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Capítulo I
Humor
O humor é (...) uma das mais refinadas criações do intelecto, uma espécie de território livre
em que o espírito do homem, apesar de toda repressão (...), se sente em liberdade para
pensar e dizer.
José Luis Meurer
naturelle” (brincadeira natural), derivada do humeur francês. Embora o humor deva provocar
o riso, nem todo riso é fruto do humor. O riso pode ser ameaçador e, realmente, os etologistas
afirmavam que o riso começava numa exibição agressiva dos dentes. Por outro lado, o humor
e o riso correspondente também podem ser muito libertadores. Todos nós sabemos como uma
pitada inesperada de humor é capaz de desfazer um clima tenso num instante. Em um
contexto mais amplo, o carnaval e as festividades análogas podem corromper
temporariamente as regras sociais rígidas a que todos nós obedecemos, embora,
freqüentemente, com humor de baixo nível, em vez de alto.
Em seu clássico estudo sobre o humor na Inglaterra dos Tudor e Stuart, Keith Thomas
(1977) indicou mais ou menos a mesma evolução, e destaca as áreas nas quais o riso não mais
era permitido. Citando Francis Bacon que achava que “há certas coisas” que precisam ser
protegidas da troça, Thomas mencionou os domínios da Igreja e do Estado, onde um “culto ao
decoro” que sustentava os valores de sobriedade e austeridade aos poucos ganhou força.
Como vimos acima, embora depois da Reforma padres e pastores protestantes tenham sido
menos austeros nos sermões do que se costuma admitir, o início do período moderno
testemunhou certas mudanças importantes. A maioria está relacionada com o fortalecimento
da hierarquia, que culminou, no final do século XVII, num desprezo genérico por todos os
tipos de humor mais baixo. Também foi esta preocupação com o decoro, segundo observa
Thomas, que levou os critérios literários Agostinianos a escrever tanto sobre o humor e o riso.
A formulação de nosso conceito moderno de humor parece ter sido um subproduto destes
avanços sociais maiores.
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Uber den Prozess Zivilisation (vol 2. Basiléia, 1939)
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Também foi neste período que o bobo da corte saiu finalmente de cena. Carlos II
parece ter sido o último rei a levar a sério seu bobo da corte. Tal riso subversivo, que
ridicularizava aqueles que estavam no poder e não diferia muito do riso revelado pelos
senhores do desgoverno, ainda popular na zona rural inglesa, ou os bufões autorizados
similares, não mais se inseriam nas estruturas sociais. Nessa época, na Inglaterra e em outras
partes da Europa, o humor polido e o humor popular se desenvolveram separadamente. Era
um legado que persistiria por muito tempo.
cotidiano e distinguiu-se assim do puramente cômico ou burlesco, que buscava apenas o riso e
denunciava sobretudo o que manifestamente reprovável ou grotesco.
Essa é também a atmosfera da obra de Machado de Assis, no fim do século XIX, cujo
humor penetrante é repassado de um pessimismo irredutível. Homem de meios-termos,
ambigüidades e humor sub-reptício, precedeu assim a concepção moderna de humor que,
segundo Luigi Pirandello, é uma “lógica sutil” e também “o sentimento do contrário”. O
paradoxo é o forte dos textos de Oscar Wilde e Lewis Carrol. Ainda na virada do século
brilharam na literatura humorística o americano Mark Twain e o britânico Bernard Shaw. Os
franceses Auguste Villiers de L`Isle-Adam e Alfred Jarry notabilizaram-se como cultores do
humor negro, aquele em predomina as notas cínicas e aparece o tema da morte.
No clássico Le Rise (O Riso, 1900), Bergson afirma que o risível consiste numa certa
rigidez mecânica que substituiu a flexibilidade atenta e viva que se esperava das pessoas,
como se observa por exemplo nos movimentos duros de Carlitos, o personagem
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As observações do filósofo francês Henri Bergson abordam o humor no que ele tem de
mais característico: ser próprio do homem. “Não há comicidade fora do que é humano. Uma
paisagem pode ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia, mas jamais risível. Riremos
de um animal por surpreender nele uma atitude de homem, ou uma expressão humana. Já se
definiu o homem como um animal que ri. Poderia dizer-se também que é um animal que faz
rir”.
O humor é uma linguagem simbólica porque através dele o mundo exterior é símbolo
de um mundo interior, segundo Fromm (1966), permite a expressão do mundo interior de
cada indivíduo, evoca o diálogo bitextual, bimagético entre o esperado (consciente) e o
inesperado (inconsciente), provocando um confronto dialético rápido que aguça os sentidos,
estimula o cérebro, revitaliza o homem como sujeito social.
Com relação à comicidade das formas, Bergson diz que pode tornar-se cômica
qualquer deformidade que se possa imitar. A fisionomia cômica inclui algo de rígido ou fixo
no mobilidade normal do rosto humano, como o franzir das sobrancelhas ou o repuxar da
boca. Quanto mais a expressão sugerir a idéia de ação mecânica, mais engraçada será. O
orador que ao longo do discurso repete os mesmos gestos torna-se cômico, porque se a vida
muda de instante a instante, os gestos deveriam acompanhar essa mudança e não poderiam ser
então imitados. O homem é imitável, acrescenta Bergson, na medida em que deixa de ser ele
mesmo, pois imitar alguém é revelar e reproduzir a parte mecânica de sua personalidade. O
ridículo das cerimônias e das indumentárias solenes decorre da imposição da forma rígida à
matéria flexível, em que o artificial substitui o natural. Na confluência da pessoa que se torna
objeto, ou do objeto que se torna pessoa, surge o cômico. Ri-se, diz Bergson, sempre que uma
pessoa, por aquilo que faz ou diz, dá a impressão de ser uma coisa.
De relevante importância Freud (Os chistes e sua relação com o Inconsciente, 1905)
realizou estudos sobre os chistes, do qual trataremos neste momento. Neste livro, o autor
estuda a piada, a comicidade e o humor à luz dos princípios gerais da psicanálise. Observa
que a pilhéria é a mais social das funções anímicas destinadas à obtenção de prazer. Ri-se dos
palhaços porque seus gestos parecem excessivos e inadequados. A comicidade decorreria
assim de um consumo de energia superior ao que julga necessário. O riso que resulta da
consciência dessa desproporção exprime também o sentimento de nossa superioridade. O
prazer cômico nasce, portanto, do confronto entre o comportamento da pessoa observada e o
do observador. Fonte de comicidade é também a relação com o que irá acontecer. Os
movimentos supérfluos, provenientes da desproporção entre o esforço a que se predispõe o
jogador, por exemplo, e a leveza inesperada da bola, podem tornar-se cômicos. Por isso Freud
cita Kant: “O cômico é uma esperança decepcionada”.
O autor, acima citado, refere-se ao livro Ueber den Witz (1898) de autoria de Kuno
Fischer, no qual este expõe sua tese quanto a impossibilidade de se “tratar o Chiste, senão por
uma conexão como cômico”. Freud não concorda com essa idéia e busca diferenciar as
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O livro Komic und Humor (1898) do alemão Theodor Lipps, também foi objeto de
investigação para Freud quanto à relação entre o chiste e o cômico. Segundo este, a definição
fornecida por Lipps do chiste como “a comicidade privativamente subjetiva”, ressalta, por um
lado, uma implicação entre a noção de chiste e a noção de cômico, por outro, afirma uma
necessária “atividade” ou “conduta ativa do sujeito” na produção de chiste. Portanto, é fácil
perceber que Freud destaca não tratar-se para Lipps, quanto ao chiste, da conduta de um
sujeito frente a um objeto estético, mas da própria atividade mental do sujeito que produz o
chiste. Freud também ressalta a importância que Fischer dedica a habilidade do sujeito
chistoso em achar “analogias no disparate” e ao dizer do sujeito durante a brevidade do chiste.
Freud ainda faz referência a Theodor Vischer, a principal delas, em torno do chiste,
diz que “a habilidade de ligar com surpreendente rapidez, formando uma unidade, várias
representações que, por seu valor intrínseco e pelo nexo a que pertencem, são totalmente
estranhas umas às outras”.
Segundo Freud (Almanach, 1927, p.9-16) há duas maneiras pelas quais o processo
humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma pessoa isolada, que, ela
própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda pessoa representa o papel de
espectador que dela deriva prazer; ou pode efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não
toma parte alguma do processo humorístico, mas é tornada objeto de contemplação
humorística pela outra. Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu
respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas
maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo
do afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido sofrer. Insiste em
que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses
traumas para eles não passam de ocasiões para obter prazer. O humor não é resignado, mas
rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio do prazer, que
pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais. Essas características – a
rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do princípio do prazer – aproximam o
humor dos processos regressivos ou reativos que tão amplamente atraem a atenção na
psicopatologia. Seu desvio da possibilidade de sofrimento coloca-o entre a extensa série de
métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série
que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o
êxtase. Graças a essa vinculação, o humor possui uma dignidade que falta completamente, por
exemplo, aos chistes, pois estes servem simplesmente para obter uma produção de prazer ou
colocar sua produção, que foi obtida, a serviço da agressão. Em que, então, consiste a atitude
humorística, atitude por meio da qual uma pessoa recusa a sofrer, dá ênfase à invencibilidade
do ego pelo mundo real, sustenta vitoriosamente o princípio do prazer – e tudo isso em
contraste com outros métodos que tem os mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da
saúde mental? As duas realizações parecem incompatíveis. Mas temos de recordar a outra
situação de humor, provavelmente mais primárias e mais importante, na qual uma pessoa
adota uma atitude humorística para consigo mesma, a fim de manter afastados possíveis
sofrimentos. Há sentido em dizer que alguém está se tratando a si próprio como criança e, ao
mesmo tempo, desempenhando o papel de um adulto superior para com essa criança?
chistes, que jamais encontra vazão no riso cordial. Também é verdade que, ocasionando a
atitude humorística, o superego está realmente repudiado a realidade e servindo a uma ilusão.
Entretanto (sem saber exatamente por quê), encara-se esse prazer menos intenso possuindo
um caráter de valor muito alto; sentimentos que ele é especialmente liberador e enobrecedor.
Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo
preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao
eu quer as outras pessoas. Significa “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso!
Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”
De acordo com Koestler (1981, p.359), o humor é um estímulo de alto nível para o
riso, reflexo fisiológico visível e previsível, produzido como uma resposta estereotipada, a
partir da discrepância entre o estímulo que o provoca e a resposta quando da comunicação
humorística.
Para Buytendijk (1977), o humor tem como suporte o jogo de funções do homem no
contexto social. O humor é um jogo humano produzido através da linguagem e que nela se
realiza, evidencia-se pela compreensão que o homem apresenta como resposta. Para Freud, o
humor relaciona-se ao irracional e ao obscuro dos instintos, das paixões, das capacidades,
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disposições, condições e estado de ânimo dos seres humanos, e com o inexplicável elemento
criador.
Freud diz que o humor reverte-se em um meio para obter prazer nas situações
dolorosas e atua como substitutivo destas. Para Lipps, citado pelo referido autor, o humor é
algo subjetivo, produzido pelo ser humano que com ele estabelece e mantém sempre a relação
de sujeito.
inconsciente, o sacro profano, o irreal. Para Fink, também o homem que pratica o humor se
transforma; o jogo do humor não permite a existência cotidiana trivial.
O humor é uma forma de expressão que, em sua relação com a linguagem, manifesta
sua incapacidade de transmití-la e de a compreender com seus meios; porém relaciona-se pela
capacidade de imaginar e relembrar algo, assegurando a relação necessária entre as
impressões vindas de fora e de dentro.
Para Plessner (1977), o riso é uma forma de expressão não verbal; este, se não exprime
uma alegria vital ou uma libertação das limitações do cotidiano, revela entendimento e
quitação dessas limitações.
Morin (1975) alega não se saber se o riso ou as lágrimas emergiram antes do sapiens,
mas do Homo sapiens são a instabilidade e a intensidade causadas pela tristeza e a alegria.
Risos e lágrimas são estados violentos, convulsivos e espasmódicos, rupturas e abalos, que se
encontram e alternam: pode se rir até as lágrimas e destas passar ao riso demente. O sapiens
adulto pode deter o riso, mas a intensidade do riso continua existindo e é preciso colocar esta
característica em relação a outras características psicoafetivas, esquecidas na antropologia
racionalística do Homo sapiens.
Para que haja o riso há necessidade que o indivíduo encontre dois sistemas de
referência, aos quais Lotman (1978) chama de “cânones”, cujo choque criará o cômico.
Segundo Koestler, coagido pelos sistemas, o indivíduo é obrigado a pensar, rapidamente, em
um e outro. Assim, as emoções, com maior inércia e persistência que os processos de
raciocínio, que não se enquadram na experiência ficam soltas no ar, perdidas, explodem no
riso.
Koestler anota que o riso é um reflexo (corporal e motor), simples, expresso pela
contratura coordenada da quinze músculos faciais; causa movimento agitados, alterações
respiratórias (longas e profundas aspirações de ar), interrompidas pela reação há-há-há
desencadeadas por emoções auto-afirmativas.
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Freud e Koestler alegam que o riso, como expressão de estado psíquico, tem
acentuado poder de contágio social pois, faz com que haja partilha grupal das emoções. Choca
a relação do riso, considerando forma de expressão inferior, com processos intelectuais como
o chiste e a ironia. Entretanto, acredita Plessner, que a inacessibilidade ao gozado e ao
cômico, ao humor, a sentimentos vitais e espirituais é que motiva formas de expressão
vegetativa inferior.
O rir dos mitos e sobre os mitos, em suma, indica que se ri de coisas que se vão
relatando, mas definitivas de uma vez por todas: são ridicularizadas porque os efeitos de suas
realizações conservaram-se inalteradas até o presente. Rir nos mitos, ao contrário, indica que
se ri de ações que estão ocorrendo, inspiradas numa realidade mutável e contingente,
percebida como estranha e insidiosa.
De acordo com Propp (1992, p.171), “é possível que o aspecto do riso mais
estritamente ligado à comicidade seja aquele que chamamos de riso de zombaria. É
justamente o tipo de riso que mais se encontra na vida e na arte, e está sempre ligado à
comicidade. E isto é compreensível. A comicidade costuma estar associada ao desnudamento
de defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que suscita o riso”. Assim pode-se
concluir que existem múltiplos aspectos e suas variantes para o riso.
Certamente, o humor, “como o bom humor em todas as sociedades, utiliza coisas que são
ambíguas ou que são tabu e brinca com isso de formas diferentes” (Seeger, 1980). O humor
para ser compreendido, deve ser situado num contexto de práticas e valores. Em outras
palavras, abraçando a crítica de Bakthin (1987) àqueles pesquisadores que julgam que “o riso
é sempre o mesmo em todas as épocas e que a brincadeira nunca é mais do que uma
brincadeira”.
De acordo com Maseti3 o riso pede um novo conceito de ciência. Ao menos para
ocupar seu lugar de origem. Se quisermos compreendê-lo precisamos de um modelo que
possa descrevê-lo com suas características. O riso, como tantos outros eventos do nosso
mundo, carece de conhecimento; não porque mereça e sim sabemos como lidar com ele. Em
uma época em que assumimos a verdade científica como a que dá reconhecimento e validade
aos eventos que nos rodeiam, passamos a ser cautelosos com essa silenciosa nova santa
inquisição. Nessa fogueira invisível, ao calor dos discursos numericamente precisos, correm o
risco de queimar como bruxos aqueles que não respondem a esse sistema. Questões como as
do efeito da alegria, do humor e do riso em nossas atividades, nos recolocam diante de um
mistério, de uma condição de humanidade com relação ao quanto devemos caminhar.
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Informação retirada do site http://doutoresdaalegria.org.br, em 14/05/2001