetimos que o Espiritismo é universalista porque todos os fatos do espírito são universais, os
seus problemas têm o sentido da universalidade, mas também é oportuno acentuar que o Espiritismo
não é uma forma de sincretismo doutrinário ou religioso, sem unidade nem consistência.

42 – O Espiritismo não adota simbolismo nem linguagem figurada. Não é uma doutrina deficiente ou
primária, apesar de sua naturalidade e sua forma acessível. A doutrina tem um conteúdo moral e
filosófico muito profundo, mas a sua apresentação dispensa quaisquer fórmulas enigmáticas.
Simplicidade não é superficialidade.

43 – A prolixidade, em muitos casos, é demonstração de insegurança, ao passo que o espírito de


síntese, por ser muito mais difícil, é manifestação de competência. A sabedoria não é privilégio da
complexidade nem depende dos caracteres incompreensíveis, porque também se revela na clareza das
ideias ou na exatidão dos conceitos que se expressam em linguagem simples.

44 – Para dizer o que diz, para afirmar e provar as suas teses, o Espiritismo tem elementos próprios, e
nisto consiste, principalmente, a diferença entre a Doutrina Espírita e as outras doutrinas e correntes
espiritualistas.

45 – Se, finalmente, o Espiritismo se distingue, por um lado, das doutrinas que lhe são afins, em razão
de aspectos especiais, também se distingue, por outro lado, de todas as organizações ritualísticas, ainda
que sejam igualmente espiritualistas.

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O Evangelho e a Interpretação Espírita – Capítulo II

1 – O Espiritismo tem, forçosamente, relações com as doutrinas e religiões espiritualistas. Em primeiro lugar,
como se sabe, existe um ponto comum em matéria religiosa: DEUS. Ora, se a filosofia espírita afirma a
existência de Deus como princípio basilar, é claro que, neste ponto, a doutrina coincide com as religiões cristãs.

2 – Em segundo lugar, não tendo o Espiritismo outra moral senão a do Evangelho, pois o próprio Allan
Kardec já disse que a Doutrina Espírita não criou moral nova, também neste ponto são flagrantes as
suas concordâncias com o Cristianismo. Há, portanto, três princípios concordantes: existência de Deus,
imortalidade do espírito depois da morte, e aceitação da moral de Jesus.

3 – Vejamos, no Capítulo VIII das Conclusões de O Livro dos Espíritos, as seguintes palavras textuais
de Allan Kardec: “O Espiritismo não traz moral diferente da de Jesus”.

4 – A discussão histórica, entretanto, colocada no terreno da erudição pura e simples, sem um objetivo
superior, não tem significação para o progresso espiritual da humanidade porque representa apenas um
valor intelectual, ao passo que a realização íntima, no sentido da evolução moral, exprime um valor
espiritual, de efeito muito mais profundo e duradouro.

5 – O esforço intelectual é uma necessidade do espírito, mas é justo considerar que, nas categorias de
valores, jamais poderemos perder de vista a supremacia da moralidade, visto que o homem deve
progredir tanto em ciência como em moral! (O Livro dos Espíritos, questão 192.)

6 – Assim como a cultura intelectual, por si só, ainda não é suficiente para realizar a transformação
espiritual do homem, também a fé, por si só, sem o conhecimento, não é suficiente para fazer o homem
chegar à plenitude do progresso. Tem muita razão Allan Kardec quando prevê a aristocracia intelecto-
moral, isto é, uma sociedade em que prevalecem em harmonia o conhecimento e a moralidade.

7 – Os ensinos morais de Jesus, em sua pureza, estão acima dos sofismas ou das agilidades verbais. O
Evangelho, praticamente falando, é um código de vida. A moral do Evangelho, no que ela tem de
mais límpido e perene, em todas as latitudes, desde que seja vivida e não apenas sabida de cor, é o mais
seguro ponto de apoio para que o homem se torne melhor e mais feliz.

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8 – Mister se faz que haja uma luz nova, e esta luz, para nós, é a Doutrina Espírita, porque a sua
filosofia explica o Evangelho, tornando-o mais claro, mais coerente, mais consentâneo com a realidade
humana e espiritual. Devemos, pois, firmar um ponto: é o Espiritismo que interpreta o Evangelho; não
é o Evangelho que interpreta o Espiritismo.

9 – Allan Kardec acentuou muito bem que o Espiritismo não veio destruir o Evangelho, mas antes, pelo
contrário, veio trazer elementos de elucidação para fortalecê-lo.

10 – Lê-se, ainda, no corpo da Doutrina Espírita, esta afirmação inconfundível: “Jesus empregava
amiúde, na sua linguagem, alegorias e parábolas, porque falava em conformidade com os tempos e os
lugares. Nossa missão consiste em abrir os olhos e os ouvidos a todos, confundindo os orgulhosos e
desmascarando os hipócritas, os que vestem a capa da virtude e da religião a fim de ocultarem as suas
torpezas. (Continua)

11 – O ensino dos espíritos tem de ser claro e sem equívocos para que ninguém possa pretextar
ignorância e para que todos possam julgar e apreciar com a razão. Estamos incumbidos de preparar o
reino do bem que Jesus anunciou”. (O Livro dos Espíritos, questão 627.)

12 – Observe-se bem a declaração capital: “Estamos incumbidos de preparar o reino do bem que Jesus
anunciou”. Será algum reino imaginário? Não. O reino do bem, tal qual o preconizou Jesus, é o amor, a
decência, a reforma individual e o aperfeiçoamento moral dos costumes, sem o que não se pode esperar
progresso espiritual.

13 – O fato de haver Allan Kardec preferido não instituir nenhum sistema de moral, porque lhe bastou
a moral cristã para o coroamento da doutrina por ele codificada, não quer dizer que o Espiritismo
concorde ou deva concordar com tudo quanto ensinam as diversas religiões e denominações cristãs;
muito menos seria possível introduzir no Espiritismo práticas, dogmas e fórmulas peculiares às
religiões oriundas do Cristianismo.

14 – A parte moral do Evangelho, como já se disse inúmeras vezes, é o “terreno neutro”, onde todos se
encontram sem conflito, porque toda a moral de Jesus se resume no Amor ao próximo, cujos efeitos
levam a esta regra inabalável: não fazer aos outros aquilo que não queremos que os outros nos façam.

15 – Dentro disso, que é um ensino antiguíssimo, está a norma básica de todas as relações humanas,
inclusive no campo extenso das relações internacionais. De indivíduo para indivíduo, de nação para
nação, a regra é a mesma: respeitar os direitos do próximo, tanto quanto se exige respeito dos direitos
próprios.

16 – Não há melhor e mais sábia norma de convivência internacional. Se tal fosse a inspiração dos
povos, muitos problemas já teriam sido resolvidos. É inútil pretender a paz por meio de decretos,
convenções e congressos, enquanto não se implanta na consciência dos dirigentes dos povos a noção de
respeito aos direitos alheios.

17 – Justamente por isso é que a moral do Evangelho combina perfeitamente com os objetivos da
Doutrina Espírita, pois esta doutrina também é infensa à qualquer solução contrária à natureza humana.
Muita gente crê em Jesus, mas ainda não viu ou não quis ver os condicionamentos a que o sublime
pastor subordinou as consequências de seus ensinos.

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18 – Daí se dizer, e com indiscutível propriedade, que a moral de Jesus é dinâmica, porque todas as
suas expressões se consubstanciam em dois princípios inseparáveis: responsabilidade e esforço
próprio. Não é isto, exatamente, o que está no pensamento da Doutrina Espírita? São evidentes,
portanto, as correspondências entre a moral do Evangelho e as consequências morais do Espiritismo.

19 – Recomenda Jesus: “Pedi e dar-se-vos-á”. (Jesus afirma, com isso, o valor da prece, mas é
necessário que saibamos pedir. A prece pode ser inútil, desde que o sentimento não seja honesto.) Diz a
Doutrina Espírita: “O essencial não é orar muito, mas orar bem”. (O Livro dos Espíritos, questão 660.)
Orar bem é orar com justiça, com sinceridade, não querer absurdo por meio da prece. Este preceito
exprime o mesmo sentido da sentença de Jesus, apenas por outras palavras.

20 – Se queremos ser beneficiados pela prece, que é o mais poderoso recurso da alma humana, sejamos
sinceros, humilhemo-nos, esqueçamos as ofensas e, assim, purificando os nossos sentimentos,
estaremos em condições de “orar bem”, como ensina a Doutrina Espírita em concordância com o
Evangelho.

21 – Quando o homem luta consigo mesmo, para se melhorar, está trabalhando. Vejamos a questão 675
de O Livro dos Espíritos: “Por trabalho se deve entender as ocupações materiais? — Não, o espírito
trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho”. O conceito de trabalho é o mais elástico
possível.

22 – As promessas do Evangelho, e são promessas consoladoras, não nos eximem do trabalho, não nos
dispensam da reforma moral.

23 – O Evangelho, interpretado à luz do Espiritismo, longe de nos levar à beatitude e à vida “puramente
contemplativa”, exige ação, estudo, transformação interior. Seria também contraproducente, para o
meio espírita, imitar o sistema de interpretação das Igrejas cristãs, o que equivaleria a pôr a doutrina de
lado e a reproduzir os textos evangélicos sem as luzes da filosofia, sem os elementos de elucidação que
a Doutrina Espírita fornece à inteligência.

24 – Continuemos a acompanhar o sentido condicional dos ensinos de Jesus. As mais belas sentenças
do Evangelho, justamente aquelas que mais tocam “nas fibras do coração humano”, são formuladas em
dois termos: antecedente e consequente. Há, sempre, um sentido de subordinação ou dependência: isto
depende daquilo; para obter aquilo é necessário que se faça isto, e assim por diante.

25 – Uma situação depende da outra. Qual a conclusão prática de tudo isso? Simplesmente esta:
ninguém conquista o reino sem trabalho, sem reforma íntima, sem modificar os sentimentos ou sem
destruir as paixões. Ensina-se aí aquilo mesmo que está nas linhas gerais da Codificação do
Espiritismo: sem o trabalho não há progresso espiritual. Esta moral, que é a moral da ação e do mérito,
é muito mais racional, mais compreensível do que a moral das graças caídas do céu e dos privilégios
divinos.

26 – Diz a Doutrina Espírita: “O verdadeiro homem de bem é aquele que pratica a lei de justiça, de
amor, de caridade na sua maior pureza. Se interroga a sua consciência em relação aos próprios atos, a si
mesmo pergunta se não violou a lei; se não ocasionou prejuízos; se fez todo o bem que lhe era possível;
se desprezou voluntariamente alguma oportunidade de ser útil; se alguém lhe tem queixas; se fez aos
outros como quereria que lhe fizessem”. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVII, item 3.)

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27 – Vejamos o pensamento da doutrina: Não consiste a virtude em demonstrardes o aspecto severo e
lúgubre, nem em repelirdes os prazeres que as condições humanas permitem. Ainda mais: Vivei como
os homens de vossa época. Até nisto se nota o cometimento, a profunda observação psicológica do
Espiritismo em relação ao comportamento do homem no meio social. (O Evangelho Segundo o
Espiritismo, cap. XVII, item 10.)

28 – O que a Doutrina Espírita reprova, como se sabe, é o abuso, a licenciosidade, a indecência. Não se
vai daí concluir pelos exageros, pela privação das necessidades compatíveis com a natureza humana e
com as solicitações da vida social.

29 – Em vez de dizer ao homem que deve fugir o mundo para não se contaminar de “pecados”, a
Doutrina Espírita prepara o homem para enfrentar o mundo. É pela luta, reagindo contra o mal, que o
espírito se depura e se eleva. E para isso é necessário viver no mundo, entre os homens.

30 – O progresso do espírito não pode, entretanto, dispensar a convivência social, pois é pelos contatos
e pela experiência que, cedo ou tarde, se aprende a distinguir o bem e o mal, vivendo os problemas e
não apenas conhecendo a vida teoricamente.

31 – É o que nos mostra o Espiritismo. Não há necessidade, pois, de sacrificar o corpo ou de substituir
as aparências comuns para purificar o Espírito. Tudo isso pode ser praticado em razão de votos ou de
regras disciplinares de certas comunidades religiosas ou místicas, mas não deve ser introduzido nos
costumes espíritas, porque a doutrina lhe é contrária.

32 – Estudando, aprendendo, sofrendo, adquirindo experiência, sem pretender a perfeição absoluta,


porque não é possível, cada qual que se esforce para ser melhor. E é assim que o homem, cada vez
mais, se aproxima de Deus. Para realizar a sua “transformação moral”, que é uma imposição do
progresso espiritual, o homem não necessita de vestuário especial, nem de símbolos ou de
características que o diferenciem de seus semelhantes.

33 – Para ser bom ou para se elevar na escala espiritual, ninguém precisará viver fora de sua época ou
fugir às necessidades próprias de seu meio, tanto mais quanto, segundo a filosofia da reencarnação, não
é por acaso nem por mero capricho de Deus que se reencarna, ora neste ora naquele ambiente.

34 – É o que nos assegura, claramente, a Doutrina Espírita. A reforma do homem é interior, não é
exterior. Justamente por isso — e é a Doutrina que o demonstra — o Espiritismo não comporta a
instituição de qualquer forma de culto material.

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3o Congresso de Estudos Espíritas –Deolindo Amorim

AFRICANISMO E ESPIRITISMO
(Livro de Deolindo Amorim, CELD, 2009)

INTRODUÇÃO – (do livro)

Palavra de vários confrades:

1 – O Espiritismo é simplesmente o retorno ao Cristianismo primitivo, sob formas mais


precisas, com um cortejo grandioso de provas experimentais que tornará impossível todo monopólio
ulterior, todo retorno das causas que desnaturaram o pensamento do Cristo. (Léon Denis em
Cristianismo e Espiritismo, cap. II.)
2 – Jornalista ilustrado e estudioso, de atitudes sinceras e honestas a toda a prova, Deolindo
Amorim (...) é um adepto capacitado de sua missão social, um escritor a serviço de uma ideologia
alevantada, que se vem destacando, dentre os propagandistas em voga, pela sua dinâmica atividade nos
domínios do Espiritismo. (Lippmann Tesch de Oliver, Introdução.)
3 – O seu trabalho, que é muito interessante, demonstra de maneira clara e convincente a
nenhuma relação que existe entre o Africanismo e o Espiritismo, ou seja, entre o ritual de Umbanda, e a
prática da Doutrina Espírita. (José Fernandes de Souza – Mundo Espírita, de 8/3/1948.)
4 – Não há meios-termos. A ignorância é que supõe colocar remendo novo em pano velho,
conquanto a sabedoria diga que “odres velhos não suportam vinho novo”. Só um caminho se tem a
seguir: é acabar com o passado e seguir o presente para chegar ao futuro. (J. Lima, Revista Espírita do
Brasil, de abril de 1947.)
5 – Li vosso livrinho de uma só vez, e com a máxima atenção, as cinquenta e oito páginas, nas
quais o confrade defende a nossa doutrina, sem ferir ou menosprezar aqueles que, por ignorância ou
má-fé, querem deturpá-la. (Constantino Gomes de Carvalho – Mundo Espírita, de 15/3/1947.)
6 – Espiritismo, diz você muito bem, é doutrina e não fenômeno, e como tal só teve vida com o
grande Kardec. Antes dele existiam apenas os fenômenos, aos quais muitos se agarram para poderem
sofismar que o Espiritismo doutrina sempre existiu e assim diminuírem o mérito do excelso Mestre que
você, agora, com o seu esclarecedor trabalho, veio colocar no verdadeiro pedestal.

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Deolindo Amorim
Estou convencido de que o Espiritismo do povo, na nossa terra, será por muitos e muitos anos
essa mistura de Espiritismo, Catolicismo e Africanismo que observamos atualmente. (De uma carta de
João Carlos de Assis – Mundo Espírita, de 19/4/1947.)

Capítulo I (do livro)

1 – Tem-se procurado, aliás sem razão plausível, confundir o Espiritismo com velhas práticas
afrocatólicas, enraizadas no Brasil desde o período colonial. Argumenta-se, em defesa de tal suposição,
que nas práticas africanas se verificam manifestações de espíritos, o que, no entender de muitas
pessoas, é suficiente para dar cunho espírita a essas práticas. O raciocínio é mais ou menos este: onde
há manifestações de espíritos, há Espiritismo; logo, as práticas fetichistas são também práticas espíritas,
porque nelas se fazem evocações de espíritos.
2 – Eis aí uma preliminar discutível. Em primeiro lugar, o que caracteriza o ato espírita não é
exclusivamente o fenômeno; em segundo lugar, o Espiritismo (corpo de doutrina organizado por Allan
Kardec) surgiu no mundo em 1857, e quando suas obras chegaram ao Brasil, já existia o Africanismo
generalizado, principalmente na Bahia.
3 – (...) A mediunidade é comum a qualquer indivíduo, podendo ser espontaneamente observada
entre católicos, espíritas, maometanos, etc. Não são poucos os padres, bispos e pastores com
mediunidade positiva. Não é, portanto, pela natural ocorrência de fenômenos que se pode firmar
critério para determinar o que seja realmente Espiritismo.
4 – O mediunismo faz parte do Espiritismo, mas é preciso frisar que mediunismo não é Espiritismo.
Que há mediunismo nos cultos africanos, não se discute, mas este motivo ainda não basta. Daí poder-se
apresentar a tese de que, embora tenham por base a imortalidade da alma e exercitem o mediunismo, as
práticas do Africanismo, apesar de espiritualistas, não constituem modalidade do Espiritismo.
5 – O Africanismo tem ritual organizado, de acordo com suas tradições seculares, fundadas na
crença em divindades peculiares a seu culto, enquanto o Espiritismo não adota ritual de espécie
alguma, não tem forma de culto, nem adora divindades. É uma doutrina de base científica, propensa ao
método experimental, de cogitações filosóficas muito elevadas, porque trata do destino da alma
humana, preparando o homem para a prática do Bem, única estrada que conduz a Deus.
6 – O fenômeno etnológico da mestiçagem não podia deixar de ter repercussão psíquica, tanto
que a vida religiosa do Brasil, por mais que se insista em dizer que o povo brasileiro é essencialmente
católico, não tende para a unidade, mas para o sincronismo, para a variedade.
7 – O elemento indígena era imortalista. Tinha, porém, seus deuses, admitindo uma espécie de
politeísmo grosseiro, tanto assim que confiava à entidade sagrada os diversos assuntos de suas
atividades: caça, pesca, etc. O general Couto Magalhães, que é, sem a menor dúvida, um dos legítimos
pioneiros da humanitária obra de proteção aos índios no Brasil, anotou algumas das curiosas divindades
observadas nos cultos indígenas: Guaracy, sol; Cahapora, entidade que protege a caça do mato.
Uanyra, protetor da “sorte dos peixes”, etc.
8 – O politeísmo do índio brasileiro não seria uma aberração cultural de origem americana,
porquanto se encontra a variedade de deus em povos muito primitivos. O politeísmo grego, como
outros tipos de politeísmos, caminham naturalmente para o monoteísmo. O advento do Cristianismo
irradiou largamente a noção de um Deus único.

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3o Congresso de Estudos Espíritas
9 – O índio brasileiro tinha, no fundo, a crença na imortalidade, na sobrevivência da alma, mas a
sua tendência religiosa não podia escapar, é claro, à superstição dos deuses, dos espíritos protetores da
caça e da pesca, bases de sua vida social e econômica. Mas o que é preciso ressaltar é que o índio não
era destituído de ideia religiosa.
10 – Diz Couto de Magalhães: “Para poder matar os índios como se mata uma fera bravia, poder
tomar-lhes impunemente as mulheres, roubar-lhes os filhos, criá-los para a escravidão, e não ter para
com eles lei alguma de moral e nem lhes reconhecer direitos, era mister acreditar que nem tinham ideia
de Deus, nem sentimentos morais ou de família. A história fará algum dia plena justiça a essas
asserções”.
11 – O africano, por sua vez, não trouxe unidade cultural. Os dois grupos que, segundo o
professor Artur Ramos, preponderaram na influência do elemento negro são os sudaneses e os bantos.
E estes apresentavam, quando chegaram ao Brasil, diferenças consideráveis. As procedências sudanesa
e dos bantos foram apuradas depois de rigorosos estudos.
12 – Afirma, a propósito, o professor Artur Ramos, considerado uma das maiores autoridades na
matéria, que não existe religião em estado puro.
13 – O Africanismo perdeu há longo tempo, no Brasil, seus traços primitivos. Formou-se no país
uma cultura de fusão, disto resultando o sincretismo religioso — um pouco de Catolicismo, um pouco
de Africanismo, e um pouco de Espiritismo deturpado pelo misticismo popular.
14 – A prática espírita não tem características que possam pelo menos dar ideia de semelhança
com os rituais de origem africana. Podemos dizer, entretanto, que a ideia religiosa é inata no africano,
mas a sua ideia religiosa se exterioriza sob formas de cultos bem variados.
15 – Futuramente, por meio das pesquisas sociológicas e folclóricas, já muito adiantadas no
Brasil, cairá a dúvida por si mesma, ficando cada assunto em seu lugar: o Africanismo será estudado à
luz dos seus elementos de cultura, muito mesclados atualmente; e o Espiritismo será estudado como
Ciência, em face de seus princípios próprios, na seara filosófica em que se situa a sua doutrina.
16 – O ilustre cientista a quem o Brasil já deve tão assinalados serviços, além de uma criteriosa e
nobre campanha contra o absurdo preconceito da inferioridade do elemento negro, estudou o fenômeno
psíquico, o mediunismo, o transe mediúnico, aspectos comuns ao Espiritismo e ao Africanismo. Mas a
Doutrina Espírita vai além desses pontos de orientação. O Espiritismo comporta estudo à parte.

Capítulo II (do livro)

1 – O Africanismo, com todas as suas seitas e cultos, deve ser estudado à parte, assim como o
Espiritismo, porque não há, entre um e outro, afinidade de cultura nem relação histórica.
2 – As práticas afrocatólicas datam de época muitíssimo remota e são de origem heterogênea, ao
passo que a escola de Allan Kardec é de origem europeia e obedece à inteligente unidade de princípios.
Não há, portanto, semelhança com as práticas do culto africano, em cuja mesclagem entraram
elementos diferentes, notando-se, especialmente, o muçulmano. Formou-se, assim, uma expressão
religiosa muito complexa.

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3 – Embora diluídas, mescladas com o Catolicismo, não perderam as práticas religiosas de
origem africana, as suas linhas gerais, conquanto se encontrem, desde muito tempo, sensivelmente
prejudicadas na originalidade, em razão das influências que nela se fizeram sentir.
4 – O pensamento da Doutrina Espírita a respeito de símbolos, fórmulas, etc. está bem definido
pelo próprio codificador do Espiritismo: “Muitas pessoas certamente prefeririam outra receita mais
fácil para repelirem os maus espíritos: por exemplo, algumas palavras que se proferissem, ou alguns
sinais que se fizessem, o que seria mais simples do que corrigir-se alguém de seus defeitos”.
5 – O elemento africano, que já veio para o Brasil muito dividido em seus grupos étnicos,
transplantou para este país tanto a influência cultural como o contingente de sua contribuição
linguística. O cruzamento, portanto, foi completo: religião, cultura e língua.
6 – Até nas relações linguísticas se reconhece a filiação do Umbandismo, como de todas as
formas de fetichismo existente no Brasil, à fonte do Africanismo, grandemente ramificado e, desde
longos anos, entrosado com o Catolicismo.
7 – É verdade que não foi apenas do tráfico africano que nos veio a infiltração linguística.
Grande, como é notório, é a influência do Tupi na língua portuguesa, cujo vocabulário já pode alinhar
numerosos termos oriundos do idioma nativo. Esse fenômeno linguístico nada tem de estranhável,
porquanto o cruzamento sempre teve consequências da formação e no enriquecimento das línguas.
8 – O elemento árabe, cuja irradiação no mundo antigo se estendeu consideravelmente, levou
grande contingente de termos e raízes tanto ao espanhol como ao português. O exemplo do francês,
língua de significação internacional, é bem característico: os elementos céltico, latino e germânico
tiveram preponderância em sua formação.
9 – O culto fetichista se inclina francamente para o Catolicismo e não para o Espiritismo. Tal
equivalência foi notada há muito tempo pelo insigne antropologista Nina Rodrigues, quando observou
uma das mais conhecidas tradições católicas da Bahia: a lavagem da Igreja do Bonfim.
10 – Escreve Nina Rodrigues: “A lavagem da Igreja do Bonfim é, como demonstrei, uma
prática religiosa Iorubana ou Nagô, mas o verdadeiro culto vivo, pois para os africanos negros, crioulos
e mestiços daquela seita, o Senhor do Bonfim é o próprio ‘Obatalá’”.
11 – A crendice popular, entretanto, pretende introduzir o Africanismo no Espiritismo, tanto
assim que já se observa, em determinados centros, alguma inclinação bem visível para o ritual de
Umbanda. Trata-se de herança cultural favorecida pelo sincretismo religioso. A própria divulgação do
Espiritismo por processos inteligentes contribui para destruir, por evolução, os remanescentes da
influência afrocatólica.
12 – O Espiritismo encontrou, no Brasil, a preponderância do Africanismo e do Catolicismo,
com um fator absolutamente favorável: o baixo nível intelectual das massas, educadas na supers-tição e
sob o influxo da religião Católica, que lhe imprimiu o apego aos ídolos, aos símbolos, etc.
13 – Não foi exclusivamente no Brasil que se deu essa mistura, fruto do encontro de religiões.
Ela teve expansão, e muito grande, em vários outros países, suscitando estudos consideráveis como,
entre outros, os que foram realizados pelo notável folclorista americano Fernando Ortiz, de Cuba.
14 – No Brasil, porém, a ligação do Catolicismo com as práticas fetichistas não teve por
característica principal e exclusiva a tatuagem, com que se distinguiam diferentes divisões étnicas da
América Central.
15 – Os índios guaicurus, no Paraguai, categorizados pelos missionários jesuítas, usavam
tatuagem, segundo depoimento do padre Carlos Techuer S. J.: “Pintavam o corpo e usavam tatuagem”.
16 – Está patente, portanto, que as religiões de origem africana aderiram, tanto no Brasil como
em vários outros países da América, às práticas do Catolicismo e do culto aborígene, muito antes de se
conhecer a palavra Espiritismo.
17 – A expansão da Doutrina Espírita, a partir do século 19, isto é, de 1857, encontrou o cruzamento,
o consórcio cultural já formado. Apesar da existência cada vez mais generalizada, do sincretismo
(Africanismo, Catolicismo e Mediunismo), não se pode negar o contingente cultural do elemento africano.
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18 – Para muitos estudiosos, folcloristas, sociólogos, etnólogos, todo esse conjunto de práticas
primitivas, enxertadas de elementos diversos, pertence ao Espiritismo, simplesmente por haver, em tais
práticas, fatos que se enquadram no estudo do mediunismo e do animismo. Dá-se, portanto, ao
Espiritismo, aliás impropriamente, uma designação geral, quando só se pode considerar Espiritismo
aquilo que corresponde aos princípios de sua doutrina.
19 – Entre os próprios umbandistas há quem reconheça a origem remotíssima da religião de
Umbanda, cuja orientação fundamental, como ficou dito linhas atrás, está muito desfigurada.
20 – O meio brasileiro, por força das condições em que se fundiram os elementos primaciais de
sua formação, evidentemente não permitiu que se conservasse a integridade cultural do africano. A
desfiguração do culto religioso é um exemplo. O ambiente tornou-se, desde os tempos primitivos,
campo aberto ao mediunismo popular, a que muita gente chama, sem propriedade, Espiritismo.

Capítulo III (do livro)

1 – Os cultos de origem africana, como se sabe, são fetichistas. Tendo, porém, a palavra fétiche,
do francês, tomado sentido popular no Brasil, principalmente na Bahia, onde o uso geral consagrou a
forma portuguesa feitiço, torna-se indispensável mostrar uma alteração interessante, para clareza do
assunto.
2 – Entende-se por fetichismo, segundo a etimologia, o culto dos fétiches, isto é, a crença no
poder de objetos naturais ou artificiais.
3 – Mas a palavra feitiço é empregada, entre nós, na acepção vulgar de fazer mal a alguém por
meio de objetos de uso, peças de vestuário, pratos de comida, etc. A força do uso chegou a criar o
verbo enfeitiçar, significando justamente transmitir influências maléficas, impregnar alguém de feitiço.
4 – Nota-se, pois, que fétiche adquiriu feição mais popular no Brasil, adaptando-se, de tal forma
ao meio, que seu correspondente em português (feitiço) já se desligou, em grande parte, da acepção
cultural e religiosa em que devera ser empregado.
5 – Voltou-se, portanto, à designação primitiva de feiticeiro, com que eram tratados, em sentido
pejorativo, os curadores e médiuns, sem escapar o próprio Cristo quando fazia suas curas pela simples
imposição das mãos.
6 – A literatura folclórica, que já é abundante, mostra que certos termos perdem, sob a ação do
tempo, o seu sentido primitivo, adaptando-se às ideias e coisas que o povo lhe atribui. Em assuntos de
cultura negra, por exemplo, poderíamos recorrer ao autor citado anteriormente — professor Artur
Ramos — porque foi ele um dos primeiros a fazer estudos especializados do elemento africano sob o
ponto de vista exclusivamente folclórico.
7 – A linguagem do povo consegue forçar o sentido de muitas palavras. O que sucede com
feitiço também se verifica em relação ao emprego de muitas outras palavras que entraram para o acervo
do nosso folclore, ligando-se a lendas e superstições seculares, cuidadosamente anotadas por abalizado
folclorista brasileiro. (Câmara Cascudo.)
8 – Enganou-se o padre Etienne Brasil quando disse que “o moderno culto do Espiritismo não
passa de uma forma do mais genuíno e grotesco fetichismo”.

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9 – Neste ponto, até o próprio Artur Ramos, que fez estudos modernos, discordou do padre
Etienne Brasil em diversas observações sobre as religiões negras, caindo no mesmo equívoco,
naturalmente por não ter elementos para distinguir a prática espírita, segundo o método e a orientação
de Allan Kardec, das práticas afrocatólicas, cada vez mais espalhadas no Brasil.
10 – Afirma, por exemplo, o douto professor Artur Ramos: “Todas as formas elevadas ou
degradadas do Espiritismo decorrem da magia evocatória”.
11 – O Espiritismo tem princípios, tem a sua organização doutrinária na codificação de Allan
Kardec. As manifestações fetichistas não se circunscrevam no terreno puramente religioso, porque, em
determinados casos, produzem excitação especial.
12 – No sul do país, a influência africana entrou por intermédio dos povos do Prata; e nos países
platinos não se deu infiltração Iorubana, visto que ali preponderou a cultura dos congos, muito menos
desenvolvida do que a dos iorubas.
13 – Na América do Sul, como na Central, as religiões africanas perderam, aos poucos, suas
linhas primitivas porque se “misturavam” com o Catolicismo e com o elemento indígena de alguns
países.
14 – Onde, porém, só o elemento africano se conservou, por muito tempo, em estado original,
foi nas Guianas. Daí o mesmo autor afirmar que “as culturas negras da selva, nas Guianas,
permaneceram imunes ao contato branco”.
15 – Mas a cultura mais ativa entre os negros das Guianas não é a Ioruba, porém, a fânti-axânti,
procedente da Costa do Ouro, embora nela se verifiquem certos vestígios do ramo ioruba e da
influência banto.
16 – O fetichismo constitui forma religiosa e tem suas divindades. As religiões de origem
africana, como já se disse inicialmente, são fetichistas. O Espiritismo não tem relação cultural com o
fetichismo, daí se conclui que não há termo de comparação entre Espiritismo e Africanismo, embora se
encontre o mediunismo e não se negue o sentimento de caridade tanto naquele como neste.
17 – Mas a mediunidade, assim como a prática do bem, que é a exteriorização dos bons
sentimentos da criatura humana, podem ser observados em qualquer organização religiosa. O próprio
padre Etienne Brasil, que confundiu o Espiritismo com Fetichismo, afirma que: “O fetichismo é uma
verdadeira religião com seus dogmas, preceitos e ritos peculiares”.
18 – Sendo religião de povos adiantados, o Catolicismo teria de exercer influência sobre os
africanos.
19 – Os cultos africanos entraram no Brasil com profundos resquícios de crenças remotíssimas,
principalmente do Islamismo, o que torna difícil, hoje, fixar com nitidez a parte preponderante desta ou
daquela corrente de influência.
20 – Vê-se, finalmente, que as práticas fetichistas, com seus símbolos, suas divindades, seu
ritual, etc., se aproximam cada vez mais do Catolicismo.
21 – Quanto ao Espiritismo, porém, não se pode afirmar que haja afinidade deste com o
Africanismo, por duas razões fundamentais:
a) O que caracteriza o Espiritismo é a ausência de ritual;
b) Tendo por base de sua doutrina as leis naturais, o Espiritismo exclui racionalmente a ideia do
sobrenatural, do milagre, do poder dos fetiches.
22 – O fetichismo é, como se sabe, o tronco de religiões primitivas, muito desfiguradas, como já
foi dito em páginas anteriores, e seus pontos básicos assentam, precisamente, no sobrenatural, na
crença em divindades. Tal qual se verifica no Cristianismo.
23 – O Africanismo, com todo o conjunto de suas formas religiosas, é remoto, vem de uma
fonte de cultura muitíssimo velha, ao passo que o Espiritismo, isto é, Espiritismo como corpo de
doutrina, é posterior àquela cultura.

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24 – O professor Artur Ramos, que esteve muito tempo na Bahia, onde formou o lastro de sua
cultura científica, cita essa informação popular. De fato, alguns pais de santos eram como que oráculos,
ao que se atribui a consideração de que gozavam juntos a políticos de prestígio.
25 – Diz ainda o mesmo autor: “A Macumba do Rio, o Xangô da Bahia e o Catimbó de
Pernambuco são remanescentes das antigas mesquitas africanas”.
26 – O culto de São Jorge, principalmente no Rio de Janeiro, é um misto de Catolicismo e
Africanismo, assim como o de Cosme e Damião.
27 – O Espiritismo, que não tem oráculos, que não usa adivinhação, que não tem cerimonial
nem imagens, não apresenta semelhança alguma com os velhos cultos do Brasil. O Espiritismo tem a
prece, mas toda natural; evoca espírito, mas sem ritual, porque não tem culto material, finalmente.
28 – Justamente para definir o Espiritismo com precisão (...), teve Allan Kardec a necessidade,
bem compreensível, de criar a denominação própria desse corpo de doutrina. Daí o neologismo por ele
formado, no século passado, para designar a Doutrina Espírita: Espiritismo.
29 – Eis a explicação do codificador desta Doutrina, em trabalho publicado no ano de 1866, na
Revista Espírita, órgão por ele fundado logo depois de haver lançado em O Livro dos Espíritos (1857)
as bases do Espiritismo: “Criamos a palavra Espiritismo para atender às necessidades da Causa; temos,
pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro
espírita”.
30 – Allan Kardec já dizia, desde 1864, ao publicar O Evangelho Segundo o Espiritismo: “O
Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência
e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo; ele no-lo mostra não mais
como coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem cessar atuantes da
natureza, como a fonte de uma imensidade de fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso,
relegados ao domínio do fantástico e do maravilhoso”.
31 – Nada existindo de sobrenatural da concepção do Espiritismo relativamente ao mundo
espiritual, a prática espírita de modo algum poderia nivelar-se com as práticas do culto fetichista, base
das religiões de origem africana.
32 – Com o respeito que me merecem todas as crenças, em deixar de reconhecer que o elemento
africano muito contribuiu para a formação do povo brasileiro, dando-lhe acentuada sentimentalidade,
não vejo, todavia, semelhança entre Espiritismo e Africanismo.
33 – As práticas de origem africana, largamente ramificadas, são espiritualistas, dignas de
respeito como quaisquer outras práticas religiosas, mas não constituem variante das práticas do
Espiritismo. Encerrando este trabalho, chego à conclusão de que Africanismo não é Espiritismo.
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