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Era segunda-feira de manhã e todos estavam na sala de aula.

Bruna podia ouvir alguns risinhos vindos do fundo, mas não prestou muita atenção,
porque estava tentando tirar uma soneca na aula do professor Clóvis. Para ela, aula de história era aula de dormir e ela estava se esforçando para não
dar muito na cara o que estava fazendo.
Os meninos, porém, não faziam muita questão de esconder a falta de interesse e continuavam a rir. Eles faziam tanta algazarra que ela ficou curiosa
para saber do que eles tanto riam e virou-se para trás para olhar. Quando o fez, foi acertada bem no meio da cara por uma bolinha minúscula de papel
mastigado. “Que nojo!” disse, livrando-se da bolinha. Os meninos caíram em gargalhada novamente e, apesar de ter achado super nojento, ela acabou
rindo também.
Naquele exato momento, a coordenadora Zuleica entrou na sala, parou em frente ao quadro e todos os meninos sossegaram. Bruna virou-se para
frente também e tentou segurar o riso. A coordenadora estava acompanhada de uma menina que entrou junto com ela e parou logo ao seu lado. Ela era
branquinha, tinha o cabelo preto, lisinho e enorme e usava uma mochila que a deixava meio corcunda. Ela tinha os olhos puxadinhos e não se parecia nem
um pouco com os outros meninos. Zuleica aguardou até que todos fizessem silêncio e começou:
- Bom dia, classe.
- Bom dia, Zuleica – todos responderam em coro.
- Hoje eu não vim aqui para chamar a atenção de ninguém, apesar de saber que eu deveria – disse, lançando um olhar significativo para os meninos
do fundo.
Bruna e suas amigas trocaram olhares e riram.
- Hoje eu vim aqui para apresentar a vocês nossa nova aluna, seu nome é Miyaki. Ela veio da China, chegou há poucos dias e hoje é o seu primeiro
dia na escola. Agora, ouçam bem – pediu –, ela não sabe bem o português, estudou por apenas alguns meses antes de vir, por isso ainda tem dificuldades
na comunicação. Sendo assim, espero que sejam gentis e tratem-na bem. Fui clara? – ela perguntou, levantando as sobrancelhas e encarando os meninos do
fundo mais uma vez.
- Claro, dona Zuleica – Sérgio, um dos meninos, respondeu com um sinal positivo.
A coordenadora assentiu com um olhar não muito satisfeito, mas não disse nada. Antes de ir, ela explicou para a nova aluna que ela já podia se
sentar e partiu.
A menina ainda permaneceu lá parada por alguns instantes antes de se mover. Ela pareceu estudar a sala e, quando encontrou um lugar vazio atrás
da Bruna, foi em sua direção. A carteira estava vaga porque uma das meninas do grupo havia faltado à aula, então ela pensou que ninguém se sentava ali.
Como Carina havia de fato faltado à aula, Bruna não se importou, apesar de sempre guardarem o lugar uma da outra.
Quando Miyaki passou por ela, Bruna deu-lhe um sorriso, mas a menina pareceu não ver e continuou andando até se sentar. Ela colocou seus objetos
no chão ao lado da carteira e sentou-se. Bruna não se virou para cumprimentá-la porque não se agüentava de sono, preferindo voltar à sua posição de
cochilo.
- A-ri-ga-to! – soltou Sérgio na direção da nova aluna com uma voz estridente.
Os outros meninos abafaram alguns risos e olharam-se debochados. Porém, diferentemente do que eles pensavam, Miyaki virou-se calmamente para
ele e disse:
- Arigato não ser mandarim, ser japonês.
Ao ouvirem sua resposta, os meninos todos se calaram. A voz dela era engraçada, pois ela falava rapidamente e seu tom de voz parecia subir e
descer o tempo todo como uma escada. Além disso, ela mantinha uma feição sem muita expressão, com seus olhinhos puxadinhos e fitava-os seriamente.
- Ah, me desculpe... – disse Sérgio, um pouco sem graça. – Eu não sei a diferença. Ele pareceu arrependido do que fez e disse devagar, tentando
consertar o erro:
- Meu nome é Sérgio, eu não ouvi o seu direito. Você é a...
- Meu nome é Miyaki.
- Prazer, seja bem vinda.
Ela deu um sorriso tímido, virou-se para frente e os meninos aquiesceram, sem fazer mais gracinhas. Eles também se viraram para a frente e
continuaram a fingir que prestavam atenção na aula.
Quando o sinal bateu, Bruna se levantou e juntou seus materiais. Colocou a mochila nas costas e seguiu para a porta para esperar suas amigas para
seguirem caminhando juntas até a saída do colégio como sempre faziam. Elas, porém, demoravam mais do que o costume e Bruna já estava impaciente de
esperá-las sozinha no corredor. Ela desejava ir embora rápido, encontrar sua cama, deitar e dormir, por isso voltou à sala para saber a causa da demora.
Quando olhou para dentro, pôde vê-las conversando animadamente com a nova aluna. Ela achou estranho porque nenhuma das duas partes parecia se
entender, mas pareciam estar se divertindo e riam o tempo todo.
Ela pensou em ir até lá e conversar com elas também, mas o sono era maior e ela não estava com a menor vontade. Ela não estava nem um pouco a
fim de ficar se matando para tentar fazer a menina entender alguma coisa. Para ela, brasileiro tinha uma mania boba de ficar explicando até fazer o outro
entender e ela não gostava nem um pouco daquilo, então se virou, desceu segurando seu caderno nos braços e foi embora.
No outro dia, ela acordou atrasada como sempre com sua mãe a chamá-la na porta do quarto e mal teve tempo de tomar café direito. Lavou o
rosto, escovou os dentes, arrumou o cabelo e trocou de roupa. Seu pai levou-a de carro até a escola e ela subiu rapidamente as escadas até sua sala.
Quando chegou na porta, um pouco ofegante, pediu licença ao professor e entrou. Ela estava com tanta pressa que mal olhou para a turma e foi direto para
sua carteira. Mas, para sua surpresa, quando ela se aproximou do seu lugar, viu que ele estava ocupado. A garota estrangeira estava lá. Ela não entendeu
direito, mas o que pensou foi que a menina devia ter achado que naquele dia quem não iria a aula era ela e resolveu sentar-se ali. Ela permaneceu
parada a olhá-la por uns instantes, até que o professor chamou-lhe a atenção e perguntou se ela não iria se sentar. Bruna pediu-lhe desculpas e virou-se
rapidamente, escolhendo um lugar no outro canto da sala, mais ao fundo.
“Ótimo!” pensou.
Como aquela garota havia tomado seu lugar, ela teria de sentar-se longe das suas amigas. Ela cruzou os braços e passou o primeiro horário inteiro
reparando em como elas conversavam e o quanto riam.
Quando o sinal do recreio tocou, ela se levantou e desceu sozinha as escadas até o pátio. Ela não estava muito bem. As outras meninas pareceram
nem notar sua ausência, pois não a chamaram quando a viram levantar. Ela seguiu até a cantina e pediu um salgado. A cantineira entregou-o logo em
seguida e Bruna virou-se para escolher uma cadeira para sentar-se, quando Camila e Carla aproximaram-se.
- Finalmente te encontramos. Você esteve sumida hoje – Camila comentou.
Bruna estava prestes a morder seu salgado, mas reteve-o no ar, surpresa. Ela não acreditou quando ouviu aquilo. “Eu estive sumida?” pensou. Sua
vontade foi de responder que era óbvio que ela estivera sumida, porque aquela nova aluna havia sentado em seu lugar e nenhuma das meninas parecia
tê-la avisado que ela se sentava lá, mas não o fez.
- Não acho que estive sumida – ela respondeu, apenas. – Não sou muita boa para conversar quando estou do outro lado da sala.
Camila pareceu não entender a indireta e respondeu com seu jeito distraído.
- Ah é, eu nem me lembrei – falou, batendo de leve na testa. – A Miyaki sentou no seu lugar, não é? Ela chegou hoje na sala e perguntou se
podia sentar ali. Como já estava tarde e como você não havia chegado ainda, nós achamos que não viria, por isso dissemos que ela podia sentar-se lá.
“Como assim?” Bruna perguntou-se, arregalando os olhos. “E o nosso trato de que ninguém pode sentar no lugar de ninguém, mesmo que uma de
nós falte?”
Aparentemente Camila parecia não se lembrar e continuou:
- Você não a conheceu direito, precisa conversar com ela. Não vai acreditar – disse, baixando o tom, como se se referisse a um segredo. – O pai dela
é empresário e trabalha numa fábrica de brinquedos, aquelas coisas importadas lá da China – falou, fazendo um gesto evasivo no ar e um enorme sorriso no
rosto. – Ele veio para assumir um cargo importante na filial da empresa aqui no Brasil.
“Legal!” Bruna pensou consigo. Aquela garota mal acabara de chegar e já estava tentando conquistar todo mundo com o discurso da menina rica e
filha de empresários. Ela não gostou nada daquilo. Queria mesmo era sentar-se nas mesinhas do pátio e lanchar, mas aquele dia parecia não ser o seu.
Ela estava prestes a protestar, queria saber por que elas estavam dando toda aquela atenção para uma menina que elas nem conheciam direito, mas,
antes que ela pudesse dizer algo, a própria garota chegou de braços dados com Carina. Sua melhor amiga.
- Ei amiga, onde você estava? – Carina perguntou, aproximando-se.
“No outro lado da sala, você não viu?” ela quis responder, mas conteve-se.
- Por aí – falou, apenas.
- Acho que você ainda não conhece a Mi, não é? – perguntou, indicando-a a seu lado.
– Quero dizer, acho que você já deve tê-la notado, mas ainda não conversou com ela.
- Não, ainda não – disse Bruna, secamente.
Ela olhou a garota e Miyaki devolveu o olhar. Ela sorria de forma estranha, seus olhos eram muito fechadinhos e parecia que ela mal
conseguia enxergar além das pálpebras. Bruna não sabia o que dizer. Ela quase podia apontar um brilho de ironia em seu olhar, porém preferiu não dar
atenção àquilo. Aqueles estrangeiros tinham um jeito diferente de ser e ela não estava nem um pouco a fim de entendê-la. Elas trocaram olhares durante
um tempo até que Bruna resolveu quebrar o gelo e falou, forçando um sorriso:
- Olá.
- Olá – Miyaki repetiu, acenando com a cabeça.
As garotas continuaram olhando-se da mesma forma de antes, esperando ninguém sabia o quê, e nenhuma delas disse nada. Bruna não estava nem
um pouco a fim de conversar, muito menos com aquela menina. Tudo o que queria era sentar-se e comer seu lanche.
- Será que a gente poderia sentar? – sugeriu. – Eu estou cansada de ficar em pé e vocês sabem que eu gosto de comer sentada – ela disse.
- Claro, vamos para as cadeiras – concordou Carina, virando-se para Miyaki. – Venha, Mi. Sentar, comer... – ela explicou, gesticulando.
A garota pareceu entender e elas se dirigiram para as cadeiras para sentarem-se juntas, deixando Bruna para trás, completamente só. Bruna
olhou aquilo, como se visse algo inacreditável, e apenas segui-as com o olhar, permanecendo-se imóvel. Ela havia ficado extremamente sem reação. De tão
encabulada, ela acabou amassando o guardanapo do salgado e atirou-o longe. Já havia perdido o apetite.
No outro dia, quando Bruna chegou à sala, ela foi direto para seu lugar e sentou-se. Depois pegou sua mochila e colocou-a na carteira atrás de si.
Daquela forma, se Miyaki chegasse antes da Carina, ela veria que a carteira estava ocupada e não poderia se sentar ali. Ela fizera questão de acordar bem
cedo naquele dia para chegar dentro de sala antes de todos. Aquela coisa de uma sentar no lugar da outra já a estava incomodando e ela não queria ficar
sobrando de novo. Finalmente as coisas voltariam ao normal.
Como esperado, todas as meninas chegaram e sentaram-se em seus lugares. Miyaki chegou logo em seguida e, quando viu que não tinha lugar,
escolheu uma carteira um pouco distante, mais perto dos meninos. Antes que a aula começasse, porém, Carina virou-se para trás e esgueirou-se um pouco
sobre a cadeira para poder falar com ela.
- Ei, Miyaki – ela disse, chamando a atenção da outra –, venha aqui. Traga a sua carteira e coloque aqui perto da gente. O professor não vai ligar.
Bruna arregalou os olhos e quedou-se boquiaberta sem perceber. Ela teria ouvido bem? Sua melhor amiga, que nem a havia cumprimentado naquele
dia, estava convidando aquela nova aluna para sentar-se ao seu lado?
- Pegue a carteira e traga pra cá – Carina repetiu, gesticulando.
A menina pareceu não entender e permaneceu estática, olhando-a. Como ela não se movia, Carina levantou-se sorridente e foi até ela. Ela pediu
licença e levantou a carteira com um pouco de dificuldade, levando-a para perto das outras meninas. Posicionou-a bem no meio da fileira, ao seu lado, e
acabou tampando a passagem de Bruna.
- Venha – ela repetiu, com um sinal.
Miyaki entendeu o que ela sugeria e levou sua cadeira para sentar-se ao seu lado, sorrindo.
“Como assim?” Bruna pensou, pasma. Ela havia visto bem? Sua melhor amiga, que nos últimos dois dias a havia ignorado para dar atenção a uma
estranha, estava, naquele momento, chamando a própria para sentar-se com ela? Aquilo era demais e Bruna não se agüentou. Ela abriu seu estojo e fingiu
procurar uma caneta para não dar na cara que não havia gostado daquilo, mas a verdade era que ela estava extremamente magoada.
Quando o sinal do recreio bateu, as meninas desceram todas juntas e Bruna fez questão de pegar Carina pelo braço para descerem coladas.
Alguém tinha de mostrar para suas amigas que ela ainda continuava a existir e ela não estava a fim de sobrar naquele dia. Ao chegarem ao pátio, as
meninas acomodaram-se nas carteiras e ficaram olhando o nada, jogando conversa fora enquanto comiam, como sempre faziam.
Alguns minutos depois, quando todas haviam acabado de lanchar, Miyaki virou-se para trás e pegou um pacote cheio de embrulhos que ela havia
colocado no chão. Ela havia carregado aquilo consigo para o recreio e queria dizer algo, mas parecia não conseguir explicar-se direito, então pegou o
embrulho e começou a abri-lo ali mesmo. Ela tirou vários outros pacotes menores de dentro dele, cada um de uma cor e distribuiu- os às meninas. Eles
eram pequenos, do tamanho de uma mão e eram de papel brilhoso, amarrado com uma fita. Elas se entreolharam curiosas e nenhuma delas abriu seu pacote
até Miyaki haver acabado de distribuir todos.
Quando ela terminou, deu um sorrisinho e fez um gesto para as meninas abrirem-nos. Cada uma o fez e Bruna pôde vê-las fazer uma expressão de
surpresa, ao desamarrar o pacote.
- Ai que bonitinha, Mi – disse Carla, tirando o presente de dentro.
Ela pegou o objeto e levantou-o no ar para vê-lo melhor. Os presentes tratavam-se de bonequinhas customizadas de pano com as características de
cada uma. Eram como mini-representações de todas as meninas e Miyaki pareceu querer presenteá-las para fazer uma homenagem.
- Ai que fofa! – exclamou Carina, admirando sua bonequinha, um pouco afetada. – Obrigado, Mi – ela disse, abraçando-a.
- De nada – respondeu Miyaki com seu sotaque rápido.
Elas ficaram um bom tempo olhando as bonequinhas de pano e reparando em seus detalhes, até que, de repente, Camila disse:
- Ei, espere aí, por que a Bruna não ganhou? – ela perguntou com seu dom de dizer o que não devia na hora que não devia.
Todos os olhos voltaram-se para ela e foi aí que perceberam que a amiga havia sobrado feio. Bruna fingiu desdém e deu de ombros como se aquilo
não importasse, mas a verdade era que ela estava morrendo de raiva.
- Acho que a Mi se esqueceu dela – disse Carina, tentando salvar a situação, ao perceber o incômodo. – Acho também que é porque a Bruna tem
andado longe de nós esses tempos, por isso a Mi não deve ter se lembrado.
“Espere aí, você pode repetir isso?” ela quis dizer. Aquilo já era demais, ela não podia acreditar. Primeiro aquela garota chegava do nada e
roubava suas minhas amigas de si, depois distribuía presentinhos para todas na hora do recreio, deixando-a sobrar. E, por ultimo, sua melhor amiga não
lhe dava mais confiança e era ela quem tinha andado longe? “Alguma coisa está bem errada e, certamente, não é comigo” ela pensou.
Ela estava com tanta raiva e tão chateada que nem sequer parou para pensar no que dizia.
- Pode deixar – falou, abafando uma enorme revolta, sem se importar com o que suas amigas iriam pensar –, eu posso comprar uma dessas
bonequinhas na loja do pai dela, não posso? – disse, olhando-a, desafiadora.
Miyaki pareceu não entender, pois continuou olhando-a de uma forma estranha com seus olhinhos fechadinhos e brilhantes. Bruna quase podia
apontar certa ironia em seu olhar, mas tentou não dar muita atenção àquilo. O fato era que ela estava tão nervosa que não teria paciência de explicar-lhe
nada. Nenhuma das outras garotas pareciam querer explicar-lhe também, pois todas permaneceram caladas, até que foram salvas pelo sinal, que
indicava o término do recreio. Bruna levantou-se rapidamente e subiu em direção à sala. Aquele havia sido o pior recreio de sua vida!
Mais tarde, naquele dia, quando a aula havia acabado e ela já estava em casa, Bruna deitou-se na sua cama, agarrou-se ao travesseiro, ao mesmo
tempo pensativa e chateada. Tudo estava bem até aquela segunda-feira em que Miyaki entrou na sala com a coordenadora Zuleica para roubar suas minhas
amigas de si. Elas pareciam divertir-se juntas, iam para o recreio juntas, levavam presentes umas para as outras e acabaram esquecendo-a. O pior daquilo
tudo era que ela não entendia a empolgação de suas amigas com a nova aluna. Miyaki não passava de uma estrangeira, que havia vindo da China e não
sabia ao menos falar português! Ela esfregou os olhos para tentar conter algumas lágrimas que rolavam. Aquele assunto já a estava matando. Ela não
estava se sentindo bem junto das amigas, mas também não estava sentindo-se bem longe delas e precisava fazer alguma coisa.
Ela não podia permanecer pensando muito sobre aquilo, senão acabaria sentindo-se ainda pior, então resolveu pensar com clareza e reagir. Ela
precisava arranjar um jeito de fazer tudo voltar ao normal, mas não sabia como. Ela não podia chegar até Carina ou alguma das meninas e tentar explicar a
situação. Aquilo seria estranho demais. Tampouco podia chegar até Miyaki e tentar conversar, pois não se enturmara tanto com ela como as outras meninas
haviam feito, além de correr o risco de não conseguir fazer- se entender, o que a deixaria ainda mais frustrada. Ela tinha que arranjar um jeito de afastar
Miyaki e fazer suas amigas prestarem atenção nela novamente. Mas como?
Ela revirou-se um pouco na cama, pois as idéias corriam soltas e ela não conseguia seguir o ritmo de seu próprio pensamento. Ela precisava
espairecer e distrair-se com outra coisa, senão acabaria muito estressada. Então se levantou da cama, puxou a cadeira da escrivaninha e sentou-se em
frente ao computador. Precisava de idéias boas e talvez a internet a ajudaria a achar algo. Lá sempre havia um pouco de tudo e, com certeza, ela encontraria
alguma informação que pudesse usar. Ela abriu uma página da internet e quedou-se parada por um tempo, olhando a tela sem reação. Não tinha a
menor idéia do que escrever. Não faria sentido procurar algo do tipo “como espantar gente enxerida”. Ela precisava manter-me fria e focada. Se ela
quisesse mesmo atingir a Miyaki de alguma forma, teria que saber ao menos como fazê-lo. Sabia que a melhor forma de mostrar para aquela garota que ela
não pertencia ali era saber tudo sobre ela e sua cultura para poder agir, então decidiu pesquisar sobre a China.
Ela voltou a atenção à página na internet, digitou o nome daquele país no buscador e clicou em vários sites que continham informações sobre ele.
Passou boa parte da tarde lendo. Após algum tempo, ela percebeu que aquele trabalho não seria muito prazeroso, pois ela estava sem paciência e não a
agradava ler sobre a cultura da menina que ela menos gostava, mas ela precisava descobrir algo.
Foi então que encontrou um site que falava sobre as curiosidades da China. Ela leu que os chineses eram bastante supersticiosos e tomavam bastante
cuidado com tudo. Ela continuou a leitura e descobriu que eles tinham real pavor do número quatro, porque seu som lembrava a palavra morte ou algo do
tipo. O pavor era tanto que eles nunca se sentavam em grupos de quatro numa mesa e, nos edifícios, não havia andares correspondentes àquele número,
pois eles simplesmente não o utilizavam.
“Ótimo!” ela pensou. Finalmente ela havia descoberto algo que pudesse usar contra Miyaki. O próximo passo seria descobrir uma forma de feri-la
com aquele numeral. Ela não poderia simplesmente chegar até sua inimiga e gritar o número quatro na cara dela, aquilo seria estranho demais, além de ela
não saber sua pronúncia no idioma chinês. Ela precisava ser mais sutil.
Foi então que ela se lembrou do dia no recreio em que Miyaki chegou distribuindo presentes e deixou-a completamente de fora. Bruna pensou que
seria uma boa idéia revidar na mesma moeda. Aquela garota precisava saber como era bom sobrar. Ela sorriu para si mesma, afastou a cadeira da
escrivaninha, abandonou o computador e voltou-se para sua cama. Precisava pensar em como faria para surpreendê-la negativamente.
Ela passou o resto da tarde pensando em como fazer para dar-lhe um presente que tivesse de alguma forma associado àquele numeral, mas não
conseguia. Ela não conhecia nada que pudesse significar um número ou algo que viesse em conjunto de quatro, até que pensou que, se ela não pudesse
presentear Miyaki com algo que significasse um número, ela poderia presenteá-la com o próprio número!
Ao ter aquele pensamento, Bruna sorriu novamente e levantou-se naquele mesmo instante para trocar de roupa. Já estava anoitecendo, mas ela
estava disposta a ir até o final. Queria acabar com aquilo o mais rápido possível e precisava agir no próximo dia, senão teria que continuar
agüentando aquele comportamento de suas amigas pelo resto da semana. Ela tinha chances de ainda encontrar aberta a lojinha do shopping que queria e foi
depressa para a porta. Sua mãe espantou-se ao vê-la sair àquela hora, mas ela despistou e falou que voltaria rápido.
Ao chegar ao shopping, ela correu até a loja que procurava e perguntou ao atendente que fazia colares e pulseiras com o nome dos outros se ele não
os faria também em números. Ele disse que sim e ela pediu para que ele fizesse um colar com o numeral quatro, do jeito que ela queria, em mandarim.
O atendente, então, virou-se para prepará-lo e Bruna sorriu pensando em como Miyaki reagiria quando visse aquele “presente”. Ele não demorou muito
e, depois de alguns minutos moldando o que Bruna pedira, ele mostrou-lhe o colar. Ela aprovou o resultado e pediu para que ele o embrulhasse
exatamente como Miyaki havia feito com as bonequinhas e voltou para casa logo em seguida.
Naquela noite, ela deitou a cabeça no travesseiro e dormiu sorrindo. Finalmente as coisas voltariam ao normal, ela colocaria aquela garota de volta a
seu lugar e mal podia esperar pelo momento.
No outro dia, já dentro de sala, ela só pensava na hora em que pudesse entregar-lhe o “presente”, mas as duas precisavam estar sozinhas. Ela sabia
que aquilo seria difícil, pois, se elas nem se cumprimentavam direito, como ela poderia ter um momento a sós com sua rival?
Ela esperou com calma, não podia forçar a barra, pois aquilo poderia colocar tudo a perder. Ela esperou o sinal do recreio tocar e todas as meninas
descerem e seguiu com elas para o pátio. A conversa corria normal e as meninas lanchavam distraídas como sempre. Foi então que Miyaki levantou-se e
disse que precisava ir até o banheiro. Carina levantou-se também e fez menção de ir com ela, mas Bruna viu ali sua oportunidade e resolveu agir.
- Carina! – ela exclamou um pouco alto, chamando sua atenção. Todas as meninas olharam-na um pouco esbaforida.
- Eu posso ir com ela – Bruna falou.
Carina parou em pé, ao lado da cadeira, estranhando aquela súbita vontade. Ela parecia pensar que, de todas as meninas ali, Bruna seria a última a
oferecer-se para ir com Miyaki ao banheiro. Bruna, porém, estava decidida a ir até o fim e confirmou quando a amiga questionou-a sobre aquilo.
- Você? – Carina perguntou, olhando-a com curiosidade.
- Sim – respondeu. – Eu também preciso ir ao banheiro e, como ela vai, vou aproveitar para ir junto – explicou.
- Tudo bem – Carina disse sem insistir, ainda um pouco surpresa.
Ela voltou a sentar-se e Bruna levantou-se para seguir com Miyaki até o banheiro. Ela pôde sentir o olhar das outras meninas segui-las por
trás, como se ela tivesse aceitado fazer algo inimaginável, mas tentou não pensar muito naquilo. Havia bolado tudo perfeitamente e não poderia desistir
naquele momento. Elas foram caminhando juntas, uma do lado da outra, até que viraram o corredor e sumiram da vista das outras garotas.
Seguiram caladas e Bruna podia sentir que Miyaki a evitava, como se tivesse medo dela. Ela não ligou, queria mesmo que aquela garota visse que ela
não era sua amiga. Quando chegaram ao banheiro, Miyaki entrou numa das cabines e Bruna fez o mesmo, apesar de não estar com vontade alguma de usar
o sanitário. Ela esperou um tempinho para despistar, mas, como estava ansiosa demais, saiu instantes depois. Ela então dirigiu-se até a porta da cabine onde
Miyaki estava e postou-se à sua frente. Quando a porta abriu, Miyaki olhou-a, assustada. Ela não a esperava ali e permaneceu estática, observando-a. Ela
comprimiu seus olhinhos e fitou-a da mesma forma estranha como sempre fazia quando elas se olhavam. Bruna esperou-a lavar as mãos e, depois, esticou
o braço em sua direção, retirando do bolso o pequeno embrulho.
- Isso é para você – disse, entregando-lhe o pacote. – É para mostrar-lhe o que você significa para mim e o quanto eu gosto de você.
Os olhos de Miyaki foram do embrulho até Bruna e depois de volta para o embrulho. Ela parecia estar com medo e não esperava que ela lhe desse
algo, muito menos depois do ocorrido no recreio do dia anterior. Ela permaneceu parada sem saber o que fazer, até que Bruna incentivou-a a pegar o que
estava na sua mão.
Miyaki tomou o pacote e observou-o em suas mãos primeiro. Ela olhou-o cuidadosamente e desamarrou o laço que segurava a borda logo em
seguida. Tirou o presente lentamente e segurou-o no ar, contra a luz, fazendo pender o pequeno pingente. O que Bruna viu em seus olhos seria difícil de
descrever, pois Miyaki pareceu ser invadida por um súbito horror e, quando se deu conta do que aquilo significava, soltou um suspiro curto e deixou cair o
pequeno colar, levando a mão à boca logo em seguida.
Bruna sorriu e cruzou os braços, triunfante. Havia atingido seu objetivo. O “presente” caiu entre as duas e Miyaki deu um passo para trás para
observá-lo a seus pés. Ela encolheu-se e tampou o rosto, começando a chorar. Naquele momento, Bruna pôde perceber alguém chegar por trás e dizer em
voz alta.
- Bruna, o que você fez?
Ela virou-se rapidamente e encontrou Carina a observá-las. Sua amiga havia visto tudo.
- Ah, você estava aí? – ela perguntou-lhe, irônica. – Bem, eu não te vi. Ultimamente não temos nos visto muito, não é?
Carina pareceu ignorar o que ela disse e perguntou mais uma vez:
- O que você fez?
- Você diz em relação a ela? – Bruna perguntou, apontando para trás em direção a Miyaki. – Bem, eu fiz o que precisava, afinal essa garota
precisava mesmo de uma lição.
Carina olhou-a, como se não entendesse uma palavra do que sua amiga dizia, e aproximou-se das duas.
- Como assim? – ela quis saber.
- Ora, eu fiz o que precisava! – Bruna repetiu, nervosa. – Já estou de saco cheio de ver você e as outras meninas andarem com ela para cima e para
baixo e me deixar sobrando para trás.
Carina olhou-a como se não acreditasse no que ouvia e disse:
- O que você está dizendo? Está totalmente enganada! Nós não deixamos você para trás, você é quem tem andado longe da gente.
- Ah, então agora o problema é comigo? – indagou a outra, incrédula, apontando para si mesma.
Naquele momento, Carina revirou os olhos, impaciente, parecendo não querer discutir. Como ela via que aquela conversa se estenderia até que uma
das duas cedesse, resolveu não continuar. Miyaki mantinha-se curvada, com as mãos no rosto a chorar e ela não estava disposta a deixá-la ali daquele
jeito. Ela ignorou a presença de Bruna e passou direto por ela, indo em direção à Miyaki.
- Você não tem idéia do que fez – disse, ao passar por Bruna –, precisa pensar melhor. Está totalmente enganada em relação ao que a Miyaki
pensa sobre você.
“Como assim?” Bruna pensou, estupefata, ao ouvir aquilo. Ela havia entendido bem? Além da sua ex-melhor amiga ter-lhe dado um gelo naqueles
últimos dias, ela ainda defendia sua rival? Aquilo estava muito errado.
- Eu pensei que fôssemos amigas – protestou, ao vê-la passar por si com os braços em torno dos ombros de Miyaki.
- Nós ainda somos amigas, Bruna, mas você fez algo de muito ruim – Carina disse, lançando-lhe um olhar sério ao dirigir-se para a saída.
Bruna viu-a seguir para a porta, totalmente incrédula e permaneceu estática, fitando-a sair. O que ela havia acabado de presenciar havia sido real? Ela
não esperava que sua amiga reagisse com desdém àquilo, mas também não esperava que ela fosse defender justamente sua rival. O que havia acontecido?
Ela não pôde conter um sentimento de decepção, pois, apesar de sentir-se renegada nos últimos tempos, não estava preparada para ver aquilo acontecer de
fato na sua frente. Ela queria gritar com Carina naquele momento, chamá-la de volta e expressar toda sua raiva, mas não o fez, pois estava muito nervosa.
Ao invés daquilo, ela permaneceu parada onde estava e ficou olhando a porta do banheiro, sem reação. Esperou um momento até que se sentisse mais
calma e depois se olhou no espelho. Jogou um pouco de água no rosto e debruçou-se sobre a pia para tomar um ar. Secou o rosto com papel toalha e
depois encarou-se no espelho novamente. Ela estava abatida, os pensamentos passavam descoordenados em sua cabeça e ela não havia registrado bem o
que acontecera. Mesmo assim, tentou manter-se focada e respirou fundo, tentando não perder o controle. O que planejara já havia sido feito e não havia
mais volta. Olhou para o chão e procurou o colar que havia dado para Miyaki. Ela abaixou-se para pegá-lo e fitou bem o “presente”, antes de arrebentá-lo
com ímpeto e jogá-lo no lixo. Depois daquilo, ela virou-se, enervada, e saiu, batendo os pés.
Quando voltou para a sala de aula, alguns minutos depois, todos já estavam em seus lugares. À medida que ela entrava, ela sentia o olhar das meninas
em cima de si como a perguntar-lhe o que ela havia feito. Havia certa tensão no ar e Bruna sabia que as meninas já deviam saber de tudo e condenavam sua
atitude. Ela, por outro lado, tentava não aparentar remorso, pois fez o que tinha que ser feito. Pegou seus objetos e sentou-se mais afastada, pois não estava
a fim de conversar com ninguém, nem de ser tratada com desprezo. Até os meninos pareceram perceber que algo havia acontecido, pois se mantinham
todos calados e olhavam-na de forma estranha.
O restante da aula aquele dia pareceu infinito para Bruna e custou a passar. Ela mal via a hora de voltar para casa e cada minuto parecia uma
eternidade. Respirou aliviada quando finalmente ouviu o sinal tocar, pois já não estava agüentando mais aquele ambiente. Queria sair dali e voltar
para casa o mais rápido possível.
Chegou lá de cara fechada e sua mãe assustou-se ao vê-la entrar. Ela nem lhe deu chances de perguntar nada, apenas passou reto e trancou-se no
quarto. Atirou sua mochila e fichário longe e deitou-se na cama, abraçando o travesseiro. Estranhamente ela não se sentia bem depois daquilo. Ela estava
com uma forte dor de cabeça e parecia que ia vomitar.
As coisas não haviam acontecido da forma como ela esperava e parecia que suas amigas haviam se virado contra ela de verdade. Elas permaneceram
todas em silêncio depois que ela entrou em sala e nenhuma pereceu notar sua presença. Não era para elas descobrirem nada, tudo deveria ficar entre ela e
Miyaki no banheiro. Em seus planos, Bruna apenas a mostraria que ela não pertencia àquele grupo, Miyaki se afastaria e tudo voltaria a ser como antes,
mas Carina chegou bem na hora e estragou tudo. Ela deveria ter planejado melhor, pois devia saber que sua ex-melhor amiga estranharia seu pedido para
acompanhar Miyaki até o banheiro e as seguiria por trás.
Mesmo assim, por que Carina havia defendido Miyaki daquela forma? Ela sequer havia parado para conversar direito com ela e nem quis
explicações. E por que ela havia dito que Bruna não fazia idéia do que havia feito? Que ela estava errada em relação ao que a Miyaki pensava sobre ela
e que ela havia feito algo muito ruim? Pelo que parecia, Miyaki não gostava dela e até a desdenhava. Ou será que não?
Ao conceber tal hipótese, ela sentiu uma pontada em sua cabeça e permaneceu pensativa por um instante. Se aquilo fosse verdade, ela não só havia
agido de forma totalmente equivocada como também havia machucado uma inocente. Será que ela havia ido longe demais? Ela pensou em como
Miyaki estaria se sentindo, ainda mais estando num país diferente e começou a questionar sua atitude e a arrepender-se. Se ela própria fosse uma
estrangeira a entrar num país diferente, numa escola diferente, com pessoas diferentes e alguém fizesse com ela o que ela havia feito com Miyaki, como ela
se sentiria? Ela escondeu o rosto entre as mãos e deu livre curso às lágrimas. O que havia feito?
Naquela noite Bruna mal conseguiu dormir e revirou-se na cama até de madrugada, tentando pegar no sono. No outro dia, acordou péssima, sob os
olhares de estranhamento de seu pai e sua mãe, mas fingiu que era apenas indisposição. Quando chegou à sala, passou direto por entre as meninas e sentou-
se na carteira dos fundos. Ela não cumprimentou as amigas, nem nenhuma delas cumprimentaram-na. Bruna já esperava por aquilo, apesar de não ser o
que ela queria. Ela não imaginava que Carina iria atrás dela e presenciaria tudo. Aquilo havia estragado seus planos. Se tudo tivesse ocorrido como ela
esperava, Miyaki teria entendido o recado e as deixaria em paz, mas, àquele momento, Carina e as meninas já sabiam de tudo. Bruna tinha certeza de que
elas a achavam uma louca e ela teria que lidar com aquilo.
O sinal do recreio tocou no mesmo horário de sempre e Bruna viu todas as meninas se levantarem. Ela não foi atrás delas, apenas manteve-se
sentada no seu lugar. As meninas também pareciam não fazer questão de procurá-la, pois se dirigiram para a porta imperturbavelmente. Ela viu Carina e
Miyaki saírem de braços dados e aquilo a matou. Apenas Camila, antes de passar pela porta, olhou para trás e lançou-lhe um sorrisinho. Bruna fez o
mesmo e a amiga logo se foi.
“Ótimo!” pensou, afundando a cabeça nos braços sobre a cadeira. Pelo menos alguém naquela escola ainda se importava com ela. Ela não desceu
para o recreio e preferiu permanecer o resto do intervalo onde estava. Não estava nem um pouco com fome.
Quando a aula daquele dia acabou, ela foi direto para casa. Sua mãe viu-a entrar no mesmo estado dos outros dias, porém, daquela vez, Bruna não
fez questão nenhuma de esconder o que estava sentindo.
- Filha, o que aconteceu? – sua mãe perguntou, preocupada.
Bruna não se conteve. Os pensamentos que tinha, o desdém com que suas amigas a trataram, além de sua própria consciência pesada falaram mais
alto e ela desabou a chorar naquele mesmo momento. Ela estava magoada e precisava falar daquilo com alguém. Sentou-se no sofá e colocou seu material
de lado. Sua mãe foi até ela e abraçou-a, ao vê-la naquele estado. Ela afagou-a nos cabelos e esperou a filha colocar todos aqueles sentimentos para fora.
Bruna chorou bastante e, quando se sentiu mais calma, sua mãe foi até a cozinha e trouxe um copo d’água. Ela tomou o líquido e tentou refazer-se.
Quando viu que sua filha estava mais calma, ela perguntou novamente:
- O que aconteceu?
Bruna passou as mãos pelos cabelos, tentando refazer-se e olhou a mãe nos olhos. Ela precisava falar, mas não sabia ao certo por onde
começar. Havia tantas coisas em sua cabeça e os pensamentos corriam tão soltos que ela não sabia como colocar tudo aquilo para fora. Começou então a
falar tudo o que lhe vinha à cabeça. Falou sobre o dia da chegada de Miyaki, sobre como ela não havia ido com a cara dela, sobre como as meninas se
entusiasmaram com sua presença e sobre como pareciam havê-la esquecido. Falou sobre o incidente do recreio, quando Miyaki distribuíra presentes para
todas e deixou-a de fora, e sobre como ela sentiu-se excluída e, por fim, falou o que ela havia feito e como havia planejado tudo.
Sua mãe esperou-a dizer tudo e, ao final, não a olhou com a melhor das expressões, mas também não a reprimiu. Ela apenas tornou a abraçá-la de
forma carinhosa e depois falou:
- O que você fez não foi certo.
Bruna enxugou algumas lágrimas e bufou, contrariada. Ela já havia se dado conta daquilo e não precisava que ninguém apontasse sua falha.
- Eu sei – disse, tentando mostrar à sua mãe que já havia percebido o erro –, mas eu estava com raiva, estava me sentindo excluída e as meninas
pareciam não me notar, então eu achei que estava com a razão.
- Mas antes de fazer algo você deveria ter falado sobre isso com elas primeiro –
explicou sua mãe.
- Eu sei, eu sei – falou Bruna novamente, virando o rosto para tentar desfazer-se daquele pensamento.
Ela já havia pensado sobre aquilo, mas a verdade era que ela estava com tanta raiva antes que não considerou outra hipótese senão agir de forma
defensiva. Ela estava cega de ciúmes e acabou tomando a pior das decisões. Sua mãe, porém, era sempre compreensiva e tornou a falar.
- Minha filha, não se culpe tanto assim, isso acontece com todo mundo, mas não é o fim. Você agiu da forma como pensava ser a melhor, mas agora
já viu que errou. Está arrependida?
Bruna não disse nada, apenas limitou-se a assentir com a cabeça e sua mãe continuou:
- Pois então, agora tudo o que você tem a fazer é pedir desculpas.
Bruna ouviu aquelas palavras como se ouvisse algo absurdo e sobressaltou-se. Aquilo era impossível.
- Mas como?! – ela indagou. – As meninas nem olham mais para mim, mãe.
- Ora, com certeza elas agem assim porque ainda pensam que você está com raiva – sua mãe lhe garantiu. – Quando virem que você se arrependeu,
elas mudarão. Se elas forem suas amigas de verdade, vão saber te perdoar.
Aquelas palavras tiveram o efeito de aliviá-la um pouco e Bruna suspirou. Talvez sua mãe estivesse certa e um pedido de desculpas poderia ter o
efeito de fazer suas amigas verem que ela se dera conta do erro e estava disposta a fazer as pazes.
Depois do almoço, ela foi para o seu quarto, deitou-se na sua cama e começou a refletir. Naquela tarde ela pensou muito sobre o que havia feito e
o que poderia fazer para reparar aquela situação. Ela não sabia uma forma de pedir desculpas, muito menos para Miyaki. Se a garota quase não podia
compreendê-la quando ela quisera machucá- la, como poderia compreendê-la quando ela desejava pedir-lhe desculpas? Foi aí que ela teve outra idéia. Ela
pensou bem e viu que poderia fazer a mesma coisa de antes, mas, daquela vez, ao inverso. Foi até o computador, entrou na internet e digitou “China” no
buscador, mas, ela não procurava por algo que pudesse usar contra Miyaki e sim por algo que pudesse usar a favor de si. Ela queria pedir desculpas.
Mais uma vez ela viu que não foi fácil, porque na internet havia todo tipo de informação, mas quase nenhuma que fosse de grande utilidade.
Além daquilo a China era um país muito grande, com uma cultura muito diversificada, então era difícil encontrar algo que pudesse usar a seu favor. Ela
leu bastante coisa, mas o que mais a interessou foi saber que os chineses associavam o número oito à prosperidade. Ela abanou a cabeça àquela idéia,
pois não queria mexer com aquela coisa de números novamente, mas, como não encontrou mais nada que pudesse usar, teria que contentar-se com
aquilo.
Voltou à lojinha que fabricava acessórios e pediu ao atendente um novo pingente, com o numeral oito em chinês, sem colar, sem nada. Daquela
forma, se Miyaki gostasse, ela poderia usá-lo pendurado na mochila ou em algo do tipo. O atendente chegou a olhar Bruna com uma cara estranha e ela
imaginou que ele devia ter ficado curioso pensando no que ela faria com tantos pingentes de números, mas ela não se importou.
No outro dia, ela entrou na sala novamente e, daquela vez, não quis fugir, nem aparentar indiferença, então se sentou no seu lugar. A aula transcorreu
de forma normal, embora as meninas ainda se mantivessem hesitantes em conversar com ela. Havia certo sentimento mal resolvido no ar, mas ela não se
preocupou, porque sabia que logo aquilo tudo acabaria.
Quando o sinal bateu, anunciando o recreio, as meninas levantaram-se como de costume, mas, antes que pudessem seguir para o corredor, Bruna as
chamou:
- Esperem – pediu, levantando-se.
Suas amigas detiveram-se e olharam-na, virando-se para trás.
- Olá meninas – ela, disse meio sem graça, aproximando-se delas.
- Olá – elas responderam da mesma forma.
Todas elas se entreolharam de forma hesitante, mas nenhuma teve coragem de pronunciar-se de pronto. Bruna não gostou nada daquele clima, pois
sentia que suas amigas não a tratavam de forma natural e precisava fazer alguma coisa. Ela tinha muita coisa para falar, mas ao mesmo tempo não
conseguia ordenar suas idéias, então decidiu ser direta.
- Meninas, eu preciso conversar com a Miyaki separadamente, acho que tenho algo a esclarecer.
Miyaki assustou-se ao ouvi-la dizer seu nome e deu um passo para trás. Não só ela se assustou, mas as outras meninas também trocaram olhares
preocupados, porém Bruna apressou-se a acalmá-las, sem tirar-lhes a razão.
- Está tudo bem, não precisam ficar preocupadas – disse. – Dessa vez eu venho em paz.
Elas perceberam pelo seu tom que ela dizia a verdade, por isso não fizeram nada. Bruna pôde ver a cara de alívio de cada uma delas e percebeu
Camila cutucar Carla, fazendo menção de seguir. Ao ver as amigas retirarem-se, Carina pediu-as que esperassem, pois ela decidiu descer com elas
também. As meninas esperaram-na, mas, antes de ir, Carina virou-se para Miyaki e explicou-lhe que a esperariam no pátio. Miyaki hesitou ao vê-la sair e
pareceu não querer permanecer sozinha ali com a menina que a havia tratado mal. Bruna não lhe tirava a razão, pois Miyaki devia achá-la uma monstra,
mas ela estava disposta a tentar desfazer aquela impressão. Ela avaliava seu medo e, a fim de fazê-la relaxar, tocou de leve seu ombro e lançou-lhe um
sorriso. Tinha certeza de que aquilo não precisava de tradução em língua nenhuma.
Ela não sabia ao certo se Miyaki a entendia ou não o que ela intencionava, então preferiu não dizer nada. Apenas tirou do bolso o outro embrulho
com o pingente em forma de oito e estendeu-o. Ela entregou-lhe também um papelzinho no qual estavam impressos alguns ideogramas em mandarim. Ela
havia escrito uma mensagem em português e traduziu-a por meio da internet, mas não sabia direito se Miyaki a entenderia, porque ela sabia que as
traduções on-line nem sempre eram confiáveis, mesmo assim ela precisava tentar. Ela escreveu que pedia desculpas, que estava envergonhada porque
achava que Miyaki quis roubar suas amigas de si e deixou-a sobrar de propósito no dia do recreio em que distribuiu os presentes. Escreveu também
que havia ficado chateada e quis vingar-se, mas vira que fizera muito mal, quando se deu conta de que Miyaki não tivera má intenção, e ela estava
realmente arrependida de tudo aquilo.
Bruna não sabia se Miyaki a perdoaria, porque ela havia feito algo muito errado, mas, mesmo que um perdão não viesse, ela estaria aliviada de
ao menos ter tentando pedir desculpas. Depois de um tempo, porém, ela viu Miyaki esboçar um sorriso à medida que lia e percebeu então que nem tudo
estava perdido. Quando ela terminou de ler, olhou-a com os mesmos olhinhos apertadinhos, mas, daquela vez, Bruna não estranhou o seu olhar, pois ela
própria a olhava com olhos diferentes. A menina tirou o pingente de dentro do embrulho e sorriu para ele. Curvou-se numa reverência, algo bem típico dos
povos do oriente, e Bruna ficou um pouco sem reação, pois não sabia como se respondia aquele gesto. Ela curvou-se também numa tentativa de
corresponder, mas o fez de uma forma um pouco desengonçada, porque nunca havia feito aquilo antes, mesmo assim desejava mostrar-lhe que também a
considerava bem. Depois daquilo, ela não conseguiu evitar um riso e acabou abrindo os braços com um enorme sorriso para abraçar a menina a sua frente.
Miyaki também não esperava aquele gesto e olhou-a, incerta, mas as duas acabaram se abraçando.
Elas sorriram uma para a outra e deram-se os braços para descerem juntas em direção ao pátio. Enquanto caminhavam, Bruna respirou de forma
aliviada e sentiu o vento bater de leve em seu rosto. Ela sentia-se suavizada de tudo haver se esclarecido e de saber que finalmente as coisas voltariam
ao normal. Ao chegarem ao pátio, elas encontraram as outras meninas sentadas nas cadeiras onde costumavam ficar. Nenhuma das duas, porém,
precisava explicar nada. Carina olhou-as com aprovação e soube que tudo estava bem. Bruna olhou-a de volta e naquele momento, soube que havia
conquistado a sua melhor amiga de volta, além de haver feito uma nova amizade.

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