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Grandes Temas Critica literaria: em busca do tempo perdido? Joao Cezar de Castro Rocha G= a W ARGOS AY UNOCHAPECO Retr: Oto Lie Pol ie ReoradeEnsino Pag Extensto: Maria Luiza de Sowa as ‘Ve Retr de Pansomentoe Dsenvolviente: Cudio Alcs ack ‘ice Retr de Adminis: Sady Mazon Dinetor de Pesquisa e Ps Graduapo Strict Sens: Ricardo Rene ato ou pre dele no podem er repeoduides por qualquer meio sem atorizagio ‘ceria do Eto, 1 Roche, Jo Cena de Castro Ree ‘Cen ei: em bc do tempo perdido? Joto Gea de Castro Roch. ~ Chapt: Argo 201. "hp (Grands Temas 8) ISBN: 978-65.50981.88-8 1. Literatura Tera 2 Ceti ier Ltitua. ‘Catalogasie elaborada por Caroline Miotto CRB 14/178 biota Cet da Unocapecs “Todos ods reservados Argo itor ds Unocapect Alo Fontan, 81-E~ Baro fp Chapecs (SC) ~89809-000- Caixa Postal 1141 (49) 332 8218 -argw@unachapenedu br -wweranochapeso.e args Conse Bator Rosana Mara Bao president), Casa Hosane Pa Ard Teo vice pein, ‘lar va Camus rin Congas de Asis Maria Assunta ust ‘Mara Lava de Sou Lajis, Mardo Cs Cosel, Ricard Rese, “la Mra Zancanar Pesos Coardenadors Maris Auta Busto A Maria Teresa (Amor purépecha) A catedra e 0 rodapé: um debate internacional O mediador: por um novo conceito ‘Antes de dar um passo adiante, recordemos brevemente 0 que jé vimos. eixo definidor dos capitulos iniciais foi a discusséo sobre a polémica e seu resgate como gesto cuja dindmica tanto pode favo- recer a estruturacio quanto assegurar a vitalidade do sistema inte- Tectual. Ademais, se, no primeiro capitulo, o tema foi abordado de ‘um ponto de vista comparativo, no segundo, privilegiou-se a cena brasileira. Respeitei, assim, a metodologia proposta na introdu- Gio, com base na oscilagao entre o alheio e o proprio, metodologia que volta a organizar minha exposigio. Por isso, neste e no préximo capitulo, o conceito de mediador cultural ajudaré a organizar os temas que discutirei por meio de ‘um debate recente acerca do lugar da critica de poesia nos suple- mentos literdrios.' E, de igual modo, se, neste capftulo, discute-se sua presenga no cenério internacional, no capitulo “A citedra e 0 rodapé: um debate nacional’, retornar-se-4 ao panorama nacional, especialmente por intermédio da disputa entre Afranio Coutinho ¢ Alvaro Lins. Vale, portanto, a adverténcia: as intimeras digressdes que pontuario meu raciocinio referem-se & fungio sistémica e as transformacées histéricas do mediador. Reavaliar sua presenca nos meios de comunicagdo hoje em dia é uma questo urgente € nada simples. O critico como mediador conheceu seus dias de apogeu na Galéxia de Gutenberg, para recordar a expressio de Marshall McLuhan. No presente, definido pela expansio em tese infinita do universo digital, pode-se ainda imaginar um papel para o tradicional mediador? Devo, portanto, retornar ao conceito de mediador cultural, mencionado brevemente na introdugio. Alids, por que ndo comecar a discussio acerca do conceito pelo seu avesso? Seu entendimento usual, nada lisonjeiro, foi per- feitamente radiografado num poema de Maiakévski: 1, Refiro-me ao debate provocado pelo ensaio “Do que nio falamos quando fala- ‘mos de poesia: algumas aporias do jornalismo literdrio” (Perloff, 2002). Discu- tire oensaio e o debate especialmente na segio “Um paiblico ‘lasse méia?™. 2. McLuhan, 1969, 120 Entre escritor eleitor posta-se o intermedisrio, 0 gosto do intermediario ébastante intermédio. Mediocre mesnada de medianeiros médios pulula na crit e nos hebdomadarios.* Aqui, mediador é bem o representante estereotipado da criti- ca de rodapé, responsavel por uma coluna, na maior parte dos casos, semanal, cuja principal tarefa consistia em avaliar os iltimos langa- mentos segundo critérios normativos. O paradoxo é ébvio e estimu- laa caracterizagdo implacivel do poeta russo, pois o que se publicava no calor da hora era submetido ao crivo de valores preestabelecidos. (O “intermediério” seria o mero “juiz de arte’. Na laboriosa preciso alema, apenas um Kunstrichter. A simplicidade de seus julgamentos tinha como base a aplicagao de um conjunto fixo de preceitos; dai © cariter judicativo da atividade. Como veremos no capitulo “No meio caminho: a Semana de Arte Moderna’, a arte moderna op0s- 3. Bsses so os primeiros versos do poema “Incompreensivel para as massas” (Maiakévski, 1992, p. 123). O poema foi publicado em 1927. Vale a pena men- cionar a motivagio mais imediata do poeta, segundo Schnaiderman: “Na mesma linha de preacupagées, isto €, com o papel do poeta na sociedade,situa-se In- compreensivel para as massas, um dos muitos escritos em que Maiakévski pro- puignou uma arte digna, elevada, sem concess6es, pois © povo & que deveria ser ceducado para compreender a verdadeira poesia’ (Schnaiderman, 1992, p. 22) 121 -se frontalmente a esse modelo de mediagdo, uma vez que a figura definidora do movimento, o poeta-critico, incorporava a instancia critica na propria feitura da obra. A disputa da cétedra contra 0 10- dapé também significou um ataque a esse tipo de mediador, caracte- ristico do jornalismo literério,e, por isso, questionado pelas geragoes formadas na universidade. Nao ser casual, portanto, que a critica uuniversitéria tenha canonizado os autores do Modernismo, autores vistos com reservas pela maior parte da critica de rodapé. Em geral, a critica universitéria costuma compreender 0 me- diador apenas nesse recorte mais tradicional. Gostaria, contudo, de propor uma genealogia distinta, sugerindo uma forma de reavaliar © seu papel histérico, a fim de propor, na conclusdo, um possivel resgate da ideia de mediagao cultural nas condigbes presentes. Eis minha hipétese: a fungao estrutural do mediador relaciona-se 4 ne- cessidade de fitrar 0 “excesso” de dados ocasionado pela disponibi- lidade geralmente criada pelo advento de uma nova tecnologia de comunicacio, Em outras palavras, o entendimento usual do media- dor refere-se apenas ao contetido de sua ago, ou seja,&avaliagdo de obras do presente segundo padrdes estabelecidos a priori. Por que no considerar também a forma de seu exercicio? Nesse horizonte, o mediador cultural seria uma espécie de “anti-Funes”, Explico-me: 0 personagem do célebre conto de Jorge Luis Borges, “Funes el memorioso’, depois de um acidente, que 6 deixou paralisado, alterou radicalmente sua percepgao do tem- po. Antes, uma caracteristica chamava a atengao de todos, qual seja, “la de saber siempre la hora, como un reloj’* Essa sintonia 4. Borges, 1989, p. 486, 122 absoluta com o aqui e agora foi substituida por um engajamento igualmente absoluto com o passado imediato, pois sua meméria tornou-se to prodigiosa que, por exemplo, a tarefa de recordar 0 dia de ontem consumia as 24 horas do dia seguinte: “Dos 0 tres ve- ces habia reconstruido un dia entero; no habia dudado nunca, pero cada reconstruccién habia requerido un dia entero” Na sutileza da frase de Borges, a repeti¢ao quase idéntica da expresso revela 0 dilema propriamente epistemolégico de Funes e, a0 mesmo tem- po, ajuda a compreender a fungao estrutural do mediador: suas escolhas, ou seja, suas exclusdes, operam uma primeira selegio, controlando 0 “excesso” de informagbes ocasionado sobretudo em ‘momentos histéricos de difusao de novos meios de comunicacao” Admitida a hipétese de um entendimento também formal do papel histérico do mediador, novas possibilidades se abrem. Nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, tratava-se de controlar 0 fluxo das informacées tornado disponivel pela difusdo de textos 5. Borges, 1989a, p. 488, gifos nossos. 6. Habia aprendido sin esfuerzo el inglés, el francés, el portugues, el latin, Sospe- cho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstracr. Enel abarrotado mundo de Funes no habia sino detal- les, casi inmediatos” (Borges, 1989, p. 490). 7, Sou o primero a reconhecer que uma anilise construtivista desse processo pos- sui somente um rendimento heurstico, Esse nivel, entretanto, desautoriza ain- sgenuidade de certas formulacoes recentes fundadas na utopia de uma ordem cultural refratéria & formacio de cAnones. Contudo, neste capitul, valorizo 0 papel formal do mediador. Num futuro lio, dedicado ao conceito de mediador cultural, pretendo analisar com o devido cuidado o cariter inegavelmente ideo- lgico subjacente a formacio de cinones. impressos na esfera do cotidiano Vale dizer, o mediador ajuda a reduzir a complexidade estrutural, por meio de uma selecio prévia do que deve ou nio ser lido. Claro, em alguma medida, tal formu- lacio tem sabor “passadista’, pois parece naturalizar a tecnologia dos tipos méveis. Ora, no século XX, deveria dizer selecdo prévia do que deve, sobretudo, ser “visto’,e, hoje em dia, especialmente, do que deve ser “acessado”, Modernamente, portanto, seria pos- sivel identificar trés momentos histéricos decisivos na transfor- magio da figura do mediador: invengao e, sobretudo, difusio da imprensa no cotidiano; hegemonia dos meios audiovisuais, espe- cialmente apés 1945; a situacao presente, isto é, as consequéncias da tecnologia digital. Qualquer reflexao acerca da figura histérica do mediador precisa levar em consideracio as modificagdes oca- sionadas especialmente nas formas de recepcio ¢, hoje em dia, de interagio. A querela da cétedra e do rodapé representa um capi- tulo dessa histéria multissecular _ no capitulo “Critica literéria na era digital?” desenvolverei tal intuigao. Vejamos, agora, um exemplo eloquente, a fim de esclarecer ahipétese, As desvantagens da imprensa? No discurso inaugural da Universidade de Napoles, profe- rido em 1708, Giambattista Vico mostrou-se preocupado com 0 8. Compreenda-se que, nos séculos XVIII e XIX, 0 texto impresso comecou a fazer parte da realidade cotidiana de um mimero sempre crescente de leitores 124 colapso das formas tradicionais de mediagao, cujo fundamento era o citculo composto por mestres e discfpulos, e cuja maneira de transmisséo era basicamente oral. Na seco do discurso intitulada “Tipos impressos. As desvantagens da imprensa; como superé- -las’, Vico hesitava entre os beneficios e os possiveis riscos trazidos pela nova tecnologia de comunicagdo: “Sem daivida, a invengao dos tipos impressos representou uma valiosa ajuda para nossos estudos, Hoje [..] 0s livros esto disponiveis em grande abundan- cia e variedade. [..] Receio, contudo, que a abundancia e o baixo prego terminem por fazer com que fiquemos mais negligentes"? [A relagéo é clara: se, no passado, a escasser da circulagao do objeto livro, levava o estudante a uma atitude quase reverente, especialmente para com o mestre, no século XVIII, a “facilida- de” com que 0 aluno encontrava livros, “disponiveis em grande abundancia e variedade’, poderia conduzir a uma independéncia perigosa. Afinal, quem faria a selegio dos textos a serem consul- tados pelos futuros professores? Bis a preocupagéo implicita na pergunta do filésofo italiano. Em outro século, coube a um filésofo alemao expressar 0 ‘mesmo cuidado, esclarecendo o vinculo entre a difusdo de tex- tos impressos e a provavel negligéncia do corpo discente: “Apés a invengdo dos tipos impressos, 0 objeto livro se tornou bastante A partir de entio, no ha um nico campo cientifi- co que nio tenha estimulado uma produgio abundante de livros comum. 9. Vico, 1965, p. 72. 125 [..1%! Era necessério, portanto, desenvolver um modelo de uni- versidade capaz de fazer frente & inédita difuséo de livros; afinal, um de seus resultados nao planejados poderia ser o surgimento de um novo tipo de estudante: “[...] 0s alunos preguigosos pre- valecerdo, pois, tanto tendem a descuidar da aprendizagem oral, quanto da formagio letrada. De um lado, faltam as aulas, jf que 0 contetido das mesmas [sic] se encontra nos livros. De outro, negli genciam a leitura porque podem aprender de oitiva’”! © pharmakon prescrito por Vico e Fichte para combater 0 dano potencial ocasionado pela imprensa exigia um delicado equi- brio.” A imprensa nao era s6 0 veneno, mas também 0 remédio, parte indispensivel do processo de “cura’. A dosagem adequada de palavras impressas elevaria 0 espirito ~ ajudando a transmitir a tradigao -, enquanto qualquer excesso poderia destrui-lo - tornan- do impossivel o simples ato de discernimento. Ora, a ameaca real trazida pela abundancia de livros residia na multiplicidade de in- terpretagdes que poderiam surgir da consulta livre a biblioteca; in- terpretagdes que de resto nao mais dependeriam da palavra-autori- dade do mestre, podendo ser imaginadas pelos estudantes-leitores. Por isso, os conselhos de Vico sio previsiveis: “os Antigos devem ser lidos em primeiro lugar, j4 que sua autoridade e cre- 10. Fichte, 1999, p, 23-24. 11. Fichte, 1999, p. 24, grifos do autor. 12, Acerca desse uso de phérmakon, tal como desenvolvido por Jacques Derrida, recomendo a leitura de dois livos de Evando Nascimento: Derrida ea litera tura: “notas" de literatura ¢flosofia nas textos da desconstrugao (2001), espe- . Por exemplo, letor encontra até mesmo uma lista de letura indicada para 0 ‘verao! Ver . 1997, p. 86. Discuti o problema em "Why do Scholars Write Auto- ? Or: Exile as a‘Comfortable’ Metaphor” (Rocha, 2008, p. 325-338). sileiro, por muito tempo, com os frutos do Modernismo. Desta- ca-se aqui, como vimos, a figura emblemética do movimento, o poeta-critico, que incorpora tarefa analitica e reflexio teérica na propria composicao literdria, Nesse contexto, Abel Barros Baptista parece perguntar: “por que se preocupar tanto com o jornalismo literario?”, Nas condigées atuais, a universidade oferece a trin- cheira possivel para o poetar. E, recordando 0 termo de Novalis, tanto o poetar poético quanto o tedrico e 0 critico. Sem otimis- ‘mos ingénuos, ressalte-se: “trata-se menos de constatar um es- tado de coisas do que enunciar o principio de um programa de resisténcia’ ‘Nao serd entio casual que, com uma tirada bem-humorada, John Barth tenha identificado a figura correlata do poeta-critico, {sto é, o artista-professor universitério: “Todo mundo sabe que hoje em dia muitos poetas e escritores norte-americanos, assim como alguns de nossos pintores e compasitares de miisica ‘séria, trabalham na universidade’“ As duas figuras colaboraram para ‘0 colapso de certa concepgao da critica de rodapé porque passa- ram, por assim dizer, a cobrar o escanteio e a corer para cabecear. Em casos menos sutis, chega-se a celebrar com gosto 0 proprio tento, narrando com entusiasmo as préprias conquistas. Porém, vale mencionar um efeito perverso, hoje em dia um fenémeno propriamente global, chicoteado com prazer por Peter Ackroyd: “Nas décadas de 1950 e 1960 houve de fato uma hegemonia aca- 43, Baptista, 2002, p. 50. 4, Barth, 1984, p15. démica quase total no que se refere @ literatura; e como resultado O curto-circuito muitos escritores chegaram a adequar deliberadamente seus tex- tos & expectativa do piblico universitério, pois sabiam que esse era Por sua vez, em “Poesia no jornal: noticias da América” © local em que suas reputagées seriam construidas’** Em paises Gustavo Rubim radicalizou a reflexao sobre o circuito poesia-uni- marcados pela circulagio restrita de livros, ndo apenas se constréi vyersidade mediante um reparo a tese de Perloff. Como vimos, ela uma reputagio, mas, em virtude da mesma reputagio, podem-se acredita que 0 jornalismo literdrio aceita a especializagao do dis- cesgotar algumas edigdes apenas no circuito universitério, O juizo ‘curso sobre a arquitetura porque continua existindo um piblico de Ackroyd talvez.seja um tanto amargo, e sem divida tem um médio interessado no tépico; afinal, “toda a gente trabalha e vive sabor claramente ressentido, porém o fendmeno descrito é sério, ‘em edificios especificos, e portanto revela interesse pelo aspecto e afetando uma parcela nada desprezivel de escritores contempo- sensago que provoca o espaco construido"* Jé para Rubim, nu- rneos, especialmente os mais jovens.** Portanto, além da poesia, ma visio mais dcida do problema, os editores dos suplementos © romance de corte mais experimental também encontra na uni- culturais permitem que o especialista em arquitetura se sinta em versidade uma trincheira possivel, um piiblico cuja interlocugio é casa simplesmente porque ele ndo ameaga sua crenga mais con- cada vez mais importante, Nao deixa de ser sintomatica a transfe- fortével: “A linguagem, na concepgao geral que suporta o traba- réncia parcial e progressiva dessa funcio da universidade, nas dé- Iho jornalistico, continua a ser um instrumento, uma ferramenta cadas de 1950 e 1960, como lugar privilegiado, se nio tinico, para para transmitir ¢ interpretar fatos ¢ opinides que se consideram outros meios, como a televisio, a partir da década de 1980, como independentes da linguagem’.® Pelo contrério, a poesia contem- vimos no caso exemplar de Bernard Pivot, ou para o universo di- pordnea, na esteira da tradigio modernista, caracteriza-se por gital hoje em dia: essa mudanga também desempenhou um papel um questionamento constante dos préprios limites da linguagem, considerdvel na polémica entre a cétedra e 0 rodapé, como tentarei ctiticando desse modo a instrumentalizagao promovida pelos cli- demonstrar nos proximos capitulos. chés e pelas redundancias do texto jornalistico. Na verdade, cum- pre reconhecer, o género lirico sempre se caracterizou pela ex- ploragao do potencial autotélico da linguagem. Aqui, os extremos tocam-se inesperadamente: “Se a universidade for [..] um lugar 45, Ackzoyd, 2001, p. 2073 46, Autran Dourado j hava criticado esse fendmeno: “Nada hi de mais pet F {do que o escritorescrever para profesores, te6ricos ou crtcose jornalists. arena aa Resulta em maneirismo e imitaio de si mesmo, risco grave no escrtorcuja 48, Perloff,2002, p. 44 angio € mais eelevante’ (Dorado, 1973, p19). 49, Rubim, 2002, p53. 44 145, [..] mais apto a garantir ‘a poesia a sua propria vida! como diz Per- off, s6 um preconceito tipicamente jornalistico [...] dira que é por efeito da especializagao da poética’® Compreenda-se o alcance da observagao. Um professor universitirio “tradicional’, tio afeito a certe- zas e repeticdes quanto qualquer editor acomodado, dificilmen- te aceitaria o questionamento tipico da linguagem poética, pois “a poesia nao hé-de habitar o lugar que a universidade lhe abriu sem alterar a prépria universidade”*' Nessa perspectiva agonica, © abrigo universitario s6 ser fecundo se a relacdo entre profes- sor e poeta originar nao um circuito polido de elogios reciprocos, mas curtos-circuitos constantes, com base numa problematizagéo dos préprios limites do relacionamento, o que nem sempre ocorre na pratica institucionalizada do poeta-critico e sua bem-sucedida conversio em artista-professor universitério, muitas vezes cria- dor de epigonos-orientandos que tudo questionam, com a exce io bem-comportada das opgies estéticas particulares do poeta- -orientador de teses. Esse t6pico tem sido objeto de uma reflexio cada vez mais necessiria. Veja-se, por exemplo, o caso do proprio suplemen- to analisado por Marjorie Perloff. Aliés, com uma pontualidade apropriadamente britinica, a moderna imprensa literéria inglesa celebrou seu centendrio. Em 17 de janeiro de 1902 publicou-se 0 primeiro nimero do TLS. O miimero 5.155, publicado em 18 de 50, Rubim, 2002, p. 54. 41, Rubim, 2002, p. 55. 146 janeiro de 2002, comemorou 0 feito com uma “edigao especial de centendrio’. Seu editor, Ferdinand Mount, aludindo a conhecida frase, traduziu a importancia do acontecimento: “Se o TLS nio existisse, seria preciso inventé-lo” Nessa edigdo comemorativa, um dos ensaios discutiu preci- samente o tema que animou o texto de Marjorie Perloff e as reacdes de Abel Barros Baptista e Gustavo Rubim. O proprio titulo sinte- tizou seu conteiido: “The golden age that never was’. Nas palavras de Stefan Collini: “€ preciso reconhecer que o século XIX tam- bém foi marcado por lamentos repetidos sobre a extingao do ‘lei- tor comum’ ou do ‘ptiblico leitor cultivado’ para quem a resenha deveria ser escrita’. Trata-se da resenha “literdria” ou da resenha de “ideias”, como fez questo de esclarecer, e que deveria atender a0 “pablico classe média’, na expresso pejorativa de Perloff, mas aqui mencionada como uma ponte possfvel entre conhecimento especializady, produzido na universidade, ¢ espayo piblico. Com lucidez, Collini demonstrou que, j4 em seus primérdios, o jorna- lismo literério viu-se as voltas com as dificuldades apontadas por Perloff, Barros Baptista e Rubim — nada mesmo de novo sob 0 sol, para o bem ou para o mal. Ao que tudo indica, desde sempre resenhas breves, mais informativas do que reflexivas, ocuparam 0 centro do palco, quero dizer, da pagina. Por exemplo, em 1855, Walter Bagehot defendia sem hesitar a utilidade da “review’; considerando-a apropriada para a acele- ragio do mundo moderno: “o ritmo acelerado da vida [..] signi- 52, Mount, 2002, p. 15. 147 ficava que somente ‘resenhas curtas eram desejadas’* Os bons velhos tempos de longas resenhas-quase-ensaios representariam mais uma idealizada projecao retrospectiva do que uma nostal- gia razodvel, ao menos no dia a dia das publicagdes. No século seguinte, principiando sua batalha contra 0 rodapé, Afranio Cou- tinho langou mao do mesmo raciocinio: “Vérias razdes militam contra o rodapé. Em primeiro lugar, a questéo do tempo. E mate- rialmente impossivel, nas atuais condig6es da publicidade, que um homem se mantenha em dia com 0 movimento editorial [..."* Na sequéncia do artigo, Coutinho propés uma distingio similar de Bagehot, reforgando o carter estrutural da polémica. Na sua opiniao, era indispensvel esclarecer a diferenga entre “critica e review de livros, entre critica e reportagem cronica, registro. Esta distingao € que seria necessirio introduzir no Brasil. Um rodapé nao é critica, mas simples registro ou revista de livros. Nao existe, geralmente, 0 habito do rodapé na América’** 53. Collini, 2002, p. 17. As duas citagbes foram tiradas dessa pagina, 54. Coutinho, 1969b, p. 19. O artigo foi escrito em Nova Torque, data de 13 de ju- ‘nho de 1943. Citamos outra passagem desse artigo na introdugao desta obra. 55. Coutinho, 1969, p. 22. Alvaro Lins respondeu a esse artigo de forma acre, ‘mas nem por isso esqueceu o bom humor: “Escreveu A. C. um artigo contra a critica dos rodapés, contra 0 que chama a insttuigdo dos folhetins semanais de critica, O seu argumento é curioso:o rodapé de critica ndo deve existir no Brasl porque ele nlo existe nos Estados Unidos da América... Qualquer dia actescentaré que deve ser abolida a lingua portuguesa no Brasil, porque alin ‘gua falada nos Estados Unidos éa ingles’ (Lins, 1963, p. 149). A observasio, ‘encontra-se no segundo volume. 148 Na verdade, néo ha mesmo nada de novo sob o sol, pois, em todas as épocas ¢ contextos culturais, a nostalgia parece ter sido a nota dominante. E, ao que consta, no “pasado”, o ritmo da vida sempre foi mais favorivel a leitura desinteressada. Nes- se particular, 0 bovarismo parece incontornével, pois desejamos sempre viver em outro tempo que nao o nosso. Nas palavras de ‘Emile Faguet: “Flaubert dizia: ‘Ah! Esses homens do século XVII! Como sabiam latim! Como liam devagar”.* Pouco importa se liam devagar porque, na maior parte das vezes, a decifragao do ato de leitura ainda dependia da vocalizagao do escrito: 0 que conta aqui € a imagem idealizada do tempo que nao nos coube viver. ‘Além disso, 0 espectro do especialista também rondava os tempos vitorianos: “Os jornais culturais contavam com uma grande gama de colaboradores, a maior parte dos quais se limitava a determi- nados dominios amplos”:” © problema é ainda mais antigo: ele é constitutivo da propria modernidade letrada. Volto a repetir: oposicao entre cétedra e rodapé nao é exclusivamente brasileira. Numa perspectiva de longa duragao, o entendimento da dinamica subjacente 4 polémica iniciada por Afrinio Coutinho exige que se considerem os efeitos de inovacdo ocasionados pela difusio de ‘uma nova tecnologia de comunicago. Sem recorrer a exemplos tao vetustos, pois, como vimos, 0 tempo do leitor de jornal é curto, Collini enumerou diversas ins- tncias que ajudam a desmitificar a presungao de uma época aurea 56, Faguet, 2008, p. 10, grifo nosso. 57. Collini, 2002, p. 17, do jornalismo literario, sucedida por um momento de lamentével declinio, que teria forcado a retirada dos debates sobre poesia para a cétedra, ideia subjacente ao ensaio de Marjorie Perloff A nos- talgia da perda de um periodo idilico constitui a retérica domi- nante no jornalismo literdrio e mesmo de certo éthas do homem de letras, como se a sociedade consumista nao fosse capaz de re- conhecer 0 valor intrinseco do trabalho intelectual. Dai, a verséo aborrecida, mas em aparéncia inevitavel, do intelectual lamurien- to, travestido de professor universitario, sempre a queixar-se do mundo administrado que ndo compreende a importancia de suas reflexdes e, por isso, recusa-se a aumentar o valor de seu salétio e a renovar as benesses das bolsas de pesquisa. ‘As vezes, é bem verdade, o valor do trabalho académico po- de ser simplesmente negado, e aproveito para esclarecer que, como no sou adepto da autodestruiclo, essa ndo é a minha perspecti- va. A negacdo, como dizia, da pesquisa universitiria pode ocorrer sem nenhuma ceriménia, embora, reconhega-se, de forma muito divertida, como veremos a seguir. Em 1976, com a verve que caracterizou seus escritos, Peter Ackroyd resenhou dois livros sintetizando seu julgamento num titulo-obitudrio: “A morte lenta da critica literdria universitaria’.” ‘Numa inversdo polémica da expectativa mais comum, e que se si- tua a contrapelo das posigdes expostas no debate de que trato nes- 58, Leia-se altima frase de seu ensaio: “O que posso dizer é que o jornalismo lite- ‘ito, tal como 0 conheciamos e muitos de nés ainda o praticam, no teve nada, aver com o assunto’ (Perloff, 2002, p. 44). 59, 0 autor tratou dos livros de L. C. Knights, Explorations, e de Michael Long, The unnatural scene. 150 te capitulo, o coveiro Ackroyd sentenciou com satisfagao eviden- te: “Eu ainda nao li um critico universitario contempordneo que pudesse escrever de forma mais inteligente, ou ler de modo mais cuidadoso, do que um bom resenhista’ A contracorrente do que sempre se afirmou, 0 rodapé é que seria a verdadeira trincheira do ensaio, enquanto a cdtedra nao passaria de uma fabrica de pro- dugio de resenhas, algumas até bem longas, mas todas redigidas com 0 descuido dos que jé sabem o que encontrardo antes mesmo de concluir a leitura do livro em tela. Ou redigidas com o descaso dos que sabem que nao terdo mesmo leitores para mais um ensaio, escrito para completar 0s laboriosos relatérios de produtividade.* Em resume, a critica literdria praticada em jornal nunca contou com circunstancias ideais, que autorizariam um olhar nostalgico, como se tivéssemos perdido um tesouro que no fundo munca esteve & disposigdo. E, a confiar no mau humor de Ackroyd, tampouco a critica académica sai ilesa desse pé de vento. Pelo contrério, ao menos se consultarmos o que escreveu acerca de The Oxford Ilustrated History of English Literature, organizada por Pat Rogers: “Talvez.o aspecto mais significativo desse esforco coletivo de produzir hist6ria literdria seja o fato de que cada capitulo seja escrito por um académico diferente. Houve uma época na qual a literatura inglesa era discutida por escritores ingleses; mas esse (60."the slow death of academic literary criticism” (Ackroyd, 2001, p. 71) 61.0 problema & a insistncia na produtividade, sem a menor preocupagio com 1 recepeio do trabalho, Perdeu-se o equilibrio entre estes dois elementos = a producio e a recepeio. Precisamos restaurar a simetria entre eles. O problema ‘esti em fandamentar o acesso ao posto de professor como dependente da quan- tidade de publicagGes publicagées que poucos lem’ (Waters, 2006, p. 25). 151 | foi um periodo barbaro, uma época em que o valor verdadeiro da critica literdria e da pesquisa académica ndo eram devidamente reconhecidos’® A diatribe de Ackroyd ~ um adepto irreverente do hébito do understatement ~ contra o establishment académico soa como uma estocada ressentida da critica de rodapé. Mas quem disse que o ressentimento ndo pode ser divertido? Talvez nAo seja impertinente lembrar que Ackroyd princi- piou sua carreira como resenhista, muito jovem, escrevendo para a prestigiosa revista Spectator. Embora potencialmente contradi- térias, a observacio de Collini ea viruléncia de Ackroyd reforgam indiretamente o pressuposto de Rubim: é como se a reflexao sobre a literatura somente pudesse caminhar no fio da navalha, trope- ando nas prdprias pernas e, por isso mesmo, arriscando 0 passo seguinte. O andar em ziguezague de Tristram Shandy ou os pasos ébrios de Bras Cubas seriam as marcas da reflexdo mais fecunda sobre a literatura. E, em prinefpio, na universidade ou na impren- sa, esse gesto pode ser atualizado hoje em dia, desde que se aban- donem concepges normativas, seja da literatura, seja da teoria, ¢, desse modo, um dislogo realmente inovador tenha vez. Norma ou didlogo? Chegou a hora de reconhecer que o carter normativo nao afetou apenas a critica de rodapé, mas também se insinuou na cé- 62, “The Oxford Illustrated History of English Literature” (Ackroyd, 200, p. 206). 152 tedra, Como vimos no capitulo anterior, uma concepgéo norma- tiva de literatura e de teoria levou & condenagdo suméria tanto da polémica quanto do sistema intelectual brasileiro. De igual sorte, a epigonia, caracteristica da atividade intelectual distribuida em subsistemas endogdmicos, alimenta-se de padrdes rigidos e, so- bretudo, autorreferentes. Nesse horizonte, o didlogo nao tem vez, pois 0 que predomina é 0 monélogo a muitas vozes. ‘A tensio entre continuidade e ruptura é constitutiva da mo- dernidade, pois, se, de um lado, valores ja existentes foram con- siderados passadistas, e a diferenca € decisiva, de outro, 0 com- promisso intransigente com 0 novo transformou-se num valor, normative como qualquer outro. O paradoxo implicito ao gesto merece ser assinalado. A vanguarda procurou romper com a tra- digéo ~ ninguém ignora* Contudo, as indimeras memérias escri tas pelos vanguardistas criaram um género prdprio, uma tradicéo contraditéria: por assim dizer, e para recuperar a bela expressio de Octavio Paz, a tradigdo da ruptura,* na qual tudo se questio- na, com exce¢ao do lugar do artista no cénone. O ponto maximo desse paradoxo foi o advento da instituigo do Museu de Arte Mo- derna, Como nio recordar a sugestio futurista de inundar museus € queimar bibliotecas?* Alids, e de forma muito adequada, o futu- rismo de Marinetti tornou a contradicao fator constitutivo do pré- 63, Para uma descrigio histérica do sentido do termo vanguarda, ver Calinescu. (1987), especialmente entre as paginas 97 e 120. (64, Aludo a expressio cunhada por Paz (1990, p. 17) (65. proposta constava do primeiro manifesto futurist: “[..] Vamos! Ateiem fogo {As estantes das biblioteas!.Desviem o curso dos canais, para inundar os mu seusl.[.)" (Marinetti, 1980, p. 35). prio movimento, pois, tendo sido o primeiro grupo vanguardista organizado, buscou preservar sua lideranca por meio de racioci- nio no minimo curioso: devido aos servigos prestados a causa no pasado, o futurismo deveria determinar seu presente, modelando ainda 0 futuro do movimento. Em ambos 0s casos ~ seja a critica normativa e autocentrada, seja a vanguarda guardia de si mesma -, a alternativa parece ser a retomada do didlogo, ou, nos termos que proponho neste livro, recuperar a vitalidade da polémica, por meio da dinamica carac- teristica do sistema interno de emulagio. Retornemos entdo ao debate entre Whistler e Ruskin, discu- tido no primeiro capitulo. Esse debate é particularmente relevante para minha hipétese, j4 que o verdadeiro tema da polémica era a avaliagdo do papel do mediador. Nesse sentido, a trajet6ria de Ruskin revela-se uma metoni- mia dos avatares da figura do mediador em face da arte moderna. Inicialmente Ruskin tornou-se conhecido pela defesa aguerrida das telas de Turner, pintor de sua predilecdo. Ele nio somente enfrentou os intimeros criticos do pintor, também terminou por ccriar uma onda de valorizagio da arte contempordnea. O primeiro volume de Modern Painters, publicado em 1843, representou um. acontecimento fundamental na afirmagio de Turner, assim como da arte entdo considerada moderna. 66, Nas palavras de José Verssimo: “Essa obra é um ato; marca uma data, no s6 no desenvolvimento da arte inglesa contemporinea, mas no sentimento estético, do mundo civilizado onde existem preocupacoes de art’ (Verissimo, 2003a, p18) 154 Na década de 1850, Ruskin voltou a brilhar como paladino da ruptura, Dessa vez, foi o campedo do movimento pré-rafaeli- ta, transformando a onda desfavorével que dominava a imprensa britanica em consagracdo imediata para os jovens membros do grupo. “Dali até o final da década de 1870, uma palavra critica de Ruskin era o suficiente para avangar ou retardar carreiras artisti- ‘cas na Inglaterra vitoriana’” Sua nomeada ultrapassou fronteiras, como se depreende do comentério de José Verissimo: “Critico de arte ele o foi, certo, preeminente, como jamais se fora antes dele e como serd dificil ser depois dele” Compreende-se agora a razio do gesto de Whistler ao ser duramente atacado por Ruskin: reagir & altura era indispensdvel, € 0 pintor estadunidense propos nada menos do que a criagio de ‘um novo piblico, que tornaria a figura do mediador, independen- temente de sua qualidade, obsoleta. Em outras palavras, Whistler assumiu o papel duplo de artista e critico da propria obra, provo- cando um curto-circuito na divisio de tarefas até entao dominan- te. Eis 0 sentido subjacente ao sarcasmo com que Whistler respon- deu ao advogado de defesa do critico. Recorde-se brevemente o episédio: Ruskin acusara o pintor de cobrar um valor muito alto por um quadro “inacabado”, Co- ‘mo vimos no primeiro capitulo, preocupado com o prejuizo que 67. Cardoso, 2004, p13. 68, Verissimo, 2003, p. 179. Verissimo voltou obra do autor de Modern Painters em outro ensaio: “Ruskin: estetae reformador social” (Verissimo, 2003a, p. 641-651). [esse texto, ecordou: “Da natureza, como ele a via, compreendia e amava, 0 ¢grande intérprete aos seus olhos era o grande paisagista inglés Turner, por amor do qual, ainda sem o conhecer pessoalmente, salu a campo em uma polémica, {quando ia nos seus dezessete anos”. (Verissimo,2003a, p. 645). ‘uma opinio tio respeitada poderia causar & venda de suas telas, Whistler processou o critico, exigindo uma indenizagao generosa. Ruskin precisou defender-se e a estratégia de seu advogado con- sistiu em estabelecer uma equivaléncia simples: se o pintor tivesse dado sua obra por encerrada “rapidamente’, entao, 0 quadro po- deria ser considerado “inacabado” - comprovando assim a alega- 40 do critico. Ora, Whistler admitiu ter concluido o quadro em dois dias. A reacdo incrédula e ingénua do advogado permitiu a Whistler uma de suas tiradas mais engenhosas ~ e sempre repeti- da, Replicou o advogado: Oh, dois dias! O trabalho de dois dias; entdo, é por esses dois dias que 0 senhor cobra duzentos guinéus (two hundred gui- eas)! Nao ~ Eu cobro pelo conhecimento de toda uma vida.” O advogado insistiu e, como “prova” contra o pintor, o qua- dro “Nocturne in Black and Gold: The Falling Rocket” foi trazido para o tribunal como “evidéncia’. Diante da tela, o seguinte dilo- go teve lugar: 69. Consulte-se o Houais 0 guinéu foi uma “moeda de ouro inglesa, cunhada para © trifco africano’; possuia o "valor de 21 xelins, que se usov, para efeito de Cilculo, na fixacio de honorérios e salérios profissionais, de pregos de obras de arte, de cavalos puros-sangues, de iméveis et” (Dicionirio letrdnico Houaiss da Lingua Portuguesa, 2009). 70. Whistler, 1967, p.. Jorge Luis Borges escreveu um comentario delicioso acerca do episodio: “Es fama que le preguntaron a Whistler cudnto tiempo habia re- {querido para pintar uno de sus nocturnos y que respondis: “Toda mi vida. Con ‘igual rigor pudo haber dicho que habia requerido todastos siglos que precede ‘ron al momento en que lo pints’ (Borges, 1989, p. 179), 156 — O senor diria que esta é uma representagao correta da pon- te de Battersea? ‘A resposta de Whistler anunciou uma nova época: ~ Eundo pretendi que fosse um retrato correto da ponte. Trata-se somente de uma cena de luar, e 0 pier no centro da cena pode indo ser o pler que se vé na ponte de Battersea a luz do dia. No tocante a0 que 0 quadro representa, isto depende de quem o vé. Para algumas pessoas pode representar tudo que se plane- jou; para outras pessoas, nada. ~ Acor dominante ¢ 0 azul? ~ Talvez ~ As figuras no alto da ponte devem ser vistas como pessoas? ~ Elas sio o que o senhor desejar.” As respostas de Whistler esclarecem uma nova forma de compreender a relagdo entre artista e piblico. Em lugar de con- fiar na “linhagem de poderosos explicadores de arte que tém marcado a histéria de arte moderna (...)"/? Whistler propunha uma fusio entre artista e publico - sem mediagbes. As vanguar- 71, Whistler, 1967, p 8, grifo do autor, 72. Cardoso, 2004, p. 13. Além de Ruskin, o autor menciona outros explicadores: “Baudelaire, Zola, Apollinaire, Roger Fry ¢ Clement Greenberg. Como estes, ‘outros, Ruskin tinha o dominio da linguagem escrita e, ainda, uma certeza convicta de suas posigBes que Ihe emprestava autoridade, beirando as vezes 0 autoritarismo'. (Cardoso, 2004, p. 13). 157 das hist6ricas das primeiras décadas do século XX radicalizaram 0 projeto. Dessa circunstancia, Peter Biirger derivou a originalida- de do movimento, cujo objetivo maximo seria a reintegracdo da i arte no cotidiano, transformando o préprio dia a dia numa mani- festagao artistica. Dal, “produtores e receptores deixam de existir. S6 0 que resta é o individuo que usa a poesia como instrumento para viver sua vida da melhor maneira possivel”” Eis 0 pressuposto subjacente a estetizago do cotidiano dos préprios artistas, como se 0 dia a dia fosse uma obra de arte em potencial. As vanguardas histéricas pretendiam disseminar essa possibilidade, transforman- do cada cidadao num artista, cuja obra principal seria a condugio renovada de sua vida. Em alguma medida, Whistler inaugurou essa possibilidade em seu ruidoso processo contra Ruskin. E como se o mediador cultural simplesmente deixasse de existir, ou, no minimo, sua presenga se tornasse um anacronis- mo, por assim dizer, inofensivo. Em alguma medida, a polémica da cétedra contra o rodapé também significou a sua condenagao. Nesse horizonte, sem duivida, os “medianeiros médios’, do poema de Maiak6vski, tornam-se ociosos, francamente desnecessarios. Esquizofrenia produtiva? Devo, entéo, buscar um caminho alternativo para a reflexdo sobre os lugares da critica lterdria no século XI, pois, afinal, uma 73, Barger, 1984, p.53. 158 das herangas da institucionalizagao dos estudos literdrios foi pre- cisamente a desqualificagdo da figura do mediador, Na introducdo ¢ nos dois primeiros capitulos deste livro, discuti o problema do ponto de vista de uma reavaliagdo do papel das polémicas, tanto em geral quanto no caso da cultura brasileira em particular. Neste eno préximo capitulo, as transformagées histéricas do papel de mediador cultural talvez estimulem sua reavaliagdo nas condigdes, contemporaneas. Na conclusio, desenvolverei essa possibilidade por meio do conceito de “esquizofrenia produtiva’, visto como uma pos- sivel estratégia diante do declinio da cultura letrada. De imedia- to, aproveito para definir muito brevemente 0 conceito. Trata-se, por assim dizer, de aprender a ser bilingue em seu préprio idioma, aprendendo a lidar com audiéncias diversas, ampliando assim o registro da prépria fala.” Desse modo, o conceito de “esquizofre- nia produtiva” deve permitir uma nova leitura do conflito entre a ctedra e 0 rodapé, além de estimular o resgate da figura do me- diador cultural. Contudo, como sempre, avango passo a passo. No préximo capitulo, em primeiro lugar, discutirei o debate entre a cétedra eo rodapé no cenario brasileiro. 74, Apresentei este conceito em Exercicos erticos leturas do contempordineo (Ro- cha, 2008, p. 10-11). Pretendo desenvolver 0 conceito num futuro livro, Por uma esquizafrenia produtiva, no qual dscutirei o conceto suas possiveiscon- sequéncias para os estudos literarios. Na conclusio deste lio, apresentarei 0 conceito com mais vagar.

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