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Lu Sudré
“A margem do rio é toda cercada, toda tomada. Alguns pescadores que não moram nas
beiradas, moram mais afastados, ficam sem acesso. Tem vez que eles caminham longe
para poder encontrar uma brecha… O rio está todo cercado pelos donos das roças, tem
muitas que é do agronegócio mesmo. Elas pegam a margem toda, não deixam um
corredor pras pessoas terem acesso”.
O relato é de uma nordestina que só não se diz pescadora desde que nasceu por não ter
vindo ao mundo dentro das águas do rio. Aos 64 anos, Maria Alice Borges sente na pele
as mudanças na vida da população que, assim como ela, mora perto da Lagoa do
Curralinho, em Itamotinga, no município de Juazeiro (BA).
“Aqui na região tem a Ebraz, a Agrovale que é da cana, tem uma grande que é dos
japoneses... E de jeito nenhum eles vão dar acesso pras pessoas passarem”, reitera
Maria Alice, que já perdeu a conta de quantas empresas atuam na região.
“O rio sobe e o rio desce de acordo com a necessidade da Chesf. Quando querem que
aqui tenha água de acordo com interesse de alguém, ela solta a água sem medir as
consequências para os ribeirinhos, para os pescadores com embarcações das águas do
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rio. E dos pequenos agricultores, que plantam feijão e mandioca, não querem saber. A
água vem e toma tudo.”
A água tem sido cada vez mais tomada por grandes corporações e projetos
de irrigação
“A água tem sido cada vez mais tomada por grandes corporações e projetos de irrigação,
com grandes estruturas hídricas direcionadas para as indústrias. Essa população fica
cada vez mais à margem do acesso ao direito. No nosso olhar, a desigualdade social é
explicitada no nosso país pelo não acesso”, critica a ativista.
Leia mais: Há dez anos, ONU declarava acesso a água e saneamento como direito
humano
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"O rio está todo cercado pelos donos das roças", lamenta a pescadora Maria Alice / Foto:
Arquivo Pessoal
Acirramento
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Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) publicado em abril deste ano, atestou
um aumento de 77% nos confrontos pelo uso da água no Brasil. Enquanto em 2018
foram identificados 276 conflitos, em 2019 o número chegou a 489 casos envolvendo
mais de 69 mil famílias. O maior já registrado até hoje.
Bahia, Sergipe e Minas Gerais concentram 61% dos conflitos. Não por coincidência,
ressalta Ruben Alfredo Siqueira, um dos coordenadores da CPT, são essas as regiões
mais cobiçadas pela mineração e pelo agronegócio atualmente.
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Agora, é a água por baixo da terra que está no centro da disputa. Novamente, a atuação
da Agrovale, dona da maior área plena de irrigação da cana-de-açúcar no Brasil, é
citada.
“Eles estavam cercados de cana, não tinham acesso ao rio, não tinham água. Foi uma
luta até que se obrigou a empresa, como parte da negociação das outorgas públicas, a
liberar água para as comunidades por onde passava a adutora. E isso não foi prejuízo
para a empresa, ficou como negociação, abatimento de imposto”, comenta.
O município de Correntina, no oeste baiano, foi palco de um dos conflitos mais intensos
por água da história do país. Rica em recursos hídricos e cobiçada por empresas
mantidas pelo capital estrangeiro há décadas, o município de pouco mais de 33 mil
habitantes viu um dos seus principais rios evaporar.
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As comunidades rurais de Fundo e Fecho de Pasto, que sobrevivem por meio da
irrigação tradicional do rio Arrojado, integrante da bacia do rio Corrente e um afluente do
São Francisco, e da criação de gado, foram frontalmente atingidas com a chegada da
Fazenda Igarashi, focada na produção agrícola para exportação.
Ação direta
O estopim, que ganhou a mídia nacional, era um grito contra a secagem de dezenas de
nascentes e regos responsáveis por um sistema de irrigação coletivo e centenário,
protegido pelos agricultores e quilombolas.
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“‘Ninguém vai morrer de sede na beira dos nossos rios’. É um grito de guerra que virou
uma palavra de ordem e está aí até hoje”, reforça.
Privatização desenfreada
Para avançar em direção às águas dos rios e dos aquíferos de água doce disponíveis no
mundo, ele explica que a chamada oligarquia transnacional das águas, que também
conta com grandes empresas engarrafadoras como Ambev e Coca-Cola, tentam
subverter a lógica da água como um direito humano fundamental a partir de uma nova
narrativa.
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“A narrativa é a de que a melhor forma de gerenciar um recurso escasso dotado de valor
econômico, é sua privatização. Transformaram isso em política no mundo inteiro. Na
verdade, há uma escassez social: O manancial está ali mas está inapropriado. A pessoa
está ali mas não pode acessar aquela água. Os canais estão cercados, as pessoas que
estão na vizinhança não podem nem pegar um balde de água. Aquela água já tem dono.
É esse tipo de escassez que precisamos considerar”, defende.
“Perímetro da morte”
Além da ameaça à soberania alimentar, ele afirma que o agrohidronegócio que afeta a
região cria um imbróglio político, já que o fornecimento de água passa ser utilizado como
barganha eleitoral por parte de alguns políticos.
Enquanto a população vive sob ameaça, Agnaldo alerta que as empresas seguem
“conquistando” novos limites territoriais. “Em Baraúnas se perfura o chão todo e não
encontra mais água. As empresas vão migrando. Para nós, não. Não temos essa
facilidade. Temos uma identidade muito forte com a terra”.
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Água envenenada
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A proposta que cria o chamado Mercado de Águas ainda não está em pauta mas prevê a
mudança essencialmente o aspecto mais central da Lei das Águas, que instituiu o
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e estabeleceu a
água como um bem público inalienável. Ou seja, que não pode ser controlada por
particulares.
Caso o projeto seja aprovado, para Ruben, o futuro será de alta conflitividade diante da
mercantilização escancarada, já facilitada na área do saneamento.
“Vai ser uma Correntina por dia. Em todas as suas facetas e tendões, esse polvo do
capital só dá tiro certeiro. Entra em um negócio com garantia legal, institucional, com
certeza da lucratividade. E caem fora quando não mais interessa. Se o projeto do
Jeiressati for aprovado, ai completa. É a cereja do bolo. Vamos viver guerras pela água”,
sustenta o coordenador da CPT.
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