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Etanol, meio ambiente

e tecnologia Alexandre Betinardi Strapasson1


Luís Carlos Mavignier de Araújo Job2

Reflexões sobre a
experiência brasileira

Resumo: O trabalho apresenta uma breve reflexão sobre os principais aspectos ambientais e tecnológicos
da experiência brasileira voltada à produção e ao uso de etanol a partir da cana-de-açúcar. Ao se
analisar toda a cadeia produtiva do etanol, observa-se que o aproveitamento estratégico de todos os
subprodutos da cana-de-açúcar é condição essencial para a sustentabilidade do processo produtivo.
Por sua vez, a queima da cana-de-açúcar para colheita e a expansão da monocultura canavieira são
fatores que requerem maior atenção. O trabalho demonstra que a produção de etanol de cana-de-
açúcar contribui para a sustentabilidade ambiental e que seu uso como combustível renovável é favo-
rável em relação aos combustíveis fósseis.
Palavras-chave: álcool, cana-de-açúcar, meio ambiente, energia.

Abstract: The purpose of this paper was to present a reflection about the main environmental and
technological aspects of producing and consuming ethanol from sugar cane in Brazil. By analyzing the
whole production processes of ethanol from sugar cane it became clear that the strategic use of byproducts
is essential for the sustainability of the production chain. On the other hand, the burning of the sugar
cane before harvesting and the expansion of the cane monoculture are still two issues that need to be
addressed. The paper demonstrates that ethanol production from sugar cane contributes to the
environment sustainability and that the use of this renewable fuel is favorable regarding fossil fuels.
Key-words: ethanol, sugar cane, environment, energy.

Introdução de 1.201 bilhões de barris, ou seja, considerando-


se a relação reservas/produção, haveria petróleo
A iminente escassez do petróleo anuncia- somente para os próximos 40,6 anos (BRITISH
da para as próximas décadas tem impulsionado o PETROLEUM, 2006). Contudo, em uma análise
crescimento de diversas fontes de energias mais precisa, é necessário também se relevar
renováveis no mundo, tais como: a biomassa, o outros fatores, dentre eles: aumento da participa-
hidrogênio e as energias solar e eólica. Em 2005, ção de outras fontes de energia na matriz
o consumo mundial de petróleo foi de 81,1 mi- energética mundial; descobrimento de novas re-
lhões de barris/dia e o total de reservas provadas servas; aumento ou redução do consumo de pe-

1
Coordenador-geral de Açúcar e Álcool - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Esplanada dos Ministérios, bloco D, sala 724;
alexandrestrapasson@agricultura.gov.br
2
Gestor Governamental - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Esplanada dos Ministérios, bloco D, sala 734; luisjob@agricultura.gov.br

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tróleo nos próximos anos; contratos de compra e Com o aumento das preocupações ambientais, o
venda; custos de extração; preços de revenda; etanol reúne vantagens significativas em relação
conflitos internacionais; limitações de logística; aos combustíveis fósseis, em especial à gasolina,
crescimento da economia mundial; compromis- nos três pilares que compõem o desenvolvimento
sos ambientais; avanços tecnológicos; eficiência sustentável, quais sejam: ambiental, social e eco-
energética; e o reaproveitamento de campos an- nômico.
tigos com o uso de novas tecnologias.
O Brasil é líder na produção e consumo de
Na prática, é difícil precisar qual será a biocombustíveis em larga escala. Na área do
real sobrevida do petróleo, mas seja ela 40, 60 etanol são mais de 30 anos de experiência co-
ou 100 anos, aumentar a participação das fon- mercial. Na última safra de cana-de-açúcar, 2005–
tes renováveis na matriz energética mundial tor- 2006, foram colhidas 426 milhões de toneladas,
na-se necessário e urgente. É possível que algu- sendo 384 milhões de toneladas destinadas à pro-
mas reservas específicas sejam até mesmo pre- dução de açúcar e álcool e o restante para outros
servadas no futuro, caso seu custo de exploração usos, como ração animal, produção de cachaça
for muito acentuado, ou em virtude de restrições e mudas para formação de novo canavial. Foram
ambientais, como as mudanças climáticas. produzidos 15,8 milhões de metros cúbicos de
etanol, sendo 7,7 milhões de metros cúbicos de
No caso do Brasil, as reservas totais recu-
álcool anidro (misturado à gasolina) e 8,1 milhões
peráveis de petróleo somam cerca de 24 bilhões
de metros cúbicos de álcool hidratado. Desse to-
de barris. Estudo desenvolvido por Ferreira (2005)
tal, 13,5 Mm3 foram destinados ao mercado inter-
estima que o pico da produção ocorrerá em 2011,
no, a outra parte foi exportada e uma pequena
o que possibilitaria uma auto-suficiência entre 8 e
parcela incorporada a estoques de passagem. No
13 anos, segundo modelagem matemática ampa-
entanto, a tendência é que o Brasil amplie tanto o
rada em “Curva de Hubbert”.
seu consumo interno de etanol quanto a sua ca-
Do total do consumo mundial de petróleo, pacidade de exportação, a exemplo do que já vem
cerca de 50% é destinado ao setor de transportes, ocorrendo nos últimos anos. A idéia é transformar
onde o petróleo é responsável por mais de 95% o etanol em uma grande commodity internacio-
da demanda energética (INTERNATIONAL nal, em cooperação com outros países.
ENERGY AGENCY, 2004). O cenário torna-se ain-
Nesse sentido, o governo federal lançou,
da mais crítico ao se observar que a demanda
em 2005, o Plano Nacional da Agroenergia (BRA-
mundial de petróleo tende a crescer até 2030, in-
SIL, 2005a), coordenado pelo Ministério da Agri-
clusive no setor de transportes, sobretudo em pa-
cultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pela
íses em desenvolvimento como China e Índia
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(FULTON, 2004). Portanto, encontrar fontes com-
(Embrapa), a fim de expandir ainda mais a produ-
plementares e substitutas à gasolina e ao diesel é
ção de biocombustíveis no Brasil, de forma pla-
uma questão de segurança e de estratégia global.
nejada e sustentável. A agroenergia consiste na
Como a frota mundial de veículos utiliza produção agrícola de biomassa voltada à gera-
basicamente combustíveis líquidos e sua renova- ção de energia, merecendo destaque o etanol, o
ção é lenta e gradual, os biocombustíveis tornam- biodiesel, as florestas energéticas plantadas e o
se os substitutos naturais dos combustíveis fósseis, aproveitamento de resíduos agrossilvipastoris. O
em um período de transição global de motores plano prevê crescimento da participação dessas
convencionais, Ciclos Otto e Diesel, para veícu- fontes de energia na matriz energética nacional,
los de uma nova geração tecnológica. Nesse sen- especialmente o etanol, um produto já consolida-
tido, o etanol tem se mostrado como um dos pro- do e economicamente viável.
dutos mais viáveis e estratégicos para esse pro-
A agroenergia representa um novo
cesso de transição, podendo eventualmente tam-
paradigma para a energia e agricultura mundiais,
bém integrar tecnologias futuras em longo prazo.

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podendo ser produzida em quase todos os países cultura apresenta algum impacto ambiental, haja
do globo, sejam eles desenvolvidos ou em desen- vista sua interferência na dinâmica natural da
volvimento, com relevante potencial de redução biodiversidade local. Contudo, isso não invalida
da dependência internacional de petróleo. Por- seu uso estratégico e sustentável. Utilizando-
tanto, a agroenergia contribui para uma maior dis- se práticas adequadas de manejo e respeitando-
tribuição de renda entre os países, bem como para se critérios ambientais específicos para cada cul-
a redução de conflitos internacionais ligados à tura e região, pode-se reduzir muito os possíveis
energia, em harmonia com o desenvolvimento impactos ambientais gerados e garantir a
sustentabilidade do meio às gerações futuras.
sustentável e a geração de empregos, principal-
mente no meio rural. A produção de cana-de-açúcar, quando fei-
ta sob orientação agronômica, protege o solo con-
O presente trabalho não é exaustivo, de- tra a erosão, melhorando sua conservação. Por
vendo ser resguardadas as devidas limitações das ser uma gramínea cultivada em regime adensado,
análises apresentadas. Trata-se de uma simples o solo não se torna exposto após o desenvolvi-
consolidação de informações sobre os principais mento da lavoura, especialmente em virtude da
aspectos ambientais e tecnológicos relacionados sua elevada taxa de crescimento, típica de plan-
à agroindústria canavieira, a fim de dar elemen- tas do tipo C4, característica relacionada à efici-
tos a uma reflexão sistêmica sobre o etanol. Não ência fotossintética. Mesmo depois da colheita,
foi intenção realizar uma análise científica ou desde que não haja utilização de queimada, o solo
conceitual sobre o tema, bem como sobrepor dis- permanece protegido da erosão, pois praticamente
cussões de ordem política ou econômica. toda a palha é deixada sobre o solo, cobrindo-o par-
cial ou totalmente, dependendo da técnica utiliza-
da. Esse material contribui para a melhoria da quan-
Objetivo tidade de matéria orgânica do solo, com reflexos
positivos sobre o balanço de nutrientes e para a
O objetivo deste trabalho foi realizar uma microbiologia pedológica. Conforme Bertoni et al.
breve reflexão sobre os principais aspectos am- (1972), as perdas de solo são da ordem de 12,5 t/ha/
bientais e tecnológicos relacionados à cadeia pro- ano, sendo bastante inferiores às da soja, algodão,
dutiva do etanol no Brasil, bem como das limita- feijão, mamona, dentre outras culturas.
ções e potencialidades à expansão sustentável da
A presença da palha no campo também
agroindústria canavieira.
reduz a incidência de energia luminosa sobre o
solo, inibindo o processo de fotossíntese e a ger-
minação de algumas plantas daninhas, presentes
Etanol, meio ambiente e tecnologia no banco de sementes do solo. Mesmo as plantas
A seguir, são apresentadas as principais que não respondem ao estímulo luminoso para
vantagens e desvantagens ambientais relaciona- quebra de dormência do processo germinativo,
das à produção e ao consumo de etanol em larga sem haver fotossíntese, não há energia suficiente
para transpor a cobertura vegetal somente com
escala, assim como os aspectos tecnológicos en-
as reservas energéticas da semente, com exce-
volvidos em suas três principais fases: agrícola;
ção de algumas espécies. No caso da cana-de-
industrial; distribuição e consumo.
açúcar, as reservas acumuladas nas raízes e no
colmo do tolete, além de possibilitarem a rebrota
natural da cana, viabilizam a transposição da
Fase agrícola
cobertura vegetal. Em média, faz-se 5 cortes da
O etanol proveniente da cana-de-açúcar se cana, o primeiro (cana-planta) aos 15-18 meses e
diferencia pelo seu reduzido impacto ambiental os posteriores (cana-soca) a cada 12 meses, o que
em relação às fontes fósseis de energia. Inicial- evita o revolvimento do solo até a renovação com-
mente, cabe salientar que qualquer forma de agri- pleta do canavial.

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Por sua vez, a utilização de queimadas, como a longas distâncias de seu local de origem, antes
técnica de eliminação da palha para facilitar o pro- de serem depositados na forma de chuva. Por
cesso de colheita manual ou mecânica, elimina qua- conseguinte, a então “chuva ácida” pode ocasi-
se a totalidade dos resíduos agrícolas que ficari- onar a acidificação de rios e lagoas, a corrosão
am sobre o solo. Entretanto, a colheita de cana de estruturas, bem como prejudicar a agricultura
crua, sem queima, reduz significativamente a efi- e a dinâmica natural do meio ambiente. A quei-
ciência do corte manual de cana e aumenta os ma da palha também gera a emissão de aerossóis,
riscos de acidentes de trabalho. Com isso, ob- que ao serem transportados à alta atmosfera po-
serva-se que a proibição da queimada tem esti- dem interferir no equilíbrio do sistema climático,
mulado o avanço da colheita mecânica, gerando até mesmo em longas distâncias. Ademais, o uso
ganhos ambientais, mas também a redução de em- do fogo afeta a biodiversidade local, especialmen-
pregos no campo. Em média, cada colhedora de te ao eliminar predadores naturais de espécies in-
cana substitui cerca de 70 trabalhadores. desejáveis à produção agrícola.
Com base em dados históricos da Relação No Estado de São Paulo, foi instituída a
Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministé- Lei no 11.241, de 19 de setembro de 2002, que
rio do Trabalho e Emprego (MTE), estima-se que estabelece a proibição gradativa da queima de
o setor sucroalcooleiro gere atualmente cerca de cana-de-açúcar. Segundo a mencionada Lei,
um milhão de empregos formais diretos no Brasil. após 2021, não poderá haver mais queimadas
A maior parte se refere a trabalhadores rurais con- em áreas mecanizáveis e, após 2031, também
tratados para a execução de atividades de corte em áreas não-mecanizáveis. Em ambos os ca-
e manejo da cana, em período de colheita, pos- sos, a eliminação das queimadas deverá aten-
suindo baixo nível de escolaridade e qualifica- der a um calendário de redução gradual até os
ção profissional. Apesar disso, a remuneração prazos mencionados acima.
média, em geral, é superior à obtida em ativida- Medidas similares têm sido estudadas por
des similares no meio rural. O desafio é ampliar o outros estados, contudo, observa-se que há uma
nível de formalização da mão-de-obra, bem como tendência natural de expansão da colheita me-
dar melhores condições de vida aos cortadores cânica, sem prática de queima, tanto em áreas
de cana. Destaca-se, porém, que o setor antigas quanto em áreas de expansão. A maior
sucroalcooleiro, assim como organizações não- dificuldade para se reduzir a utilização da quei-
governamentais, Ministério Público e Poder Exe- ma controlada se dá em áreas com declividade
cutivo, tem obtido avanços significativos nesse superior a 12%, onde a colheita mecânica torna-
sentido nos últimos anos, embora muito ainda pre- se limitada, prevalecendo, portanto, o corte ma-
cise ser feito, especialmente em termos de nual. No entanto, novas colhedoras já estão sen-
conscientização e ética empresarial. do desenvolvidas para trabalhar em áreas de
maior declividade.
No que se refere ao aspecto ambiental, a
queima gera ainda intensa carga poluente na at- No âmbito nacional, o Decreto Federal
mosfera, com impactos diretos sobre a população no 2.661, de 8 de julho de 1998, que regulamenta
de cidades próximas aos canaviais, sobretudo o parágrafo único do art. 27 da Lei nº 4.771, de
problemas ligados ao trato respiratório. Os princi- 15 de setembro de 1965, conhecida como Códi-
pais poluentes atmosféricos gerados são: óxidos go Florestal, estabelece normas de precaução re-
de nitrogênio (NOx) e enxofre (SOx); monóxido lativas ao emprego do fogo em práticas
de carbono (CO); compostos aromáticos; materi- agrossilvipastoris, porém não estabelece regula-
ais particulados; e hidrocarbonetos. Alguns mentação específica para a cana-de-açúcar nes-
poluentes ainda são precursores de ozônio se sentido.
troposférico quando expostos à radiação solar. Outro problema ambiental que pode ser
Quanto aos óxidos de nitrogênio e enxofre, observado na fase agrícola é a compactação de
além de seu impacto direto sobre a saúde huma- solo, desde que não aplicadas técnicas agronô-
na, ao reagirem com a umidade atmosférica, são micas adequadas. O intenso fluxo de maquinário
convertidos em ácidos, que podem ser arrastados pesado no processo de plantio e colheita pode

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ocasionar a compactação do solo, podendo ser A despeito das limitações e dos problemas
mitigada com aração profunda ou até subsolagem, descritos, observa-se que o plantio de cana-de-
em casos extremos. Contribuem para a redução açúcar tem ocorrido em áreas tradicionalmente
desse tipo de impacto a utilização de maquinários cultivadas com a mesma, como a Região da Zona
mais leves e modernos, com rodados especiais, da Mata Nordestina, ou em áreas anteriormente
bem como a rotação de cultura e a manutenção ocupadas com pecuária extensiva e culturas
da palha no solo. como soja, milho, laranja e café, a exemplo da
A rotação de cultura também contribui para Região Centro-Sul do Brasil. Portanto, raramente
um maior equilíbrio da biologia do solo, evitando a cana-de-açúcar se encontra em áreas de fron-
a excessiva pressão de seleção sobre a biodiversi- teira agrícola. A principal razão para isso é que a
dade local e, conseqüentemente, o surgimento cana, no caso do Brasil, é cultivada em um raio
intenso de pragas e doenças. Além disso, com de aproximadamente 30–40 quilômetros ao redor
plantas leguminosas, a rotação de cultura promo- da usina receptora, em virtude do crescente cus-
ve a fixação de nitrogênio no solo, através da to de transporte para colheita em distâncias mai-
simbiose entre bactérias e o sistema radicular des- ores. Por sua vez, a usina requer condições ade-
ses vegetais. quadas de logística para escoamento da produ-
Quanto à utilização de agrotóxicos, a cana- ção, optando por áreas com infra-estrutura já
de-açúcar requer poucas aplicações, em relação instalada e proximidade a portos e centros con-
a outras culturas de produção extensiva, em ra- sumidores. Dessa forma, as novas unidades
zão de sua robustez e adaptação às condições industriais têm buscado se instalar justamente
edafoclimáticas em que são cultivadas no Brasil. em áreas com essas características, além da pre-
Os herbicidas são o grupo mais utilizado. O con- sença de condições edafoclimáticas adequadas.
sumo de inseticidas é relativamente baixo, sendo No caso da Região Amazônica, observa-
quase nulo o de fungicidas. Além disso, muitos se uma condição bastante precária em termos de
produtores já utilizam controle biológico em es- logística, além de grande distância aos grandes
cala comercial. A produção orgânica também tem centros consumidores, o que implica maiores cus-
aumentado, em face do crescimento do mercado tos de transporte. Ademais, as variedades de cana
de açúcar orgânico, tanto no Brasil quanto no atuais não são adaptadas às condições de clima
exterior.
amazônico. O ciclo fenológico da cana requer
Em áreas de declividade acentuada, indi- um período de estresse hídrico para inibição de
ca-se a prática de terraceamento, a fim de se evi- seu crescimento e concentração de sacarose, o
tar perdas de solo e assoreamento de recursos que não ocorre na Amazônia, em função do regi-
hídricos. No caso de áreas de alta declividade e me de chuvas regulares ao longo do ano. Com
topos de morro, recomenda-se a manutenção de isso, a cana-de-açúcar cresce em demasiado,
floresta nativa ou o plantio de espécies perenes, mas acumula pouca sacarose em seu colmo. Por-
sob amparo da legislação ambiental vigente. A tanto, atualmente a Região Amazônica não tem
proteção de mata ciliar na bordadura dos recur- sido alvo da expansão da agricultura canavieira,
sos hídricos e a manutenção de reserva legal na mas sim áreas já ocupadas com agricultura e pas-
área rural são obrigatórias por força de lei. É fun- tagem ou em áreas degradadas, nas Regiões Cen-
damental que as áreas protegidas estejam tro-Sul e Nordeste, com destaque para o oeste
conectadas umas às outras, formando os chama- paulista, triângulo mineiro e sul de Goiás.
dos “corredores ecológicos”, contribuindo para a
migração e reprodução das espécies locais, es- O grande desafio para contenção do
pecialmente das endêmicas. O Brasil possui uma desmatamento da Amazônia é a redução da ex-
das legislações ambientais mais rigorosas do mun- pansão desregrada da pecuária extensiva e a
do, porém ainda precisa avançar mais em ativi- exploração ilegal de madeira, dando outras opor-
dades de fiscalização, controle, monitoramento e tunidades para o desenvolvimento sustentável da
educação ambiental. região. Nesse sentido, o governo federal tem ob-

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tido resultados expressivos nos últimos anos, ao das a produção de etanol de várias matérias-pri-
reduzir em mais de 60% a taxa de desmatamento, mas. No entanto, observou-se que a cana-de-açú-
no acumulado de 2005 e 2006, embora muito ain- car apresentava melhor produtividade agrícola e
da se precise avançar. rendimento industrial dentre as demais. Embora al-
guns países produzam álcool de outras fontes, é o
A Embrapa estima haver cerca de 90 mi-
lhões de hectare disponíveis para expansão da caso do milho nos EUA e do trigo em países da União
agricultura no Brasil, que possui um território total Européia, a eficiência energética da cana-de-açú-
de 852 milhões de hectares. A atual área planta- car é sensivelmente superior em relação às demais
da com cana-de-açúcar é pouco superior a 6 mi- culturas (Tabela 1), sobretudo em virtude da utiliza-
lhões de hectares (safra 2005–2006), ou seja, me- ção de seus próprios resíduos no processo produtivo.
nos de 1% do território nacional. Ademais, mais
de 30 milhões de hectares ocupados com pastagens Tabela 1. Eficiência energética de diferentes
extensivas subaproveitadas poderão ser liberados nos matérias-primas utilizadas na produção de etanol.
próximos anos para exercício de outras atividades
Matéria-prima para a Balanço energético
agrícolas, sem prejuízo às produções de carne e lei- produção de etanol (output/input)
te, fato já constatado para o Estado de São Paulo.
Trigo(1) 1,2
Sendo assim, no Brasil, em curto e médio Milho (EUA)(1) 1,3 - 1,8
prazos, a agroenergia não necessariamente con- Beterraba (UE)(1) 1,9
Cana-de-açúcar (Brasil)(2) 8,3
correrá com a agricultura de alimentos. Além dis-
so, no caso da cana-de-açúcar, há ainda uma pro- (1)
F. O. Licht (2004).
(2)
Macedo (2005).
dução consorciada de energia e alimento. No
entanto, em âmbito mundial, essa é uma discus-
são estratégica, especialmente no que se refere a A eficiência energética da produção de
países do Sudeste Asiático, Oceania, América do etanol de cana-de-açúcar pode avançar ainda
Norte e Europa, onde quase não há mais novas mais, sobretudo ao se considerar potenciais avan-
fronteiras agrícolas, e as demandas por energia e ços em melhoramento genético e biotecnologia,
alimentos são crescentes. A utilização energética bem como a extração de álcool do bagaço de
da biomassa precisa ser vista dentro de um con- cana (ex: hidrólise lignocelulósica), o melhor apro-
veitamento da palha, a utilização de equipamen-
ceito maior. Nesse novo paradigma energético,
tos e processos mais eficientes para a conversão
deve-se buscar uma Civilização das Energias
de energia, e o melhor aproveitamento de resídu-
Renováveis e não somente da biomassa.
os industriais.
Embora ainda existam grandes áreas para
Atualmente, extraem-se, em média, cerca
a expansão do setor sucroalcooleiro no Brasil, no
de 6.500 litros de etanol por hectare. Para se pro-
caso do Estado de São Paulo, responsável por
duzir 1 bilhão de litros de etanol, são necessários
cerca de 62% da produção nacional de cana-de- aproximadamente 200 mil hectares, já incluindo
açúcar, e em algumas regiões dos Estados do as áreas para produção de mudas e as de renova-
Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, a ção dos canaviais. Esses rendimentos tendem a
expansão canavieira gera certa preocupação, pelo crescer nos próximos anos, com a adoção de
excesso de monocultura intensiva em determinadas melhores práticas de manejo e utilização de no-
áreas, fato também observado na Região da Zona vas tecnologias.
da Mata Nordestina, sobretudo nos Estados de
Pernambuco, Alagoas e Paraíba (CANASAT, 2006).
Além da cana-de-açúcar, a produção de Fase industrial
etanol pode ser feita por meio de outras culturas, A industrialização da cana-de-açúcar gera
tais como: mandioca, milho, sorgo, trigo e beter- grandes quantidades de resíduos. Quando esses
raba. Logo após a criação do Programa Nacional não recebem tratamento adequado, podem oca-
do Álcool (Proalcool), em 1975, foram estimula- sionar sérios danos ambientais. No entanto, com

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o desenvolvimento de pesquisas e a crescente de nutrientes e a eventual contaminação de len-
preocupação ambiental, o gerenciamento de re- çol freático em áreas saturadas.
síduos da cana-de-açúcar tem avançado muito.
A vinhaça é um composto rico em macro e
Os dois principais resíduos da produção canavi-
micronutrientes necessários ao crescimento ve-
eira, o bagaço e a vinhaça, ou vinhoto, se torna-
getal, com destaque para o potássio (K2O). Como
ram grandes aliados do processo produtivo como
a maioria das regiões cultivadas com cana-de-
um todo. O aproveitamento desses resíduos é con-
dição essencial para se garantir uma produção açúcar no Brasil apresenta solos deficientes em
sustentável de cana-de-açúcar e etanol. potássio, reduz-se a necessidade de adubação
química e os custos de produção, internalizando
Da massa total de cana colhida, cerca de ao processo produtivo o que antes era uma
um terço se refere à palha deixada sobre o solo externalidade ambiental.
ou então queimada no processo de colheita, o
outro um terço, ao caldo que será destinado à pro- A vinhaça também pode ser fermentada em
dução de açúcar e álcool, e um terço final, ao biorreatores que, por intermédio da decomposi-
bagaço, resíduo sólido resultante da moagem da ção anaeróbia, produz gás metano, mas sem re-
cana no primeiro estágio do processo industrial duzir significativamente a concentração de nutri-
(HASSUANI et al., 2005). entes presentes na vinhaça, mantendo assim seu
uso como fertilizante, conforme apresentado na
No caso do caldo, após seu aproveitamen- Tabela 2. Dentre os possíveis usos desse biogás,
to industrial, resta um efluente líquido como resí- destaca-se a sua utilização como fonte de ener-
duo, a vinhaça. Durante décadas, a vinhaça foi gia adicional ao próprio sistema industrial, poden-
descartada indevidamente sobre o solo e recur- do também ser convertido na forma de energia
sos hídricos nas proximidades das usinas. Dada a elétrica, passível de ser exportada ao sistema elé-
sua elevada demanda bioquímica de oxigênio trico interligado.
(DBO), o despejo indevido de vinhaça em recur-
sos hídricos ocasionava drástica redução da vida Há também estudos em desenvolvimento
aeróbia, além de ocasionar eutrofização pelo voltados à concentração da vinhaça, transforman-
excesso de nutrientes. Contudo, atualmente, a do-a em um novo produto comercial, de fácil trans-
vinhaça é aplicada sobre o solo de forma contro- porte, o qual poderia ser tanto utilizado como fer-
lada, como um fertilizante orgânico, deixando de tilizante agrícola quanto comercializado para
ser um produto indesejável. Normalmente, apli- outros fins na indústria química. Embora o Brasil
ca-se a vinhaça nas próprias áreas colhidas, lo- tenha equacionado o problema da vinhaça, ela
calizadas nas proximidades das usinas, por meio ainda é um resíduo indesejável em vários países,
de sistemas de irrigação por bombeamento ou especialmente naqueles que produzem cana em
canal. Deve-se evitar a aplicação concentrada pequenas áreas, muitas vezes distantes das uni-
em uma mesma área, para que não haja excesso dades industriais. O maior desafio para avanço
Tabela 2. Concentração dos principais compostos da vinhaça, antes e após a biodigestão.
Parâmetro Unidade Bruto Sedimentado Digerido % de remoção

STS g/L 20 6 0,3 98


DQO g/L 25 22 4 84
DBO g/L 12 10 0,5 96
pH - 3,5 3,5 7 -
Alc meq/L -80 -80 40 -
AGV meq/L 120 120 2,5 98
N mg/L 250 250 230 8
P mg/L 200 200 190 5
K mg/L 1.000 1.000 1.000 1
Temperatura ºC 95 30 30 -
Fonte: Haandel e Lier (2006).

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comercial dessa tecnologia está na demanda mentar ainda mais com a construção de novas
de energia necessária para desidratação da unidades industriais já em curso e em previsão.
vinhaça, que pode ser equacionado com fon-
Outros usos têm sido pesquisados para o
tes energéticas do próprio processo produtivo,
bagaço e a palha de cana-de-açúcar, como a
como o bagaço de cana.
extração de álcool de celulose, bem como a ob-
Da mesma forma que a vinhaça, o bagaço tenção de outros produtos químicos, como o
de cana não era devidamente aproveitado déca- bioóleo e compostos para a indústria química.
das atrás. Atualmente, o bagaço é utilizado para Essas tecnologias possibilitarão aumentar ainda
produção de energia – térmica, mecânica e elé- mais a eficiência energética da cana-de-açúcar.
trica – necessária à fabricação de açúcar e álco-
Os demais subprodutos do processo in-
ol e à manutenção das demais atividades das usi-
dustrial, como a torta de filtro e os resíduos de
nas, tornando-as auto-suficientes e, em muitos
levedura, também possuem valor comercial. A
casos, até mesmo exportadoras de energia elétri-
torta de filtro é utilizada como adubo orgânico
ca ao sistema elétrico interligado. Segundo da-
dos do Balanço Energético Nacional (BRASIL, no próprio canavial. Já os resíduos de levedura
2005b), os produtos resultantes da cana represen- possuem alto valor protéico e são normalmen-
tam 15,4% da matriz energética brasileira, em te utilizados para alimentação animal, em mis-
termos de produção de energia primária. O ba- turas à ração. O dióxido de carbono (CO2) re-
gaço de cana-de-açúcar é responsável por 1,8% sultante do processo de fermentação alcoólica
da energia elétrica ofertada no País, consideran- ainda tem sido pouco utilizado, mas pode ser
do a eletricidade consumida pelas próprias usi- aproveitado para produção de “gelo seco”, na
nas, que em média chega a 80% do total gerado. produção de refrigerantes na indústria de bebi-
das, ou até mesmo como substância para a indús-
A despeito da magnitude da geração atual, tria química, haja vista seu alto nível de pureza.
há um potencial não aproveitado muito superior
a essa capacidade, haja vista a utilização recor- A utilização de energia renovável proveni-
rente de sistemas e equipamentos obsoletos. Es- ente da agroindústria canavieira também possibi-
tudo desenvolvido pelo Centro de Tecnologia lita a obtenção dos chamados “créditos de carbo-
Canavieira (CTC), em parceria com o Programa no”, por meio do Mecanismo de Desenvolvimen-
das Nações Unidas para o Desenvolvimento to Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto da Con-
(Pnud) (Projeto BRA96/G31) e coordenação do venção-Quadro das Nações Unidas sobre Mu-
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) dança do Clima. Ao se evitar a emissão adicional
(HASSUANI et al., 2005), estima um potencial de gases de efeito estufa, como o dióxido de car-
atual adicional de geração de energia da ordem bono, metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), em
de 700 MW a 12 mil MW, dependendo da relação a um cenário tendencial de linha de base,
tecnologia utilizada, considerando-se desde cal- pode-se obter um certificado equivalente às emis-
deiras convencionais a vapor de 22bar/300oC, até sões evitadas pelo projeto, chamado Certificado
tecnologias de Gaseificação de Biomassa Integra- de Redução de Emissões (CER, sigla em inglês),
da a Turbinas a Gás (BIG-GT, sigla em inglês), in- bem como comercializá-lo no mercado interna-
cluindo a utilização parcial de palha. Os mesmos cional de carbono, seja pela sua venda direta, ou
autores avaliam que cerca de 50% da palha dei- em bolsa de valores e mercados futuros.
xada sobre o solo após a colheita da cana pode- A elaboração de um projeto de MDL requer
ria ser destinada à produção adicional de ener- também alguns procedimentos básicos. Inicial-
gia, sem ônus à produção final de cana. A quanti- mente, é necessário haver uma metodologia de
dade remanescente no campo seria suficiente cálculo, para se mensurar as emissões do projeto,
para garantir os mencionados benefícios da pre- que deverá ser aprovada no Conselho Executivo
sença da palha sobre o solo. O desafio está em do MDL, órgão internacional da Convenção do
viabilizar o custo de transporte da palha até a usi- Clima, lotado em Bonn, Alemanha. Em seguida,
na, dada sua baixa densidade volumétrica. A atu- prepara-se um documento intitulado Documento
al capacidade instalada de energia tende a au- de Concepção do Projeto (PDD, sigla em inglês),

Ano XV – Nº 3 – Jul./Ago./Set. 2006 58


que juntamente com a Carta de Validação do pro- A título de ilustração, no caso do biogás de
jeto, elaborada por uma entidade credenciada dejetos suínos, que representam 26% do total de
junto ao mesmo conselho, chamada Entidade projetos de MDL já aprovados, após biodigestão
Operacional Designada (EOD), é submetido à desse resíduo, obtêm-se como principais resultan-
aprovação da Autoridade Nacional Designada tes: o metano, que pode ser utilizado para a gera-
(DNA, sigla em inglês) do país hospedeiro do pro-
ção renovável de energia térmica ou elétrica;
jeto. No caso do Brasil, essa autoridade é a Co-
adubo orgânico; e efluente líquido de baixa DBO
missão Interministerial de Mudança Global do
Clima, presidida pelo Ministério da Ciência e (demanda bioquímica de oxigênio). Projetos de
Tecnologia, que analisará o projeto do ponto de reflorestamento e de aproveitamento de resíduos
vista de sua sustentabilidade ambiental e, se apro- de biomassa ainda têm sido insipientes, embora
vado, emitirá uma Carta de Aprovação, reconhe- haja alguns projetos em fase inicial e um grande
cendo também a voluntariedade do país nesse potencial a ser explorado.
processo. Posteriormente, toda a documentação A Fig. 1 mostra um perfil dos projetos de
é submetida ao Conselho Executivo do MDL para MDL em curso no Brasil, já aprovados pela refe-
registro. Uma vez registrado, o projeto passa a
rida Comissão, que em junho de 2006 já soma-
ser monitorado por uma segunda EOD e, após o
vam 81 projetos, desde a ratificação do Protocolo
período comprobatório das emissões reduzidas,
podem-se requerer os CERs, que validam o direi- de Kyoto, em fevereiro de 2005.
to a um “crédito de carbono”, calculado em
dióxido de carbono equivalente (CO2eq), a ser
incorporado ao balanço de emissões de gases de
efeito estufa do país comprador.
No Brasil, a maioria dos projetos aprova-
dos pela Comissão Interministerial de Mudança
Global do Clima se refere à área de agroenergia
e ao aproveitamento de biogás proveniente da
decomposição de resíduos sólidos urbanos em
aterros sanitários, ainda com amplo potencial de
crescimento (BRASIL, 2004). Dentre os projetos
de agroenergia, destaca-se a co-geração com
bagaço de cana, que representa 32% dos proje-
tos aprovados. Esses projetos normalmente plei-
teiam créditos pelas emissões evitadas da não uti- Fig. 1. Perfil dos projetos de MDL aprovados pelo
lização de outras fontes de energia para atender governo brasileiro.
Fonte: Brasil (2006).
às demandas da unidade industrial, por exemplo:
diesel; óleo combustível; e eletricidade da rede de Outra questão importante de ser relatada
transmissão, que em parte provém de geração fóssil. na fase industrial é o potencial de uso químico ao
A despeito de a cogeração com bagaço de etanol. Os preços elevados do petróleo tendem a
cana-de-açúcar ser um dos principais projetos sub- estimular a retomada da indústria alcoolquímica,
metidos à referida Comissão Interministerial, ao desenvolvida ainda nas décadas de 1970 e 1980,
se observar o número de usinas de açúcar e álco- onde eram produzidos compostos como:
ol cadastradas no País, cerca de 360 unidades, dicloroetano, ácido acético, aldeído acético,
verifica-se que muito pouco ainda foi explorado. acetato de vinila e acetato de etila. Na década
Dessa forma, observa-se mais uma contribuição de 1990 havia aproximadamente 30 produtos sen-
ambiental da agroindústria canavieira, o comba- do produzidos no Brasil, com destaque para o
te ao aumento do efeito estufa em escala global dicloro etileno, LD polietileno, etil-benzeno,
e, por conseqüência, das mudanças climáticas, cloreto de vinila e HD polietileno (BOTO, 1988;
maior problema ambiental global do século 21. MACEDO et al., 2005).

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Distribuição e consumo ETBE (etil tércio butil éter), evitando assim os im-
pactos ambientais específicos de suas emissões.
O álcool etílico é biodegradável, miscível
em água, higroscópico e volátil quando exposto Em relação à gasolina, o consumo de
ao ar. Sendo assim, eventuais vazamentos ou der- etanol apresenta emissões inferiores de monóxido
rames de álcool em operações de armazenamento de carbono, dióxido de enxofre e particulados.
e transporte, tanto por via terrestre ou marítima, Segundo Apace Research (1998), estudos condu-
apresentam impactos ambientais inferiores aos do zidos na Austrália, com misturas de 10% de etanol
petróleo e seus derivados. Ressalva feita para na gasolina, identificaram reduções nos níveis de
casos de vazamento de misturas de gasolina e emissões nas seguintes proporções: 32% para CO,
álcool no solo, especialmente em postos de abas- 12% para hidrocarbonetos totais (THC) e 7% para
tecimento, onde, por meio de “efeito de co-sol- CO2. As emissões de óxidos de nitrogênio são si-
vência”, o álcool potencializa a contaminação milares para ambos os combustíveis.
do lençol freático pelo combustível e a migração No caso de aldeídos, as emissões do etanol
dos compostos mais perigosos e solúveis da gaso- são ligeiramente maiores do que às da gasolina,
lina, como o benzeno, tolueno, etilbenzeno e mas não superiores ao diesel. Ainda assim, se-
xilenos (CORDAZZO et al., 2006). gundo Szwarc (2006) grande parte das emissões
de aldeído provenientes do etanol é do tipo
No que se refere ao consumo de álcool com-
acetaldeído, produto menos tóxico do que os ti-
bustível, as emissões de gases poluentes são, em
pos emitidos pela gasolina e pelo diesel. Estudos
geral, inferiores às da gasolina. Cabe destacar que
conduzidos em Denver (ANDERSON, 1997) e
os poluentes provenientes das emissões veicula-
Califórnia (CALIFORNIA AIR RESOURCES
res são os principais responsáveis pelos impactos
BOARD, 1999), com misturas de 10% de etanol
negativos sobre a qualidade do ar urbano.
na gasolina, constataram que a concentração at-
Há países que ainda utilizam chumbo mosférica de aldeídos praticamente não se alte-
tetraetila como aditivo à gasolina, o qual pode ser rou quando comparada a uma situação de consu-
descartado com a utilização de álcool anidro. O mo de gasolina sem mistura. Em contrapartida,
Brasil foi o primeiro país do mundo a eliminar to- essas emissões podem ser facilmente evitadas com
talmente o chumbo da gasolina, em 1992, embo- a utilização de catalisadores. No Brasil, desde
ra desde 1989 a maior parte do petróleo refinado 1992, esses equipamentos são obrigatórios em
no País já não usasse mais esse aditivo. A conta- veículos novos.
minação e exposição continuada ao chumbo po-
Além disso, o etanol também pode ser utili-
dem causar graves danos à saúde humana, po- zado em misturas ao diesel, em pequenas propor-
dendo deixar seqüelas permanentes ou até mes- ções, com o uso de aditivos específicos. Segundo
mo levar o paciente a óbito, em casos de conta- Ahmed (2002), testes realizados com misturas de
minação extrema. 10% e 15% de etanol no diesel, em caminhões
Dados apresentados por Blumberg e Walsh utilizados no transporte rodoviário dos Estados
(2004) mostram que há uma relação direta entre Unidos, apresentaram reduções significativas para
a concentração média de chumbo verificada na a maioria dos gases poluentes, se comparadas às
corrente sanguínea da população urbana e a quan- do diesel puro, conforme apresentado na Fig. 2.
tidade de chumbo presente na gasolina. Os auto- Resultados similares foram obtidos em simulações
res avaliaram dados relativos aos Estados Unidos, realizadas no Brasil, assim como a redução das
no período de 1976 e 1991, ano em que o chumbo emissões de enxofre, em projeto intitulado Proje-
foi retirado da gasolina americana, e observaram que to Mistura Álcool Diesel AEP102 e MAD-08, apoi-
a concentração deste metal na corrente sanguínea ado pelo governo federal e desenvolvido em par-
da população caiu drasticamente, em 78%. ceria com instituições de pesquisa e entidades li-
gadas ao setor sucroalcooleiro.
Ademais, com a mistura de etanol à gasoli-
na, também não há necessidade de se utilizar Quanto às emissões de gases de efeito es-
aditivos como o MTBE (metil tércio butil éter) e o tufa, especialmente o dióxido de carbono, emiti-

Ano XV – Nº 3 – Jul./Ago./Set. 2006 60


misturas de álcool à gasolina, de 0% a 100%, a
demanda interna de etanol aumentou muito nos
últimos anos, tendendo a crescer ainda mais em
curto e médio prazos. Em 2005, 50,2% dos novos
veículos leves vendidos no Brasil foram flex fuel,
e em junho de 2006 esse valor atingiu 76,3% das
vendas (CARTA DA ANFAVEA, 2006).

Tabela 3. Modificações possivelmente necessárias em


veículos leves, Ciclo Otto, segundo diferentes
percentuais de mistura de álcool anidro à gasolina.

Fig. 2. Redução de emissões em mistura álcool/diesel


(10% e 15%), em relação ao diesel puro.
Fonte: Ahmed (2002).

dos durante a combustão do etanol, salienta-se


que seu efeito é praticamente nulo, uma vez que
o mesmo provém de um processo renovável, onde
durante o crescimento da cana-de-açúcar há fi-
xação de gás carbônico por meio da fotossín-
tese. Adicionalmente, ao se evitar o consumo
de gasolina, o etanol mostra-se como uma im- Fonte: Anfavea (2006a).
portante estratégia para redução das emissões
de gases de efeito estufa em escala global Considerações finais
(Macedo et al., 2004)
A produção de cana-de-açúcar e etanol
Misturas de etanol à gasolina ou o consu-
apresenta reduzido impacto ambiental, especial-
mo direto de etanol são uma forma relativamente
mente quando acompanhada de medidas de fis-
simples de se reduzir emissões de gases de efeito
calização, controle e planejamento. Os impactos
estufa, sobretudo no caso de países desenvolvi-
ambientais do etanol devem ser analisados em
dos com metas no âmbito do Protocolo de Kyoto.
toda sua cadeia produtiva e não de forma isola-
Cabe destacar que o setor de transportes é res-
da, assim como os combustíveis fósseis. Sendo
ponsável por cerca de 25% das emissões globais
assim, observa-se que o etanol propicia diversos
de CO2, (IPCC, 2001). Macedo et al. (2005) esti-
benefícios ao meio ambiente, à economia e à so-
mam que para cada 100 milhões de toneladas de
ciedade como um todo.
cana poderiam ser evitadas 12,6 milhões de to-
neladas CO2eq, considerando-se o uso de etanol, Ainda que dois dos principais problemas
bagaço e energia elétrica adicional. ambientais relativos à produção do etanol tenham
sido resolvidos, em virtude do uso da vinhaça e
Misturas inferiores a 10% não requerem
do bagaço, em etapas de sua cadeia produtiva,
quaisquer ajustes nos tradicionais veículos a ga-
restam ainda alguns problemas que requerem
solina, exceto em veículos com carburação, onde
maior atenção, tais como: a queima da cana-de-
são mais indicadas misturas inferiores a 5%, confor-
açúcar no processo de colheita; e o avanço da
me mostra a Tabela 3. No Brasil, a Lei nº 10.464, de
cultura em regiões saturadas. O problema das
24 de maio de 2002, estabelece a obrigatoriedade
queimadas pode diminuir em grande parte, na
da mistura entre 20% e 25%.
medida em que o Estado de São Paulo priorize o
Com o surgimento dos veículos flex fuel na cronograma de redução de queimadas estabele-
frota brasileira, os quais podem utilizar quaisquer cido em Lei, já que tal estado responde pela mai-

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or parcela da produção canavieira nacional, em- As perspectivas para o etanol são bastante
bora outros estados também precisem avançar promissoras, tanto para no âmbito nacional quanto
nesse sentido. internacional. O etanol tem se mostrado uma impor-
Por sua vez, não se deve ocultar o efeito tante alternativa ao petróleo no plano global, dentre
desfavorável da redução de postos de trabalho diversas outras fontes. Ademais, pesquisas voltadas
ocasionado indiretamente pela eliminação das ao desenvolvimento comercial de tecnologias para
queimadas. A despeito de ser um trabalho extre- a obtenção de álcool a partir de celulose e a
mamente árduo e de caráter temporário, o corte biotecnologia prometem dar um novo impulso à pro-
de cana muitas vezes é a única oportunidade de dução mundial de etanol nas próximas décadas.
trabalho para um grande contingente de mão-de- Com base nas informações apresentadas
obra, a maioria sem qualificação para conseguir neste trabalho, pode-se observar que o etanol de
empregos com remuneração semelhante em ou- cana-de-açúcar, produzido no Brasil, é um pro-
tras atividades. Portanto, devem-se buscar medi- duto consolidado e viável. Tanto sua produção
das de controle ambiental, associadas à qualifi- quanto seu consumo em larga escala mostram que
cação e à inserção desses trabalhadores em ou- o etanol é competitivo e estratégico, contribuin-
tras atividades, com cidadania e inclusão social. do para a redução da demanda por combustíveis
fósseis, em prol de uma matriz energética mais
Quanto ao avanço da cana-de-açúcar, é limpa e renovável, da geração de emprego e ren-
preciso evitar uma excessiva concentração des- da à população, e da sustentabilidade ambiental
sa cultura em áreas saturadas, a exemplo de al-
às gerações futuras.
guns estados das regiões Centro-Sul e Nordeste,
com destaque para os estados de São Paulo,
Alagoas e Pernambuco, a fim de se evitar maio-
res problemas agronômicos e ambientais, bem
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fitossanitária desses estados a eventuais crises agrí- Characteristics of Ethanol-Diesel Blends in CI Engines.
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em: 12 jul. 2006.
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BERTONI, J.; PASTANA, F. I.; LOMBARDI NETO, F.;
orientada da infra-estrutura e logística; e o desen- BENATTI JÚNIOR, R. Conclusões gerais das pesquisas
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