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Mikhail Bakhtin Teoria do romance I A estilistica Traduso, prefico, nota gloss Paul Beer Organizasio da eigio rsa editoralll34 rr (© hecerodiscurso introduzido no romance é ai submeti- do a uma elaboragio literéria. As vozes historias e sociais que povoam a lingua fornecem-lhe percepgdes concretas, organizam-se no romance em um harmonioso sistema estlis tico que traduz a posigdo socioideotégica diferenciada do autor e de seu grupo no heterodiscurso da época. 8 Mihi Bktin 3 O heterodiscurso no romance [As formas composicionais de insergio ¢ organi hheterodiscurso no romance, elaboradas a0 longo do desen- volvimento histérico deste género, sio assaz diversifcadas ‘em suas diferentes variedades. Cada uma dessas formas com- posicionais esté vinculada a determinadas possbilidades es tilisticas erequer determinadas formas de elaboragio literdria das linguagens inseridas no heterodiscurso. Aqui nés nos li= mitaremos a abordas as formas basilarese tipicas da maioria de variedades do romance. ‘A forma de inserglo e organizagao do heterodiscurso, cexternamente mais notéria e a0 mesmo tempo essencial em termos hist6ricos, éfornecida pelo chamado romance humo- ristico, eujos representantes clissicos na Inglaterra foram Fielding, Smollett, Sterne, Charles Dickens, William Thacke- tay e outros, e, na Alemanha, Theodor Gottlieb von Hippel Jean Paul ‘No romance humoristico inglés encontramos uma re- producio parédico-humoristica de quase todas as camadas ds linguagem literdvia falada e escrita de sua época, Pratica- mente todos os romances dessa variedade que mencionamos so uma enciclopédia da toralidade dos diseursos e formas litearias — a narraglo, dependendo do objeto de represen- agio, reproduz em termos de parédia ora as formas da elo- ‘quéncia parlamentar, ora da eloquéncia juridia, ora as for- ‘mas especifcas de protocolo parlamenta, ora de protocolo (© herrodiscuso no romance ~” aa juridico, ora as formas de reportagem dos jomnais, ora alin- ‘guagem seca dos negécios da City, ora mexericos de bisbi Thoteros, ofa o pedante discurso cientifico, ora todo discur- 0 épico ou estilo biblico, ora o estilo da pregagdo moral bipécrita, ora, enfim, a maneira discursiva dessa ou daquela personagem concretae socialmente determinada referida pe- a narragio, Essa estlizagdo, habitualmente parédica, das camadas da Jinguagem dos generos, profissionais ede ourras camadas a linguagem, €, 3s vezes,intercompida pelo discurso direto (habitualmente patético ou idiico-sentimental) do autos, que personifica de modo imediato (sem refragao) as intengdes semanticas e axiolégicas do autor. Mas no romance humo- ristco a base da linguagem é 0 modus absolutamente espect- fico de emprego da “lingua comum”. Essa “lingua comum” = via de regra a linguagem falada e escrita de um determi- nado eieulo — é tomada pelo autor exatamente como op - nigo comsem, como um enfoque verbalizado dos homens € das coisas — normal para dado citculo da sociedade —, como ponto de vista ¢ avaliagao correntes. Em diferentes sraus, 0 auror se separa dessa lingua comum, desvia-se dela © a objetiva, levando suas intengGes a se refratarem através esse meio da opinido comum (sempre superficial ¢ amitide hipécrita) personificada na linguagem. Essa atitude do autor em face da linguagem como opi nde comum nio é fixa:esté sempre em estado de um movi mento vivo e de oscilagio, as vezes de oscilagdo ritmica: © autor parodia ora com maios, ora com menor intensidade cesses ¢ aqueles elementos da “lingua comum”, as vezes pe nua sua inadequagdo ao objeto, as vezes, ao contro, qua- se se solidariza com ela, conservando apenas uma infima discincia e as vezes fax sua propria “verdade” soar nela de modo direto, isto é, funde integralmente com ela a sua vor. [Neste caso, mudam de forma cocrente até os elementos da lingua comum que, em dado momento, sio deformados por “0 ‘Mikhail Bain via parédica ou sobre os quais se langa uma sombra de ob- jevificagdo, O estilo humoristico requer esse movimento vivo do autor de aproximagio da linguagem e de afastamento dela, requer essa mudanca constante da distancia entre eles fe uma passagem coerente da luz para a sombra ora de uns, ‘ora de outros elementos da linguager. Caso contrério esse estilo seria uniforme ou requereria a individualizacao do -ador, ou seja, jf requereria outra forma de insergio € organizacao do heterodiscurso.! Desse segundo plano basilar da “lingua comum”, da opiniao impessoal corrente é que se separam no romance hhumoristico aquelas esilizagdes parddicas das linguagens dos sgtneros, das profissdes e outras de que jé falamos, assim ‘como as massas compactas do discurso direto — patético, didético-moral, elegiaco-sentimental ou idilico — do autor. ‘A passagem da “lingua comum” 3 parodizaglo das lingus: igens dos géneros, profssdes e outras e também ao discurso direto do autor podem ser mais ou menos graduais ou, 20 ‘contrario, bruscas, Esse €0 sistema da linguagem no roman- ‘ce humoristco. Detenhamo-nos na andlise de alguns exemplos tomados a0 romance A pequena Dorrit de Dickens, Usemos a tradu- cio de M. A. Engelgardt, da editora Prosveschénie. O que aqui nos interessa si0 as linhas basilares e grosseiras no esti- To do romance humoristico que se conservam de modo bas- ‘ante adequado na tradugio. Exemplo 1 (livro I, cap. 33): “A conversa se desenvolvia por volta das qua- tro ou cinco da tarde, quando a Harley Street ea Cavendish Square estavam cheias de sons do cons- * Desse mod, no romance hunorisicoo dscrso deo do autor seaia e em eliza incoadcioasdretas ds gneospotios ih Tos, eleiacon et) 08 retro (a pati, iduca moral (0 heterodiscurso no romance 8 tante sibombar das carruagens e do martelar das portas. No momento em que ela chegava a0 referi- do resultado, mister Meedle voltou para casa de- pois dos seus trabalbos diurnos, cuio objetivo ert 1 intensa glorficagao do nome britanico em todos os confins do mundo capaz de avaliar colossais em- presas comerciais e gigantescas combinagées de inteligéncia e capital. Embora ninguém tivesse 0 exato conhecimento daguilo em que prof te consstiam as empresas de muster Merdl -se apenas que ele cunhava dinkeiro),eram justa- ‘mente com esses termos que caracterizavam sia atividade em todas as ocasies solenes, e assim era a nova redacio educada da parabola do camelo passando pelo fundo da agulha, sempre acolhida sem discusses." O grifo em itdlico destaca a estilizagio parédica da lin- ssuagem dos discursos solenes (do paelamento, dos banque- tes), A transigao para esse estilo foi preparada também pela ‘construgdo da frase, comedida desde o inicio em alguns tons épicos solenes. Segue-se — jd com a linguagem do autor (l= 0, em outro estilo) — a revelagio do significado parédico da caracterizasio solene dos trabalhos de Merdle: essa cara jo vem a ser um “discurso do outro", que poderia ser colocado entre aspas (“eram justamente esses termos que caracterizavam sua, Desse modo, na linguagem do autor (a narragio) foi inserido 0 discurso do outro em forma dissimulada, isto & ‘sem quaisquertragos formais do discurso do outro — direto ‘ou indireto. Mas nao se trata apenas de um discurso do outro nna mesma “linguagem” — € um enunciado do outro numa “linguagem estranha ao autor” — na linguagem arcaica dos hipocritas géneros oratsrios oficias, solenes. ividade em todos 0s casos solenes..”). a Mikhail fakin Exemplo 2 (livro I, cap. 12}: “Uns dois ou trés dias depois toda a cidade soube que Edmund Sparkler, escudeiro e enteado do mundialmente célebre mister Merdle, havia-se tomado um dos esteios do Circumlocution Office, com a devida pompa ¢ a0 som de cometas foi anunciado a todos os fiéis que essa admirével no- ‘meagio era un sinal benévolo e caro da atengio dispensada pelo benévolo e cara Decimus & casta dos comerciantes, jos interesses, ens sm grande pais comercial, devem sempre. ete ett et. Es- timulado por esse sinal ofcioso de atengio, 0 ad- ‘mirdvel banco e outeas admiréveis empresas ime- ddiatamente subiram 2 montanha; ¢ multiddes de basbaques reuniam-se na Harley Street ena Caven dish Square $6 para contemplar a morada do saco de ouro.” No caso acima, 0 gifo em itilico no discurso do outro na linguagem do outro (oficial, solene) foi inserido de forma aberta (discurso indireto). Mas ele esti cercado pela forma dissimulada do discurso difuso do outro (na mesma lingua- ‘gem oficial, solene), que prepara a insergio da forma aberta a faz repercutie.Prepara o adendo “escudeiro”, caracter tico da linguagem oficial, ao nome Sparkler, concluindo © epiteto “admiravel” ao banco e as empresas de Merde. Esse epiteto,evidentemente, nfo pertence 20 autor mas “opiniio ccomum”, criada pela agiotagem em rorno das fetcias em- presas de Merde, Exemplo 3 (live Il, ap. 12): “0 almogo podia de fato despertar 0 apette Pratos dos mais refinados, magnificamente prepa- rados e magnificamente servidos, frutas seleciona~ (© heteroicuan no mance 83 das ¢ vinkos raros; maravilhas da arte em pegas de fouro e prata, porcelana e cristal; um sem-nimero de delicias para © paladar, o olfato e a visio. Oh, ‘que homem admirével é esse Merdle, que homem -grandioso, que bomen: talentoso, que bomem ge- ‘al, em suma, que homem rico!” © inicio — uma estilizagdo parédica do ako estilo pos- tico, seguida de um entusidstico elogio de Merdle — é um discurso alheio dissimulad do coro dos seus admicadores (grifado). A pontuacdo tem a fungio de desmascarar a hipo- crisia desse coro, mostrando 0 fundamento real dos elogios: os adjetivos “admirével”, “grandioso”, “talentoso", “ge- nial”, podem ser substituidos por urna tnica palavra — “ri co”. Esse desmascaramento pelo autor se funde imediatamen- fe —no ambito da mesma oragao simples — com o discurso sdesmascarado do outro. A entusidstica acentuagdo dos elo: sos é complexificada pela segunda acentuacio irénico-indig nada que predomina nas ltimas palaveas de desmascaramen- toda oragio. ‘Estamos diante de uma tipi pla diceio e duplo estilo. ‘Chamamos de construcdo hibrida um enunciado que, por seus tragos gramaticas (sintiticos) e composicionais, pertence a um falante, mas no qual esto de fato mesclados dois enunciados, duas maneiras discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semanticos e axiolégicos. Entre esses enunciados, estilos, linguagens e horizontes, re: petimos, nao ha nenhum limite formal — composicional ¢ sintético: a divisdo das vozes e linguagens ocorre no ambito «de um conjunto sintitico, amitide no Ambito de uma oragio simples, fequentemente a mesma palavea pertence ao mesmo tempo a duas linguagens, a dois horizontes que se cruzam_ ‘numa construgio hibrida e, por conseguinte, rem dois sent: dos heterodiscursivos, dois acentos (veja-se 0 exemplo aba construgio bibrida de du- Miki Baka x0). As construgdes hibridas tém enorme importincia no estilo romanesco.?® Exemplo 4 (liveo Il, cap. 12} “Mas mister Tite Barnacle fechava todos os botdes da roupas por conseguinte, era um homem de peso.” ‘Um exemplo de motivagio pseudo-objetiva, que é uma das modalidades do discurso dissimulado do outro, neste ceato a opiniso corrente.t © termo “morivagio pseudo-objetiva” foi introduzido por Leo Spitzer no livro Pseudoobjektive Motivierung bei (Charles-Louis Philippe [Motivacio pseudo-objetiva em Char les-Louis Philippe]2” Esse autor costuma introduzir a moti- vagdo pseudo-objetiva nas formas “A cause de", “parce que”, “puisque”, “car",* que tém cariter objetivo. Por todos os teagos formais, a motivagio € do autor, que com ela se sol dariza formalmente, mas, no fundo, a motivagdo permane~ 2 ara mares etles sobre consrues brides, wine 0 eae to capital dase lie. "£ sumamente craters do romance a maivasopscudo-obje tiv, lo seria mpossivel na epopla. AS conungies sbordinacvas ea: Palos intercladas asim comb, porque, por caus, apese de.) €| {odes as palavas e orgies logicamente intecaladas (asin, por cose- ‘ime, et) pede x intensf dizets do autor eatregar-e is linguagens ‘Ss vers, ormanderse ertadas ou at objets Cl. Leo Spitac Studion, Zasiter Te Stspracen [Estudos esis, Sends pa. Lngaagen erliscas}, Muniqu, Max Huebee Verlag, 1928, pp 166-207. * Reapectvamente “poe causa de", “porque” afrmatvo, i que” «= porguanto® em anes. IN dT). (0 heterodiscuso no romance 8s ee ce no horizonte subjetivo das personagens ou da opinizo A motivagio pseudo-objetiva caracteriza, & claro, ndo s6 Charles-Louis Philippe, mas também e de um modo geral estilo romanesco, senda uma das variedades de construsao bibrida sob a forma do diseurso dissimulado do outro. Essa rmotivagio € sobrerudo caracteristca do estilo humoristco, ‘no qual predomina a forma do discurso dissimulado do ou- tro (dle personagens concretas ou, mais amide, do discurso coletivo}2? Exemplo 5 (liv I, cap. 13): “Como um grande incéndio enche com sew ronco 0 espago a uma grande distancia, assim a chama sagrada espalhada pelos poderosos Barna: cles no alear do grande Merdle enchia cada vez mais © ar com o som desse nome. Ele ecoava em todas as bocas, ressoava em todos os ouvidos, Nao hou- ve, no ha nem havers outro homem como mister ‘Merle. Como jé foi dito, ninguém sabia que faga- thas el havia realizado, mas cada wm sabia que ele era 0 maior entre os mortais.” um dscursoépico, *homérico (pardiico,€ claro}, em cuja moldura est inseridoo elogio a Merde pla multido {disursodisimulado do outro nalinguagem do outro). gues as palavas do auton acu expresso rifada) “ dda um sabia” foi dado, no obstante, um carster objetivo, E como seo priprio ator nfo duvidase dito. 2 Leo Spitzer toma un dos exemplos de Chals-LoaisPhilipe em: “Le ppl, ease de Fannverasr de ex dlurance, ass es filles da ern liber” [0 pov, por causa do avers de sua berg, dee ‘qe suas mogas dncem em iberdade Cl, as motives pseudo-objetivas do groteso em Gogol %6 Mihail Bsn Exemplo 6 {live I, cap. 24): ““Homem ilustre, omamento da patria, mister Merdle continuava sua marcha ofuscante. Pouco a pouco todo mundo comecava a compreender que itos diante da so- ciedade, da qual arrancara tao grande monte de esse homem, detentor de tas mi dinheiro, nao devia continuar sendo um simples cidadao. Dizia-se que seria promovido a baronete, fa com a opiniéo comum hipécria e solene sobre Merdle. Todos 0s epiteos aplicados a Merdle na primeira oragio sio epiteros da opiniao comum, isto , si0 0 discurso dissimulado do outro. A segunda oragio —"pouca a pouco todo mundo comecava a compreender..”, ete. — € comedida num estilo acentuadamente objetal, nfo como opinido subjetiva, mas como reconhecimento de um {ato objetivo e absolutamence indiscutivel. O epiteo “deten- tor de tais méritos diante da sociedade” esté inteiramente situado no plano da opinio comum (dos elogios ofciais), ‘mas a orago subordinada ligada a esse elogio — “da qual arrancara to grande monte de dinheir palavras do proprio autor (como um “sic” intercalado entre aspas numa citagio). A continuagio da oragio principal situa-se mais ‘uma vez no plano da opinio comum. Desse modo, as pala- ‘ras de desmascaramento do autor encravam-se aqui na ci- tagio tirada da “opiniéo comum”. Estamos diante de uma tipica construgso hibrids, na qual o discurso direto do autor €a oragio subordinada, sendo a principal o discurso do ou- ‘tro. As oragdes principal e subordinada esto construidas em diferentes horizontes semanticos e axiol6gicos. ‘Toda a parte da acio do romance, representada em tor no de Merdle e das personagens a ele vinculadas, estérepre- sentada pela linguagem (ou melhor, plas linguagens) da pér- O beteroineurso no romance ” Te eS fida ¢ entusiéstica opinido comum sobre ele, sendo que se ttiiza parodicamente ora a lisonjeira cagarelice mundana, ‘naa linguagem solene das declarasées oficiais e dos discur- Sos dos banquetes, ora 0 clevado estilo Epico, ora o estilo bilico. Esse clima em torno de Merdle, essa opinido comum sobre cle e suas empresas contagia até as personagens posti- vas do romance, particularmente o sdbrio Panks, levando-o ‘aplicar toda a fortuna — sua e da pequena Dortit ~ nas Fcticias empresas de Merdle. Exemplo 7 (iveo Il, cap. 25): “O médico resolveu comunicar essa noticia na Harley Street. O advogado nao podia retomar de imediaro o ‘amaciamento" do ji mais cultivado e notavel que ele jamais tivera oportunidade de ver aguele banco, arevendo-se a assegurar ao seu sé bio amigo que com ess tr seria init apelar para 4 sofistica banal e sobre ele ndo surtiia efeito 0 ‘abuso da arte e das artimanbas da profissio (com ‘esa frag ele se preparava para comegar o seu dis- ‘curso) € por isto se ofereceu para acompanhar 0 ‘médico, dizendo-Ihe que oesperaria na rua enquan- to ele estivesse em cass.” £ uma consteugio hibrida acentuadamente expressa, onde, na moldura do discurso (informativo) do autor — *O dvogado nao podia retomar de imediato 0 amaciamento do ‘por isso se ofereceu para acompankar o médico, ete.” » inserese 0 inicio do discurso preparado pelo advogado, sendo que esse discurso € dado como um epiteto desdobrado para completar de modo direto a palavra “ji” do autor. A palavra *jari" entra tanto no contexto do discurso informa- tivo do autos, tanto como complemento necessirio 3 palavra “amaciamento”, quanto, simultaneamente, no contexto do Aiscurso parédico-esilizado do advogado. A propria palavra a Mikhail Basin do autor — “amaciamento” — ressalta o aspecto parédico dda reprodugio do discurso do advogado, cujo sentido hipé: cita resume-se justamente ao fato de que é impossivel ama ciar tio notivel jr Exemplo 8 (livo I, cap. 33): “Em suma, Mrs. Merdle, como uma bem edu- cada mulher de soviedade, infec vita de un bar bara grosseiro (pois mister Merdle assim era reco- rnhecido da cabeca aos pés desde o instante em que se verificara que estava na miséria) foi acolhida sob broagis em teu clo par o bem do préprio E uma andloga consteugio hibrida, na qual as definigbes da opinido comum do alto ctculo social — “infelz vitima de tum birbaro grosseiro” — estio fundidas com o diseurso do autor, que desmascara a hipocrisia eo interesse dessa opinizo ‘Assim € todo romance de Dickens. Todo esse texto po- deria, no fundo, see pontilnado de aspas, destacando-seilho= tas de um discurso disseminado direto e puro do autor, ba- hado de todos os lados por ondas de heterodiscurso. Con- tudo, seria impossvel fazer tal coisa, posto que, como vimos, ‘uma mesma palavra entra simultaneamente nos discursos do outro e do autor. discurso do outro — narrado, imitado, mostrado sob certas luzes, disposto ora em massas compactas, ora espora- dlicamente disseminado — é, na maioria dos casos, impessoal (“opinio comum”, linguagens de profissGes e generos) ¢ em parte alguma esté delimitado do discurso do autor: os limites fo deliberadamente movedigos e ambiguos, amide ocorrem zo interior de um conjunto sintético, amitide no interior de uma oracio simples e, as vezes,dividem os termos essenciais dda oragao. Esse jogo multiforme com 0s limites dos discursos, (© heteodiscurso na romance ” VQ das linguagens e horizontes 6 um dos elementos essenciais do estilo humoristico, ‘Desse modo, 0 estilo humoristico (do tipo inglés) baseia- se na estratificagie da lingua comum e nas possibilidades de separa, em diferentes graus, suas intengoes de suas camadas, fem se solidatizar integralmente com elas. £ justamente @ hhatuceza heterodiscursiva e nfo a unidade da lingua notma- ‘iva comam que constitui o Fandamento do estilo. E verdade jque, neste caso, e85a natureza heterodiscursiva nao ultrapas- 2 05 limites da unidade lingufstica (segundo os tragos lin- suisticos absteatos) da linguagem litera, nao se converte hhum auténtico heterodiscurso e estéfixada na compreensio linguistico-abstrata no plano de uma lingua tinica (isto , no requer conhecimento de diferentes dialetos ou linguas). Mas essa compreensio linguistica é um elemento abstrato da com- preensio conereta e ativa (dialogicamente comungante) do hhererodiscurso vivo, introduzido eliterariamente organizado 'Nos precursores de Dickens — Fielding, Smollett Ster zne—, fundadores do romance humoristico inglés, encontra- ros a mesmia estlizagZo par6dica das diferentes camadas € ‘séneros da linguagem literdria, mas neles a distancia € mais Acentuada do que em Dickens, eo exagero & mais forte (so- bretudo em Sterne). Nesses autores especialmente em Ster ne), a percepgio parédico-objetal das diversas variedades de linguagem literria penetra em camadas muito profundas do préprio pensamento literirio-ideol6gico, transformando-se em parédias da estrutura l6gica e expressiva de todo discur- 0 ideoldgico (cientifco, retérico-moral, poético) como tal {(quase com o mesmo radicalismo que ocorre em Rabelais)? ° Bis como Dittuscaaceria 0 eso desses humorisas que ee eine como comico subjtvs = Wenge alm, eb au die Seb Te Feds Smelt, Scot, Marriot, Hook ad Sere beschrnttde subjoktive Komik Mit Komuzcer Veacieung der Quant herr 0 Mikhail Babin E muito importante o papel que, na construgio da li ‘guagem em Fielding, Smoller Sterne, desempenba a parédia, ie ds Kleine, parade sie Klasiche ode bibliche Motive (Kampf, ‘Stanmmbawn) eer af hoch pompbafte Ashlie den Stl der Wis “onscbaft nah ust bebondl dae Grose fami], oder mit komis ther Verihiebng der Quai cerden ans falcon ode iesagenden Primison tog oder slsome ScbiBe gezogen, Informationen gene bem die Rene Wr babe, der ex rden unygeebr gwlce B gonna Chralerserag ines Tigers bert, Boses wid as gut bonestele und unger [J und ets Hanloes eke men panto Beigeschmack[.). Oder seis werden Vortlngen, den ede lire Brig felt, bv engten Zusooomennggebroct [ene esondere Form dieser homischen Wirkung ist das Wotspiel, das Sire, Marit und Hook babes und Sterne wets de lnkomgroan: de oe _uenten sur Datel einer Weltsachoeng answer” [0 coco fubjeio, menor gral ests mas Lina escola de Fding Smolle, Scott, Marit, Hook). Com o deslocamento eémico da quansdade, ee Ieroicza 0 pequeno, parodia motioselasics e bikin (a, vore eealigics) ov macaguca 0 eto cintco poe meio de pompsidade Sreanstancada [| wata 0 grandaso de mance familie [J ou ent, om deslocamento comico da qualidade, so iradas concn nsSss ‘ou profuse pari de peminas fas ou que nada daem, slo dadas Informagier sem nen valor ou seulizam nomes prépris bana ars caracterizar aque que os poram, 0 mal ¢apesentado somo bem vice-versa nofnsvoreebe un temper cate]. Os, oe fim, conepies que earocm ded e qualquer vacuo interno sto cons teangidas so mais srt context [.). Una forma especial dese efito climico € 0 wocadlho, qe Stee, Marcio « Hook amar, e Sere sabe ‘desdabrar es incongroenia do beangrente st 3 rpesentago de una concep de mundo, Elche Roms (A arte do romance ings], ‘ome Beli zipzig, Mayer & Malle, pp. 433-4, Dies craceriza| caplet a Fielding ee jogo com avalagbes habitasis,poats de vse rormas © opinio commun tnaterisizados na linguagem da seine ma sees "eld fet sich am Sesame, an der komischon Situation an lon, wae der Erwarsng ans Scbifite widersprit. Er Hebt edhe ‘blchen Werte wncverten, mit Quanta ond Quai de erktm ‘hen Ure nse” [Piling se regia cm oo, coms stass0 ‘tm, com tudo que contsdi a expetatve de mania mas agua Fle ‘nora inverter os valores norma brincar com a quanidade equaldade or iz tadicionais} de, p 436 (© beteroneurso no romance 0 literria em sentido restito (parédia do romance de Samuel Richardson nos dois primeiros e de quase todas as variedades de romance em Sterne). A parédia litedria desloca ainda ‘mais o autor da linguagem, torna ainda mais complexa sua relagdo com a linguagem literéria de sua época, ¢ isto em pleno territrio do romance. O proprio discurso romanesco ddominante nessa époea é convertide em objetal ese torna um meio de refracio para novas intengbes do autor. Esse papel da parddia literdria e seu efeito sobre a varie dade de romance dominante é mojto grande na histéria do romance europeu. Pode-se dizer que 0 mais importantes prototipos e variedades de romance foram criados no proces- so de destruisio parédica dos universos romanescos prece- dentes, Assim procederam Cervantes, Mendoza, Grimmels- hhausen, Rabelais, Alain-René Lesage e outros. Em Rabelais, cujainflugncia foi muito grande sobre a prosa romanesca, particularmente sobre o romance humor tico, a relagdo parédica com quase todas as formas de dis curso ideolégico —filos6fico, moral, cienifico, retérico, poe tico —, ¢ em especial com as formas patéticas de discurso (para Rabelais, entre o patético a mentira quase sempre ha tum sinal de igualdade) 6 aprofundada até atingir a parddia

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