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Capítulo I
Humor

O humor é (...) uma das mais refinadas criações do intelecto, uma espécie de território livre
em que o espírito do homem, apesar de toda repressão (...), se sente em liberdade para
pensar e dizer.
José Luis Meurer

Tendência estética e filosófica de mostrar o ridículo da condição humana e provocar o


riso. Termo derivado de antiga crença na influência dos fluidos do corpo sobre o caráter dos
indivíduos. O termo latino humor, significa “líquido, umidade”. Da antiga crença na
influência dos fluidos do corpo sobre o estado de ânimo das pessoas veio o uso da palavra
“humor” como sinônimo de “gênio, temperamento”. Posteriormente, o termo voltou a evoluir
quanto ao significado. O dramaturgo inglês Ben Jonson, no final do século XVI, utilizou a
palavra inglesa “humour” para definir a personalidade extravagante e aplicou a teoria dos
humores aos personagens que atuavam em sua comédia. No século seguinte impôs-se o uso,
no francês, de “humeur” no sentido moderno de tendência para o gracejo. A literatura de
todos os países exibe, no entanto, desde tempos muito anteriores ao uso da palavra humor, a
tendência a mostrar de maneira jocosa as incoerências da sociedade e a caçoar do absurdo e
do ridículo (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.).

Segundo Bremmer e Roodenburg (2000, p. 13-23), entende-se o humor como qualquer


mensagem – expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de
provocar o riso ou um sorriso. No sentido estrito, a noção de humor é relativamente nova. Em
seu significado moderno, foi pela primeira vez registrada na Inglaterra em 1682, já que, antes
disso, significava disposição mental ou temperamento. O famoso Sensus communis: an essay
on the freedom of wit and humour (Sensus communis: um ensaio sobre a liberdade da graça e
do humor – 1709), Lorde Shaftesbury, foi um dos primeiros escritos a empregar o termo com
acepção familiar aos modernos, conforme definida pelo Concise Oxford Dictionary, que
define humor como “facéia, comicidade” e o considera “menos intelectual e mais agradável
que o chiste”. Voltaire, (1877, vol.79, p.552 – 4) diferentemente propôs uma origem francesa
para o termo. Ele alegava que o humor na nova acepção inglesa, significando “plaisanterie
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naturelle” (brincadeira natural), derivada do humeur francês. Embora o humor deva provocar
o riso, nem todo riso é fruto do humor. O riso pode ser ameaçador e, realmente, os etologistas
afirmavam que o riso começava numa exibição agressiva dos dentes. Por outro lado, o humor
e o riso correspondente também podem ser muito libertadores. Todos nós sabemos como uma
pitada inesperada de humor é capaz de desfazer um clima tenso num instante. Em um
contexto mais amplo, o carnaval e as festividades análogas podem corromper
temporariamente as regras sociais rígidas a que todos nós obedecemos, embora,
freqüentemente, com humor de baixo nível, em vez de alto.

De acordo com Bremmer e Roodenburg apud Burke (1995, p. 34) há uma


“desintegração” do humor tradicional, que começou no século XVI: houve uma redução dos
domínios, ocasiões e locais da arte cômica; além disso, o clero, as damas e os cavalheiros já
não participavam de certos tipos de humor, pelo menos em público. Esta troca de “fronteiras”
de arte cômica se enquadrava no estudo de Norbert Elias2 sobre a ascensão da “civilização”,
que quase meio século depois continua sendo o ponto central de referência para o estudo
dessa evolução.

Em seu clássico estudo sobre o humor na Inglaterra dos Tudor e Stuart, Keith Thomas
(1977) indicou mais ou menos a mesma evolução, e destaca as áreas nas quais o riso não mais
era permitido. Citando Francis Bacon que achava que “há certas coisas” que precisam ser
protegidas da troça, Thomas mencionou os domínios da Igreja e do Estado, onde um “culto ao
decoro” que sustentava os valores de sobriedade e austeridade aos poucos ganhou força.
Como vimos acima, embora depois da Reforma padres e pastores protestantes tenham sido
menos austeros nos sermões do que se costuma admitir, o início do período moderno
testemunhou certas mudanças importantes. A maioria está relacionada com o fortalecimento
da hierarquia, que culminou, no final do século XVII, num desprezo genérico por todos os
tipos de humor mais baixo. Também foi esta preocupação com o decoro, segundo observa
Thomas, que levou os critérios literários Agostinianos a escrever tanto sobre o humor e o riso.
A formulação de nosso conceito moderno de humor parece ter sido um subproduto destes
avanços sociais maiores.

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Uber den Prozess Zivilisation (vol 2. Basiléia, 1939)
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Também foi neste período que o bobo da corte saiu finalmente de cena. Carlos II
parece ter sido o último rei a levar a sério seu bobo da corte. Tal riso subversivo, que
ridicularizava aqueles que estavam no poder e não diferia muito do riso revelado pelos
senhores do desgoverno, ainda popular na zona rural inglesa, ou os bufões autorizados
similares, não mais se inseriam nas estruturas sociais. Nessa época, na Inglaterra e em outras
partes da Europa, o humor polido e o humor popular se desenvolveram separadamente. Era
um legado que persistiria por muito tempo.

As comédias de Aristófanes são um dos precedentes mais antigos de humorismo na


literatura. Elas escarnecem piedosamente dos políticos mais destacados e das figuras
intelectuais do século V a. C. Entre os romanos, além dos comediógrafos Plauto e Terêncio,
destacaram-se os autores de obras satíricas, tanto em verso, como Juvenal, quanto em prosa,
como Petrônio e Apuleio. Na idade média, o humorismo predominou nas farsas, originais na
França, como a do Mestre Pathélin, de autor anônimo. Rabelais tornou-se um clássico na
literatura satírica do Renascimento. Nos contos de Bocaccio, no século XVI, e nos poemas de
François Villon, no século seguinte, encontram-se os prenúncios do humor moderno, pois
ambos procuram a denúncia além do imediatismo da sátira. Os ideais renascentistas de
harmonia e classicismo não favorecem o cultivo do humor, pelo menos na literatura erudita,
embora se devam assinalar exceções como o italiano Pietro Aterino. No século XVI, no
entanto, o humor popular floresceu na Itália com os personagens arquetípicos da comédia de
dell`arte, que representavam pantomimas e diziam falas improvisadas sobre um roteiro
fundado em desencontros amorosos.

No século XVII, com o barroco, o humor encontrou terreno fértil. A ruptura da


concepção renascentista do mundo fez com que ganhasse força uma visão desiludida da vida,
e se impôs uma estética na qual se destacava em grande medida a espirituosidade, que com
freqüência surgia para dar expressão ao cômico. O humor aparece muito, por exemplo, nas
obras de Shakespeare e constituiu elemento essencial no D. Quixote de Cervantes. A novela
picaresca espanhola inaugurou um tipo de narrativa de humor de costumes que teria grande
influência posterior. Na França, Molière fazia rir a corte com suas comédias, nas quais
predominavam a crítica á afetação, à hipocrisia social e religiosa e à arrogância. Na Inglaterra,
ainda no final do século XVII, houve uma depuração do conceito de humor. Este passou a ser
considerado como um recurso para por à mostra os aspectos ridículos ou incoerentes do
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cotidiano e distinguiu-se assim do puramente cômico ou burlesco, que buscava apenas o riso e
denunciava sobretudo o que manifestamente reprovável ou grotesco.

Na literatura britânica do século XVII desenvolveu-se um humor marcante satírico,


cujo principal representante foi Jonathan Swift, autor das célebres Viagens de Gulliver.
Destacaram-se também outros brilhantes humoristas da época, como Laurence Sterne e Henry
Fielding, que popularizam na Europa o humor inglês. Na França, ao mesmo tempo, cultivava-
se um humor revestido de ironia, que acentuava os aspectos ridículos de uma situação ao
expô-la de uma forma pretensamente séria. Tal humor atinge a perfeição com Montesquieu
nas Lettres Persanes (Cartas Persas), descrição da vida em Paris por dois supostos viajantes
persas, e nos contos de Voltaire, sobretudo Candide, história das desventuras de um jovem
educado nos princípios do otimismo. Durante o século XIX surgiram na Alemanha muitos
teóricos do humor. Jean Paul (Johann Paul Richter) formulou uma teoria do humor como
forma romântica do cômico, Charles Dickens incorporou à primitiva veia irônica do humor
um fundo de ternura e compaixão, patente em muitas de suas obras. O humor como
instrumento de crítica social aparecia já no que muitos consideram o primeiro romance
hispano-amaricano El periquillo sarniento (O periquito sarnento, 1819), do mexicano
Joaquim Fernández de Lizardi. Na Rússia, além de Gogol, destacou-se o humor fino e
penetrante de Tchekov, veiculado por uma narrativa cheia de ambigüidade e sutileza.

Essa é também a atmosfera da obra de Machado de Assis, no fim do século XIX, cujo
humor penetrante é repassado de um pessimismo irredutível. Homem de meios-termos,
ambigüidades e humor sub-reptício, precedeu assim a concepção moderna de humor que,
segundo Luigi Pirandello, é uma “lógica sutil” e também “o sentimento do contrário”. O
paradoxo é o forte dos textos de Oscar Wilde e Lewis Carrol. Ainda na virada do século
brilharam na literatura humorística o americano Mark Twain e o britânico Bernard Shaw. Os
franceses Auguste Villiers de L`Isle-Adam e Alfred Jarry notabilizaram-se como cultores do
humor negro, aquele em predomina as notas cínicas e aparece o tema da morte.

No clássico Le Rise (O Riso, 1900), Bergson afirma que o risível consiste numa certa
rigidez mecânica que substituiu a flexibilidade atenta e viva que se esperava das pessoas,
como se observa por exemplo nos movimentos duros de Carlitos, o personagem
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cinematográfico de Charles Chaplin. A comicidade resulta da superposição do mecânico ao


vital.

As observações do filósofo francês Henri Bergson abordam o humor no que ele tem de
mais característico: ser próprio do homem. “Não há comicidade fora do que é humano. Uma
paisagem pode ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia, mas jamais risível. Riremos
de um animal por surpreender nele uma atitude de homem, ou uma expressão humana. Já se
definiu o homem como um animal que ri. Poderia dizer-se também que é um animal que faz
rir”.

O humor libera o corpo. O homem chega ao prazer do humor através de sensações e


reflexos, fisiologicamente explicáveis. O ser humano ouve, apalpa e cheira aquilo que precisa
para conservar a sua vida. O homem utiliza e explora os sentidos sempre que lhe permite. Na
realidade, desde que nasceu numa sociedade burguesa, ele é educado, ou melhor, é
domesticado, aprende a controlar seus sentimentos, enquadra-se num relógio biológico e
acaba perdendo a sensibilidade. O humor redimensiona o homem sensitivo, voltando ao corpo
e fazendo deste a razão política, porque o corpo dispõe de olfato para avaliar aspectos
qualitativos da vida, e pedagógica, porque o corpo só sente, aprende, processa, entende e
resolve situações concretas. Assim, o corpo humano só preserva as idéias que lhe sejam
instrumentos ou brinquedos, que lhe dêem prazer.

O humor é uma linguagem simbólica porque através dele o mundo exterior é símbolo
de um mundo interior, segundo Fromm (1966), permite a expressão do mundo interior de
cada indivíduo, evoca o diálogo bitextual, bimagético entre o esperado (consciente) e o
inesperado (inconsciente), provocando um confronto dialético rápido que aguça os sentidos,
estimula o cérebro, revitaliza o homem como sujeito social.

O humor contemporâneo ampliou em grande medida suas fronteiras. Abrange tanto o


sociológico como o histórico e, transcendendo às fronteiras nacionais, compreende todas as
manifestações da atividade do homem. O teatro do absurdo, por exemplo, utilizou um humor
corrosivo para apresentar sua desolada visão da existência humana. De maneira similar,
muitos grandes romancistas, do irlandês James Joyce ao alemão Gunter Grass e o cubano
Cabrera Infante, empregaram o humor como meio para penetrar na falsidade do mundo
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convencional. Os novos meios de comunicação, como o cinema, o rádio e a televisão,


possibilitaram o surgimento de novas formas de humor, com linguagens específicas e
adequadas a esses veículos.

Com relação à comicidade das formas, Bergson diz que pode tornar-se cômica
qualquer deformidade que se possa imitar. A fisionomia cômica inclui algo de rígido ou fixo
no mobilidade normal do rosto humano, como o franzir das sobrancelhas ou o repuxar da
boca. Quanto mais a expressão sugerir a idéia de ação mecânica, mais engraçada será. O
orador que ao longo do discurso repete os mesmos gestos torna-se cômico, porque se a vida
muda de instante a instante, os gestos deveriam acompanhar essa mudança e não poderiam ser
então imitados. O homem é imitável, acrescenta Bergson, na medida em que deixa de ser ele
mesmo, pois imitar alguém é revelar e reproduzir a parte mecânica de sua personalidade. O
ridículo das cerimônias e das indumentárias solenes decorre da imposição da forma rígida à
matéria flexível, em que o artificial substitui o natural. Na confluência da pessoa que se torna
objeto, ou do objeto que se torna pessoa, surge o cômico. Ri-se, diz Bergson, sempre que uma
pessoa, por aquilo que faz ou diz, dá a impressão de ser uma coisa.

De relevante importância Freud (Os chistes e sua relação com o Inconsciente, 1905)
realizou estudos sobre os chistes, do qual trataremos neste momento. Neste livro, o autor
estuda a piada, a comicidade e o humor à luz dos princípios gerais da psicanálise. Observa
que a pilhéria é a mais social das funções anímicas destinadas à obtenção de prazer. Ri-se dos
palhaços porque seus gestos parecem excessivos e inadequados. A comicidade decorreria
assim de um consumo de energia superior ao que julga necessário. O riso que resulta da
consciência dessa desproporção exprime também o sentimento de nossa superioridade. O
prazer cômico nasce, portanto, do confronto entre o comportamento da pessoa observada e o
do observador. Fonte de comicidade é também a relação com o que irá acontecer. Os
movimentos supérfluos, provenientes da desproporção entre o esforço a que se predispõe o
jogador, por exemplo, e a leveza inesperada da bola, podem tornar-se cômicos. Por isso Freud
cita Kant: “O cômico é uma esperança decepcionada”.

O autor, acima citado, refere-se ao livro Ueber den Witz (1898) de autoria de Kuno
Fischer, no qual este expõe sua tese quanto a impossibilidade de se “tratar o Chiste, senão por
uma conexão como cômico”. Freud não concorda com essa idéia e busca diferenciar as
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noções de chiste e de cômico. O autor extrai do texto de Fischer a seguinte definição: “o


chiste é um juízo brincalhão” e caracteriza-se pela “relação a seu objeto”. Ele também
esclarece que a base da definição de Fischer é formada pela noção deste de “liberdade
estética” (uma “elaboração brincalhona das coisas”) e pela própria “conduta estética (do
sujeito) ante um objeto”. Este último aspecto, diz Freud, citando as palavras de Fischer, é
caracterizado pelo fato de que “não demandamos nada do objeto, principalmente, de que não
lhe pedimos a satisfação de nossas necessidades, senão que nos contentamos com o gozo que
a sua contemplação nos proporciona”. A relação proposta por Fischer entre chiste e “liberdade
estética” poderia ser sintetizada, segundo Freud, na seguinte frase daquele: “a liberdade
produz o chiste, e o chiste é um simples jogo de idéias”. Finalmente, extrai a idéia de que “o
chiste faz surgir algo oculto ou escondido” da proposta de Fischer de justapor o chiste e a
caricatura.

O livro Komic und Humor (1898) do alemão Theodor Lipps, também foi objeto de
investigação para Freud quanto à relação entre o chiste e o cômico. Segundo este, a definição
fornecida por Lipps do chiste como “a comicidade privativamente subjetiva”, ressalta, por um
lado, uma implicação entre a noção de chiste e a noção de cômico, por outro, afirma uma
necessária “atividade” ou “conduta ativa do sujeito” na produção de chiste. Portanto, é fácil
perceber que Freud destaca não tratar-se para Lipps, quanto ao chiste, da conduta de um
sujeito frente a um objeto estético, mas da própria atividade mental do sujeito que produz o
chiste. Freud também ressalta a importância que Fischer dedica a habilidade do sujeito
chistoso em achar “analogias no disparate” e ao dizer do sujeito durante a brevidade do chiste.

Freud ainda faz referência a Theodor Vischer, a principal delas, em torno do chiste,
diz que “a habilidade de ligar com surpreendente rapidez, formando uma unidade, várias
representações que, por seu valor intrínseco e pelo nexo a que pertencem, são totalmente
estranhas umas às outras”.

O humor forma-se pelo abandono momentâneo de um pensamento pré-consistente nas


mãos do inconsciente, com resultado captado pela percepção consciente; é
involuntária descoberta derivada das relações humanas, manifestando-se
primeiramente, nas características físicas e depois mentais (Freud, 1905, p.290).
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Segundo Freud (Almanach, 1927, p.9-16) há duas maneiras pelas quais o processo
humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma pessoa isolada, que, ela
própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda pessoa representa o papel de
espectador que dela deriva prazer; ou pode efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não
toma parte alguma do processo humorístico, mas é tornada objeto de contemplação
humorística pela outra. Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu
respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas
maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo
do afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido sofrer. Insiste em
que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses
traumas para eles não passam de ocasiões para obter prazer. O humor não é resignado, mas
rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio do prazer, que
pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais. Essas características – a
rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do princípio do prazer – aproximam o
humor dos processos regressivos ou reativos que tão amplamente atraem a atenção na
psicopatologia. Seu desvio da possibilidade de sofrimento coloca-o entre a extensa série de
métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série
que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o
êxtase. Graças a essa vinculação, o humor possui uma dignidade que falta completamente, por
exemplo, aos chistes, pois estes servem simplesmente para obter uma produção de prazer ou
colocar sua produção, que foi obtida, a serviço da agressão. Em que, então, consiste a atitude
humorística, atitude por meio da qual uma pessoa recusa a sofrer, dá ênfase à invencibilidade
do ego pelo mundo real, sustenta vitoriosamente o princípio do prazer – e tudo isso em
contraste com outros métodos que tem os mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da
saúde mental? As duas realizações parecem incompatíveis. Mas temos de recordar a outra
situação de humor, provavelmente mais primárias e mais importante, na qual uma pessoa
adota uma atitude humorística para consigo mesma, a fim de manter afastados possíveis
sofrimentos. Há sentido em dizer que alguém está se tratando a si próprio como criança e, ao
mesmo tempo, desempenhando o papel de um adulto superior para com essa criança?

Um chiste é, portanto, a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente. Exatamente


do mesmo modo, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego.
È verdade que o prazer humorístico jamais alcança a intensidade do prazer cômico ou dos
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chistes, que jamais encontra vazão no riso cordial. Também é verdade que, ocasionando a
atitude humorística, o superego está realmente repudiado a realidade e servindo a uma ilusão.
Entretanto (sem saber exatamente por quê), encara-se esse prazer menos intenso possuindo
um caráter de valor muito alto; sentimentos que ele é especialmente liberador e enobrecedor.
Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo
preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao
eu quer as outras pessoas. Significa “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso!
Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”

Se realmente o superego que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao


ego intimado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a humorística. Trata-
se de um dom raro e precioso, e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer
humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o superego tenta, através do humor,
consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno.

A criatividade humana ocorre por processos conscientes e em três domínios: artístico,


científico e cômico, mesclados e sem limitações; ela é clara no humor e no espírito, sendo que
o primeiro permite-lhe a passagem à originalidade ao humor porque lhe fornece o elemento
surpresa que mina as expectativas.

De acordo com Koestler (1981, p.359), o humor é um estímulo de alto nível para o
riso, reflexo fisiológico visível e previsível, produzido como uma resposta estereotipada, a
partir da discrepância entre o estímulo que o provoca e a resposta quando da comunicação
humorística.

Para Bergson apud Koestler (1981), o humor contém um ingrediente básico – a


agressão ou a apreensão, que pode parecer como malícia, desdém, crueldade condescendente
ou ausência de simpatia pela vítima da anedota.

Para Buytendijk (1977), o humor tem como suporte o jogo de funções do homem no
contexto social. O humor é um jogo humano produzido através da linguagem e que nela se
realiza, evidencia-se pela compreensão que o homem apresenta como resposta. Para Freud, o
humor relaciona-se ao irracional e ao obscuro dos instintos, das paixões, das capacidades,
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disposições, condições e estado de ânimo dos seres humanos, e com o inexplicável elemento
criador.

Para Werner, conforme Buytendijk (1977), o humor ressalta o caracter intermediário


do jogo (num movimento pendular contínuo entre o jogo e a vivência da realidade), como
aquele que oscila para lá e para cá, entre a fantasia e a vida cotidiana. Este movimento
pendular, manifestação do elemento lúdico, estabelece uma relação dialética entra aparência e
realidade e caracteriza a essência de um jogo humano.

Segundo Buytendijk, na criação do humor há um fenômeno lúdico que implica em


liberdade, num planar aparente, coerência, ambivalência, infinidade interna e atemporalidade.

No humor joga-se com imagens e estas jogam com os indivíduos. No entender do


autor acima referido, imagem é o modo como se apresentam as coisas e os acontecimentos em
seu caráter prático. Assim, a esfera do jogo é a das imagens, ou seja, das fantasias e das
possibilidades. Através dessas o caráter imagético escondido deixa-se descobrir,
estabelecendo um processo dialético circular, de estímulo e resposta, de mover e ser movido,
num vaivém que alterne tensão e relaxamento como surpresa.

Freud diz que o humor reverte-se em um meio para obter prazer nas situações
dolorosas e atua como substitutivo destas. Para Lipps, citado pelo referido autor, o humor é
algo subjetivo, produzido pelo ser humano que com ele estabelece e mantém sempre a relação
de sujeito.

As espécies são variadas de acordo com a natureza da emoção “economizada” em


favor dele: compaixão, raiva, dor, ternura, etc. Este número amplia-se à medida que o artista
ou escritor submete novas emoções ao controle do humor, através de dispositivos variados,
transformando-os em fonte de prazer. Assim, as formas de manifestação do humor são
determinadas pelas condições de sua geração.

O humor assim como o jogo, representa libertação e é profanador do sério e do


sagrado. Se o jogo é transformação, no entender de Block, o humor, como o jogo, torna o
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inconsciente, o sacro profano, o irreal. Para Fink, também o homem que pratica o humor se
transforma; o jogo do humor não permite a existência cotidiana trivial.

Freud apresenta autores que questionam a relação humor/contraste de idéias. Para


Kraepelin, o humor é a conexão verbal entre duas idéias, que de modo algum contrastam entre
si. Para Lipps, este contraste relaciona-se com o sentido e a falta de sentido das palavras, visto
que estas tem um sentido que não pode garantir; aquilo que, em certo momento, parece Ter
significado, verifica-se que em outro é completamente destituído dele.

O humor é o prazer de derivar prazer do livre uso das palavras e pensamentos. O


humor deve ser breve, dizer o que tem a dizer em poucas palavras. O humor solicita todo um
aparato mental, no momento da satisfação das necessidades, seja intelectual ou de outra
espécie permitindo-lhe trabalhar na direção do prazer, que deve ser retirado da própria
atividade humorística.

O humor é uma forma de expressão que, em sua relação com a linguagem, manifesta
sua incapacidade de transmití-la e de a compreender com seus meios; porém relaciona-se pela
capacidade de imaginar e relembrar algo, assegurando a relação necessária entre as
impressões vindas de fora e de dentro.

O que provoca o humor é o choque entre dois códigos, regras ou contextos


associativos, excludentes; percebe-se a situação em dois sistemas auto-consistentes e
incompatíveis, não havendo referencial único mas, uma bissociação. Encontrados os sistemas
referenciais estabelecida a dialética, decifra-se a mensagem, compreende-se o texto
humorístico.

Os processos conscientes e inconscientes, que fundamentam a criatividade, através de


técnicas combinatórias, juntam as áreas do conhecimento e da experiência antes separadas. O
humor é considerado, pelo autor acima referido, como um ato de bissociação de estruturas
mentais incompatíveis que se chocam e se separam. O artista visa a justaposição do familiar
com o eterno. O jogo do humorista consiste em produzir uma colisão da imagem habitual do
mundo familiar com a deformada pelo absurdo. Assim, o leitor reconhece detalhes familiares
no absurdo e o absurdo no familiar.
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Para Plessner (1977), o riso é uma forma de expressão não verbal; este, se não exprime
uma alegria vital ou uma libertação das limitações do cotidiano, revela entendimento e
quitação dessas limitações.

Morin (1975) alega não se saber se o riso ou as lágrimas emergiram antes do sapiens,
mas do Homo sapiens são a instabilidade e a intensidade causadas pela tristeza e a alegria.
Risos e lágrimas são estados violentos, convulsivos e espasmódicos, rupturas e abalos, que se
encontram e alternam: pode se rir até as lágrimas e destas passar ao riso demente. O sapiens
adulto pode deter o riso, mas a intensidade do riso continua existindo e é preciso colocar esta
característica em relação a outras características psicoafetivas, esquecidas na antropologia
racionalística do Homo sapiens.

O humor licencioso poderia ser analisado, por exemplo, a la Radcliffe-Brow, enquanto


instrumento usado para amenizar tensões latentes na estrutura social. As gozações também
poderiam ter sido vistas como maneira de designar um bode expiatório, permitindo o
sacrifício simbólico de certos indivíduos para a expiação do grupo. Segundo outra hipótese, o
humor desempenharia um papel de transmissão de valores de uma geração para outra. A
gozação seria uma maneira de estigmatizar desviantes, tendo com conseqüência o reforço de
norma vigente.

Para que haja o riso há necessidade que o indivíduo encontre dois sistemas de
referência, aos quais Lotman (1978) chama de “cânones”, cujo choque criará o cômico.
Segundo Koestler, coagido pelos sistemas, o indivíduo é obrigado a pensar, rapidamente, em
um e outro. Assim, as emoções, com maior inércia e persistência que os processos de
raciocínio, que não se enquadram na experiência ficam soltas no ar, perdidas, explodem no
riso.

Koestler anota que o riso é um reflexo (corporal e motor), simples, expresso pela
contratura coordenada da quinze músculos faciais; causa movimento agitados, alterações
respiratórias (longas e profundas aspirações de ar), interrompidas pela reação há-há-há
desencadeadas por emoções auto-afirmativas.
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O riso é desencadeado pela parte adrenalino-simpático do sistema nervoso autônomo.


Enrijece o corpo entesando-o à ação. Os olhos de quem ri brilham, com cantos franzidos,
sobrancelhas e faces serenas; o rosto tem expressão radiante, os lábios estão abertos e os
cantos voltados para cima. Este processo, que começa no sorriso, aumenta sua intensidade
podendo chegar a gargalhada. Durante a risada, a cabeça é movida para trás por uma vigorosa
contração da musculatura da nuca.

O riso é produto de um processo automático possibilitado pelo descarte de atenção


consciente; ele resulta quando a consciência é transferida das grandes às pequenas coisas,
havendo uma incongruência descendente.

Freud e Koestler alegam que o riso, como expressão de estado psíquico, tem
acentuado poder de contágio social pois, faz com que haja partilha grupal das emoções. Choca
a relação do riso, considerando forma de expressão inferior, com processos intelectuais como
o chiste e a ironia. Entretanto, acredita Plessner, que a inacessibilidade ao gozado e ao
cômico, ao humor, a sentimentos vitais e espirituais é que motiva formas de expressão
vegetativa inferior.

Koestler informa que para Aristóteles o riso relaciona-se com a fealdade e o


aviltamento; Cícero afirmava que o ridículo se apóia na vileza e na deformidade. Descartes
via o riso como uma manifestação de alegria misturada a surpresa e/ou a aversão.

O rir dos mitos e sobre os mitos, em suma, indica que se ri de coisas que se vão
relatando, mas definitivas de uma vez por todas: são ridicularizadas porque os efeitos de suas
realizações conservaram-se inalteradas até o presente. Rir nos mitos, ao contrário, indica que
se ri de ações que estão ocorrendo, inspiradas numa realidade mutável e contingente,
percebida como estranha e insidiosa.

O riso é um instrumento cultural fundamental e, portanto, bem pouco instintivo, isto é


muito mais evidente junto às sociedades tradicionais, onde não aparece, por assim dizer,
desfuncionalizado. De resto, como foi visto, é muito fácil a possibilidade de instaurar
levianamente uma equivalência entre as culturas “orais” e o Ocidente “literário”, na qual
consequentemente, é possível um confronto direto e descontextualizado entre as
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interpretações humorísticas dos primitivos e as representações teatrais do nosso horizonte


cultural. De fato, no Ocidente, pelo menos a partir do Renascimento, não se sente mais a
exigência de uma função mediadora entre o humano cultural e não humano, que fosse
desempenhado por operadores com um estatuto anômalo.

O humor surpreendente e original é uma realização revolucionária na arte, porque


livra-se de doutrina consagradas, de axiomas, de raciocínios evidentes, de estruturas mentais
petrificadas e de matrizes sem utilidade, deixando vir à tona uma linguagem sensitiva. O
humor, como um ato criativo, é um salto no escuro às regiões obscuras da consciência. Pelo
humor o homem, livre, leve, zomba do mundo, reaprende e adquire inocência no olhar e
fluidez no pensamento, descobre analogias ocultas e ousadas combinações de idéias,
transformando sua vida num jogo espirituoso com o mundo.

Antonio Cândido, em Dialética da Malandragem (1979), entende que o humor foge as


normas aprovadas pela burguesia, encontrando a irreverência e a moralidade de expressões
populares. O humor apara as arestas, acomoda, nega e apresenta uma visão estúpida dos
valores puritanos das sociedades capitalistas, facilitando a inserção num mundo aberto.

De acordo com Propp (1992, p.171), “é possível que o aspecto do riso mais
estritamente ligado à comicidade seja aquele que chamamos de riso de zombaria. É
justamente o tipo de riso que mais se encontra na vida e na arte, e está sempre ligado à
comicidade. E isto é compreensível. A comicidade costuma estar associada ao desnudamento
de defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que suscita o riso”. Assim pode-se
concluir que existem múltiplos aspectos e suas variantes para o riso.

Constata-se ainda que o riso é precedido necessariamente de conhecimento e


imaginação, ou ainda, de pensamento e cogitação, como explica Alberti (1999, p.104) “o que
determina e a especificidade do riso é a atividade cognitiva, é preciso conhecer ou conceber a
matéria que entra na alma”.

De fato, a literatura de Ciências Sociais fornece um amplo aspecto de teorias para


explicar manifestações humorísticas, mas cabe questionar o pressuposto de que o humor tem
que ser explicado, como se a seriedade fosse a forma “natural” de conversação cotidiana.
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Certamente, o humor, “como o bom humor em todas as sociedades, utiliza coisas que são
ambíguas ou que são tabu e brinca com isso de formas diferentes” (Seeger, 1980). O humor
para ser compreendido, deve ser situado num contexto de práticas e valores. Em outras
palavras, abraçando a crítica de Bakthin (1987) àqueles pesquisadores que julgam que “o riso
é sempre o mesmo em todas as épocas e que a brincadeira nunca é mais do que uma
brincadeira”.

De acordo com Maseti3 o riso pede um novo conceito de ciência. Ao menos para
ocupar seu lugar de origem. Se quisermos compreendê-lo precisamos de um modelo que
possa descrevê-lo com suas características. O riso, como tantos outros eventos do nosso
mundo, carece de conhecimento; não porque mereça e sim sabemos como lidar com ele. Em
uma época em que assumimos a verdade científica como a que dá reconhecimento e validade
aos eventos que nos rodeiam, passamos a ser cautelosos com essa silenciosa nova santa
inquisição. Nessa fogueira invisível, ao calor dos discursos numericamente precisos, correm o
risco de queimar como bruxos aqueles que não respondem a esse sistema. Questões como as
do efeito da alegria, do humor e do riso em nossas atividades, nos recolocam diante de um
mistério, de uma condição de humanidade com relação ao quanto devemos caminhar.

3
Informação retirada do site http://doutoresdaalegria.org.br, em 14/05/2001

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