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ALAIN DUCELLIER MICHEL KAPLAN

BERNADETTE MARTIN
Com a colaboração de Françoise Micheau

BIZÂNCIO E O ISLÃO

DOS BÁRBAROS AOS OTOMANOS


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HISTÓRIADAHUMANIDADJ

PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE


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A IDADE MEDIA NO ORIENTE
BIZÂNCIO E O ISLÃO
Os Autores:

Alain Ducellier é professor na Universidade de Toulouse-le-Mirail, sendo autor de Les Byzantins,


Le Miroir de 1'Islam, Le Drame de Byzance e Byzance et le monde orthodoxe.
Michel Kaplan é professor na Universidade de Paris-I, sendo autor de diversas obras sobre o
mundo rural bizantino.
Bernadette Martin é «maitre de conférences» na Universidade de Paris-I, sendo especialista na
história do Mar Negro durante a Alta Idade Média.
Françoise Micheau é «maitre de conférences» na Universidade de Paris-I, sendo autora, com
D. Jacquart, de La Médecine arabe et 1'Occident médiéval.
ALAIN DUCELLIER MICHEL KAPLAN

BERNADETTE MART1N

com a colaboração de

FRANÇOISE MICHEAU

A IDADE MÉDIA NO ORIENTE


BIZÂNCIO E O ISLÃO

DOS BÁRBAROS AOS OTOMANOS

Tradução de Luís de Barros

PUBLICAÇÕES DOM QU1XOTE


LISBO A 19 9 4
Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação
Ducellier, Alain, e outros
A Idade Média no Oriente: Bizâncio
e o Islão: dos Bárbaros aos Otomanos
Alain Ducellier, Michel Kaplan, Bernadette Martin;
Colab. Françoise Micheau
(História da Humanidade)
ISBN 972-20-1172-3
I - Kaplan, Michel
II - Martin, Bernadette
III - Micheau, Françoise
■CDU 949.5.02 ”04/14"
297(495.02) ”04/14"

A IDADE MÉDIA NO ORIENTE


Publicações Dom Quixote, Lda.
Rua Luciano Cordeiro, 116 - 2.2
1098 Lisboa Codex - Portugal

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

© Hachette, 1990
Título original: Le Moyen Age
en Orient, Byzance et L 'Islam

l.a edição: Março de 1994


Depósito legal n.2 76 036/94
Fotocomposição: Textype - Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento: Tilgráfica, S.A.

ISBN: 972-20-1172-3
índice

Prefácio .............................................................................................................................................. 9
Introdução........................................................................................................................................ 11

Livro Primeiro. Emergência do Próximo Oriente medieval.......................................................... 25


1. Eixos de relevo e grandes itinerários................................................................................ 26
2. O nascimento do Império Bizantino de Constantino a Justiniano (330-565).................. 31
3. O Império Persa sassânida (sécs. iv-vii) ......................................................................... 57
4. Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. rv-vi)......................................................... 64
5. Invasões e mudanças de dominação (fins séc. Vl-séc. vii).............................................. 75
6. O Império Bizantino da morte de Justiniano
à subida ao trono de Leão III (565-717)........................................................................... 90
7. O Império Árabe dos Omíadas (661-750)........................................................................ 101

Livro Segundo. Apogeu do Próximo Oriente medieval............................................................... 115


8. O Império Bizantino de 717 a 1081................................................................................. 116
9. O mundo muçulmano sob os Abássidas
Aspectos políticos e territoriais (750-1055)..................................................................... 141
10. A vida rural (sécs. viii-xi)................................................................................................ 161
11. O comércio e a vida urbana (sécs. vm-xi) ....................................................................... 183
12. Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. XI......................................... 209
13. A vida intelectual e artística do Próximo Oriente............................................................ 228

Tjrrao Terceiro. Esclerose ou mudança no Próximo Oriente...................................................... 247


14. Um eclipse parcial do Oriente nos sécs. xi e XII............................................................ 248
15. As mudanças económicas e sociais do séc. XII............................................................... 262
16. As transformações políticas e culturais do PróximoOriente nos sécs.XII e XIII......... 278
17. Ó mundo rural entre os sécs. xiii e XV: os progressos dadependência.......................... 294
18. €5dades e actividades comerciais no final da Idade Média.............................................. 311
19. Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. XIV-XV.............................................. 334
20. a um encerramento cultural do Oriente?............................................................... 345

índice jcbbshvo.................................................................................................................... 367


índice dartnpas.............................................................................................................................. 369
LegendasSI||toapas....................................................................................................................... 371

<-
Prefácio

Em 1973 eram publicados os primeiros volumes da colecção Hachette-Université «Initiation


à 1’Histoire». Decorridos cerca de vinte anos, impunha-se uma refundição que levasse em linha de
conta as novas necessidades dos leitores e as aquisições da investigação.
Os primeiros ciclos das universidades conhecem, de alguns anos a esta parte, uma afluência cres­
cente. Dos jovens estudantes exige-se a prática de exercícios os mais variados - resumos de leituras,
explicações de documentos, dissertações, constituição de dossiers - sem que para tanto estes possuam
um bom conhecimento dos métodos apropriados. A saturação das bibliotecas não lhes permite rea­
lizar a indispensável pesquisa bibliográfica, o exame atento dos livros e das revistas, algo que devia
constituir uma parte essencial do trabalho pessoal. O estudo de questões especializadas de história
pressupõe uma larga base de conhecimentos, o que nem sempre é assegurado. Quanto aos estu­
dantes de grau avançado, envolvidos na preparação dos concursos de admissão (lugares de agrega­
dos, CAPES1), são-lhes totalmente necessários sínteses e guias, de manejo acessível, para poderem
preparar as provas extracurriculares.
E a todas estas necessidades que desejam responder os colaboradores desta colecção. Estes pro­
curam, acima de tudo, ajudar os estudantes a adquirirem métodos que lhes permitam ordenar os
seus conhecimentos. Para isso, aqui contribuem com o fruto de uma longa experiência pedagógica.
Com a natureza de guias, estas obras apresentam as grandes colecções, recolhas de textos, revis­
tas, atlas, cuja consulta é indispensável. Elas indicam, com ajuda de exemplos renovados, e de natu­
reza diversa consoante os volumes, o modo como conduzir uma explicação de documentos, uma
exposição, uma dissertação. Fornecem, além do mais, pâra cada questão tratada, uma bibliografia
ponderada e fazem o cômputo dos conhecimentos. Resumos históricos, estes manuais mostram como
abordar numa breve síntese os grandes temas de estudo de um período e dão um apanhado dos
principais problemas, mas não de todos.
Uma apresentação clara e estruturada do texto, mapas de fácil manuseamento, reunidos num
atlas histórico, numerosas anotações à margem comportando elementos de vocabulário histórico,
curtas biografias, desenhos, referências cronológicas fazem destes manuais cómodos instrumentos
de trabalho. Não pretendem ser mais do que isso.

Michel Balard

1 Certificai d 'Aptilttde Pédagogique à lEnseignement Secondaire (Certificado de Aptidão Pedagógica para o Ensino

Secundário). (N. doT.)

9
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Introdução

O estudante que aborda a história do Próximo Oriente medieval mostra-se à partida confuso.
Trata-se de um mundo novo de que ignora frequentemente a própria geografia; de povos pouco conhe­
cidos, cujo passado e até mesmo o presente são para ele obscuros, e que se exprimem em línguas que
desconhece1; acresce que não têm aqui aplicação muitos dos conceitos habituais da ciência histórica.
A primeira dificuldade é, pois, a mudança de meio. A segunda provém da diversidade. Contraste
entre o Impéno Bizantino cristão e o Império Persa e, depois, o mundo muçulmano. Contraste mesmo
no interior desses dois mundos: há, por certo, uma diferença maior entre as margens do Danúbio e
os confins orientais da Ásia Menor no que toca a Bizâncio, entre a Hispânia e a Asia Central quanto
ao mundo muçulmano, do que entre a Mesopotâmia bizantina e a Mesopotâmia árabe. O Império
Bizantino apresenta, no plano político, uma indiscutível unidade, mas esta desaparece ao estudar-se
a economia, a sociedade ou, mesmo, a religião com as suas inumeráveis heresias. No que respeita ao
mundo muçulmano, depressa deixa aparecer fortes particularismos regionais, que as divisões religio­
sas e atracções diversas pelos mundos exteriores aprofundam. E que às diversidades interiores do
Próximo Oriente juntam-se as dos mundos periféricos: estes influem no Próximo Oriente medieval
directamente pelos incessantes movimentos de invasão ou indirectamente por trocas mais pacíficas —
religiosas, comerciais, etc. O principal erro a evitar é portanto a generalização e o esforço primordial
a desenvolver é o de captar esta espantosa diversidade.
Uma terceira dificuldade decorre da relativa juventude dos estudos científicos relativos ao mundo
oriental e, mais ainda, aos mundos periféricos. O estudante não deverá, pois, admirar-se de encontrar
menos certezas do que hipóteses, mais problemas levantados ou sugeridos do que problemas verdadeirament
resolvidos. Uma das vantagens que retirará do estudo do Oriente medieval provém justamente desta
necessária reflexão. Os autores tentaram, é certo, fornecer ao estudante a maior quantidade possível de
sínteses e de aperfeiçoamentos, mas o esforço de recuo e de aprofundamento do estudante é sempre necessári
O valor metodológico do estudo do Próximo Oriente medieval é portanto indubitável. A impor­
tância do seu conteúdo não o é menos: muitas das evoluções actuais, muitos dos conflitos mais con­
temporâneos têm as suas raízes na época medieval, cuja compreensão explica o mundo de hoje. E esta
é a verdadeira vocação do historiador.

1. A bibliografia

■ Instrumentos de trabalho e revistas - P. VlDAL DE LA BLACHE, L. GALLOIS,


Géographie Universelle: t. VII - La Méditerranée
O conhecimento do quadro natural do et les péninsules méditerranéennes, 2 vols.; t. vin
Próximo Oriente é absolutamente indispen­ - Asie occidentale. Haute Asie; 1929.
sável para a compreensão da sua evolução - P. BlROT, J. DRESCH, La Méditerranée et
histórica. O estudante pode recorrer a três le Moyen-Orient, 2 vols., Paris, 1956-1964.
obras: - X. DE PLANHOL, Les Fondements géogra-
1 A existência de vários sistemas de transcrição do
phiques de Vhistoire de ITslam, Paris, 1968.
árabe e do turco para português, explica a existência,
para a mesma palavra, de diferentes grafias, todas Para o período clássico, importantes ele­
igualmente aceitáveis. mentos bibliográficos em C. CAHEN, A. DUCEL-

11
LIER, «Le point sur les mondes byzantin et mento a esses volumes sob a forma de fas­
musulman du début du VIIIe. au milieu du cículos trimestrais.
XIe. siècle», Historiem et Géographes, n.B 270, O estudante deve habituar-se a utilizar
Setembro-Outubro de 1978. diversas revistas especializadas em história
oriental. As mais correntes em história bizan­
Quatro atlas históricos são preciosos:
tina são Byzantion, Byzantinische Zeitschrift,
Westemímns Atlas zur Weltgeschichte, II, Byzantinoslavica, Dumbarton Oaks Papers, Reuue
Mittelalter, Berlim, 1956. Grosser Historisher des Etudes Byzantines (ex-Echos d’Orient).
Weltatlas, II, Mittelalter, Munique, 1970. An Travaux et Mémoires du Centre de Recherches
Historical Atlas of Islam, ed. W. C. Brice, d Histoire et Civilisation Byzantine, Vizantijskij
Leiden, 1981. Atlas de VAntiquité Chrétienne, Vremennik. Para a história muçulmana: Ara-
Paris-Bruxelas, 1960. Para o final do período, bica, Der Islam, foumal Asiatique, Journal of
pode igualmente utilizar-se: D. E. PlTCHER, the Economic and Social History of the Orient,
An Historical Geography of the Ottoman Empire, Revue des Etudes Islamiques, Studia Islamica.
from earliest times to the end of the sixteenth cen-
Há alguns anos, uma casa editora publica
tury, Leiden, 1972. em Londres, sob o título de Variorum Re-
prints, obras que são colectâneas de artigos
Os elementos de cronologia são forne­ de um mesmo autor sobre um tema bastante
cidos por : vasto. O recurso a esses volumes dispensa,
V. GRUMEL, La Chronologie, Traité dÉtudes com utilidade, o emprego de certas revistas.
Byzantines, I, Paris, 1958. H. G. CATTENOZ,
Alguns dos principais artigos de C.
Tables de concordance des ères chrétienne et hégi-
CAHEN poderão, por outro lado, ser con­
rienne, 2.- ed., Casablanca, 1952. C. E. BOS-
sultados em C. CAHEN, Les Peuples musul-
WORTH, The Islamic Dynasties, Edimburgo, 1967.
mans dans Vhistoire médiévale, Damasco, 1977.
Três obras fundamentais dizem respeito Diversos congressos e revistas, normal­
mais particularmente ao Islão, mas são úteis mente consagrados a problemas de histó­
para o conjunto da história oriental: ria geral ou ao estudo da Idade Média oci­
dental, apresentam por vezes interesse, por
C. CAHEN, Introduction à Vhistoire du monde
certas comunicações ou artigos, para o
musulman médiéval, VIF-XV siècle, Méthodologie
Próximo Oriente medieval. E o caso de:
et éléments de bibliographie, Paris, 1983; é a
Actes des Congrès Internationaux des Etudes
obra de referência insubstituível. A Ency-
Byzantines, Settimane di studio dei Centro
clopédie de VIslam, que existe em duas edi­
Italiano di studi sulValto Medio evo (impro­
ções: a primeira (E.I./1), publicada de 1914
priamente chamadas Semaines de Spolèté).
a 1942 em 4 volumes e um suplemento, foi
reeditada em Leiden em 1987, em 8 volu­
mes e um suplemento; a segunda (E.I./2),
■ Grandes colecções históricas
em curso de publicação desde 1960, com­
porta já 5 volumes e vários fascículos (até M)
Certas grandes colecções históricas per­
do 6.s volume. J. D. Pearson, índex Islamicus,
mitem situar a história do Próximo Oriente
Cambridge: é uma colectânea dos artigos
medieval no conjunto da Idade Média:
a respeito do Islão e classificados por temas.
Aparecido em 1958 (para os artigos de 1906 - Peuples et Civilisations (Halphen et Sagnac,
a 1955), foi seguido de quatro suplemen­ PUF), t. v, R. Folz, A. Guillou, L. Musset,
tos publicados, sob o mesmo título, em 1962, D. SOURDEL, De LAntiquité au monde médiéval,
1968, 1972 e 1976. Um quinto suplemento, Paris, 1972, t. vi, G. Duby, R. Mantran,
aparecido em 1983, compreende duas par­ LEurasie, XIe.-XIIIe. siècles, Paris, 1982.
tes: uma colige os artigos, a outra - é uma - Histoire générale des sciences, 1.1, La Science
novidade - os livros, aparecidos entre 1976 antique et médiévale, Paris, PUF, 1966, publi­
e 1980. O Quarterly índex Islamicus dá segui­ cada sob a direcção de R. Taton.

12
Introdução

- Histoire générale des techniques, t. I, Les man, Paris, 1970; R. MANTRAN, LExpansion
Origines de la civilisation technique, Paris, PUF, musulmane (VIP.-XP. siècles), Paris, 1969, col.
1962, publicada sob a direcção de M. Dau- «Nouvelle Clio», PUF. A. MlQUEL, Llslam
MAS. et sa Civilisation, Paris, 1968, col. «Destins
du monde», Colin. D. e J. SOURDEL, La
Civilisation de VIslam classique, Paris, 1968,
■ Obras gerais col. «Les grandes civilisations», Arthaud;
reed. em formato de bolso, 1983. N. ELIS-
Uma obra recente apresenta em para­ SEEF, L 'Orient musulman au Moyen Age, Paris,
lelo as civilizações ocidental, bizantina e 1977. L. Gardet, Les Hommes de llslam, col.
muçulmana: R. FOSSIER e col., Le Moyen Age, «Le temps et les hommes», Paris, 1977.
3 vols., Paris, 1982-1983. D. SOURDEL, Llslam médiéval, Paris, 1979.
Em inglês, uma importante síntese apre­
a) Mundo cristão oriental senta pontos de vista originais: M. A. SHA-
BAN, Islamic History: a new interpretation, 1.1,
The Cambridge Medieval History, vol. IV,
600-750, t. li, 750-1055, Cambridge Univer-
The Byzantine Empire, Parte 1, Byzantium and
sity Press, 1971-1976.
its neighbours, Parte 2, Govemment, Church
and Civilization, 2? ed., Cambridge, 1966- M. Rekaya, Llslam. Religion et civilisation.
-1967. L. BREHIER, Le Monde byzantin, 3 vols., Son expansion du VIP. au XVe. siècle, Paris,
Paris, col. «Évolution de 1’Humanité», reed. 1978, oferece uma escolha sucinta de textos.
1969-1970, t. I, Vie et Mort de Byzance, t. 2,
Les Institutions de VEmpire byzantin, t. 3, La Obras um pouco mais antigas apresen­
Civilisation byzantine. G. OSTROGORSKY, tam também interesse: L. Gardet, La Cité
Histoire de lÉtat byzantin, trad. franc., Paris, musulmane, Paris, 1954; e Llslam, religion et
1956 (a 3.- edição alemã de 1963 compor­ communauté, Paris, 1967. G. L. VON GRU-
ta uma actualização), reed. franc., 1968. NEBAUM, Llslam médiéval, trad. franc., Paris,
D. OBOLENSKY, The Byzantine Commonwealth, 1962.
Londres, 1971. A. GUILLOU, La Civilisation Deve, finalmente, conhecer-se: The Cam­
byzantine, Paris, 1975, col. «Les grandes civi- bridge History of Islam, em dois volumes. T. 1,
lisations», Arthaud. A. DUCELLIER, LeDrame The Central Islamic Lands, t. 2, The further
de Byzance, idéal et échec d une société chrétienne, islamic lands. Islamic society and civilization,
col. «Le temps et les hommes», Paris, 1976. Cambridge, 1970.
A estas obras já antigas, acrescentar-se-á
agora: A. DUCELLIER, Byzance et le monde c) Mundos periféricos ou pré-islâmicos
Orthodoxe, Paris, 1986. Obras gerais foram
publicadas em colecções de bolso. Além dos Quanto ao mundo iraniano, as obras fun­
três volumes de L. BREHIER, pode citar-se: damentais são: A. CHRISTENSEN, Llran sous
P. IfMERLE, Histoire de Byzance, Paris, 3? ed., les Sassanides, Copenhaga, 1936. The Cam­
1956, col. «Que sais-je?». A. DUCELLIER, Les bridge History of Iran, vol. 3 em 2 tomos: The
Byzjantins, Histoire et Culture, col. «Points Seleucid, Parthian and Sassanian Periods,
Histoire», n.9 99, Paris, 1988. J. FERLUGA, Cambridge, 1975. J. D. PEARSON, A Biblio-
Bisanüo, società e stato, Florença, 1974 (com graphy of Pre-Islamic Pérsia, Londres, 1975.
um importante dossier de textos). H. AHR- Quanto ao mundo eslavo: A. DVORNIK,
WEUJER, LTdéologie politique de VEmpire byzan­ Les Slaves. Histoire et Civilisation de VAntiquité
tin, Paris, 1975. aux débuts de Vépoque contemporaine, trad.
franc., Paris, 1970. R. PORTAL, Les Slaves: peu-
b) Mirado muçulmano ples et nations (VIP.-XXe. siècles), col. «Destins
Há obras recentes em francês que todo du monde», Paris, 1965. A. P. Vlasto, The
o estudante deve conhecer: C. CAHEN, Entry of the Slavs into Christendom, Cambridge,
Llslam, des Origines au début de VEmpire otto- 1970.

13
Quanto ao mundo das estepes e o Londres, 1928; B. SPULER, Iran in früh-isla-
Extremo Oriente: L. MUSSET, Les Invasions: mischer Zeit, Wiesbaden, 1952; R. GROUSSET,
le second assaut contre lEurope chrétienne Histoire de PArménie, Paris, reed. 1973; Ch.-
(VIIe.-XIe. siècles), Paris, 1965, col. «Nouvelle A. JULIEN, Histoire de PAfrique du Nord, t. 1
Clio», PUF. E. D. PHILLIPS, Les Nómades de e 2, 2? ed., Paris, 1968; A. Laroui, Histoire
la steppe, Paris, 1966. J. GERNET, Le Monde du Maghreb. Essai de synthèse, Paris, 1970;
chinois, Paris, 1972, col. «Destins du monde», G. MARÇAIS, La Berbérie musulmane et POrient,
Colin. Paris, 1948; Histoire du Maroc, sob a direc­
ção de J. BRIGNON, Paris, 1967. E. LÉVI-PRO-
Quanto ao mundo ocidental, o estudante VENÇAL, Histoire de PEspagne musulmane,
tem à sua disposição M. Balard, J.-Ph. 3 vols., Paris, 1944-1953; G. I. BRATIANU, La
Genet, M. ROUCHE, Le Moyen Age en Occident, Mer Noire, des origines à la conquête ottomane,
Paris, 1990, ej. VERGER, Naissance et Premier Munique, 1969.
Essor de POccident chrétien, V.-XIIP. siècles,
Paris, 1975. Vários estudos relativos à geografia his­
tórica do mundo bizantino foram publica­
dos por H. AHRWEILER, Byzance: les pays et
■ Aspectos regionais e institucionais les territoires, Variorum Reprints, 1976. Para
um bom estudo regional, ver J. FERLUGA,
Certos grandes problemas da história do LÍAmwnitfrozzoni bizantina in Dalmazia, 1978.
Oriente cristão estão na origem de obras Quanto às ilhas: E. MALAMUT, Les lies de
importantes. PEmpire byzantin, VIIP.-XIP. siècles, Paris,
1988.
H. AHRWEILER, Byzance et la Mer. La
Marine de guerre, la Politique et les Institutions
maritimes de Byzance aux VHe.-XM. siècles, Paris, ■ Relações entre os mundos bizantino e
1966. muçulmano: problemas comuns
G. DAGRON, Naissance dune capitale, Cons-
tantinople et ses institutions de 330 à 431, Paris, No conjunto, há muito poucos estudos
1974. A Grabar, LEmpereur dans Part byzan- gerais sobre este tema. Os aspectos maríti­
tin. Recherches sur Part officiel de Pempire mos das relações entre Bizantinos e Muçul­
d’Orient, Paris, 1936, reed. Variorum Reprints, manos são estudados em A. R. Lewis, Naval
1974. power and trade in the Mediterranean AD 500-
-1100, Princeton, 1951, e em E. ElCKHOFF,
A organização do poder no islão pode Seekrieg und Seepolitik zwischen Islam und
ser abordada nas obras de A. K. S. LAMB- Abendland. Das Mittelmeer unter byzantinischer
TON, State and Govemment in Medieval Islam, und arabischer Herrschaft, Berlim, 2? ed.,
1980. S. D. GOITEIN, Studies in Islamic History 1966.
and Institutions, Leiden, 1966; e na obra
mais breve de M. WATT, Islam Political a) Sobre os problemas militares
Thought, 1958.
A. A. VASILIEV, Byzance et les Árabes, trad.
Encontrar-se-ão certos aspectos regio­ franc. refundida sob a direcção de H. Gre-
nais em: Histoire de la nation égyptienne, sob GOIRE, t. I, La Dynastie d Amorium, Bruxelas,
a direcção de G. Hanotaux, vols. rv-vi, Paris, 1935, t. II, 1, La Dynastie macédonienne, t. n,
1931-1937. G. WlET, Précis d’histoire de PÉgypte, 2, Extraits des Sources arabes, Bruxelas, 1950.
Cairo, 1932; P. HlTTI, History of Syria, inclu- E. HONIGMANN, Die Ostgrenze des byzantinis-
ding Lebanon and Palestine, Londres, 1951; chen Reiches von 363 bis 1071 nach griechis-
C. CAHEN, La Turquie pré-ottomane, Istambul- chen, arabischen, syrischen und armenischen
Paris, 1988. A. Bon, Le Péloponnèse byzantin Quellen, Bruxelas, 1935. J. Laurent, LArmé-
jusqu'en 1204, Paris, 1951; W. BARTHOLD, nie entre Byzance et PIslam depuis la conquête
Turkestan down to the Mongol invasion, arabe jusqu’en 886, Paris, 1919.

14
Introdução

b) As Cruzadas constituíram para os dois por C. CAHEN em «L’évolution sociale du


mundos um problema fundamental. O estu­ monde musulman face à celle du monde
dante pode abordá-las em K. M. Setton, chrétien jusqu’au XIIe. siècle», Cahiers de
A Histovy of the Crusades, t. I, The first hun- civilisation médiévale, 1958 e 1959.
dredyears, t. II, The later Crusades, 1189-1311, Elementos úteis de reflexão são dados
Filadélfia, 1955-1962; e S. RuNCIMAN, por M. RODINSON, Islam et capitalisme, Paris,
A History of the Crusades, 3 vols., Cambridge, 1966. Deverá ser utilizada com prudência a
1951-1955. C. CAHEN, Orient et Occident au obra póstuma de M. LOMBARD, Llslam dans
temps des Croisades, Paris, 1983, e M. Balard, sa première grandeur (VIIIe.-XT. siècles), Paris,
Les Croisades, Paris, 1988. 1971. Recorra-se de preferência às suas im­
Diversos aspectos das relações entre os portantes colectâneas de artigos: Monnaie et
dois mundos foram estudados por M. Canard, histoire dAlexandre à Mahomet, Paris, 1971;
Byzance et les musulmans du Proche-Orient, Vario- Espaces et Réseaux du haut Moyen Age, Paris,
rum Reprints, 1973. 1971. O velho livro de W. HEYD, Histoire du
commerce du Leuant au Moyen Age, 2 vols., reed.
1967, continua a ser uma obra de referência.
■ Aspectos económicos e sociais

a) Quanto ao mundo bizantino ■ Aspectos religiosos


P. Lemerle, «Esquisse pour une histoire a) O período é dominado pela organi­
agraire de Byzance: les sources et les pro- zação da Igreja Cristã e o começo do Islão.
blèmes», Revue Historique, 1958, n.9 219 e Sobre o primeiro ponto, os tomos 4 a 14
220. G. OSTROGORSKY, Pour Thistoire de la da Histoire de lÉglise, publicada sob a direc­
féodalité byzantine, Bruxelas, 1954; Quelques ção de A. FLICHE e V. Martin, são úteis,
problèmes d 'histoire de la paysannerie byzantine, ainda que muito pormenorizados. De acesso
Bruxelas, 1956; e «Recherches sur le régime mais fácil é a Nouvelle Histoire de lÉglise, t. 1,
agraire à Byzance», Cahiers de civilisation Des Origines à saint Grégoire le Grand, J.
médiévale, 1959. P. CHARANIS, Social, econo- Daniélou, H.-I. Marrou; e t. 2, Le Moyen
mic and political life in the Byzantine Empire, Age, D. Knowles, J. Obolensky; Paris, 1963-
Variorum Reprints, 1973. N. SVORONOS, -1968. O estudante pode utilizar facilmente
Etudes sur 1'organisation intérieure, la société et dois pequenos livros de O. ClÉMENT, Byzance
1'économie de 1'empire byzantin, Variorum et le Christianisme, Paris, 1964, e LEssor du
Reprints, 1973. H. AHRWEILER, Études surtes christianisme oriental, Paris, 1964. Um livro
structures administratives et sociales de Byzance, recente: A. DUCELLIER, LÉglise byzantine, entre
Variorum Reprints, 1971. T. BERTELE, Numis- pouvoir et esprit, Paris, 1990.
matique byzantine, Wetteren, 1979. M. F.
HENDY, Studies in the Byzantine Monetary b) Sobre o Islão e os seus desenvolvi­
Economy, c. 300-c. 450, Cambridge, 1985. mentos
Duas obras recentes: Hommes et Richesses dans
Le Coran, trad. R. BLACHÈRE, 3 vols., Paris,
1’empire byzantin, t. I, IVe.-VIIe. siècles, Paris,
1947-1950. I. GOLDZIHER, LeDogme et la Loi
1989, obra colectiva comportando 21 con­
de llslam, trad. ffanc.,1920. H. LAOUST, Les
tribuições sobre a população e a organização
Schismes dans llslam, Paris, 1965. L. CARDET
do espaço, as trocas, as finanças, a fiscali­
e M. Anawati, Introduction à la théologie musul-
dade e a moeda, que renovam completa­
mente estes temas; M. KAPLAN, Les Hommes mane, essai de théologie comparée, Paris, 1948.
et la Terre à Byzance du VIe. au XIe. siècle: pro- P. CRONE e M. COOK, Hagarism. Making of
priété et exploitation du sol, Paris, 1990. the Islamic World, Cambridge, 1977.
Os contactos estabelecidos entre Cristãos
b) Quanto ao mundo muçulmano, a do Oriente e Muçulmanos são apresenta­
melhor visão de conjunto é a que é dada dos por A. DUCELLIER, Le Miroir de llslam,

15
Musulmans et Chrétiens d ’0rient au Moyen Age de fontes em H. LONGUET, Introduction à la
(VIIe.-XIe. siècles), Paris, 1971, col. «Archives». numismatique byzantine, Londres, 1961; e
É ainda possível recorrer a A. T. Khoury, G. SCHLUMBERGER, Sigillographie de lEmpire
Polémique byzantine contre ITslam (VIIP,-XIIP. byzantin, Paris, 1884.
siècles), Leiden, 1972; e Les Théologiens byzan- As principais fontes da história do mundo
tins et ITslam, textes et auteurs (VIIP.-XIIP. siè­ oriental cristão estão editadas em algumas
cles), Leiden, 1969. grandes colecções. O Corpus scriptorum histo-
riae byzantinae, Bona, 1828-1897, 50 volumes;
muitas vezes chamado, por comodidade,
■ Aspectos culturais e artísticos Corpus de Bona, é actualmente objecto de uma
reedição. A Patrologie Grecque (abreviadamente
P. LEMERLE, Le Premier Humanisme byzan­ P. G.), 81 volumes, 1856-1867. Jusgraeco-roma-
tin, Paris, 1971. B. TATAKIS, La Philosophie num, ed. P. e J. ZEPOS, 8 vols., Atenas, 1931.
byzantine, Paris, 1949. P. LEMERLE, Le Style Corpus scriptorum christianorum orientalium,
byzantin, Paris, 1943. A. Grabar, La Peinture Paris, Roma, em curso desde 1903. Recueildes
byzantine, Genebra, 1953. C. DELVOYE, LArt historiens des croisades. Documents arméniens,
byzantin, Paris, 1967. H. STERN, LArt byzan­ grecs. Historiens occidentaux. Historiens orien-
tin, Paris, 1966. A. GRABAR, Le Premier Art taux. Lois, 16 vols., Paris, 1841-1906.
chrétien (200-395), e LAge d’or de Justinien, Ao lado destas mais antigas, estão em curso
Paris, 1966. C. PELLAT, Langue et Littérature edições recentes, como as Actes de l Alhos.
arabes, Paris, 1970. H. CORBIN, Histoire de la Algumas comportam uma tradução em fran­
philosophie islamique, Paris, 1964. K. A. C. CRES- cês, o que as torna mais úteis para o estu­
WELL, Early Muslim. Architecture, 2 vols., Oxford, dante. E o caso da «Collection byzantine»,
1932, 1940. G. MarçaíS, LArt musulman, publicada sob a direcção da Association
Paris, 1962. K. OTTO-DORN, LArt de ITslam, Guillaume Budé, Paris, e da colecção «Sources
Paris, 1967. R. ETTINGHAUSEN, La Peinture Chrétiennes», Paris, Editions du Cerf.
arabe, Genebra, 1962. M. Bernus-Taylor,
LArt en terres dTslam, Paris, 1988. B. Gray, Há muito poucas colectâneas de textos.
La Peinture persane, Genebra, 1961. Citar-se-ão: E. BARKER, Social and Political
Thought in Byzantium from Justinian I to the
last Palaeologus, Oxford, 1957. A. DUCEL-
■ Fontes LIER, Le miroir..., citado acima. A. A. VASI-
LIEV, Byzance et les Arabes..., também já citado.
a) Quanto ao mundo oriental cristão O. J. GeanakoploS, Byzantine Church, Sodety
and Civilization through contemporary eyes,
Uma rápida apresentação das fontes é Chicago, 1984. Sobre a queda de Constan­
feita por K. KRUMBACHER, Geschichte der byzan- tinopla, ver os textos reunidos por A. Per-
tinischen Literatur (527-1453), Munique, 1897; TUSI e col., La caduta di Costantinopoli, 3 vols.,
por H. G. BECK, Kirche und theologische Literatur Florença-Bolonha, 1976-1984.
im byzantinischen Reich, Munique, 1959; e por
G. MORAVCSIK, Byzantinoturdca, t. 1, Die byzan­ b) Quanto ao mundo muçulmano
tinischen Quellen der Geschichte der Türkvolker,
t. 2, Sprachreste der Türkvolker in den byzanti­ Sobre as fontes árabes, o estudante poderá
nischen Quellen, Berlim, 2.- ed., 1958. orientar-se pelas indicações fornecidas por
C. CAHEN, Introduction..., supracitada.
A obra supracitada de G. OSTROGORSKY,
Poderá ler, com proveito, os extractos
Histoire de TEtat byzantin, comporta, em cada
traduzidos por J. SAUVAGET, Historiens ara­
capítulo, todas as indicações úteis para os
bes..., Paris, 1946, reed. 1988, bem como a
diferentes períodos estudados. tradução do grande cronista Al-Tabari (na
O estudante encontrará uma iniciação realidade, tradução da versão persa), publi­
mais ou menos aprofundada em certos tipos cada em Paris, Sindbad, 1980-1984. ’.

16
Introdução

2. Exemplo de explicação de texto

-------------------- A proclamação do califa Râdi --------------------------------


Logo que Qâhir foi destituído, na quarta-feira, 6 Jumadá 1322 (24 de Abril de 934), nesse
mesmo dia [...] os Hujaritas e os Sâjitas fizeram sair do seu retiro Mohamed b. Muqtadir billâh
Abu-VAbbâs e sua mãe [...] Os soldados colocaram-no no trono e proclamaram-no califa do seu
próprio movimento com total unanimidade e sem que aquele tivesse conspirado com eles a tal res­
peito [...]. Nesse dia o príncipe [...], antes de adoptar o título de Râdi billâh, enviou-me
uma mensagem em que me convidava a fazer-lhe chegar uma lista de nomes susceptíveis de serem
adoptados como epítetos e qualificativos do califa [...]. Remeti-lhe um bilhete onde tinha inscrito
trinta nomes [...]. O nome de Râdi billâh (Que está contente com Deus) tomou-se oficial e a pres­
tação de juramento prosseguiu durante todo o resto da jornada.
O califa mandou imediatamente procurar Abul-hassan Ali b. 'Isâ, para que tomasse a direc­
ção do governo. Propôs o vizirado a Ali, mas este escusou-se, pretextando a sua idade avançada
e fraqueza física, e sugeriu a nomeação como vizir de seu irmão Abdarrahmân, que teria o título
e as insígnias da função, enquanto ele próprio dirigiria os negócios do império, teria autoridade
sobre o pessoal administrativo e o encargo de arrecadar os impostos [...]. Foi assim até ao momento
em que [...] foi recebida uma carta de Abu Ali b. Muqla, garantindo-lhe que encontraria meios
de lhe fornecer imediatamente 300 000 dinares para distribuir às tropas em comemoração da
subida ao trono [...]. Râdi convocou imediatamente Ali b. 'Isâ e deu-lha a ler. «O Emir dos
Crentes, disse Ali, tem necessidade, neste momento, de um homem rico que lhe possa fornecer ime­
diatamente esta soma. Eu nem sequer uma parte dela lhe poderia dar. E, pois, justo, se este homem
tem esse dinheiro à sua disposição, que Vossa Majestade lhe dê o poder e o faça seu ministro.»
Mohamed ben Yahyâ AL-SULI, Akhbâr ar-Râdi billâh, tradução a partir da trad. fran­
cesa de Marius CANARD, Argel, 1946, pp. 49-54.

Introdução dúvida, cerca de 260 da Hégira (873), pro­


vavelmente em Baçorá, no Baixo Iraque,
Natureza do documento. O texto, datado onde vive a sua família e para onde se reti­
exactamente de 24 de Abril de 934, é rará em 334 da Hégira1 (945). Homem de
extraído de uma obra de tipo literário que grande cultura, cuja erudição se estende a
se pode definir como as memórias de um quase todos os domínios, foi preceptor do
cortesão que conheceu os reinados de qua­ futuro califa Râdi e de seu irmão Hârún.
tro califas - Muqtadir, Qâhir, Râdi e
Muttaqi. O conjunto está significativamente Análise
agrupado sob o título de «Kitâb al-awrâq»
(«Livro das Folhas»). Pode desde já dedu­ Em 24 de Abril de 934, os guardas huja­
zir-se daqui o principal defeito de uma tal ritas e sâjitas destituem Qâhir e fazem subir
compilação - parcialidade e estreiteza de ao trono Mohamed b. Muqtadir. De ime­
vistas -, mas também a sua inegável quali­ diato, o príncipe pede a Suli uma lista de
dade - testemunho ocular e preciso. cognomes e escolhe o de Râdi billâh. Depois
confia o vizirado a Ali b. 'Isâ, que aceitara
O autor. Abú Bakr Mohamed al-Súli é o 1 A Hégira (cf. pp. 72-73) é o ponto de partida do
descendente de um príncipe turco do Jurjân,
calendário muçulmano. Para estabelecer a concor­
ao sul do Cáspio; descende, por outro lado, dância dos calendários muçulmano e cristão, cfr. as
de um missionário abássida. Nasceu, sem obras de V. Grumel e H. G. Cattenoz, citadas p. 12.

17
as funções com a condição de o título ser califa após a morte daquele, em 927. Depois
entregue a seu irmão Abdarrahmân. Acaba, de terem ajudado Qâhir a combater revol­
porém, por ser substituído por Ibn Muqla, tosos, tinha-lhes sido prometido um
que entretanto prometera pagar os 500 000 aumento de soldo que posteriormente lhes
dinares exigidos pelas tropas por ocasião foi recusado. E de notar a atmosfera de des­
do levantamento. confiança que reina no palácio: o novo califa
sai do «seu retiro», o que quer dizer que
Contexto histórico vivia com a família em residência vigiada -
destino comum de todos os príncipes abás-
Em 934 o califado abássida está em plena sidas, émulos potenciais do soberano rei­
desintegração: o Irão e a Transoxiana estão nante.
nas mãos dos Samânidas desde o começo
do século, enquanto a Síria e a Alta Meso- 2. A proclamação de um califa. Na apa­
potâmia são dominadas pelos Hamdanitas rência, só os militares instituem o califa, a
xiitas e o Egipto, que em 905 voltara a ficar quem instalam no trono e proclamam sobe­
sob a sua autoridade directa, recuperará a rano, sem participação da Corte nem dos
autonomia a partir de 969, sob o califado funcionários civis. No entanto, o golpe de
rival dos Fatimidas. O califa, que portanto força dissimula-se por trás do respeito das
só é senhor do Iraque, vê mesmo aqui o regras formais de acesso ao trono. Primeiro,
seu poder contestado pelo exército - com­ o legitimismo abássida está tão solidamente
posto sobretudo de estrangeiros, geralmente ancorado que ninguém imagina procurar
turcos, e contra o qual o califa Qâhir ten­ um candidato fora da família reinante: Râdi
tara em vão reagir ao mesmo tempo que é o filho do califa Muqtadir (908-932), de
os rendeiros do imposto, como Ibn Râ’ik quem Qâhir (932-934) era irmão. Por outro
ou a poderosa família dos Baridi, entram lado - como manda a tradição - a procla­
em dissidência, agravando ainda mais o mação faz-se em dois tempos: a homena­
vazio endémico do Tesouro. Estamos nas gem prestada pelo exército corresponde à
vésperas da aparição dos Grandes Emires bay ’a privada, teoricamente prestada pelos
(Emir al-umarâ’), que passarão a ter o cali­ «eleitores» investidos no «poder de ligar e
fado sob tutela. de desligar», vindo em seguida uma longa
sessão de prestação de juramento, ou bay’a
Comentário do texto pública, durante a qual todos os membros
do governo central e da corte desfilam
Três elementos essenciais devem ser perante o novo soberano. Sempre em vir­
salientados: tude da tradição, a primeira cerimónia basta
para instituir o califa: o termo «prestação
1. O desenvolvimento de uma revolta de juramento» mostra claramente que, uma
palaciana. Trata-se de uma prova de força: vez proclamado pelo exército, o soberano
o califa Qâhir é violentamente destituído está na plena posse do poder e tem, por­
(quando um califa não pode deixar de rei­ tanto, a prerrogativa de exigir obediência.
nar, em teoria, senão por morte ou por Finalmente, a escolha do título de reinado
efeito da própria abdicação), e é-o pela sol­ é importante: desde o primeiro terço do
dadesca unânime, irritada pela sua política séc. IX que este «cognome» (laqab) subli­
de restauração do poder supremo. Entre nha a relação particular que o califa man­
esses soldados, dois corpos desempenham tém com Deus, no quadro de um reforço
um papel determinante: os Hujaritas (hujar- sempre crescente da teocracia: o sentido
riya), escravos guardas do serviço de segu­ do nome Râdi billâh (Que está contente
rança, alojados em locais especiais, sob a com Deus), que é de bom augúrio, permite
autoridade do Grande Eunuco, e os Sâjitas, pois esperar um reinado feliz. O facto de
antigos soldados da quadrilha de Yüsuf b. um mesmo laqab não poder ser utilizado
Abissâj, que se passaram para o serviço do por mais de um califa explica o cuidado

18
Introdução

que é posto na sua escolha, envolvendo con­ nara-se, desde finais do séc. VIII, uma con­
sulta ao erudito Súlí. dição prévia à tomada efectiva do poder.
Com o Tesouro vazio, os califas vêem-se
3. Constituição do governo. Uma vez pois reduzidos, como mostra o texto, a esco­
proclamado, o califa nomeia um vizir que lher os seus ministros mais em função da
vai, de facto, ser encarregado da realidade riqueza do que da competência, o que con­
do poder: política geral («negócios do impé­ tribui para desprestigiar ainda mais a fun­
rio»), autoridade administrativa suprema e ção viziral.
mão nas Finanças permitem-lhe efectiva-
mente controlar tudo. O candidato de Râdi Conclusão
é um homem experiente, Ali b. ‘Isâ b. Dâ’úd
b. al-Jarrâh, iraquiano de origem persa, que Sublinhar o interesse evidente de um tes­
foi várias vezes vizir, mas que, em 934, após temunho ocular que nos permite captar, ao
ter caído em desgraça durante o reinado vivo, a profunda decadência da instituição
de Qâhir, já tem 77 anos. O seu competi­ califal. Joguete das intrigas da corte e das
dor, o calígrafo e secretário Ibn Muqla, é necessidades financeiras, o califado achava-
seu inimigo de longa data, tendo partici­ -se sobretudo confrontado com uma mili­
pado em numerosas conspirações: inicial­ tarização cada vez mais incontrolável. Dentro
mente ministro de Qâhir, traiu-o em seguida em breve, um califa fantoche, reduzido ape­
e apoiou os Sâjitas para provocar a sua nas às funções religiosas e representativas,
queda. Se Alí b. ‘Isâ recusa o título de vizir, cederá a realidade do poder a um sultão
é porque este cargo, que aparentemente todo-poderoso, de essência militar.
confere o poder absoluto, se tornara muito
frágil no séc. X: tal como o próprio califa, Referência bibliográfica
o vizir está então nas mãos do exército de
quem pode recear tudo. Por outro lado, os Consultar a excelente tradução de M.
soldados exigem, em cada subida ao trono, CANARD, citada, a qual inclui uma intro­
uma enorme distribuição de dinheiro (mâl dução e notas abundantes. Ver também a
al-bay’a ou «bens da bay’a»): o que outrora Encyclopédie de ITslam e D. SOURDEL, Le Vizirat
era um gesto de boa vontade do califa tor­ à Vépoque abbâsside (citado p. 160).

3. Um documento arqueológico
Santa Sofia de Constantinopla

Apresentação do monumento 6 m. de profundidade e o interior (eso-


nártice), com 10 m. A cúpula é, evidente­
Plano e elevação da igreja catedral de mente, o fenómeno principal, com os seus
Constantinopla, situada a oriente da cidade, 61 m. de altura sob a abóbada: sustentada
abrindo sobre o Augusteu, praça para a qual por quatro pilares, é contrafortada por duas
dão igualmente o Senado, o Hipódromo e semi-cúpulas, cada uma das quais assen­
o Grande Palácio e donde parte a princi­ tando sobre dois pilares secundários.
pal artéria da cidade, a Mêsé.
A igreja é precedida de um átrio (pátio Especificação
rodeado por pórticos); mede 71 m. de norte
a sul (em largura) e 77 m. de oeste a leste 1. A história do edifício. A primeira basí­
(comprimento); a nave tem 30 m. de largo lica, construída em 360 e remodelada em
e cada um dos colaterais cerca de 15 m. 415, foi destruída por um incêndio em
A igreja é ainda antecedida de dois nárti- Janeiro de 532, aquando da sedição de Nika.
ces - o nártice exterior (exonártice), com Justiniano decide construir uma grande

19
Santa Sofia de Constantinopla

Em cima: corte transversal


Em baixo: corte longitudinal
Introdução

basílica de cúpula; não regateando meios, A basílica, edifício oblongo, não é o


confia a responsabilidade da obra não a único tipo de plano das igrejas paleocris-
arquitectos, mas a dois cientistas, o geó- tãs. Algumas, nomeadamente as martiria,
metra Antémio de Trales e o físico Isidoro adoptam o plano central (rotunda, octó­
de Mileto. O problema era, com efeito, gono) dos mausoléus. Outras são edifica­
essencialmente matemático: calcular os das sobre um plano em cruz livre (cujos
coeficientes de segurança que permitiriam braços se revelam no exterior), tanto mais
suportar uma cúpula ascendendo a 61 m. quanto o culto da Cruz se difunde: é o caso
de altura sobre um quadrado de 30 m. de da igreja construída em torno do túmulo
lado, garantindo ao mesmo tempo uma ilu­ de São João, em Efeso. Já atestado nos mau­
minação óptima a partir do cimo. soléus pagãos do séc. III, o plano em cruz
A igreja é consagrada em 27 de inscrita (num quadrado), ou cruz «grega»,
Dezembro de 537; todavia, a cúpula, aba­ encontra-se na Palestina desde finais do
lada pelo tremor de terra de 6 de Dezembro séc. V. A cúpula ainda não tinha aparecido.
de 557, abate-se em 7 de Maio de 558; é
reconstruída com a mesma altura, mas sobre Explicação
uma base ligeiramente alargada, por Isidoro
de Mileto, e novamente inaugurada em 26 1. A cúpula, a) Significação: em vez de
de Dezembro de 562. Apesar de alguns olhar para a abside, quem entra em Santa
danos parciais, ela resiste aos numerosos Sofia tem a vista imediatamente atraída pela
tremores de terra da região graças à leveza cúpula, imagem da esfera celeste. A sensa­
da construção, unicamente de tijolos. ção mistura o esmagamento que decorre
da fmitude humana e a elevação progres­
2. Lugar do edifício na história da arqui- siva do olhar e da alma para o Reino de
tectura das igrejas bizantinas. Após a rápida Deus. Além disso, a iluminação vem do alto:
cristianização do Oriente, este reveste-se de das 40 janelas que rasgam a base da cúpula
um manto rosado (cor do tijolo) de igre­ e das janelas abertas nos muros altos dos
jas: os instrumentos para esse imenso esforço arcos formeiros2 que sustentam o quadrado
de construção de templos foram forneci­ da cúpula a norte e a sul. Vinda do cimo,
dos pela arquitectura do Império Romano. a claridade é ao mesmo tempo um símbolo
Efectivamente, a igreja é, antes de tudo, um da luz celeste e um convite a olhar para o
lugar de assembleia (ekklesia), e adopta o Céu.
plano do edifício romano previsto para esse b) Consequências arquitectónicas'. a cúpula
efeito, a basílica, com as suas três ou cinco é pesada e circular, espalhando o seu peso
naves separadas por pilares ou colunas, mui­ uniformemente em todas as direcções, inclu­
tas vezes terminadas por absides. O cristia­ sive a leste ou a oeste onde não se previa
nismo orienta a basílica para leste (o Sol que a basílica tivesse paredes de sustenta­
nascente); a abside é dotada de uma ção. Dado que não se aguentaria sobre
abóbada em nicho1 *, símbolo (evidentemente madeiramento, obriga a abobadar a basí­
parcial) da abóbada celeste; é esta abside, lica. Os Bizantinos alcançaram uma grande
precedida pelo altar, situado à entrada da perícia na técnica das abóbadas, construí­
nave, que atrai o olhar de quem entra na das com eficácia e leveza com tijolos dis­
igreja. postos circularmente de modo progressivo,
A partir do séc. IV, os colaterais são após a prévia armação dos arcos de volta
dominados por tribunas, enquanto a igreja inteira. Quanto à cúpula, também era sim­
é precedida de um nártice, de onde os cate- ples: sobrepÓem-se as camadas horizontais
cúmenos e os penitentes seguiam os ofí­
cios. 2 Arco formeiro ou de forma: arco situado na linha

dos pés-direitos de uma abóbada, paralelo ao seu eixo


1 Abóbada em forma de quarto de esfera, que se e esteando-a inferiormente, transmitindo o respectivo
encontra geralmente na cabeceira de uma abside. peso às paredes exteriores. (N. T.)

21
e circulares de tijolos em voltas leves e suces­ cúpulas anexas assentam muitas vezes em
sivas até ao cume, que é fechado com um simples pilares: a circulação interior é muito
quadrado de tijolos dispostos de canto. fácil e o espaço interno afigura-se único e
Mesmo de tijolo, a cúpula suscita pro­ imenso, com um volume central incompa­
blemas de peso. Para os resolver, o mais rável.
simples é centrar ao máximo a cúpula sobre
esse edifício oblongo. Por isso, Santa Sofia 2. Arquitectura e vida religiosa, d) Situação
é quase tão larga quanto comprida. Daí a inicial: a arquitectura corresponde à distri­
introdução do atractivo de um plano buição dos papéis povo-clero e ao desenro­
radiante sobreposto ao plano basilical e lar dos ofícios. Numa basílica, a nave cen­
que, à vista, é de longe o que mais se impõe. tral está encerrada numa espécie de n
Primeiro, a nave alarga-se à dimensão deitado, onde a circulação se faz de modo
da cúpula e os colaterais têm tendência contínuo do colateral norte ao nártice e ao
para se retrair; a vontade de dispor de gran­ colateral sul, ou inversamente; depara-se
des colaterais em Santa Sofia, para acolher com a mesma coisa no andar das tribunas.
um grande número de fiéis, obrigou a edi­ O lugar de cada um está claramente deter­
ficar as duas semicúpulas em contraforta- minado: o clero no coro e em tomo do altar;
gem. Depois, sendo a cúpula redonda e os homens cristãos plenamente praticantes
estando dispostos em quadrado os pilares na nave central; as mulheres, os catecúme-
destinados a suportar o essencial do seu nos e os penitentes no nártice e nos cola­
peso, era necessário passar do redondo ao terais. O clero, em procissão, atravessa a
quadrado, o que foi aqui efectuado pelo multidão dos fiéis; no começo do ofício, está
triângulo esférico ou pendente, e não pela agrupado na abside do colateral sul, no dia-
construção de um quarto de cúpula no cónico; faz o trajecto dos colaterais para ir
ângulo, ou trompa de ângulo} no caso das buscar o Sacramento à abside norte (pro-
grandes cúpulas é sempre esta a solução thésis), após o que volta à nave central, que
adoptada. O peso tangencial distribuído percorre inteiramente, para se dirigir ao
pelos quatro pontos cardeais recai assim altar. E assim, pelo menos, nos dias em que
nos quatro pilares noroeste, sudoeste, o Imperador e a Corte não estão presentes.
sudeste e nordeste.
O peso suportado pelos pilares explica b) A evolução da basílica de cúpula: assiste-
a sua grande espessura; só por si, eles cons­ -se a um duplo fenómeno. Primeiro, o altar,
tituem grandes edifícios. A habilidade dos que se vira projectado para longe na nave,
arquitectos consistiu - nomeadamente ao passa a situar-se à entrada da abside, no
entalhá-los, ao perfurá-los de arcadas e ao intervalo das traves da semicúpula oriental.
criar dentro deles verdadeiros pequenos A prothésis e o diacónico aproximam-se da
compartimentos - em torná-los quase invi­ abside central e comunicam directamente
síveis do interior da basílica; o mesmo com o lugar reservado ao clero da catedral.
quanto aos pilares, mais pequenos, que Assim, os elementos do culto, locais reser­
suportam as semicúpulas. Deste modo, ainda vados aos clérigos, fecham-se um perto do
que os arcos formeiros, que contrafortam outro, o que assinala uma tendência para a
a cúpula na sua base nos quatro cantos car­ separação radical e para o distanciamento
deais, sejam suficientemente grandes ao do clero e dos leigos. Este fenómeno é acen­
ponto de formarem verdadeiras abóbadas tuado pelo aparecimento dessa espécie de
secundárias, as suas paredes verticais pude­ antecoro, que é o espaço suplementar entre
ram ser largamente rasgadas com janelas. a abside e as traves da cúpula. O corte é
Finalmente, somos tocados pela relativa reforçado pela sobrelevação do coro, e
leveza, para não dizer finura, das paredes, depois pelo aparecimento de um cortinado
tendo em vista a massa que essas paredes estendido entre o coro e a nave, que em
têm de sustentar no plano da elevação. No breve se tornará numa verdadeira parede
solo, as aberturas são largas: abóbadas e com designação própria: a iconostase.

22
Introdução

O espaço entre as traves da cúpula torna- permanece na igreja, sob a cúpula, onde
-se numa antecâmara do santuário, para se situa o seu lugar de representante de
mostrar aos fiéis os objectos sagrados. Aí, o Deus. As suas relações com o clero são igual­
reino de Deus revela-se sob duas formas: a mente o símbolo do acordo perfeito, onto­
cúpula, que é a imagem do Reino, e o corpo lógico, entre o representante de Deus e os
de Cristo através do Santo Sacramento. Na servidores deste que são os clérigos.
basílica de cúpula, o santuário está unifi­ Santa Sofia é assim o símbolo da inte-
cado, mas nunca se aproxima da massa de racção entre o Imperador e o clero. As hie­
fiéis; torna-se num perímetro fechado onde rarquias secular e eclesiástica são inunda­
os padres rodeiam o altar. das, conjuntamente, pela luz divina que
vem da cúpula, do centro do céu, e se espa­
3. A igreja imperial, a) A cerimónia: Santa lha sobre o clero, o patriarca e o Imperador.
Sofia é o lugar onde se efectua o encontro A organização espacial, a luz e a cor (a dos
entre o Imperador e o clero da catedral, a mosaicos) fazem parte de uma mesma con­
começar pelo patriarca. Nos dias em que o cepção ideológica, compreensível para
Imperador participa na cerimónia, o povo todos: as relações entre o reino dos Céus e
é relegado para os colaterais e o nártice. o reino da Terra.
O encontro entre o Imperador e o clero
dá-se nos diferentes momentos da cerimó­ Conclusão
nia. Os dois poderes entram em conjunto;
o Imperador, seguido da Corte, ocupa o Ao construir Santa Sofia, Justiniano
seu lugar na nave, espaço imperial; o clero tinha um primeiro objectivo, expressa­
instala-se no seu, o coro. O clero aparece, mente manifestado: erguer a Deus um
seguidamente, para trazer o Sacramento, templo maior e mais belo do que o de
para a leitura da Escritura, para o sermão Salomão. Adoptando um modelo arqui-
e, finalmente, para dar a comunhão ao tectónico, o da basílica de cúpula, que vai
Imperador. Os fiéis não vêem grande coisa, impor-se, durante algum tempo, na cons­
tanto mais quanto o Sacrifício se pratica trução dos edifícios de grande dimensão
fora da sua vista, tal como da do Imperador. (cf. Santa Sofia de Tessalonica), o Impe­
O importante é a simbólica. rador desencadeia uma dupla evolução:
arquitectónica, primeiro, por uma cen-
b) A simbólica. O altar está, portanto, invi­ tragem do edifício que redundará, três
sível; a missa é um tal mistério que o povo séculos mais tarde, no triunfo da cruz
não vê senão o seu efeito: a comunhão. grega; eclesiológica, depois, acentuando a
Assim se traduz na arquitectura a concep­ distância entre o clero e os fiéis.
ção simbólica do clero, separado, pela sua
condição, do resto dos fiéis: só o clero e o Referências bibliográficas
Imperador são cristãos de corpo inteiro.
O Imperador tem o direito de entrar no R. KrautHEIMER, Early Christian and
santuário. Mas, na maior parte do tempo, Byzantine Architecture, Londres, 1975.

23
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EMERGENCIA
DO PRÓXIMO ORIENTE
MEDIEVAL

Livro primeiro

Capítulo 1 Eixos de relevo e grandes itinerários

Capítulo 2 O nascimento do Império Bizantino:


de Constantino ajustiniano (330-565)

Capítulo 3 O Império Persa sassânida (sécs. rv-vii)

Capítulo 4 Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. IV-VI)

Capítulo 5 Invasões e mudanças de dominação


(finais sécs. vi-vu)

Capítulo 6 O Império Bizantino da morte de Justiniano


à subida ao trono de Leão III (565-717)

Capítulo 7 O Império Árabe dos Omíadas (661-750)


1
Eixos de relevo
e grandes itinerários

Entre o mundo mediterrânico e o mundo oriental, o Próximo Oriente medieval interpõe um con­
junto geográfico complexo, dotado pela natureza de eixos de circulação que o unem às suas margens
e aos mundos periféricos. Por esses grandes itinerários naturais, os impérios sedentários bizantino e
sassânida, herdeiros dos velhos mundos romano e aqueménida, viram chegar populações até então
ignoradas ou mal conhecidas - turco-mongóis, eslavas, árabes -, cuja instalação duradoura modifi­
cou a organização do espaço.

Este capítulo só pode ser lido com recurso ■ Balcãs


aos mapas incluídos no final deste volume,
e nomeadamente os mapas p. 381;
p. 382 A; p. 383 B. Através dos Balcãs, as rotas sofreram a influência de
Constantinopla e dos seus laços históricos com Roma e o
Ocidente. A península abre-se largamente ao norte com
a vasta planície do Danúbio: pela Panónia, a oeste, são
fáceis as relações com a Europa Central, enquanto, a leste,
o mundo das estepes é imediatamente acessível. A sul do
Danúbio, os Cárpatos curvam-se para formar o Balcã; a
oeste, os Alpes prolongam-se pela costa do mar Adriático
através dos Alpes Dináricos (Dalmácia), afastam-se para o
interior com as montanhas da Albânia que protegem a
Durazzo = Dyrrachium (em latim) baixa planície litoral de Durazzo e expandem-se através
Dyrrachion (em grego) da Grécia peninsular: a cordilheira do Pindo prolonga-se
Negroponte = Eubeia pelo mar através de uma série de ilhas (Negroponte) e
de arquipélagos (Espórades e Cidades). O istmo de Corinto
liga à Grécia o velho maciço do Peloponeso. Alpes e
Cárpatos deslocaram as terras altas centrais da Macedónia:
o Morava e o Vardar desenham aí um sulco natural norte-
-sul, enquanto o Maritsá drena a planície da Trácia entre
o Balcã e o Ródope.
A rota terrestre mais curta entre Constantinopla, à
saída da Trácia, e a costa adriática é a Via Egnatia, que,
por Tessalonica e Ocrída, abre em Durazzo as portas de
Itália. A rota de Constantinopla ao Danúbio é a principal
via continental para o Ocidente: atravessa a Trácia por
Andrinopla = Edirna Andrinopla, depois por Sérdica e Naisso, atingindo Sin­
Sérdica = Sófia gidunum no Danúbio. Nela se enxertam vias secundárias.
Naisso = Nis
Singidunum = Belgrado No entanto, é o sulco Morava-Vardar, entre o Danúbio
e Tessalonica, que forma o eixo norte-sul mais impor­
tante.

26
Eixos de relevo e grandes itinerários

Ásia Menor ■

Para lá dos estreitos começa a Ásia Menor, cujo ele­


vado planalto estépico interior se opõe às cordilheiras que
o contornam. A parte ocidental, fragmentada em cadeias
separadas por vales, orienta-se para o mar Egeu, onde uma
série de ilhas a prolongam. O planalto da Anatólia, a 1000-
-1500 m, estende-se desolado e seco, com zonas de vida
junto aos rios - o Sangário com Dorileu, e sobretudo o Sangário = Sakarya
Hális com Cesareia e Sebastia - ou em bacias fechadas: Hális = Kizil Irmak
Cesareia = Kayseri
Icónio. A cadeia pôntica bordeja-o a norte. Para leste, a Sebastia = Sivas
sua travessia torna-se cada vez mais difícil e mostra-se Icónio = Konya
pouco propícia à via marítima, salvo em Sinope e
Trebizonda. A sul, o sistema do Tauro começa por isolar
o planalto do mar, depois inflecte para o interior: é a bar­
reira natural na qual esbarrará a expansão árabe, pois só
se deixa atravessar por estreitas passagens que dão acesso
à planície litoral da Cilicia, ela mesma protegida a sul pelo
Amano. O Tauro também se pode contornar mais a norte,
mas aí já ele se desdobra, aproximando-se das cadeias pôn-
ticas e, a partir do Eufrates, as duas cordilheiras confun­
dem-se com o planalto central para formar o alto maciço
arménio.
A rede viária, complexa no pormenor, organiza-se em
torno de alguns grandes eixos cuja confluência, na região
de Calcedónia, aumenta o valor estratégico de Cons­
tantinopla: via central por Dorileu, Ancira e Sebastia, em Ancira = Ancara
direcção ao Alto Eufrates; via egeia, que segue com difi­
culdade o litoral até atingir Ataleia, porto que dá acesso Ataleia = Antália
a Chipre e à Síria; via transversal por Dorileu e Icónio até
à Cilicia e à Síria; Icónio está, por outro lado, ligado a
Ataleia e, por Cesareia, a Sebastia e Melitena. O único Melitena = Malátia
grande eixo norte-sul é o que deixa ver o Eufrates a leste:
a partir de Trebizonda, a estrada passa por Teodosiópolis, Teodosiópolis = Erzerum
Melitena e depois por Antioquia e a Síria, ou então por
Edessa e a Mesopotâmia. Edessa = Urfa

Arménia ■

Prolongando a Anatólia, a Arménia forma uma mãe-


-d’água dominada a nordeste pela Geórgia, drenada em
parte pelo Kur, e a sudoeste pela Mesopotâmia do Tigre
e do Eufrates. O planalto interior, difícil de controlar, é
atravessado por um dorsal que separa da bacia de Van as
regiões de Ani, Kars, Dvin e Artáxata; por aí passa o grande Dvin e Artáxata situam-se na
eixo que, pelo sulco Alto Eufrates-Araxes, permite alcan­ região da actual Erevan.
çar, a partir da Ásia Menor, o mundo georgiano com
Tiflis e o mundo iraniano com Tabriz. A Arménia tem, Tiflis = Tbilissi
assim, uma posição estratégica.

27
Para o Norte, destaca-se uma cadeia que corta a Geórgia
em duas, para se juntar ao Cáucaso, barreira natural que
apenas cede ao longo do Cáspio, onde a planície de
Derbend dá acesso às estepes do Norte.

■ Irão

Do maciço arménio destacam-se para sul duas cadeias


que, divergindo, delimitam e enquadram o planalto ira­
niano. A norte, para lá da região de transição do Azerbaijão,
o Elburz (5678 m) separa o Irão da depressão do Cáspio;
depois, a cadeia perde em altura e inflecte para sudeste
nas montanhas e planaltos do Jurassã, com férteis bacias
longitudinais; a seguir, erguem-se os elevados planaltos
de Cabul, que se ligam ao Hindu-Kuch e ao Pamir.
A oeste, o Zagros separa o Irão da Mesopotâmia.
Espesso, cortado por desfiladeiros e vales, prolonga-se pri­
meiro pelo Fars, sem abertura para o Golfo Pérsico que
margina, e depois por um conjunto de cadeias que, para
lá de Gandhara, se liga ao Hindu-Kuch: assim se fecha o
quadro montanhoso que individualiza o mundo iraniano.
O centro, região alta e maciça, por vezes cortada por dor­
sais (Kirman) ou por bacias (Sistão), é um vasto deserto
estépico. As cidades encontram-se na periferia: Hamadan,
Rey: cidade situada não lon­ a partir da qual se atinge Bagdade através do Zagros, Rey
ge da actual Teerão. entre Tabriz e as cidades do Jurassã - Nishapur e Merv
na rota da Ásia Central, e Harat na da índia, por Cabul.

■ Ásia Central

A norte do mundo iraniano, a Ásia Central começa


por ser uma zona de depressão, ocupada pelo mar de Arai
Oxo = Amudária e atravessada pelo Oxo e o Iaxartes. E a Transoxiana
Iaxartes = Sirdária medieval, chave das comunicações entre os impérios seden­
tários do Oeste e o mundo chinês. No curso inferior do
Oxo, o Quaresma tira a sua fertilidade da irrigação, que
faz também a prosperidade da Bactriana, no contacto do
Balkh = Báctria Jurassã com Balkh; da Sogdiana, no centro, com Samar-
canda e Bucara; da Fergana, no Iaxartes, com Tachkent.
Estas regiões, com fronteiras variáveis, foram disputadas
pelos sucessivos senhores do planalto iraniano às popu­
lações nômadas vindas da Alta Ásia através das passagens
do Pamir, que delas fizeram uma parte do Turquestão.

■ Extremo Oriente, Alta Ásia


A bacia do Tarim, ou Sin
Kiang actual, forma o Tur-
questão chinês. Para além do Pamir, a bacia do Tarim é uma depres­
são desértica entre o Tibete, ao sul, e os Tian-Chan, ao

28
Eixos de relevo e grandes itinerários

norte, que protegem, a seus pés, uma cadeia de oásis,


etapas para o rio Amarelo e a China. Mas a nordeste
dos Tian-Chan começa outro universo: cordilheira do
Altai, regiões montanhosas e ervosas do alto Jenissei,
bacia do Selenga e do Orkhon rica em florestas e pas­
tagens, estepes áridas do deserto de Góbi, que prolonga,
sem interrupção, a bacia do Tarim e desemboca a sul
da grande curva do rio Amarelo... Tal é o país de ori­
gem dos povos nômadas turco-mongóis, a actual Mon­ Povos turco-mongóis: os Tur­
gólia. Lá se faziam e desfaziam confederações de tribos cos (aparecidos claramente na
História no séc. Vi) e os Mon-
ameaçadoras para o mundo chinês, apesar da Grande góis (surgidos no séc. xm),
Muralha, e para a rota do Tarim. Entre Tian-Chan e o aparentados pelas suas línguas
Altai, a passagem de Zungária abria-lhes a rota das de origem altaica e certos tra­
estepes. ços étnicos, são difíceis de dis­
tinguir no seio das confede­
rações.

Estepes eurasiáticas e mundo russo ■

A norte do lago Balcach, do mar de Arai e do Cáspio,


uma faixa de estepes ervosas estende-se até ao Danúbio e
aos Cárpatos. A norte do Ponto Euxino, ela corta os gran­
des eixos norte-sul, desenhados pelos rios russos, Volga e
Kama, Dniepre. A sua subida através da floresta permite,
para além da linha de divisão das águas, o encontro com
o Lovat, o Volkhov e o Dvina, as vias de acesso ao mundo
báltico: é o itinerário que, em sentido inverso, foi seguido
pelos Varegues.

Arábia ■

A Península Arábica inscreve entre o mar Vermelho,


o oceano índico e o golfo Pérsico uma vasta meseta desér­
tica, cercada de altas montanhas. No centro, as terras
altas do Nedjed acolhem raras chuvas, aproveitadas em
ribeiros ou uadis transversais (Wadi Rumma) que cons­
tituem um eixo possível de circulação leste-oeste. Mas
elas são envolvidas por duas zonas deprimidas de «ergs»,
totalmente desérticos e inóspitos: o Rub al-Khali a sudeste
e, a norte, o Nefud, que prolonga o deserto da Síria. Esta
meseta é limitada a oeste pelo Hejaz, barreira monta­
nhosa desolada ao longo do mar Vermelho, que se eleva
e alarga a sul, no Iémen e no Hadramaute, onde caem,
no Estio, as chuvas da monção. Oásis balizam o reverso
interior das montanhas: Nadjran, Taif, Meca, Medina,
Khaibar, Tabuk... No Sudeste, as montanhas, cortadas do
interior pelo Rub al-Khali, orientam o Oman para o mar;
a seguir, ao longo do golfo Pérsico, o rebordo monta­
nhoso dá lugar a degraus que prolongam o Nedjed: é o
Bahrein.

29
■ Mesopotâmia, Síria, Palestina

O Tigre e o Eufrates, ao saírem da Arménia, enqua­


dram uma plataforma que prolonga o planalto da Síria
Setentrional: é a Alta Mesopotâmia ou Jezira, com Edessa.
A seguir, a depressão cava-se, os rios aproximam-se, mis­
turam os seus aluviões e formam um imenso delta: é a
Baixa Mesopotâmia ou Iraque. Entre o deserto sírio e as
cordilheiras iranianas, na encruzilhada da Ásia Menor, da
Arménia, da Arábia, do Irão, esse longo eixo norte-sul de
circulação prolonga-se pelo golfo Pérsico, via marítima
para a índia e a China. Foi aí que se fixaram as grandes
capitais: Ctesifonte, Bagdade, no nó das rotas terrestres e
marítimas entre o Mediterrâneo e o mundo oriental.
Na orla do deserto, entre a Arábia e a Anatólia, a Síria
forma uma ponte: o relevo é o de um fosso enquadrado
por duas faixas de terras altas. Mas a sul, os altos degraus
da Palestina e as cordilheiras do Líbano e do Antilíbano
tornam a penetração difícil e repelem para o deserto a
circulação norte-sul.
Na Síria Setentrional, pelo contrário, o acesso a partir
do litoral é facilitado por passagens, e o planalto sírio pro­
longa-se, por Alepo, até ao Eufrates. Na região de Antioquia
e Alepo cruzam-se, deste modo, a grande via de passagem
do Mediterrâneo para a Mesopotâmia e um eixo norte-
-sul entre a Ásia Menor e a Arábia, por Damasco.

■ Egipto

Longo oásis entre dois desertos, o Egipto abre-se direc-


tamente sobre o Mediterrâneo. Uma faixa desértica rela­
tivamente estreita separa-o do mar Vermelho, controlado
na sua saída para o oceano Índico pelo Iémen e a Etiópia.
Para lá das cataratas do Nilo e do antigo reino da Núbia,
ergue-se um conjunto de elevados planaltos que se abai­
xam por socalcos até ao mar Vermelho. Aqui, à volta de
Axum e do seu porto de Maçuá, organizou-se o reino da
Etiópia, que controla o acesso ao mar Vermelho e o comér­
cio por caravana da África Oriental.

30
2
O nascimento
do Império Bizantino:
de Constantino a Justiniano (330-565)

A transferência por Constantino da capital do Império Romano para o Oriente, na sequência da


divisão estabelecida pelo sistema tetrárquico de Diocleciano, basta para individualizar administrati­
vamente a parte oriental do Império mas não cria um estado novo. A perda progressiva do Ocidente
em proveito dos Bárbaros - a despeito da tentativa de reconquista por Justiniano - e a crescente assi­
milação dos elementos cristãos e orientais é que criam em três séculos o Império Bizantino, até porque
o choque das invasões é sentido menos intensamente nesta parte do velho mundo romano. E era aqui
que se encontravam as forças vivas, como o testemunham a própria fundação e o rápido desenvolvi­
mento de Constantinopla.

1. Invasões bárbaras e reconquistas

■ O império do Oriente e os invasores godos e hunos

Os Visigodos. Os Godos são um povo germânico que


habitou o Alto Vístula até meados do séc. II. Iniciaram
nessa altura um movimento para o Sul, que os levou a ins­
talar-se no séc. IV entre o Danúbio e o Dniepre. Então
dividiram-se: os Visigodos na Dácia (a actual Roménia),
os Ostrogodos no Baixo Dniepre. Ver mapa p. 386 A.

Os Visigodos, que obtiveram o estatuto de federados


em 332, são contidos na margem esquerda do Danúbio
cerca de 370. A pressão dos Hunos além-Dniepre leva os
Visigodos a atravessar em massa o Danúbio no Outono de
376. O imperador Valente tenta instalá-los pacificamente,
mas é obrigado a combatê-los quando eles pilham a Trácia:
o exército romano é esmagado em Andrinopla e Valente
é morto (378).
Teodósio consegue estabelecer os Visigodos no Império,
fá-los entrar em grande número para o exército e chama
para seu conselheiro o godo Estilicão; o seu filho casa
com a filha de um dignitário visigodo. Enquanto uma
I parte da opinião romana vê com bons olhos este afluxo
i de mão-de-obra assim sujeita à sua assimilação, a outra
j parte insiste no perigo que corre a romanidade ortodoxa
perante estes bárbaros arianos. A reacção de rejeição acaba

31
por se impor e os Visigodos trocam o Ilírico pela Itália.
Avançam, assim, até à Península Ibérica.

Os Hunos. Afastados os Visigodos, eis que os Hunos


se apresentam no Danúbio. São, primeiro, contidos pelo
pagamento de um tributo. Mas, em 441, Atila atravessa o
Danúbio e aproxima-se de Constantinopla. O imperador
entrega-lhe 6000 libras de ouro pela compra dos prisio­
neiros e paga-lhe um tributo, que viría a triplicar, de 21 000
libras por ano, sem com isso impedir Atila de desenca­
dear razias na Grécia. Mas o chefe huno prefere uma presa
mais fácil, o Ocidente, onde é severamente batido no
Campus Mauriacus (451); Marciano pode, então, recusar
o pagamento do tributo: é o fim do problema huno para
o Oriente.

Os Ostrogodos. Os Hunos tinham empurrado à sua


frente, e depois ultrapassado, os Ostrogodos, instalados no
Império, na Panónia, desde meados do séc. v. Os impera­
dores procuraram utilizar as rivalidades entre os diferen­
tes ramos dos Ostrogodos, apoiando-se no rei dos Amalos,
Teodorico. Zenão promove-o a cônsul e generalíssimo e
instala-o a sul da foz do Danúbio. Mas em 478 Teodorico
marcha sobre Constantinopla. Zenão atribui-lhe então o
título de «chefe das milícias» e envia-o à conquista de Itália,
dominada por Odoacro desde 476, a fim de a governar em
nome do Império. Teodorico conquista a Itália em quatro
anos (489-493) e mantém aí uma administração romana,
ao mesmo tempo que o imperador lhe concede o título de
rei. O reino ostrogodo de Itália é o melhor exemplo da
colaboração ambígua entre Constantinopla e os reis bár­
baros: o Império considera que Teodorico governa a Itália
em seu nome; Teodorico considera-se rei em parte inteira,
aliado do Império Bizantino mas conduzindo no Ocidente
a sua política pessoal. Esta ambiguidade virá a dar pretexto
a Justiniano para a reconquista.

■ A reconquista de Justiniano

A ideia de reconquista. A ideia de reconquista não é


expressa enquanto tal, mas é inerente à concepção bizan­
tina da ordem do mundo: toda a região que alguma vez
tenha sido romana é tida por inalienavelmente romana.
Mais tarde, este princípio foi alargado aos países cristia­
nizados. Para Justiniano, ocidental latinófono, que encon­
tra as fronteiras orientais mais ou menos intactas, o
Ver mapa p. 386 A. Ocidente é o primeiro objectivo.

A África. A África está nas mãos dos Vândalos desde a


tomada de Cartago por Genserico. Os Vândalos são temí-

32
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

veis pela sua frota, senhora do Mediterrâneo Ocidental;


além disso, são arianos fanáticos que perseguem os
Romanos ortodoxos. Justiniano serve-se do primeiro pre­
texto, na ocorrência «a usurpação» de Gelímero (530),
para enviar Belisário a África com 20 000 homens, apesar
Sobre as invasões vândalas, ver
do parecer dos generais, pessimistas, e dos financeiros, M. BALARD, J.-PH. GENET,
poupados. Em alguns meses, o reino vândalo é aniqui­ M. ROUCHE, Le Moyen Age
lado. A África torna-se uma prefeitura do pretório, de que en Occident, p. 26.
dependem seis províncias. Permanecerá durante um século
e meio uma próspera região bizantina, mas sem que a
influência de Bizâncio penetre profundamente no inte­
rior do território.

A Itália. Teodorico, morto em 526, não encontra em


Atalarico um sucessor à sua medida. Quando Teodato
manda prender Amalasunta, viúva de Atalarico (535),
Justiniano agarra o pretexto e envia Belisário com 12 000
homens; este reconquista a Sicília, Nápoles e Roma. Os
Ostrogodos substituem Teodato por Vitiges, mais enér­
gico. Mas Belisário consegue conter esta manobra ofen­
siva, repele os Godos para o Norte do Pó, apodera-se de
Ravena, de Vitiges e do seu tesouro. A conquista parece
terminada. Belisário reentra em Constantinopla em 540.
Conduzidos por Tótila, os Godos recomeçam imedia­
tamente a luta e recuperam metade da Itália, Roma (546),
e mesmo a Sicília (550). Justiniano tem de enviar Narses,
com forças consideráveis, para resolver definitivamente o
problema godo em três anos de uma guerra devastadora
(552-554). Também em 554, os Bizantinos reconquistam
o Sul'da Hispânia, penetrando até Córdova.

A reconquista: um erro? Assim, em 554 o Mediterrâneo


voltou a ser um lago romano, se exceptuarmos os litorais
da Gália e do Leste da Península Ibérica. Mas por que
preço! Salvo no que respeita a África, o mapa é impres­
sionante, mas a realidade não o é tanto. Em Itália, nomea­
damente, as terras conquistadas estão devastadas e, por
muito tempo, improdutivas; as estruturas sociais são mais
subvertidas do que ao longo de um século de uma ocupa­
ção bárbara, no fim de contas superficial.
As conquistas são de pouca monta se se tiver em vista Sobre os problemas fiscais,
ver pp. 38-40.
o investimenuxTot necessário armar e pagar esses exér­
citos, cuja suhBãrtròm não era possível nos países que eles
próprios preciso pagar aos Persas um
pesado tributo pasa se gsantir uma paz intermitente nas
fronteiras orientais. Portanto, o imperador cobrou, nos
campos dizimados pela peste de 542-543, impostos pesa­
díssimos até cerca de 550. Justiniano dedicou somas enor­
mes a fortificar essas novas fronteiras, em prejuízo das dos
Balcãs face aos Eslavos, e das do Oriente face aos Persas,

33
onde, no entanto, se jogava e se jogará o destino do
Império. Assim se desenha um traço da política bizantina
que se revelará muitas vezes, sempre que a vida do Império
não esteja imediatamente ameaçada: sacrificar a defesa
das regiões vitais para Constantinopla à perseguição de
uma ideia, de um sonho: o Império Universal.

2. O Império Romano continuado

■ O imperador

As regras de sucessão ao trono instituídas por


Diocleciano não são, em teoria, modificadas: o impera­
dor reinante, com o título de Augusto, designa um César
chamado a suceder-lhe. Mas constata-se que os Césares
são na maior parte dos casos escolhidos na família do
imperador; que por vezes faz falta a designação de um
sucessor; e, enfim, que a tendência para a usurpação é
frequente. A verdadeira regra da sucessão é a relação de
forças.

A sucessão de Constantino. Constantino não tinha pre­


visto a sucessão. Os seus três filhos - Constantino II,
Constante e Constâncio II - dividem entre si o Império;
Constâncio II impõe-se a pouco e pouco pela força. Em
361, um dos Césares, que entretanto se revoltara, Juliano,
acede ao poder supremo. A sua morte no campo de bata­
lha (363) abre um período de incerteza, que vê sucede­
rem-se Joviano (363/364) e, depois, Valentiniano e seu
irmão Valente. Em 376, os dois filhos de Valentiniano,
Graciano e Valentiniano II, sucedem-lhe no Ocidente.
Valente encontra a morte na batalha de Andrinopla (378).
Graciano designa como seu sucessor Teodósio, que reu­
nifica por breve período o Império, novamente repartido,
após a sua morte, em 395, entre Arcádio (Oriente) e
Honório (Ocidente).
A partilha efectuada por morte de Teodósio ficou céle­
bre. Em si, não trouxe nada de novo, já que se mantinha
conforme ao sistema de Diocleciano e à prática do séc. iv.
De resto, a partilha pretendia-se puramente administra­
tiva: a unicidade do Império era mantida. Muitas vezes, a
existência de dois Augustos não passava de uma ficção,
fosse porque um deles prevalecia nitidamente sobre o
outro, fosse porque o poder estava ainda mais fragmen­
tado por usurpadores em zonas afastadas. Mas não havia
dois impérios e a divisão de 395 fez-se de acordo com essa

34
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

ideia. A sua importância não foi entendida na ocasião,


mas impôs-se mais tarde, porque essa partilha fora defi­
nitiva: não houve reunificação, tornada impossível pela
rápida desagregação da parte ocidental sob os golpes dos
Bárbaros, de que o saque de Roma em 410 é o primeiro
sinal grave.

De Teodósio II a Zenão. O longo reinado do filho de


Arcádio, Teodósio II (408-450), é sobretudo marcado pela
influência das duas imperatrizes - sua irmã Pulquéria e
sua mulher, Eudócia. E por desposar Pulquéria que o ofi­
cial Marciano sobe ao trono (450-457). Já sob Marciano
se manifesta a influência do alano Aspar, a quem o Senado
chega a oferecer o trono (457); este acaba por ser ocupado
por Leão I (457-474), seu protegido e primeiro impera­
dor do Oriente a receber a coroa das mãos do patriarca
de Constantinopla. Leão desembaraça-se de Aspar, apoian­
do-se no isauro Zenão, a quem faz seu genro, permitindo-
-lhe aceder ao trono em 474, após alguns meses de rei­
nado de seu filho Leão II. Expulso, por pouco tempo, do
trono por Basilisco, Zenão volta a ocupá-lo por quinze
anos (476-491), ao tempo em que Roma cai nas mãos de
Odoacro. Passa a haver apenas um imperador, mas pri­
vado de toda a autoridade, que não seja teórica, sobre o
Ocidente.

Justiniano (527-565). Na morte de Zenão, o Senado


escolhe um funcionário de talento, Anastásio (491-518),
que desposa a viúva do antecessor. Vê-se que a ligação
dinástica começa a sobrepor-se aos princípios institucio­
nais. Falecido Anastásio, o Senado, aparentemente resta­
belecido nas suas prerrogativas, escolhe um obscuro oficial
macedónio, Justino (518-527), cujo sobrinho, Justiniano,
exerce os poderes imperiais mesmo antes de lhe suceder
(527-565). O grande imperador, com obra externa, admi­
nistrativa e legislativa tão considerável, quando não dura­
doura, tinha uma posição interna relativamente frágil.
Assim, aquando da sedição Nika (Janeiro de 532), levan­
taram-se contra ele as forças vivas da população de Cons­
tantinopla. Justiniano apenas a superou graças à energia
de Teodora e de Belisário. Foi a mais grave crise, mas não
a única.
Com efeito, a política de Justiniano descontentava toda
a gente. Apoiando-se no seu prefeito do pretório, o enér­
gico João da Capadócia, o imperador tentou reformar
uma administração corrompida, com o que atraiu a des­
confiança dos funcionários. Quis conciliar ortodoxia e
monofissmo e foi atacado por uma e outra parte, sem
contemar nenhuma. A população resmungava perante o
peso de impostos muitas vezes injustos, cobrados com rigor
mesmo nas províncias dizimadas.

35
A vida interna do Império conheceu uma acalmia de
perto de dez anos após a sedição Nika; este período cor­
respondeu aos mais brilhantes sucessos externos. Mas, em
541, Justiniano foi obrigado a demitir João da Capadócia.
Em 548, Teodora morreu. A agitação religiosa ampliava-
-se, os motins e as rixas entre facções multiplicavam-se nas
cidades. Apesar da entrada em funções de um novo pre­
feito do pretório de qualidade, Pedro Barsimés, apesar
das reduções de impostos (553), de novas reformas admi­
Concílio dos «Três Capítulos»: nistrativas (556), do Concílio dos «Três Capítulos» (553),
ver p. 47. a atmosfera adensava-se: em 562, uma conjura anódina
falhou o derrube de Justiniano, cuja morte em 565 foi
acolhida com alívio. Durante o período que separa a morte
de Constantino da de Justiniano, o poder imperial não é
ainda estável: a concepção constantiniana não mudara, a
concepção bizantina ainda não fora forjada. E a fragili­
dade é o reflexo não de uma fraqueza do poder central,
apoiado numa administração sólida, mas das crises exter­
nas e internas que se exprimem em oposições religiosas
mas são, de facto, mais profundas.

■ A administração central

O mestre dos ofícios. O reinado de Constantino é mar­


Mestre dos ofícios: chefe dos
serviços administrativos (ofí­
cado por uma reforma fundamental, que retira uma grande
cios) de Constantinopla. parte das suas atribuições ao prefeito do pretório, tornado
chefe da administração provincial (v. infrd). O poder passa
para o mestre dos ofícios (magister officiorum). Como o
nome indica, este está à cabeça dos officia, antepassados
Sékréta: ver p. 94. dos sékréta, isto é, dos serviços administrativos da capital;
controla, portanto, toda a administração central, e mesmo
a administração provincial, graças a esses verdadeiros ins-
pectores que são os agentes in rebus: mais de 1000 funcio­
nários no séc. v, autêntico serviço de informações inter­
vindo quer sobre a população quer sobre o pessoal
administrativo. Desde o final do séc. iv que o mestre dos
ofícios assumira o controlo do Correio (cursus publicus'),
ou seja, da difusão das ordens e mensagens imperiais e
das relações com o estrangeiro. No próprio Palácio, ele
joga em dois tabuleiros: chefe da guarda (scholes), é tam­
bém o mestre de cerimónias e, nesta qualidade, recebe
os embaixadores.
Todas as actividades jurídicas - da redacção das leis à
administração da Justiça - são da competência do ques-
tor do Palácio Sagrado (quaestor sacri palatii). Mais pró­
ximo do imperador, testemunha da importância que este
vai ganhando, ao ponto de tudo se passar nos seus apo­
sentos, bem colocado sempre que o Imperador é fraco, o
encarregado dos sagrados aposentos (praepositus sacri cubi-

36
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

culi) desempenha, enfim, um papel financeiro, porque os


rendimentos de certos bens imperiais, nomeadamente na
Capadócia, lhe chegam directamente.

O prefeito do pretório. O que resta, então, aos pre­


Prefeito do pretório: simulta­
feitos do pretório, a quem tantas atribuições foram reti­ neamente chefe das adminis­
radas, mas que - a história prova-o - continuam a desem­ trações provinciais e principal
penhar um papel decisivo na política imperial, como colaborador do Imperador.
mostra o lugar ocupado pelos de Justiniano - João da
Capadócia e Pedro Barsimés? Os prefeitos do pretório
converteram-se nos chefes centrais das administrações pro­
vinciais. Com o Império dividido em várias prefeituras,
duas das quais na parte oriental - a prefeitura do Oriente
e a do Ilírico -, só a imensidão da primeira lhes assegu­
rava a supremacia e dava aos detentores desse cargo um
lugar eminente na vida do Império. Os prefeitos do pre­
tório tornaram-se funcionários exclusivamente civis.

A administração provincial ■

As províncias são divididas e reduzidas a dimensões


mais modestas: no séc. v, o Império do Oriente conta com
uma cinquentena de províncias, estando estas agrupadas
em dioceses confiadas a um vigário. Deparava-se, assim,
com cinco dioceses na prefeitura de Oriente (Trácia, Ásia,
Ponto, Oriente, Egipto) e com duas no Ilírico (Macedónia
e Dácia).
O princípio da separação dos poderes civis e militares,
com os primeiros confiados aos governadores civis e os
segundos a um dux muitas vezes à cabeça de várias pro­
víncias, foi mantido durante muito tempo. Mas a tendência
para a confusão, que se concretizaria na criação dos «exar- Exarcado: ver p. 76.
cados» e dos «temas», faz-se já sentir na grande reforma Tema: ver p. 94.
de Justiniano (535-536): o Imperador tenta agrupar pro­
víncias sob a direcção de procônsules ou de pretores ditos
«justinianos», aos quais atribui poderes civis, militares, e
por vezes fiscais. Esta tentativa não dura mais do que uma
<jDBnzena de anos, mas é reveladora: o imperador procura
acrescer a autoridade dos governadores de província, con-
pela aristocracia local.
JL praga que Justiniano pretende combater é o
padtaoado. A partida, este constituiu uma reacção contra
as aâgências excessivas do Estado; o padroeiro é aquele
que pmnitc a indivíduos ou a grupos de indivíduos esca­
par as respectivas obrigações. E muitas vezes um alto fun­
cionário, governador ou soldado, ou mesmo um curial da
i cidade, que usa desse modo a parcela de autoridade que
detém. Em troca da sua protecção contra os agentes do
■ fisco, adquire autoridade sobre os homens e cobra-lhes
uma renda - o patrocinium. O fenómeno, aparecido no
séc. IV, tornara-se numa banalidade no tempo de Justiniano;
mesmo os gerentes das casas divinas ou das propriedades
imperiais são acusados de se entregarem a tais abusos.
Este nível de protecção é até largamente ultrapassado: em
grande número de províncias citadas por Justiniano, ver­
dadeiros bandos armados e milícias privadas ao serviço
dos poderosos aterrorizam os fracos, leigos ou eclesiásti­
cos.
Em certas regiões, como na Isáuria, os aldeões criam
também, por seu lado, milícias de autodefesa. Em suma,
numa parte do império de Justiniano reina a anarquia.

■ O exército

O exército é composto de dois elementos principais:


as forças territoriais e as centrais. As tropas territoriais,
comandadas nas províncias pelos duques, são formadas
♦ «Trata-se dos gerentes dos bens por limitanei, uma espécie de milicianos cujo soldo é cons­
dos poderosos. Mas eis que a ver­ tituído por uma dotação de terras, ficando a seu cargo
gonha nos obriga a constatar a in­ prover à própria subsistência e armamento. O exército
solência com que entram em todo
o sítio, como são servidos por uma central é composto de comitatenses e serve de força de inter­
milícia armada e adulados por uma venção; nas suas fileiras fazem-se sentir as duas evoluções
multidão inumerável. Todos pilham essenciais: a tendência para a barbarização, sobretudo em
sem qualquer contenção.» ♦ proveito dos Germânicos - o que não acontece sem deba­
Justiniano, Novela 30 (536) sobre
a Capadócia.
tes no interior do Império -, e o reforço da cavalaria. Estas
tropas são comandadas por três magistri militum (chefes
dos soldados) de Oriente, Trácia e Ilíria. As tropas do
Palácio (distintas da guarda) estão sob a autoridade de
outro «chefe»: ao todo, quatro oficiais generais directa-
mente dependentes do Imperador. O sistema da conscri­
ção desaparece a pouco e pouco, em benefício do volun­
tariado; graças às vantagens em terras e às isenções fiscais,
não faltavam homens.

■ As finanças

As finanças estão repartidas em dois serviços princi­


pais, correspondendo a duas fontes diferentes de recei­
tas: o fisco, alimentado pelo produto dos impostos e taxas,
Res privata (fortuna «priva­ mas também de terras; e os bens imperiais (res privata),
da»): bens e rendimentos da cujos rendimentos provêm essencialmente, mas não exclu­
Coroa. sivamente, de terras. As despesas do Estado são assegura­
das pelo «conde das Larguezas Sagradas» (comes sacrarum
largitionum), enquanto a Res Privata é gerida pelo «conde
da Fortuna Privada» (comes rerum privatarum). A res privata
comporta ao mesmo tempo bens que pertencem à Coroa
enquanto pessoa moral e os bens patrimoniais da família
reinante que passam para a Coroa logo que essa família

38
100605060409071011090509050605090606061006080905100510050805070909011006040910000500020305100108
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

deixa de reinar. Os rendimentos servem para manter a


corte e as pessoas imperiais. A tendência geral é a da pas­
sagem dos rendimentos da res privata para as necessida­
des do Estado, procurando o imperador, desesperada­
mente, preservar os seus rendimentos. Anastásio cria assim
o «património», parte destacada da res privata cujos ren­
dimentos são afectados ao Estado. Isto não basta, e assiste-
-se, com Justiniano, à individualização dos bens pessoal­
mente afectados ao imperador - as «casas divinas» (domus Domus divinae (casas divinas):
divinae). propriedades pessoais do im­
perador ou da imperatriz.
A fiscalidade. Quanto ao sistema fiscal que alimenta
as Larguezas Sagradas, remonta a Diocleciano, mas con­
tinua a ser mal conhecido, pelo menos no que toca à parte
oriental do Império. O princípio básico da capitatio-juga-
tio é fazer entrar no cadastro ao mesmo tempo a terra,
medida em juga (é a jugatio) e os que a trabalham, medi­ Colonos: ver p. 50.
dos em capita (é a capitatio). Tudo fica assim misturado
num único molde: a terra, os homens, mas também o
gado, os edifícios, os escravos. O sistema é, pois, ao mesmo
tempo, complexo e discutível. De resto, pode duvidar-se
que tenha sido efectivamente aplicado no Oriente, Balcãs
exclusive; desde o séc. v, parece realmente claro que a
base essencial do imposto são os juga. A renovação da cir­
culação monetária fazia, cada vez mais, com que o imposto
fosse pago em espécie, quer dizer, em ouro, e o tributo
chamou-se, a partir de Anastásio, «imposto em ouro»
(chrysotéleia). Os citadinos também estavam sujeitos a um
imposto em ouro, o auri lustralis collatio ou crisárgira, que
Anastásio suprimiu.
Mas a fiscalidade não se limita a esta imposição de
base. As sobretaxas também são pesadas. Além das cor-
veias, as duas principais são a épibolé e a sinôné. Pela épi-
bolé ou adjectio sterilium (adjunção de terras estéreis), o
Estado atribui uma terra abandonada, que portanto já não
paga imposto, a outro contribuinte, cuja colecta é agra­
vada com isso. O contribuinte vê-se, pois, sujeito a um
acréscimo tributário contra uma terra que poderá ser
improdutiva. A sinôné ou coemptio é a requisição, ou seja,
a venda forçada de produtos da terra, principalmente ao
exército, a um preço fixado pelo Estado, que é, natural­
mente, mais baixo do que o preço do mercado. Esta obri­
gação é frequentemente resgatada, tornando-se, assim,
num pagamento suplementar em espécie.
xA fiscalidade, sobretudo a que incide sobre os rurais,
é portanto tanto mais pesada quanto os habitantes das
cidades são menos fortemente tributados. Não se deve,
entretanto, exagerar este peso, porque o sistema de
cobrança é muito imperfeito, e a resistência dos contri­
buintes muitas vezes encorajada pelas autoridades locais,

39
nomeadamente os bispos. Desde Anastásio, e sobretudo
a partir da segunda metade do reinado de Justiniano, o
peso da fiscalidade tende a diminuir. Os perdões de dívi­
das e delitos fiscais multiplicam-se: deixam de ser uma
feliz benesse comemorativa de uma subida ao trono, para
se sucederem ano após ano. O aumento do número de
contribuintes, em parte devido à reconquista, permite,
por essa via indirecta, reduzir a taxa de incidência, que
vinha a tornar-se insuportável.

3. Emergência do Império Bizantino

Às componentes romanas que fundamentalmente se


mantêm, embora evoluindo, vem juntar-se um certo
número de factores que transformam a parte oriental do
Império Romano no Império Bizantino.

■ Constantinopla

Uma das ligações mais evidentes com o antigo estado


de coisas e, ao mesmo tempo, uma das marcas mais notá­
veis do novo, é a própria cidade de Constantinopla. Na
fundação, por Constantino, desta cidade no lugar da antiga
Bizâncio, então uma urbe secundária, reconstruída por
Séptimo Severo e dotada de um hipódromo, encontra-se
a dupla preocupação de criar uma nova Roma e de trans­
portar a antiga para as margens do Bósforo.
Constantinopla é efectivamente construída sobre o
modelo da antiga Roma: aí se encontram sete colinas, aí
se criam catorze zonas urbanas bem como um Capitólio,
aí se ergue um fórum, aí se estabelece um Senado. As ins­
tituições são as de Roma. Uma parte dos senadores segue
Constantino e constrói na nova cidade casas que são a
réplica exacta das que deixaram em Itália. O imperador
não quis criar um Senado concorrente do da capital do
Ocidente, que acabara de renovar. Mas, a pouco e pouco,
aumenta o número de dignitários da administração orien­
tal que recebem a distinção senatorial, ao mesmo tempo
que os membros da assembleia municipal de Constan­
tinopla assumem o estatuto de senadores. O Senado de
Constantinopla é, pois, desde a origem, menos uma assem­
bleia política deliberativa do que um grupo social bem
definido.
Mas a fundação desta cidade correspondia também a
necessidades novas, decorrentes do declínio do Ocidenfce

40
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino a Justiniano (330-565)

e sobretudo da Itália. Roma continuava a existir, mas


nenhum dos quatro imperadores do sistema tetrárquico
de Diocleciano tinha lá a sua residência. O próprio
Constantino quase nunca residira em Itália. De resto, as
operações militares desenrolavam-se no Danúbio para con­
ter os Godos e no Oriente frente aos Persas. A localiza­
ção da nova capital tornava-a praticamente inexpugnável,
enquanto Roma estava sob a ameaça constante dos
Germânicos e das populações da Ilíria; a sua situação per­
mitia ao imperador controlar os dois principais teatros de
operações. Enfim, a evolução económica tinha afastado
Roma das correntes de trocas. A rota do comércio Oriente-
-Ocidente passava então a norte dos Balcãs e dos Alpes,
ao mesmo tempo que o Mediterrâneo Oriental e o mar
Negro se tornavam essenciais e que os campos orientais
tinham resistido melhor do que os do Ocidente à crise
do séc. III.
Rapidamente, a segunda Roma torna-se uma cidade Ver mapa 396 A.
original. Num século, conhece uma acréscimo demográ­
fico considerável. Constantino não pecara por falta de
visão ao incluir na sua cerca mais de 700 hectares; mas
Teodósio II, logo na primeira metade do séc. v, teve de
construir uma nova muralha que duplicava a área da
cidade, elevando-a para 1450 hectares; ulteriormente, ape­
nas o bairro dos Blachernes, a nordeste, foi integrado no
perímetro da urbe. A cidade recebera privilégios fiscais e
beneficiava da distribuição gratuita de víveres, para atrair
a população dos campos; ao tempo de Constantino, con­
tava com 100 000 habitantes; sob Justiniano, tinha 400 000
ou 500 000, embora os prédios de rendimento de vários
andares continuassem a ser raros. Desde o primeiro século
da sua história, Constantinopla assiste assim à formação
de um povo original, organizado em torno dos demos (as Demos: facções do circo, ori­
facções dos jogos do hipódromo), de uma aristocracia ginalmente quatro (brancos,
vermelhos, verdes e azuis), de
senatorial, apoiada na sua riqueza imobiliária no Oriente, que apenas subsistem as duas
e de instituições urbanas originais, centradas num pre­ últimas. Servem para financiar
feito (eparca). O Palácio de Constantinopla é o quadro os jogos do hipódromo, sen­
material no qual se forja e evolui a ideia imperial. do a sua delimitação territo­
rial. Desempenham um gran­
Enfim, o último traço original da nova Roma não resi­ de papel político, sobretudo
dia - diga-se o que se disser - na vontade de um funda­ pelas suas confrontações.
dor que nela tinha deixado implantar numerosos templos
pagãos. Depressa o paganismo desaparece e Constantinopla
torna-se a cidade cristã; paralclamente prossegue a ascen­
são na hieranpwjfc seu bispo, que se converte na segunda
figura da Igreja por ocasião do Concílio de Calcedónia.
O papa de Roma recusa-se a reconhecer o facto, mas
Constantinopla adquirira a sua personalidade própria no
único domínio onde esta era ainda contestada. Acaba,
assim, por se tomar a capital do Império Romano cristão
do Oriente, ou seja, bizantino.

41
A nova capital torna-se rapidamente um dos centros
da vida intelectual do Império, competindo com as gran­
des cidades orientais - Alexandria, Antioquia e Beirute.
Desde finais do séc. iv, a retórica é lá cultivada por homens
como Temístio. Teodósio II organiza uma universidade
em 425.

■ A cristianização do Império
O princípio da acomodação. Uma das características
principais do Oriente é, então, a rapidez e profundidade
da cristianização. Na alvorada do séc. IV, quando
Constantino concede aos cristãos a liberdade de culto,
estes limitam-se a pequenas comunidades, mais ou menos
independentes umas das outras e situadas sobretudo nas
cidades. Todas as cidades do Oriente, ou quase todas, já
têm os seus bispos, designados pelo povo cristão - de facto
pelo clero e pelos fiéis mais notáveis - e o seu clero - clé­
rigos maiores (padres, diáconos e subdiáconos), clérigos
menores (leitores, porteiros, coveiros) e mulheres consa­
gradas (principalmente as diaconisas). No Egipto, toda­
via, o cristianismo já penetrara profundamente nas aldeias.
A Igreja está portanto, desde o início adaptada à estru­
tura essencial do Império Romano: a cidade. Desta adap­
tação ela faz um princípio - a acomodação: decalca a sua
organização sobre a do Império. As cidades são agrupa­
das em províncias eclesiásticas; o bispado da sede da pro­
víncia torna-se metrópole e o respectivo prelado metro­
politano fica à cabeça dos bispos sufragâneos. Na sequência
deste processo, o todo é coberto por um agrupamento
das dioceses civis, o que dá origem aos patriarcados de
Alexandria, de Antioquia e de Constantinopla. O último
engloba o Ponto e a Ásia. Criar-se-á entretanto, para as
províncias da Palestina, o patriarcado de Jerusalém.

A Igreja e a cultura greco-romana. Desde o começo do


séc. iv, o cristianismo converteu-se à cultura e aos ideais
do mundo romano. Pensadores como Eusébio, arcebispo
de Cesareia (315-340), autor de uma vida de Constantino,
sustentam que o cristianismo é a religião «natural» e «ori­
ginal» do homem: os «grãos» da doutrina cristã foram
semeados por Cristo em cada homem, antes mesmo da
Incarnação; ele inspirou o que há de melhor na filosofia
e no pensamento gregos. A cultura cristã é, pois, o resul­
tado da cultura passada. Em muitas cidades, o bispo torna-
-se num membro da intelligentsia.
O cristianismo apresenta-se mesmo como a última hipó­
tese de sobrevivência de um império que tinha tentado
derrubar. Os apologistas do séc. iv afirmam que o cristia­

42
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

nismo é a única garantia da civilização contra os Bárbaros:


salva da destruição o Império Romano, bem como a filo­
sofia e a ética da cidade grega. Cristãos cultos e pagãos
cultos estão infinitamente mais próximos uns dos outros
do que dos Bárbaros; para as elites pagãs, o bispo hele-
nófono é francamente preferível ao soldado bárbaro lati-
nófono. O entusiasmo com que Eusébio de Cesareia põe
a sua pena ao serviço de Constantino contrasta com a tra­
dicional contenção dos retóricos gregos face ao poder
imperial. Neste mundo de equilíbrio restaurado, os cris­
tãos são o grupo mais maleável e adaptável. Finos letra­
dos aceitam colocar o seu talento ao serviço do rústico:
Eusébio de Cesareia escreve a vida do veterano latinófono
Constantino, e Atanásio de Alexandria, a do filho de um
camponês egípcio, An tão. Os prelados juntam-se aos buro­
cratas nas fileiras da nova classe dirigente e constituem-
-se em garantes de uma cultura com a qual se identifica­
ram. Na Ásia Menor, é mesmo o missionário de língua
grega que instaura, pelos campos fora e durante um milé­
nio, a helenização. Reciprocamente, a civilização greco-
-romana penetrou de tal modo o cristianismo que, ao pre­
tender separa-se absolutamente do mundo, Antão quer
«fazer do deserto uma cidade».

O monaquismo. Esta rápida adaptação ao mundo


romano suscita uma reacção, que se manifesta primeiro
na região mais rápida e profundamente cristianizada: o
Egipto. Homens como Antão recusam-se a verter a sua fé
no molde da sociedade existente e tomam à letra o apelo
de Cristo a que tudo se abandone para o seguir. Decidem
praticar a retirada (anacorese) do mundo, para passar a
viverem sós (monos), como monges. No Egipto, esta reti­
rada faz-se evidentemente para o deserto, bem próximo.
E o deserto egípcio povoa-se com os primeiros anacoretas.
A vida solitária no deserto, que apresenta a dupla van­
tagem de ser uma imitação de uma fase da vida de Cristo
e de proporcionar uma confrontação com animais infer­
nais (serpentes, corvos, etc.), não deixa de envolver peri­
gos para quem não tem o temperamento heróico de Antão.
Muito rapidamente, a partir do começo do séc. IV, faz-se
sentir a necessidade de organizar a vida do monge. Pacómio
concebe a criação no deserto de uma comunidade de
monges vivendo em autarcia e exercendo todas as fun­
ções com que se pedem ver numa aldeia. Assim nascem
os primeiros komobia (ou lugares de vida em comum). Koinobion: mosteiro onde os
Mas a forma cenobítica do monaquismo permanecerá monges praticam quotidia-
como uma preparação para o ideal que continua a ser o mente a vida em comum.
eremitismo (de érémos: deserto).
Alguns anos mais tarde, o fenómeno faz a sua apari­
ção nas duas regiões em que o cristianismo conhece maio­

43
res sucessos: a Síria e a Palestina, onde a proximidade dos
lugares santos atrai cristãos de todo o Império. O deserto
da Judeia fica assim, em poucos anos, quadriculado pelos
monges. Para resolver o dilema entre eremitismo e ceno-
bitismo, surge a laura: cada monge vive durante cinco dias
na sua célula (kelliori), trabalhando e comendo alimentos
crus; ao sábado e domingo, os monges reúnem-se para as
refeições, a oração e os ofícios; depois, cada um volta para
a sua kellion com o trabalho da semana. Os dois mais ilus­
tres monges da Palestina entre os séc. iv e VI, Eutimo e
Sabas, originários respectivamente da região de Melitene
e da de Cesareia da Capadócia, fundam, assim, verdadei­
ras redes de lauras e koinobia.
Mais ao norte da Palestina, na Síria e na Asia Menor,
não existe o deserto; daí resulta uma maior proximidade
dos mosteiros relativamente às povoações e a necessidade
de se encontrarem formas originais de isolamento. A mais
notável foi a adoptada pelos Estilitas, que passam parte
da sua vida sobre uma plataforma instalada no alto de
uma coluna. O modelo será, num local 70 km a leste de
Antioquia, Simeão Estilita. Um santo deste tipo não se dis­
tingue apenas pelo seu modo de vida: atrai, mesmo para
além da morte, uma multidão de peregrinos em busca do
seu ensino e dos seus milagres. As dimensões atingidas
pelo complexo que envolvia a coluna de Simeão teste­
munham a amplidão do fenómeno.

A conversão do mundo rural. O santo homem desem­


penha pois, na vida campestre, e antes de mais na cristia­
nização das massas rurais, um papel essencial. Com efeito,
o cristianismo está, inicialmente, mal adaptado às aldeias.
A Igreja é da cidade. O bispo não pode andar perma­
nentemente em digressão pelos campos para aí pregar e
ministrar os sacramentos, e os camponeses não se dirigem
espontaneamente à cidade. O princípio da paróquia é
uma criação mais tardia. A Igreja começa por instituir
vigários, subordinados do prelado da cidade mas titulares
da consagração episcopal, para cobrir o mundo rural; mais
tarde, eles serão substituídos pelos periodeutas («visita-
dores»). Fruto do acaso da vontade dos proprietários, dos
aldeãos ou dos santos homens, edificam-se nas aldeias ou
nas suas cercanias oratórios, que podem tornar-se verda­
deiras igrejas quando neles se consagra um altar e é enco­
mendado um pároco. Mas esta implantação nem é siste­
mática nem geral. A sua rede é mais densa na Síria do
Norte, e menos na Asia Menor onde, na verdade, há que
aguardar pelo séc. vil, ou até pelo séc. viu, para que a
obra esteja concluída.
O serviço eclesiástico dos campos é portanto insufi­
ciente; está mesmo atrasado relativamente ao movimento

44
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino a Justiniano (330-565)

de cristianização. Para estas duas tarefas, os monges e os


santos homens suprem a insuficiência quantitativa e qua­
litativa do clero ordinário. O santo homem desempenha
o papel fundamental de mediador entre os fiéis e o seu
Deus; substitui ao mesmo tempo o oráculo, porque indica
a conduta a adoptar, e o curandeiro, pelos milagres que
opera. Tem mesmo um papel na vida quotidiana e não
só para expulsar os demónios, o que é a sua especialidade.
Dá a sua opinião sobre tudo: devem os cristãos frequen­
tar os banhos? Onde colocar uma cruz ou um mosaico
numa igreja? Quando não substitui o médico, aconselha
a melhor escolha: recurso ou não à cirurgia, ir a esta ou
àquela fonte termal... Envia o doente a determinado médico
para que este lhe receite certa purga. Em suma, é o vec-
tor essencial da adaptação do cristianismo, oriundo da
cidade antiga, à aldeia medieval.

As querelas cristológicas ■

As controvérsias religiosas, que levaram à definição da


ortodoxia cristã e se prolongam até ao séc. vn, encontram
um eco profundo no seio do povo cristão. Incidem sobre
a questão da Trindade e, mais particularmente, sobre a
pessoa do Cristo, donde a designação de querelas cristo­
lógicas. Interessam essencialmente o Oriente, onde se reu­
niram todos os concílios gerais (ditos ecuménicos). Concílio Ecuménico: concílio
para o qual são convocados to­
dos os bispos da cristandade.
O arianismo. A primeira das grandes heresias é devida De facto, participam nele de
a um padre de Alexandria, Ario: daí o seu nome de aria­ 100 a 350 prelados.
nismo. Ario sustentava que o Filho era uma criatura do
Pai. Recusava, por consequência, que Pai e Filho fossem
da mesma substância: negava a sua consubstancialidade.
O Oriente dividiu-se profundamente sobre este assunto.
A Igreja, acabada de sair da clandestinidade, ignorava
qualquer forma de magistério institucional, o que favo­
recia a multiplicação das heresias. Constantino, cioso da
unidade política do seu império, e que tinha autorizado
o cristianismo precisamente com esse objectivo, não podia
tolerar uma tal anarquia. Inaugura, assim, uma tradição
que não será desrespeitada: o imperador convoca e pre­
side ao concílio. Cerca de 150 bispos dirigem-se, pois, a
Niceia, reunindo-se, em 325, no primeiro concílio ecumé­
nico. O concílio condena o arianismo e afirma a con­
substancialidade do Pai e do Filho: Deus é um em três
pessoas; cada uma é uma hipóstase da divindade única.
O arianismo não ficava, com isto, vencido. Largamente
difundido no Ocidente e entre os reis bárbaros, ele dava-
-se bem na própria corte: foi de um bispo ariano - ao que
se diz - que Constantino recebeu o baptismo. Constâncio

45
e Valente foram ambos arianos. Teodósio I, pelo con­
trário, lutou com determinação contra o arianismo, pri­
vou os heréticos de certos direitos civis e convocou um
novo concílio para Constantinopla (381), que confirmou
a doutrina de Niceia, afirmando, além disso, a consubs-
tancialidade do Espírito com o Pai e o Filho. O mesmo
concílio colocou Constantinopla acima das outras sedes
orientais - Antioquia, Alexandria e Jerusalém. Isto favo­
receu a reacção regionalista das províncias orientais, que
encontrou a sua tradução religiosa no nestorianismo e
no monofisismo, duas reacções de um Oriente muito
monoteísta.

O nestorianismo. A dificuldade principal da doutrina


cristã reside, efectivamente, no facto de o Filho ser, ao
mesmo tempo, perfeitamente deus e perfeitamente
homem. As duas naturezas unem-se no Cristo. Mas como?
Antioquia, berço do nestorianismo, vê surgir uma dou­
trina que separa nitidamente as duas naturezas de Cristo.
Deus não pode passar pelo corpo de uma mulher. A criança
que Maria gera é unicamente a natureza humana de Jesus,
enquanto a sua natureza (divina), eterna por essência,
existe bem antes da encarnação. No nascimento de Jesus,
as duas naturezas unem-se nele. Maria não é mãe de Deus
(Théotokos), mas mãe do Cristo (Christotokos). Nestório, um
padre de Antioquia que se tornou patriarca de Cons­
tantinopla, pregou esta doutrina; daí o seu nome. Desen­
cadeou uma violenta reacção do patriarcado de Alexandria,
ciumento do poder da sede constantinopolitana. Forta­
lecido com a condenação do nestorianismo por Roma,
apoiando-se num profundo sentimento popular de pie­
dade para com a Théotokosy Cirilo de Alexandria fustigou
essa doutrina, levou Teodósio II a convocar para Efeso,
em 431, um concílio, no qual triunfou pela astúcia, a força
e o dinheiro. Nestório foi deposto e a sua doutrina con­
denada.

O monofisismo. O zelo antinestoriano de Cirilo aca­


bou por conduzi-lo ao excesso inverso: a confusão das
duas naturezas do Cristo, em proveito da natureza divina.
E o monofisismo, a doutrina sem dúvida mais próxima do
monoteísmo intransigente de muitos orientais, que foi
pregada em Constantinopla pelo monge Eutiqueto, vio­
lentamente apoiado pelo sucessor de Cirilo, Dióscoro de
Alexandria. Dióscoro forçou Teodósio II a convocar um
novo concílio para Efeso (449), onde se comportou ainda
com mais violência do que Cirilo em 431. Mas a reacção
foi imediata: o papa Leão Magno condenou a doutrina
com vigor. O sucessor de Teodósio II, falecido em 450,
Marciano, convocou para Calcedónia, em 451, um novo
concílio ecuménico em que participaram os represen-

46
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino a Justiniano (330-565)

tantes do papa, cujas teses foram adoptadas. As decisões


de 449 foram revogadas, o concílio assim anulado passou
a ser qualificado como uma «extorsão» e Cristo foi de
uma vez por todas definido como «único em duas natu­
rezas».

Após o Concílio de Calcedónia (451). O Concílio de


| Calcedónia, verdadeiro fundador da ortodoxia, reveste-se
í de uma importância capital. Por um lado, atribui ao papa
l o seu lugar no debate religioso, mas, ao mesmo tempo,
alarga a jurisdição do j^atriarcado constantinopolitano às
dioceses do Ponto, da Ásia e da Trácia, fazendo do patriarca
de Constantinopla o primaz do Oriente e quase um igual
do papa. Era um fermento de discórdia para o futuro.
Mas o mais imediatamente grave era a derrota do Oriente,
mal aceite. A doutrina monofisita, correspondendo à sen­
sibilidade oriental, tinha-se implantado largamente no
Egipto e na Síria e numa parte da Ásia Menor. Era uma
reacção étnica e cultural (a Igreja Egípcia abandona o
grego pelo copta, o siríaco renasce na liturgia), mas tam­
bém política contra Constantinopla, o seu centralismo e
os seus cobradores. A querela sobreviveu perto de dois
séculos a Calcedónia. Justiniano, que tinha tentado pôr-
-lhe cobro através de novas medidas administrativas, teve
mesmo de convocar um quinto Concílio Ecuménico para
Constantinopla, em 553, na sequência da querela dita
«dos Três Capítulos». Em vão. Somente a invasão árabe Três Capítulos: édito de Jus­
- que ela favoreceu, aliás, largamente - pôs fim, na prá­ tiniano que condena três bis­
pos nestorianos (um por ca­
tica, à questão monofisita, privando o Império das pro­ pítulo), mas que se aproxima
víncias heréticas. Vários imperadores tinham sido mono- demasiado das posições mo-
fisitas; mas não tinham conseguido conquistar os noflsitas.
Ocidentais para a sua doutrina. A máscara da romani-
dade estalava.

Cristianização da população. O pulular das heresias


não é mera consequência de querelas de intelectuais: cor­
responde às aspirações das massas. Uma anedota célebre
conta que se discutia a natureza de Cristo na bicha para
o padeiro. De facto, no final do séc. iv, a quase totalidade
das populações das províncias orientais e da Ásia Menor
estão cristianizadas. No séc. V, a hagiografia inclui no
número das façanhas ascéticas de Abraames a descoberta
e conversão de uma aldeia pagã nas profundezas do monte
Líbano. Esta passagem de uma religião de seita perseguida
a uma religião oficial de massas não deixa de suscitar
alguns problemas de organização.
A Igreja obtém muito rapidamente um estatuto quase
oficial e adopta o princípio da acomodação: decalca a sua
organização sobre a do Império. Tal como a sociedade
romana no seu conjunto, a Igreja está antes de mais adap­

47
tada ao mundo das cidades. No princípio, o único clero
é o da sé catedral. O serviço dos campos não está mini­
mamente assegurado e os camponeses têm de se dirigir
à cidade para assistir aos ofícios e receber os sacramen­
tos, de que o bispo tem um quase-monopólio. Este sis­
tema revela-se inadaptado quando as populações rurais se
tornam cristãs na sua totalidade.
Nesta fase, a paróquia ainda não existe. Todavia, em
numerosas aldeias e lugares criam-se oratórios. Na época
de Justiniano estes são já, muitas vezes, servidos por padres.
Esta inadaptação das estruturas da Igreja primitiva à reli­
gião de massas deixou o campo livre ao desenvolvimento
do fenómeno do santo homem: um homem que não é
forçosamente um monge no sentido institucional, mas
cujas proezas ascéticas e espirituais tornam reconhecido
como santo pela população. Em vida, e por graça dos mila­
gres que opera, converte-se no pólo da vida espiritual da
sua região; depois de morto, o seu túmulo - com fre­
quência incluído no mosteiro que o próprio acabara por
fundar - passa a ser um lugar de peregrinação. Assim se
instala um duplo sistema eclesiástico.

■ Grecização do Império

A sobrevivência do latim. O problema linguístico do


Império do Oriente coloca-se num duplo aspecto: admi­
nistrativo e popular. A língua oficial permanece, na rea­
lidade, o latim até Justiniano. O seu Código - um resumo
das leis antigas, que no entanto integra normas muito
recentes, nomeadamente de 534 - é em latim, língua
materna do imperador. Mas, a partir da publicação das
Novela: lei nova que vem primeiras novelas em 535, o grego torna-se a língua ofi­
acrescentar-se ao Código de cial. Em boa verdade, a administração e a Igreja há muito
Justiniano. Todas as leis bi­ que empregavam o grego na vida quotidiana. Somente os
zantinas são pois designadas
por novelas. actos mais oficiais, como é o caso das leis, continuavam
em latim. A partir de 535, apenas nas regiões latinófonas
as leis são expressas em latim. E no exército que esta lín­
gua sobrevive durante muito tempo.
O verdadeiro problema linguístico situa-se ao nível
local, na língua falada quotidianamente, teste bem mais
seguro da penetração do helenismo. Algumas províncias
do Oriente falam o latim (Dácia, Mésia, Cítia); a África
- ou pelo menos os seus quadros romanos - fala o latim.
Se o Ocidente esquece muito rapidamente o grego, ao
ponto de Gregório Magno não o conhecer, a adminis­
tração de Constantinopla continua a saber latim. E sem­
pre possível concluir todos os estudos em latim na Uni­
versidade de Constantinopla, cujas cadeiras latinas são tão
numerosas quanto as gregas.

48
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

Províncias semíticas. O problema é mais complexo


quando se trata das províncias orientais de população
semita. O grego penetra nas cidades, sobretudo portuá­
0002019123000002000102000200538900
rias, por três meios. Um é de menor importância: a admi­
nistração. Mas o comércio faz-se em grego, com moedas
gregas, e a população comerciante é depressa assimilada.
A Igreja, enfim, difunde em grego o Evangelho e os câno­
nes conciliares, e dá ao grego o prestígio de língua sagrada.

As resistências à helenização. De facto, a penetração


do grego nestas regiões é extremamente superficial, salvo
nas zonas costeiras. Os helenófonos não desenvolvem, real­
mente, nenhum esforço - contentam-se com alguns intér­
pretes indígenas - no sentido de fazerem penetrar a sua
cultura, que apenas impregna as elites indígenas por mime­
tismo. Quanto à massa da população, assiste-se a uma reac-
ção de rejeição, cujo significado ultrapassa largamente as
questões linguísticas: o grego é, antes de tudo, para o indí­
gena esmagado pelos impostos, a língua do cobrador e,
para o nestoriano ou o monofisita, a língua da ortodoxia
calcedónia. Daí o vigor das línguas copta e siríaca. Que a
Igreja Egípcia tenha adoptado o grego, ou que Alexandria
fale grego, não deve iludir ninguém: fora dos muros da
cidade, tem de se falar e pregar em copta. Desde a segunda
metade do séc. iv, todos os actos oficiais devem ser tra­
duzidos em copta. O siríaco tem uma vida ainda mais bri­
lhante, com toda uma literatura e mesmo escolas pura­
mente siríacas, como em Edessa e até em Cesareia: não
se limita a ser a língua do povo. Assim, a civilização grega
nunca assimilou essas populações que dominou ao longo
de oito séculos, ao contrário dos Árabes que o consegui­
ram fazer em menos de trezentos anos.

As universidades e o ensino. Entretanto, só o grego e


o latim são utilizados no ensino superior. Teodósio II criou
em 425, para Roma, Constantinopla e Beirute, um esboço
de universidade no sentido moderno da palavra: quer
dizer, um ensino público ministrado por professores do
Estado. Os professores do ensino público são remunera­
dos pelo Estado. Às matérias tradicionais da Retórica (elo­
quência, gramática latina e grega, sofística), que conta
com 28 cadeiras em Constantinopla, juntam-se as disci­
plinas aparentemente novas da Filosofia e do Direito. Esta
universidade é servida por uma biblioteca, que seria com­
posta por mais de 120 000 volumes à data do incêndio
que a destrói em 475-476. Outras universidades existiam,
entretanto, em Alexandria e Atenas. O ensino primário e
secundário era dispensado por uma rede de escolas pri­
vadas sem qualquer controlo, mas quase todas do mesmo
tipo. Encontrava-se o ensino primário até na mais remota
das províncias, por exemplo nesse modesto lugarejo de

49
muda de cavalos da rota Ancira-Constantinopla onde nas­
ceu Teodoro de Siquém, filho de uma prostituta, e mais
tarde bispo de Anastasiópolis.
O ensino pagão subsistiu por muito tempo, tendo
Justiniano fechado a universidade de Atenas somente em
529. Numerosos professores pagãos continuam, no entanto,
a exercer o magistério depois disso. De resto, a educação
religiosa é muito rudimentar e o estudo da Teologia quase
inexistente. A transmissão dos conhecimentos é antes de
tudo oral, com os auditores tomando notas. O ensino do
Direito, que assume uma importância crescente, torna-se
cada vez mais utilitário.

O Direito. Aliás, as mais importantes obras do espírito


que nos chegaram dessa época - se se exceptuarem as
obras de historiadores como Procópio de Cesareia e de
alguns poetas como Romano o Meloda - são codificações
jurídicas. Teodósio II fez redigir um código que tem o
seu nome. Mas a obra principal foi inspirada por Justiniano,
iniciador do «Corpo do Direito Civil» (CorpusJúris Civilis).
Este abre com uma colectânea de jurisprudência, o
«Digesto», que transcreve as sentenças dos grandes juris­
consultos. De manuseamento incómodo, o «Digesto» é
secundado por um manual para uso dos estudantes, as
«Institutas». A legislação encontra-se reunida nos doze
livros do Código, que reproduz, muitas vezes resumida­
mente, as leis (teoricamente) ainda em vigor, publicadas
desde Constantino e, nalguns casos, antes deste impera­
dor. Por fim, Justiniano acrescentou uma compilação de
leis de sua autoria, as «Novelas», na maioria em grego,
sinal claro da transição para o mundo propriamente bizan­
tino.

4. Vida económica e social

■ Os campos

A crise do séc. m é principalmente marcada nos cam­


pos por uma queda demográfica considerável. Este facto
força o Estado e os proprietários das terras a aperfeiçoa­
rem um sistema de ligação do camponês à terra, que fun­
ciona ao mesmo tempo como instrumento de produção
e base da cobrança do imposto: é o colonato. A condição
pessoal e económica pode variar de caso para caso: cer­
tos colonos ditos «adscritos» mal se distinguem da con­
dição de um escravo que tivesse sido afectado a um ter-

50
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

reno; outros colonos, pelo contrário, exploram quanti­


dades apreciáveis de terras, de que são plenamente pro­ Colono: camponês não-pro­
prietário, dispondo livremen­
prietários em parte e somente colonos noutra. Mas todos te da própria pessoa, mas he-
estão ligados à sua terra, que não podem abandonar, ou reditariamente ligado à sua
de que, pelo menos, não podem legalmente deixar de terra, que, cm teoria, não tem
pagar o «cânone» (renda) e o imposto. o direito de deixar.
Colonos adscritos e colonos
livres: «Entre os colonos, uns
Os camponeses proprietários. Seria, no entanto, abso­
são adscritos e o seu pecúlio
lutamente inexacto imaginar que as terras da parte orien­ pertence ao respectivo pro­
tal do Império Romano dos sécs. iv-v tenham sido intei­ prietário; os outros, ao fím de
ramente, ou sequer maioritariamente, exploradas por trinta anos tornam-se colonos,
colonos. Primeiro, o Oriente foi, por múltiplas razões, permanecendo livres e com os
seus bens próprios. E suposto
muito menos atingido do que o Ocidente pela crise do que estes trabalhem a terra e
séc. ui, permanecendo os seus campos mais povoados. Em paguem o imposto, isto no in­
consequência, mantém-se um pouco por todo o lado um teresse do proprietário e dos
campesinato de pequenos e médios proprietários, sem camponeses.» Código de Jus-
tiniano, XI, 48, 19 (Anastásio).
dúvida até maioritário nas zonas mais prósperas, como a
Síria do Norte. Os textos atestam, desde essa época, a
pujança das aldeias de camponeses proprietários, inte­
grados numa unidade fiscal. Essas aldeias são, em geral,
aglomerações relativamente importantes, designadas pelo
termo de koumê ou povoado. Nalgumas desenvolveu-se
uma verdadeira organização decalcada sobre a da cidade,
com assembleia deliberativa e chefes de povoado: os «notá­
veis do povoado» (protokomètes).

Os grandes domínios. Por outro lado, subsistem gran­


des domínios explorados através da mão-de-obra servil:
vários milhares de escravos para vários milhares de hec­
tares. A abundante documentação papirológica do Egipto
descreve-no-los, envolvendo, porém, o risco de nos levar
a sobrestimar a sua importância; de facto, eles estão pre­
sentes em toda a parte. A maioria das grandes proprie­
dades orientais estão, todavia, relativamente fragmenta­
das. Na sua maior parte são constituídas por um mosaico
de domínios (em grego, c/zúrion), estando o essencial das
terras concedidas em arrendamento de longuíssima dura­
ção a arrendatários ou colonos, cuja única obrigação ver­
dadeira para com o dono do solo é pagar uma renda.
Cada um daqueles fica à frente da sua exploração, com a
sua casa e quintal; o domínio torna-se, assim, numa povoa­
ção de pequenos agricultores, passando o termo chôrion
a designar também a aldeia bizantina.
Podem distinguir-se três categorias de grandes pro­
prietários. Os mais mal conhecidos, por falta de documen­
tação - exceptuado o caso do Egipto -, são os grandes
proprietários privados. São muitos os senadores de Cons­
tantinopla que residem na capital e possuem domínios
disseminados por todo o Império, principalmente nas pro­
víncias orientais. O Estado (a Fazenda), a Coroa (fortuna
privada ou res privata), o imperador (casas divinas) pos-

51
suem domínios que provêm quer de antigos bens do
Estado, quer das sucessivas famílias imperiais, quer dos
domínios reais helenísticos, ou que foram confiscados a
pessoas privadas ao acaso dos acontecimentos. Com­
preende-se assim a grande dispersão destes bens, encon­
trando-se todavia agrupado na Capadócia um bloco par­
ticularmente importante.

Os domínios eclesiásticos. A Igreja, enfim, está rica­


mente provida de bens. Beneficiária do privilégio da ina-
lienabilidade, recebendo constantemente doações, ela
adquiriu em dois séculos uma fortuna considerável. Os mos­
teiros são ainda relativamente pouco numerosos e mal
dotados, mas os episcopados e os estabelecimentos de cari­
dade possuem vastas fortunas. No entanto, a desigualdade
é grande entre instituições ricas, com abundantes rendi­
mentos que lhes permitem investir, e outras a quem a
ameaça da ruína leva a rodear a interdição de alienar.
Os episcopados mais ricos tinham um rendimento supe­
rior a 30 libras de ouro por ano, alguns até dez ou vinte
vezes mais; as instituições mais pobres não chegavam a
auferir 2 libras!
Seja qual for a categoria da propriedade, sempre se
distingue com nitidez a unidade económica de base, que
é a «casa» {oikos). A «casa» organiza a partir de um ponto
central, muitas vezes um palácio da capital que lhe dá o
nome, a exploração de domínios mais ou menos disper­
sos por diversas regiões, e confiados a feitores ou a arren­
datários. O ponto central da «casa» é, antes de mais, um
ponto de confluência dos rendimentos. Localmente, o
domínio entregue ao feitor ou ao rendeiro é explorado
quer directamente por escravos ou (e) assalariados, quer
Enfiteuta: concessionário de indirectamente por colonos ou enfiteutas (também cha­
uma terra por várias gerações, mados perpetuários), quer pelas duas categorias. O impe­
ou perpetuamente, mediante rador é proprietário de um certo número dessas «casas»,
uma ligeira renda ou «câno­
ne», ou mesmo sem qualquer qualificadas então de «divinas».
«cânone». O controle do pro­
prietário é de facto inexisten­ A evolução dos campos no séc. VI. O mundo rural do
te e a Igreja considerava a en­ séc. vi é marcado pelo aparecimento de um certo número
fiteuse perpétua como uma de tendências importantes para o futuro. Um dos factos
alienação. principais é, sem dúvida, uma nova rarefacção da mão-de-
-obra à volta do ano 500, a que se seguiu um período de
estagnação. O afluxo de novos escravos é, na verdade,
cada vez menos significativo. Os grandes domínios encon­
tram-se, assim, perante dificuldades crescentes de mão-
-de-obra. Os da Igreja parecem particularmente ameaça­
dos, enquanto os poderosos proprietários laicos continuam
a aumentar os seus bens. Também é verdade que o
pequeno camponês se acha numa posição relativamente
favorável, ajudado nisso pelo Estado que torna menos rigo­
roso o vínculo à terra dos colonos e, a partir de meados

52
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino ajustiniano (330-565)

do século, começa a atenuar os impostos, deixando uma


maior possibilidade de investimento ao pequeno contri­
buinte. Assim, a condição dos colonos aproxima-se da do
pequeno proprietário. Desenvolve-se desse modo, singu­
larmente em detrimento da Igreja, a categoria dos «enfi­
teutas», sucessores dos «perpetuários», concessionários
mais ou menos perpétuos de terras mediante uma renda
baixa, ou mesmo sem renda nenhuma, numa situação
muito próxima da propriedade plena. A partir da segunda
metade do séc. vi multiplicam-se, assim, os pequenos cam­
poneses independentes.

O comércio ■

Examinaremos ulteriormente o grande comércio inter­


nacional, que ocupa de facto um lugar relativamente
menor na actividade mercantil de um império cuja dimen­
são faz dele, só por si, um extenso mercado. O comércio
interno é, pois, o mais importante, embora o volume glo­
bal do comércio não deva ser sobrestimado: os campos
vivem, em parte, em autarcia, com o seu artesanato local,
enquanto os grandes proprietários possuem também ofi­
cinas nos seus domínios.
Embora a rede viária romana, com as suas postas sepa­
radas entre si 15-20 km., esteja bem conservada, o comér­
cio dos produtos mais importantes faz-se sobretudo por
via aquática - marítima ou fluvial - porque o transporte
é, deste modo, menos dispendioso: o preço do transporte
marítimo de Alexandria a Constantinopla não é superior
ao que custaria um transporte terrestre de 120 ou 150 km,
de igual quantidade de mercadorias. O abastecimento
das cidades do interior, como Cesareia da Capadócia,
levanta muitas vezes problemas, enquanto no Egipto
nenhum ponto de terra cultivável dista do Nilo mais de
15 km.

O comércio do trigo. O comércio de maior escala era


o do trigo, necessário ao abastecimento de Constan­
tinopla, com uma população que crescia incessantemente.
O trigo do Egipto, que outrora abastecera Roma, foi uti­
lizado segundo o mesmo sistema de levantamento obri­
gatório na fonte e de distribuições gratuitas na capital.
Em cada ano, a 10 de Setembro, o «feliz transporte» faz-
-se à vela no Egipto; a sua chegada a tempo e horas é
fundamental para a paz em Constantinopla, tendo o seu
atraso estado na origem de tumultos. Um certo número Modios: medida de capacidade
de negociantes, os «naviculários», tinham a obrigação e de um pouco menos de 9 li­
o monopólio deste comércio. No tempo de Constantino, tros no Egipto e do dobro na
maior parte das regiões do
chegavam ao Bósforo 14 milhões de modioi, tanto quanto Império.
outrora a Roma. Mas, na sequência da expansão demo-

53
gráfica da capital, em breve o Egipto deixou de poder
fazer face às suas necessidades alimentares. Foi necessá­
rio recorrer a outros mercados (Trácia, Bitínia, Frigia,
Grécia). Estas regiões substituíram o Egipto, quando este
foi perdido, numa época em que - é verdade! - a popu­
lação da capital tinha diminuído. Quanto às distribui­
ções gratuitas, depressa foram reservadas apenas para os
dias de festa.

O comércio local. O comércio local era indubitavel­


mente o mais importante. As aldeias comportavam nume­
rosos artesãos e as suas feiras, acolhendo também os mer­
cadores das urbes mais próximas e os produtos dos
camponeses, não ficavam atrás das das pequenas cidades.
Estas distinguiam-se sobretudo pela existência de um
comércio alimentar e de artesãos muito qualificados, pro­
vendo às necessidades da aristocracia local - bispo, fun­
cionários e proprietários de domínios -, estes últimos
vivendo mais na cidade do que nas suas terras. Os artigos
de luxo nem sempre estavam à venda nas cidades, mesmo
nas de alguma importância, mas somente quando apare­
ciam os bufarinheiros, por ocasião de reuniões nas capi­
tais provinciais, nomeadamente dos concílios religiosos,
em regra anuais.

Os habitantes das cidades. Nestas condições, os comer­


ciantes não eram verdadeiramente ricos, nem pelo ren­
dimento que auferiam nem pelo capital de que dispu­
nham. Na Mesopotâmia, um agente comercial que
negociava com o Extremo Oriente ganhava 5 soldos por
ano, mais alguma pequena importância como lucro, o que
mal o distinguia do operário. O capital médio do merca­
dor não chegava a atingir 500 soldos e o de um grande
negociante de Alexandria alcançava quando muito 50
Libra = 72 soldos. A libra é uma libras de ouro (3600 soldos, ou seja, muito menos do que
unidade de conta. o rendimento anual do patriarca da mesma cidade).
Verdadeiramente ricos, somente os proprietários fundiá­
rios, sobretudo os senadores, que viviam na sua maioria
em Constantinopla e possuíam fortunas da ordem das
1000 libras de ouro.
A grande massa dos comerciantes e artesãos estava ali­
nhada entre os «pequenos», os plebeus; raramente che­
gavam a exercer uma magistratura. Alguns artesãos pos­
suíam escravos e pagavam a trabalhadores assalariados,
outros não tinham mais do que os seus instrumentos.
O imposto pago pelos habitantes das cidades, o chrysargy-
ron, aliás pouco elevado, era mesmo assim muito pesado
e Anastásio teve de o abolir. Os assalariados ganhavam
um kération (1/24 de soldo) ou menos por dia, quando
tinham trabalho. Os escravos não eram muito mais infe­
lizes.

54
O nascimento do Império Bizantino: de Constantino a Justiniano (330-565?

A crise da cidade ■

A cidade desempenhava no mundo romano antigo um


papel determinante: a urbe era, com efeito, a mais pequena
unidade administrativa e o principal sustentáculo do Estado.
A aristocracia municipal, constituída em conselho ou curia,
e composta por pessoas designadas, consequentemente,
por curiais, tinha a seu cargo não só a manutenção dos
edifícios públicos - banhos, muralhas, aquedutos, etc. -
e da assistência pública, mas também a cobrança do
imposto nos campos; era mesmo responsável pelo mon­
tante efectivamente arrecadado. O lugar de curial, inicial­
mente honorífico e lucrativo - e muito cobiçado torna-
-se cada vez mais pesado, ou mesmo insuportável e ruinoso,
quando um número crescente de cidadãos, em geral os
mais ricos, pelas suas funções civis ou militares, começa
a evitá-lo.
A maior parte dos curiais, residentes nas cidades, reti­
ram o essencial dos seus meios de existência e do seu con­
sumo de luxo das respectivas propriedades rurais. O desen­
volvimento do padroado priva-os de uma parte dos seus
rendimentos e impede-os de cobrar os impostos por que
são responsáveis. A condição de curial torna-se cada vez
mais penosa. Justiniano é mesmo obrigado a criar um vín­
culo entre esta condição e a titularidade da propriedade
fundiária. A forte redução do nível de vida desta elite local
implica, num grande número de cidades secundárias
- sobretudo as situadas longe dos grandes eixos comer­
ciais -, uma crise das actividades propriamente urbanas.
Ainda antes de as invasões persa e árabe do séc. vil lhe
terem desferido o golpe de misericórdia, com destruições
violentas e irreparáveis, o mundo da cidade, que tão mar-
cadamente caracterizava a sociedade romana, soçobra de
modo definitivo. E realmente o fim do mundo antigo e
o início da era bizantina, onde os campos predominam e
onde o Estado exerce directamente a administração.

Para aprofundar este capítulo

Embora densa e complexa, a obra de E. STEIN, Histoire


du Bas-Empire (284-565), 2 vols., Paris, 1949 e 1959, man­
tém-se válida. Mais centrado sobre as instituições e a socie­
dade é o livro de A. H. M. JONES, The Later Roman Empire,
Oxford, 1964, resumido em francês sob o título Le Déclin
du Monde Antique (284-610), Paris, 1970. Para um período
indo até 491, o t. 11 da «Nouvelle Clio», R. RÉMONDON,

55
La Crise de Vempire romain, Paris, 1970, apresenta uma sín­
tese notável, uma boa bibliografia e o estudo de certos
problemas. Mais recente, A. CAMERON, Change and
Continuity in sixth Century Byzantium, Variorum Reprints,
1983; e A. CAMERON, Procopius and the sixth Century, Londres,
1985. Sobre os problemas administrativos e fiscais, ver
essencialmente E. Stein e A. II. M. Jones.
Sobre Constantinopla: G. DAGRON, Naissance d’une capi-
tale..., citado na pág. 14; do mesmo autor, Constantinople
imaginaire. Etudes sur le recueil des Patria, Paris, 1984; C.
MANGO, Le Développement urbain de Constantinople (IVe.-VIIe.
siècles), Paris, 1985; sobre as facções, A. CAMERON, Blues
and Greens at Rome and Byzantium, Oxford, 1976, e sobre
a topografia, R. JANIN, Constantinople byzantine, 2.â ed.,
Paris, 1964.
Sobre os problemas religiosos deverão utilizar-se, com
prudência, as histórias da Igreja. A melhor obra foi recen­
temente reeditada: H.-I. MARROU, LÉglise de lAntiquité tar-
dive (303-604), Paris, «Points Seuil», 1985. Consultar-se-á
com proveito G. DAGRON, La Romanité chrétienne en Orient.
Héritages et Mutations, Londres, Variorum Reprints, 1984.
Sobre o santo homem, P. BROWN, Society and the Holy in
Late Antiquity, Berkeley, 1982. Sobre as províncias orien­
tais, R. P. PEETERS, Le Tréfonds oriental de Vhagiographie
byzantine, Bruxelas, 1950.
Não há uma síntese da história económica e social
desta época. Poder-se-á consultar a recente obra colectiva
Hommes et Richesses..., citada na pág. 15. Quanto aos cam­
pos, ver P. Lemerle (cfr. pág. 15), que faz o ponto da
situação sobre o colonato. Quanto aos grandes domínios,
ver E. STEIN, «Paysannerie et grands domaines dans
1’Empire byzantin», Recueils de la SociétéJean Bodin, Bruxelas,
1937, pp. 123-133. Estudou-se sobretudo o Egipto: em
último lugar, J. GASCOU, «Les Grands Domaines, la Cite
et 1’Etat en Egypte Byzantine», Travaux et Mémoires, 9, 1985,
pp. 1-89. Do mesmo modo, o comércio mais estudado é
o do trigo: J. L. TEALL, «The Grain Supply of the Byzantine
Empire (330-1025)», Dumbarton Oaks Papers, 13, 1959,
pp. 87-139. Quanto à Síria, J. P. SODINT, G. Tate e coL:
Déhès (Síria do Norte, Campos I-II (1976-1978).
Recherches sur Fhabitat rural, Syria, 51, 1980, pp. 1-308.
Quanto às cidades, A. H. M. JONES, The Cities of theEastem
Roman Provinces, Oxford, 1971, e mais recentemente,
J. M. SPIESER, Thessalonique et ses Monuments du IVe. au VT.
siècle, Atenas-Paris, 1984. Sobre as mudanças económicas
e sociais: cfr. pág. 15; P. Charanis, «Social Structure of
the Later Roman Empire», Byzantion, 17, 1944, pp. 39-57.

56
O Império Persa Sassânida
(sécs. iv-vii)

No princípio do séc. III, o rei parta Artabano V foi batido por Ardachir que se fez coroar rei em
Ctesifonte, em 226: fundava assim o Império Persa Sassânida, que pretendia renovar as tradições
aqueménidas. Em resultado de uma série de guerras, sobretudo contra os Romanos, a fronteira foi
estabelecida no Eufrates e ao sul do Cáspio. Duas zonas ficaram mais indefinidas: a leste, o Império
Cuxana, sob a pressão dos povos turco-mongóis, tendia a empurrar a sua própria fronteira cada vez
mais para ocidente, enquanto, a noroeste, a Arménia se recusava a aceitar a revolução sassânida.
Dois novos problemas apareceram no séc. IV: o estabelecimento em Constantinopla da capital do Império
Romano aproximou de Ctesifonte o adversário ocidental; por outro lado, o Império Romano adoptou,
como religião oficial, o cristianismo, que jâ possuía numerosos adeptos na Mesopotâmia persa, e que
foi igualmente adoptado na Arménia.

1. Consolidação do Império (sécs. iv-v)

O problema das fronteiras ■

A paz com Constantinopla. Uma série de guerras com Ardacher descendia de Sassan,
os Romanos resultou, em 395 ou 399, num tratado de paz. sacerdote de um templo de
Stakhr, em Pérsida, que se di­
A sua cláusula principal previa a partilha da Arménia, cujo zia descendente dos Persas
território oriental se tornou parte integrante do Império Aqueménidas.
Sassânida. A despeito de períodos de tensão provocados Aqueménidas: dinastia persa
por problemas religiosos, a paz com o Ocidente duraria que reinou de 668 a 330 a. C.
e se distinguiu com Dario e
praticamente todo o séc. V.
Xerxes.

As ameaças orientais. A pressão e a infiltração de tri­


bos turcas constrangeram os reis persas a desencadear
numerosas expedições contra os Cuxanas, mas o problema
agudizou-se quando, cerca de 440, estes últimos foram
substituídos pelos Hunos Heftalitas. A batalha travada em
484 por Peroz contra os Hunos foi uma catástrofe: dizi­ Soberanos sassânidas dos séc. IV e V
mado o exército persa, os Hunos avançaram até Merv e Sapor II (310-379)
Harat e impuseram um tributo anual à Pérsia que entrou Ardacher II (379-383)
assim numa onerosa dependência. Sapor III (383-388)
Bahram IV (388-399)
Yazdagird I (399-420)
Bahram V (420-438)
O zoroastrismo, religião de Estado ■ Yazdagird II (438-457)
Hormizd II (457-459)
Os Sassânidas estabeleceram como religião oficial o Peroz (459-484)
Balash (484-488)
masdeísmo ou zoroastrismo, nascido de uma reforma do
antigo politeísmo indo-europeu por Zoroastro. Os textos
sagrados (Avesta), conservados em raros exemplares, foram
compilados pelos Sassânidas que aprovaram uma cópia
oficial, com aditamentos científicos. O culto compreen­
dia sobretudo a adoração do Fogo, em pireus; estes tem­
plos, existentes à dimensão da casa, da aldeia, do cantão,
da província, erguiam-se por todo o reino. Três de entre
eles estavam ligados aos três corpos sociais instituídos pela
dinastia: o Fogo dos padres, o Fogo dos guerreiros ou Fogo
real e o Fogo dos agricultores.
O clero, originalmente recrutado numa tribo meda,
assegurava o culto, a direcção moral e o ensino do povo.
Estritamente hierarquizado, compreendia na base sacer­
dotes ou magos. Alguns, os mobadan, administravam os
Mazdeísmo: do nome de distritos eclesiásticos. Na cúpula, o mobadan mobad tinha
Ahura Mazda que, no cume a direcção suprema dos assuntos religiosos. O clero inter­
do mundo divino, reina sobre
diversas entidades divinizadas vinha em todos os actos da vida do indivíduo: assim o
e se opõe a Ahriman, príncipe Grande Mobad tornou-se progressivamente numa das pri­
do mal, e aos seus demónios. meiras personagens do Império.
ZOROASTRO (OU ZARATUSTRA):
sacerdote de uma comunida­ O masdeísmo não fazia propaganda exterior, mas aspi­
de rural da Corásmia, que te­ rava a um domínio absoluto no interior das fronteiras. No
ria vivido cerca de 600 a. C. séc. ui, os magos tinham conseguido afastar a ameaça
Pireu: templo comportando
uma sala onde ardia o fogo e maniqueia. Mas os cristãos, da Mesopotâmia ou da Arménia,
sobrepujado por uma cúpula. levantavam-lhes outros problemas porque, além das suas
O culto envolvia a alimenta­ diferenças religiosas, eram sempre suspeitos de simpatia
ção do fogo, com madeiras ri­ para com Constantinopla. A sua situação foi assim função
tualmente purificadas, a ofe­
renda de ramos esmagados de
das relações entre Persas e Romanos. Graças à paz de 399,
certa planta e a recitação de a Igreja da Pérsia pôde organizar-se: adoptou o nestoria-
orações. nismo em 486, o que afastou todo o problema político.
Mani (216-276): heresiarca in­ A Arménia foi objecto de várias tentativas pouco frutuo­
fluenciado pelo dualismo ira­ sas para implantar aí o culto do Fogo. Nesta região os pro­
niano.
blemas foram atenuados pela adopção do monofisismo
pelos Arménios.

■ O poder real

Ardachir I tinha rompido radicalmente com a tradi­


ção parta, introduzindo uma firme centralização e tendo
Vaspuhrs: aristocracia fundiá­ na mão os governadores de província. Mas os grandes vas­
ria de remota origem. puhrs não renunciaram às suas prerrogativas e o clero quis
controlar uma monarquia que, desde o princípio, pre­
tendeu retirar o seu poder de uma investidura divina.
A fraqueza dos sucessores de Sapor II e a ausência de
uma tradição definida em matéria de sucessão permiti­
ram aos nobres e ao clero controlar o poder real. O reino
tornou-se numa espécie de monarquia electiva na família
dos Sassânidas. A eleição pertencia aos mais altos digni­
tários do Estado e, em última instância, dependia do

58
O Império Persa Sassânida (sécs. IV-vhí

Grande Mobad. A sua política anticristã ocasionou difi­


culdades com Constantinopla e sobretudo uma grande
revolta da Arménia em 450. O Império suportava longos
esforços financeiros impostos pelas guerras orientais, secas
e fome. E então que ocorre a grande derrota de 484
perante os Hunos. Um pesado tributo anual agravou as
dificuldades do país e praticamente não existia exército
quando, em 488, chegou ao poder o filho de Peroz, Kavad:
as suas boas relações com os Heftalitas, entre os quais
tinha sido criado, eram um bom augúrio.

2. Organização do Império
Eran-Spahbadh: Chefe dos
Os primeiros Sassânidas tiveram de ter em considera­ Guerreiros. Tinha a tripla fun­
ção a altíssima nobreza dos vaspuhrs. A sua política con­ ção de ministro da guerra, co­
mandante em chefe e nego­
sistiu em apoiarem-se na classe dos médios proprietários ciador da paz; o exército
fundiários para constituírem uma administração estável traduzia-se essencialmente nu­
ligando a província à capital. ma cavalaria couraçada, com­
pletada por tropas auxiliares
recrutadas nos confins do Im­
pério.
A administração central ■ Eran-Dibherbadh: Chefe do
Governo. Tinha grande poder
O Grande Mobad, provavelmente nomeado pelo rei, sobre os secretários de Estado,
que desempenhavam um pa­
aconselhava-o em todos os casos em que se tratasse da reli­ pel considerável e eram ver­
gião e podia inspirar largamente a sua política. O grão- dadeiros peritos em direito,
-vizir dirigia a administração central, mas a extensão do em política e em poesia; sete
seu poder é mal conhecida. Três outros grandes dignitá­ altos secretários tinham fun­
rios tinham importantes funções: o chefe dos Guerreiros, ções precisas: justiça, rendi­
mentos do Império, da corte
o chefe da Burocracia e o chefe dos Agricultores e dos real, do tesouro, das cavalari­
Artesãos, responsável pela cobrança do imposto predial e ças reais, dos templos do fo­
da capitação. A contribuição predial, paga pelos campo­ go, das obras pias.
neses, estava escalonada em fimção da fertilidade da terra, Vastryoshbadh: Chefe dos
Agricultores e dos Artesãos.
indo o seu montante do terço ao sexto da colheita, pelo Dignitário com funções com­
que o rendimento global variava muito de um ano para plexas, controlava sobretudo
o outro. A capitação era paga por todos, salvo os nobres, as finanças do Império.
os padres, os soldados e os funcionários. Os rendimentos Ctesifonte: conjunto de cida­
do Império compreendiam, além disso, contribuições des envolvido por muralhas
fortificadas nas duas margens
extraordinárias para a guerra, os donativos do costume, do Tigre, e ligadas por duas
os rendimentos dos domínios reais, os direitos alfande­ pontes. Ctesifonte propria­
gários. mente dita situava-se na mar­
gem esquerda, tendo, a Leste,
o palácio real Taq-e-Kesra. Na
margem direita localizava-se
A administração das províncias ■ Selêucia, antiga cidade selêu-
cida reconstruída e centro de
Os Sassânidas preocuparam-se em ligar cuidadosamente um comércio activo. Duas ou­
a província à capital. Materialmente, um bom serviço de tras pequenas cidades com­
pletavam este conjunto.
correios assegurava as comunicações.

59
Alguns príncipes vassalos que tinham o título de reis,
os xás, foram mantidos nas fronteiras, como foi o caso
dos príncipes laquemidas de Hira ou dos reis da Arménia
(até 430). Mas de uma maneira geral, o Império estava
dividido em províncias dirigidas pelos marzbans, escolhi­
dos na alta nobreza. As províncias dividiam-se em nomos
e cantões, que tinham por sede uma cidade. O cantão era
administrado por um funcionário escolhido entre os che­
fes de aldeia, ou dehkans. Aquelas tinham um carácter
sobretudo militar, e os marzbans dependiam totalmente
do soberano. A verdadeira administração civil exercia-se
ao nível dos cantões: nestes assentava a estabilidade efec-
tiva do país. Ctesifonte era a capital deste Império. Era
lá, fora do território iraniano, que residia o Rei dos reis.

■ Vida económica e social

A agricultura. A agricultura constituía a base económica


do Império. Grandes domínios, cujo modo de exploração
é mal conhecido, pertenciam à nobreza, aos grandes tem­
plos e ao Estado. Parece que os escravos estavam em vias
de libertação, mas os camponeses estavam vinculados à
gleba e a lei garantia-lhes pouca protecção. Obrigados ao
pagamento do imposto predial e da capitação, tinham de
servir no exército como soldados de infantaria. A irrigação
era cuidadosamente regulamentada e o desenvolvimento
urbano, que caracteriza a época sassânida, está ligado, nas
suas causas e nos seus efeitos, à actividade agrícola.

O desenvolvimento urbano. Fundaram-se novas cidades


que foram povoadas sobretudo com artesãos capturados
durante as guerras. Pagando apenas a capitação e dispen­
sados do serviço militar, os artesãos desfrutavam de melhor
sorte do que os camponeses, mas suportavam, em tempo
de guerra, o peso de gravosas contribuições. Encontravam-
-se entre eles os grupos cristãos mais numerosos. A activi­
dade mais conhecida era a tecelagem da seda. O império
sassânida, com efeito, tirou largamente partido da sua situa­
ção entre o mundo mediterrânico e o mundo chinês.

As estradas. A partir de Ctesifonte, as estradas, para


leste, levavam a Hamadã, à Susiana, à Pérsia e ao golfo
Pérsico. Outra estrada ligava Hamadã a Rey, após o que
se dividia, permitindo alcançar quer as margens do Cáspio,
quer Cabul e a índia, quer a China. Este último itinerá­
rio implicava boas relações com as potências da Ásia
Central: Cuxanas, Hunos Heftalitas ou Turcos. Os Persas
desenvolveram também uma poderosa armada que, pelo
golfo Pérsico, captava, em detrimento do mundo árabe,
uma grande parte do tráfico do oceano índico.

60
O Império Persa Sassânida (sécs. iv-vii)

As trocas. Uma importante corrente de trocas dirigia-


-se para as estepes setentrionais. Entretanto, o comércio
com o mundo romano que se efectuava na Alta Meso-
potâmia (por Nísibis e Dara) e na Arménia (por Artáxata),
constituía, para a Pérsia, o complemento indispensável
às suas actividades com o mundo asiático. Uma moeda
de prata, o direm, sustentava este comércio: com um
peso mais ou menos constante, entre 3,65 e 3,94 gramas,
ela mostrava no verso o busto do rei, com inscrições em
pahlavi, e no reverso o templo do fogo: o direm sassânida Pahlavi: língua iraniana oficial
rivalizava nos mercados orientais com o nomisma de ouro dos Sassânidas, escrita num al­
fabeto derivado do aramaico.
bizantino.
Mazdakismo: seita dualista
Todavia, os principais beneficiários desta actividade com origens tão mal conheci­
das quanto o seu fundador,
eram os nobres e o clero. A sociedade iraniana, essencial­
Mazdak, que, no final do séc. v,
mente aristocrática, estava estratificada em classes bem reformou as ideias de Mani
definidas e a lei, baseada no Avesta, esforçava-se por garan­ através da elaboração de toda
tir a conservação da família e da propriedade e por man­ uma cosmogonia, mas desen­
ter as diferenças sociais. Admite-se que no termo do séc. v volvendo também um progra­
ma social: contra o ódio e a
os meios populares tenham especialmente sofrido com a discórdia provocados pela de­
situação geral. O peso dos impostos e das contribuições sigualdade, tornava-se neces­
de guerra levou muitos iranianos a escutar as teorias então sário restabelecer a igualdade
divulgadas pelos Masdaquitas, de que retinham sobretudo primitiva e pôr em comum os
bens e as mulheres.
os aspectos sociais.

3. A afirmação do poder real

Momentaneamente tentado pelas ideias masdaquitas, Últimos soberanos


Kavad dedicou-se, a partir de 499, a fortalecer o poder Kavad I (488-531)
real reformando certas funções palacianas. As pilhagens Cósroes I (531-579)
e motins suscitados pelos masdaquitas levaram-no a uma Hormizd IV (579-590)
Cósroes II (590-628)
severa repressão, que lhe valeu o apoio do clero e a desig­ Kavad II (628)
nação de seu filho Cósroes como sucessor. Ardacher II (628-630)
regentes efémeros
Yazdagird III (632-651)
Cósroes / ■

Cósroes, cognominado Anôchirvan, «o da alma imor­


tal», inaugurou o período mais brilhante do Império.
Depois de ter restabelecido a ordem social, reformou - tor­
nando-o mais leve - o sistema tributário e operou uma
reforma militar: foi criada uma cavalaria iraniana perma­
nente, reforçada por corpos auxiliares, e a função de
Eranspahbad repartida por quatro generais, cada qual res­
ponsável por um quarto do Império e assistido por um
marzban. Estas reformas fiscais e militares permitir-lhe-iam Ver capítulo 4.
conduzir uma política externa expansionista face a
Bizâncio, aos Heftalitas e aos Abissínios, enquanto no inte-

61
rior controlava severamente a aristocracia. A partir do seu
palácio de Ctesifonte, a administração, que operava atra­
vés de ministérios, ou diwâns, garantia o bom funciona­
mento do Império. Uma corte numerosa rodeava o sobe­
rano: os títulos, as doações de trajos honoríficos, os cargos
da corte e do Estado serviam de recompensa e de instru­
mentos de governação. A arte traduz o melhor possível o
brilho deste período.
Mais do que os grandes relevos rupestres, característi­
cos dos primeiros séculos, mais do que os grandes palá­
Iwân: divisão abobadada, com­ cios onde se combinam a abóbada, a cúpula e o iwân, são
preendendo apenas três pa­ as artes sumptuárias que se desenvolvem: na ourivesaria
redes e abrindo directamente sassânida figura, ao lado de cenas de caça ou de ban­
para um pátio.
quetes, o rei no trono ou em combate; sedas sumptuosas
inscrevem em desenhos circulares motivos animais, em
ataque frontal ou em repouso, e personagens à caça.
Objectos de exportação, as grandes salvas de prata, as taças
e as sedas de luxo divulgavam fora do Império a grandeza
do soberano, que as moedas representavam coroado com
Korymbos: coroa alada, so­ o korymbos, a solidez do Estado, o gosto da sociedade pela
brepujada por um globo as­ magnificência e o luxo.
sente num crescente.
Uma grande liberdade de pensamento reinava na
corte. Cósroes, aberto e tolerante, dava nela emprego a
cristãos, acolhia os filósofos gregos, encorajava o ensino
da Medicina. A influência hindu fazia-se sentir, nomea­
damente na literatura, com a tradução em pahlavi das
Fábulas de Kalila e Dimna: ver p. 237. fábulas de Kalila e Dimna. Desenvolviam-se escritos cien­
tíficos.
Este brilho não ia além, no entanto, dos meios aristo­
cráticos. A alta nobreza, dominada e reorganizada, estava
momentaneamente tranquila, a pequena nobreza dos deh-
kans vivia à larga, mas a prosperidade não se tinha real­
mente difundido, e o clima de livre pensamento favore­
cia os críticos contra o dogmatismo zoroástrico.

■ O último grande reinado

O poder real brilharia ainda com um vivo fulgor sob


Cósroes II, mas o que viría a dominar a primeira metade
do séc. VII já se manifestava: as tentativas de usurpação do
poder por generais, cuja influência fora reforçada pela
reforma militar de Cósroes. Infelizmente pouca coisa resta
das construções dessa época, mas os autores árabes e hin­
dus dão-nos a conhecer em pormenor as maravilhas do
palácio de Dastgard, perto de Ctesifonte.
Mas o luxo, o ouro e a riqueza explicavam-se pelos
lucros da guerra, e também por uma dura política interna.
O descontentamento crescia perante a opressão fiscal e

62
O Império Persa Sassânida (sécs. IV-VIl)

o arbitrário para com os grandes; os magos, enfraqueci­


dos e criticados, mas que mantinham todo o seu pode­
rio económico, irritavam-se com os favores feitos aos cris­
tãos. A reconquista de Heraclio marcou o início dos
reveses, ilustrados pela destruição do templo do fogo de
Gandzak em 624 e a tomada do palácio real de Dastgard
em 628.
A morte de Cósroes, que ocorreu pouco depois, foi
seguida de efémeros reinados de príncipes que nem sequer
eram sempre reconhecidos em todo o Império. Enquanto
a administração dos dehkans, na base, se mantinha sólida,
os sintomas de desorganização manifestavam-se na cúpula.
Regionalmente, os spahbads tentavam impor-se e quando,
em 636, os exércitos árabes chegaram a Ctesifonte, já não
existia qualquer autoridade central: o último filho de
Cósroes, Yazdgard, de rei só tinha o título.

Para aprofundar este capítulo

As obras de J. Gage, La Montée des Sassanides et VHeure


de Palmyre, Paris, 1964, e de R. GHIRSHMANN, LTran, des
origines à ITslam, Paris, 1951, permitem completar as indi­
cações fornecidas na p. 13.
Alguns aspectos internos são abordados em R. N. FRYE,
«The Political History of Iran under the Sassanians», The
Cambridge History of Iran (cit. p. 13), 3, 1, cap. 4.; N. PlGU-
LEVSKAIA, Les Vi lies de lÊtat iranien aux époques parthe et sas-
sanide. Contribution à Vhistoire sociale de la Basse Antiquité,
Paris, 1963; e J. LABOURT, Le Christianisme dans Pempire perse
sous la dynastie sassanide, Paris, 1904.
Sobre o lugar dos Sassânidas no mando medieval, deve
referir-se L. BOULNOIS, La Rrmie de la soie, Paris, 1963.
Encontram-se vários estudos nos Dumbarton Oaks Papers,
1970: A. GUILLAUMONT, «Justinien et FÉglise de Perse»,
1972; R. Frye, «Byzantine and Sassanian trade with N. E.
Rússia»; A. D. H. Bivar, «Cavalry equipments and tactics
on the Euphrates Frontier»; I. SHADID, «The Iranian Factor
in Byzantium during the reign of Heraklius».
Sobre a arte: R. GHIRSHMANN, Parthes et Sassanides (col.
«Univers des Formes»), Paris, 1962; A. GODARD, Z/Arí de
1’Iran, Paris, 1962. Catalogue de Vexposition du Petit-Palais
(Out. 1961-Jan. 1962), «Sept mille ans d’art en Iran», e
D. SHEPERD, «Sassanian Art», The Cambridge History of Iran
(cit. p. 13), 3, 2, cap. 29.

63
4
Trocas e relações
no Próximo Oriente
(sécs. iv-vi)

Uma fronteira comum punha em contacto os dois grandes impérios. A norte, ela cortava em duas a
Arménia cristã, célebre pelos seus centros mercantis, o seu ouro, os seus cavalos. Cortava também a Alta
Mesopotâmia, por onde passavam os grandes itinerários para a Síria por Edessa, para a Ásia Menor e
Constantinopla por Melitene e Cesareia, para o Irão por Ctesifonte. A sul do Eufrates, a fronteira corria
indecisa através do deserto sírio, terra de ninguém onde, a pouco e pouco, se implantaram tribos árabes.
Através dos dois impérios efectuavam-se as trocas entre o Extremo Oriente e o mundo mediterrâ-
nico, sendo a seda o produto mais importante e o mais simbólico (ver mapa p. 384 A). Da China,
as caravanas alcançavam o Irão, pelo menos quando os senhores da Asia Central e da Sogdiana lho
permitiam. Por via marítima, os carregamentos chineses que acompanhavam os produtos da índia,
da Arábia ou da África chegavam ao mundo romano pelo golfo Pérsico com o intermediário sassâ-
nida, ou pelo mar Vermelho com o controle abissínio. Modificações nos itinerários comerciais podiam
transformar a complementaridade dos dois impérios em rivalidade aberta, embora, por vezes, o estado
das outras fronteiras os obrigasse a contemporizarem.
Deste modo, o rei dos reis persa e o imperador romano, aspirando sempre igualmente à autoridade
universal, sabiam apreciar-se reciprocamente face ao mundo dos Bárbaros. Uma diplomacia activa
desenrolava-se entre eles: troca de embaixadas, conclusão de tratados, envio de presentes, assistência
técnica pontuavam essas relações. Entretanto, os factos principais desse período foram as grandes
mudanças que se operaram nos mundos periféricos: aparecimento das primeiras populações turcas na
Asia Central, abertura da rota das estepes eurasiáticas, e transformações do mundo árabe onde Meca
assumiu lentamente importância.

í. O mundo das estepes e da Ásia Central

As estepes do Ponto Euxino apresentavam, pelas suas


riquezas em trigo e em produtos florestais, um grande
interesse para o mundo mediterrânico. Relativamente
autónomas face ao conjunto das estepes eurasiáticas, sofre­
ram a pouco e pouco o contragolpe das transformações
do mundo extremo-oriental.

■ Equilíbrio até ao fim do séc. iv

Os Godos e os Eslavos. Desde 250 a. C. que as dinas-


| tias chinesas, inquietas com o desenvolvimento dos nóma-

64
Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. iv-vi)

das Xiongnu, se tinham esforçado por contê-los na estepe


Xiongnu: poderosa confede­
através da construção do sistema das Grandes Muralhas. ração de nômadas turco-mon­
Em consequência, acentuou-se a pressão dos nômadas góis, dominando as regiões do
sobre as populações mais ocidentais, que se deslocaram. Altai, do lago Baikal e do de­
Enquanto ao sul do Cáspio certos povos iranianos fun­ serto de Gobi, e em contacto
davam o Reino Parta e outros o Império Cuxana, ao norte directo com o mundo chinês.
Sármatas: cavaleiros nômadas
os Sármatas instalavam-se nas estepes pônticas. Perto deles, indo-europeus, que deviam a
no final do séc. II, estabeleceram-se os Godos: a extensão sua superioridade à utilização
da zona que estes controlaram ainda é controversa, mas do estribo.
é certo que entabularam boas relações com os Alanos e Alanos: tribo sármata estabe­
lecida entre o Don e o Cáspio.
entraram em contacto com o mundo romano. Na bacia Godos: povo germânico vin­
superior do Dniepre, distinguem-se os traços de um pri­ do do Baixo Vístula.
meiro povoamento eslavo, ainda pouco denso; no prin­
cípio do séc. iv, em condições mal conhecidas, os Eslavos
iniciam uma lenta expansão para leste, ao mesmo tempo
que povos fino-ugrianos, antepassados dos Magiares, come­
çavam a descer da taiga para o Kama.

Os Cuxanas. Na Ásia Central, os Cuxanas foram os vizi­


nhos dos Partas e, depois, dos Persas Sassânidas. Domi­
nando a Bactriana e a Sogdiana, e posteriormente a índia
Setentrional, o Império Cuxana controlava as rotas para
a China, através da bacia do Tarim, e interpunha-se entre
o mundo mediterrânico e o mundo oriental. Pela sua esta­
bilidade, favoreceu activas relações comerciais e religio­
sas ao longo dos itinerários terrestres da seda.
Esta situação geral de equilíbrio terminou no séc. iv,
com as primeiras vagas de populações vindas do fundo da
Ásia.

No séc, v: Hunos e Heftalitas ■

Cerca de 374, os Hunos varreram o Império dos Godos Hunos: povo compósito, tal­
e avançaram pelo vale do Danúbio para a Panónia. Átila vez descendente dos Xiongnu.
(434-453) fez da sua confederação um estado poderoso
que, pelas suas incursões nos Balcãs, pesou fortemente
sobre o Império Romano. Entretanto, após a sua morte,
os Hunos refluíram para o Norte da Crimeia e o Don;
divididos em hordas rivais, deixaram de ser um perigo
real para Constantinopla. Ao mesmo tempo, os Sassânidas i
confrontavam-se com os Heftalitas da Ásia Central. Com ;
efeito, o desaparecimento dos Han no séc. m, seguido de
um longo período de confusão na China, tinha favore­
cido o desenvolvimento nas estepes da Mongólia de uma
nova confederação nômada, a dos Xuan-Xuan; várias tri­
bos, provavelmente turco-mongóis iranizadas, partiram
para oeste. Empregados, primeiro, como mercenários pelos
Cuxanas, os seus membros conseguiram, nos anos 440,
tomar o lugar daqueles na Bactriana e na Sogdiana.
Temíveis vizinhos dos Sassânidas, que os designam pelo

65
nome de Hunos Heftalitas, penetram na índia, avançando
depois, em 484, na sequência de uma série de vitórias
sobre os Persas, até Merv e Harat.

■ Meados do séc. vi: o canato turco da Ásia Central

Can: «senhor» ou «príncipe» Em meados do séc. v, o povo turco dos Tu Kiue, que
entre os povos turco-mongóis. vivia no Altai, suplantou os Xuan-Xuan e alargou até à
Ásia Central um império que se organizou em dois cana-
tos: um manteve-se centrado no Orkhon e o outro firmou
em 565 uma aliança com os Sassânidas contra os Heftalitas,
cujo país foi repartido. Os Turcos ficaram com a Sogdiana
e os Persas ocuparam a Bactriana. A fronteira estabelecia-
-se assim sobre o Oxo. A Sogdiana, dividida em pequenos
principados, com Samarcanda como capital, passou a ser
o mais importante centro do comércio da seda.
Os Heftalitas não tinham desaparecido totalmente e for­
mavam, sob a autoridade dos Turcos, pequenas unidades
políticas. Por seu lado, os Turcos controlavam a encruzi­
lhada das rotas da Ásia Central e souberam aproveitar-se
disso. A partir de 567, face à recusa dos Persas de reco­
nhecerem aos mercadores sogdianos a liberdade de comér­
cio, o cã estabeleceu contactos com Constantinopla, em
breve seguidos de trocas comerciais e de uma aliança contra
a Pérsia. Pela primeira vez, por intermédio dos Turcos e
pela rota das estepes, os Romanos podiam contornar o obs­
táculo que a Pérsia constituía na rota dos mercados orientais.
As regiões do Ponto adquiriram então um novo interesse.

Ávares: descendentes dos Os Ávares. Em meados do séc. vi, tinha aí aparecido


Xuan-Xuan ou dos Heftalitas. o povo dos Ávares, empurrado pelo avanço turco. Utilizados
Búlgaros: grupo turco de ori­ pelos Romanos para esmagar definitivamente as últimas
gem mal conhecida, instalado
no norte do Cáspio. tribos hunas, os Ávares, em 560, dominavam a estepe do
Volga ao Danúbio. Controlavam assim as diversas popu­
lações locais, como os Eslavos ou os Búlgaros.
A implantação dos Ávares na planície danubiana origi­
nou, no final do séc. vi, longas guerras com Constantinopla,
guerras que os Ávares por vezes conduziram de acordo com
os Persas, e utilizando os Eslavos. O império Romano con­
seguiu contê-los, por meio de pesados tributos. A derrota
dos Ávares em 626, às portas de Constantinopla, marcou o
fim das suas tentativas de expansão a sul do Danúbio e do
seu controlo sobre a estepe. Os Búlgaros emanciparam-se
e depois, em 642, dividiram-se: um grupo subiu o Volga e
estabeleceu-se na confluência com o Kama, outro partiu
para ocidente e atravessou o Danúbio em 680. Esta divisão
Khazares: novas populações esteve relacionada com a pressão dos khazares, que cria­
turcas vindas de Leste. rão na estepe, entre o Cáucaso, o Don e os Urais, um estado
que durará três séculos.

66
Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. rv-vi)

2. O mundo da Arábia

Permanência aparente na Arábia Central ■

Nomadismo e tribos. Inteiramente desértica, com as


suas vastas estepes e os seus raros pontos de água, a
Arábia Central era o domínio dos Beduínos. O noma­
dismo pastorício caracteriza a Djâhiliyya. A única estru­ Djâhiliyya: termo com que os
tura reconhecida era a tribo, articulada em grupos genea­ muçulmanos designam este
período do paganismo árabe
lógicos - os clãs. Era uma célula autónoma de gente
pré-islâmico.
unida entre si pelo sangue ou a filiação. Os seus mem­
bros, todos iguais, designavam livremente, considerando
as respectivas qualidades pessoais, um chefe, o xeque, que
os dirigia com o auxílio de um conselho. A obediência,
livremente consentida, era revogável. Os escravos, fre­
quentemente libertos, mantinham com o senhor laços
de clientela que faziam deles os seus mawâli. A tribo pro­
tegia o indivíduo: todo o sangue derramado era vingado
pelo parente mais próximo. As razias, admitidas pelo cos­
tume beduíno e pouco sangrentas, possibilitavam o enri­
quecimento, sem que nunca se traduzissem numa ten­
tativa de hegemonia tribal: ao beduíno repugnava
qualquer forma de dominação (jnulk). Ligadas por tro­
cas comerciais, as grandes tribos - Hanifa, Tamím,
Taghlíb... - viviam nos oásis: Nadjrân, Taif, Meca, Medina,
Khaibar. Neles tinham-se instalado judeus sedentários,
igualmente organizados em grupos tribais, aliados das
tribos árabes dos mesmos oásis.

Santuários. A religião tinha um pequeno lugar no


universo dos Beduínos. A par de incontáveis génios, os
«djinns», havia um grande número de divindades de per­
sonalidade pouco marcada. Este politeísmo não excluía
a adoração de Alá, personificação do mundo divino na Allâh: forma contraída do ter­
sua forma mais elevada. Pelo deserto disseminavam-se os mo al-ilâh, «o deus, a divin­
dade». Pertence à mesma raiz
santuários, muitas vezes simples espaços sagrados à volta semítica do hebreu El.
de um ídolo. Alguns sacrifícios, oferendas, procissões em
torno do objecto sagrado e peregrinações não consti­
tuíam um verdadeiro culto. A religião preenchia pouco
espaço dos sentimentos, não obstante a existência de
hanifs. «O humanismo tribal», segundo a feliz expressão Hanif: homem religioso que
de M. Montgomery Watt, dominava e fazia do homem, vive solitariamente.
no seio da sua tribo, o valor supremo. A sua generosi­
dade, a sua hospitalidade, a sua fidelidade eram os valo­
res exaltados pela poesia árabe desses tempos pré-islâ­
micos. O poder de uma tribo podia garantir a segurança
de um santuário num itinerário comercial e fazer dele,
assim, uma etapa preciosa dos nômadas que, aquando
dos períodos sagrados de peregrinação, aí faziam as suas
trocas. Desse modo tinha crescido o santuário de Meca,

67
bem situado nas rotas ligando o Iémen à Síria, numa
garganta do Hejaz, a 80 km do mar. O santuário era for­
mado por um cubo de pedra, a Caaba, que assentava em
três pedras sagradas - uma das quais a Pedra Negra - e
abrigava vários ídolos. No final do séc. v, a tribo dos
Curaichitas tinha sabido ampliar o santuário aonde se
Umra: pequena peregrinação dirigiam regularmente duas peregrinações: a umra e o
a Meca. hadjdj, em que participavam as tribos dos arredores. Os
Hadjdj: grande peregrinação Árabes da península tinham todavia um certo conheci­
a Meca e arredores.
mento das grandes religiões monoteístas, nomeadamente
através dos contactos com os judeus e os cristãos que
viviam na Arábia, ou com quem se encontravam nas tran-
sacções comerciais. Os judeus formavam grandes comu­
nidades, relativamente bem estruturadas, como, por exem­
plo, no oásis de Medina. Os cristãos, embora menos
numerosos e organizados, estavam também presentes:
um importante grupo de cristãos monofisitas vivia em
Nadjrân, no Sul. E conhecido por ter sido perseguido
no princípio do séc. VI e por ter enviado o seu bispo em
delegação a Maomé, no ano 630. Na Arábia do Sul, o
cristianismo e o judaísmo estavam fortemente implanta­
dos, por influência da activa política desenvolvida nessa
região pelos Bizantinos e os Persas. O mesmo se passava
com os principados cristianizados do Norte, Laquemidas
e Gassânidas. As viagens dos grandes mercadores à Síria
e à Mesopotâmia, bem como a pregação dos ascetas vin­
dos do deserto sírio-egípcio, proporcionavam aos Árabes
outras ocasiões para descobrirem as religiões monoteís­
tas, mas também de nelas reconhecerem uma expressão
religiosa própria dos grandes impérios, sobretudo do
bizantino.

■ A Arábia Meridional e o comércio


do oceano Índico: séc. iv-v

O oceano Indico. A actividade comercial no oceano


Reino de Axum: extenso Es­ Índico era antiga. O reino de Axum, com o porto de
tado que abrangia toda a Adúlis, e a África Oriental forneciam o ouro, o marfim,
Etiópia até ao Nilo, o reino de os couros e as peles; a Arábia Meridional exportava os
Axum, cedo convertido ao cris­
tianismo, conheceu um bri­ seus incensos e os seus perfumes; a índia, cujos portos
lhante desenvolvimento entre eram frequentados pelos marinheiros chineses, a seda e
os sécs. iv e vi. os algodões, as pedras preciosas e as especiarias. A pro­
dução de incenso e de perfumes, técnicas agrícolas avan­
çadas e uma importante tradição náutica tinham permi­
tido o desenvolvimento de uma brilhante civilização
sedentária no Iémen e a fundação de colónias árabes
mesmo na Affica Oriental.

O golfo Pérsico. No entanto, entre os séculos m e V,


Persas e Abissínios eclipsaram progressivamente os
Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. iv-vi)

Árabes. Os Sassânidas encorajaram a navegação no golfo


Pérsico: uma parte cio tráfico marítimo oriental foi para
aí atraído, passando os marinheiros persas a frequentar
a África Oriental, a índia e o Ceilão, que se tornou uma
placa giratória do comércio com a China. Ao abrigo da
paz estabelecida no séc. v com os Romanos, os produ­
tos vindos do golfo Pérsico chegavam, através da
Mesopotâmia, aos postos fronteiriços de Nísibis, Dara e
Calinico. Os Abissínios do reino de Axum tinham-se tor­
nado também navegadores e Adúlis comandava o comér­
cio entre o oceano Índico e o Egipto. Esta situação des­
favorecia a Arábia Meridional, assim contornada pelo
comércio e cuja marinha desapareceu. A sua pujança
política, porém, mantinha-se sob o impulso dos Himiaritas, Himiaritas: confederação de
que tendiam a compensar as suas dificuldades maríti­ tribos árabes e nômadas que
se impôs em toda a Arábia do
mas com uma expansão e migração para norte. Tribos Sul nos primeiros séculos da
de beduínos tinham caído na sua dependência, ao mesmo era cristã, em prejuízo dos
tempo que diversas tribos iemenitas se instalavam no grandes reinos sedentários
deserto sírio: a tribo dos Laquemidas na região de Hira (Sabá, Ma’in e Qatabân).
e a dos Gassânidas mais a oeste. As caravanas sul-arábi-
cas alcançavam a Síria pela rota dos oásis do Hejaz, onde
Meca podia, assim, desenvolver-se. Depressa os Curai-
chitas puderam substituir essas caravanas, graças às
mudanças do séc. VI.

As transformações do séc. vi ■

A Arábia Meridional sob tutela. O séc. VI viu acentuar-


-se a rivalidade dos Persas e dos Abissínios. A partir de
530 ou 540, o rei de Himiar, Abraha, que tinha conse­
guido libertar o Iémen da tutela de Axum, alargou o seu
poderio ao Norte; ameaçou mesmo Meca, cujo progresso
o inquietava. Constantinopla solicitou-lhe que atacasse os
Persas. Temendo pelo seu comércio e a sua segurança,
estes últimos, que já controlavam os Árabes do Bahrein,
conseguiram estabelecer a sua hegemonia sobre o Iémen
no final do séc. ví.

As repercussões das guerras romano-persas. O reco­


meço das guerras entre Persas e Bizantinos reforçou
o papel das tribos árabes do deserto sírio. Os Laquemidas
tinham passado para a dependência persa, enquanto os
Gassânidas, no começo do séc. ví, se tornaram aliados
de Bizâncio, protegendo a Síria Meridional e a Palestina.
Desde então as guerras bizantino-persas foram poten-
ciadas - quando não provocadas - pelas rivalidades
das duas tribos, o que criou em todo o deserto sírio
uma insegurança pouco favorável às actividades mer­
cantis.

69
As guerras puseram também entraves às antigas
correntes comerciais. A rota do golfo Pérsico e do Eufra-
tes tornou-se pouco segura e, nos períodos de paz, as
tarifas aduaneiras impostas pelos Romanos e os Persas
aos mercadores árabes de Dara e Nísibis desencorajavam-
-nos de comerciar nessas regiões. Quanto aos Bizantinos,
tentaram desenvolver o seu comércio pela Síria Meri­
dional, a Arábia Ocidental e a antiga via de Damasco ao
Iémen. Foram concluídos acordos com vários oásis e
com o Iémen. Os mercadores árabes vinham regular­
mente à Síria, onde cresciam os arrabaldes caravanei-
ros das cidades. Meca soube ser a beneficiária de tudo
isto.

O desenvolvimento de Meca. Meca estava na encruzi­


lhada de itinerários que então assumiam uma nova impor­
tância: rota da Arábia Meridional, da qual as respectivas
caravanas fizeram desaparecer as caravanas iemenitas; rotas
da Arábia Central, de que os Árabes de Leste se tinham
passado a servir, para evitarem a rota da Mesopotâmia tor­
nada pouco segura ou demasiado cara; para o Oeste tam­
bém se desenvolveram os contactos com Adúlis, pelo porto
de Gidá.
O comércio de Meca, até então regional, adquiriu
uma importância crescente, sob o impulso dado, na tribo
curaichita, pelo clã de Hâshim e seu filho Abd al-Muttalib.
Pelo jogo de alianças ou de clientelas, tribos cada vez
mais numerosas ligaram-se ao sistema de Meca: as cara­
vanas curaichitas asseguravam o trânsito dos produtos,
garantindo às tribos a segurança dos respectivos terri­
tórios. O crescente número de ídolos tribais deposita­
dos na Caaba manifestava esse entendimento. A grande
peregrinação era acompanhada por uma feira, e todos
os anos partiam duas caravanas para a Síria, trazendo
no regresso, com as suas riquezas, ideias e experiências
novas.
Foi nesta rica cidade que Maomé nasceu, pelo ano de
570. Pelo lado de seu pai, Abdallâh, pertencia ao clã haxe-
mita. Após a morte de Abd al-Muttalib e de Abdallâh, o
chefe do clã haxemita, Abü Tâlib, tomou conta do sobri­
nho Maomé: este, iniciado pelo tio no comércio, partici­
pou mais activamente na actividade mercantil após o seu
casamento com Cadija. Meca conhecia, entretanto, ten­
sões internas ligadas à desigualdade crescente na repar­
tição das riquezas, e às lutas pelo poder entre os diferentes
clãs curaichitas. Assim, a pouco e pouco, nos fins do séc. VI,
o clã haxemita teve de ceder o predomínio ao clã de Abd
Shams e de seu filho Umayya. Mas Maomé mantinha em
Meca uma posição honorífica, e tinha tomado sob sua
protecção o jovem primo Ali.

70
Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. 1V-VI)

Os primeiros passos de Maomé ■


Maomé: forma aportuguesada
Com o recomeço da guerra entre Persas e Bizantinos, e corrente de wuhammad,
profeta do Islão.
a vida de Maomé, até então sem história, sofreu um volte-
-face. Cerca de 610, começou a receber uma primeira
série de revelações de um Deus transcendente, criador Curaiche
do homem e da natureza, que, no Juízo Final, recom­
pensaria ou puniria os homens, sem consideração de famí­ Abd Shams Hâshim
I I
lia, de clã ou de tribo. Este Deus único, Alá, escolhera Umayya Abd al-Muttalib
Maomé para advertir o seu povo de que deveria purifi­
car-se e adorá-lo. Uma quarentena de discípulos escutou Al-Abbâs Abdallâh Abú Tâlib
I I
Maomé: entre eles, a mulher Cadija, o primo Ali, o escravo Maomé Ali
forro Zaid, Abú Bakr e Uthmân do clã de Abd Shams.
No imediato nada era de natureza a perturbar os Curai-
chitas, preocupados, no entanto, com a personalidade de
um homem a quem Deus teria falado sem a intermedia­
ção da aristocracia de Meca. Esta procurou primeiro absor­
ver o novo movimento, mas a ruptura tornou-se inevitá­
vel quando Maomé denunciou os deuses da cidade e
defendeu, com crescente vigor, a unicidade divina. Esta
rejeição do costume dos antepassados abalou todo o sis­
tema de Meca. Mas Maomé continuava sob a protecção
de Abú Tâlib, chefe dos Haxemitas, solidários apesar da
sua desaprovação. Continuou a sua pregação, onde mis­
turava confusamente elementos árabes e judaico-cristãos.
Não fazia ainda qualquer alusão à Caaba; entre os exer­
cícios piedosos, a salât combinava, com a recitação das Salât: oração.
palavras de Alá, uma série de prosternações na direcção
de Jerusalém.

A Hégira. Ao restrito círculo de discípulos juntou-se,


entretanto, um curaichita importante: Omar, o futuro
califa. Em 619, a morte de Cadija, seguida da de Abú Tâlib,
interrompeu a evolução relativamente tranquila da pequena
comunidade. O novo chefe do clã haxemita era hostil a
Maomé e a acção de Abú Sufyân, neto de Umayya, tor­
nava mais difícil a vida em Meca. Maomé pensou em par­
tir. A 350 km de distância, o oásis de Iatribe distinguia-se Iatribe: tornada a «cidade do
de Meca por ter uma economia mais agrícola e uma grande Profeta» (Madinat al-Nabí),
adoptou o nome de Medina.
complexidade interna, decorrente da coexistência de tri­
bos judias e árabes. As tribos árabes frequentavam Meca,
sem deixarem de reprovar a arrogância dos Curaichitas.
Em 622 escolheram Maomé como árbitro das suas quere­
las e empenharam-se em protegê-lo, bem como aos seus
discípulos. Por pequenos grupos, os fiéis - cerca de
setenta - emigraram para Iatribe; Maomé em breve se lhes
juntou. Esta emigração ou hidjra (hégira) marcou o iní­
cio de um novo período: os fiéis deixaram de ser uma
minoria perseguida e indefesa. Com os Medinenses, con­
vertidos ao islão, e designados por Auxiliares, os Emigrados Sobre o desenvolvimento do Islão na Arábia,
iam lançar as bases de uma nova comunidade. ver p. 79-80.
3. As relações entre os dois impérios

■ A paz no séc. v

As dificuldades de ambos os impérios explicam a paz


que caracterizou, de um modo geral, o séc. v: problemas
germânicos e cristológicos por um lado, dificuldades na
Ásia Central e instabilidade governamental por outro não
possibilitavam guerras longas. Entretanto, o desapareci­
mento do império de Átila, aliviando os problemas roma­
nos, fez evoluir a situação.

■ As longas guerras do séc. vi

A guerra dominou assim o séc. vi, sobretudo a partir


de 532, nos reinados de Justiniano e Cósroes I. Enquanto
operações militares perturbavam gravemente a Arménia
e a Alta Mesopotâmia, a diplomacia bizantina desdobrava-
-se, dando à confrontação dos impérios um carácter eco­
nómico acrescido. Justiniano tentou, por via da cristiani­
zação, controlar as regiões pônticas e manifestou um vivo
interesse pelas costas do mar Vermelho: apoio dado ao
rei de Axum na Arábia Meridional, negociações com as
tribos árabes e os oásis da Arábia Setentrional, utilização
dos Gassânidas no deserto sírio. O monofisismo que se
radicava no Egipto e na Síria era, por isso, uma fonte de
inquietações.
As guerras, entrecortadas por embaixadas, armistícios
ou tréguas, avassalavam cada vez mais o deserto sírio
quando, na segunda metade do século, os primeiros con­
tactos estabelecidos com o canato turco da Ásia Central
abriram a Bizâncio novas perspectivas. A guerra foi reto­
mada, com maior dureza, por Justino II, enquanto os
Turcos ocupavam a Bactriana e os Persas se instalavam no
Iémen. Entretanto, em 591, Maurício permitiu a Cósroes II,
derrubado por uma revolução, a recuperação do poder,
mediante uma paz vantajosa.

A luta mortal do séc. vii. A deposição de Maurício


por Focas em 602 deu a Cósroes II, que acabara de refor­
mar o seu exército, um motivo de intervenção numa
altura em que a pressão ávaro-eslava se acentuava nos
Balcãs e em que o canato turco se enfraquecia, deixando
as mãos livres aos Persas. De 602 a 610, estes apoderam-
se de todas as praças fortes da Alta Mesopotâmia e da
Arménia. Em 611-612, ocupam Cesareia da Capadócia;
em 613, tomam Antioquia e, depois, toda a Cilicia; em
dois anos, ocupam toda a Síria, a Palestina e o Egipto; em

72
Trocas e relações no Próximo Oriente (sécs. iv-vi)

Jerusalém, apropriam-se da verdadeira Cruz. Em 615,


avançam até Calcedónia, em frente de Constantinopla;
em 617, desembarcam em Chipre e, em 622, apossam-se
de Ancira.
O abalo é rude para o Império Bizantino; Heraclio tem
de esperar por 622 para empreender a sua reconquista,
começando pelo Norte da Ásia Menor e a Arménia. Ainda
em 626, as hostes persas unem os seus esforços aos dos
Àvares para cercarem Constantinopla. Mas em 627-628,
Heraclio pode conduzir uma campanha decisiva que o
leva às portas de Nísibis; os acordos de Arabissos, em Julho
de 629, organizam a evacuação do Egipto, da Síria e da
Palestina e a restituição da verdadeira Cruz, solenemente
reinstalada pelo imperador em Jerusalém, em 21 de Março
de 630. A fronteira é restabelecida aproximadamente na
linha que separava os dois impérios ao tempo de Maurício
e Cósroes II.
Vinte anos de guerras, então, para nada? As destrui­
ções foram consideráveis, nomeadamente na Ásia Menor,
onde muitas cidades não voltarão a erguer-se, dando lugar
a simples aldeias ou fortalezas. As confrontações foram
vivas na Síria, Palestina e Egipto, nuns casos entre judeus
e cristãos, noutros entre comunidades calcedónias e hete­
rodoxas. A Pérsia está completamente desorganizada e o
seu poder político arrasado. Durante esse tempo, as tri­
bos nômadas árabes dos confins sírio-arábicos ganharam
o gosto da independência e da livre razia. Neste sentido,
as conquistas persas em território bizantino, tal como as
campanhas de Bizâncio no coração do Império Persa,
anunciavam as conquistas árabes.

Para aprofundar este capítulo

Sobre as estepes e a Ásia Central: às obras indicadas


na pág. 13, deverá acrescentar-se o livro antigo, mas sem­
pre útil, de R. GROUSSET, LEmpire des Steppes, reed. Paris,
1969.

Estudos especiais:
- Sobre os Godos: A. A. Vasiliev, The Goths in Crimea,
1936; E. A. THOMPSON, The Visigoths in the Time of Ulfila,
Oxford, 1966.
- Sobre a irrupção dos povos altaicos: F. ALTHEIM,
Attila et les Huns, Paris, 1952; C. D. Gordon, The Age of
Attila. Fifth Century Byzantium and the Barbarians, 1972.
— Sobre os Turcos: E. CHAVANNES, Documents sur les
Tou-Kiue (Turcs) occidentaux, Paris, 1900; D. SINOR, «The
Historical role of the Turk Empire», Cahiers d’Histoire
Mondiale, 1953, pp. 427- 434; K. Hannestad, «Les relati-
ons de Byzance avec la Transcaucasie et 1’Asie centrale
aux Ve. et VT. siècles», Byzantion, 1957, pp. 421-456.
- Sobre os princípios da diplomacia bizantina: H. G.
BECK, «Christliche Mission und politische Propaganda
im byzantinischen Reich», Settimane di Spoleto, XIV, 1967,
pp. 649-673; diversos artigos de D. OBOLENSKYin Byzantium
and the Slaves, Variorum Reprints, Londres, 1971.
- Sobre os Eslavos: cfr. bibliografia do cap. 5.
Sobre o oceano Indico antes do islão e o papel dos
Árabes: N. PlGULEVSKALA, Byzanz auf den Weg nach índia,
Berlim, 1969; G. F. HOURANI, Arab Seafaring in the Indian
Ocean in Ancient and Early Medieval Times, Londres, 1951;
A. WlLKINSON, «Persian Gulf commerce - Sasanian Period
and first two centuries of Islam», Iran, 1978. Sobre a Arábia
antes do islão, ver os artigos «Arab», «Arabiya» e «Badw»,
em E. L/2 (citado pág. 12) e as indicações fornecidas por
C. Cahen (citado pág. 12).
Sobre as relações entre o mundo bizantino e os
Sassânidas: cfr. bibliografia do cap. 3; aditar P. GOUBERT,
Byzance avant VIslam, t. 1: Byzance et UOrient sous les succes-
seurs deJustinien, Paris, 1951; N. G. GARSOIAN, «Byzantium
and the Sasanians», The Cambridge History of Iran, 3, 2
(citado pág. 13), cap. 15; e diversos artigos de N. G. Gar-
SOIAN in Arménia between Byzantium and the Sasanians,
Variorum Reprints, Londres, 1985.

74
5
Invasões e mudanças
de dominação
(fins do séc. vi-séc. vii)

Até ao séc. vi, a presença de dois impérios, rivais mas solidários, caracteriza o Próximo Oriente.
Movimentos de populações entretanto produzidos na periferia destes impérios já tinham, por vezes,
modificado a natureza das relações entre Romanos e Sassânidas, mas sem nunca pôr realmente em
perigo a sua existência. A partir do final do séc. vi, a própria existência dos impérios é posta em ques­
tão com o desenvolvimento dos povos germânicos no Ocidente, a expansão dos Eslavos e o grande
arranque dos Árabes. O Império Romano conseguiu resistir, à custa de grandes amputações territo­
riais, mas o Império Sassânida desapareceu, ao mesmo tempo que se estabelecia a hegemonia árabe
no Próximo Oriente.

1. Ameaças sobre o Império do Oriente

O Império do Oriente vê-se ameaçado em três locais: Ver mapa p. 381


a longínqua Hispânia; a Itália, há pouco reconquistada,
que sofre a invasão lombarda; e os Balcãs, onde o avanço
dos Eslavos, Avares e Búlgaros ameaça a própria vida do
Império.

Hispânia ■

O Sul da Península Ibérica estava nas mãos dos Bizan­


tinos. Cerca de 571-572, porém, Bizâncio perde a sua prin­
cipal praça forte, Córdova. Após uma paragem periódica,
com Recaredo, a reconquista visigótica é retomada por
Sisebuto: em 629, caíam os últimos portos bizantinos.
A influência bizantina sobre a cultura visigótica não foi
desprezível.

Itália ■

A invasão lombarda. Na Itália, penosamente recon­


quistada, é todo um povo germânico que irrompe em 568.
A resistência bizantina é extremamente fraca, porque o
principal esforço do Império incide então sobre o Oriente
e os Balcãs. Só as cidades resistem. A população, mal
recuperada da reconquista bizantina, oprimida por uma
fiscalidade excessiva, vítima de um sistema de espoliação
discutível, vê chegar estes germânicos com uma benevo­
lente neutralidade. Em quatro anos, os Lombardos asse­
nhoreiam-se da planície do Pó, com excepção da zona
litoral e das lagunas. Em menos de dez anos, atingem a
Itália Meridional, onde se organizam em principados em
torno de Benevento.
O imperador Maurício procurou readquirir o controle
Exarcado: conjunto de pro­ da Itália organizando o exarcado de Ravena. A despeito
víncias governadas por um da aliança tentada com a monarquia franca, o exarcado
exarca detentor de poderes ci­
contenta-se com a manutenção e a consolidação do que
vis e militares. Ver p. 94.
fora possível conservar na Itália do Norte e da faixa de
terra que, apoiada em Perusa, atravessava os Apeninos
para alcançar Roma.

Bizâncio e a Itália. Bizâncio defendia firmemente uma


parte da Itália do Sul: a Sicília, a Calábria, o Bruttium, a
região costeira que envolve Nápoles e Amalfi. O papa,
sobretudo, incarnou a resistência aos Lombardos, pagãos
na sua maioria e cuja aristocracia era ariana. Também o
papa se apoiou em Bizâncio: Gregório Magno (590-604),
que exercera funções na administração bizantina, sempre
se considerou um súbdito de Bizâncio.
Entretanto, ao longo de todo o séc. vii, o fosso entre
Bizâncio e as suas possessões italianas não cessou de se
alargar, embora as divisões dos Lombardos os tornassem
pouco perigosos. As posições monotelitas do imperador
alienaram dele o papado. Numa tentativa de voltar a ter
mão sobre a situação, Constante II desembarcou em
Tarento em 663, desencadeou a guerra contra os Lom­
bardos e procurou, em vão, retomar Benevento. A recon­
quista depressa se revelou impossível. Restou a Constante II
reforçar a sua posição em Roma, onde foi acolhido com
grande pompa pelo papa. Mas, em 680, Constantino IV
teve de assinar com os Lombardos uma paz que manti­
nha o statu quo e punha termo às veleidades da recon­
quista. O exarcado de Ravena não resistiu ao renascimento
do reino lombardo e caiu em 751.

■ Os Balcãs

A Península Balcânica foi a tentação permanente de


novos invasores ao longo de toda a história bizantina. Nos
sécs. vi e vil, o Império teve de defrontar aí os Eslavos, os
Avares e os Protobúlgaros.

Os Eslavos. O problema dos Godos, cuja resolução


tinha sido esboçada aquando do tratado de 382, prolon-

76
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. Vl-séc. vn)

gou-se por todo o séc. V. Desde logo, ficou livre o lugar


para os Eslavos do Sul, ou Esclavões; estes movimentam- Esclavões: população indo-eu-
-se a pouco e pouco para o Sul, impelidos por outros povos ropeia, cujo habitat primitivo
se situava entre o médio Dnie-
e pela própria expansão demográfica. No fim do séc. v, pre e o Vístula.
desembocam dos Cárpatos sobre o Danúbio, sem que as
fontes permitam distingui-los nitidamente dos Cotriguros,
que são búlgaros. E contra eles que Anastásio constrói a
sua longa muralha, fechando a quase ilha onde está situada
Constantinopla.
As invasões dos sécs. vi e vii nos Balcãs decompõem-
-se em duas fases: primeiro, toda uma série de incursões
até ao cerco de Constantinopla em 626; depois, a insta­
lação maciça dos Eslavos num conjunto de «esclavínias». Esclavínias: pequenos princi­
Uma das características essenciais do primeiro período é pados eslavos de carácter tri­
bal, independentes uns dos
a utilização das massas eslavas, grupos desorganizados de
outros.
pequenas tribos, pelos povos muito menos numerosos,
mas bem organizados, de origem turco-tártara: os Búlgaros
e os Ávares. Em 540, as incursões atingem o istmo de
Corinto: em 558-559, Zabergão, à cabeça dos «Búlgaros»
danubianos, avança até às Termópilas e aproxima-se das
muralhas de Constantinopla. Mas a fronteira danubiana,
constantemente violada, é sempre restabelecida graças à
frota do Império que sobe o rio e corta o invasor das suas
bases.

Os Ávares. A chegada dos Ávares cria um novo e mais


premente perigo para Bizâncio, porque cada sucesso dos
Ávares abre a rota dos Balcãs a novas tribos eslavas.
Justiniano tenta primeiro servir-se dos Ávares no Cáucaso
e no Norte do mar Negro, como federados. Tendo-lhes
Justino II recusado esses subsídios, eles aproveitam o reco­
meço da guerra persa (572) para forçarem a fronteira do
Danúbio. Temporariamente rechaçados, lançam uma
grande incursão em 581 sob o comando do khagan Baian, Khagan: chefes dos Ávares e,
apoiado pelos Esclavões. Baian toma Sírmio em 582. Os por seu intermédio, dos Esla­
vos que os Ávares enquadram.
Ávares avançam até Anquíalo e recusam-se a receber os
enviados de Maurício, ocupado por dez anos na Pérsia.
Vencedor dos Persas, Maurício empreende o restabe­
lecimento da fronteira do Danúbio em 592; o imperador
alcança várias vitórias, atravessa o rio em diversas ocasiões,
mas é confrontado com a massa dos Eslavos já instalados.
Em 601, uma gigantesca ofensiva abala o poderio ávare.
Maurício ordena à suas tropas que acampem na margem
esquerda do Danúbio, mas estas revoltam-se e derrubam-
mo. O período de anarquia que se segue permite que os
Ávares e os Eslavos penetrem nos Balcãs, dado que Heraclio
está retido pela guerra persa. A Mésia e a Macedónia são
ocupadas, a Trácia é devastada. Tessalonica resiste a vários
cercos em 617 e 619, mas a vaga abate-se sobre a Tessália,
a Grécia, o Peloponeso e atinge mesmo Creta em 623.

77
Apesar de várias tréguas assinadas com o khagan dos Ávares
(619 e 623), Heraclio não consegue impedir que estes
montem cerco a Constantinopla em 626, na mesma altura
em que o exército persa está à vista de Calcedónia.
Mas os Avares fracassam diante de Constantinopla: a
sua frota é destruída e o exército da capital inflige-lhes
uma derrota decisiva, que é o sinal da revolta para as tri­
bos eslavas submetidas. Em poucos anos, o poder ávare
desaparece definitivamente da história bizantina. Entre­
tanto, as províncias enumeradas acima foram submersas
pelos Eslavos e as regiões realmente controladas pelo
Império limitam-se à Trácia, à costa até Tessalonica, ao
Leste do Peloponeso e às ilhas. A oeste, descem dos Cár-
patos os Sérvios e os Croatas, que apenas reconhecem ao
Império uma suserania meramente teórica.
Assim se desenrola a segunda fase das invasões esla­
vas, iniciada no final do reinado de Maurício: a instala­
ção de tribos inteiras formando «esclavínias» indepen­
dentes umas das outras, mas escapando mais ou menos
completamente ao poder do imperador. Nenhuma região
dos Balcãs ficou ao abrigo desta vaga, nem sequer algu­
mas ilhas que os Eslavos alcançavam a bordo dos seus
Monóxilos: ver p. 214. monóxilos. A densidade do povoamento eslavo varia,
entretanto, consideravelmente: é forte na Macedónia,
onde o elemento grego é submerso; é menor no Epiro,
na Tessália, na Grécia Central e no Peloponeso onde sub­
sistem comunidades gregas que servem de base à hele-
nização, por fim total, dessas populações. A frequência
dos topónimos eslavos nessas regiões traduz a importân­
cia da sua implantação.
As mudanças linguísticas e religiosas trazidas pelos
Eslavos pagãos foram pouco duradouras, porque a greci-
zação e a cristianização, ou seja, a assimilação pela civili­
zação bizantina, foram relativamente rápidas. O Norte dos
Balcãs, onde intervieram os Búlgaros, foi a única excep-
ção. Em contrapartida, não é possível uma avaliação pre­
cisa das alterações demográficas e sociais introduzidas
pelos invasores. Efectivamente não se conhece nem o
número dos recém-chegados nem o número dos que eles
expulsaram; admite-se que deveriam ser, em geral, homens
livres, mas ignora-se como funcionava o respectivo sistema
agrário.
A reconquista começou com Constante II, que em 658
marchou sobre as esclavínias, onde fez muitos prisionei­
ros. Transplantou, sem dúvida, uma parte delas para a
Ásia Menor, porque vemos aqui, em 665, um contingente
de 5000 eslavos passar-se para o lado dos Árabes. O alcance
desta campanha parece todavia menor que a de 688-689.
Esta permite a Justiniano II restabelecer a ligação com

78
&$
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. Vl-séc. vil)

Tessalonica, atravessando o país eslavo. Também ele trans­


plantou numerosos eslavos para a Bitínia, já que pôde for­
mar um contingente de 30 000 homens entre a popula­
ção assim deslocada.

Os Búlgaros. Se, após 626, os Eslavos deixam de cons­


tituir um perigo para o Império Bizantino, este assiste ao
desenvolvimento, na segunda metade do séc. Vii, de uma
nova ameaça nas suas fronteiras setentrionais. Os Búlgaros,
povo de origem turca, estabelecidos no começo do séc. vii
a norte do mar de Azov, tinham o visto o seu reino desa­
gregar-se sob o avanço para ocidente dos Khazares. Uma
parte deles, comandados por Asparuk, alcançou o delta
do Danúbio cerca de 670 e ocupou a Dobruja. Em 679-
-680, Constantino IV montou uma operação combinada
terrestre e naval, desembarcando as suas tropas no delta
do Danúbio: as forças bizantinas foram destroçadas e os
Búlgaros invadiram a Mésia, conquistando portos do mar
Negro como Odessa. Constantino IV cedeu-lhes esse ter­
ritório e aceitou pagar-lhes tributo.
A região onde se instalaram os Búlgaros estava pratica­
mente toda eslavizada. As tribos eslavas submeteram-se aos
Búlgaros, que lhes proporcionaram um enquadramento
como outrora os Avares. Os Búlgaros rapidamente se esla-
vizaram e a Bulgária tornou-se um temível Estado eslavo:
assim se criava o primeiro reino independente em territó­
rio reivindicado pelo Império; assim se instalava um estado
poderoso a curta distância da capital; a luta durou mais de
três séculos. O Império trocava o Danúbio como fronteira,
pelas montanhas do Norte da Trácia e deixava nas mãos
dos Búlgaros os portos importantes do mar Negro. Assim
se explica a virulência da luta entre Búlgaros e Bizantinos.
Os Búlgaros não tardaram, aliás, a desempenhar um
papel no Império. Em 705, para recuperar o trono,
Justiniano II recrutou as suas tropas entre as do khagan
dos Búlgaros, Tervel, cuja nomeada cresceu assim à som­
bra de Constantinopla. Justiniano II retomou o pagamento
do tributo aos Búlgaros. Tervel foi o primeiro príncipe
estrangeiro a receber o título prestigioso, embora sem
conteúdo prático, de César.

2. Desenvolvimento do islão na Arábia

No espaço de dez anos, o chefe da pequena minoria Sobre os debates de Maomé


e a emigração para Medina, ver p. 70-71.
que se instalara em Medina levou uma grande parte da
Arábia a reconhecer a sua autoridade e impôs-se a Meca.

79
■ 622-628: crescimento da comunidade de Medina

A conversão de vários chefes árabes de Medina garan­


tiu o predomínio da nova crença no meio medinense,
cuja unidade foi reforçada por um novo pacto: Maomé
desempenhava o papel de árbitro de uma comunidade
que ultrapassava os quadros tribais.

Subsistência e segurança. As necessidades materiais


levaram os adeptos de Maomé a efectuar, segundo o cos­
tume beduíno, uma série de razias que reforçaram a hos­
tilidade dos chefes de Meca, claramente atingidos nos seus
interesses. Confrontações cada vez mais sérias, em Badre
e Uhud, obrigaram as diversas tribos do Hejaz a tomarem
posição. No entanto, em 627, o fracasso do cerco de Medina
permitiu aos Curaichitas, e sobretudo ao ramo omíada
dirigido por Abü Sufyân, constatar a coesão e o poder da
nova comunidade. Estava instaurado um certo equilíbrio.
Durante todos esses anos, Maomé teve de fazer face a
múltiplas dificuldades internas: as conversões - traduzi­
Chahâda: «Só Allah é Deus e das na recitação da shahâda - cresciam, mas cada revés
Maomé é o seu Profeta». suscitava novas crises.

Evolução religiosa. O monoteísmo de Maomé precisou-


se perante a recusa dos judeus de o reconhecerem como
profeta. O carácter universal da Revelação desenvolveu-se.
Judeus e cristãos tinham traído a religião primitiva, o mono­
teísmo de Abraão, pai dos Árabes através de seu filho
Ismael. Maomé, o último dos profetas, devia restaurá-la.
Meca, sede da Caaba construída por Abraão, adquiriu um
novo significado: é ela, e já não Jerusalém, que indica a
Qibla: direcção da oração. qibla, e o dever da djihâd começou a estabelecer-se. A rup­
Djihâd: «esforço» na via de tura sobrevinda em 624 entre os judeus de Iatribe e Maomé,
Deus, que se traduz na obri­
teve como consequência a expulsão ou o massacre das tri­
gação colectiva de converter
ou de submeter os não-mu­ bos judaicas de Medina. A partir desse momento, a nova
çulmanos. comunidade constituiu-se mais nitidamente: afirmou a sua
Muçulmanos: sujeitos à von­ originalidade religiosa e organizou-se graças aos frutos da
tade de Allah. pilhagem das caravanas de Meca. Ao ponto de a data de
624 ser retida por certos historiadores como marcando
uma viragem decisiva, ainda mais significativa do que a
Hégira de 622. O Alcorão, pelo seu conteúdo cada vez
mais normativo, reflecte bem essa evolução.

Umma: comunidade dos Mu­ A vida da umma. A Revelação assumiu, com efeito, um
çulmanos. de que Allah é o carácter mais concreto e fez de Maomé um legislador regu­
chefe supremo.
lando um certo número de actos públicos e privados.
Instauraram-se também normas de vida, misturando as tra­
dições passadas com as que eram estabelecidas pela reve- j
lação profética e pelo próprio comportamento de Maomé. |
A mensagem de Alá, transmitida oralmente dado que |
constituía uma recitação (qur’ân), começou a ser unifi- |

4a
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. vi-séc. vii)
1
=
cada, ao mesmo tempo que se precisavam as obrigações
dos muçulmanos: jejum no mês do Ramadâo, orações quo­
tidianas - em comum à sexta-feira - e esmola legal (zakât). Zakât: designa a esmola legal
O islão começava, assim, a organizar-se e a elaborar-se. que recai sobre os bens dos
muçulmanos; é muitas vezes
No entanto, os escassos meios de acção impostos pelas
taxada na décima (ushr) dos
necessidades - apelo aos voluntários para as expedições, rendimentos. E concebida co­
amostra de orçamento com o quinto da ghanima e a zakât mo uma purificação.
- continuavam a nada ter de organizado. A comunidade, Ghanima: espólio mobiliário
unida na afirmação da unicidade de Deus e no reconhe­ decorrente de uma vitória mi­
litar, cuja quinta parte cabe
cimento de Maomé como o Profeta de Alá, mantinha ainda ao Profeta, no interesse da co­
o essencial da estrutura tribal pré-islâmica. As grandes munidade.
decisões eram tomadas com alguns conselheiros - Curai-
chitas muito próximos, como Abú Bakr e Omar. A famí­
lia do Profeta manifestava algumas reticências a seu res­
peito. Alí, que tinha casado com a filha de Maomé, Fátima,
tinha por ele a simpatia dos Medinenses, sempre reser­
vados face aos imigrados. Uma rede de alianças ligava a
Maomé um certo número de tribos dos arredores.

628-632: de Medina a Meca ■

As tréguas. Em 628, Maomé decidiu ir a Meca cumprir Sobre a importância da umra


o ritual da umra. Os da cidade, que já tinham avaliado o na Arábia pré-islâmica, ver p. 68.

seu poder, negociaram com ele umas tréguas de dez anos.


Este pacto - dificilmente aceite por alguns - permitiu a
Maomé alargar as suas alianças. Em 629, os ritos da umra
efectuaram-se de acordo com o pacto. Mas a opinião já
evoluía em Meca. O cerco de 627 tinha revelado o pode­
rio de Maomé, a união das tribos manifestava a extensão
desse poder, a sua participação no culto de Meca certifi­
cava que a cidade - à custa de uma simples reorientação
do culto - não perderia a sua importância. O próprio Abú
Sufiân aderiu à ideia de um compromisso. Apesar de nume­
rosos incidentes, este ponto de vista acabou por triunfar,
sobretudo após a conversão de um tio de Maomé, al-Abbâs.
Em 630, os muçulmanos entraram na cidade e os Curai-
chitas reconheceram o Profeta de Alá.

Extensão das alianças. O poderio criado pelo acordo


entre Medina e Meca foi imediatamente ameaçado pela
grande tribo dos Hawâzin, rival dos Curaichitas. A sua der­
rota em Hunain (entre Meca e Taif) selou, praticamente,
a adesão do Hejaz aos muçulmanos.
A vitória dos Bizantinos sobre os Persas criou então,
tanto no Iémen como nas fronteiras do Iraque, circuns­
tâncias favoráveis à expansão do islão de que Maomé se
aproveitou. Entretanto, a aliança implicava para as tribos
o pagamento de um tributo e o termo das razias entre
elas. Enquanto algumas se entregavam a operações de
pilhagem contra os Persas, pequenas expedições foram

81
Ver mapa p. 384 B. lançadas para o Norte em 629 e 630. Assim, um pouco
por todo o lado, Maomé tinha agentes, fiéis e aliados, mas
o grau do alinhamento estava longe de ser sempre o
mesmo. A conversão ao islão não o acompanhava necessa­
riamente. No próprio coração do Hejaz, manifestavam-se
elementos de oposição. O oportunismo de Maomé des­
concertava por vezes os primeiros companheiros, surpreen­
didos pela recente promoção de certos curaichitas: o pró­
prio filho de Abú Sufiân, Mu’âwiya, tornara-se secretário
de Maomé.
Medina permaneceu como o centro do novo conjunto:
Maomé voltou para lá em Março de 630. Mas, pouco depois
de ter participado, pela primeira vez, em 632, na hadjdj a
Meca, caiu doente, sem poder concretizar o projecto de
uma nova expedição para norte.
A sua morte em Junho de 632 ocorreu numa comu­
nidade cuja coesão ainda estava mal assegurada. A duali­
dade do papel de Maomé, profeta e chefe político, tor­
nava delicada a sua sucessão, como o demonstrou a
imediata confrontação entre os companheiros de Meca e
de Medina. O acordo estabeleceu-se em torno de um fiel
da primeira hora, membro de um clã curaichita pouco
Califa: de «khalífa Rasúl Allâh», importante: Abú Bakr, que se tornou califa. Esta escolha
«sucessor do Enviado de Allah», só foi aceite pela família de Maomé ao fim de alguns
assegura a direcção da Comu­
nidade.
meses. Abú Bakr deveria guiar a comunidade, ajudá-la a
Chari’a: lei religiosa. aplicar os diferentes preceitos da lei sagrada - a shari’a
transmitida por Maomé -, não a completá-la. A Revelação
estava fechada. Medina mantinha-se como o lugar privi­
legiado onde se desenrolara a vida do Profeta. Lá se encon­
travam os que tinham ouvido o Alcorão e o guardavam
na memória. E a sua recordação que deve servir de base
para se tentar viver no Caminho de Deus.
Ao lado do califa, guia da comunidade, os homens pie­
dosos iam ter um papel a desempenhar - papel funda­
mental, embora informal - para garantir o respeito e a
transmissão das tradições da primeira comunidade.

3. Princípio da hegemonia árabe


no Próximo Oriente

Nos anos que se seguiram à morte de Maomé assistiu-


-se à expansão árabe no Próximo Oriente, sem que se
possa dizer que isso tenha correspondido a um desígnio
bem definido do Profeta. Os Árabes organizaram a sua
hegemonia política nos territórios conquistados, ao mesmo

82
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. Vl-séc. VII)

tempo que, graças ao vínculo da fé, os primeiros califas I


asseguravam a unidade de províncias muito diversas. I

A expansão: 632-644 ■

A determinação de Abú Bakr permite a Medina domi­


nar a ridda e manter, e mesmo alargar, o seu controle Ridda (apostasia): movimento
sobre a Arábia. Entretanto, a desorganização das activi- de secessão de certas tribos
árabes que, após a morte de
dades árabes e a consequente efervescência implicou ope­ Maomé, se recusaram a reco­
rações de pilhagem contra o Iraque e a Síria. Espontâneas nhecer a autoridade de Abu
ou promovidas por Abú Bakr, essas acções associavam tri­ Bakr.
bos com diferentes méritos aos olhos do islão: fiéis de
sempre, aliados recentes, apóstatas vencidos e portanto
inicialmente excluídos das operações de conquista, essas
tribos iriam transportar as suas divisões para fora da Arábia.
As conquistas árabes foram muito tempo encaradas
como a expressão do zelo religioso, quando não do fana­
tismo, que teria animado homens recém-convertidos a
uma nova religião: com um entusiasmo de neófitos, teriam
desejado converter todos os povos. Mas a realidade da
conquista, que nunca foi seguida de conversões forçadas,
desmente essa visão. Se as condições climáticas difíceis da
Arábia provocaram desde sempre importantes emigrações,
mesmo nas regiões do Crescente Fértil, o factor econó­
mico não pode, por si só, dar conta deste vasto movimento
de expansão. E claro que os califas desenvolveram uma
verdadeira política de conquistas, ao mesmo tempo para
darem um objectivo comum à agitação das tribos nôma­
das e para alargarem o domínio do islão. Este projecto
correspondia à pregação corânica: apelo à guerra contra
os infiéis e promessa do espólio. E certamente neste elo
entre a mensagem profética e o fenómeno social e polí­
tico suscitado pelo sucesso dessa mensagem que se deve
procurar a causa profunda da expansão árabe. Porque a
guerra de conquista é realmente constitutiva da Revelação
que Deus transmitiu aos homens por intermédio do seu
profeta Maomé. A fraqueza da resistência adversária, a
impopularidade de Constantinopla no Egipto e na Síria,
a crise da sociedade sassânida, assim como a mobilidade
militar dos Beduínos, indiscutível e surpreendente, expli­
cam a transformação de simples razias em verdadeiras con­
quistas.
A vitória de Cadisidja em 636, a tomada de Ctesifonte- Ver mapa p. 384 B.
-Selêucia, a vitória de Nihavend em 642, seguida da con­
quista de Rey em 644, marcaram o desmoronamento do
regime sassânida no Iraque e no planalto iraniano. A vitó­
ria de Ajnadain em 634, a rendição de Damasco em 635,
a vitória de Iarmuque em 636 e a ocupação de Jerusalém
em 638 fizeram passar a Síria-Palestina para as mãos dos

83
Árabes. Várias tribos deixaram então a Síria para proce­
derem à conquista do Egipto, marcada pela capitulação
de Babilónia em 641, enquanto outras se assenhoreavam
da Alta Mesopotâmia (639-641) e da Arménia (640-643).

Árabes e dhimmi. Muçulmanos muitas vezes sinceros,


os primeiros conquistadores preocuparam-se sobretudo
em assegurar a permanência das suas conquistas. Em geral,
estabeleceram-se à parte da população em campos que
depressa se tornaram permanentes; repartiram-se segundo
as suas tribos e os seus clãs, à volta de um lugar consa­
grado à oração comum. Os rendimentos, extraídos inicial­
mente da partilha dos despojos, provieram em seguida de
um soldo atribuído em função do mérito do clã, ligado,
por sua vez, à antiguidade da sua adesão ao islão. Sucessivas
vagas de imigração reforçaram numericamente os pri­
meiros conquistadores, mas agravaram frequentemente a
complexidade das situações locais.
Minoritários, os Árabes não procuraram converter as
Gentes do Livro: nome dado populações locais: a submissão das Gentes do Livro bastava-
pelos Muçulmanos aos deten­ lhes. Estas, mediante o pagamento da djizyâ, adquiriam o
tores de uma religião revela­ estatuto de dhimmi: eram livres no seu culto e na sua orga­
da -Judeus, Cristãos e também
Zoroastrianos. nização interna. As terras foram deixadas aos proprietários
Djizyâ: imposto de capitação contra o pagamento do kharâdj, que prolongava os impos­
onerando os não-muçulmanos. tos anteriores. As terras públicas, ou cujos proprietários
Dhimmi: não-muçulmanos be­ tinham desaparecido, foram confiadas a rendeiros. Não se
neficiando de um estatuto de
«protegidos» nos países do
verificou, em princípio, criação de propriedades árabes.
Islão. Houve, assim, poucas transformações na vida dos indí­
Kharâdj: imposto predial que
começou por onerar os pro­ genas, que aliás começaram por ver os Árabes como con­
prietários não-muçulmanos. quistadores tolerantes, menos importunos que as autori­
A sua taxa é superior à da za- dades bizantina ou sassânida.
kât, paga pelos muçulmanos.
As bases de uma organização comum. Ornar tinha sido
reconhecido pela comunidade em 634, após a morte de
Abü Bakr, que recomendara essa escolha. O título que
Emir al-mu ’minin: príncipe dos adoptou de emir al-mu ’minin não implicava nenhum poder
crentes, outro título adopta- novo. No entanto, enquanto Abri Bakr apenas tivera de
do pelo califa.
controlar tribos exercendo as suas actividades tradicio­
nais, o novo califa achou-se a pouco e pouco à cabeça de
um conjunto de territórios urbanizados, dotados de estru­
turas administrativas e de culturas muito diferentes das
dos Beduínos. Ele não dispunha de nenhum meio de con­
trole efectivo para opor à tendência das tribos a consi­
derarem as conquistas como um bem próprio, mas con­
Divan: termo, provavelmente seguiu fazer prevalecer o princípio de que as novas terras
de origem iraniana, designan­ eram adquiridas em benefício da umma e começou a orga­
do um registo administrativo nizar a administração dos respectivos rendimentos. Djizyâ,
e, por extensão, os serviços que
empregavam tais registos. Ver kharâdj e zakât deveriam permitir a retribuição dos com­
p. 62. batentes, cuja lista foi estabelecida segundo uma hierar­
quia cuidadosamente registada no diwân.

84
Invasões e mudanças de dominaçao (fins do séc. vi-séc. vil)

Os territórios conquistados tornaram-se províncias com


um wâli, por vezes assistido de um âmil. A administração Wali: governador militar e ci­
regional foi, entretanto, deixada aos dhimmi responsáveis vil.
Amil: funcionário das finan­
pela cobrança dos impostos, deste modo efectuada nas ças.
línguas indígenas.
As conquistas não redundaram, pois, nem numa ara-
bização, nem numa islamização sistemáticas, mas antes de
tudo numa organização das receitas e das despesas. Cada
província manteve o seu carácter e as suas tradições, tendo
86660087771
as condições locais da conquista contribuído muitas vezes
para aprofundar a sua originalidade.

Diversidades regionais. No Egipto, os Árabes encon­


traram uma população, os Coptas, muito diferente deles.
Após a evacuação de Alexandria pelos Gregos em 642, ins­
talaram-se perto do Nilo, no acampamento de Fustât fun­
dado em 643. Sendo comerciante a maioria dos gregos
que partiram, o regime da propriedade do solo não foi
modificado, passando os Árabes a receber um tributo pago
sobretudo em espécie. Estes asseguraram uma defesa rota­
tiva em Alexandria face ao mar e em Khirbeta face ao
deserto. Desde logo, porém, a conquista era total.
As populações semitas da Síria e do Iraque incluíam
numerosos elementos árabes, constituindo, assim, um meio
mais acolhedor. No entanto, a conquista, facilitada na
Síria por tratados de capitulação moderados, tinha sido
mais dura no Iraque que, por isso, foi menos poupado.
Na Síria, muitos gregos tinham-se posto em fuga, e o
exército de ocupação misturou-se com os numerosos
árabes sírios, grande parte dos quais se converteu após
636. A ocupação da Síria foi, assim, original: o território
foi dividido em quatro djund, nos quais as tribos foram Djund: distrito militar.
associadas à vida económica. A heterogeneidade inicial
dos exércitos árabes, geradora de conflitos internos, foi
atenuada com a partida de tribos para o Egipto e para a
Alta Mesopotâmia. Os dois governadores que se sucede­ Jerusalém: é considerada a ter­
ram, Yazid b. abi Sufyân e, em 641, seu irmão Mu âwiya, ceira cidade santa do islão: a
tradição sustenta que Maomé,
decidiram, para manter a estabilidade do país, limitar a no decurso da Viagem Noc­
imigração aos clãs aparentados com as tribos já lá insta­ turna. teria ido a Jerusalém on­
ladas. Da Síria dependiam a Alta Mesopotâmia, que se de encontrara os profetas bí­
tornou na Djézira, e a Arménia. Uma parte dos rendi­ blicos. antes de subir ao Céu
mentos foi afectada às fortificações da costa e à constru­ na presença de Deus. Em 691,
foi erguida, sobre o oratório
ção de uma frota. A Síria viu-se, assim, com uma defesa de Ornar, a Cúpula do Ro­
bem organizada. O seu prestígio cresceu - segundo a tra­ chedo.
dição - com a visita de Ornar a Jerusalém, onde erigiu
um pequeno oratório no local do antigo Templo de
Salomão.
No Iraque levantavam-se mais problemas. Os Árabes
instalaram-se em acampamentos: Baçorá, fundada em 638,

85
e Cufa em 640. A maior parte da população permaneceu
nas suas terras, mas os numerosos domínios do Estado e
do clero foram confiados a fiéis da primeira hora. O pla­
nalto iraniano estava ainda aberto à expansão, o que atraiu
a Baçorá e Cufa muitos imigrantes. A partilha dos rendi­
mentos desfavorecia estes últimos, criando assim os ger­
mes do descontentamento.

■ O prosseguimento das conquistas (644-656)

Ver mapa p. 384 B. Ornar, que tinha sido unanimemente reconhecido, evi­
tara toda e qualquer inovação profunda. Osmão foi difi­
cilmente designado por uma comissão de seis compa­
nheiros constituída por Ornar e teve de fazer frente a uma
oposição complexa a partir do momento em que se pro­
pôs consolidar o recente enraizamento dos Árabes. Já a
Sobre a rivalidade entre o clã de Umayya nomeação de um membro do clã dos Omíadas de prefe­
- os Omíadas - e o de Hâshim rência a Alí, primo de Maomé, e isto por uma comissão
(ao qual pertenciam Maomé e Ali),
ver p. 71. da qual não participou nenhum medinense, suscitara reser­
vas. Osmão relançou a expansão no sentido da Cirenaica,
no Norte de África, do Cáspio e, sobretudo, do rico Jurassã.
Abd Shams
I A conquista foi concluída em 651, com a tomada de Merv.
Umayya
O Sistão Ocidental e o Kirman foram igualmente con­
quistados. Nas fronteiras da Ásia Central, os Árabes optaram
por consolidar o seu poder: limitaram-se a estabelecer
Abu Sufiân uma simples guarnição em Merv, que ficou na depen­
dência do Iraque.
Iázidc Moawiya Osmão
b. Abu Sufiân Sob o impulso de Mu’âwiya, começaram as primeiras
expedições marítimas, com a provável ajuda dos mari­
nheiros sírios: Chipre foi tomada em 649. A pouco e pouco,
porém, a expansão tropeçava em fronteiras naturais: deserto
da Tripolitânia, Tauro e Cáucaso, Ásia Central. O pode­
rio marítimo apenas dava os primeiros passos. Era pois
com os rendimentos das províncias, mais do que com os
espólios, que de futuro se teria de contar. Para melhor os
controlar, Osmão instalou nelas elementos competentes
e experientes, escolhidos na sua própria família. Nomea­
damente, confirmou o seu primo Mu’âwiya na Síria.
Começou a conceder a notáveis árabes terras do Estado
Qati’a: parcela concedida a em qatVa, o que criou, sobretudo na Síria, uma nova classe
Árabes para que a explorem. de proprietários fundiários e também um clã político que
O possuidor paga a zakãt - in­
ferior ao kharâdj - e recebe as
lhe era favorável.
rendas dos caseiros; não de­
No entanto, esta política de Osmão suscitou contra ele
tém sobre estes nenhum di­
reito de natureza pública. uma oposição muito viva: Medinenses suplantados pelos
Mequenses, clãs não-omíadas, membros da família de
Maomé. A hostilidade tinha por centro, sobretudo, Medina.
Em 656, Osmão é assassinado. Após alguns dias de estu-
pefacção, Ali impõe-se em Medina como seu sucessor.

86
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. vi-séc. vn)

Ali e a primeira guerra civil ■

Ali obteve rapidamente o apoio das três grandes cida­ Alí: primo e genro de Maomé,
des muçulmanas - Baçorá, Cufa e Fustât -, que se desem­ dado que é filho de seu tio
Abu Tâlib e marido de sua fi­
baraçaram dos seus funcionários omíadas. Mas o facto de lha Fátima (ver pp. 70 e 81).
ser beneficiário do crime em breve o levou a ser acusado Califa de 656 a 661, está na
de ter sido o seu instigador. Dele se afastaram piedosos origem da grande divisão en­
medinenses, companheiros como Talha e Zobair e a viúva tre Muçulmanos sunitas e
de Maomé, Aicha, que ele eliminou. Mas a vingança sobre Muçulmanos xiitas.
o culpado foi principalmente reclamada pelo clã dos
Omíadas. Ali teve de abandonar Medina e tentou, com
base em Cufa, que o reconhecessem. Mtfâwiya, que deti­
nha na Síria um poder militar efectivo, ergueu-se contra
ele em nome da família omíada. O conflito, que estalou
em Siffin, no Eufrates, estava em vias de se resolver a favor
de Ali, quando este foi obrigado a aceitar a proposta de
arbitragem avançada pelos adversários. A comissão de arbi­
tragem, reunida em Edhroh em 658, declarou a respon­
sabilidade de Ali nos acontecimentos de 656. Desde logo
a posição de Mu’âwiya ficou reforçada: reconhecido na
Síria e, depois, no Egipto, foi proclamado califa em 659.
Aos califas Râshidún sucediam os Omíadas. Râchidün: «dirigidos, bem ins­
pirados»; nome pelo qual a
Assim, decorridos apenas quarenta anos sobre a morte tradição designa os quatro pri­
de Maomé, o problema do poder e da direcção da umma meiros califas, por oposição
abria as primeiras brechas na comunidade. Em Siffin, um aos Omíadas.
grupo de muçulmanos recusa o princípio da arbitragem
e faz secessão: são os primeiros carijitas. Um deles assas­ Carijitas: «os que saíram».
sina Ali em 661. Mas Ali tinha fiéis, que formaram um
partido - os xiitas - hostil a Mu’âwiya e agrupado em tomo
dos seus descendentes.
A base territorial da umma tinha-se alargado à dimen­
são de um império cuja unidade religiosa continuava por
concretizar. Um texto oficial do Alcorão fora fixado por
iniciativa dos califas Ornar e Osmão. Mas havia outras ver­
sões, além de que eram possíveis diversas leituras do mesmo
texto em resultado da inexistência, na escrita árabe, de
sinais para as vogais, e da confusão possível entre certas
letras quando os pontos diacríticos não são utilizados. Em
Medina, centro da reflexão religiosa, começava a consi­
derar-se que a vida privada e pública do muçulmano devia
ser regida pelo Alcorão e a Suna do Profeta. Para expli­
citar o Alcorão, recorria-se, então, aos hadiths, tais como Hadiths: actos, palavras e ati­
eram narrados pelos companheiros ainda vivos ou pelos tudes do Profeta em que se
fundamenta a Tradição, ou
seus amigos. Era ainda necessário que esta reflexão reli­ Sunna.
giosa emanasse dos meios medinenses. Entre os conquis­
tadores árabes, por vezes muçulmanos recentes, poucos
eram realmente instruídos em matéria religiosa; a prática
diferia frequentemente de um lugar para outro. O islão
não se tinha ainda confrontado com as outras religiões
— cristianismo, zoroastrismo, maniqueísmo -, maioritárias,

87
pela sua tolerância, nas províncias recém-conquistadas.
O encontro do islão nascente com as civilizações anterio­
res foi determinante para a evolução do dogma e do
direito. Ao ponto de certos historiadores terem conside­
rado que foi somente após terem saído da Arábia e vivido
em contacto com os grandes povos sedentários que os
Árabes - esses nômadas a quem até então faltavam total­
mente tradições culturais - ergueram os fundamentos da
nova construção política e religiosa que foi o islão. A isla-
mização estava, pois, longe de estar realizada: apresen­
tava-se a alguns como uma das tarefas primordiais dos cali­
fas. Ora, tal como no cristianismo oriental (monofisismo),
mas mais ainda no caso de uma comunidade criada na
base de uma religião, as próprias discussões políticas nas­
cidas da primeira guerra civil iam assumir a forma de
divergências religiosas.

Para aprofundar este capítulo

Sobre a Hispânia bizantina: P. GOUBERT, «Byzance et


1’Espagne wisigothique», Etudes Byzantines, 2, 1944, pp. 5-
-78 e «L’Espagne byzantine», ibid., 3, 1945, pp. 127-142 e
4, 1946, pp. 71-133.
Sobre a Itália: C. DlEHL, Etudes sur Ladministration byzan­
tine dans Vexarchat de Ravenne, Paris, 1888; mais recente­
mente, I Bizantini in Italia, Milão, 1982; T. S. BROWN,
Gentlemen and Officers. Imperial Administration and Aristocratic
Power in Byzantine Italy, 554-800, Roma, 1984. Sobre as
invasões lombardas, G. BARNI, La Conquête de VItaliepar les
Lombards, Paris, 1975. A obra de G. FOURNIER, UOccident
de la fin du Ve. à la fin du IXe. siècle, Paris, 1970, perma­
nece muito útil.
Sobre os Eslavos: aditar-se-á às obras citadas na pág. 13
e a D. OBOLENSKY, Byzantine... (cit. pág. 13), P. LEMERLE,
Les Plus Anciens Recueils des miracles de saint Demétrius,
2 vols., Paris, 1981, bem como dois artigos do mesmo
autor incluídos em Essais sur le monde de Byzance, Variorum
Reprints, Londres, 1980: «Invasions et migrations dans
les Balkans» e «La chronique improprement dite de Monem-
vasie».
Sobre o povoamento do Peloponeso, referir-se-ão vários
artigos de P. CHARANIS, Studies on the Demography of the
Byzantine Empire, Variorum Reprints, Londres, 1972.
Sobre os Búlgaros: S. RUNCIMAN, A History of the first
Bulgarian Empire, Londres, 1930; D. M. Lang, The Bulgarians

88
Invasões e mudanças de dominação (fins do séc. vi-séc. vii)

from Pagan Times to the Ottoman Conquest, Londres, 1976;


D. OBOLENSKY, Byzantine... (cit. pág.* 13).
Sobre Maomé: M. Gaudefroy-DemüMBYNES: Mahomet,
Paris, 2." ed., 1968; M. RODINSON, Mahomet, Paris, 2.- ed.,
1968; M. MontgOMERYWatt, Mahomet (reed. de Mahomet
à la Mecque e de Mahomet à Médinè), Paris, 1989; M. COOK,
Muhammad, Oxford University Press, 1983. Levar em conta,
sobretudo, as reflexões historiográficas de C. CAHEN,
Introduction... (cit. pág. 12) e a tradução de TABARI, Mahomet,
sceau des prophètes (cit. pág. 16).
Sobre o Alcorão, os estudos são muito numerosos;
deverá utilizar-se, antes de tudo, a apresentação que dele
faz C. CAHEN, Introduction..., pp. 105-108 (cit. pág. 12),
depois a introdução de R. BlaCHÈRE, Introduction au Coran,
Paris, 1959, e a tradução francesa do Alcorão cit. pág. 15.
Por último, refiram-se os artigos «Kur’an» e «Hadith», de
E. I./2 (cit. pág. 12) e M. ARKOUN, Lectures du Coran, 1982.
Sobre os primeiros tempos do islão: M. A. SHABAN,
Islamic History, A. D. 600-750. A New Interpretation, Cam-
bridge, 1971. Sobre a expansão em particular, F. Mc Don-
NER, TheEarly Arab Conquests, Princeton, 1981; mais antigo:
F. GABRIELI, Mahomet et les Grandes Conquêtes arabes, trad.
fr. Paris, 1968; C. DÉCOBERT, Le Mendiant et le Combattant.
De ITnstitution de ITslam, Paris, 1990.
Ver igualmente os estudos regionais, citados na biblio­
grafia geral. H. DjAIT, Al-Küfa, naissance de la ville islami-
que, Paris, 1986.
Sobre os indígenas das regiões conquistadas: D. C. Den-
NETT, Conversion and the Poll-Tax inEarly Islam, Cambridge,
1950; F. LOKEGAARD, Islamic Taxation in the Classic Period,
Copenhaga, 1950; A. Fattal, Le Statut légal des non-musul-
mans enpays dlslam, Beirute, 1958; R. BLACHÈRE, «Regards
sur 1’acculturation des Arabo-Musulmans jusque vers
40/661», Arabica, 1956; J.-C. GARCIN, «L’arabisation de
1’Egypte», Revue de VOcddent musulman et de la Méditerranée,
43, 1987. Sobre o processo de islamização: R. W. BULLIET,
Conversion to Islam in the Medieval Period: an Essay in
Quantitative History, Cambridge-Londres, 1979.
Sobre a primeira guerra civil: E. L. PETERSEN, «Ali and
Mrfâwiya, the rise of the Umayyad Caliphate», Acta
Orientalia, 1959; Ali and Mu 'âwiya in early Arabic traditions,
Copenhaga, 1964; artigo «Ali» em E.I./2 (cit. pág. 12).

89
6
O Império Bizantino
da morte de Justiniano
à subida ao trono de Leão 111
(565-717)

7. A evolução política

O período que se estende do fim do reinado de


Justiniano (565) à coroação de Leão III (717) é marcado
por uma mudança notável nas regras de sucessão ao trono:
deixa-se de escolher um César, como previa o sistema
tetrárquico de Diocleciano, para se associar ao trono um
co-imperador e chegar assim à formação de uma dinas­
tia.
Justino II (565-578) Não tendo Justiniano nomeado sucessor, é um dos seus
Tibério (578-582) sobrinhos, Justino II, que lhe sucede (565-578); mas este
Maurício (582-602) não dispõe de todas as faculdades e, a partir de 574,
Focas ( 602-610)
Tibério, elevado à dignidade de César, exerce efectiva-
mente o poder, antes de se tornar Augusto. Alguns dias
antes da morte, Tibério nomeia o seu melhor general,
Maurício, primeiro César e depois Augusto, o que per­
mite uma nova sucessão sem incidentes (582). A regra
diocleciana parece manter-se. Mas não sobrevive às per­
turbações trazidas pelas invasões. Maurício exige de mais
ao seu exército do Danúbio, o que provoca um motim
chefiado por um oficial subalterno, Focas (602).

■ Heraclio

Constâncio II (641-668) Focas é um tirano que depressa se torna odioso. As


Constantino IV (668-685) fronteiras caem em todo o lado e a salvação de Bizâncio
Justiniano II (685-695)
chega da parte menos ameaçada do Império - a África.
Leôncio (695-698)
Tibério 11 (698-705) Heraclio, filho do exarca de Cartago, toma o poder (610)
Justiniano III (705-711) e funda uma nova dinastia, não utilizando o sistema dos
Césares, mas associando ao trono, em pé de igualdade,
os seus filhos Constantino e Heraclonas. A solução não
deixa de ter inconvenientes: por morte de Heraclio (641),
os dois co-imperadores erguem-se um contra o outro; o
mesmo se passa após a morte de Constantino, entre os
adeptos de seu filho e os de Heraclonas. A conjunção da

90
O Império Bizantino da morte de Justiniano à subida ao trono de Leão III (565-717)

aristocracia senatorial, do exército, do clero e do ódio


sentido pelo povo de Constantinopla contra a mãe de
Heraclonas dá o poder a Constante II, de 11 anos de idade
(641). Mais tarde, este associa ao trono os seus três filhos,
Constantino, Heraclio e Tibério. Constantino sucede ao
pai em 668 e, em breve, priva os dois irmãos do título
imperial para associar ao trono o próprio filho, Justiniano,
que lhe sucede em 685.

A anarquia ■

A política de Justiniano II, hostil à aristocracia, dis­


pendiosa, acentuando a pressão fiscal, impondo desloca­
ções de populações, torna-se rapidamente impopular. Uma
insurreição conduzida pelos «Azuis» derruba-o em 695, Azuis: ver demos p. 41.
em proveito do estratego do tema da Hélada, Leôncio,
com o qual se abre um período de vinte anos de instabi­
lidade. Leôncio é destronado em 698, graças aos «Verdes», Verdes: ver demos p. 41.
pelo almirante da frota batida pelos Árabes ao largo de
Cartago, Tibério Apsimar. O próprio Justiniano II conse­
gue reocupar o trono por seis anos (705-711), mas o seu
segundo reinado não é mais feliz do que o primeiro: o
arménio Filípico Bardanés derruba-o. Este, por sua vez, é
destronado pelas forças do Opsikion em benefício de Opsikion: ver p. 94.
Anastásio II (713) e, pouco depois, de Teodósio III (715).
Este último limita-se a conter por dois anos a revolta do
estratego dos Anatólios, Leão o Isauro, que sobe ao trono
em 717 e funda uma nova dinastia.

2. O fim das querelas cristológicas

O monotelismo ■

A política religiosa de Justiniano, como as outras, fra­


cassou nos seus esforços para impor ao Império uma uni­
dade religiosa. O Ocidente mantém-se calcedónio, en­
quanto as províncias orientais - Síria, Palestina e Egipto -
são maioritariamente nestorianas ou monofisitas. O par- Nestorianos: ver p. 46. Monofisitas:
ticularismo religioso, sobretudo o monofisismo, é o veí­ ver p. 46.
culo dos particularismos provinciais - étnicos, culturais,
linguísticos - do Oriente: reflecte a oposição das regiões
semitas ao poder exercido pelos Greco-Latinos. A reacção
contra os calcedónios é também a rejeição de Constan­ Calcedónios: defensores da or­
tinopla, da centralização, dos funcionários do fisco. Esta todoxia definida no concílio
oposição, que nem a persuasão nem a força puderam redu­ de Calcedónia (451).
zir, ameaça a coesão política do Império. Heraclio, vindo

91
do Ocidente, bem o sentiu aquando da invasão persa que
marca o início do seu reinado: a resistência das provín­
cias orientais tinha sido fraca, quase uma traição. O impe­
rador defende, por isso, a ideia de se chegar a uma síntese
entre calcedónios e monofisitas. O patriarca de Cons­
tantinopla, Sérgio (610-638), retoma por sua conta uma
tese oriental que, distinguindo as duas naturezas de Cristo,
sustenta que elas estão unidas por um único princípio de
actividade (energia): assim nasce o monoenergismo. Depois
de ter seduzido o papa Honório e o patriarca Ciro de
Alexandria, o monoenergismo defrontou-se com a opo­
sição da população monofisita do Egipto e da Síria e dos
defensores da ortodoxia, como o patriarca Sofrónio de
Jerusalém. Sérgio inflectiu então a sua doutrina: passa
em silêncio sobre o problema das energias para anun­
ciar a unicidade da vontade (em grego: thélèmd). Assim
nasce o monotelismo. O imperador Heraclio, que nova­
mente vê as províncias de maioria monofisita oporem
uma resistência irrisória ao invasor, desta vez árabe (bata­
lha de Iarmuque, em 636), promulga um edicto mono-
telita - o Ekthésis (exposição) -, afixado às portas de Santa
Sofia.

■ O fracasso do monotelismo

A eficácia destas duas medidas acaba por se revelar


fraca. Os monofisitas resistem. Em breve, as províncias
monofisitas são perdidas e o Ocidente reassume toda a
sua importância e interesse, como o provam as viagens de
Constante II. O papa e a África rejeitam o Ekthésis. Cons­
tante II promulga em 648 o Typos (fórmula), diploma no
qual não toma partido, limitando-se a proibir toda a dis­
cussão sobre o assunto. Mas isto continua a não satisfazer
ninguém. O papa Martinho condena o Typos, o que lhe
vale a deportação para Quérson, onde morre na fome e
na miséria. Constantino IV, enfim, é confrontado com
uma dura luta contra os Árabes, na qual está em jogo a
própria existência do Império. Ele tem consciência de que
o seu apoio está no Ocidente, pois a própria Ásia Menor
vacila. Desejoso de restabelecer a paz religiosa, convoca
para Constantinopla o VI Concílio Ecuménico (680-681),
que condena o monotelismo. Apenas o arménio Filípico
Bardanés lhe viria a assegurar uma efémera renovação.
A Igreja Bizantina pode, a partir de então, consagrar
os seus esforços a organizar-se, como acontece por oca­
sião do Concílio puramente oriental de 692. Uma das pri­
meiras manifestações da Igreja propriamente bizantina,
este concílio revela a importância assumida pelo mona-
quismo e denota divergências nas práticas entre o Oriente

92
O Império Bizantino da morte de Justiniano à subida ao trono de Leão III (565-717)

e o Ocidente. As querelas futuras estão, portanto, já em


germe. Quando nem todas as manifestações do espírito
monofisita estão ainda extintas, o iconoclasmo apronta-
-se para surgir.

3. Do Império do Oriente ao Império Bizantino

Grecização ■

No séc. Vil assiste-se à substituição definitiva de tudo o


que subsistia de romano e de latino pelo grego e o bizan­
tino. A língua latina desaparece mesmo dos actos oficiais.
Já Justiniano, a partir de 536, tinha publicado as suas nove­
las em grego; o seu Código é, desde então, utilizado na
tradução grega. A criação literária, representada por alguns
historiadores como Teofilacto Simocata e o autor da Crónica
Pascal, o poeta épico Jorge de Pisídia, mas sobretudo por
teólogos como Máximo o Confessor, por hinógrafos ou
hagiógrafos como o patriarca Sofrónio ou o cipriota
Leôncio de Neápolis, narrador da vida do patriarca de
Alexandria João o Esmoler e do «louco de Deus» Simeão
Salos, é exclusivamente em grego. Apenas as línguas orien­
tais resistem.
Os próprios títulos do imperador mudam antes de 629.
Os títulos romanos - Imperator Caesar Augustus - desapa­
recem perante o grego basileus, que se mantém até ao fim
do Império. No séc. IX tinha de se precisar, falando no
«basileus dos Romanos».

A administração central ■

As mudanças na administração central são progressi­


vas, traço característico da história institucional de Bi-
zâncio. Nada se revoga por lei: em vez disso, sobrepõe-
-se uma nova instituição a outra, que cai em desuso.
O principal facto deste período é o quase-desapareci-
mento da prefeitura do pretório: as novas divisões admi­
nistrativas, que escapam à prefeitura, alargam-se a pouco
e pouco à totalidade do Império: as finanças públicas
saem do seu controle. O monmento geral evocado acima,
que levara a afectar os rendimentos privados da Coroa
às despesas públicas, atinge a sua conclusão lógica quando
as atribuições das Larguezas Sagradas se juntam às da Larguezas Sagradas: ver p. 38.
Res Privata e do Património no Sakellion, que quer dizer, Res Privata: ver p. 38.
literalmente, o cofrezinho do imperador. Os serviços
dependentes da antiga prefeitura individualizam-se sob

93
Sékréta: serviços da adminis­ o nome de sékréta, tal como o poder dos logotetos se
tração central. reparte pelo stratiôtikon para as despesas militares, pelo
génikon para as despesas gerais, pelo idikon para as des­
pesas da Corte e, mais tarde, pelo logoteto do dromo,
isto é, o responsável dos correios imperiais.

■ Os temas

As inovações na administração central são completadas


por uma mudança muito mais profunda na administra­
ção provincial. Com efeito, as antigas divisões (provín­
Tema: 1.® - contingente mili­ cias, dioceses) são substituídas pelos temas, circunscri­
tar de uma província; 2.2 - a ções ao mesmo tempo administrativas e militares, que
própria província comandada
combinam a tradição romana dos soldados-camponeses
por um estratego.
instalados nas fronteiras e a experiência feita no séc. vi
em Itália e em África com a criação dos exarcados de
Ravena e Cartago, experiência que Heraclio, filho do
exarca de Cartago, e os seus sucessores generalizam a todo
o Império.
Para dar mais eficácia à defesa dessas duas províncias
frente aos Lombardos e aos Berberes, Maurício, prosse­
guindo uma política já aplicada por Justiniano na Ásia
Menor, e nomeadamente na Capadócia, confiara a um
governador, o exarca, a totalidade dos poderes civis, mili­
Estratego: governador de um tares e fiscais. O estratego herda estas atribuições, mais
tema, acumulando poderes ci­ ou menos limitadas em matéria fiscal.
vis e militares.
Mas a base do sistema dos temas é a organização mili­
tar. A própria palavra começa por designar um destaca­
mento militar e o nome dos primeiros temas corresponde
não a uma região, mas ao contingente que para ela é des­
tacado: o Opsikion — a guarda imperial (obsequium); os
Ver mapa p. 384 C. Armeníacos - o contingente repatriado da Arménia e não
a região arménia; os Anatólios - contingente do Oriente,
deu o seu nome à região onde foi instalado. O nome dos
primeiros temas dá, aliás, uma ideia da sua criação: face
à invasão, mais árabe do que persa, repatriou-se o exér­
cito do Oriente (Anatólios) e da Arménia (Armeníacos)
que foram colocados na Ásia Menor para assegurar a defesa
da região.
Datar o aparecimento dos temas não é coisa fácil, tendo
em conta a ambiguidade entre o simples contingente e a
existência da estrutura administrativa. Além disso, não se
trata de modo algum de uma quadrícula do conjunto do
território, mas de uma criação progressiva. A tradição ulte­
rior considera que o primeiro foi o dos Anatólios, que
começa por abranger a metade sul da Ásia Menor bizan­
tina, conhecido em 669. No entanto, a primeira menção
é a do tema dos Armeníacos, que engloba o terço nor-

94
O Império Bizantino da morte de Justiniano à subida ao trono de Leão III (565-717)

deste da Ásia Menor, em 667; pouco depois surge o


Opsikion, próximo da capital. O Ocidente conhece a
mesma organização com o tema da Trácia (679-680) e o
da Hélada (695).
Os todo-poderosos estrategos dispunham de um exér­
cito de 6000 a 12 000 homens, que podiam mobilizar em
qualquer momento para garantir a defesa do seu tema.
Isto correspondia a novas necessidades militares. Face aos
persas, a guerra opunha, em choques frontais, os dois
grandes exércitos centrais dos impérios, que manobravam
lentamente. Os contingentes (tagmata), que de resto sub­ Tagmata: contingentes do exér­
sistem, respondiam a essa necessidade. As primeiras inva­ cito central, mercenários na
maior parte dos casos.
sões árabes revestiam-se das mesmas características. Mas
quando os Árabes atingiram a Ásia Menor, distante das
suas bases, passaram a operar essencialmente por razias
perante as quais o exército central era ineficaz, já que
chegava após a partida do inimigo. Tornava-se necessário
instalar imediatamente no local uma força menos nume­
rosa, mas decidida a defender a sua terra: os estratiotas dos Estratiota: camponês proprie­
temas. Sendo o estado de guerra contínuo, o chefe deveria tário que contribui com um
soldado para o exército do te­
ser poderoso. Daí a fusão nas mãos do estratego, origi-
ma e beneficia de importan­
nariamente comandante do contingente (o tema militar), tes medidas fiscais e de segu­
dos poderes militares e administrativos (o tema, circuns­ rança.
crição administrativa).
Mas o tema engloba também realidades sociais. Com
efeito, o contingente é composto pelos soldados dos anti­
gos corpos do exército que deram o nome ao tema. Ligados
à terra, tinham-se tornado camponeses. Ao mesmo tempo
o contingente recebe o reforço de camponeses que, em
troca de privilégios fiscais e de uma melhor protecção jurí­
dica, se alistam. Não se trata de modo algum de um exér­
cito de recrutamento, mas sim de um alistamento here­
ditário. O serviço militar não é permanente: durante as
campanhas, o estratiota recebe um soldo; nos intervalos,
regressa ao campo. Está, todavia, obrigado a responder a
qualquer convocação e sujeito a revistas (adnoumion) des­
tinadas a garantir que o respectivo equipamento se encon­
tra em estado de prontidão. O estratiota é, na realidade,
um cavaleiro. Cabe-lhe fornecer o próprio equipamento
- cavalo e armamento. Provê à sua manutenção durante
as campanhas e assegura o seu treino fora delas. Quando
as operações militares o ocupam não pode cultivar as ter­
ras, pelo que a sua exploração deve ter a mão-de-obra
necessária para poder funcionar. Em suma, os estratiotas
não são indigentes. Não é que não haja, no exército bizan­
tino, muitos párias; mas estes constituem a infantaria, de
que os estratiotas formam o enquadramento. O sistema
militar bizantino soube, pois, utilizar as mudanças sociais
nos campos, alistando os que representavam a força ascen­
dente: o pequeno e médio campesinato.

95
4. As transformações sociais

O período das invasões é caracterizado, antes de mais,


por uma relativa ruralização do Império. O peso das cida­
des e das suas actividades diminui, tanto pela perda das
regiões orientais fortemente urbanizadas (Alexandria e
Antioquia) como por uma retracção das cidades que res­
tavam ao Império. Com efeito, a actividade comercial
conhece um certo declínio, de que é testemunho a menor
importância atribuída à cunhagem de moeda. Os grandes
itinerários ficam temporariamente cortados, o Ocidente é
pobre e anárquico, a contracção do Império reduz a exten­
são do comércio. Entretanto, a cidade não desaparece,
uma vez que conserva o seu triplo papel administrativo,
militar e religioso: centro de recrutamento do exército,
residência dos chefes, residência do bispo e do pessoal
eclesiástico. Também a aristocracia fundiária, é certo que
relativamente reduzida, continua a morar na cidade. Tudo
isto proporciona um mercado ao artesanato local, mas tam­
bém ao comércio. As grandes feiras (Tessalonica, Efeso)
subsistem. Contudo, a maior parte das cidades muda de
carácter. Muitas urbes antigas - mesmo as que, como Efeso
ou Ancira, mantêm uma certa prosperidade - retraem-se
mais ou menos para dentro das suas fortificações. A cidade
altera, portanto, as suas características, como o demonstra
o emprego generalizado do termo kastron (castelo, forta­
leza) para a designar. Comparativamente, as cidades do
interior conservam-se melhor do que os portos.

■ Demografia

Conhece-se ainda pior a demografia do Império no


séc. VII do que no séc. VI. Por um lado, não se podem ava­
liar as devastações devidas às invasões; por outro, não é
possível estimar o contributo dos invasores, directo no
caso dos Eslavos e indirecto no Oriente, onde populações
inteiras são repatriadas, como sucede com os contingen­
tes dos temas. Globalmente, tem-se a impressão de que
não faltam braços nos campos e que esta situação é devida
tanto ao desenvolvimento demográfico decorrente das
transformações sociais, como às contribuições estrangei­
ras. Mas esta situação esconde muitas desigualdades, o
que explica as transferências de populações levadas a efeito
por certos imperadores: em 686, mardaítas são desloca­
dos para a Trácia, Cilicia e Panfília; em 688, Justiniano II
acantona 30 000 búlgaros e eslavos na Bitínia; em 690,
transporta cipriotas para a zona de Cízico; em 712, Filípico
Bardanés transfere arménios para Melitena; em 762,
Constantino V desloca 208 000 eslavos para a Bitínia.

96
O Império Bizantino da morte de Justiniano à subida ao trono de Leão III (565-717)

Os campos ■

Os campos bizantinos conhecem ao mesmo tempo uma


expansão económica, sem a qual não se explicaria que o
Império tenha podido continuar a abastecer-se após a
perda desse celeiro de trigo que era o Egipto, e as trans­
formações sociais que a acompanham. O sistema fiscal
herdado de Diocleciano mostra-se completamente ultra­
passado pela evolução favorável ao pequeno campesinato
independente: adapta-se à preeminência da aldeia e ao
desaparecimento das instituições municipais. A base de
incidência é profundamente modificada. O antigo prin­
cípio da capitatio-jugatio procurava somar as terras culti­
vadas e a mão-de-obra, os instrumentos e os animais que
as trabalhavam: era demasiadamente complicado. O sis­
tema meso-bizantino assenta unicamente na quantidade
e na qualidade da terra, repartida em três categorias.
Graças a um método de agrimensura relativamente sofis­
ticado, a terra de cada um é cadastrada e o imposto cor­
respondente calculado proporcionalmente à respectiva
superfície e qualidade; o resultado é também inscrito no
cadastro, segundo o mesmo critério (stichos). A contribui­
ção predial (télos) é, portanto, um imposto de prestação Télos-. imposto predial
individual, ao qual se deve acrescentar, aliás, um fogal Kapnikon; imposto pessoal so­
bre os fogos.
(kapnikori) indubitavelmente leve.
O cadastro - logo, a determinação da matéria colec-
tável - e, depois, a cobrança do imposto fazem-se aldeia
por aldeia (tóron). Os stichoi são agrupados em secções,
e o conjunto das secções forma o «talão» da aldeia, total
da tributação expressa em nomismata, correspondente a
uma quantidade de terra, ou «extensão», manifestada em
modioi (valendo um modios cerca de um décimo de hec­
tare). Cada aldeia tem assim um coeficiente particular,
dito taxa de perequação ou taxa de épibolè, que é o resul­ Épibolè: modo de repartição
tado da divisão do número de modioi (a superfície) pelo dos impostos dos proprietários
insolventes. Ver p. 39.
número de nomismata (o montante do imposto) e que se
exprime em modioi por nomisma (de imposto). Trata-se de
um meio cómodo para o inspector (epopta) que perio­
dicamente vai verificar se cada um paga o que deve em
função da terra que explora, se a quantidade de terra
explorada corresponde ao imposto pago.
Tal como o Império Romano estava dividido em cida­
des, responsáveis pela cobrança dos impostos, assim o ter­
ritório bizantino se apresenta repartido em chôria, que
abrangem tanto o habitat concentrado, nitidamente pre­
ponderante, como o habitat disperso. O imposto continua
a ser pessoal, mas o chôrion é colectivamente responsável
pelo tributo dos infractores, aos quais pode, nesse caso,
apreender as terras, que assim se juntam, a título provi­
sório, aos bens comunais (prados ou bosques). Expirado
um prazo prescricional de trinta anos, as terras que assim
estiveram acidentalmente na posse do chôrion são dividi­
das pelos co-contribuintes. Este sistema, bem como a explo­
ração dos baldios e do rebanho comunal, implica uma
organização relativamente forte do campesinato.
Mas desta organização só fazem parte os camponeses
detentores de terra que, proprietários ou não, paguem
imposto. O vigor do sistema do chôrion, que já existia ante­
riormente, mas que conhece o apogeu entre os sécs. vii e ix,
pressupõe, como de resto o regime dos temas, o dina­
mismo do pequeno e médio campesinato independente.
Este revelava já uma forte presença no Oriente romano,
mas a grande propriedade representava então a forma
corrente da exploração do solo. Todavia, uma grande
parte dessas terras era concedida a pequenos agriculto­
res, cuja condição e independência económica melhora­
ram nos sécs. v e vi, o que resultou num desenvolvimento
da pequena propriedade. Este último fez-se à custa não
só das terras em pousio - o que permite abastecer
Constantinopla após a perda do Egipto - mas também dos
grandes domínios. Embora o mecanismo deste fenómeno
seja mal conhecido, podem tentar detectar-se as respec­
tivas causas. O afluxo de novos camponeses por via das
invasões ou dos repatriamentos e as destruições infligidas
aos grandes domínios apenas acrescem ao dado de base
- o aumento das disponibilidades dos pequenos campo­
neses. Isto permite-lhes cultivar novas terras e terem mais
filhos, os quais, por sua vez, partem à conquista desses
pousios que eram frequentemente os grandes domínios,
só em parte explorados.
Este fenómeno é também fiscal. A multiplicação dos
pequenos camponeses proprietários eleva o número dos
contribuintes; a taxa do imposto baixa desde o final do
reinado de Justiniano por perdão de atrasados, ou por
diminuição do imposto exigido, no tempo de Maurício;
o regime dos temas comprime as despesas militares do
Estado, dado que os estratiotas asseguram a própria manu­
tenção, embora continuem a receber um soldo, mas ape­
nas quando estão efectivamente em campanha. Por outro
lado, as despesas sumptuárias da corte e do imperador
são limitadas. Além disso, os serviços centrais da admi­
nistração foram agrupados, diminuindo desse modo o
número dos funcionários e dos dignitários pagos pelo
Tesouro, bem como as despesas civis do Estado. Em suma,
o Estado e o Imperador precisam de menos dinheiro, exi­
gem menos aos camponeses, deixando-lhes com que ali­
mentar mais filhos e com que investir. O Estado favorece
assim o crescimento da produção e do número de bra­
ços, logo mais arroteamentos geradores de novos contri­
buintes. Multiplica-se o número dos pequenos comri-

98
O Império Bizantino da morte de Justiniano à subida ao trono de Leão III (565-717)

buintes, aliás melhores pagadores do que os latifundiá­


rios, o que permite baixar ainda mais a contribuição de
cada um. Enquanto a massa do que entra nos cofres do
Estado se mantém ao nível das necessidades, diminui a
taxa do imposto incidindo sobre cada camponês. Em
resumo, apesar da ausência de progressos técnicos, está-
se, de certo modo, em fase de expansão.
Seria falso, no entanto, imaginar-se o Império dividido
entre os pequenos proprietários. A grande propriedade
subsiste: a da aristocracia senatorial ou militar, a dos bis­
pos, das fundações piedosas e dos grandes mosteiros.
Simplesmente, estabeleceu-se uma espécie de equilíbrio
que permite ao Império resistir primeiro, e depois empreen­
der uma reconquista no século seguinte. Quando um impe­
rador como Justiniano II põe em causa esse equilíbrio,
tomando, por um lado, medidas anti-aristocráticas e,
aumentando, por outro, os impostos para prover às suas
despesas sumptuárias, é derrubado por toda a população.
Assim, o final do séc. VI e o séc. vii marcam o nasci­
mento do Império propriamente bizantino. Atacado por
todos os lados, dividido internamente pelos problemas
religiosos, encontra em si mesmo as forças para uma reor­
ganização completa, baseada num novo equilíbrio social.
Sabe adaptar-se às novas correntes que atravessam o mundo
mediterrânico nos últimos anos do séc. vi e nos primei­
ros do séc. Vil.

Para aprofundar este capítulo

Além do capítulos das obras gerais, consultar R. H. JEN-


KINS, Byzantium, the Imperial Centuries, A. D. 610-1071, Nova
Iorque, 1969.
Os sucessores de Justiniano foram pouco estudados.
Sobre os exarcados, ver C. DlEHL, Etudes sur Vadministra-
tion byzantine dans Vexarchat de Ravenne, Paris, 1888 e
LAfrique byzantine, Paris, 1896.
Sobre a época de Heraclio: A. N. STRATOS, Byzantium
in the Seventh Century (602-634), vol. I, Haia, 1968. Sobre
OS problemas religiosos: J. PARGOIRE, LÉglise byzantine de
527 à 867, Paris, 1905.
Sobre o nascimento dos temas bizantinos, a contro­
vérsia é longa. Leia-se A. PertüSI, «La formation des thè-
mes byzantins», Berichte zum XI Internationalen Byzanti-
nistenkongress, Munique, 1959. Contra esta tese, ver

99
G. OSTROGORSKY, sobre a data de composição do livro dos
temas e sobre a constituição dos primeiros temas da Ásia
Menor, Byzantion, 23, 1954, pp. 31 e segs. Ver também
H. AHRWEILER, «Recherches sur 1’administration de
1’Empire byzantin aux IXí-XF. siècles», Bulletin de Corres-
pondance hellénique, 84, 1960, pp. 1-111, retomado em Etudes
sur les structures administratives et sodales de Byzance, Variorum
Reprints, Londres, 1971.
Sobre a sociedade em geral: E. PATLAGEAN, Pauvreté
économique et pauvreté sociale à Byzance (IVe.-VIIe. siècles), Paris,
1977. Sobre o Código Rural: R. SVORONOS, «Notes sur
Porigine et la date du Code Rural», Travaux et Mémoires,
8, 1981, pp. 487-500. Sobre a aldeia, M. Kaplan, «Quelques
remarques sur les paysages agraires byzantins (VIe.-milieu
du XIe. siècle)», Revue du Nord, 62, 1980, pp. 155-176;
M. KAPLAN, «Les villageois aux premiers siècles byzantins
(VIe.-Xe. siècles): une société homogène», Byzantinoslavica,
43, 1982, pp. 202-217.
Sobre as cidades: C. FOSS, Byzantine and Turkish Sardis,
Londres, 1976; C. FOSS, Ephesus after Antiquity. A Late Anti­
que, Byzantine and Turkish City, Cambridge, 1979.
Sobre os soldados e o exército: J. F. HALDON, Recruitment
and conscription in the byzantine army, c.550-c,950, Viena,
1979. G. Dagron, H. MlHAESCU, Le Traité sur la guérilla
(De velitatione) de Pempereur Nicéphor Phocas (963-969),
Paris, 1986.

100
7
O Império Árabe
dos Omíadas
(661-750)

Numa trintena de anos, os califas Râshidún tinham assegurado aos Árabes a hegemonia sobre
populações de diversas regiões. A partir de Medina, tinham dirigido uma comunidade de tribos que
reconheciam a sua qualidade de lugares-tenentes do Profeta. Ora, por diferentes razões, nem os xiitas
nem os carijitas admitiam o califado de Mu’âwiya. Este e os seus sucessores tentaram tornar-se os
chefes de um Estado territorial, cuja organização traduzisse a influência, dos Impérios Bizantino e
Sassânida. Centralização e arabização foram os traços característicos do período omíada. Mas o novo
regime não soube fazer frente ao desenvolvimento, ao lado dos Árabes muçulmanos e dos dhimmí,
de um novo grupo: o dos indígenas convertidos ao islão. Ao mesmo tempo, nos meios árabo-muçul-
manos crescia uma oposição à família omíada, acusada de impiedade. Estes conflitos cristalizaram-
se em torno do movimento abássida, que acabou por provocar a queda dos Omíadas, em 750.

1. Organização do Estado califal


Um equilíbrio delicado ■

Mu’âwiya e o compromisso. As bases materiais do poder Moawiya (661-680)


de Mu’âwiya encontravam-se na Síria, onde a sua família Hiazide I (680-683)
Moawiya II (683-684)
se instalara desde a conquista. Foi lá, em Damasco, que (684-685)
Marvan I
Mu’âwiya estabeleceu a sua capital. Longe de Medina e Abd al-Malik (685-705)
dos meios pietistas medinenses, tentou um compromisso Valid I (705-715)
entre as necessidades impostas pela construção de um Suleiman (715-717)
Estado e as aspirações das tribos que contestavam a hege­ Omar II (717-720)
Hiazide II (720-724)
monia dos Curaichitas e o desenvolvimento de um poder Hisham (724-743)
central. A Síria representava uma base tanto mais segura Valid II (743-744)
quanto os muçulmanos tinham aí conseguido estabelecer Hiazide III (744)
muito facilmente um equilíbrio com os dhimmí; e os Árabes, Ibraim (744)
Marvan II (744-750)
lá instalados anteriormente ao islão, estavam já habitua­
dos a uma forma centralizada de governo.
A adesão do filho mais velho de Ali, Hassan, impediu,
por algum tempo, o agrupamento dos opositores em torno
da descendência do genro do Profeta. A reunião, por
Mu’âwiya, de conselhos de xeques, em Damasco e na pro­
víncia, favoreceu o alinhamento das tribos. Isso permitiu,
nomeadamente, ao califa organizar sem problemas a sua
sucessão e substituir o sistema electivo por um sistema Ver quadro genealógico p. 86.
dinástico: Mu’âwiya designou, com efeito, o próprio filho

101
Hiazide para lhe suceder e fez ratificar a sua escolha pelo
conselho dos xeques. Assim começava uma linhagem de
Omíadas: clã curaichita des­ califas descendentes, por Mu’âwiya, de Umayya: os Omíadas.
cendente de Umayya, ao qual
pertencia Moawiya e que, pe­ Governadores, como Ziyad no Iraque, esforçaram-se
la introdução do princípio di­ com sucesso por reafirmar a autoridade dos Árabes nas
nástico, deteve o califado até províncias. Assim foram instaladas nos arredores de Merv
750.
50 000 famílias. A sua partida do Iraque aliviou a tensão
que aí reinava desde o califado de Ali, ao mesmo tempo
que o domínio dos Árabes no Irão foi reforçado.
Os esforços militares mantiveram-se, mas a expansão
real foi fraca nos primeiros decénios da dinastia omíada.
Para lá do Oxo, tratava-se sobretudo de manifestar o pode­
rio árabe face às tribos turcas. Quanto ao Magrebe, os
Árabes penetraram aí com alguma hesitação e a funda­
ção de Cairuão em 670 correspondeu mais a necessida­
des estratégicas do que a um desejo de conquistas. Foi
principalmente no plano marítimo que a actividade foi
grande: Mu’âwiya tentou em duas ocasiões - em 668-669
e entre 674-680 - apoderar-se de Constantinopla e amea­
çou gravemente Rodes, Chipre e Creta.
Não houve, assim, uma verdadeira ruptura com o
período dos califas de Medina, mas antes o esboçar de
novas tendências. A escolha da província síria como cen­
tro do poder, em detrimento das cidades santas da Arábia,
revelava a vontade de enraizar territorialmente o regime
árabe e de associar tradições de grandes impérios seden­
tários e tradições beduínas.
Entre as tribos instaladas na Síria, A segunda guerra civil. Após a morte de Mu’âwiya e o
umas — globalmente designadas como
Calbitas - eram de origem iemenita,
rápido desaparecimento de seus filhos, Hiazide I e
enquanto as outras - as Caisitas - Mu’âwiya II, a designação como califa de um primo de
tinham vindo da Arábia do norte
por ocasião da conquista.
Mu’âwiya, Marvan, atiçou as dissensões entre Caisitas e
Calbitas: estes últimos, vencedores da batalha de Marj
Rahit em 684, permitiram a Marvan tomar o poder.
Sobre as origens da shi’a de Ali, ou Favorecida por estas dificuldades, a hostilidade para
xiismo, ver p. 98.
com a política conduzida pelos Omíadas rebentou no
meio árabe, conquistou certos círculos autóctones e con­
fundiu-se por vezes com aspirações regionais. As rebeliões
que então sacudiram o Império Omíada emergiram do
Al-Abbâs Abdallâh Abú Tâlib
quadro xiita. Assim, em Cufa, os xiitas revoltaram-se, ape­
lando ao segundo filho de Ali, Hussein. Em 680, na cidade
iraquiana de Querbela, o exército omíada, comandado
por Hiazide, desbaratou os rebeldes. Este massacre signi­
ficou a ruptura definitiva entre xiitas e omíadas. O des­
tino trágico de Hussein, como antes o de Ali, insuflou ao
Hassan Hussein Muhammad movimento xiita um novo fervor religioso. O sofrimento,
ibn al-Hanafiyya a paixão, a expiação tornaram-se temas mobilizadores,
desconhecidos no islão sunita. Ainda em Cufa, estalou
Abú Hâshim uma nova revolta xiita encabeçada por Muctar em nome

102
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

de Muhammad ibn al-Hanafiyya, filho de Alí, mas não de


Fátima. Um pouco por todo o lado, no Iraque, na Djézira,
na Arábia Central e Oriental, eclodiram também movi­
mentos carijitas. Mas foi sobretudo no Magrebe que se
desenvolveu o carijismo, permitindo o desenvolvimento
do islão entre os Berberes.
Controlar estes movimentos era uma coisa; mas, sobre­
tudo, era necessário resolver os males que eles exprimiam.
A partir de Abd al-Malik (685-705), a política omíada carac­
terizou-se por um esforço para organizar melhor o Império
e arabizar a respectiva administração.

Centralização e arabização ■

O poder dos califas e o seu programa de acção mos­


tram-se ainda hoje nitidamente nos palácios que cons­
truíram na Síria, na orla do deserto: simples pavilhões de
caça ou sumptuosas residências, todos exprimem, através
de uma decoração variada que reserva um grande lugar
à arte figurativa, a vontade de poderio de um soberano
árabe, representado quer à maneira romano-bizantina,
quer segundo os modelos sassânidas. Pela mesma altura,
os mosaicos da Grande Mesquita de Damasco, reconstruída
ao tempo de Valid I no local da antiga catedral, sugerem,
por um panorama de cidades cuidadosamente elaborado,
o domínio do islão e as suas pretensões sobre Constan­
tinopla. A retomada da expansão apresentou-se, com efeito,
como um derivativo para o ardor das tribos árabes e um
meio para o Estado encontrar novos rendimentos.

A expansão. Esta segunda fase da expansão difere da


precedente pelas regiões que visou e pelas forças que a
conduziram. O engrandecimento do domínio do islão já
não se fez em detrimento do mundo bizantino. E certo
que não reinava a paz com Constantinopla, mas os Árabes,
embaraçados pela cordilheira táurica, tinham renunciado
a qualquer tentativa de implantação permanente na Ásia
Menor. Incursões de Verão, alguns conflitos de frontei­
ras - nomeadamente o que era provocado pelo pequeno
povo dos Mardaítas no Amano - caracterizaram as activi-
dades militares na região anatólia. Mas o principal objec-
tivo dos muçulmanos no lado bizantino continuava a ser
a conquista de Constantinopla: entre 680 e 716, opera­
ções marítimas prepararam o grande cerco de 716-717.
Os principais movimentos de expansão partiram do
Jurassã e do Egipto. A Transoxiana foi conquistada entre
705 e 714 pelos exércitos do governador Cutaiba, ao mesmo
tempo que se esboçava um movimento em direcção à
Ver mapa p. 384 B.
índia. A partir do Egipto, os Árabes instalaram-se em

103
Ver mapa p. 384 B. Ifriqiya em 698; daqui, o novo governador Musa ibn Nusayr
conduziu uma campanha até ao Atlântico através do mundo
berbere. Um dos seus lugares-tenentes, Tárique, passou à
Península Hispânica em 711, bateu o rei visigodo e alcan­
çou Toledo. Foi o início da conquista do que viria a ser,
com o nome de al-Andalus, uma nova província do Império.
Os exércitos de Cutaiba, como os de Tárique, com­
preendiam fortes contingentes de voluntários árabes, mas
incorporaram igualmente - o que era um facto novo -
elementos indígenas, iranianos ou berberes, convertidos
ao islão; o próprio Tárique era berbere. De facto, os Árabes
mostravam-se cada vez mais reticentes a partirem para
campanhas longínquas. O esforço guerreiro atenuava-se
com a sua progressiva sedentarização e a descoberta de
novas fontes de rendimentos, ainda que, nas fronteiras,
Djihâd: ver p. 80. se mantivesse o gosto da djihâd. Assim, o voluntariado
diminuía no resto do Império e os governadores recor­
riam cada vez mais a indígenas convertidos.

Os problemas da conversão dos indígenas. Com o cor­


rer dos anos, as conversões tinham-se multiplicado sem
que tenha havido, nesta matéria, uma política deliberada
dos Árabes. Estas conversões criaram na sociedade um
grupo de neomuçulmanos: adoptados, por um vínculo de
clientela, por uma tribo ou por um notável árabe, torna­
vam-se seus clientes. Eram os mawâli, cujo estatuto susci­
tou conflitos que os Omíadas não souberam resolver.
Efectivamente, sincera ou interessada, esta conversão
deveria dar aos mawâli os privilégios que diferenciavam,
concretamente, os muçulmanos árabes dos dhimmi indí­
genas, tanto no plano militar (inscrição no diwân do exér­
cito, participação nos despojos) como no fiscal (paga­
mento apenas da zakât). Neste caso, um amplo movimento
de conversão envolvia o risco de fazer o Estado perder a
receita da djizyâ, acrescida da diferença entre a taxa do
kharâdj e a taxa da zakât. Em contrapartida, obrigar os
mawâli a pagar os impostos a que estavam sujeitos anterior­
mente como dhimmi, levava a defini-los negativamente
como muçulmanos árabes, o que correspondia a uma injus­
tiça fiscal, a uma desigualdade no seio do islão e a uma
clivagem étnica. Mais ainda, os mawâli, acentuadamente
minoritários e adoptados por famílias árabes, permane­
ciam na dependência da aristocracia conquistadora e
reinante.

A supremacia árabe. A supremacia árabe manteve-se


uma das grandes características desta época. A estrita
separação inicial entre conquistadores e conquistados ten­
dia a esbater-se - os conquistados tornavam-se muçulma­
nos, os Árabes sedentarizavam-se -, mas o estatuto dos

104
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

Árabes permaneceu superior como bem o mostrava a con­


dição de mawâli.
O árabe tornou-se progressivamente, a partir de Abd
al-Malik, a língua administrativa. Foram cunhadas moe­
das árabo-muçulmanas para substituir as bizantinas e sas-
sânidas que continuavam a ser utilizadas: o dinar de ouro Dinar: moeda de ouro de
e o dirham de prata foram gravados com inscrições em 4,25 g.
Dirham: moeda de prata pe­
língua árabe, sem representação figurativa Os produtos sando 7/10 do dinar, ou seja,
fabricados pelo Estado - papiro, tecidos de luxo - tam­ 2,97 g.
bém continham inscrições em árabe.
Nas províncias (Síria e Iraque), terras pertencentes aos
domínios do Estado foram concedidas pelos califas a par­
ticulares que asseguravam a respectiva exploração e paga­
vam o zakât\ os beneficiários dessas qatâ’i foram Árabes. Qatâ’i (sing.: qatVa)’. de um
verbo que significa «cortar».
Se nos diversos serviços, os indígenas, sobretudo sírios, Terras «cortadas» ao domínio
continuaram a ter um lugar destacado em razão da sua público e concedidas a parti­
experiência administrativa, os governadores das diversas culares. Ver. pp. 86 e 177.
províncias foram escolhidos pelos califas entre os Árabes.
Com sede em Cufa, Medina, Mossul, Fustât ou Cairuão,
administravam civil e militarmente a respectiva província,
apoiados por chefes de região, juízes, comandantes mili­
tares e, por vezes, assistidos por cobradores de impostos
dependentes do califa. Estes governadores eram verda­
deiras potências regionais, como foi o caso de al-Hadjdjâdj
no Iraque, durante os reinados de Abd al-Malik e Valid I.
Era pois um verdadeiro império árabe que se tinha
constituído, não já somente porque a conquista tinha sido
levada a efeito por Árabes, mas porque funcionava em
benefício dos Árabes e por meio do instrumento linguís­
tico árabe. A instalação de um quadro institucional muçul­
mano, em Damasco como nas províncias, e a difusão do
árabe como língua oficial constituíram um factor de uni­
ficação de populações diversas, que muitas vezes tinham
conservado a sua língua, a sua religião e os seus costumes.
Se ocorreram críticas e revoltas contra o regime omíada,
elas nem foram anti-islâmicas, nem anti-árabes, antes se
inscrevendo no quadro árabo-muçulmano que se acabara
de precisar.

2. Desenvolvimento da oposição

O regime omíada não recolhia, entretanto, o acordo


unânime dos Árabes, mesmo fora dos meios da oposição
- xiitas e carijitas. Uma propaganda hostil tendia a apre­
sentar os califas como puros soberanos temporais, acusa-

105
dos de impiedade. No entanto, a instituição nos centros
Qâdis: juízes estabelecidos nos urbanos de qâdis e a construção de mesquitas atestam que
centros urbanos e encarrega­ eles não eram indiferentes ao islão. Mas tinham-se mos­
dos de julgar os muçulmanos
trado mais preocupados com a extensão do Império e a
segundo a lei corânica.
consolidação do seu poder do que prontos a assegurar as
consequências da islamização. Os problemas concretos
dos qâdis ilustram bem a dificuldade de erigir instituições
muçulmanas, na ausência de qualquer direito constituído.
Sunna: ver p. 87. Assim, a opinião geral era a de que a Sunna do Profeta
constituía a norma de vida; condenava-se como inovação
tudo o que não tivesse um exemplo correspondente na
época de Maomé; mas, perante os casos precisos e con­
cretos, os qâdis deviam recorrer, na sua decisão, ao jul­
gamento pessoal - o ray além de se admitir que o cos­
tume regional fizesse jurisprudência.
A hostilidade dos pietistas aos Omíadas não excluía o
alinhamento político de alguns. Assim, o movimento dos
murjitas, aparecido no final do séc. VII, recusava-se a jul­
gar os Omíadas quer como usurpadores, quer como auto­
res de medidas não conformes às prescrições corânicas,
quer por terem feito do califado um bem de família.
Porque eram estas as acusações lançadas contra os Omíadas.
Se havia descontentamentos económicos ou sociais, foi
em termos de ideologia muçulmana que se exprimiram e
em nome desta ideologia.

■ A oposição da família haxemita

Após a morte de Ali em 661, o xiismo tinha servido de


Sobre, estas revoltas, ver p. 102-103. quadro às revoltas contra o novo regime: rebelião de
Haxemitas: descendentes de Hussein e massacre de Querbela em 680, sublevação de
Hâshim, o bisavô de Maomé Muctar em 695. O fracasso de Muctar e a morte de
(ver quadro genealógico p. 71). Muhammad ibn al-Hanafiyya em 701 marcaram uma para­
Este termo designa os repre­ gem provisória da agitação dos Alidas, privados sucessi­
sentantes da família de Mao­
mé, quer os descendentes de
vamente de Hassan, morto em 669, de Hussein e, depois,
Ali (ou Alidas) quer os de al- de Muhammad. Este momento de incerteza e de recuo
-Abbâs (ou Abássidas). do xiismo teve duas consequências. Por um lado, come­
çou a impor-se a ideia de que a um período de ocultação
Imã: «guia», e desde logo o dos imãs legítimos sucederia o triunfo anunciado pelo
guia da oração colectiva na
regresso do Mahdi. Assim se afirmava no xiismo o tema
mesquita. Mas também o
«guia» dos crentes, chefe da da espera do Mahdi, cujo reino significaria o triunfo da
Comunidade no seu conjunto. paz, da justiça e da verdade. Por outro lado, os descon­
O título de imã é o único tentamentos apoiaram-se nas reivindicações de um califa
adoptado pelos xiitas, a fim pertencente à Família, ou seja à Família do Profeta Maomé.
de sublinhar o papel religio­
so do chefe da Comunidade. Numa sociedade onde os laços familiares se estendiam no
Mahdi: «guiado por Deus». âmbito de um largo conjunto, onde o tio materno desem­
O termo, entre os xiitas, de­ penhava um papel de primeiro plano, a Família não com­
signa o imã de que se espera preendia só os descendentes de Ali, procedentes de Fátima
a vinda ou o regresso.
por Hassan e Hussein, ou de outra mulher, como é o caso

106
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

dos descendentes de Muhammad ibn al-Hanafiyya, cujo


último representante, Abú Hâshim, morreria em 716; a
Família compreendia o ramo proveniente do irmão de Ali,
Jafate: Alidas e Jafaridas ligavam-se ao tio de Maomé, Abú
Talib. A descendência do segundo tio de Maomé, al-Abbâs,
pertencia também à Família. Foi em favor de um abássida,
Muhammad, que Abú Hâshim, em 716, terá feito um tes­
tamento para lhe transmitir os seus direitos e prerrogati­
vas, ligando indirectamente os Abássidas à linhagem alida. Abássidas: clã curaichita des­
cendente do tio de Maomé,
Assim, pelo simples jogo das gerações, a Família tinha- al-Abbâs.
-se tornado cada vez mais numerosa, o que tornava pos­
sível o aparecimento, a títulos diversos, de chefes que nem
sempre recolhiam a unanimidade. Globalmente, no en­
tanto, no princípio do séc. VII, no seio do conjunto curai-
chita, a família haxemita opunha-se à família omíada. Para
ela, a ligação ao islão e à Família era uma só, apenas um
membro da Família podendo guiar a comunidade na via
do islão.
Sobretudo entre os Alidas, começava uma reflexão dou­
trinal que os conduziu a entender que a missão profética
de Maomé se prolongava no imanado. O imã, impecável
e infalível, é depositário da Lei e o único capaz de a inter­
pretar, porque lhe foi transmitido o dom do conheci­
mento perfeito.

O fím de um crescimento ■

O alargamento de uma oposição que se situava no


plano religioso e a consciência crescente dos problemas
suscitados pelo desenvolvimento dos mawâli explicam, sem
dúvida, a mudança de política que se operou nos califa­
dos de Suleiman e, sobretudo, de Ornar II. Mas os movi­
mentos de oposição tinham já demasiada amplidão para
que esta viragem, aliás de curta duração, produzisse reais
mudanças.
O fracasso da grande expedição, terrestre e marítima,
contra Constantinopla em 716-717 marcou o fim das gran­
des tentativas contra o Império Bizantino. Também nas
outras frentes a expansão parou, por equilíbrio de forças
ou vontade do califa. Mas principalmente Ornar II salien­
tou-se por uma concepção mais muçulmana do califado.
Encorajou as conversões, os seus enviados à província ten­
taram ensinar às populações locais como ser um bom
muçulmano. Foram tomadas medidas restritivas a respeito
dos dtow e empreendida uma reforma fiscal favorável
aos mawâli.
Entretanto, em muitos aspectos o regime omíada não
passava já de uma sobrevivência. Sem dúvida, o longo rei-

107
nado de Hishâm (724-743) marcou um período de esta­
bilização. Para resolver os problemas militares, deu exe­
cução a uma dura política fiscal, resolvendo em definitivo
o problema tributário colocado pelos mawâlz: como os
outros muçulmanos, foram isentos da djizyâ e vinculados
apenas ao pagamento da zakât. Mas, para evitar qualquer
abrandamento ulterior dos rendimentos do Estado, foi
decidido que a contribuição predial passava a ficar ligada
à terra e não já ao seu possuidor, cujo estatuto podia mu­
dar sem que isso implicasse consequências fiscais — o pos­
suidor de uma terra de kharâdj que se tornasse muçul­
mano continuava a pagar o kharâdj e foi empreendido
um recenseamento das terras. Não obstante, o descon­
tentamento crescia, com xiitas e carijitas a retomarem as
suas acções.
A paragem das conquistas tinha-se transformado, em
certas zonas, em recuos impostos por novas resistências:
intrigas chinesas na Transoxiana; acção dos Khazares, novos
aliados dos Bizantinos, no Cáucaso; resistência de núcleos
cristãos no Norte da Península Ibérica. Os Omíadas sen­
tiam cada vez mais dificuldades em controlar o Império e
nem sequer já podiam contar com os Sírios. Revoltas cari­
jitas estalaram no Magrebe, revelando a vontade dos Berberes
de rejeitar a supremacia dos Árabes, mas não do islão.
Marvan II debateu-se com a oposição crescente da família
haxemita, que assumiu formas novas e derrubou o regime.

■ Alidas e Abássidas

Nos anos 737-740, a família haxemita retomou, de facto,


as suas acções, que se acentuaram após a morte de Hishâm.
Foram organizadas diversas movimentações a favor dos
Alidas, geralmente em Cufa, mas redundaram noutros tan­
tos fracassos. Assim falhou, em 740, o filho de Hussein,
Zaidismo: progressivamente Zaíde, que deixou o seu nome a um movimento - o zai­
elaborada, esta doutrina re­ dismo - cuja doutrina viría a assumir importância. Estes
servava a direcção da comu­ insucessos contrastavam com a crescente extensão do ramo
nidade a um descendente de
Ali, notável pela sua piedade abássida da família haxemita. Baseando a sua missão no
e sabedoria, e que tomaria o testamento de Abü Hâshim, soube organizar-se, ao con­
poder pelas armas. O zaidis­ trário dos Alidas. Cufa manteve-se no centro do movi­
mo concilia assim o princípio mento mas, demasiado próxima de Damasco, foi prete­
legitimista e o mérito pessoal.
rida pelo Jurassã enquanto base essencial de acção. Esta
região periférica ressentia-se pesadamente da dominação
omíada, os mawâli eram aí muito numerosos e o seu movi­
mento de protesto apoiava-se numa forte tradição nacional.
Prudentes, os Abássidas guardaram um absoluto silêncio
Imã: ver p. 106. sobre a identidade do imã que deveria dirigir a comuni­
dade. Esta sábia precaução contra a repressão habituava
também os fiéis a pensarem não numa pessoa precisa, mas
colectivamente na Família.

108
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

A força dos Abássidas proveio de um mawla iraniano, Mawla: singular de mawâli.


Abú Muslim, que constituiu um exército aberto aos não-
-Árabes, em torno de duas palavras de ordem: luta con­
tra a opressão omíada, combate por um imã da Família.
Em 746 pregou a revolta no Jurassã, aonde tinha sido
enviado pelo pretendente abássida, cuja identidade per­
manecia oculta da maioria. Afastou rapidamente os che­
fes omíadas e, em 749, as suas forças entraram em Cufa
e proclamaram califa Abú’l Abbâs, trisneto de al-Abbâs,
tio de Maomé. Em 750, Marvan II foi batido na batalha
do Grande Zabe (um afluente do Tigre). A sua morte foi
seguida do massacre da família omíada; houve apenas um
sobrevivente.

3. O domínio do islão em meados do século VIII

Em meados do séc. Viu, o domínio do islão atingia limi­


Ver mapa p. 386 B
tes naturais: Tianchão, Cáucaso, Tauro, deserto do Sara,
e p. 384 C.
Pirenéus. A difusão da língua árabe e da religião muçul­
mana dava-lhe uma certa unidade. Entretanto, nas diver­
sas províncias, islamização e arabização não coinçidiam,
as línguas indígenas estavam longe de ter desaparecictò e
o islão apenas abrangia uma pequena minoria entre as
populações não-árabes. Por outro lado, os limites naturais Dâr al-Islâm: «país do islão»,
não eram, de modo algum, barreiras intransponíveis: ao por oposição ao dar al-harb,
longo de rotas há muito utilizadas, abriam-se vias para os «país de guerra», que deve ser
mundos periféricos. Se as conquistas dos Árabes tinham ganho para o islão, e ao dar
al-suhl, «país das trevas», que
globalmente cessado, a expansão do islão podia continuar não foi conquistado militar­
e as relações de novo tipo estabelecidas com os diversos mente mas paga tributo.
vizinhos contribuíam para diferenciar o dar al-Islâm.

Elementos de unidade ■

A língua árabe. Os Beduínos da Arábia utilizavam diver­


sos dialectos, entre os quais - desde, sobretudo, o séc. VI
- o dialecto do Hejaz conhecia uma grande expansão.
Paralelamente, tinha-se difundido uma língua poética
comum, veículo de uma literatura essencialmente oral:
fora nesta língua que o Alcorão tinha sido recitado. A redu­
ção a escrito da Revelação fixou essa língua, cujas regras
começaram a ser explicitadas no séc. Viu por gramáticos
e filólogos. Assim se gerou um árabe literário clássico, que
se tornou a língua oficial.
Esta língua escrita não era a que usualmente se falava: A língua árabe é uma língua semita que,
na época pré-islâmica, se diferenciava em
os diversos dialectos das tribos misturaram-se, transfor­ dois grandes conjuntos dialectais
maram-se, constituindo a pouco e pouco uma espécie de - sul arábico e árabe do norte.

109
árabe médio, árabe falado ou árabe corrente, muito dife­
rente da língua escrita, que iria favorecer o intercâmbio
entre províncias linguísticas inicialmente muito variadas
e onde se mantinham igualmente certos idiomas indíge­
nas.

Sobre a Mesquita, ver p. 201. A marca da religião. A mesquita era o sinal material
exterior da presença do islão. Lugar de reunião dos fiéis
para a realização da oração em comum, ela manteve ini­
cialmente os elementos essenciais da casa de Maomé em
Medina: casa com pátio interior e pórtico lateral. Na época
omíada este esquema complicou-se: o pátio é associado a
Qibla: direcção de Meca. um oratório, cuja parede de fundo - a parede qibla - indi­
Mihrab: nicho aberto na pa­ cava a direcção de Meca, e enriqueceu-se com elementos
rede qibla.
novos: mihrab, minbar, minarete, maqsura. Não se tratava de
Minbar: púlpito com vários de­
graus, do alto do qual é pro­ uma construção isolada, antes se inserindo num conjunto
nunciado o sermão da oração de edifícios do qual fazia parte o palácio do califa ou do
de sexta-feira. emir. Mesquitas do Iraque e mesquitas sírias combinam
Minarete: torre do alto da qual diferentemente os elementos arquitectónicos. Foi na pro­
é lançado o apelo à oração.
Maqçura: local reservado ao víncia síria que se edificaram as mais belas realizações, em
califa ou ao governador numa particular com a Grande Mesquita de Damasco e a Cúpula
mesquita, e muitas vezes cer­ do Rochedo.
cado de uma barra de madei­
ra. Assim se constituía a pouco e pouco uma nova arqui-
tectura sagrada, que exprimia o poderio dos Árabes e da
sua nova religião. A implantação das primeiras mesquitas
fora do espaço político árabe traduz bem o desenvolvi­
mento da importância do islão: foi erigida uma mesquita
em Constantinopla, no séc. VIII.

■ As províncias do Império

A língua árabe torna-se a pouco e pouco um instru­


mento de cultura e de unidade. A implantação das mes­
quitas traduz o triunfo da religião muçulmana. No
entanto, arabização e islamização não cobriam comple­
tamente, no interior do Império, as tradições e as cul-
\ tuias auteiioies. \
A Arábia tinha sido o ponto de partida da expansão.
Abandonada pela dinastia omíada, continuava a ser, nos
meados do séc. vni, o centro religioso do islão: a Caaba
em Meca e o túmulo de Maomé em Medina atraíam os
peregrinos, mas o grande papel comercial da península
tinha desaparecido, assim como o seu papel político.

Síria-Iraque. Síria e Iraque foram as províncias mais ;


profundamente arabizadas e islamizadas. Nestas provín- {
cias semíticas, a arabização tinha começado antes da con- |
quista, com a penetração de tribos beduínas. Lá, as cida- j
des novas de Cufa e Baçorá adquiriram a pouco e pouco |

110
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

uma importância social, política e, depois, cultural con­


siderável e a língua árabe impôs-se largamente.

Irão. Por toda a parte destas províncias centrais onde


se estabeleceu o poder político, as tradições pré-islâmi­
cas constituíram fontes de resistência à assimilação. O Irão
tinha passado totalmente para o domínio dos Árabes, mas Ver p. 60.
a pequena nobreza dos dekhans conservava a sua impor­
tância social e económica; e enquanto o islão se substi­
tuía progressivamente ao zoroastrismo, ainda que sofrendo
a influência de tradições místicas e dualistas, a língua e
a cultura iranianas resistiram e começaram mesmo a
influenciar os conquistadores. Viriam até a proporcionar,
nos sécs. IX e x, um brilhante renascimento cultural e
político que constituiu, depois do período de suprema­
cia árabe e antes da chegada dos Turcos, «o intermédio
iraniano».

Egipto. No Egipto instalaram-se vagas sucessivas de


Árabes, que se sedentarizaram. A língua árabe impôs-se
a pouco e pouco entre a população cristã, para quem o
copta se tornou essencialmente a língua do culto. Todavia,
a arabização étnica e cultural não fez desaparecer a força
de um particularismo, evidente na época bizantina, e
que se manifestaria nitidamente durante o regime abás-
sida.

Magrebe. No Magrebe, os Berberes apresentavam pro­


blemas específicos. Os Árabes tinham hesitado em aven­
turar-se nesta região que, a partir de 680, colocaram sob
o seu domínio, pelo menos nominal. De facto, eles con­
trolavam relativamente bem a planície central da Iffiqíya, Ifríqiya: por deformação do
mas muito mal os maciços montanhosos, os confins sarianos termo latino África, é o nome
dado pelos Árabes à parte do
e a planície atlântica. Os Berberes aceitaram mal a domi­ Magrebe correspondente à an­
nação de estrangeiros: ao converterem-se ao islão, fize­ tiga província romana de Áfri­
ram-no com uma clara atracção pelas teses igualitárias ca (ou seja, os actuais territó­
carijitas. As divisões internas das tribos permitiram aos rios do oriente da Argélia e
Árabes conservar a Ifríqiya, mas o resto da região esca­ da Tunísia).
pava-se-lhes, nela se desenvolvendo poderosos reinos cari­
jitas. O mais conhecido de entre eles, o imanado de Tabert,
fundado em 761, viria a desempenhar um papel decisivo
pelas suas relações com a África ao sul do Sara. No entanto, Verpp. 146 e 224.
nessa vasta região de relevo fragmentado, onde a confe­
deração dos Berberes Zanatas se opunha à dos Sanádias,
o próprio carijismo se dividiu em diversas tendências. As
revoltas berberes dos anos 740, que se repercutiram na
Península Ibérica, acabaram por travar a progressão dos
Árabes além-Pirenéus. No interior da Península, a resis­
tência dos Bascos e dos cristãos das Astúrias limitava a
dominação muçulmana numa Hispânia ainda muito divi­
dida.

111
■ Os vizinhos do Império

Bizantinos. O Império Bizantino, à custa do qual se


tinha feito uma grande parte das conquistas e cuja supre­
macia marítima estava cada vez mais ameaçada, formava
um mundo especial. Era um conjunto político coerente,
amputado pelo islão, mas não destruído. Em Constan­
tinopla, que tinha resistido a diversos cercos, esboçou-se,
a partir da subida ao trono de Leão III, um movimento
de contra-ofensiva. Mas se, para os muçulmanos, o Império
Bizantino era o país da guerra por excelência, isso não
excluía a existência de relações pacíficas por intermédio
de mercadores, de peregrinos ou de artesãos: era, pois, a
tradição das relações romano-sassânidas que se prolon­
gava.

Turcos Oghuz e Carluques. Na fronteira da Ásia Central


e das estepes, o islão tinha herdado os problemas dos
Sassânidas, da pressão das populações turcas mas também
das suas oportunidades, da vizinhança de um espaço eco­
nómico complementar. As conquistas de Cutaiba tinham
adquirido para o islão a encruzilhada comercial da
Transoxiana. O sucesso conseguido em Talas, em 751,
pelos Árabes, aliados a povos turcos, sobre os exércitos
chineses, provocou o fim do protectorado chinês sobre a
bacia do Tarim. Ora por essa altura operava-se uma nova
expansão turca, cuja amplidão seria muito superior à do
século VI.
A confederação dos Turcos Oghuz, que dominava a
Mongólia do Norte desde a derrocada do canato dos Tu
Kiue, começou, sob a direcção da tribo dos Uigures, a
expandir-se para ocidente, ao mesmo tempo que as tri­
bos turcas carluques se estabeleciam em torno do lago
Balcache. Assim se anunciava a progressiva transformação
da bacia do Tarim num país turco - um Turquestão. Este
mundo turco apresentava-se aos Árabes como um vasto
reservatório de escravos. Da fronteira partiam razias que
Ghâzi: o que participa numa mantinham, entre os que nelas participavam - os ghâzi -,
ghazwa, isto é, numa expedi­ a tradição do djihâd.
ção de pequena envergadura
dirigida contra um adversário
com vista a saqueá-lo (em por­
Khazares e Búlgaros do Volga. Nas estepes, às quais os
tuguês, razia). Árabes tinham acesso pelo Cáucaso e pelo Quaresma, a
situação tinha-se modificado desde o séc. VII. A partir dos
anos 680, povos turcos, os Khazares, tinham-se instalado
entre a taiga, o Cáucaso, os Urales e o Don, mas, contra­
riamente às populações que os tinham precedido (Hunos,
Ávares), não procuraram avançar mais para ocidente. Foram
portanto, durante alguns séculos, um factor de estabiliza­
ção na estepe, enquanto ao norte, na floresta, se desen­
Goroda: primeiros estabeleci­
mentos urbanos dos Eslavos. volviam, em condições mal conhecidas, os primeiros goroda
eslavos. A sedentarização dos Khazares, cuja capital come­

112
O Império Árabe dos Omíadas (661-750)

çou por ser Samandar, no Cáspio, e, depois, Itil, no Volga,


contribuiu para dificultar o avanço de novas populações
turcas. A exploração da estepe foi favorecida nomeada­
mente no plano comercial. Uma série de investidas para
norte permitiu aos Khazares alargarem a sua influência:
tudo leva a pensar, designadamente, que exerceram o seu
controle sobre os Búlgaros do Volga, os quais, no final do
séc. VII, se tinham estabelecido na confluência do Volga e
do Kama. Estes Búlgaros do Volga, cujo país, povo e capi­
tal são igualmente designados, pelas fontes árabes, com o
mesmo nome - Bulghar -, não tinham uma efectiva uni­
dade política. Através deles, efectuaram-se os primeiros
contactos com o mundo do Norte, contactos que assumi­
riam todo o seu valor quando, ao terminar o séc. VIII, os
Varegues escandinavos descobriram o Volga como via de
comunicação. Entretanto, por intermédio dos Búlgaros do
Volga e dos Khazares, já chegavam ao Sul as peles e os pro­
dutos florestais. A influência do islão começava a fazer-se
sentir nas estepes, mas confrontava-se entre os Khazares,
em parte ganhos pelo judaísmo, com a concorrência dos
Bizantinos.

Para aprofundar este capítulo

O melhor ponto da situação bibliográfica é o de


C. Cahen, Introduction..., pp. 127-131 (cit. pág. 12). Uma
boa visão de conjunto é dada por M. A. SHABAN, Islamic
History... (cit. pág. 13).
Podem consultar-se, sobre certos califas: H. LAMMENS,
Etudes sur le règne du calife omeyyade Mo’awiya ler., Beirute,
1908; P. GRIERSON, «The monetary reforms of Abd al-
Malik», Joumal of Economic and Social History, 1960; G. F.
Gabrieli, II califfato di Hishan, Alexandria, 1935; H. A. R.
GiBB, «The fiscal rescript of Umar II», Arabica, 1955. Ver
também T. CRONE, M. Hinds, God’s Caliph..., cit. pág. 160).
Sobre os indígenas das regiões conquistadas, ver a
bibliografia da pág. 89 e o artigo «Dhimmi» em E. I./2.
Os problemas de Governo são abordados por H. A. R.
GiBB, «The Evolution of Govemment in Early Islam», Studia
Islamica, 1955.
Sobre os problemas da guerra e as relações com
Bizâncio, ver o artigo «Djihâd» em E. I./2; os artigos de
M. CANARD em Byzance et les Musulmans du Proche-Orient,
Variorum Reprints, 1973; H. A. R. GiBB, «Arab-byzantine
relations under the Umayyad caliphate», Dumbarton Oaks

113
Papers, 1958; e, mais recente, R. J. LiLIE, Die Byzantinische
Reaktion auf die Ausbreitung der Araber, Munique, 1976. Sobre
a questão controversa das consequências da expansão
árabe no comércio mediterrânico: A. RllSlNG, «The fate
of Pirenne’s Thesis», Classica et Medievalia, 1967.
Sobre certos aspectos regionais: H. I. BELL, «The
Administration of Egypt under the Omayyad Caliphs»,
Byzantinische Zeitschrift, 1928; E. GABRIELI, «Muhammad
ibn Qasim e la penetrazione araba nel Sind», Rendiconti
Lincei, 1965. H. R. IDRIS, «Le récit d’al-Maliki sur la con-
quête de lTfriqiya», Revue des Etudes islamiques, 1969.
H. DjaíT, «La wilâya dTfriqiya au IIe.-VlIIe. siècle: étude
institutionnelle», Studia Islamica, 1967-1968.
Sobre o xiismo e o carijismo, a obra fundamental é
H. Laoust, Les Schismes dans VIslam, cit. pág. 15. Pode ser
completada com M. G. S. HODSON, «How did the early
Shi’a become sectarian», Joumal of the American Oriental
Society, 1955; W. M. WATT, «Shfism under the Umayyad»,
Journal of the Royal Asiatic Society, 1960; W. M. WATT,
«Kharidjite thought in the Umayyad period», Der Islam,
1961; C. CAHEN, «La changeante portée sociale de quel-
ques doctrines religieuses», reed. em Les Peuples musul-
mans... (cit. pág. 12).
Sobre as construções do período omíada, os principais
estudos são os de J. SAUVAGET, La Mosquée omeyyade de
Médine, étude sur les origines architecturales de la mosquée et de
la basilique, Paris, 1947; «Esquisse d’une histoire de la ville
de Damas», Revue des Etudes islamiques, 1934; Châteaux umay-
yades de Syrie, em Revue des Etudes islamiques, 1967.
Sobre a revolução abássida: C. CAHEN, «Points de vue
sur la Révolution abbâsside», Revue historique, 1963; M. A.
SHABAN, rLhe Abbassid Revolution, Cambridge, 1970; T. NAGEL,
Untersuchungen zur Entstehung des Abbasiden Kalifats, 1971.
Sobre as transformações da estepe, ver a bibliografia
geral e a do capítulo IH. Ver também os artigos «Bulghar»
e «Khazar» em E. L/2.

114
APOGEU
DO PRÓXIMO ORIENTE
MEDIEVAL

Livro segundo

Capítulo 8 O Império Bizantino de 717 a 1081

Capítulo 9 O mundo muçulmano sob os Abássidas


Aspectos políticos e territoriais (750-1055)

Capítulo 10 A vida rural (séculos vm-Xi)

Capítulo 11 O comércio e a vida urbana (séculos vm-xi)

Capítulo 12 Os novos aspectos do mundo oriental


e a viragem do século XI

Capítulo 13 A vida intelectual e artística


do Próximo Oriente
8
O Império bizantino
de 717 a 1081

Este período marca o apogeu do poder bizantino. O Império, inicialmente abalado pela crise icono­
clasta, encontra em si próprio os recursos para travar a invasão árabe sob a dinastia isâurica (717-
-802). O séc. IX é caracterizado por uma lenta reconquista, tanto no Sul dos Balcãs como na Asia
Menor, enquanto a Igreja Bizantina, finalmente unificada, parle à conquista de mundos novos.
A dinastia macedónia (867-1056) imprime uma nova expansão ao Império tanto nos Balcãs, onde
a fronteira é empurrada para o Danúbio, como no Oriente, onde o Império atinge Antioquia, o Norte
da Mesopotâmia e a Arménia. A consolidação do poder imperial e o brilho da civilização e da cul­
tura bizantinas são então notáveis.

1. A extensão do Império
até meados do séc. xi

■ A Itália

O séc. VIII é assinalado em Itália por duas mudanças


fundamentais. O triunfo do iconoclasmo em Bizâncio leva
o papa a afastar-se da obediência bizantina e a procurar,
contra os Lombardos, uma aliança alternativa com a monar­
Ver mapa p. 386 B. quia franca renovada pelos Carolíngios. De resto, a aliança
com os Bizantinos, expulsos de Ravena pelos Lombardos
em 751, o que implicou a extinção do exarcado, repre­
sentava uma medíocre ajuda. O Império Bizantino ape­
nas conserva em Itália a Calábria, a terra de Otrante e o
litoral napolitano, incessantemente ameaçados pelos Lom­
bardos. O papa coroa então Carlos Magno imperador,
sinal tangível da «traição».
Os Bizantinos de Itália são assaltados pelos Árabes de
África, que desembarcam na Sicília no mesmo ano em
que os Árabes da Andaluzia, expulsos do Egipto, se apo­
deram de Creta. A Sicília não cai imediatamente: Siracusa,
nomeadamente, resiste, ao contrário de Palermo, mas os
Árabes passam a dispor de uma base de onde lançam
incursões contra a Itália Meridional e mesmo contra as
costas do Adriático.
No reinado dc Basílio I, com a queda de Siracusa em
878, Bizâncio apenas conserva na Sicília Taormina, mas

116
O Império bizantino de 717 a 1081

as suas forças voltam a pisar o Sul de Itália. Em 871, o


governador bizantino de Otranto entra em Bari; o gene­
ral Nicéforo Focas varre os Árabes da Calábria e alcança
as terras bizantinas da Apúlia. Basílio I conclui uma aliança
com o papa João VIII. As possessões bizantinas da Itália
do Sul são assim restabelecidas e convertidas em tema a
partir de 892.
Na primeira metade do séc. x, o Império vê-se obri­
gado a defender as suas posições ao mesmo tempo con­
tra os principados lombardos e contra os Árabes da Sicília
e da Campânia. Mal o exército de Argiros afastara, em
958, um e outro perigo, eis que aparece o imperador ger­
mânico Otão I, o qual é derrotado em frente de Bari (968)
e tem de enviar Liutprando de Cremona em embaixada
a Constantinopla; depois é a vez de Otão II, a quem um
casamento com Teofânia, parente de João Tzimístis, não
impede de fazer incursões na Itália do Sul. A aliança com
Veneza (992) e, depois, com Pisa (1005), que mobilizam
as suas frotas, garante enfim a dominação bizantina, embora
a Sicília continue nas mãos dos Árabes.
A primeira metade do séc. xi marca o apogeu da Itália
Meridional bizantina. A revolta de Melo (1009) é final­
mente subjugada por Bojoanês (1018), que submete os
principados lombardos da Apúlia e constrói uma linha de
fortalezas contra a qual esbarrará o imperador germânico
Henrique II. Mas a situação modifica-se rapidamente com
a instalação dos Normandos, iniciada em 1012.
Basílio II alimentara o sonho de se opor à Sicília árabe.
Os seus sucessores retomam esses projectos a partir de
1038, enviando à ilha Jorge Maniaquês no comando de
tropas compreendendo fortes contingentes normandos.
Após uma luta difícil, a parte oriental da Sicília é con­
quistada. Esta obra não resiste à queda em desgraça de
Maniaquês (1042). Começa então a conquista das posi­
ções bizantinas pelos Normandos, assinalada por uma série
de imbróglios diplomático-militares entre o papa, o impe­
rador germânico e Bizâncio. A princípio aliado dos
Bizantinos, o papa, derrotado e feito prisioneiro pelos
Normandos em 1053, acaba por preferir entender-se com
estes últimos. Com a queda de Bari em 1071 sob as inves­
tidas de Robert Guiscard, desaparece a última possessão
bizantina em Itália.

■ Os Balcãs

O Império Bizantino manteve como permanente objec-


tivo o domínio do Adriático, assegurado a sul por Bari e
Dirráquio e a norte por Veneza, e sempre se preocupou

117
em controlar a costa dálmata. Basílio I retoma Ragusa,
que liberta dos Árabes (868). A Dalmácia é erigida em
tema (878), aliás constantemente ameaçado, e que Bizâncio
defende com o auxílio de Veneza. Manifestando preten­
sões sobre a região já no começo do séc. xi, não obstante
as expedições de Bojoanês, Veneza acabaria por se subs­
tituir a Bizâncio no domínio da zona.

Os Eslavos. Mas, para Bizâncio, o problema balcânico


provém antes de mais dos Eslavos e, nomeadamente, dos
Búlgaros. Desde o séc. vii que os Balcãs estavam profun­
damente eslavizados. No essencial, a região escapava ao
controlo bizantino, salvo numa banda costeira ao longo
do mar Egeu, passando por Tessalonica, alargando-se ligei­
ramente na Grécia central e representada por uma estreita
zona no Peloponeso. No último quarto do séc. viu, Bizâncio
começa a controlar as regiões eslavas meridionais, graças
às expedições de Estauráquio em 783 e de Esclero no iní­
cio do século seguinte: uma parte das tribos eslavas da
Grécia e do Peloponeso é obrigada a reconhecer a auto­
ridade imperial; um estratego estabelece-se em Corinto.
Os Eslavos revoltam-se ainda várias vezes, designadamente
em 805, quando cercam Patras. Mas depressa são conver­
tidos ao cristianismo, helenizados e assimilados. A instala­
ção do regime dos temas marca o triunfo da autoridade
bizantina: o tema da Hélada é mencionado desde 695; o
da Trácia data de 679-680; na viragem do séc. vni para o
séc. IX aparecem os da Macedónia e de Tessalonica; em
809, o de Cefalónia; em 812, o mais tardar, o do Peloponeso.

Os Búlgaros. Restam os Búlgaros, que formam um estado


búlgaro-eslavo, guerreiro, bárbaro, pagão, atraído por
Constantinopla, as costas do mar Egeu, os portos do mar
Negro, que controlam ou ameaçam o Danúbio, via vital para
o comércio bizantino na Europa Central. Sob o comando de
Krum (803-814), atacam o Império; conseguem uma vitória
total, Nicéforo I é morto (811) e o exército búlgaro acampa
em frente de Constantinopla. Em vão: Krum morre (814) e
os seus sucessores preferem uma aliança, que lhes é vantajosa.
Na impossibilidade de conduzir uma ofensiva militar,
Bizâncio desencadeia, na segunda metade do séc. ix, uma
ofensiva diplomática para levar os seus adversários ao cris­
tianismo. Com a conversão da Morávia por Cirilo e Metó-
dio, os Búlgaros de Bóris (852-889), apertados numa tenaz,
sentem a necessidade de se converter, sem deixarem de
fomentar a oposição de Roma a Constantinopla. Por fim,
os Búlgaros entram na Igreja Bizantina. Bóris recebe o
baptismo em 864, adopta o nome cristão de Miguel e envia
o filho Simeão receber a educação constantinopolitana.
Na aparência, reina a concórdia.

118
O Império bizantino de 717 a 1081

A situação muda com Simeão (889-927), o grande sobe-


j rano do primeiro Império Búlgaro. A guerra rebenta em
: 894, quando Bizâncio transfere para Tessalonica o mer-
j cado até então aberto aos Búlgaros em Constantinopla,
j Apesar do apelo lançado por Bizâncio aos Húngaros, Simeão
i acumula várias vitórias em 896; em 913 assenta arraiais à
vista de Constantinopla e vê-se atribuir o título de co-impe-
rador; reincide em 924 mas, ameaçado pelos Sérvios e
achando a cidade inconquistável, renuncia ao projecto.
Seguem-se quarenta anos de paz durante o reinado de
Pedro (927-969). Nicéforo Focas pretende retomar a ofen­
siva e apela para isso aos Russos de Sviatoslav. Graças a
poderosas operações terrestres e marítimas, João Tzimístis
anexa a Bulgária, liga a sua Igreja a Constantinopla e asse­
gura o livre trânsito do comércio por terra. Mas, aprovei­
tando-se das guerras que Bizâncio conduz no Oriente,
Samuel (969-1014) restaura um poderoso Império Búlgaro,
centrado na Macedónia Ocidental em torno de Ocrida
(tornada sede de um patriarcado), mas que se estende
até às proximidades de Larissa e Tessalonica. A campa­
nha de Basílio II em 986 é mal sucedida e o Império
Búlgaro alcança o mar Negro.
Basílio II empenha-se, em 1002, numa guerra sem quar­
tel. Toma Sofia, corta em dois o império de Samuel, sub­
mete a parte oriental, avançando depois para oeste.
O Império Búlgaro, confinado à Albânia, resiste firme­
mente nas suas montanhas, até à batalha decisiva de Julho
de 1014 em que todo o exército búlgaro é feito prisio­
neiro nos desfiladeiros do Clidião pelas tropas de Aléxis
Xífias. Samuel põe-se a salvo, mas Basílio remete-lhe os
seus 14 000 soldados cegos, salvo um em cada cem, feito
apenas zarolho para que pudesse guiar os outros. Samuel
sucumbe. Em 1018 cessa toda a resistência búlgara.
A Bulgária é assim incorporada no Império, mas
Basílio II não se esquece da obstinada resistência dos seus
adversários. Respeita os seus usos; o pagamento do imposto
em espécie é mantido e o patriarcado transformado em
arcebispado autocéfalo. Basílio II tenta assimilar os Búlgaros
criando dois temas, atribuindo à aristocracia numerosas
dignidades áulicas e incitando-a a aliar-se pelo casamento
à aristocracia bizantina. A assimilação nunca chegará, po­
rém, a ser perfeita.

O Oriente ■

O domínio da dinastia isáurica marca a paragem da


conquista árabe. O fracasso dos Árabes diante de
Constantinopla em 717 tem grande repercussão. Depois,

119
a vitória de Leão o Isauro em Akroinon, em 740, permite
separar a Ásia Menor Ocidental. Constantino Coprónimo
avança para Oriente até à Germanícia, no Sul, Teodosió-
polis e Melitene no Norte. Ainda que novas campanhas
levem os Árabes até ao mar Egeu no final do séc. vm,
embora Amórione caia em 838 e Creta se torne árabe em
827, o que perturba o comércio bizantino, a existência
do Império deixara de estar ameaçada. E, em meados do
Ver pp. 148, 152, 157. séc. ix, a reconquista começa. Os exércitos de Miguel III
e Basílio I eliminam o Estado pauliciano à volta de Téfrique,
nos confins da Arménia. As forças de Romano Lecapeno
avançam na Alta Mesopotâmia: João Curcuaz apodera-se
de Melitene em 931 e investe até Edessa e Amida. Nicéforo
Focas reconquista Creta (961), Chipre, a Cilicia e, na Síria,
Antioquia (969); Tzimístis penetra profundamente na Síria
e chega a 150 km de Jerusalém.
Mais ao norte, Basílio II apodera-se primeiro da parte
ocidental da Arménia, com Teodosiópolis e Manzikert, e
depois do Vaspurakan. Constantino Monómaco continua
esta obra, ocupando a Geórgia e o que restava da Arménia
- o reino de Ani.
Deste modo, o Império Bizantino atinge, cerca de 1050,
o seu apogeu territorial: o Leste da Sicília, a Itália
Meridional, os Balcãs até ao Danúbio, Creta e Chipre, a
Quersoneso, a Ásia Menor até o Eufrates e mesmo para
lá dele, até Edessa, enfim o Norte da Síria. O mar Egeu
e o mar Negro são dois «lagos» bizantinos.

2. Crise e equilíbrio da ortodoxia

■ O iconoclasmo

O iconoclasmo é um movimento religioso que atra­


vessa a Igreja Bizantina e o Império entre os anos 730 e
843, e que se caracteriza pela recusa das imagens sagra­
das, da representação do Cristo, da Virgem e dos santos.
As imagens existem desde as origens do cristianismo
com uma finalidade pedagógica. No termo do séc. IV, as
imagens, tal como as relíquias e os túmulos dos santos,
começam a constituir objecto de uma verdadeira venera­
ção: desenvolve-se a crença nos seus poderes mágicos.
A imagem é. assim, integrada na prática religiosa indivi­
dual, manifestando a presença da divindade. No séc. vn,
o fenómeno amplifica-se: aquando do cerco ávare a
Constantinopla em 626, o patriarca manda pintar ícones

120
O Império bizantino de 717 a 1081

de Cristo e da Virgem nas portas da cidade; em 717, pas­


seiam-se nas muralhas uma imagem da Virgem e relíquias
da Cruz que, segundo se fazia crer, poriam os Árabes em
fuga. No mesmo sentido, aparecem os ícones «aqueiro-
poietas», os quais não seriam feitos pela mão do homem,
mas executados pelo próprio Cristo. Antes do advento do
iconoclasmo, as imagens santas tinham-se, pois, tornado
num facto fundamental da vida bizantina. Largamente uti­
lizadas pelo clero, pelas autoridades seculares e pelo povo,
objecto de uma devoção doméstica e pública, elas per­
mitem tornar acessível a presença benéfica da Divindade.
A crença no poder mágico do ícone desenvolve-se e a dis­
tinção entre a veneração devida à imagem e o culto pres­
tado ao seu protótipo apaga-se.
No começo do séc. vni desenvolveram-se, num Império
essencialmente oriental - e fora dele —, um certo número
de correntes hostis às imagens. Os monofisitas, ainda Monofisitas: ver p. 46.
numerosos no Império, recusavam-se a representar o
Cristo, porque privilegiavam a sua irrepresentável pes­
soa divina. O mesmo acontecia com os Paulicianos, hos­
tis a todo o culto, e com os Arménios, entre os quais se
manifestava um movimento iconoclasta desde o séc. Vii.
Os Judeus baniam, então, qualquer imagem das sinago­
gas, enquanto os Árabes as recusavam nas mesquitas.
Assim convergem, a oriente, todo um conjunto de cor­
rentes anicónicas, no momento em que, no Império, o
culto das imagens assume um aspecto próximo da supers­
tição. São sobretudo os monges que são iconólatras, tanto Iconólatras: adeptos do culto
mais quanto, em muitos lugares, é uma imagem que faz das imagens (ícones).
viver o mosteiro, graças aos peregrinos e às oferendas
que suscita.

Os factos. Um movimento iconoclasta desenvolve-se


na Ásia Menor nos anos 720. Dois bispos tomaram-se-nos
conhecidos como iconoclastas - Constantino de Nacoleia
(Frigia) e Tomás de Claudiópolis. Esta corrente encontra
um eco favorável na hierarquia, mas sobretudo no povo
habitante destas províncias, que estão na primeira linha
da luta contra os Árabes. O imperador Leão deverá ter-
-se interrogado sobre o risco de perder essas províncias
- como já se tinham perdido as do Oriente só que agora
situadas apenas a algumas milhas da capital. Em 725,
recebe a visita dos dois bispos e começa a pronunciar-se
contra as imagens. No ano seguinte, manda retirar o ícone
do Cristo da Chalcè, o que desencadeia um motim. Leão III Chalcè: edificação compor­
tem, então, de parar: Germano, iconólatra notório, con­ tando uma porta monumen­
tinuava patriarca. Em 730, enfim, o imperador impõe a tal de bronze, pela qual o Pa­
lácio abre sobre o Augusteon,
sua política por edicto; Germano é obrigado a renunciar, frente a Santa Sofia.
mas retira-se pacificamente para um mosteiro. Com Leão III
não houve perseguições.

121
O seu filho, Constantino V Coprónimo, terá de espe­
rar treze anos para tomar as medidas que se lhe impõem
por ocasião do Concílio de Hiereia, o qual se prolonga
por sete meses do ano de 754. Os debates alargam-se e
chegam a conclusões amadurecidas, longe de qualquer
diktat imperial, e tomadas por um elevado número - 338 -
de prelados, o que prova a profundidade da penetração
do movimento. Entretanto, o iconoclasmo, no seu pleno
poder, mantém-se isolado: o concílio não acolheu repre­
sentantes nem do papa nem dos outros patriarcas.
A partir dessa altura, Constantino V tenta impor, quando
necessário pela força, a doutrina de Hiereia aos recalci­
trantes: primeiro pela persuasão, depois por medidas admi­
nistrativas - como a secularização de certos bens monás­
ticos, já que os monges eram os mais intratáveis dos
iconólatras. Após 760, e sobretudo em 766/767, registam-
-se verdadeiras perseguições. Estas, no entanto, visam
somente os funcionários iconólatras, acusados de traição
pelo imperador. Os monges são perseguidos pela popu­
laça, outrora revoltada contra o desaparecimento do Cristo
da Chalcè e agora ferozmente iconoclasta. Nas províncias,
o clima de tensão depende do governador e da popula­
ção que, no Oriente, é iconoclasta. Constantino V não é
o tirano sanguinário descrito posteriormente pelos mon­
ges iconólatras, mas um imperador conduzindo habil­
mente uma parte da sua política, sendo a outra a de con­
ter os Árabes, no que obteve perfeito sucesso. Mas o
imperador «de nome sujo» desapareceu, sem que a sua
política lhe tenha sobrevivido por muito tempo. Irene, a
mãe do imperador Constantino VI, neto do precedente,
é uma iconólatra convicta: convoca um concílio ecumé­
nico, o sétimo, para condenar a heresia. Este concílio
(786) tem de se reunir em Niceia, pois o exército e a
população da capital, iconoclastas, não permitem que
decorra em Constantinopla.
O iconoclasmo não morre. Não bastam alguns anos
para depurar a Igreja Bizantina nem, sobretudo, para cor­
rigir a religião popular. A política de Irene, afrontosa­
mente favorável aos monges, conduziu a fracassos diplo­
máticos; a de Nicéforo, hostil aos monges, mas não
iconoclasta, saldou-se por uma derrota sangrenta face aos
Búlgaros, que assentam arraiais à vista de Constantinopla.
Desde logo o povo, que faz romagens maciças ao túmulo
de Coprónimo, e o imperador Leão V, de origem armé­
nia, concluem que estes fracassos se devem à cólera de
Deus provocada pelo abandono da doutrina de Hiereia.
Leão V reúne um novo concílio iconoclasta em 815. Este
segundo iconoclasmo é, porém, menos vigoroso: os impe­
radores já não empreendem novas depurações da hierar­
quia nem ataques violentos contra os monges. TeóSkx

122
O Império bizantino de 717 a 1081

(829-842) é resolutamente iconoclasta, mas não a mulher,


Teodora, e quando, ao morrer, deixa um filho com seis
anos, é ela quem assume a regência. Assim, em 843, a
ortodoxia é definitivamente restabelecida. Foi ainda pre­
ciso que passasse meio século para se liquidarem as seque­
las do iconoclasmo, mas sem que este tenha, jamais, levan­
tado a cabeça. E que os dados políticos, e mesmo religiosos,
do problema tinham mudado profundamente em 113
anos.

A explicação. No plano doutrinal, o iconoclasmo tra­


duz a influência oriental de religiões de monoteísmo
intransigente - judaísmo, islão e cristandade monofisita.
Não que a argumentação teológica dos iconoclastas tenha
nascido de alguma destas correntes; mas é essencialmente
a sensibilidade religiosa do Oriente que inspira o icono­
clasmo, a vontade de depurar a religião cristã do que
parece uma superstição próxima do paganismo - a quase-
-idolatria de que as imagens se tinham tornado objecto.
Além das populações orientais e centrais da Ásia Menor,
impregnadas de monofisismo e permanente reservatório
de heresias com a mesma inspiração, os iconoclastas tive­
ram pelo seu lado a sociedade esclarecida. Vê-se clara­
mente que, cerca de 730, é o Oriente que tem maior peso
no Império, enquanto um século mais tarde, graças aos
sucessos alcançados nos Balcãs, o equilíbrio fora restabe­
lecido. A reinstalação das imagens em 843 assinala o fra­
casso da última corrente oriental que marcou duradou­
ramente a religião cristã, em benefício de um sábio
equilíbrio entre influências orientais e ocidentais, que é
o fundamento da religião ortodoxa.
O iconoclasmo reveste igualmente um aspecto polí­
tico e social. A nível político, marca a definitiva ascen­
dência da autoridade imperial sobre a Igreja. Leão III
e Constantino V não só pretendem, com sucesso, legis­
lar em matéria religiosa, mas também, ao depurarem o
clero dos elementos iconólatras, afirmam o seu poder
sobre a hierarquia e o patriarcado. A luta contra os
monges traduz não apenas a vontade de submeter ico­
nólatras impenitentes, mas igualmente a tentativa de eli­
minar um elemento anti-hierarquista. A experiência icono­
clasta é, neste aspecto, definitiva, mesmo após o regresso
à ortodoxia e à recuperação do movimento monástico.
Porque é o próprio poder imperial que extirpa a here­
sia, forçando a mão de uma hierarquia que está impreg­
nada por ela: o ascendente do imperador sobre a hierar­
quia e a autoridade religiosa sobrevivem ao iconoclasmo.
Para garantirem o triunfo da sua política, os imperado­
res iconólatras não hesitam em promover ao patriarcado
leigos de grande competência, saídos do mais alto nível

123
da sua administração: Tarásio, Nicéforo e Fócio são disso
os melhores exemplos.
O iconoclasmo é originário da Ásia Menor. Dado que
o seu promotor, Leão III o Isauro, era precisamente ori­
ginário desta região, foi erguido ao trono pelo exército
do seu tema dos Anatólios, e conheceu uma grande popu­
laridade entre os soldados que comandara nos primeiros
êxitos sobre os Árabes, pretendeu ver-se nos exércitos dos
temas da Ásia Menor os principais inspiradores do ico­
noclasmo. Ora estes exércitos são os do pequeno campe­
sinato. O movimento religioso revestir-se-ia, assim, de um
verdadeiro significado social. De resto, os soldados-cam-
poneses veriam com bons olhos os ataques contra os mon­
ges, que poderiam ser esbulhados das suas terras. Esta
interpretação deve ser flexibilizada. Primeiro, nem todos
os temas da Ásia Menor são favoráveis ao iconoclasmo:
mostram-se, pelo contrário, divididos, e a sua posição flu­
tua em função do respectivo chefe. Em contrapartida, o
exército central, o dos lagmata, cujo recrutamento nem
sequer é socialmente muito diverso, é rápida e profun­
damente ganho pelo iconoclasmo.
Este reveste-se, todavia, de um aspecto fortemente ideo­
lógico. Suprimindo as imagens, intermediárias entre os
homens e Deus, o imperador garante plenamente a sua
posição de lugar-tenente de Deus, torna-se no mediador
privilegiado entre Deus e os súbditos, reunindo atrás de
si as energias para a luta vital contra os invasores. Neste
plano, os imperadores iconoclastas tiveram pleno êxito e
os seus sucessores iconólatras recolheram a sua herança.
Em 843, as necessidades políticas que tinham presidido
ao nascimento do iconoclasmo haviam desaparecido: o
período defensivo fora ultrapassado e o poder imperial
estava bem assente.
O dia 11 de Março de 843 assinala o fim das querelas
propriamente teológicas no interior da Igreja e do Império
Bizantinos. Estes continuam, nos tempos que se seguem, a
ser abalados por querelas religiosas que, no entanto, se con­
finam ao domínio das práticas religiosas por ocasião das
controvérsias com o Ocidente ou ao domínio disciplinar
quando a autoridade do patriarca é contestada, como acon­
teceu com Fócio e Nicolau Místico. Neste caso, a maior parte
dos problemas provém da intervenção do poder político.
Em 843, a religião ortodoxa encontrara o seu equilíbrio.

I A Igreja

A hierarquia da Igreja Bizantina baseia-se num duplo


colegial, do ponto de vista dogmático, e monár-
jwinrijwy
O Império bizantino de 717 a 1081

quico, do ponto de vista disciplinar. Este último aspecto


tem, muitas vezes, tendência para se impor: aplica-se a
tradição da «acomodação», que consiste em decalcar a
organização da Igreja sobre a do Estado - pondo, por­
tanto, em paralelo o Patriarca de Constantinopla e o
Imperador -, e o poder imperial procura, controlando o
patriarca ou apoiando-se nele, garantir o controlo polí­
tico do Império através da hierarquia.
A autoridade dogmática pertence ao concílio, convo­
cado e presidido pelo imperador, e constituído, em prin­
cípio, pelo conjunto dos bispos da cristandade. De facto,
o concílio de 786 é o último concílio ecuménico. O prin­
cípio colegial abrange, segundo os Bizantinos, os cinco
patriarcas (Roma, Constantinopla, Antioquia, Alexandria
e Jerusalém), que são iguais em direitos, apenas dispondo
Roma do primado honorífico. Do mesmo modo, para gerir
o seu patriarcado, o arcebispo de Constantinopla é assis­
tido pelo sínodo permanente, que é a reunião, por convo­
cação do patriarca, dos bispos presentes na capital.

A hierarquia. A hierarquia episcopal compreende três


níveis: na base, os bispos; cada província eclesiástica é
administrada da sua metrópole por um bispo metropoli­ Metrópole: sede de uma pro­
tano ou metropolita, assistido pelo sínodo dos bispos sufra- víncia eclesiástica englobando
gâneos; enfim, na cúpula, o arcebispo de Constantinopla, vários bispados, ditos sufragâ-
neos.
com o título de patriarca, ao qual tende a acrescentar o Metropolita: bispo titular da
epíteto de ecuménico - termo ambíguo, já que o oikou- sede de uma metrópole.
ménè pode designar quer o Império nos seus limites mate­
riais quer o Império nos seus limites teóricos, isto é, o
mundo inteiro. Roma jamais deixou de se inquietar com
este predicado. O título de arcebispo é honorífico e não
corresponde a nenhum lugar especial na hierarquia. Pode
acontecer que um arcebispo, como o de Ocrida, faça reco­
nhecer a própria autocefalia, ou seja, a independência
disciplinar em relação a Constantinopla. Os bispos são,
teoricamente, inamovíveis: a transferência de uma sede
para outra é interdita.

O patriarca. O patriarca, que possui o poder discipli­


nar bem como o de aplicação (e não de definição) dos
dogmas, é o fecho da abóbada do sistema. A sua escolha
e nomeação são, portanto, essenciais. Como qualquer
bispo, é em teoria eleito pelos clérigos e os principais cida­
dãos da sua urbe, que apresentam três candidatos à esco­
lha do bispo ordenante. Os sucessivos concílios reforça­
ram a interdição da escolha por mera vontade do príncipe.
Mas, de facto, o imperador escolhia entre os três candi­
datos do sínodo, nos quais raramente não se incluía o seu
próprio candidato. A cerimónia da investidura, conferida
pelo imperador, desenrola-se no Palácio segundo um ceri-

125
monial nada ambíguo: «A graça divina, bem como o nosso
poder, que dela deriva, nomeiam o muito piedoso... como
patriarca de Constantinopla.»
Na prática, o patriarca é, pois, escolhido pelo impe­
rador. Nenhuma categoria de eclesiásticos é privilegiada
no acesso ao patriarcado. Até ao séc. xn, a interdição da
transferência só foi violada seis vezes. O futuro patriarca
nem sequer tem necessidade de ser padre; se o não é,
como no caso de Fócio, ele transpõe rapidamente, por
vezes numa só jornada, todos os degraus da hierarquia
eclesiástica. De 705 a 1204 são promovidos 45 monges, 15
padres, 7 leigos e 6 bispos transferidos. Enquanto no
período precedente se vira a escolha recair muitas vezes
em personalidades religiosas eminentes, como Gregório
de Nazianzo ou João Crisóstomo, as nomeações do pre­
sente período são mais abertamente políticas. Alguns impe­
radores, mesmo os maiores, cometeram abusos nomeando
membros da sua família notoriamente incapazes: em 886,
Leão VT substitui Fócio pelo seu irmão de 16 anos; em
933, Romano Lecapeno nomeia patriarca o filho de 15
anos, além do mais, eunuco. Mas o outro resultado de tais
práticas foi o de se colocar no trono patriarcal um certo
número de fortes personalidades políticas: Fócio, Nicolau
Místico, Miguel Cerulário.
O patriarca não está, de resto, desprovido de poderes
políticos. E ele quem coroa o imperador, exige dele uma
profissão de fé ortodoxa, confere os sacramentos aos seus
filhos. Capelão do palácio, ele é o confidente natural e
quase inevitável do imperador. De facto, o papel político
do patriarca só é verdadeiramente importante quando se
trata de uma personalidade excepcional. Mas, se é hábil,
dispõe de trunfos consideráveis, pois facilmente adquire
um ascendente sobre o povo de Constantinopla. Assim,
Nicolau Místico pôde fechar as portas de Santa Sofia a
Leão VI após o seu quarto casamento. Miguel Cerulário
fomenta motins para tornar impossível uma aliança entre
o papa e o imperador (1054), e depois para derrubar
Miguel VI (1057).
Os sécs. viu e ix são marcados pela consolidação do
poder do patriarcado sobre a Igreja, nos limites do
Império Bizantino e para além deles. No interior, o patri­
arca consegue eliminar qualquer intervenção do papa,
que se desqualificou ao recusar o iconoclasmo e é visto
como a guarda avançada das potências ocidentais no
Oriente. O conflito estala quando o patriarca tenta ultra­
passar os limites fixados no Ocidente pelo Concílio de
Calcedónia. O cisma entre Fócio e Nicolau I (867) tem
por causa principal uma querela de jurisdição a propó­
sito da Bulgária. Do mesmo modo, em 1054, aquando

126
O Império bizantino de 717 a 1081

do cisma de Cerulário, o debate refere-se à jurisdição sobre


certas igrejas da Itália Meridional e à autoridade do patri­
arca sobre as igrejas latinas de Constantinopla. O problema
do recurso para o papa das decisões de Constantinopla,
que se coloca nos dois casos, é meramente secundário,
do mesmo modo que a querela sobre o título de patriarca
ecuménico.
O regresso do patriarcado de Antioquia ao seio do
Império não levanta os mesmos problemas. E certo que
os patriarcas da Cidade de Deus se mostram ciosos da
sua independência; tentam mesmo desempenhar o papel
de árbitros por ocasião do cisma de 1054. Mas a sua
nomeação parte de Constantinopla - saem muitas vezes
do círculo que rodeia o patriarca - e isso limita a sua
autonomia.
A autoridade do patriarca de Constantinopla é refor­
çada pela parte assumida pelo clero grego na evangeliza­
ção de mundos novos. Cirilo e Metódio convertem a
Morávia em meados do séc. ix. Depois, os Búlgaros são
cristianizados e, ainda que o Império Búlgaro queira man­
ter o controlo sobre a sua Igreja, tem de recrutar o clero
em Constantinopla. Enfim, em 989, a conversão dos Russos
de Kiev alarga a ortodoxia à Europa do Nordeste, muito
longe das fronteiras do Império.

Os monges. Os monges ocupam um lugar à parte na


Igreja Bizantina. A sociedade monástica está, efectivamente,
organizada ao contrário da sociedade laica e da hierar­
quia eclesiástica decalcada sobre o modelo da anterior: é
anti-hierárquica e igualitária nos seus princípios. E certo
que os monges estão em larga medida integrados na socie­
dade pela riqueza dos mosteiros e pelo seu peso na vida
religiosa e mesmo política - como o prova o número de
monges que chegaram a bispos —, mas permanecem, de
certo modo, marginais. Exercem, no entanto, uma influên­
cia considerável sobre a população das cidades e, sobre­
tudo, dos campos, em resultado das carências do baixo
clero secular. Na realidade, este não brilha nem pelo seu
nível moral nem peio nível intelectual. O clero secular
está, no entanto, presente em cada aldeia, nas pessoas de
um ou de vários padres. Mas são aldeões como os outros.
As igrejas paroquiais, de facto, não têm, geralmente, um
temporal. Cada padre, que é casado e pai de família, vive
antes de mais da exploração do seu pedaço de terra, de
que é proprietário ou arrendatário, e que lega ao filho
juntamente com a qualidade de padre. Portanto, para o
camponês bizantino, o padre de aldeia basta para satisfa­
zer as suas necessidades em sacramentos, mas está dema­
siado próximo de si para poder representar o ideal de
vida evangélico.

127
Para os Bizantinos, os mosteiros são a imagem da vida
ideal, desligada dos cuidados terrenos, o que impele os
monges a desinteressarem-se da gestão dos seus bens. Esta
vida tão elevada serve igualmente de refúgio em caso de
infelicidade, derrota política ou falência. Quem quiser
mostrar a sua fé - imperador, patriarca, soldado, campo­
nês -, fá-lo em proveito de um mosteiro. Cada impera­
dor, cada patriarca tem o cuidado de fundar o seu con­
vento. Os que não têm bens suficientes associam-se para
criar uma obra pia. Este entusiasmo e as funções extra-
-religiosas do mosteiro envolvem um certo número de con­
sequências: pobres à partida, os conventos tornam-se ricos;
muitos monges são-no por necessidade e não por voca­
ção, não passando para eles o mosteiro de uma prisão que
eventualmente se abandona na primeira oportunidade.
O monaquismo bizantino conhece duas tendências:
Eremitismo: estado do monge eremitismo e cenobitismo. Mas a renovação do mona­
que vive totalmente isolado. quismo que se segue à restauração das Imagens - pelas
Cenobitismo: modo de vida quais os monges tão bem tinham combatido -, tal como
comunitário dos monges.
o próprio iconoclasmo - que tão frequentemente tinha
expulsado os monges das cidades - trazem uma mudança.
A volta de centros em geral montanhosos, como o Olimpo
da Bitínia, desenvolvem-se verdadeiras colónias de frades,
a meio caminho entre o eremitismo e a vida cenobítica
instituída por S. Basílio. O grande monge do Olimpo foi
Teodoro Estudita, que se estabeleceu no convento cons-
tantinopolitano de Estúdios entre os dois iconoclasmos.
Ele precisou o modo de vida cenobítico, sendo a sua
influência atestada pelo imenso sucesso das suas Grande
e Pequena Catequese. Teodoro de Estúdios organizou a
vida do mosteiro nos seus mais ínfimos pormenores, tendo
nomeadamente estabelecido uma lista-tipo dos ofícios e
funções que nele devem ser exercidos. Embora a sua auto­
ridade tenha sido reconhecida por cinco grandes mos­
teiros, não pôde fundar verdadeiramente uma ordem.
Apesar de a maioria dos conventos se referirem às suas
instruções, o monaquismo bizantino foi sempre anárquico.
A partir do final do séc. ix desenvolvem-se fundações,
muitas vezes de grande dimensão como os mosteiros de
Atos, o mais célebre dos quais, se não o maior de todos,
é a Grande Laura (Lavra), fundada em 962 por Atanásio
com o apoio de Nicéforo Focas. A laura combina eremi­
tismo, dado que cada monge vive na sua cela, e vida comu­
nitária, uma vez que, aos sábados e domingos, as refei­
ções são colectivas e os ofícios celebrados em comum.
Multiplicam-se as fundações sumptuosas e ricas, com o
Typikon: carta de fundação do fundador a determinar os estatutos e a orgânica do mos­
mosteiro, definindo a organi­ teiro através do typikon, diferente de caso para caso. O fun­
zação da sua vida e a sua do­
dador - pessoa privada, imperador ou patriarca - per­
tação.
manece proprietário do mosteiro, assim como os seus

128
O Império bizantino de 717 a 1081

herdeiros ou sucessores, com direito a pronunciar-se sobre


a nomeação do hegúmeno, teoricamente eleito pelos mon­
ges, mas que assim vê o seu poder limitado.
A vida dos monges deve ser a antítese da vida do mundo,
mas os monges bizantinos estão presentes em toda a parte.
Primeiro, pelo exercício do serviço público de caridade.
Um certo número de casas para os pobres - peregrinos,
doentes, idosos, indigentes, crianças abandonadas, órfãos,
em suma, todos os marginalizados - estão na dependên­
cia de uma igreja catedral ou são independentes, mas na
sua maior parte são anexos de mosteiros. Assim se desen­
volvem vastos complexos, como a «fundação imperial» de
São Jorge dos Manganos ern Constantinopla, instituída
por Constantino Monómaco (1042-1055).
Por outro lado, os monges são giróvagos, deambulam Giróvago: estado do monge
muito, viajam; um bairro especial de Constantinopla abriga que, não tendo um local fixo
de vida, erra permanente­
os que vêm do Olimpo, na Bitínia. Acontece, assim, que
mente de um sítio para outro.
os monges deixam muito facilmente o seu mosteiro, que Metóquio: mosteiro que, sob
os conventos pululam, mas são frequentemente efémeros, todos os pontos de vista (ma­
pouco sobrevivendo aos fundadores. Ao lado de grandes terial, religioso...), depende
estabelecimentos florescentes, contam-se, em muito maior de outro.
número, os que vegetam, na melhor das hipóteses. Esta
desigualdade preludia a concentração, com os mais peque­
nos a tornarem-se os metóquios dos maiores.

3. Afirmação da autoridade imperial

A hereditariedade ■

Em Bizâncio, no período que vai do séc. viu ao xi assiste-


se à passagem definitiva para o sistema dinástico, tanto no
plano dos factos como no da consciência colectiva. Isso
não basta para impedir as usurpações, mas estas fracassam
na sua maioria ou assumem um carácter «dinástico».
A Leão III sucede o seu filho Constantino V (741-775);
Leão IV é filho do precedente e dá lugar, por sua vez, a
seu filho Constantino VI (780-796). Este é uma criança,
pelo que a mãe, Irene, reina em seu nome: tão bem, que
acaba por fazê-lo cegar e substitui-se-lhe, tornando-se assim
a primeira imperatriz de pleno direito. Ao ser destronada
por Nicéforo (802), extingue-se a dinastia isáurica. Nicéforo,
derrotado e morto pelos Búlgaros (811), não chega a fun­
dar uma dinastia própria, e seu filho Estauráquio apenas
reina alguns meses. Miguel I Rangabé (811-813) cede rapi­
damente o lugar a Leão V (813-820), que funda uma nova

129
dinastia - a de Amórion. Sucedem-se Miguel II (820-829)
e Teófilo (829-842), mas, por morte deste último, o trono
volta a caber a uma criança, Miguel III (842-867). Verifica-
-se, portanto, que Constantino VI e, posteriormente, Miguel
III, embora crianças, puderam aceder ao trono sem qual­
quer controvérsia; e que suas mães, Irene e Teodora, legi­
timadas pelo casamento, puderam exercer a regência e
conduzir uma política inversa da dos defuntos maridos.
Miguel III cederá o lugar a Basílio I o Macedónio (867-
-886), que funda a dinastia macedónia. Verdadeiro labo­
ratório do triunfo da hereditariedade, ela dura até 1057.
O primeiro imperador a invocar a legitimidade do san­
gue é Leão VI (886-912). Com efeito, casou-se três vezes
sem sucesso, isto é, sem filhos. Para ter um herdeiro, cele­
bra um quarto casamento, condenado pela Igreja, e
enfrenta o incómodo patriarca Nicolau Místico, que se
recusa a reconhecer o matrimónio e a legitimidade da
criança (906). Ora o princípio dinástico é tão forte que,
quando morre Alexandre (912-913), irmão de Leão VI, o
pequeno Constantino VII (913-959) é reconhecido por
todos, com Místico à cabeça, como imperador legítimo,
Porfirogeneta: criança nascida por ter nascido na púrpura, ou melhor na Porphyra, sala
de uma imperatriz reinante na do Palácio pavimentada de mármore vermelho e reser­
sala do Palácio pavimentada vada aos partos imperiais: é porfirogeneta.
em púrpura, chamada Porphyra.
Mas Constantino Porfirogeneta não passa de uma
criança. Em 919, Romano Lecapeno (919-944) assume o
poder. Embora desejoso de fundar uma dinastia, não afasta
Constantino: fá-lo casar com a filha, torna-se «pai do impe­
rador», depois co-imperador e, por fim, imperador prin­
cipal utilizando a sua relação com o porfirogeneta. Faz
coroar os próprios filhos, mas, por sua morte, em 944,
Constantino não tem qualquer dificuldade em recuperar
o poder e transmiti-lo a seu filho, Romano II (959-963).
Este falece, deixando também dois filhos, Basílio e
Constantino. O mais brilhante dos generais bizantinos,
Nicéforo Focas (963-969), toma o poder, mas não tem a
ousadia de destronar as crianças e, para se legitimar, des­
posa a viúva de Romano II. Em 969, um dos responsáveis
pelo assassínio de Nicéforo, João Tzimístis (969-976), torna-
-se imperador, mas deixa reinar as duas crianças e casa
com uma filha de Constantino VII. Falecido Tzimístis,
Basílio II (976-1025) retoma muito naturalmente o poder,
como mais tarde seu irmão Constantino VIII (1025-1028).
Ora Constantino VIII não deixa nenhum filho, mas
sim duas filhas: a legitimidade vai seguir a linha feminina.
Zoé, a mais velha, faz, pelo casamento, dois imperadores
- Romano III Árgiro (1028-1034) e Miguel IV (1034-1041)
- e depois, por adopção, um terceiro, Miguel V (1041-
-1042). Quando este pretende relegar Zoé para um con­

130
O Império bizantino de 717 a 1081

vento, o povo amotina-se e restabelece as duas porfiro-


genetas, Zoé e Teodora. Se bem que idosa, Zoé casa-se
ainda uma terceira vez e faz imperador Constantino IX
Monómaco (1042-1055), antes de morrer em 1050. Quando
falece Constantino, Teodora volta a reinar (1055-1056),
adoptando, antes de morrer, Miguel VI (1056-1057). Assim,
pelo simples facto do casamento e da adopção, e apesar
das usurpações particularmente poderosas, a dinastia mace-
dónia tinha adquirido uma tal popularidade e o princí­
pio dinástico uma tal força, que sobreviveu 29 anos a
Constantino VIII. O princípio dinástico impõe-se ao ponto
de o reinado de dois Ducas, Constantino (1059-1068) e
Miguel VII (1071-1078), ter criado uma dinastia. Quando
Aleixo Comneno sobe ao trono para fundar uma dinas­
tia de um século, desposa Irene Ducas (1081).

A investidura. A despeito desta passagem progressiva


à hereditariedade, os processos de eleição e de investi­
dura mantêm-se em vigor até ao fim do Império. O povo
é suposto intervir na eleição, como o Senado e o exér­
cito. Se os militares conservam todo o seu poder através
das usurpações, o Senado já só é consultado em caso de
grave crise de sucessão. Do mesmo modo, o povo de
Constantinopla apenas intervém em caso de vacatura, por
exemplo para chamar a porfirogeneta Teodora na morte
de Monómaco. Mas a aclamação popular no hipódromo
pelos demos permanece a regra, mesmo durante a dinas­
tia dos Paleólogos: marca o «consentimento unânime» do
povo, equivalente e sinal da vontade divina. A investidura
propriamente dita faz-se pela elevação no pavês, que con­ Pavês: grande escudo sobre o
fere ao imperador o comando das forças armadas. qual o exército transporta em
triunfo o novo Imperador.
A estes processos estritamente laicos, herdados do Impé­
rio Romano, junta-se, a partir do séc. V, a coroação pelo
patriarca em Santa Sofia. Este recebe a profissão de fé do
impetrante, desempenhando portanto um papel deter­
minante na legitimação. De resto, a investidura religiosa
sobressai a partir do séc. vii, pois é o patriarca que então
passa a transmitir as insígnias imperiais. O patriarca tra­
duz, portanto, com a coroação, a vontade divina mani­
festada através da aclamação popular. O Império é uma
dignidade igual ao sacerdócio: o imperador comunga do
cálice no santuário e recebe a ordenação de subdiácono,
embora permaneça um leigo.

O poder imperial ■

Vê-se, assim, a importância do contributo cristão para


as fontes romanas e helenísticas do Império. De Roma, o
imperador herda o aspecto de primeiro magistrado: a dig-

131
nidade imperial é uma pessoa moral independente do res­
pectivo titular, que não é o seu proprietário; o mesmo
quanto ao aspecto de comandante supremo das forças
armadas. Da monarquia helenística, mantém-se uma auto­
ridade considerável e uma tendência para a divinização.
Se o cristianismo recusa o imperador-deus, o poder impe­
rial contém um carácter divino; é natural, para um cris­
tão, ver no imperador cristão um soberano designado pela
vontade divina. O imperador é o eleito de Deus, reina
pela divina Providência para aplicar a Sua vontade. Quando,
Épanagôgé: «introdução». Tra­ no reinado de Basílio I, o Épanagôgé, único tratado bizan­
tado jurídico do reinado de tino de direito público, declara que «o imperador é a auto­
Basílio I, destinado a intro­ ridade legítima, o bem comum de todos os súbditos - não
duzir as Basílicas.
castiga nem recompensa com parcialidade, mas, como um
bom agonoteto, distribui os justos prémios», o autor não
está a exprimir os deveres do imperador, mas as suas qua­
lidades intrínsecas, já que é um eleito de Deus. Por outras
palavras, um imperador não pode deixar de ser «o bem
comum de todos os súbditos, etc...» Sem isso, ele deixa
de ser legítimo.
O problema está, então, em reconhecer-se a vontade
divina. O poder imperial é o sinal da graça divina, assim
como a perda desse poder assinala a perda dessa graça;
inversamente, se um usurpador tem sucesso, isso é o sinal
de que ele é desejado por Deus. A usurpação apresenta-
-se, portanto, como um modo normal de sucessão e, mui­
tas vezes, o patriarca não hesitou em coroar o assassino do
imperador precedente. Teofânia atribui a Irene, que
Nicéforo visita na prisão após a ter destronado em 31 de
Outubro de 802, palavras que nada têm de ambíguo: «Creio
que foi Deus que me elevou, da órfã que eu era, ao poder...;
e agora, vejo em ti (Nicéforo) o piedoso eleito de Deus...»
Encontramos estas concepções do Império no ceri­
monial espectacular que envolve a vida pública do impe­
rador e que nos é minuciosamente descrito por Constantino
Livro das Cerimónias: ver p. 232. Porfirogeneta no seu «Livro das Cerimónias». Todo o sis­
tema aponta para a glorificação do soberano; todas as acla­
mações, todos os actos do imperador e dos que o rodeiam
têm o valor de símbolos. Os súbditos são os escravos do
Proskynese: prosternação dian­ imperador e arrojam-se por terra, no proskynèse, sempre
te do Imperador. que ele aparece. A vida na corte é uma espécie de misté­
rio onde os que rodeiam o imperador desempenham um
papel preciso. E que, se o império é o reflexo terrestre
do reino de Deus, o imperador deve desempenhar nele
o papel do Cristo: no Natal, há doze convidados à mesa.
As vestes imperiais, que um anjo teria entregue a
Constantino, têm igualmente o valor de um símbolo.
Tudo concorre, portanto, para aproximar o imperador
de Deus. Isso permite-lhe concentrar nas suas mãos um
máximo de poderes. Assim, ele é «igual aos apóstolos», a

132
O Império bizantino de 717 a 1081

«lei incarnada». Parece, portanto, que os poderes do impe­


rador seriam mais ou menos ilimitados. Na realidade, estão
longe do arbitrário: é que, se o imperador é o legislador,
ele deve observar as leis existentes, devidas a imperadores
que eram igualmente inspirados por Deus. Em consequência
deste respeito pelas leis existentes, o processo legislativo
em Bizâncio consiste menos em ab-rogar as leis antigas do
que em deixá-las cair em desuso. Além disso, a origem
divina do poder constitui um freio ao arbitrário: o impe­
rador está limitado pelo bem no sentido religioso do termo,
pelo direito canónico e a lei moral. Reciprocamente, aliás,
o imperador tem meios de intervir no plano religioso:
deve fazer respeitar a ortodoxia definida pela Escritura e
os concílios e, para isso, convoca e preside a estes últi­
mos. Tem, portanto, um certo poder disciplinar na Igreja.

A ordem hierárquica do mundo ■

Mas o que constitui a maior originalidade do Império


Bizantino é o pretender-se sempre universal, como o
Império Romano, mesmo quando já claramente não o é
e até quando já perdeu a esperança de voltar a sê-lo. A con­
cepção romana é, também neste caso, reforçada pela noção
de comunidade da fé: como só há uma Igreja, também
há só um imperador, guardião da justa fé, eleito de Deus
e sucessor dos imperadores romanos. Todos os países que
acederam à Igreja ou, simplesmente, que tenham sido
outrora romanos, permanecem uma possessão inaliená­
vel do Império. Como todos os países são, em potência,
convertidos - logo, virtualmente, súbditos não há, em
boa verdade, estrangeiros. Mesmo os países tomados inde­
pendentes não são iguais - ainda que sejam mais pode­
rosos do que o Império -, continuando classificados no
interior de uma ordem hierárquica do mundo. E tal a
força desta ideia que, durante muito tempo, os chefes de
Estado independentes, que reconhecem a superioridade
teórica do Império, entram nessa hierarquia e procuram
as dignidades áulicas bizantinas.
Esta regra da universalidade sofreu numerosas entor­
ses. Primeiro, a coroação imperial de Carlos Magno em
800. Sem se lhe poder opor, Bizâncio concede o título
restringindo-o geograficamente e reservando para si a
designação de imperador «dos Romanos». No final do
séc. x, Simeão da Bulgária assume também o título impe­
rial, mas com isso visa, muito simplesmente, o trono impe­
rial bizantino; e Bizâncio já concedera a Pedro, em 927,
o título de imperador dos Búlgaros, o que lhe limita o
alcance. Do mesmo modo, no séc. xiv, face ao sérvio Etiano
Dusan, o Império moribundo ainda consegue não aban­

133
donar o monopólio do Império Romano. O mais impres­
sionante é que, nestes conflitos, o velho Império na defen­
siva e as jovens potências em expansão estão imbuídos da
mesma ideologia: todos querem ser a cabeça de uma hie­
rarquia que ninguém contesta. Assim a teoria sobrevive
aos factos e mesmo à sua possibilidade.
A forma das relações diplomáticas traduz esta preten­
são à superioridade universal: qualquer outra potência é
considerada como um súbdito. Antes do termo do séc. XII,
todo e qualquer acordo assume a forma de uma conces­
são da graça imperial; mesmo que as cláusulas sejam humi­
lhantes para o Império, trata-se sempre de privilégios con­
cedidos pelo imperador: um tributo a pagar nunca deixa
de ser um presente. Todo o poder sobre a terra provém
do poder imperial nascido de Deus: o Imperador arroga-
-se o direito de confirmar os outros príncipes, nomeada­
mente conferindo-lhes as insígnias reais. Assim, Miguel VII
oferece a Geyza I da Hungria (1074-1077) a parte infe­
rior da sua coroa, onde a figura do imperador é repre­
sentada acima da do rei. Na correspondência com os Esta­
dos estrangeiros estabelece-se uma hierarquia: consoante
o seu nível, eles recebem «ordens» ou «cartas». Certos
príncipes são qualificados de amigos, outros de filhos
(Bulgária, Arménia), os imperadores ocidentais de irmãos
- o que os inclui na família imperial de que o imperador,
pai de todos os cristãos, é a cabeça. O lugar de cada Estado
na hierarquia pode, de resto, ser modificado, se for caso
disso: o príncipe cujo prestígio cresce aproxima-se do
imperador no parentesco.
A concepção bizantina da unidade do mundo terres­
tre, imagem do reino de Deus, implica que não haja ver­
dadeiramente estrangeiros; os príncipes são colocados no
mesmo plano dos dignitários do Império e são, portanto,
alinhados na hierarquia interior e exterior. Somente os
soberanos árabes escapam a esta hierarquia, o que traduz
a relação de forças. Mas como não são cristãos, não sendo
como tal chamados ao reino de Deus, esta divisão do
mundo está teologicamente fundamentada.

4. O governo do Império

■ A administração

Esta hierarquia que existe entre as nações, existe tam­


bém no Império Bizantino, nomeadamente ao nível do
respectivo governo.

134
O Império bizantino de 717 a 1081

As dignidades. Na realidade, há duas hierarquias par­


cialmente paralelas: a das funções (títulos atribuídos por
decreto) e a das dignidades (títulos atribuídos por insíg­
nias) , correspondendo as primeiras à nomeação num posto
de funcionário, e não conferindo as segundas nenhum
lugar nem poder que não seja, a partir do nível de pro-
tospatário, o acesso ao Senado. As primeiras são atribuí­
das gratuitamente e revogáveis, enquanto as outras podem
ser compradas - mas não forçosamente - e são pratica­
mente vitalícias. E usual que, ao subir-se na hierarquia das
funções, se suba também na das dignidades. Qualquer
alto-funcionário é, pois, geralmente um dignitário, mas a
inversa não é verdadeira.
A hierarquia das dignidades e das funções revestia uma
tal importância aos olhos dos Bizantinos, que estes com­
punham tratados especiais ou listas de precedências (tak-
tika); conhecem-se quatro nos sécs. IX e x. As dignidades
são antigas funções que perderam toda a realidade: a mais
elevada é a de César, depois, por ordem, a de magistros
(antigo «mestre dos ofícios»), de anthypatos (procônsul),
de patrício, de hypatos (cônsul), de protospatário (pri­
meiro porta-espada). Ficam por aqui as dignidades que
dão acesso ao Senado; as outras são consideradas médias,
como a de espatário (porta-espada), ou inferiores. Por
exemplo, no séc. x, um estratego de tema (cf. abaixo) é
protospatário ou patrício. A lista das dignidades modifíca-
-se constantemente pela criação de novos títulos no alto
da escala.
As dignidades não são simplesmente honoríficas, per­
mitindo ocupar um lugar nas cerimónias imperiais. Dão
direito a um ordenado (roga) distribuído uma vez por ano Roga: vencimento do funcio­
nário, soldado ou dignitário.
durante uma grandiosa cerimónia, e que é acompanhado,
no caso das dignidades do alto da escala, de presentes em
vestes de púrpura. Deste modo, as dignidades represen­
tam uma espécie de capital que permite obter rendimentos;
comprando-se uma dignidade de nível mais elevado,
aumenta-se o próprio rendimento. Por exemplo, um espa­
tário pagará 20 libras de ouro para se tornar protospatá­
rio, passando a beneficiar de um ordenado de uma libra
de ouro (72 nomismata), em vez de 12 nomismata. Despen­
dendo 20 libras, faz crescer o seu rendimento em 60 nomis­
mata, ou seja, uma taxa de rendimento de 4,16 %. E mesmo
possível, para uma dada dignidade, pagar um comple­
mento de capital para se conseguir um complemento de
roga, à taxa de uma libra de ouro por sete nomismata
(9,72%). Trata-se portanto de verdadeiras rendas de Estado,
mas vitalícias.

A administração central. A administração civil central


do Estado está organizada em serviços ou sékréta, cujo pes-

135
soai se compõe de sékrétikoi, de notários, de cartulários,
Sékrétikos: chefe de serviço no
de kankellarioi, por vezes de mandatores (mensageiros); os
quadro de um sékréton. t
Protoasékrétis: chefe da chan­ chefes dos serviços chamam-se, em geral, «logotetos».
celaria imperial. A chancelaria imperial está confiada a um protoasékrétis,
Asékrétis: administradores da que chefia os secretários, asékrétis. O logoteta do dromo
chancelaria imperial. dirige o serviço do correio imperial (antigo cursus publicus),
Logoteto: director de um sé­
kréton. encarregado de difundir as ordens imperiais e as men­
Dromo: o correio imperial: di­ sagens para o estrangeiro; ocupa-se essencialmente dos
vulgação das ordens e nove­ Negócios Estrangeiros.
las.
As administrações mais desenvolvidas são as das finan­
ças. O controle é exercido pelo sacelário, que tem a seu
cargo as «larguezas sagradas» da época alta, assim como
a fortuna privada (res privatd), o património e as casas
divinas. O serviço fiscal por excelência, a caixa do Estado,
Génikon: serviço das finanças
com o seu exército de funcionários para lançamento, fis­
centrais do Estado. calização e cobrança dos impostos, é o génikon. As finan­
Stratiôtikon: serviço que admi­ ças e o recrutamento das tropas são geridos pelo stratiô­
nistra o exército. tikon. O Vestiário público é uma espécie de arsenal, onde
Idikon: serviço das finanças pri­
se guardava o material necessário ao armamento de uma
vadas do Imperador.
frota; é alimentado pelo produto de multas e, eventual­
mente, pelos rendimentos dos domínios imperiais e da
cunhagem de moeda. O eidikon ou idikon paga os rogai e
recebe produtos das oficinas imperiais. A gestão dos bens
imperiais modifica-se profundamente. Após o desapare­
cimento da Res Privata, domínios imperiais e casas divi­
nas tinham ficado dispersos pelos diferentes serviços da
administração central, enquanto o imperador era obri­
gado a fazer face, com os próprios bens, à falência do sis­
tema de assistência pública antes assumido pela Igreja.
No começo do séc. IX, os imperadores recomeçam a fun­
dar casas imperiais, que confiam a um Grande Curador,
dotado de um sékréton', a partir de Basílio I, a mais impor­
tante delas, a dos Manganos, constitui mesmo um sékréton
por si só. A pouco e pouco, porém, esses serviços desa­
gregam-se; cada uma das casas torna-se independente e a
maior parte converte-se em fundações pias, voltadas para
a assistência. Paralelamente, a quantidade das terras per­
tencentes ao fisco, quer provenham das zonas reconquis­
tadas quer das confiscações efectuadas aos contribuintes
insolventes, aumenta ao ponto de justificar o aparecimento
de um serviço particular: o do épi tôn oikeiakôn.

A administração provincial. A administração provincial


continua a assentar no tema, dirigido por um estratego.
A evolução do regime dos temas a partir do começo do
Ver mapa p. 384 C. séc. viu é, no entanto, considerável. Assiste-se primeiro à
divisão dos temas de origem, cuja extensão e efectivos mili­
tares se revelavam perigosos pelo poder conferido aos estra­
tegos. Assim, o tema dos Anatólios deu lugar aos dos Trácios
(741), da Capadócia (830) e da Selêucia (entre 927 e 934).
O Império bizantino de 717 a 1081

Todas as regiões conquistadas ou reconquistadas nos


sécs. viu e ix foram organizadas em temas. E a principal
descrição que nos ficou deles, o Livro dos Temas de
Constantino Porfirogeneta, redigido cerca de 934, men­
ciona 29 temas. Depois disso, a tendência para a subdivi­
são acentua-se. O taktikon do Escurial (9*71-975) refere-se
a 81 temas: alguns são estabelecidos em novas conquistas,
mas outros resultam da cisão de anteriores.
O tema é, antes de mais, uma organização militar. Mas k
o estratego detém também o poder civil e dirige uma
administração civil. A principal personagem desta é o pre­
tor ou krités (juiz), que não se limita a ser o chefe da jus­ Krités: juiz. Principal funcio­
tiça, antes se configurando como o sucessor dos pretores nário civil do tema.
de Justiniano, então governadores das províncias: ele gere
toda a administração civil do território. O protonotário
dirige a administração fiscal do tema e o cartulário ocupa-
se das questões militares, isto é, da gestão civil do exér­
cito do tema.
O poderio do estratego não deixava de ter inconve­
nientes: Leão III, estratego dos Anatólios, tinha-o utili­
zado para ocupar o trono. E ele quem escolhe os seus
subordinados. Tornam-se, portanto, necessárias limitações.
O estratego é nomeado, no máximo, por quatro anos; não i
tem o direito de adquirir bens na província, nem de lá
casar os seus filhos, em suma, de nela se instalar; nunca
é originário da respectiva região. Por outro lado, os fun­
cionários civis que chefia são obrigados a dirigir relató­
rios sobre a respectiva actividade directamente à admi­
nistração central. Seria, pois, falso falar em descentralização.
No plano civil, o estratego tem pouca iniciativa. A exe­
cução da política imperial está simplesmente desconcen­
trada ao nível dos temas.
A tendência para limitar os poderes do estratego em
proveito dos funcionários civis tornou-se irresistível a par­
tir de meados do séc. x pela mudança da situação mili­
tar: a passagem de uma posição defensiva para uma ofen­
siva generalizada torna inúteis as tropas locais e necessário
um exército central. A concentração dos poderes civis e
militares nas mãos dos estrategos deixa de ter razão de
ser. Os temas são cada vez mais numerosos e pequenos.
A partir do séc. xi, também o título de estratego não é
mais do que uma simples dignidade, passando o krités a
ser o governador do tema.

O exército ■

Esta evolução levanta o problema do recrutamento e


da organização do exército. No princípio do séc. viu, as

137
forças armadas estão repartidas em exércitos dos temas
Thémata: contingentes dos (thémata) e em contingentes centrais (tagmata). Os pri­
exércitos dos temas. meiros, compostos de estratiotas - soldados-camponeses e
cavaleiros ligeiros são muito mais importantes do que
Tagmata: ver p. 95. os segundos, constituídos por mercenários. Nicéforo I sen­
tiu mesmo a necessidade de reforçar numericamente os
exércitos dos temas, obrigando os camponeses pobres a
cotizarem-se para armarem um soldado, à razão de 18,5
soldos por soldado (e por aldeia). O tema militar com­
preende três mérai ou turmai, comandados por «merar-
cas» ou «turmarcas», contando cada turma com três dron-
gai (drongários), cada qual com três bandas (chefiadas
De facto, certos temas podiam ter de por um conde). A banda integra cerca de cem homens e
10 000 a 25 000 soldados. o tema entre 2500 e 3000.
O séc. X conhece uma acentuada evolução do sistema
:dos estratiotas e do serviço militar ou estrateia. Querendo
■ proteger os estratiotas numa conjuntura de crise da
pequena propriedade rural, Constantino VII institui o
regime de arrolamento das suas terras. Até então, só os
homens eram inscritos para as tarefas militares; de futuro,
também as suas terras são registadas, tornando-se inalie­
náveis. Até um valor de quatro libras de ouro, o que repre­
i senta cerca do quádruplo de uma exploração camponesa
média, o registo, que implica a inalienabilidade, é obri­
gatório. E facultativo na parte que exceda aquele mon­
tante. Mas esta reforma é rapidamente ultrapassada pela
evolução militar, caracterizada pela generalização da cava­
laria couraçada, cujo armamento é muito mais caro. Assim,
Nicéforo Focas eleva o valor mínimo do lote estratiótico
de quatro para doze libras de ouro. Esta medida tem três
consequências: primeiro, muda a natureza social do exér­
cito dos temas, do qual são excluídos os camponeses
médios; depois diminui maciçamente o número dos estra­
tiotas, logo, o contingente do tema; por último, trans­
Strateia: originalmente uma forma o serviço militar, a estrateia, em imposto, que depressa
obrigação militar, acaba por se estende ao conjunto dos contribuintes. Isto assegura os
designar todo o serviço pú­ recursos necessários para o recrutamento, pagamento e
blico, nomeadamente o im­
posto. equipamento dos mercenários dos tagmata, então o grosso
do exército, apenas reforçados com as tropas couraçadas
dos temas. Ora os mercenários são, em número crescente,
estrangeiros — russos, turcos, varangos, etc. ... O exército
bizantino perde assim o seu duplo carácter nacional e
popular.
Do mesmo modo, os comandos são alterados. A per­
Criado das scholes: primeiro sonagem militar essencial passa a ser o criado das scho­
comandante dos tagmata. les. Quanto às fronteiras, no final do séc. x e no séc. XI
Duque, Katêpanô: comandante os seus comandos sáo reorganizados em unidades mais
militar de extensas circunscri­
ções fronteiriças. vastas, ducados ou katêpanatos, confiados a duques ou
katêpanós, agrupando muitas vezes vários temas, e aca­
bando por retirar todo o poder aos estrategos: duques

138
O Império bizantino de 717 a 1081

de Antioquia, da Mesopotâmia, de Tessalonica, de Andri-


nopla, katêpanó de Itália...

A armada. Sendo o mar uma via de comunicação essen­


cial entre a capital e as províncias, a armada seguiu a
mesma evolução do exército de terra. O aparecimento
dos Árabes no Mediterrâneo cria uma fronteira marítima,
para a defesa da qual são criados progressivamente três
temas, cujos estratiotas servem no mar: os Cibiratas, Samos
e a Egeia. Quando Creta cai nas mãos dos Árabes (em
827), o Império sente a necessidade de reconquistar a ilha
e portanto de conduzir ofensivas marítimas com uma frota
central. Equipada e comandada pelo drongário do ploimon, Drongário do ploimon: almi­
ela suplanta a pouco e pouco as frotas dos temas, que rante da frota central, com­
posta de marinheiros - muitas
desaparecem no séc. XI. Por outro lado, Constantinopla vezes mercenários estrangeiros
arma e mantém frotas acantonadas na província, distin­ - pagos pelo tesouro imperial.
tas das dos temas.

Para aprofundar este capítulo

No que respeita à expansão do Império Bizantino:


quanto à Itália, C. Diehl, Etudes sur Vadministration..., citado
pág. 88; J. Gay, Lltalie méridionale et lEmpire byzantin (867-
1071), Paris, 1904; F. Chalandon, Histoire de la domination
normande en Italie et en Sicile, 2 vols., Paris, 1907. Quanto
aos Balcãs, ver a bibliografia págs. 88-89. Acrescentar, no
que toca à política bizantina após a conquista, N. BANESCU,
LesDuchés byzantins de Paristrion (Paradounavon) et Bulgarie,
Bucareste, 1946.
Sobre o Oriente: além das histórias gerais de Bizâncio,
ver E. HONIGMANN, citado pág. 14; H. Ahrweiler, «L’Asie
Mineure et les invasions arabes», em Vanonm Reprints,
citado pág. 100; C. CAHEN, «La première pénétration tur-
que en Asie Mineure», em Byzantion, 18, 1948, pp. 5-67.
Sobre o iconoclasmo, ver sobretudo A, BRYER, J. Her-
RIN, Iconoclasm, Oxford, 1976, que inclui uma preciosa
bibliografia; G. DUMEIGE, Nicée II, Paris, 1978; S. GERO,
Iconoclasm during the reign of Leon II, Lovaina,
1973; S. GERO, Byzantine Iconoclasm during the reign of
Constantin V, Lovaina, 1977; E. BCESPFLUG, N. LOSSKY,
Nicée II, 787-1987, Douze siècles d'images religieuses, Paris,
1987.
Sobre a Igreja: quanto à organização, ver essencial­
mente J. DARROUZES, Recherches sur les Offikia de lÉglise
byzantine, Paris, 1970. Sobre o patriarca: F. DVORNIK, «L’idée

139
d’apostolicité à Byzance et la légende de 1’apôtre André»,
Actes du Xe congrès d’études byzantines, Istambul, 1957, pp. 323-
326, posteriormente desenvolvido sob o mesmo título em
inglês, Washington, 1958; V. LAURENT, «Le titre de patri-
arche cecuménique et Michel Cérulaire», Miscellanea G.
Mercati, II, Roma, 1946, pp. 373-386; G. EVERY, The Byzantine
Patriarchate, 451-1204, Londres, 1962.
Sobre os monges: J.-M. HUSSEY, «Byzantine monasti-
cism», Histovy, nova série, 24, 1939, pp. 56-62. Obra colec-
tiva, Le Millénaire du Mont-Athos (963-1963), Etudes et
Mélanges, 2 vols., Chevetogne, 1963-1964. Quanto aos bens
monásticos, reportar-se ao capítulo sobre a vida rural.
Sobre a sucessão imperial e o poder imperial: ver os
capítulos das obras gerais. Algumas obras particulares:
A. VOGT, Basile P7, Empereur de Byzance, et la Civilisation
byzantine à la fin du IXe siècle, Paris, 1908; S. Runciman,
The Emperor Romanus Lecapene and his Reign, a study of tenth
century Byzantium, Cambridge, 1929; G. SCHLUMBERGER,
Un empereur byzantin au Xe siècle: Nicéphore Phocas, Paris,
1890; LÉpopée byzantine à la fin du Xe siècle, 3 vols., Paris,
1896-1905. Sobre o século xi: o melhor é ainda ler PSELLOS,
Chronographie, ed. e trad. F. RENAULD, 2 vols., Paris, 1926-
-1928. Sobre o cerimonial imperial: ver CONSTANTIN POR-
PHYROGÉNÊTE, Le Livre des Cérémonies, ed., trad. e comen­
tário por A. VOGT, Paris, 1935-1940. Sobre os poderes e
a ideologia imperial, ver H. AHRWEILER, LPdéologie politi-
que..., citado pág. 14. Sobre a ordem hierárquica do mundo:
G. Ostrogorsky, «The Byzantine Emperor and the Hierar-
chical World Order», Slavonic and East European Review,
35, 1956, pp. 1-14.
Sobre a época do intericonoclasmo: ver W. TreaDGOLD,
The Byzantine Revival (780-842), Stanford, 1988.
Sobre o governo do Império: a obra fundamental é
N. OlKONOMlDES, Les Listes de préséance byzantines des IXe et
Xe siècles, Paris, 1972, completada por N. OlKONOMlDES,
Documents et Etudes sur les institutions de Byzance, Variorum
Reprints, 1976, P. Lemerle, Cinq Etudes sur le XP siècle byzan­
tin, Paris, 1977; assim como vários artigos do t. 6, 1976,
de Travaux et Mémoires. J.-Cl. CHEYNET, Pouvoir et contesta-
tions à Byzance (963-1110), Paris, 1990.

140
9
O mundo muçulmano
sob os Abássidas
Aspectos políticos e territoriais (750-1055)

A revolução abássida, que levou ao poder uma nova dinastia, tinha nascido do problema da inte­
gração no novo Império das populações não árabes. Rompendo com o período omíada, que observara
um modelo de organização tribal, os califas elaboraram durante o primeiro século abássida (750-cerca
de 850) um novo sistema político. Este define-se por um quadro institucional e uma nova capital, e
mais ainda, como mostraram vários estudos anglo-saxónicos recentes, pelo estabelecimento de uma
rede muito densa de relações pessoais e pela consideração das reivindicações autonomistas das regiões.
Estudar a história do período abássida do ponto de vista do governo central e das suas instituições
não deve fazer esquecer que se desenvolveu um processo de mobilização das forças das províncias, ori­
entais e ocidentais, pelo reconhecimento dos particularismos e pelo papel concedido às aristocracias
locais. Dito de outro modo, o movimento de fragmentação do Império permitiu a emergência de novos
conjuntos territoriais, que não romperam com as instituições arábico-muçulmanas, mas que adopta-
ram formas de organização próprias, por vezes referindo-se ao xiismo ou ao carijismo.

1. O primeiro século abássida:


o desenvolvimento do sunismo
(750-cerca de 850)

■ As orientações do novo regime

Os dois novos primeiros califas começaram por elimi­


Cronologia dos dez primeiros
nar, no seio do movimento compósito que os tinha levado califas abássidas
ao poder, os extremistas e as tendências rivais. Abú Muslim, al-Saffâh (750-754)
considerado poderoso de mais no Jurassã, foi afastado em al-Mansür (754-775)
755 e, sobretudo a partir de 762, teve início uma política al-Mahdi (775-785)
al-Hadi (785-786)
de repressão contra os Alidas. Esta atitude tranquilizou os Hârún al-Rachid (786-809)
moderados. Al-Mansúr transferiu a capital para Bagdade, al-Amin (809-813)
fundada em 762 no Iraque, não longe da antiga capital, al-Mámún (813-833)
al-Mu’tacim (833-842)
Ctesifonte. Símbolo do poder, Madinat al-Salam - «a cidade al-Wâthiq (842-847)
da salvação» como Bagdade é designada pelas fontes ára­ al-Mutawwakil (847-861)
bes -, atribuiu ao Iraque o papel que o regime omíada lhe (Continuação da cronologia p. 155)

recusara: o de centro de um vasto império. Aproximando-


-se das províncias orientais, o poder califal apoiava-se nas
populações do antigo Império Sassânida, mas desviava-se Ver mapa p. 396 C.
do Mediterrâneo e renunciava, de facto, a exercer um con­
trolo sobre as províncias do Ocidente. Não é desproposi-

141
tado fazer notar que, exactamente na mesma época, a dinas­
tia carolíngia, que tomou o poder em 751, encontrava o
seu centro de gravidade nas regiões setentrionais, longe
das costas mediterrânicas. Somente Constantinopla manti­
nha uma fundada vocação marítima, ainda que a talasso-
cracia bizantina viesse a ser seriamente ameaçada.

Influência iraniana. Os princípios administrativos foram,


portanto, pouco modificados, mas o estilo do governo evo­
luiu por influência de um pessoal essencialmente recrutado
entre os mawâli iranianos. Os Árabes não foram eliminados
do poder, mas deixaram de monopolizar as mais elevadas
funções; os Iranianos convertidos acederam a todos os pos­
tos políticos, na Corte, nos diwâns, no exército, à custa dos
Árabes que tinham sido o suporte dos Omíadas. Quando a
Wazir (vizir): literalmente, «o administração central foi colocada sob a direcção do wazir,
que ajuda a carregar um far­ ou vizir, foi a membros da família iraniana dos Barmácidas
do». Originalmente honorífi­
que a função começou por ser confiada. Sob a influência
co, o título de vizir designa, a
partir do reinado de Harun dos mawâli iranianos, as velhas tradições sassânidas revive­
al-Rachid, aquele que, ao la­ ram na etiqueta, no cerimonial, no modo de vida do califa.
do do califa, exercia um pa­ Longe da multidão, ele foi um soberano absoluto, em rup­
pel de conselheiro e auxiliar,
tura com a tradição do chefe de tribo árabe herdada dos
ao mesmo tempo que supe­
rintendia na administração pú­ tempos pré-islâmicos. As modificações introduzidas no exér­
blica. cito traduzem bem esta evolução. Os seus membros passaram
a ser recrutados entre os Jurassanianos, que se tornaram
nos únicos e verdadeiros soldados, sobretudo encarregados
de defender no Império a política do califa, e absolutamente
distintos dos voluntários que ainda continuavam a bater-se
nas fronteiras do mundo muçulmano.

O califado, instituição religiosa. O princípio dinástico


foi rapidamente estabelecido em benefício da família abás-
sida. Esta deixou de basear os seus direitos à direcção da
umma no testamento de Abú Hâshim, que a ligava aos xi-
itas, e invocou uma designação de al-Abbâs por via do pró­
prio Maomé. Deste modo, o movimento abássida deixava
de ter, pelas suas origens, um carácter heterodoxo; é que
os califas decidiram cimentar a unidade do seu império,
mais nitidamente do que na época omíada, através da
natureza religiosa da sua autoridade.
De repente, tanto nas suas formas exteriores como nas
suas tendências, o califado aparece como uma verdadeira
instituição religiosa. O califa abássida já não se define ape­
nas como o sucessor, o lugar-tenente do profeta de Deus;
Imã: ver p. 107. assume também o título de imã - o que guia a comuni­
dade na obediência à Lei. O manto do profeta, a sua lança
e o seu selo simbolizam o poder do que, assim, é o guia
espiritual e temporal da comunidade. As manifestações
exteriores de piedade desenvolvem-se: reconstrução de
Meca e Medina, da Mesquita al-Aqsa de Jerusalém, orga­

142
O mundo muçulmano sob os Abássidas

nização regular de peregrinações, estabelecimento da


inquisição face ao surto de diversos movimentos heréti­
cos - os zindiq. Os doutores em ciências religiosas passam Zindiq: termo de origem ira­
a desempenhar um papel na corte: assim, a pedido de niana que designa em geral os
que, pela sua atitude de espí­
Hârún al-Rachid, o grande cádi de Bagdade, Abú Yüsuf,
rito ou o seu modo de vida,
redigiu um livro - O Livro do Imposto Predial para limi­ entram em confronto com a
tar o arbitrário em matéria administrativa e fiscal. Lei revelada. No séc. Viu, tra­
ta-se sobretudo dos adeptos
de doutrinas dualistas, influen­
ciados pelas tradições cultu-
O desenvolvimento do sunismo ■ rais persas.

O sunismo. Os Abássidas apoiaram-se, efectivamente,


numa corrente de pensamento que aparecera nos pri­
meiros decénios do séc. vin e que começava a elaborar-se
doutrinalmente: o sunismo, para o qual a obediência ao
poder estabelecido era praticamente um dever. Rejeitando
todas as formas de contestação e de rebelião, os doutores
sunitas recomendavam que se seguissem as autoridades
instaladas, na medida em que as suas ordens não envol­
vessem desobediência a Deus e ao seu Profeta. Baseavam-
-se, antes de mais, no Alcorão e na Sunna, mas insistiam Sunna: ver p. 87.
também na importância do consenso comunitário - o
idjmâ’. Assim preocupado com a paz comunitária, o sunismo Idjmâ>: acordo unânime da um­
opunha-se fortemente ao legitimismo dos xiitas e ao par- ma ou, mais restritamente, dos
teólogos reconhecidos numa
ticularismo insurreccional dos carijitas: a concepção do
certa época.
imã, como chefe supremo da comunidade, difere pro­
fundamente nestas três famílias do islão. Os sunitas ten­
diam a ver no califa apenas o que organizava a aplicação
da Lei religiosa, deixando aos especialistas o cuidado da
sua interpretação.

A elaboração do direito. A Lei religiosa, ou sharVa, está,


com efeito, na base quer da vida pública do islão, quer
da vida privada do muçulmano. A sharVa apresenta-se
como o conjunto dos comandos da Lei, contidos no
Alcorão e na Suna. Ao lado desta lei, o fiqh, jurisprudên­
cia ou direito muçulmano, é a interpretação da sharVa
pelos fuqahâ\ ou juristas, do islão. Nos reinados dos pri­
meiros califas abássidas, o pensamento jurídico foi pro­
fundamente influenciado pela lógica grega e precisou o
sentido das disposições a aplicar tanto no domínio público
como no domínio privado. Esta elaboração do fiqh apoia-
va-se em quatro fontes, as únicas reconhecidas como legí­
timas: o Alcorão, a Sunna, o idjmâ’m consenso dos sábios
da umma, e o qiyâs ou raciocínio analógico que faz inter­
vir a reflexão lógica. Este esforço de interpretação, ou
idjtihâd, envolveu uma grande efervescência intelectual.
O recurso às hadiths levou à constituição de grandes colec-
tâneas, como a de al-Bukhâri (falecido em 870), a leitura
do Alcorão foi defmitivamente codificada, grandes obras
de exegese corânica vieram a público, em especial a de

143
al-Tabari, também conhecido como historiador (falecido
em 923). Desde o final do séc. vin, apareceram quatro
escolas jurídico-religiosas (muitas vezes impropriamente
qualificadas como ritos); retiram as suas denominações
dos respectivos fundadores e repartem-se em grandes con­
juntos regionais: no Próximo Oriente, os hanafitas (de
Abü Hanifa, morto em 763) e os xafiitas (de al-Shâfi’í,
falecido em 820); no Magrebe, os hanbalitas (de ibn Han-
bal, falecido em 855); e na Península Ibérica, os mali-
quitas (de Mâlik ibn Anas, que morreu em 795). Se estas
escolas divergem em questões doutrinais e, sobretudo,
metodológicas, elas convergem nos princípios funda­
mentais.

O mutazilismo. O desenvolvimento das ciências reli­


giosas e a influência da filosofia grega, conhecida através
das traduções de Aristóteles, permitiram uma intensa refle­
xão doutrinal, designadamente com o aparecimento do
mutazilismo. O recurso, pelos seus adeptos, à razão como
meio para compreender o Alcorão e o desenvolvimento
de concepções teológicas originais como a da criação do
Alcorão, levantaram contra eles os sunitas. Al-Ma’mún ten­
tou, no princípio do séc. ix, impor o mutazilismo como
doutrina oficial. As razões desta tentativa são ainda lar­
gamente discutidas. O triunfo do mutazilismo teria, no
plano político, implicado provavelmente um papel mais
autoritário do califa, conferindo-lhe um direito a guiar a
umma não só mediante a execução da Lei, mas também
através da sua compreensão, colocando-o assim acima dos
especialistas. Esta tentativa fracassou e os fuqahâ ’ sunitas
fizeram prevalecer a concepção de um califa apenas habi­
litado a fazer aplicar a Lei.

Os imãs atidas
■ Xiitas e carijitas
1 Alí m. 661

2 Hassan m. 669 3 Hussein m. 680 Xiitas. Afastados pelos Abássidas, os xiitas agruparam-
-se então apenas em torno dos descendentes de Alí e de
4 Alí Zain m. 712
Fátima. Rejeitando o realismo político dos sunitas, que
5 Muhammad al-Bâqir m. 731 reconheciam o califado dos Abássidas depois de terem
reconhecido o dos Omíadas, os xiitas mantinham-se liga­
6 Dja’far m. 765
I i
dos ao princípio de um poder detido por um Alida, her­
7 m. 760 7 Müsâ m. 799 deiro das prerrogativas do Profeta, imã detentor de luzes
secretas. Duas revoltas conduzidas pelos descendentes de
Hassan acabaram mal para eles: revolta de Muhammad e
9 Muhammad m. 835 de Ibraim em 762 e rebelião de 786, abafada em Fakhkh,
10 Alí al-Halí m. 868
perto de Meca, com um massacre ao qual apenas escapou
um príncipe alida, Idris, que se refugiou no Magrebe.
11 Hassan m. 874 ^99
Mais prudentes, os descendentes de Hussein atravessaram
I esse período de perseguições sem se manifestarem, entre­
12 Muhammad al-Mahdí m. 878
gando-se sobretudo a um esforço de reflexão doutrinária.

144
O mundo muçulmano sob os Abássidas

Em diversas oportunidades o poder tentou, em vão, a con­


ciliação. Assim, al-Ma’mún admitiu a hipótese de aceitar
como herdeiro o imã alida Alí al-Rida. Em geral, porém,
foi a desconfiança, quando não a perseguição, que domi­
nou. Em 799, Músâ foi executado e, após a rejeição defi­
nitiva da tentativa de abertura que o mutazilismo repre­
sentara, foi fixada residência a Alí al-Hâdí e destruído o
mausoléu de Hussein em Querbela. Alargava-se, portanto,
o fosso entre xiitas e Abássidas. A morte do imã Dja’far
em 765 trouxe consigo a ruptura entre as duas principais
correntes do xiismo. Se é verdade que todos reconheciam
uma só linhagem de imãs legítimos - embora, na reali­
dade, nenhum tenha exercido o poder -, alguns conside­
ravam que essa sucessão se tinha interrompido com Ismael,
o sétimo - são os Ismaelianos -, outros com o décimo Sobre os Ismaelianos e os Duodecimanos
ver pp. 153-154.
segundo - os Duodecimanos ou Imamitas.

Carijitas. Com os califas abássidas, o movimento cari-


jita foi praticamente extinto no Próximo Oriente: salvo
algumas revoltas locais rapidamente abafadas, deixou de
representar qualquer perigo sério para o poder central.
No Norte de África, pelo contrário, um dos principais
ramos dos carijitas, o dos ibaditas, desempenhou um papel
político de grande importância. Os aspectos principais da
doutrina dos carijitas tinham-se esclarecido a partir de
Siffin: por oposição aos sunitas e aos xiitas, consideravam
que o califado deveria caber ao melhor muçulmano, sem
distinção de família nem de origem. Mas os traços defi­
nidores desse melhor muçulmano prestavam-se a discus­
são. E foram sobretudo os carijitas a dividir-se sobre a ati­
tude a adoptar para com os muçulmanos culpados de uma
infracção à fé, ou seja, para com os muçulmanos julgados
infiéis. À intransigência dos azraquitas, que os levava a
considerar como terra de infiéis o país ocupado por outros
muçulmanos, opôs-se a moderação dos sufritas e dos iba­
ditas, que admitiam a coexistência de várias tendências
num mesmo território.

Aspectos geográficos do poder califa! ■

O poder do califa aplicava-se desigualmente no inte­


rior do Império. Xiitas e carijitas não o reconheciam, mas
houve também, num espaço que não conheceu substan­
ciais alargamentos, secessões regionais, principalmente no
Ocidente, que já anunciavam a ulterior fragmentação do
mundo abássida.

O Ocidente muçulmano. Para lá da Ifriqíya, Bagdade


não tinha conseguido assegurar o seu controle sobre os
Berberes do Magrebe e perdera-o totalmente na Hispânia.

145
Aqui, com efeito, um omíada que escapara ao massacre
de 750, Abd ar-Rahmân (Abderramão), conseguira fazer-
Ver mapa p. 390 A. -se proclamar emir de al-Andalus. Os seus esforços e os
dos seus primeiros sucessores foram dedicados a garantir
a respectiva autoridade sobre essa província muçulmana
tão diversificada: árabes, divididos em tribos do Norte e
Muladis: indígenas cristãos do Sul, berberes, muladis, defrontavam-se entre si e opu­
convertidos ao islão na Hispâ- nham-se ao poder emiral instalado em Córdova. No en­
nia muçulmana.
tanto, já se esboçava um Estado organizado segundo o
Moçárabes: indígenas que se
mantiveram cristãos na Hispâ- modelo abássida e que uma eficaz política fiscal, causa prin­
nia muçulmana. cipal das revoltas moçárabes, dotou de importantes recur­
sos. Sem que tenha havido ruptura oficial, é evidente que
a fundação de um emirado omíada significava uma ampu­
tação no território abássida.

O Magrebe. A consolidação do emirado de Córdova


foi facilitada pela evolução que então se produziu no
Ver p. 111. Magrebe. Desde 776, ibn Rustum tinha conseguido fun­
dar em Tâhert um principado carijita de tendência iba-
dita, unido por laços de amizade a outro principado cari­
jita, mas sufrita, organizado em torno de Sidjilmâsa nos
anos 770. No começo do séc. IX, Bagdade atribuiu a Ibrâhim
ibn al-Aghlab, filho de um oficial jurassaniano, o emirado
de Cairuão a título hereditário, mediante renda anual.
Os Aglábidas organizaram a sua segurança restaurando
Ribât: ver p. 224. fortalezas e construindo ribats, como o de Susa; com algum
sucesso, tentaram manter o equilíbrio numa população
em que se justapunham uma minoria árabe, sobretudo
implantada em Cairuão, persas e numerosos berberes.
Estes últimos, no Sul, deixavam-se seduzir de bom grado
pelo carijismo, então em pleno desenvolvimento no
Magrebe. Era, pois, todo um conjunto berbere e ibadita
que envolvia o país aglábida, limitado à Ifríqiya. Finalmente,
a Oeste, acentuando a fragmentação político-religiosa do
Magrebe, um xiita escapado ao massacre de Fakhkh, Idris,
tinha fundado em 788 um pequeno Estado, que se esbo­
roou numa série de principados, notabilizado pela cidade
de Fez, fundada em 808. Os Idríssidas não controlavam
nem o Rife nem a planície atlântica.
O Magrebe, entre o litoral do Mediterrâneo e a África
Negra, desempenhava um papel de grande importância
pelas suas relações comerciais e culturais quer com o
Ocidente quer com as regiões sub-sarianas. Como os
Romanos, os Vândalos e os Bizantinos antes deles, os
Aglábidas desenvolveram uma activa política marítima que
os levou a empreender, a partir de 827, a conquista da
Sicília. Este dinamismo mediterrânico era sustentado por
uma próspera economia. O resto do Magrebe voltava as
costas ao mar. Através do Sara, Tâhert tinha estabelecido,
via Uargla, contactos com o Sudão e Gao, no vale do Níger.

146
O mundo muçulmano sob os Abássidas

Aqui organizara-se, talvez desde o início do séc. IV, o reino


do Gana, primeiro império da África Negra Ocidental,
rico em ouro vindo das florestas meridionais. Tâhert servia
assim de intermediário entre o Sudão e a Ifríqiya. Para
além da fragmentação político-religiosa, uma forma de
equilíbrio tinha-se pois instalado entre a zona interior ber­
bere e ibadita, dominada pelo imã de Tâhert, e a Ifríqiya,
fiel ao sunismo e ligada por mar à Sicília e ao Oriente.
O Ocidente muçulmano iniciava deste modo uma evo­
lução absolutamente original, fora de qualquer controlo
efectivo de Bagdade, com os Aglábidas dispondo, na prá­
tica, de total independência.

O mundo iraniano. Sobre o mundo iraniano, o cali­


fado mantinha toda a sua autoridade, a despeito de várias
revoltas, como a de Bâbak, no Azerbaijão, entre 816 e 838,
ou a de Mazyâr, no Tabaristão, pouco depois. Entretanto,
no princípio do séc. ix, várias famílias começavam a adqui­
rir uma importância regional. Em 813, al-Ma’mún, para
recompensar o seu general iraniano, Tâhir, nomeou-o
governador do Jurassã onde, durante meio século, a famí­
lia deste gozou de uma total independência. Do mesmo
modo, Bagdade favoreceu a ascensão de uma família da
aristocracia iraniana convertida ao islão, os Sâmâ-Khúdat,
atribuindo-lhes postos importantes na Transoxiana, base
da futura dinastia dos Samânidas.
A eliminação, por Hârún al-Rashid, em condições ainda
controversas, dos Barmácidas iranianos, explica, sem dúvida,
que uma fracção da aristocracia persa tenha dado provas,
a partir de então, de uma certa reserva. Viu-se, por vezes,
na guerra civil que opôs os dois filhos de Hârun al-Rashid,
uma confrontação entre Árabes e Iranianos, com estes
últimos a apoiarem al-Ma’mún que sairia vitorioso. Na rea­
lidade, foram as províncias orientais, nomeadamente o
Jurassã, e não o Irão no seu todo, que alinharam por al-
-Ma’mún, em quem viam o defensor das suas aspirações,
contra al-Amín que tentava reforçar a posição do poder
central. O triunfo de al-Ma’mün explica-se pelo apoio des­
sas regiões que, desde a propaganda abássida no começo
do séc. viu, eram zonas de intensa arabização e islamiza-
Ção.
Na periferia oriental do Império acentuava-se a atrac-
ção do mundo turco, onde o islão continuava a difundir-
-se, veiculado pelos mercadores e pelos ghâzís, esses com­
batentes voluntários da fé. Às portas da Transoxiana, as
tribos carluques começavam a acolher a nova religião.
Cada vez mais numerosos, os mercadores muçulmanos
frequentavam a capital dos Khazares, Itil, ao mesmo tempo
que as conversões cresciam entre os Búlgaros do Volga.

147
As terras centrais. A base territorial do califado conti­
nuava a ser sobretudo a zona das primeiras conquistas,
das terras centrais islâmicas - Iraque, Síria, Arábia, Egipto.
Mas a calma estava longe de reinar aí. Revoltas xiitas per­
turbavam o Irão e alastravam à Síria e à Arábia; mistura­
vam-se com as confrontações entre tribos árabes, sempre
graves na Síria, e com o conflito entre Árabes e Iranianos
nos círculos que rodeavam o califa. No entanto, era lá que
se encontrava o coração da vida económica e se forjava
uma sociedade nova, urbana, dominada já não pela aris­
Kuttab: ver p. 201. tocracia beduína, mas pelos grandes mercadores e os kuttâb,
portadores de uma nova cultura.
Por aí também continuava a dar-se o encontro entre
mundo muçulmano e mundo bizantino. De 775 a 809,
foram retomadas as ofensivas muçulmanas - após o abran­
damento que se seguiu à revolução abássida -, que se
desenvolveram da Síria Setentrional à Arménia. Entretanto,
já Hârún al-Rashid se preocupava menos com conquistas
definitivas do que com o reforço da fronteira, que foi
organizada em unidades autónomas: do Norte da Síria ao
Eufrates, cidades fronteiriças protectoras constituíram a
Awâsim: zona fronteiriça, apoia­ região dos Awâsim, precedida pela região dos Thughür con­
da nas cidades que garantiam tinuamente disputada. Esta consolidação mostrava-se tanto
a protecção do Império (lite­
mais útil quanto a aliança dos Bizantinos com os Khazares
ralmente, «as protectoras»).
No séc. x, a capital das Awâsim alargava então as zonas de combate às regiões caucasia­
é Antioquia. nas. Entre estas, a Arménia era pouco segura: mantivera-
Thughür: praças raianas, situa­ -se profundamente cristã, apesar da presença de postos
das na vanguarda das Awâsim,
muçulmanos, mas retalhada em pequenos principados
numa espécie de no man’s land.
arménios rivais. Alcançaram-se êxitos notáveis, como a
tomada de Amórion em 838, mas não tiveram sequência.
A grave derrota de um exército muçulmano na Ásia Menor
em 863 já testemunha a eficácia da reorganização bizan­
Ver p. 120. tina. Nesse mesmo período, embora independentemente
de Bagdade, muçulmanos conseguiram, em 827, apoderar-
-se de Creta, agravando a ameaça marítima contra Bizâncio.
Foi nessas terras centrais que se manifestaram os pri­
meiros elementos da crise que, em breve, iria abalar o
poder. No decurso da guerra civil entre al-Ma’mün e al-
-Amin, os dois filhos de Hârun al-Rashid, manifestara-se
a necessidade de o califa dispor de uma força armada leal,
que se mantivesse afastada das querelas religiosas. Os Juras-
sanianos tinham demasiada consciência de terem sido os
elementos determinantes da vitória para estarem segu­
ros; homens do interior do Império eram muitas vezes
Mameluco: escravo branco. parte interessada nos acontecimentos que aí se desenro­
Samarra: residência dos cali­ lavam, além de que os governadores taíridas começavam
fas abássidas de 836 a 883, si­ a monopolizar o seu recrutamento. O califa al-Mu’tasim
tuada nas margens do Tigre a (833-842) decidiu rodear-se de uma guarda mais segura,
uma centena de quilómetros
a montante de Bagdade.
que escolheu entre os mamelucos, capturados em jovens
na Ásia Central e nas estepes, e cuidadosamente educa-
O mundo muçulmano sob os Abássidas

dos numa ortodoxia simples. Esta introdução dos Turcos


nos meios do poder abriu, pelas suas consequências, uma
nova etapa na história do califado. A partir de 836, aliás,
o califa, inquieto com a agitação em Bagdade, hostil a
esses novos pretorianos, fez construir uma nova capital -
Samarra.
Assim, o ideal político islâmico de uma umma garan­
tindo por si própria a defesa e a extensão do dâr al-islâm
tinha fracassado, embora as tropas vindas do Jurassã tives­
sem, durante os primeiros tempos da dinastia abássida,
assegurado a substituição das forças sírias omíadas. Os mu­
çulmanos acabaram por entregar essa tarefa a tropas recru­
tadas fora do islão, mantidas nos limites da escravatura,
fáceis de comprar e modelar. Mas o recurso ao recruta­
mento servil significava a prazo a ruptura entre a socie­
dade civil, forças militares e poder político. E nesta evo­
lução, bem mais do que na emancipação das províncias,
que se devem procurar as causas da derrocada do poder
califal. Assim se explica o papel assumido, desde os anos
936-945, pelo comandante-chefe do exército.

2. O estilhaçar do Império
e do poder califal (c. 850-c. 950)

Além das múltiplas peripécias políticas, dois traços


dominam este período. Meio século após o Ocidente
muçulmano, o mundo iraniano inicia, por sua vez, a eman­
cipação política. Entretanto, no coração do Império, desor­ Emir al-umará: emir dos emi­
dens e crise económica provocadas pelo papel crescente res, título que designa o co­
mandante-em-chefe do exér­
dos Turcos conjugam-se para enfraquecer o califado abás­ cito. A partir de 936, os emir
sida. Em meados do séc. x, não há um mas três califas no al-umará deixam de ser ex­
mundo muçulmano e o poder do de Bagdade está sin­ clusivamente chefes militares
gularmente limitado pela presença, a seu lado, de um emir para se tornarem chefes da ad­
ministração civil e exercerem
al-umarâ o poder efectivo. Ver pp. 155-
-156.

Fragmentação territorial do Império ■

O Magrebe. No Ocidente, prosseguiu inicialmente a


evolução iniciada no primeiro século abássida. Os Aglábidas
acentuaram os seus esforços no Mediterrâneo, juntando
às operações de conquista da Sicília a assinatura de acor­
dos comerciais com Amalfi e Gaeta. Os senhores de
Sidjilmâsa voltavam-se para o Sudão e esboçavam uma par­
ticipação no comércio transariano. Só o emirado de

149
Córdova se debatia com graves dificuldades, face ao desen­
volvimento de forças centrífugas. Os pequenos Estados
cristãos do Norte da Hispânia aproveitavam para se refor­
çar e mesmo para se expandirem.
Esta evolução foi bruscamente perturbada no início do
Ver mapa p. 390 B. séc. X, pela instalação em Ifriqiya de uma dinastia xiita,
cuja política imperialista afectou a maior parte do mundo
muçulmano.
Depois de ter derrubado, em poucos anos, os Aglábidas
e os Rustémidas de Tâhert, Ubayd Allâh instalou-se em
910 em Ifriqiya com os títulos de emir al-mu’minin e de
Mahdi: ver p. 106. mahdi. Fundava assim a dinastia e o califado dos Fatímidas
- Ubayd pretendia, com efeito, descender de Ali e de
Fátima. Ao mesmo tempo, os Fatímidas manifestam pre­
tensões que ultrapassavam largamente o quadro do
Magrebe Oriental, não passando a Ifriqiya da base de pre­
paração de uma empresa mais vasta, que consistia em des­
tronar os Omíadas de Córdova, os Abássidas de Bagdade
e os imperadores de Constantinopla. Mas defrontaram-se
com a hostilidade dos fuqahâ’ de Cairuão, defensores do
sunismo maliquita, e de toda uma parte do mundo ber­
bere. Efectivamente, depois de terem falhado as primei­
ras tentativas para conquistarem o Egipto, os Fatímidas
decidiram conduzir primeiro a sua ofensiva contra Córdova,
o que fizeram entre 915 e 920, uma vez assegurado o
controlo sobre o essencial do Magrebe, graças à aliança
com os Berberes Cutamas. A Sicília foi igualmente ocu­
pada. Mas a sua pesada política fiscal levantou contra
eles uma parte do mundo berbere, sobretudo os Zanatas
Ibaditas. Entre 943 e 947 estalou uma grande revolta,
dirigida por Abú Yazid, à qual se juntou Cairuão. Os
Fatímidas triunfaram, mas as consequências foram impor­
tantes. A leste, os Zanatas, que se mantiveram hostis após
a derrota, passaram a constituir uma cortina entre a
Ifriqiya e o resto da África. Os Fatímidas recuperaram o
Magrebe Ocidental e uma nova actividade se desenvol­
veu nos itinerários de Sidjilmasa para o Gana, dando aos
Fatímidas o ouro necessário à ofensiva que preparavam
contra o Oriente. Aproveitando uma crise económica,
í al-Mú’izz apodera-se do Egipto em 969, aí se instalando
i em 971. Desconfiando, por experiência, da Ifriqiya, entre­
gou o país a governadores berberes, os Ziridas. Com
\ Abderramão III (912-961), a Hispânia conheceu um perí-
j odo de apogeu. O emir, após ter conseguido unificar o
í país e rechaçar os perigosos avanços dos cristãos, assu-
j miu, por seu turno, o título califal em 929, em resposta
í às pretensões fatímidas.
í
Desde então, é todo o conjunto do Ocidente muçul-
j mano que deixa de pertencer ao Império Abássida.

150
O mundo muçulmano sob os Abássidas

O mundo iraniano. No Irão, as forças separatistas desen­


volviam-se igualmente. Os Taíridas foram eliminados do
Jurassã em 873 pelos Safáridas, enquanto os Samânidas,
solidamente implantados na Transoxiana, se desenvolviam
com plena autonomia, acabando, por sua vez, por suplan­
tar os Safáridas. A diferença das dinastias ocidentais, os
Samânidas não romperam com Bagdade e, por respeito
ao título califal, contentaram-se em ser emires. As institu­
ições abássidas foram conservadas, com uma nova termi­
nologia. A possibilidade de utilizarem localmente os ren­
dimentos da província favoreceu a sua expansão. O período
samânida, que se prolongaria até ao fim do séc. X, foi o
de um brilhante renascimento iraniano e de um grande
incremento comercial. Sem hostilizarem o Iraque, os
Samânidas preocuparam-se, de facto, com a tecedura de
laços mais estreitos com o mundo turco envolvente:
Carluques e Ghuz, que acabavam de aparecer junto ao mar
de Arai, Khazares e Búlgaros do Volga. Penetração reli­
giosa e expansão comercial caminhavam a par, e Bagdade
não deixou de se preocupar com isso. Todavia, a pro­
gressiva conversão dos nômadas turcos interditava, a longo
prazo, qualquer guerra. Muitos foram então recrutados
pelos Samânidas cujo exército, a princípio composto essen­
cialmente de indígenas, foi assim infiltrado por esses mer­
cenários turcos cuja docilidade nada tinha de exemplar.
Expansão comercial, notável desenvolvimento de Bucara
e acrescida pressão turca caracterizam, pois, o domínio
dos Samânidas. Mas, a pouco e pouco, interpõe-se uma
cortina entre eles e Bagdade com o desenvolvimento no
Irão Ocidental de outro autonomismo - o dos Buídas.
Descendentes de populações habitantes das montanhas
do Daylam ganhas para o islão xiita, os Buídas tinham
começado por se instalar no Irão Central, tendo um deles
assumido em 940 o governo do Fars. Alargaram, depois, Ver mapa p. 387 D.
a respectiva autoridade para sudoeste, depressa se encon­
trando em contacto com o Iraque, onde o califa era, há
alguns anos, presa dos chefes militares.

O centro do califado. No começo do séc. x, a autori­


dade directa dos califas abássidas não se exercia senão no
Iraque e na Mesopotâmia. Com efeito, também o Egipto
saíra do controlo directo de Bagdade. De 868 a 905, foi
dirigido pela dinastia dos Tulúnidas, nascida de um ofi­
cial turco, que se tornara praticamente independente.
Pouco depois, em 939, o país cai nas mãos de outro ofi­
cial, conhecido pelo título turco de Ikhshid. Tulúnidas e
Ikhshididas deram à sua província segurança e prosperi­
dade, até à conquista dos Fatímidas.
O abandono pelo califado do controle directo sobre
o Egipto explica-se pelo desenvolvimento, no próprio

151
Iraque, de graves dificuldades ligadas, em grande parte, ao
novo exército turco. A sua manutenção custava muito caro.
Qatâ’i: ver p. 105. Restavam poucas terras para conceder em qatâz. Assim, diver­
sas soluções foram adoptadas, como a nomeação de um chefe
militar para a direcção de uma província - foi o caso de ibn
Túlún no Egipto -, cujos rendimentos eram afectados em
prioridade ao exército. Houve também a atribuição a ofici­
ais, em regime de arrendamento, do imposto de uma região.
Com efeito, se o Estado garantia geralmente por si próprio
a cobrança dos tributos, noutros casos adquirira o hábito de
recorrer a um rendeiro, que se encarregava de todas as ope­
rações de colecta após ter entregue ao Estado a soma acor­
dada. Vê-se, assim, aparecer uma nova forma de concessão:
atribuiu-se a oficiais o imposto pago pelas terras de kharâdj
de um distrito, ficando eles com o encargo de pagar os sol­
dos das suas tropas. Esta concessão foi designada com o nome
Sobre o iqtâ, ver p. 180. de iqtâ’. Com ela eram transferidos para particulares os direi­
tos anteriores do Estado. E certo que a terra não mudava de
propriedade, mas os oficiais preocupavam-se mais com o
aumento dos seus rendimentos do que em desenvolver a
produção e não hesitavam em mudar de iqtâ’regularmente.
As consequências sobre a vida rural foram graves e desen­
volveram-se sobretudo a partir do séc. xi. Os Turcos, forta­
lecidos, intervieram cada vez mais na vida política, provo­
cando inevitáveis conflitos com as populações indígenas,
fazendo e desfazendo califas. Pela mesma época, desordens
económicas abalaram o Irão. De 869 a 878, os Zandj, escra­
vos negros utilizados nas plantações de cana-de-açúcar, revol­
taram-se e, durante vários anos, perturbaram todas as rela­
ções entre Bagdade e o golfo Pérsico. No final do séc. IX,
outra revolta - a dos Carmatas -, de natureza religiosa, afec-
tou, por sua vez, o Iraque e mesmo a Síria e a Mesopotâmia.
Os Carmatas transferiram, em seguida, a sua actividade para
o Bahrein, de onde continuaram a ameaçar as artérias vitais
do califado. As repercussões sobre o comércio e a vida rural
não podiam deixar de enfraquecer Bagdade.
Os Bizantinos procuraram explorar estas dificuldades.
Ver p. 120. Em 867, o imperador Basílio I começou a grande recon­
quista, tentando controlar sistematicamente as rotas das
invasões e alargar as suas fronteiras. Travado por um
momento, no fim do séc. IX, pelas ameaças búlgaras e rus­
sas que pesaram sobre Constantinopla, o movimento ofen­
sivo amplificou-se a partir de 897 com uma tripla acção
na Cilicia, Mesopotâmia e Arménia, onde os muçulmanos
tinham organizado um reino autónomo em Ani. Melitene
foi retomada em 935.
A ameaça bizantina facilitou o desenvolvimento na Síria
do Norte e na Mesopotâmia de dinastias árabes. Assim
cresceu a tribo dos Taghlibidas, de implantação pré-islâ­
mica, dominada pelos Hanidânidas: na primeira metade

152
O mundo muçulmano sob os Abássidas

do séc. x, controlavam toda a região de Mossul e cobiça­


ram mesmo Bagdade. Um membro dessa família, Saif ad-
Dawla, conquistou em 944 Alepo e.Homs, tendo o prin­
cipado que fundou brilhado com um vivo fulgor até à sua
morte em 967.

Aspectos doutrinais ■

A fragmentação territorial do Império era reforçada


no plano doutrinal por uma diferenciação acrescida entre
sunismo e xiismo; o carijismo, por seu lado, deixava de
desempenhar, fora do Magrebe, um papel importante na
evolução do mundo árabe.

Os xiitas. O xiismo tinha começado por ser um movi­


mento de contestação política dos califas no poder e de
reivindicação do imanado em exclusivo benefício dos des­
cendentes de Alí. Foi a pouco e pouco explicitado como
teoria ao mesmo tempo política e religiosa do poder. Mas
as divergências genealógicas quanto à linhagem dos imãs Ver p. 144.

legítimos cristalizaram em três concepções do xiismo e do


seu papel face às autoridades sunitas.

Os Duodecimanos. As perseguições tinham contribuído


para desenvolver, mais ou menos profundamente, aspec­
tos secretos, quando não esotéricos, acerca do tema do
imã oculto, cujo regresso se esperava. Tais aspectos eram
já claramente detectáveis entre os Alidas que, após a morte
de DjaTar em 765, tinham admitido a sucessão dos imãs
por Musa. Houvera, para eles, um imã até 878, data em
que morreu misteriosamente o décimo segundo desses
guias, Muhammad. Os Alidas admitiram que a desapari­
ção era temporária: o imã oculto voltaria no fim dos tem­
pos para restabelecer a verdade e a justiça. Foi o início
da «ocultação». Esta favoreceu uma certa passividade entre
os que mais tarde viriam a ser chamados os Duodecimanos
ou Imanitas: sem imã, na incerteza quanto à data do seu
regresso, eles abstiveram-se desde então de qualquer acção
violenta. A admissão do princípio da takiya permitiu-lhes Takiya: para os xiitas, dissi­
tomarem parte na vida política e religiosa do mundo abás- mulação, por prudência, das
respectivas crenças.
sida, dado que o imanismo estava muito espalhado no
Iraque, onde ganhou numerosos adeptos nos meios indis­
pensáveis ao funcionamento do aparelho governamental.
Conquistou também o Irão Ocidental: os Buídas eram
duodecimanos, à semelhança de certos meios árabes da
Síria, como os Hamdânidas.

Os Ismaelianos. A moderação, assente na expectativa


e na prudência, dos Duodecimanos não se encontrava nos
Ismaelianos. Para estes, o último imã visível e legítimo era

153
Ismael, bruscamente subtraído ao mundo. Mas enquanto
se aguardava o seu regresso como mahdi, podiam revelar-
-se imãs - de ascendência, por vezes, pouco clara - a alguns
iniciados, mantendo assim pequenos agrupamentos. Mal
conhecido nos seus primeiros desenvolvimentos e muito
complexo na sua doutrina, o movimento ismaeliano era
sustentado por organizações secretas de missionários ou
du’ât, que asseguravam uma propaganda frequentemente
eficaz. Assim, no final do séc. ix a doutrina ismaeliana
encarnou-se em dois movimentos: os Carmatas, que per­
turbavam a vida do Iraque, e, sobretudo, os Fatímidas de
Ifriqíya. Ubayd Allah fora precedido no Magrebe por um
Da’i (pl. du’ât): «o que ape­ da’i e os califas, que se instalaram numa residência signi­
la». Designa os propagandis­ ficativamente chamada al-Mahdiya, consideravam-se os
tas duma doutrina. esperados mahdis.

Os Zaiditas. Sejam Duodecimanos ou Ismaelianos, os


xiitas caracterizam-se pelo lugar concedido ao imã.
Efectivamente, para eles, a missão profética de Maomé
prolonga-se no imanado, cujos titulares, depositários da
Lei, são os únicos capazes de a interpretar. Mas uma ter­
ceira corrente afasta-se desta teoria. Os Zaiditas - do nome
de dois descendentes de Ali que se chamavam Zaid (o filho
de Hassan e o neto de Hussein) - recusam-se a reconhe­
cer uma única linha hereditária de imãs impecáveis e infa­
líveis. Para eles, qualquer descendente de Alí e dos seus
filhos se pode tornar imã, contanto que se imponha pelas
suas qualidades. Próximo da mentalidade e da doutrina
sunita, o zaidismo serviu de quadro a movimentos de auto­
nomia regional ou a revoltas sociais. Em 864, um grupo
conseguiu implantar-se no Tabaristão à volta de um imã
descendente de Hassan. Em 901, um segundo grupo enrai­
zava-se no Iémen, onde uma dinastia local, que invocava
uma descendência hassânida, se manteve até 1962.

O sunismo. O sunismo esforçou-se por resistir ao xiismo,


rejeitando na medida do possível qualquer inovação, a
priori susceptível de heterodoxia.
No domínio jurídico, o sunismo definiu-se pela adop-
ção dos quatro sistemas que tinham sido elaborados no
Ver p. 143. séc. viu. Assim chegava ao termo o esforço de reflexão que
até então caracterizara o islão. Perante a multiplicação de
ideias, por vezes divergentes, que resultavam da prática do
idjtihâd, começou a impor-se a concepção de que as ques­
tões essenciais estavam colocadas e já tinham recebido res­
postas e soluções definitivas. Toda a actividade no domínio
jurídico se restringiu à explicação e à aplicação da doutrina
estabelecida de uma vez por todas, com as suas quatro vari­
antes possíveis. Divulgaram-se tratados para conciliar a pres­
crição do direito e a prática efectiva e, nos casos difíceis.
O mundo muçulmano sob os Abássidas

consultavam-se jurisconsultos: os muftis. Esta atitude cul­


minaria, no séc. XI, no «fecho das portas do idjtihâd», segundo
a expressão tradicional: a prática da interpretação pessoal
é então substituída pela imitação dos antigos.
No domínio doutrinal, o sunismo definiu-se pela ade­
são a um certo número de teses teológicas entretanto for­
muladas. Ao lado das posições bastante fideístas de Ibn
Hanbal, que se tinha mostrado hostil ao uso de todo o
raciocínio dialéctico, Ash’ari (874-935) lançou as bases de
uma teologia quase oficial do sunismo, admitindo o recurso
à discussão e ao raciocínio para convencer o adversário.
A mesma inquietação face ao mais pequeno risco de
heterodoxia conduziu os meios sunitas a considerarem
com suspeição correntes religiosas mais originais que então
se revelavam. Tendências ascéticas manifestavam-se desde
o séc. VIII em certos meios muçulmanos, combinando-sfe
com formas de misticismo; os sufis caracterizavam-se então,' Sufis: místicos (de suf: lâ)
sobretudo, por um ideal de vida. O exame de consciên­
cia, a meditação prolongada, as práticas ascéticas não
tinham ainda nada que fosse susceptível de chocar. Mas
nos sécs. ix e x os sufis começaram a ter uma linguagem
nova, abrindo caminho à busca do amor divino. Os pro­
pósitos quase extáticos de homens como al-Hallâdj inquie­
taram os meios oficiais. A condenação de al-Hallâdj e a
sua crucificação em 922 testemunham essa inquietação
do sunismo perante as inovações e mostram como, no
islão, a vida espiritual estava ligada à vida política e social.

Instabilidade política ■

Os elementos de crise eram, portanto, múltiplos: eman­ Os califas abássidas


(cont. da p. 162)
cipação das províncias, desordens económicas, progresso
do xiismo explicam a instabilidade que caracteriza este al-Muntasir (861-862)
al-Musta’in (862-866)
segundo século abássida. Em 861, o assassínio de al- al-Mu’tazz (866-869)
-Mutawwakil marcou o início de um período de anarquia, al-Muhtadí (869-870)
al-Mu’tamid (870-892)
durante o qual os guardas turcos que controlavam Samarra al-Mu’tadid (892-902)
ergueram e derrubaram califas a seu bel-prazer, ao mesmo al-Muktafil (902-908)
tempo que os Zandj se revoltavam, e que Safáridas e al-Muqtadir (908-932)
al-Qâhir (932-934)
Tulúnidas se emancipavam. al-Râdí (93^940)
al-Muttaqi (940-944)
No califado de al-MuTamid, seu irmão al-Muwaffaq, al-Mustakfí (944-946)
actuando durante vinte anos como verdadeiro regente,
manteve a autoridade do califa que, em 892, se reins­
talou em Bagdade. Entretanto, acentuava-se o esgota­
mento do Tesouro, os Carmatas agravavam a situação e
os militares assumiam crescente importância. A situação
geral piorou a partir de 908. Os Hamdânidas dificulta­ A explicação de texto proposta pp. 17-19
uma boa ilustração desta evolução.
vam o abastecimento da capital. Instituíram-se os cali­
fados de Ifríqíya e da Hispânia.

155
Em 936, o governador do Iraque, Ibn Râ’iq, recebeu,
Emir al-umará: ver p. 149. com o cargo de emir al-umarâ’ (comandante-chefe do exér­
cito), a responsabilidade pela administração financeira e
a manutenção da ordem no conjunto do Império. Este
facto é novo. Assinala nitidamente o poder do elemento
militar na corte e sublinha a decadência do califado, desde
então limitado a funções religiosas e representativas.
Durante uma dezena de anos, diversos governadores
ocuparam esse posto, numa desordem crescente. Mas, em
945, o título de emir al-umarâ ’ foi assumido por um buída
que tinha conseguido entrar em Bagdade. A situação, em
si, não parecia nova, com a diferença, importante, de que
os Buídas eram xiitas e que o seu poder se estendia não
só sobre o Iraque mas também sobre o Irão Ocidental.
Um novo conjunto territorial era assim criado.

3. Novos conjuntos territoriais


e preponderância xiita
(cerca de 950-1050)

Em meados do séc. x já não existia um verdadeiro


Império Abássida. Os vários territórios que o compunham
tinham-se emancipado em graus diversos. O próprio califa
estava sob tutela e o seu poder era negado por dois rivais.
Mas a preponderância xiita e as divisões do mundo muçul­
mano suscitavam a pouco e pouco uma aspiração à uni­
dade e ao restabelecimento da ortodoxia.

■ Os Buídas

Organização. A entrada dos Buídas em Bagdade marca


o princípio de um regime que durou até 1055. Não ten­
taram perseguir os sunitas nem estabelecer um califado
alida, tanto por doutrina - o último imã tinha desapare­
cido - como por realismo: as regiões que controlavam
eram nitidamente de dominante sunita. Uma espécie de
condomínio foi assim estabelecido entre Abássidas e Buídas,
que detinham a realidade do poder.
Todos os órgãos governamentais ficaram na depen­
dência do emir, a começar pelo vizir. O califa apenas man­
teve um papel representativo, controlando mais ou menos
a vida religiosa e jurídica. O emir ficou com a responsa­
bilidade dos soldos e vencimentos, tornando-se a outorga

156
O mundo muçulmano sob os Abássidas

do iqtâ’ sistemática no Iraque. Entretanto, qualquer que Sobre o sistema do iqtâ’, ver p. 152.

tenha então sido a importância do exército, os Buídas sou­


beram conservar toda a sua autoridade sobre os chefes
militares. Preocuparam-se em recuperar os sistemas de
irrigação, as estradas, as pontes, gravemente danificadas
na época precedente, construíram palácios, acolheram
liberalmente homens de letras e de ciência.

Fraquezas. Mas o seu regime apresentava demasiadas


fraquezas. O contexto da época já não era favorável ao
Iraque, de onde se desviavam a pouco e pouco os gran­
des itinerários comerciais: o comércio do oceano Indico
passava cada vez mais pelo mar Vermelho - tendência que
os Fatímidas encorajavam - e as relações entre a Meso-
potâmia e a Síria eram afectadas pelas guerras que se
desenrolavam na Síria entre Bizantinos e Fatímidas. Estas
modificações económicas afectaram os mercadores, mas
também as receitas do Estado.
O exército, base do regime, contribuiu igualmente para
o enfraquecer. Consciente da sua posição, abusou dela.
Por outro lado, a tropa compreendia, a par dos daylami-
tas, turcos em número crescente. As oposições étnicas jun­
taram-se oposições religiosas, já que os Turcos eram suni-
tas. O encorajamento dado pelos Buídas a práticas culturais
xiitas, a celebração de festas, a construção de mausoléus
provocaram tensões com os sunitas. Além disso, o poder
buída pertenceu inicialmente a três irmãos cuja sucessão
implicou numerosas lutas intestinas. A concepção fami­
liar do poder própria do regime buída era favorável ao
desenvolvimento de tumultos, numerosos em Bagdade,
onde se manifestavam os ayyârun. Ayyârun: ver p. 203.

O declínio do poderio buída e o clima de insegurança


possibilitaram uma ligeira recuperação do poder califal
no começo do séc. xi. Esta tentativa manifestou-se desig­
nadamente pela restauração do sunismo em Bagdade e
achou a sua expressão na redacção, pelo grande cádi al-
-Mawardi (falecido em 1058), dos Estatutos Governamentais,
nos quais definiu com precisão os diferentes aspectos da
função califal. Se é indubitável que o califa não dispunha,
no começo do séc. xi, dos meios materiais para readqui­
rir o seu poder, ele podia ao menos aspirar a um novo
protector mais ortodoxo e também mais eficaz em rela­
ção aos Fatímidas.

Os Fatímidas ■

Eles fizeram do Egipto a verdadeira potência do mundo


arábico-muçulmano. Logo a seguir à conquista, fundaram
uma nova capital, al-Qâhira (o Cairo), e a Mesquita de al-

157
-Azhar. O seu objectivo era o estabelecimento do xiismo
no mundo muçulmano pela eliminação do califado abás-
sida de Bagdade, o que determinou neles um verdadeiro
imperialismo. Embora xiitas, os Buídas não reconhece­
ram as suas pretensões.
Procedente do Cairo, um verdadeiro exército de mis­
sionários, dirigidos por um dâ’i al-du’ât, esforçou-se, no
mundo abássida, por convencer os sunitas e unir os xii­
tas. No próprio Egipto, os Fatímidas deram, entretanto,
provas de realismo. A sua atitude para com os sunitas osci­
lou entre a tolerância e a perseguição. Os cristãos parti­
cipavam na vida económica do país e ocupavam altas fun­
ções. O mesmo se passava com os judeus, como o atestam,
no que respeita às suas actividades bancárias, os documen­
Geniza: termo hebraico, de­ tos encontrados na Geniza do Cairo.
signando um lugar onde es­
tavam depositados os escritos Expansão. A expansão territorial foi igualmente uma
em hebreu susceptíveis de con­
ter o nome de Deus. Trata-se,
preocupação dos Fatímidas. Entre 970-971 colocaram sob
neste caso, do arquivo de uma seu controle Meca e Medina. Mas a grande questão era
sinagoga. sobretudo a dominação da Síria, que se interpunha entre
eles e Bagdade. Em 970, conseguiram ocupar Damasco,
Ver p. 119. mas defrontaram-se com a reconquista bizantina, ani­
mada especialmente por João Tzimístis, e com as divi­
sões árabes. Na África do Norte, tinham praticamente
renunciado a qualquer expansão, deixando a Ifriqíya aos
Ziridas que romperam com eles em 1051. Conseguiram
estabelecer indirectamente a sua autoridade sobre o
Iémen. Mas, em definitivo, os sucessos alcançados foram
modestos.

Desenvolvimento económico do Egipto. O Egipto, que


constituiu, portanto, o essencial do seu domínio, conhe­
ceu então um desenvolvimento comercial absolutamente
notável, já esboçado no tempo dos Tulúnidas e dos
Ikhshididas. Produções agrícolas abundantes e variadas,
alimentares e industriais, permitiam a exportação. Desen­
volveram-se os diferentes sectores do artesanato e uma
rede de relações comerciais uniu o Egipto à índia, à Sicília
e à Península Ibérica, e sobretudo às cidades marítimas
de Itália, nomeadamente Pisa e Amalfi. Alexandria tor-
nou-se um dos maiores portos do Mediterrâneo.
As circunstâncias exteriores eram favoráveis a esta
expansão. O comércio pelas rotas caravaneiras das este­
pes e da Ásia Central começava a sofrer com as desloca­
ções dos povos turcos. O comércio oriental preferia, assim,
os itinerários marítimos. A via do golfo Pérsico tornara-
-se menos segura, tanto na própria navegação, ameaçada
pelos piratas, como nas estradas que dele partiam para o
Iraque e a Mesopotâmia. Os Fatímidas souberam explo­
rar esta situação.

158
O mundo muçulmano sob os Abássidas

Administração. No interior do país, foi rapidamente


instalada uma administração centralizada, hierarquizada,
com um vizir que era, antes de mais, um agente executor
da vontade do califa. A instabilidade é a grande caracte­
rística do vizirado fatímida. A sucessão califal resultava
normalmente de uma designação expressa do predeces­
sor em favor de um dos seus parentes próximos - mas não
necessariamente do filho mais velho -, tendo este sistema
funcionado regularmente, sem levantar objecções sérias,
até ao fim do séc. xi.

O enfraquecimento. Um exército rodeava os califas.


Compunham-no Berberes, aos quais se juntaram poste­
riormente Turcos, Daylamitas, Negros. A semelhança do
exército dos Buídas, os conflitos internos assumiram o
aspecto de verdadeiras rivalidades étnicas e foram larga­
mente responsáveis pelo enfraquecimento do poderio fatí­
mida. Insuficientes cheias do Nilo provocaram situações
de penúria geradoras de convulsões sociais em 1024-1025,
1054-1055 e em 1065-1072. Manifestaram-se também agi­
tações religiosas no califado de al-Hâkim, o único califa
a seguir uma política de rigorosa ortodoxia xiita, acom­
panhada por uma perseguição dos cristãos. Ele esteve na
origem da destruição da Igreja do Santo Sepulcro, em
Jerusalém. Aquando da sua morte, alguns quiseram fazer
admitir a sua divindade e estiveram na origem da seita
dos Druzos.
As dificuldades foram tais que, em 1073, o califa teve
de fazer apelo ao comandante das tropas da Síria - Badr,
um antigo escravo arménio ao qual concedeu o título
de chefe dos exércitos, director dos missionários e vizir.
A sua rigorosa política interna permitiu consolidar o regime
fatímida. A partir dessa época, os vizires asseguraram a
maior parte das funções de autoridade e de governo. Mas
o califado fatímida encaminhava-se, por entre perturba­
ções várias, para o seu fim, apressado pela sua impotên­
cia na luta contra os Cruzados e, mais ainda, pelo resta­
belecimento da ortodoxia sunita no Próximo Oriente.

Para aprofundar este capítulo

Além dos manuais gerais citados nas págs. 13-14, deve­


rão ser utilizadas as indicações bibliográficas de C. CAHEN,
Introduction..., pp. 131-132 (cit. pág. 12), e os artigos da
E. L/2 (cit. pág. 12) referentes às diversas dinastias: Abás­
sidas, Buídas, Fatímidas, etc...

159
Sobre o califado abássida: os trabalhos recentes mais
importantes são em inglês: M. A. SHABAN, citado na pág. 13;
J. LASSNER, The Shaping of Abbâssid Rule, Princeton Univ.
Press, 1980; R. MOTTAHEDEH, Loyalty and Leadership inEarly
Islamic Society, Princeton Univ. Press, 1980; H. KENNEDY,
The Early Abbâssid Caliphate. A Political History, Londres,
1981; P. CRONE, M. HiNDS, God’s Caliph. Religious Authority
in theFirst Centuries oflslam, Cambridge Univ. Press, 1986.
O mesmo se passa quanto ao estudo do exército e do
seu papel político: P. CRONE, Slaves on Horses. TheEvolution
of the Islamic Polity, Cambridge, 1980; D. PlPES, Slaves Soldiers
and Islam: the Genesis of a Military System, Yale Univ. Press,
1981.
Sobre a administração abássida: deverão consultar-se
os numerosos artigos da E. I./2 (cit. pág. 12): Bayt al-mâl,
Díwân, Iktâ, Kâtib, etc., assim como os trabalhos de D. SOUR-
DEL, Le Vizirat à Vépoque abbâsside, 2 vols., Damasco, 1959-
-1960; e Gouvemement et administration dans VOrient islami-
que jusqu’au milieu du XIe siècle, Leyde, 1988.
Sobre os aspectos regionais: a bibliografia é muito
abundante. Refiram-se em primeiro lugar os artigos da E.
I./2 (cit. pág. 12): Andalus, Ifríqiya, Iran, etc., e as obras
citadas na pág. 14. Entre os trabalhos recentes, quanto ao
Irão, E. L. DANIEL, The Political and Social History of Khurâsân
under Abbâssid Rule: 748-829, Minneapolis-Chicago, 1979;
R. W. BULLIET, The Patricians of Nishapur. A Study in medie­
val islamic social History, Cambridge, Mass., 1972; assim
como os artigos, em francês, de M. Rekaya, sobre os movi­
mentos revoltosos (em Studia Iranica, 1973, Rivista degli
Studi Orientali, 1973-1974, Studia Islamica, 1984). Quanto
à Ifríqiya: M. TALBI, LÉmirat aghlabide, Paris, 1966. Quanto
à Hispânia: P. GuiCHARD, Structures orientales et occidentales
dans lEspagne musulmane, Paris, 1977; R. BARKAI, Cristianos
y Musulmanes en la Espana medieval (El enemigo en el espejo),
Madrid, 1984; Th. Glick, Islamic and Christian Spain in the
Early Middle Ages, Princeton, 1979. Quanto ao Egipto: o
estudo de Th. BlANQUIS sobre Al-Hâkim em Les Africains,
t. XI, Paris, 1978, e vários artigos (em Annales Islamologiques,
1972, Joumal of the Economic and Social History of the Orient,
1980, entre outros). Sobre a Síria: a tese de Th. BlANQUIS,
cuja publicação está em curso no Instituto Francês de
Damasco.
Sobre as relações com Bizâncio: ver as indicações gerais
da pág. 14 e, ainda, W. FELIX, Byzanz und die islamische Welt
in fruheren 11 Jahrhundert, Viena, 1981, e Y. LEV, «The
Fatimid Navy, Byzantium and the Mediterranean Sea, 909-
-1036», Byzantion, 1984.

^
160
10
A vida rural
(sécs. vni-xi)

Nos campos bizantinos, tal como nos do mundo muçulmano, este período é largamente marcado pela
continuidade. Não há qualquer revolução técnica, mas há uma larguíssima difusão geográfica das
técnicas antigas. O regime jurídico da propriedade, inalterado no mundo bizantino, instala-se no
mundo muçulmano sem modificar a sorte dos camponeses. Mas a principal diferença entre as duas
civilizações reside, sem dúvida, no facto de, em Bizâncio, o essencial das forças vivas estar nos cam­
pos, enquanto que, no mundo muçulmano, os campos estão sob a dependência económica e social das
cidades. Em ambos os casos, no séc. xi, esboçam-se ou amplificam-se nos campos profundas mudan­
ças sociais.

1. O trabalho da terra

No Império Bizantino ■

As técnicas. As técnicas pouco evoluíram desde o Impé­


rio Romano, pelo menos segundo o que dizem as nossas
magras fontes. De resto, as condições tanto climatéricas
como pedológicas não reclamavam as mudanças que o
acesso a terras pesadas e a maciços florestais exigia no
Ocidente. O instrumento aratório continua a ser o arado
sem rodas; nele não se regista qualquer progresso no modo
de tracção, que se efectua com o auxílio de uma junta de
bois. Por modestos que fossem estes instrumentos, nem
todos os camponeses os possuíam, sendo nítido o corte
entre os que dispõem de uma parelha de animais e os
outros. Mesmo os primeiros deviam, aliás, cavar a terra
com a enxada. De resto, o único progresso notável em
matéria de instrumentos foi a invenção de um alvião duplo
(lisgon).
A única tecnologia algo avançada que os Bizantinos
conheciam era a da rega: os terrenos próximos dos ribei­
ros podiam ser dotados de canais de irrigação, mas esta
faz-se quase exclusivamente por gravidade. Os Bizantinos
utilizavam correntemente a azenha; mas em muitos casos
eram azenhas de pequena dimensão, quase individuais,
por vezes construídas à medida de um simples canal de
irrigação. Outras azenhas eram propriedade de uma comu­
nidade rural. A sua construção era aparentemente livre

161
para qualquer proprietário de um curso de água ou de
um terreno que dela necessitasse. Daí a sua proliferação.
Os processos culturais são dominados pela oposição
entre a zona dos quintais e a das culturas de campo aberto.
Os quintais são valorizados com (poucas) práticas de ben­
feitoria; encontram-se em cada exploração, por pequena
que seja; os seus produtos são necessários ao equilíbrio
das explorações, mesmo de alguma amplidão. Nas zonas
de campo aberto domina a cerealicultura, mas nelas tam­
bém se vêem vinhedos e árvores de fruto. O dado de base
era o pousio: o modo de rotação das culturas é, no melhor
dos casos, bienal, apesar da presença importante de legu­
minosas, que proporcionam um contributo nutricional
qualitativamente importante. A criação de gado pratica-
se em pastos naturais ou nas zonas de baldio na periferia
da aldeia.

O habitat. O «Tratado fiscal» dito da Marciana dá uma


imagem precisa do habitat rural. Ao lado do habitat dis­
perso, deveras minoritário, muitas vezes pertença dos mais
Chôríon: ver p. 97. ricos, domina o habitat agrupado na aldeia (chôrion). Esta
é rodeada ou penetrada por quintais, estritamente deli­
mitados por valas ou paliçadas, onde se encontram poma­
res e vinhas. A volta deste núcleo, estendem-se as terras
cultivadas em campo aberto. Se não se pode morar na
aldeia, por se não ter aí casa ou quinta (é o caso dos
filhos de uma família numerosa), sempre se pode murar
um fragmento próprio de terreno - que parece indiviso
- e emparcelá-lo (agndzon). Há outras parcelas também
situadas na periferia, e de muito grande dimensão, que
não dispõem de residência para o dono, mas são traba­
lhadas por operários agrícolas ou escravos de senhores
Proasteion: grande parcela de ricos, residentes ou não na aldeia (proasteia). Na maior
terreno pertencente, na maior parte dos casos, estes domínios são loteados a rendeiros
parte dos casos, a um grande
ou parecos.
proprietário que não reside
nela. Apesar da coesão da aldeia, as práticas comunitárias
Pareço: camponês que não be­
neficia da plena propriedade não existem, salvo no caso do rebanho, comum à maio­
da sua terra, da qual é, no en­ ria dos aldeões e a cargo de um pastor assalariado. O reba­
tanto, o possuidor inamovível nho pasta fundamentalmente nos baldios, terras não atri­
enquanto pagar a respectiva buídas a indivíduos, que fazem parte do património da
renda. O seu direito sobre a aldeia. A cultura do solo constitui a ocupação essencial
terra é transmissível.
do pequeno camponês, que nunca possui mais do que
algumas cabeças de gado bovino, ovino ou caprino. Além
dos cereais, que são a base da produção e da alimenta­
ção, e das leguminosas, o camponês mantém um quintal
com diversas árvores de fruta e (ou) vinhas. A árvore
reveste-se de uma tal importância que o direito bizantino
chega a derrogar o princípio romano segundo o qual o
direito sobre o solo sobrepõe-se ao direito sobre o que
nele se encontra: a árvore plantada num terreno que,

162
A vida rural (sécs. viil-xi)

entretanto, passa para a posse de outrem, continua a ser


propriedade do plantador. A vinha não se limita aos quin­
tais, ocupando, pelo contrário, vastas zonas da povoação.
Nos grandes domínios, a principal exploração - ou,
pelo menos, a que mais retinha a atenção dos Bizanti­
nos - era a criação de gado. A vida de S. Filareto (final
do séc. viu) abre com a descrição da fortuna do santo,
situada na Paflagónia, e que era considerável; enumera
os seus rebanhos - vários milhares de cabeças de todas as
espécies -, mencionando a seguir, como bens secundá­
rios, quarenta domínios (proastáa), o que era muito, mas
não aos olhos do narrador. Isto explica-se, primeiro, pela
extensão das terras requeridas pelo trajecto dos rebanhos
e pelo preço elevado dos animais. Por outro lado, nessa
época faltam braços para cultivar os grandes domínios: a
exploração directa há muito que foi abandonada e os ren­
deiros são difíceis de encontrar.
Assim, se é verdade que a agricultura bizantina arranca
certos terrenos aos baldios e às terras de passagem, ela
não deixa de ser uma agricultura extensiva. A produtivi­
dade do trabalho é muito fraca. Os rendimentos cerealí­
feros médios situam-se entre 3 e 3,5 para um, ou seja, 4
a 5 qx por hectare. As produções, no entanto, são muito
diversificadas. Em certas regiões depara-se com culturas
especulativas de rendibilidade elevada (criação do bicho
da seda na Itália do sul).

No mundo muçulmano ■

A instauração do domínio muçulmano não envolveu


imediatas e profundas transformações económicas para
as regiões conquistadas: estas mantiveram, com bases rurais,
uma vocação comercial cujo pleno desenvolvimento fora
até então dificultado pela concorrência entre Bizantinos
e Sassânidas. Antes de se materializarem as condições de
desenvolvimento comercial característico do período abás-
sida, a terra apresentava-se como a fonte mais segura da
riqueza. E assim continuaria... A integração de regiões
diversas sob um mesmo domínio permitiu a difusão, num
espaço mais vasto, de certas técnicas e sobretudo de cer­
tas espécies animais e vegetais, por vezes desconhecidas
localmente.

As condições naturais. O domínio muçulmano é diver­


samente dotado pela natureza: vales do Egipto e do Iraque,
elevados planaltos iranianos e magrebinos, planícies lito­
rais proporcionam à agricultura possibilidades diferentes.
Entretanto, a sua extensão principal em latitude implica
uma certa uniformidade das condições naturais: nesses

163
vastos territórios encontram-se justapostas zonas desérti­
cas ou semidesérticas inaptas para qualquer povoamento
que não seja nômada e regiões que, geralmente pelo preço
de um laborioso trabalho humano sujeito a permanente
renovação, fazem figura de oásis. A altitude introduz, no
entanto, um elemento de variedade. O Império Muçulmano
mostra-se assim formado por uma série de núcleos de vida
sedentária fortemente povoados, separados por grandes
extensões praticamente vazias. Vida sedentária e vida
nômada são, pois, os dois aspectos complementares do
mundo rural muçulmano.

A irrigação. A irrigação é imposta pelo clima. Neste


domínio, as técnicas são muito elaboradas, sendo múl­
tiplos os processos que permitem captar e conservar a
água: barragens nos rios, grandes canais, canalizações
subterrâneas encaminhando a água das montanhas para
as terras de cultivo, processos elevatórios diversos, desde
Chaduf (cegonha): elevador de o chaduf do Egipto até às noras de engenho ou de rodas
balancé, comportando uma hidráulicas, poços artesianos, etc. O Egipto apresenta-
longa vara que bascula sobre
uma viga horizontal. Numa se como um caso muito particular: as cheias periódicas
das extremidades, um saco de do Nilo são cuidadosamente observadas e medidas pelo
couro faz as vezes de contra­ nilómetro de Fustât. Em matéria de rega, não há ino­
peso que desce até à água. vação no mundo muçulmano, mas sim a extensão de
Nora: aparelho elevador com­
portando uma roda de alca­ certas técnicas. Esta irrigação favorece a vida colectiva
truzes que se escoam num po­ e o habitat agrupado. A repartição da água é feita por
ço ou num curso de água. organizações locais. Os califas e os governadores velam,
A roda é accionada pela trac- aliás cuidadosamente, pela manutenção dos canais. A
ção animal ou pela corrente
do rio. manutenção da ordem pública em regiões como o Iraque
responde tanto a uma necessidade económica como
política.

As técnicas. Excluindo a rega, as técnicas rurais são


rudimentares. A charrua pesada não é desconhecida, mas
as terras secas do mundo muçulmano adaptam-se bem ao
arado simples, sem relha nem aiveca. A tracção animal
tem, assim, menos importância do que no Ocidente.
O estrume é raro e os ritmos agrícolas variam consoante
a terra seja irrigada ou não. O moinho de vento é pouco
conhecido, mas a azenha permite, nalguns grandes domí­
nios, accionar as prensas.
Esta permanência das técnicas é acompanhada de um
vivo interesse pelas questões agronómicas. Atestam-no
obras como A Agricultura Nabateia, de Ibn Wahshiyya, ou
os calendários agrícolas (do Egipto, de Córdova). A pri­
meira recorre largamente às fontes antigas; os segundos
baseiam-se num tipo de literatura destinado a esclarecer
o fisco sobre o desenrolar dos trabalhos nos campos.
Nenhum traduz uma verdadeira preocupação de melho­
ria do trabalho da terra. -=

164
A vida rural (sécs. vni-xi)

As produções. O mundo muçulmano é suficientemente


extenso para permitir, apesar dos limites climáticos, um
leque variado de produções. Certas regiões impressionam
pela diversidade e a riqueza das culturas. Importa, no
entanto, insistir no facto de que a ausência de dados quan­
titativos não permite medir nem a importância nem o
crescimento dessa produção: qualquer cartografia da pro­
dução agrícola não poderá deixar de ser falsa por excesso
de generalização.
De um modo geral, a produção caracteriza-se pela
omnipresença das culturas alimentares tradicionais, pelo
alargamento e melhoria de certas formas de criação de
gado, pela ausência quase absoluta na economia rural da
floresta, aliás tão necessária, e pela abundância das cul­
turas industriais.
O islão não provocou modificações nos regimes ali­
mentares: trigo e cevada permanecem os cereais de base;
por quase todo o lado, crescem a oliveira para o azeite
e a vinha para as uvas e, por vezes, para o vinho, a des­
peito das interdições corânicas. Estas culturas tradicio­
nais são acompanhadas, em certas regiões, pelo desen­
volvimento de espécies novas: a partir da índia, o arroz
penetra no Iraque e no mundo mediterrânico; a tama­
reira espalha-se pelas regiões quentes. Por outro lado, o
crescimento urbano suscita o desenvolvimento de uma
cintura de jardins e hortas, minuciosamente cultivados
(frutas e legumes).
A criação de gado - a dos sedentários e a dos nôma­
das - reveste-se de uma grande importância para os tra­
balhos hidráulicos, o transporte, a alimentação e certas
matérias-primas. Tal como no caso das culturas alimen­
tares, assiste-se, também aí, à difusão de certas espécies:
camelos de duas bossas da Ásia Central e dromedários da
Arábia alcançam o Irão-Mesopotâmia, os primeiros, e a
Síria, os segundos. Por razões climatéricas, os bovinos têm
uma importância reduzida relativamente aos carneiros,
cujas raças berberes se instalam na Hispânia. As florestas
são poucas fora das altas montanhas (Elburz, Tauro,
Líbano) e das zonas arborizadas da Península Ibérica e
do Magrebe. Este elemento capital da economia rural oci­
dental faz muita falta ao islão.
As culturas industriais são largamente produzidas e
constituem objecto de um importante comércio interno.
Trata-se, em primeiro lugar, das plantas têxteis: linho do
Egipto e da Djézira e algodão, largamente divulgado a
partir dessa altura no mundo mediterrânico, na Síria, no
Magrebe, na Sicília, na Hispânia. O papiro do Egipto e
da Sicília vai, a pouco e pouco, com a introdução do
fabrico do papel no séc. viu, competir com o cânhamo.

165
A cana-de-açúcar implanta-se em todos os terrenos pla­
nos, quentes e irrigáveis; dispendiosa, está organizada
como uma verdadeira cultura especulativa, nomeadamente
nos grandes domínios do Baixo Iraque. Importa ainda
referir todo um conjunto de plantas tintoriais e medici­
nais, de plantas odoríferas, etc.
Assim, ao nível da produção, a agricultura muçulmana
não trouxe nem técnicas nem culturas novas. O seu grande
papel foi o de ter permitido a importação e a difusão das
técnicas e das espécies, geralmente de oriente para oci­
dente, e o de provocar o fomento das culturas alimenta­
res e industriais em ligação com o desenvolvimento urbano.

As regiões agrícolas. Nenhuma região do Islão parece


gravemente deficitária em matéria agrícola; algumas mos-
tram-se até especialmente afortunadas e conseguem, por
via urbana, alimentar um comércio interno. O Ocidente
muçulmano, sobretudo, parece ter um alto nível de pro­
dução e ser o mais beneficiado pela introdução de cul­
turas novas. Os geógrafos árabes aprazem-se em descre­
ver a prosperidade da Andaluzia no séc. x, com as suas
huertas, os cereais, as árvores de fruta, a criação de gado.
Olivais, cereais e árvores fruteiras asseguram à Ifriqiya, até
finais do séc. X, uma notável prosperidade. Nestas pro­
víncias as carências são pouco sentidas, tendo-se mesmo
estabelecido um importante circuito de trocas não só entre
os agricultores sedentários e os pastores nômadas, mas
também entre o campo e a cidade. O Egipto é o grande
exportador de trigo, de algodão, de linho, de cana-de-açú-
car, e embora aí se manifestem, por vezes ao longo de
vários anos, períodos de grande penúria, é a província
mais favorecida do Oriente.
No Iraque, mantém-se o problema de saber se a con­
quista árabe implicou uma diminuição progressiva das
superfícies aráveis ou, pelo contrário, um aumento da pro­
dução. Recentes investigações de ordem arqueológica per­
mitiram concluir que as terras irrigadas eram menos exten­
sas no começo da época abássida do que nas épocas
anteriores. Mas, uma vez instalados em Bagdade, os cali­
fas desenvolveram uma consciente política agrícola pro­
movendo a recuperação das terras perdidas e a diversifi­
cação das culturas. Esta economia era porém frágil, sensível
às crises políticas, às carências de autoridade e às destrui­
ções dos canais. Assim se explica, no Iraque e noutras
regiões, a deterioração do nível de produção e da condi­
ção dos camponeses quando o poder central enfraquece,
como foi ali o caso a partir do séc. x.
Produção e nível de vida no campo são difíceis de ava­
liar porque, tal como o demonstra o regime da proprie-

166
A vida rural (sécs. viii-xi)

dade e da exploração do solo no islão, os produtos agrí­


colas chegam ao circuito económico não por correntes
comerciais de que os campos pudessem beneficiar, mas
por intermédio dos impostos e rendas pagos ao Estado e
aos proprietários citadinos. Embora as cidades passem
para o controlo da classe dos militares, ainda que estes
confisquem o poder político em seu benefício, os campos
permanecem colocados na dependência de categorias
sociais sem preocupações económicas, e para quem a
«região plana» não passa de uma simples zona de explora­
ção. E esta a evolução que se acentuará no séc. x.

2. A sociedade rural

No Império Bizantino ■

O período do séc. VIII ao séc. xi é dominado pelo cres­


cimento da grande propriedade à custa do pequeno cam­
pesinato independente, o que provoca e acompanha
mudanças importantes na organização social, militar e
mesmo política do Império.

Análise vertical ■

A oposição entre os poderosos (dunatoi) e os peque­ Dunatos: «poderoso» na hie­


nos (pénètai) não reflecte, no entanto, a exacta realidade rarquia económica e (ou) na
hierarquia das dignidades e
social dos campos onde a paleta das condições está bem funções.
guarnecida. A vida de Filareto dá um bom exemplo disso. Pénètai: pessoa que não é po­
Ele próprio é um rico proprietário, mas reside numa aldeia derosa («fraco»).
onde tem a mais bela casa. Os funcionários em trânsito
não se iludem. Aquando de tais visitas, vêem-se os «sedu­
tores de aldeia», que muitas vezes vivem afastados nas suas
terras (Atém), apressarem-se a levar a Filareto com que
tratar dignamente os seus hóspedes. Filareto, assediado
pelo Diabo, perde a pouco e pouco a fortuna, passando
assim a um camponês vulgar - com uma junta de bois,
um burro, um escravo... - , antes de se tornar num pobre,
a quem só resta a casa.
A mesma aldeia vê, portanto, conviverem lado a lado
o grande proprietário, os camponeses abastados que, em
qualquer caso, estão na sua dependência, os pequenos Pareço: camponês não pro­
proprietários, os pequenos camponeses não proprietários prietário, mas possuidor ina­
independentes (rendeiros ou parecos), os camponeses movível da sua terra enquanto
pagar a renda (pakton). Pode
pobres que apenas possuem a casa e o quintal, e os escra­ ceder o seu direito à terra.
vos. A escravatura há muito que deixou de ser o modo de

167
exploração dos grandes domínios: os escravos são cada
vez mais reduzidos, movimento de que Leão VI é ao mesmo
tempo testemunha e promotor no séc. ix. Não obstante,
no século seguinte, o Tratado Fiscal prevê ainda o seu uso
nos proasteia, ao lado dos assalariados e parecos. Os cam­
poneses das aldeias têm também um ou vários escravos,
que exercem simultaneamente as funções de criados de
quinta e de operários agrícolas.

Os pequenos e médios camponeses. Entre as duas cate­


gorias - os muito ricos e os que não têm nada ou quase
nada -, dispõe-se a massa compósita dos agricultores-explo­
radores. A cabeça, os médios proprietários, que são mui­
tas vezes os chefes da aldeia e entre os quais se recrutam
Estratiota: camponês proprie­ tanto os soldados dos temas ou estratiotas, como os sol­
tário sujeito ao serviço militar dados e suboficiais do exército central. A condição dos
em troca de importantes me­
estratiotas dá uma ideia do nível desse campesinato: no
didas fiscais e de protecção.
Ver p. 138. séc. x, Constantino VII considera normal que eles pudes­
sem possuir uma terra de um valor que podia ir até 4 libras
de ouro; a manutenção do seu guerreiro custava ao Império,
na época de Nicéforo (802-811), 18,5 nomismata por ano.
As protecções concedidas a esses soldados-camponeses mos­
tram claramente em que categoria se apoia o Estado:
«O domínio dos poderosos aumentou os males dos fracos
e, para quem saiba ver, ameaça arruinar completamente
o Estado... Porque um grande número de lavradores é
fonte de abundância, tanto para a produção de géneros
como para o pagamento dos impostos e o cumprimento
das obrigações militares» (Romano Lecapeno, 934).
A pequena e média propriedade está, em teoria, pro­
tegida pelo próprio funcionamento da aldeia. As terras
abandonadas são primeiro entregues aos outros contri­
buintes para que estes as explorem pagando o imposto
dos insolventes, só passando definitivamente a sua pro­
priedade uma vez decorridos trinta anos.
Para manter a unidade fiscal do chôrion - evitando, por­
tanto, que nele se instalem proprietários absentistas atra­
vés da compra de terrenos - existe a preempção: a com­
pra de uma terra de um aldeão só pode ser proposta, por
ordem, aos parentes, aos vizinhos imediatos, aos seus co-
contribuintes ou ao conjunto do corpo de aldeões; só
poderá ser proposta a um estranho ao chôrion após a expi­
ração de um prazo de trinta anos, o que dá aos beneficiá­
rios da preempção tempo para juntarem as somas neces­
sárias. E claro, também neste caso, que os principais
beneficiários destas medidas são os médios camponeses;
os pobres não podem, mesmo passados trinta anos, com­
prar uma terra.
No caso em que a terra não esteja disponível para a
compra, o médio camponês com capacidade para inves-

168
A vida rural (sécs. vni-xi)

tir - por exemplo para comprar outros animais e escra­


vos poderá encontrar terras para arrendar, seja sob a
forma de parceria (a meias), seja sob a forma de arren­
damento puro e simples a uma taxa muito vantajosa - o
décimo dos frutos. Ora os arrendatários são aqui, não
grandes proprietários, mas camponeses indigentes que
não têm o capital necessário para explorar a terra: os tex­
tos prevêem expressamente essa situação para o contrato
de parceria e, no segundo caso, a taxa da renda conduz
a essa conclusão. Naturalmente, à força de extensão, uma
família de médios camponeses pode aceder à condição
de grande proprietária. Basílio II, na novela de 996, dá o
exemplo de Filocaleto: este beneficiava na origem das pro­
tecções reservadas aos «fracos»; já rico, continuou a bene­
ficiar delas para enriquecer ainda mais; Basílio II redu-lo
à sua condição inicial. Mas casos destes eram, definitiva­
mente, muito raros.

A célula produtiva de base. No plano da exploração


do solo, deve evitar-se confundir grande propriedade e
grande exploração. Antes de mais, por causa da disper­
são muito frequente das terras dos grandes proprietários
que, muitas vezes, apenas possuem uma parte desta ou
daquela aldeia. Depois, e sobretudo, porque o regime de
exploração dos grandes domínios quase nunca é a admi­
nistração directa. As terras são arrendadas a rendeiros ou,
cada vez mais, a parecos, camponeses não proprietários
mas detentores do seu usufruto perpétuo e dispondo livre­
mente deste direito à terra. Estes habitam nas mesmas
aldeias, praticam as mesmas culturas e usam as mesmas
técnicas dos camponeses proprietários; simplesmente,
pagam rendas ao proprietário e o imposto é por vezes
colectado por intermédio deste último. Do princípio ao
fim do Império Bizantino, qualquer que seja o estatuto
jurídico da terra, a célula básica da exploração do solo é
a pequena ou média exploração familiar. Poucas coisas
diferenciam o pareço do camponês proprietário no plano
da condição económica.
Portanto, para além da propriedade do solo, e a des­
peito das solidariedades criadas no interior do chôrion, a
célula produtiva de base continua a ser a exploração fami­
liar. A família é entendida no sentido estrito do termo:
em cada geração, o novo casal estabelece-se na sua pró­
pria terra. A indivisão, bem como a família alargada, per­
manecem como excepções. Isto corresponde também ao
modelo cultural: a família-tipo possui a sua junta de bois
para puxar o arado e a quantidade de terra correspon­
dente, ainda que possam existir explorações melhor ou
pior equipadas. Esta exploração visa o que constitui um
ideal comum a todos os membros da sociedade bizantina,

169
embora podendo não ter o mesmo sentido para o mag­
nate e para o pequeno proprietário ou o pareço: a autar­
cia. A exploração camponesa tem exclusivamente em vista
produzir o que lhe permitirá semear na estação seguinte,
renovar o seu gado e os seus instrumentos, alimentar a
família e o criado e pagar o imposto e, eventualmente, a
renda. Os excedentes produzidos são irrisórios e não per­
mitem, tendo em conta o preço dos animais, dos utensí­
lios e da mão-de-obra, aumentar a exploração para além
da redução imposta pela próxima partilha sucessória.
O camponês não deixará a sua condição camponesa por
meios económicos.

Os poderosos. A categoria dos poderosos abrange dois


estados, aliás estritamente complementares: a riqueza, ou
seja o poder económico, e a detenção de autoridade, isto
é, o poder administrativo e, muitas vezes, militar. A defi­
nição dada pelos textos legislativos do séc. x assenta em
três noções. A riqueza primeiro: os textos legislativos do
séc. x não definem o limiar de riqueza acima do qual se
é poderoso, mas simplesmente o nível abaixo do qual se
é considerado um fraco e protegido enquanto tal - um
capital de 50 nomismata, que corresponde a uma explo­
ração de pequenas dimensões. O poder não começa evi­
dentemente neste limiar, até porque os estratiotas, que
podem possuir uma terra valendo 288 nomismata, são pro­
tegidos como os fracos. Mas sente-se claramente que a for­
tuna é um elemento essencial do poder ou da fraqueza.
A dignidade depois: a fronteira é constituída pela digni­
dade de espatário. A função por fim: todos os funcioná­
Sékrétikos: ver p. 136. rios civis e militares até ao nível de sékrétikos (civis) e esco-
lário (militares) na administração e no exército centrais;
os estrategos na administração provincial; todas as auto­
ridades eclesiásticas, seculares e regulares (bispos, chefes
de fundações piedosas...), são alinhadas entre os pode­
rosos.
Desencadeia-se, portanto, um duplo mecanismo. Os que
detêm a autoridade utilizam-na para oprimir os fracos e
comprar as suas terras. Os funcionários em causa não são
forçosamente ricos à partida: procuram, utilizando o poder
de que dispõem, dar a esse poder uma base socio-econó-
mica, que é necessariamente a terra. De facto, assim como
a actividade comercial lhes está interdita, também a acti-
vidade financeira lhes é vedada pela proibição de se exi­
gir uma taxa de juro superior a 4 por cento. Aliás eles
aspiram a integrar-se numa antiga aristocracia que é essen­
cialmente fundiária e na qual - segundo elemento do
mecanismo - se baseia a sua autoridade.
Esta antiga aristocracia é rica. Testemunho disso é a
peloponésia Danielis que, no séc. ix, lega ao imperador
A vida rural (sécs. vin-xi)

Basílio I mais de três mil escravos. E é poderosa, como o


prova, no séc. xi, o paflagónio Maurício ao pôr em armas
uma milícia privada para se defender contra os Turcos.
São-lhe naturalmente confiados importantes comandos,
sobretudo militares. A maior parte dos grandes chefes do
exército pertencem às famílias da aristocracia fundiária:
os Focas, os Tzimístis, os Maleinoi, os Skleroi, os Comnenos,
etc. Finalmente, ela serve-se do poder que obtém pela
sua riqueza para reforçar essa mesma riqueza. Os exem­
plos abundam: para retomar o de Filareto, o autor da sua
vida explica-nos ingenuamente como, quando a infelici­
dade começa a abater-se sobre ele, a sua sorte foi algo
adoçada por ser amigo íntimo de um funcionário fiscal
da província. Assim se vê quer a utilização do poder em
proveito da aristocracia fundiária, quer as ligações exis­
tentes entre esta e os funcionários desejosos de aumen­
tar os seus bens.

A luta em torno da pequena propriedade ■

O sistema do chôrion constituía um travão para os ape­


tites da aristocracia fundiária. Não totalmente eficaz, uma
vez que os grandes domínios faziam parte de comunas fis­
cais e, por isso, os respectivos proprietários gozavam, como
os outros, do direito de preempção. Este é exercido em
condições nem sempre claras, mas pode alargar-se por um
período de trinta anos. Por outro lado, as interdições de
compra estabelecidas pela legislação romana - sempre em
vigor - aos funcionários no exercício da sua administra­
ção, ainda que as pessoas encarregadas de as fazer obser­
var fossem os próprios funcionários, refreava os apetites
crescentes dos poderosos.
A partir do reinado de Basílio I, o problema da pequena
propriedade coloca-se com acuidade, em parte porque o
imposto camponês é desde então excessivamente pesado
para uma fracção deles. Basílio I aceita que os campone­
ses possam cultivar terras relativamente às quais não figu­
ram no registo fiscal, o que se traduz, em concreto, numa
atenuação da carga tributária. O seu filho Leão VI, cons­
tatando que muitos camponeses em dificuldades aban­
donam pura e simplesmente as terras, porque a rigidez
do sistema da preempção os impede de se restabelecerem
vendendo um ou outro terreno, suprime a preempção a
priori, substituindo-a por um direito de reclamação a pos­
teriori e limitado a seis meses. Como, simultaneamente,
elimina a maior parte das antigas interdições de aquisi­
ção pelos funcionários, salvo no caso dos estrategos, acaba
assim por abrir uma possibilidade de satisfação aos ape­
tites dos poderosos.

171
As novelas de Romano Lecapeno. A crise rebentou
alguns anos mais tarde, no reinado de Romano
Lecapeno. A causa imediata foi o terrível Inverno de
927-928, que arruinou um pequeno campesinato sem
reservas. Para comprarem produtos alimentares, que
atingiam preços consideráveis, os fracos vendiam as suas
terras a preços muito inferiores ao seu valor real: fre­
quentemente por menos de metade. O imperador tomou
duas categorias de medidas. Primeiro, em 928, resta­
beleceu o direito de preempção, alargando-o à comu­
nidade aldeã enquanto tal, mas limitando-o a seis meses.
Esta disposição era insuficiente, porque os fracos não
tinham com que comprar as terras devolutas e as com­
pras de 927-928 tinham introduzido amplamente os
poderosos nas aldeias; tinham-lhes mesmo permitido
adquirir aldeias inteiras. Em 934, Romano Lecapeno
adopta então medidas mais radicais. Para tentar repa­
rar os prejuízos decorrentes do Inverno de 927-928,
ordena a restituição das terras compradas por menos
de metade do valor e a revenda ao antigo proprietário
pelo preço de compra das outras terras. Para o futuro,
proíbe aos poderosos a aquisição de terras nas aldeias
onde não detenham ainda propriedades, mas não nas
aldeias onde já estejam instalados.
O objectivo do imperador era claro: preservar a massa
dos contribuintes - os fracos são melhores pagadores do
que os ricos, demasiado ligados aos funcionários fiscais -
e o recrutamento dos exércitos dos temas. Mas a aplica­
ção das medidas mostrava-se difícil. Por um lado, defron-
tava-se com a vontade dos camponeses que, arruinados,
esmagados pelos impostos, preferiam vender as suas ter­
ras aos poderosos para, em seguida, as arrendarem
enquanto parecos; por outro, os que estavam encarrega­
dos de as aplicar eram muitas vezes os mesmos contra
quem se dirigiam.

A política de Constantino VII. De resto, a ineficácia


da legislação mede-se pelo número de leis quase idên­
ticas, ou mais especialmente dirigidas à protecção dos
estratiotas, decretadas pelos imperadores do séc. x.
Constantino VII é assim obrigado a adiar de 934 para
944, ano em que assume a realidade do poder, a data
de aplicação da lei de Romano Lecapeno. Sobretudo^
ele inflecte sensivelmente a política dos Macedónios, as
procurar reforçar o médio campesinato, assim como
soldados e quadros subalternos do exército, os pe
I nos funcionários e os pequenos mosteiros, em &
| tentando consolidar as camadas médias. Através de r
| das tributárias, esforça-se também por cortar o mal
íraiz.

172
A vida rural (sécs. viii-xi)

As novelas de Nicéforo Focas. Em 963, com Nicéforo


Focas, é um eminente membro da aristocracia fundiária
da Ásia Menor que sobe ao trono. Os seus pares poderão
ter esperado que ele abandonasse a política dos anteces­
sores, mas tal não aconteceu. Por um lado, toma medidas
bastante severas para limitar o crescimento dos bens ecle­
siásticos, muito mal administrados por falta de capital de
exploração e que escapavam à interdição de compra dado
que os clérigos recebiam sobretudo doações. Por outro
lado, altera a natureza social dos estratiotas, ao elevar de
4 para 12 libras de ouro o valor mínimo do lote estratió-
tico, suprimindo com isso, para a maioria, a inalienabili-
dade e todas as medidas de protecção. Parece, entretanto,
que terá resistido às pressões da sua classe: aos que lhe
pediam que revogasse a interdição feita aos poderosos de
comprarem - aos fracos, nomeadamente respondeu
com uma medida que proibia aos fracos a compra de ter­
ras aos poderosos, o que resultava pura e simplesmente
em reconhecer o statu quo uma vez que os fracos não
tinham com que comprar aos poderosos. Mas acaba por
tomar a medida radical que Romano Lecapeno não ousara
decretar, ao interditar aos poderosos a compra de qual­
quer terra pertencente a um fraco, onde quer que esti­
vesse situada.

As novelas de Basílio II. Basílio II (976-1025) decide


dar aplicação a uma política ainda mais rigorosa. Em 996,
recordando as medidas dos seus antecessores, suprime a
prescrição teoricamente de trinta anos para todas as com­
pras de terras concretizadas desde 934, ordenando em
consequência a restituição dos bens ilegalmente compra­
dos. Trata-se de uma disposição inaplicável na prática,
visto que esses bens podiam ter, desde então, mudado
várias vezes de mãos. Por outro lado, poucos anos depois,
constatando que o sistema de repartição do imposto dos
falidos se revela ineficaz, porque os outros contribuintes
não têm com que pagar, enquanto os grandes proprietá­
rios, que podem ter comprado aldeias inteiras, acabam
por escapar ao sistema, institui o allelengyon, que consiste
em vincular poderosos a comunas fiscais - sem lhes con­
ferir os respectivos direitos para fazer pagar pelos ricos
o imposto dos pobres.
Basílio II era um soberano forte. As medidas que tomou
deverão ter sido pelo menos parcialmente aplicadas -
designadamente o allelengyon, que desencadeou um enorme
concerto de críticas; mas elas não sobreviveram ao impe­
rador. Os monarcas do séc. xi tentaram prosseguir a polí­
tica dos predecessores, promulgaram por sua vez leis aná­
logas, mas sem sucesso, até porque a sociedade rural tinha
evoluído. Não que os pequenos proprietários rurais tives-

173
sem totalmente desaparecido; mas eram então deveras
minoritários e já não podiam constituir a base do sistema
fiscal e militar. Este papel cabia agora à aristocracia fun­
diária, militar e provincial, na qual tem origem e apoio a
dinastia dos Comnenos (1081-1185). O problema essen­
cial já não era a apropriação por esta classe social das ter­
ras dos fracos, mas o facto de ela se estar a apossar das
Charistiké: ver p. 263. terras da Igreja - pela charistiké - e das do imperador ou
Pronoia: ver p. 263. do Estado - pela pronoia.

■ Tentativa de explicação

Sendo já bem conhecido, na sua evolução, o fenómeno


de concentração da propriedade da terra em proveito dos
ricos, resta tentar explicar como se inverteu um movi­
mento que, até ao séc. viu, se traduziu na progressão do
pequeno campesinato proprietário. No actual estado de
conhecimentos, é impossível uma explicação completa.
Nota-se, todavia, que o movimento precedente — atenua­
ção da taxa tributária, que deixa nas mãos do camponês
meios para investir, aumenta a matéria colectável e, por­
tanto, a massa do que cabe ao Estado - se inverte e que
o sistema fiscal bizantino tende, por si, a acentuar a evo­
lução. Com efeito, desde meados do séc. ix, tanto pelo
aperfeiçoamento da administração como, sobretudo, pelas
despesas consagradas à guerra ofensiva de reconquista, as
necessidades do Estado não cessam de crescer.
Com Constantino V aparece uma sobretaxa de 1/12
(dikêratori). Este acréscimo de taxa fiscal, embora relativa­
mente fraco, elimina rapidamente o sector do campesinato
proprietário que vivia no limite das suas possibilidades;
recaindo os impostos do falido sobre os co-contribuintes,
estes vêem assim aumentar ainda mais os seus encargos
fiscais, novos proprietários são eliminados, e assim suces­
sivamente, enquanto as sobretaxas se somam às sobreta­
xas. No séc. xi, o imposto é o dobro do original. O Estado
mostra-se, aliás, consciente do problema. O Tratado Fiscal
do séc. x revela-nos, com efeito, a existência da «com­
paixão» (sympatheià)-. se o peso do imposto dos falidos é
muito oneroso para os que restam e envolve o risco de
os levar, por seu turno, à falência, o tributo é suspenso
por trinta anos, durante os quais o insolvente poderá
retomar a sua actividade, sendo o imposto restabelecido
de modo progressivo. Ao fim de trinta anos, o Estado
torna-se proprietário da terra, a qual é retirada do cadas-
j rro fiscal da comuna e se torna clasmática. O Estado pode
í fazer dela o que quiser, e nomeadamente vendê-la; mas
| mesmo que volte a ser cultivada, permanece fora da
I comuna fiscal.

m A
A vida rural (sécs. VHI-XI)

O sistema foi aplicado em larga escala, o que prova que


não atingiu o seu objectivo primeiro: impedir a fuga dos
contribuintes. Concorria, aliás, para desmantelar a aldeia
sob o duplo ponto de vista fiscal e económico. O Estado,
pressionado pelas suas necessidades em dinheiro, vendeu
muitas vezes terras clasmáticas aos que as podiam com­
prar, e que eram necessariamente poderosos. Reforçava
pois esta classe sem verdadeiramente proteger os fracos,
nem tirar dessas terras um preço remunerador, porque os
terrenos à venda eram numerosos e os preços baixos.
Aldeias inteiras tinham-se, aliás, tomado clasmáticas. O único
remédio autêntico teria sido a diminuição da taxa tribu­
tária, o que foi feito por Basílio I e, sem dúvida, por
Constantino VII. Mas os imperadores macedónios, não obs­
tante uma análise correcta dos problemas, preferiram uma
política sintomática - impedir os fracos de venderem aos
poderosos - a um tratamento de fundo que restabelecesse
o equilíbrio económico da pequena exploração.
Os campos bizantinos conheceram portanto, do séc. viu
ao séc. xi, uma mudança social considerável, que foi o
regresso (ou o aparecimento) do predomínio da grande
propriedade. Isto não quer dizer que a economia rural
sofra uma revolução. Uma parte importante dos campo­
neses que vendem as suas terras, retomam-nas em arren­
damento como parecos, muitas vezes na mesma aldeia,
cuja produção e funcionamento agrícolas não são assim
modificados. No entanto, em certas regiões e certas épo­
cas, esta mudança social é acompanhada por um movi­
mento de deserção que afectou aldeias inteiras. Nos con­
fins orientais da Ásia Menor, factores políticos vêm
amplificar a deserção a regiões inteiras. Do mesmo modo
que a expansão da pequena propriedade se desenvolveu
paralelamente à expansão demográfica e à das terras cul­
tivadas, o movimento social inverso implicou uma baixa
demográfica dos campos - designadamente através do
êxodo rural - e um recuo das culturas. A descrição feita
por Nicéforo Focas das terras doadas aos mosteiros e devo­
lutas é, a este respeito, esclarecedora. A expansão da
pequena e média propriedade rural corresponde a um
desenvolvimento económico dos campos, e a sua con-
tracção a uma recessão da economia rural. A prosperi­
dade dos campos não está, porém, ligada ao modo de pro­
priedade do solo, dado que se nota um relançamento
económico a partir da segunda metade do séc. xi e no
séc. XII, quando dominava o regime da grande proprie­
dade; mas as condições que possibilitaram a multiplica­
ção das pequenas propriedades - redução da taxa de inci­
dência fiscal - e favoreceram o investimento, permitiram
a expansão dos campos; da mesma maneira, as condições
inversas implicaram um movimento contrário.

175
■ No mundo muçulmano

Na época omíada constituiu-se um regime da proprie­


dade do solo que colocou o campo na dependência da
cidade. Este fenómeno de domínio e de sujeição pela
cidade iria durar e mesmo desenvolver-se. No séc. x, o
embargo dos campos pelos militares provocou uma crise
profunda, verdadeira ruptura na evolução do mundo rural,
até então pouco afectado pelo estabelecimento do islão.
O que nós sabemos da propriedade do solo provém
dos tratados jurídicos que definem vários tipos de pro­
priedades, sem que actualmente seja possível delimitar
concretamente as realidades.

■ Classificação jurídica e fiscal

As terras de dízima. O islão só conhece, de jure, dois


tipos de propriedade: a propriedade primitiva dos Árabes
muçulmanos na Arábia e a propriedade colectiva da umma
sobre o conjunto das terras conquistadas. Com efeito, ape­
nas na Arábia existem propriedades detidas por árabes;
mesmo que as condições da conquista tenham permitido
em certas regiões - na Djézira, nomeadamente - uma certa
apropriação do solo pelos Árabes, isto foi excepcional.
O proprietário dessas terras entrega ao Estado, dos ren­
dimentos que delas tira, a zakât, que corresponde apro­
ximadamente a uma dízima (décima parte); ele detém
sobre o solo uma propriedade completa - mulk - e as suas
terras são designadas, para efeitos fiscais, terras de dízima.
Fora da Arábia - excluídas aquelas excepções - não há
propriedade que não seja a colectiva, da umma. Esta situa­
ção jurídica determinou, na prática, vários tipos de posse
do solo e o aparecimento, em concreto, de quase-proprie-
dades: os historiadores actuais têm tendência a falar de
propriedade condicionada ou de propriedade assimilada.

As terras de kharâdj. O direito distingue, antes de mais,


as terras ditas de kharâdj. No momento da conquista, os
proprietários indígenas que se mantiveram nas terras rece­
beram a confirmação dos seus antigos direitos sobre o
solo. E certo que já não tinham a propriedade plena, que
passara para a umma, mas dispunham dele como de uma
quase-propriedade que podiam vender, legar, doar, mediante
o kharâdj: uma espécie de renda paga à umma, que pro­
longava, de facto, os impostos prediais anteriores e cuja
taxa, variável segundo as regiões, era superior a uma dízima,
logo, à zakât. Quando, nos sécs. vii e VIII, se desenvolve­
ram as conversões ao islão de certos possuidores indíge-
JBML acaba por se admitir que elas não modificam o esta-
A vida rural (sécs. vin-xi)

tuto da terra: qualquer terreno definido como terra de Ver p. 104.


kharâdj no momento da conquista permaneceria assim,
quer o seu possuidor se torne muçulmano quer se man­
tenha dhimrni. Tais terras dependiam fiscalmente do Divan
do kharâdj.

As terras de sawâfi e de qatâ’i. As terras de kharâdj não


abrangiam todas as terras conquistadas. De fora ficavam
os terrenos sem detentor no amanhã da conquista: bens
da coroa ou do clero zoroastriano, terras cujos proprie­
tários tinham fugido, terras desérticas. Estas terras cons­
tituíram os bens do novo Estado árabe: eram domínios
do Estado ou sawâfi. O Estado explorava-as directamente,
mas também as concedia a particulares, geralmente sem
limitação de prazo. Estes terrenos assim concedidos têm
o nome de qatâ’i. O respectivo concessionário tinha, na Sobre os qatâ’i, ver p. 105.
prática, os direitos e as obrigações de um proprietário:
devia assegurar a sua exploração, estava sujeito às inter­
venções da administração califal e pagava a dízima, já que
somente os muçulmanos receberam qatâ’i.
As qatâ’i aparentam-se assim à enfiteuse, ou seja, à con­
cessão de um domínio público a longo prazo, para explo­
ração directa ou indirecta, comportando os direitos, as
obrigações e as limitações de uma propriedade. Não são,
de modo algum, os equivalentes dos benefícios e dos feu­
dos do mundo ocidental medieval.
Até ao princípio do séc. X, os qatâ’i tinham, na sua
maioria, dimensões médias e foram concedidos a homens
muito diversos.
Para o fisco, não existe pois nenhuma diferença entre
os proprietários mulk e os qatâ’i. Uns e outros estão igual­
mente vinculados ao pagamento da zakât. Por oposição às
terras de kharâdj, estamos perante as terras de dízima, tam­
bém chamadas diyâ', e sob a jurisdição do Divan dos Domí­ Diyâ’ (sing. dafa)’. domínios.
Waqf: literalmente, fundação
nios.
permanente. Trata-se de uma
fundação feita pelo proprie­
Os Waqf. O direito muçulmano conhece, enfim, um tário dum bem, como obra pia
último tipo de terras: os waqf (ou habus no Ocidente), colocada sob a garantia da lei,
fundações pias que geram bens de mão morta. O termo em irrevogável proveito de be­
neficiários expressamente de­
waqf corresponde a diversas realidades. Um waqf pode ser
signados.
constituído em proveito de instituições públicas (mes­
quitas, escolas, caravançarais, pontes) ou em proveito de
pessoas privadas (geralmente os descendentes de um pro­
prietário) . A erecção de um bem em waqf coloca-o sob a
protecção da Lei religiosa: o bem em causa não mais pode
ser objecto de partilha nem cedido, e a sua exploração
deve responder a regras precisas, estipuladas por um acto
especial. O cádi exerce um poder de fiscalização. As ori­
gens desta prática são obscuras e os waqfs só se tornaram
verdadeiramente importantes a partir do séc. XI. Conhe­
ceriam então, no mundo islâmico, um desenvolvimento
considerável e influiriam fortemente na organização eco­
nómica; contribuíram, com efeito, para congelar a pro­
priedade do solo, enquanto a fixidez do modo de gestão
fez deles zonas de imobilismo rural.

■ As realidades

A classificação jurídica das terras é nítida, a sua clas­


sificação fiscal também, mas as realidades continuam a
escapar-nos largamente. Não existe nenhuma documen­
tação análoga aos censos do Ocidente e as fontes que nos
poderiam informar sobre o mundo rural emanam todas
dos meios urbanos, geralmente muito indiferentes, quando
não desdenhosos, relativamente ao cultivador sedentário.
Mais ainda do que o camponês ocidental, o camponês em
terra islâmica é quase um desconhecido para nós.
A importância relativa da grande e da pequena pro­
priedade (propriedade completa ou quase-propriedade)
não pode ser avaliada. A pequena propriedade existe: pro­
priedades suburbanas ou numerosas terras de kharâdj. As
partilhas sucessórias refreiam a constituição de grandes
propriedades, que apenas se desenvolvem verdadeiramente
a partir do séc. x.
Um certo número de proprietários e assimilados vivem
no campo, como é o caso sobretudo dos possuidores de
terras de kharâdj, e por vezes também, embora mais rara­
mente, dos possuidores de diyâ\ Tanto quanto se pode
dizer, são principalmente pequenos proprietários e, nal­
guns casos, os notáveis rurais que no antigo Império
Dihqân: forma arabizada de Sassânida eram designados por dihqâns. Mas a maior parte
dihkan. Ver p. 60. dos detentores de diyâ' é citadina: burguesia comercial
que investiu uma parte dos seus rendimentos na aquisi­
ção de domínios, funcionários, emires, família califal, o
próprio califa. As terras de kharâdj são pois, na maior parte
dos casos, exploradas directamente pelo respectivo pos­
suidor, com o auxílio da família, enquanto os proprietá­
rios de diyâ’raramente são eles próprios os exploradores:
o domínio é geralmente dado em arrendamento a um
particular que o explora mediante o recurso ao material
e à mão-de-obra necessários e o pagamento de uma renda
fixa. Com excepção dos agentes subalternos enviados da
Zandj: escravos comprados na
África oriental e utilizados nas cidade para fiscalizarem certos trabalhos e com a excep­
grandes plantações de cana- ção - célebre - dos Zandj, a mão-de-obra não é servil.
-de-açúcar do Iraque. O explorador - quase-proprietário ou rendeiro - emprega
AfuzariW (sing. muzari): ca­ camponeses livres não-proprietários, considerados pelo
seiros.
Muzara ’a: casaria. direito muçulmano como caseiros: são os muzâri'ün.
O caseiro trabalha a terra e contribui por vezes com uma

178
A vida rural (sécs. vm-Xl)

parte das sementes, dos utensílios, dos animais. Entrega


uma parte da colheita, geralmente em espécie, ao pro­
prietário ou ao rendeiro. No caso mais frequente, em que
o camponês apenas concorre com o seu trabalho, ele tem
direito ao quinto da colheita. O direito conhece contra­
tos de casaria mais precisos. Assim, o contrato de rega
designado por musâqât tem por objecto as terras que exi­
gem rega por máquina elevatória: o caseiro tem então
direito a metade da colheita. No contrato de plantadoria
ou mughârasa, o caseiro recebe uma terra com o encargo
de criar aí uma plantação e, a partir do momento em que
a colheita se torna possível, é-lhe entregue uma parte da
plantação.
Não há - segundo parece - grande desigualdade de
condição entre o camponês possuidor de uma terra de
kharâdj e o camponês caseiro: um paga o kharâdj ao Estado,
o outro entrega ao proprietário do domínio rendas que
são da mesma ordem do kharâdj. O sistema é, no con­
junto, favorável ao proprietário de que enriquece
com a diferença entre o que recebe dos caseiros a título
de rendas e o que paga ao Estado enquanto zakât.
Assim, o camponês é antes de mais o que, através das
rendas e do imposto, envia para a cidade uma parte da
sua produção. O resto permite-lhe ocorrer às suas neces­
sidades, sendo ele próprio quem fabrica, por meio de um
artesanato familiar, os objectos de primeira necessidade.
Entre o campo e a cidade não há qualquer corrente comer­
cial, nem num sentido nem noutro.

Evolução ■

Duas tendências fundamentais apareceram no decurso


do séc. x e sobretudo do séc. xi. Vieram reforçar a grande
propriedade, atenuar a diferença entre terras de kharâdj
e terras de dízima, e acentuar a miséria camponesa.
Começou por haver uma consolidação lenta, mas real,
da grande propriedade. Esta evolução operou-se através
da taldjVa ou recomendação. O menor atraso no reem­ TaldjVa: espécie de recomen­
bolso das somas pagas pelos proprietários implicava, de dação pela qual um proprie­
tário ou possuidor se coloca
facto quando não de direito, uma sujeição ao dono e uma sob a protecção de um pro­
vinculação à terra. Esta prática permitiu portanto, rapi­ prietário mais poderoso, em
damente, a pura e simples absorção da terra pela pro­ nome do qual a terra fica ins­
priedade do protector. Assim, o desenvolvimento da grande crita no cadastro fiscal e por
propriedade está ligado ao aparecimento de um contexto quem o imposto passa a ser
pago.
novo: o que foi criado pela emergência da classe dos mili­
tares.
Com efeito, no séc. ix os califas experimentaram difi­
culdades orçamentais crescentes em resultado da impor-

179
tância dos mercenários no exército. Inicialmente paga-
ram-lhes soldos, depois concederam-lhes qatâ’i. Mas o
termo das conquistas não permitia a renovação dos domí­
nios do Estado, e os califas recorreram a novas soluções:
Sobre o iqta’, ver p. 152. a outorga de iqtâ\ Esta concessão, de um novo tipo, em
nada modificava a propriedade do solo, nem tinha tão-
-pouco carácter hereditário, pelo menos a princípio.
As consequências, porém, foram graves para o mundo
rural. Desenvolver-se-iam sobretudo a partir do séc. XI.
E que se os militares não se tornavam proprietários de
terras, eles encontravam-se numa posição que, por inter­
médio da taldjVa, lhes permitia sem dificuldades aumen­
tar os bens próprios, quando os possuíam. Além disso,
estes novos donos do imposto preocupavam-se sobretudo
com extrair o máximo das respectivas concessões. Na prá­
tica também se atenuou a diferença entre terras de kha-
râdj e terras de dízima: o concessionário beneficiava, na
verdade, da diferença entre o kharâdj recebido e a dízima
paga. Aliás, rapidamente os militares conseguiram até dei­
xar de pagar essa dízima, preocupando-se sobretudo com
tirar o máximo de rendimentos da sua iqtâ9, antes de pas­
sarem a exigir e de obterem uma nova. Com igual rapi­
dez, a miséria camponesa desenvolveu-se, na mesma altura
em que as agitações políticas e religiosas perturbavam gra­
vemente a infra-estrutura da economia agrícola no Iraque,
na Ifriqíya e no Irão. Subexplorações e terras incultas mul­
tiplicaram-se, dado o pouco interesse dedicado pelos gran­
des proprietários militares às questões rurais.
Estas observações permitem afirmar que, na história
da terra e dos homens do Próximo Oriente tanto bizan­
tino como muçulmano, o verdadeiro corte se situa nos
sécs. X e XI, quando desaparece um pequeno campesinato
livre e se afirma o poder dos grandes proprietários. As mais
recentes investigações na história ocidental tendem às
mesmas conclusões e apontam para que se situe cerca do
ano 1000 a passagem de uma economia rural de tipo
antigo a uma economia propriamente medieval dominada
pelos poderosos.

Para aprofundar este capítulo

Sobre a vida rural do Império Bizantino em geral: ter


em consideração a bibliografia geral, p. 14.
Sobre as práticas rurais no Império bizantino: J. L.
TEALL, «The byzantine Agricultural Tradition», Dumbarton

180
A vida rural (sécs. VHI-Xi)

Oaks Papers, t. XXV, 1971, pp. 33-60; ver também o artigo


de M. KAPLAN sobre as paisagens, cit. p. 100. Os estudos
sobre a comuna rural são resumidos por G. OSTROGORSKY,
«La commune rurale byzantine: loi agraire, traité fiscal,
cadastre de Thèbes», Byzantion, t. XXXII, 1962, pp. 139-166.
O estudo da sociedade rural bizantina nesta época deu
origem a numerosas obras e artigos. Além dos que foram
citados na bibliografia geral e sobretudo, em último lugar,
M. KAPLAN, La Terre et les Hommes à Byzance, deverá ler-se
N. SVORONOS, «Sur quelques formes de la vie rurale à
Byzance», Annales ESC, 1956. G. OSTROGORSKY, «Obser-
vations on the aristocracy in Byzantium», Dumbarton Oaks
Papers, t. XXV, 1971, pp. 1-32. Mais recentemente, R. MOR-
RIS, «The powerful and the poor in Xth century Byzantium.
Law and reality», Past and Present, 173, 1976, pp. 3-27;
D. M. ANGOLD (ed.), The Byzantine Aristocracy, IX to XIII
Centuries, Oxford, 1983; M. Kaplan, «L’Economie pay-
sanne dans 1’empire byzantin du Ve. au Xe. siècle», Klio,
68, 1986, pp. 198-232.
Sobre a sociedade no séc. xi: N. SVORONOS, «Société
et organisation intérieure dans 1’empire byzantin au XIe
siècle», Etudes sur Uorganisation intérieure..., citado p. 15.
«Remarques sur les structures économiques de 1’empire
byzantin au XT siècle», Travaux et Mémoires, t. VI, 1976,
pp. 49-67; H. Ahrweiler, «Recherches sur la société byzan­
tine au XIe siècle: nouvelles hiérarchies et nouvelles soli-
darités», ibid., pp. 99-124. Encontrar-se-á nestes dois arti­
gos uma bibliografia recente. Deverá acrescentar-se
P. LEMERLE, Cinq Etudes sur le XE siècle byzantin, Paris, 1975
e, sobre um ponto particular, M. KAPLAN, «Les monastè-
res et le siècle à Byzance: les investissements des laiques
au XIe siècle», Cahiers de civilisation médiévale, 2*7, 1984,
pp. 71-83.
O lugar dos problemas rurais na evolução do mundo
muçulmano é estudado em vários artigos fundamentais de
C. CAHEN, reeditados em Les Peuples..., citado p. 12. Um
dos principais tratados de direito muçulmano em maté­
ria de sistema fiscal e de regime das terras é acessível em
tradução francesa: Abú Yüsúf Ya’kub, Le Livre de Timpôt
foncier, trad. E. FAGNAN, Paris, 1921.
Sobre as técnicas e certas produções: M. CANARD, «Le
riz dans le Proche-Orient...», Miscellanea Orientalla, Variorum
Reprints, Londres, 1979; artigos «Kasab» (cana-de-açúcar)
e «Mâ’» (água e irrigação), em EI/2, citado p. 12; H. GOBLOT,
«Dans 1’ancien Iran, les techniques de l’eau et la grande
histoire», Annales ESC, 1963; LEau et les Hommes en
Méditerranée (obra colectiva), Paris-Marselha, 1987; A. WÀT-
SON, «The Arab Agricultural Revolution», Joumal ofEconomic
History, 1974; L. BOLENS, Les Méthodes culturales au Moyen

181
Age, Genebra, 1974; L. BOLENS, Agronomes andalous du
Moyen Age, Genebra, 1981. Sobre o Egipto: ver o estudo
de D. MULLER-WODARG em Der Islam, 31 e 32, assim como
C. PELLAT, Cinq Calendriers égyptiens, Le Caire, 1986. Sobre
o Iraque: Mac Adams, Lands behind Bagdâd, Chicago-
-Londres, 1959.
Sobre os camponeses e o seu estatuto: A. K. S. LAMBS-
TON, Landlords and Peasants in Pérsia..., Oxford, 1953; os
artigos «Iktâ’» e «Kharâdj» em EI/2, citado p. 12; A. POPO-
VIC, La Révolte des esclaves en Iraq au IIF-IX* siècle, Paris,
1976, assim como as obras citadas p. 89.

182
11
O comércio e a vida urbana
(sécs. viii-xi)

Este período é marcado por uma nítida retoma do comércio e da vida urbana no mundo bizan­
tino e uma importante expansão no mundo muçulmano. Num e noutro caso, o excepcional desen­
volvimento de certas cidades e o adensamento do tecido urbano não devem fazer esquecer que a
terra permanece como a principal riqueza e que uma parte esmagadora da produção continua a
provir dos campos. Do séc. viu ao séc. XI, o comércio e a actividade urbana ocupam no império
bizantino um lugar mais importante do que, na mesma época, no Ocidente, mas menor do que no
mundo muçulmano, mais fortemente urbanizado. Não se deve, no entanto, exagerar o peso dos sec­
tores secundário e terciário na economia bizantina, onde uma parte esmagadora da produção con­
tinua a ser de origem rural, nem a posição dos grupos sociais que vivem em maior ou menor grau
dessas actividades urbanas.

1. O grande comércio no Império Bizantino

Dados gerais ■ Milliarésion

A moeda. O Império Bizantino conheceu, em graus


diversos consoante as épocas, uma grande actividade arte-
sanal e mercantil, cujos sinal e veículo mais notórios são
a moeda. De Constantino ao séc. xi, esta experimentou
não só uma difusão e uma utilização ininterruptas, embora
variáveis, mas também uma estabilidade excepcional. A base
é a libra de ouro (327 g.), unidade de conta na qual são
cunhados 72 soldos (nomismatd) de 4,54 g. de ouro pra­
ticamente puro. A partir do séc. vii ou viu, o nomisma vale
doze milliarésia, moedas de prata de formato comparável
ao nomisma; o milliarésion vale, por seu lado, 24 phollis, Emitida no reinado de Heraclio (610-
moedas de bronze de peso variável e mais uma vez aumen­ -641), esta moeda de prata representa:
tado nos sécs. vni-ix. As moedas divisionárias quase desa­ no verso, Heraclio coroado pela Vitória;
no anverso, a Cruz assente em três de­
pareceram, de modo que, na prática, até ao séc. x apenas graus.
circulam aquelas três espécies.

O comércio regional. O comércio bizantino pode ser


comodamente dividido em dois sectores, interno e externo,
embora a divisão seja, no plano dos factos, menos clara.
O comércio interno é, antes de mais, o dos mercados
rurais, de maior ou menor importância, organizado em
torno da troca dos produtos do campo - essencialmente
o trigo, o vinho, as frutas, o mel, os animais - pelos pro-

183
Nomisma (ou solidus) dutos necessários à vida dos camponeses. Não fornecendo
o artesanato rural certos têxteis, a cerâmica, os instru­
mentos metálicos, os camponeses iam procurá-los nas fei­
ras da sua província, algumas das quais muito importan­
tes, como as de Efeso e Tessalonica que se efectuam por
ocasião das festas dos seus santos patronos, João e Demétrio.
As vidas dos santos testemunham efectivamente a espan­
tosa mobilidade da população rural e a incontestável atrac-
ção exercida pela cidade. A prática do comércio pelos
camponeses é tornada obrigatória pela fiscalidade bizan­
tina, quase integralmente monetária: o camponês pro­
Emitida no reinado de Leão VI (886- prietário, e mesmo não proprietário, sujeito a impostos
-912), esta moeda de ouro representa:
no verso, a Virgem (Maria MPOI); no pessoais e ao pagamento de serviços públicos, é obrigado
anverso, o basileus Leão (Leão no Cristo, a destacar da sua produção um certo excedente comer-
basileus dos Romanos).
cializável. O comércio de base - o do trigo - é bem descrito
pelo historiador Ataliata, numa região onde ele próprio
era proprietário - a de Rodosto, na Trácia. Os proprie­
tários rurais que moram na cidade, certamente os mais
ricos, vendem-no na sua casa; os habitantes dos campos
carregam o trigo em carroças e é nelas que o vendem.
Não há verdadeiramente um mercado central, passando
os compradores de uma casa ou de uma carroça para
outra. Uns são consumidores directos, como os mosteiros
e as igrejas, outros são armadores que, em seguida, vão
vender esse trigo em Constantinopla.

O grande comércio. O comércio entre os grandes cen­


tros urbanos e os entrepostos comerciais é muito difícil
de distinguir do comércio externo, uma vez que são os
próprios Bizantinos quem assegura uma grande parte do
Ver mapa p. 382 A. tráfego através do Império bem como o transporte no
interior do Império das mercadorias exportadas ou impor­
tadas. Este comércio assenta numa rede de portos e de
algumas grandes urbes do interior: cidades em contacto
com os grandes eixos comerciais internacionais (Corinto,
Melitene, Teodosiópolis, Quersoneso), e centros de pro­
dução e redistribuição locais (Tebas, Andrinopla,
Tessalonica, Ancira, Cesareia, Sebastia). As praças essen­
ciais deste comércio são os portos animados pela cabota­
gem: daí a importância de Tessalonica, Ataleia, Esmirna,
Efeso, Sinope, Trebizonda.

■ As rotas

O comércio externo bizantino orienta-se em três direc- i


ções principais: a Europa Ocidental, a Europa Oriental e j
o Oriente. O centro de todas estas redes é Constantinopla, í
Via Egnatia: via romana li­
O comércio passa pela Itália, seja totalmente por via marí- I
gando Roma a Constantino-
tima (Tessalonica, Eubeia, Corinto e depois a Sicília ou a |
j P,a-
Itália Meridional), seja utilizando a via Egnatia, que passa 1

184
O comércio e a vida urbana (sécs. VIII-XI)

por Tessalonica, atravessando depois os Balcãs, para che­


gar a Dirráquio. A partir daqui os mercadores atravessam
o Adriático ou sobem até Veneza. Outra parte deste comér­
cio recorre à via danubiana, alcançada quer por cabota­
gem ao longo do mar Negro até ao delta do grande rio,
quer por terra, com passagem por Andrinopla e Sérdica.
Daí a importância do problema búlgaro e as tentativas de
conversão da Morávia. A conquista da Bulgária, a par do
despertar económico do Ocidente, permitem, no dobrar
do séc. x para o séc. XI, um importante desenvolvimento
deste comércio.
Em meados do séc. ix aparecem em Constantinopla os
mercadores «russos», isto é, varegues, os quais, atravessando
a Europa Oriental pelos lagos Onega e Ládoga, descem o
Dniepre e, da sua foz, se dirigem a Constantinopla, quer
directamente quer por Quersoneso. Podem também utili­
zar o Don e o mar de Azofe, ou passar pelo Volga e, daí, Ver mapa p. 382 A.
por Itil, atingir o mundo muçulmano. Por esta rota, o Império
Bizantino está em contacto com os países nórdicos.
O comércio com o Oriente chinês passa pela Ásia cen­
tral, a Torre de Pedra, e, a partir daí, atravessa, a norte
do Cáspio, o território que durante muito tempo foi o
dos khazares - com quem o Império mantém relações
estreitas -, chegando a Quersoneso e ao mar Negro; outra
rota passa a sul do mar Cáspio, atravessa o Cáucaso ou
alcança Teodosiópolis e, por aí, chega a Trebizonda e, pelo
mar Negro, a Constantinopla.
O comércio do oceano Índico passa pelo golfo Pérsico
ou pelo mar Vermelho. Do golfo Pérsico, as mercadorias
podem subir pela Mesopotâmia para norte, passar seja
por Edessa seja por Melitene, depois por Sebastia, e daqui
seguir o trajecto terrestre via Ancira ou o percurso marí­
timo via Sinope; podem também subir o Tigre e atraves­
sar a Ásia Menor, para atingir Trebizonda via Teodosiópolis.
Posto isto, compreende-se melhor a luta encarniçada que
opõe Bizâncio, os Árabes e os Arménios pelo controlo de
Edessa, de Melitene e de Teodosiópolis. As caravanas
podem também dirigir-se à Síria, depois à Cilicia, atra­
vessando por fim a Ásia Menor; a menos que se embar­
quem as mercadorias para contornar a Ásia Menor pelo
sul e o poente. Finalmente, a rota do mar Vermelho abre
sobre o Egipto, dando depois acesso à Palestina e à Síria,
por terra e por mar, e alcançando assim a rota precedente;
pode igualmente acontecer que as mercadorias embar­
quem no Egipto e partam daqui para Constantinopla, por
Creta. Nunca as lutas entre Bizantinos e Árabes cortaram
verdadeiramente estas rotas, vendo-se mesmo, em plena
guerra, no séc. IX, a imperatriz Teodora, mulher de Teófilo,
ser acusada de equipar navios para importar trigo da Síria.

185
■ Os produtos

Que produtos circulam nestas rotas? A questão é tanto


mais importante quanto, se é notório o que Bizâncio
importa, já as suas exportações são menos conhecidas.
E, no entanto, estas devem ser consideráveis, pois as minas
de ouro, só por si, não bastam para explicar um equilí­
brio financeiro tão constante e sólido. O Império Bizantino
importava produtos em bruto de que carecia e produtos
de luxo. Os Russos trazem peles, madeiras, mel, peixe; do
Oriente vêm as especiarias, as pedras e madeiras precio­
sas, os perfumes, os produtos do artesanato árabe e
extremo-oriental. A seda grega deixara de ser importada,
mas ainda se vêem chegar a Bizâncio estofos sírios. As
importações do Ocidente são, nessa época, mais difíceis
de identificar.
O Império Bizantino exporta, por seu lado, um certo
número de produtos agrícolas para os Russos (frutas,
vinho), mas sobretudo produtos acabados: têxteis (mesmo
pondo de lado o problema da seda), ourivesaria, meta­
lurgia e cerâmica.

Os escravos. Mas o problema do equilíbrio do comér­


cio bizantino gira certamente em torno do tráfico dos
escravos. Por um lado, as guerras vitoriosas que se seguem
aos anos 860 fornecem ao Império quantidades conside­
ráveis de escravos. Por outro lado, o Império compra-os
no Ocidente ou entre os Russos, sendo uns e outros de
origem eslava; vende-os seguidamente aos Sarracenos, os
principais compradores. Os Bizantinos favorecem a impor­
tação de escravos capturados pelos Russos, como o teste­
munham os tratados de 911 e 944, outorgando uma redu­
Kommerkion: taxa de 10% que ção de metade do kommerkion por via de uma subavaliação
onera a exportação, a impor­ de 50% (10 nomismata em vez de 20) do valor declarado
tação e a circulação de todas do escravo. Todavia, nem todos os escravos são reexpor­
as mercadorias.
tados. Os próprios Bizantinos, sejam agricultores ou arte­
sãos, possuem escravos; e têm de os comprar, porque os
súbditos bizantinos raramente são reduzidos à escravatura
e os escravos mal asseguram a própria descendência.

O Kommerkion. O comércio é onerado por taxas, tanto


nas fronteiras como durante a circulação das mercado­
rias. O imposto de base é o kommerkion, à taxa de um
décimo ad valorem. O kommerkion incide, do mesmo modo,
no comércio externo e no interno. No caso das merca­
dorias importadas ou exportadas, é cobrado num posto
que se pode qualificar de aduaneiro, mas que não fica
forçosamente na fronteira: como o direito assim pago per­
mite a livre circulação e o tráfico da mercadoria taxada,
o que não tenha pago na fronteira pagará obrigatoria-

186
O comércio e a vida urbana (sécs. vin-xi)

mente no interior. Certos produtos têm o seu lugar fixo


de cobrança: o kommerkion sobre os escravos paga-se em
Abido, na entrada ocidental dos Dardanelos e em Híeron,
na entrada leste do Bósforo. Quanto às mercadorias que
circulam no interior do Império, ou que dele saem, o kom­
merkion é liquidado numa das transacçóes. E muitas vezes
pago a meias pelo vendedor e o comprador. Alguns mer­
cadores estrangeiros beneficiam de uma diminuição do
kommerkion, como vimos na caso dos Russos; este é igual­
mente o caso dos Venezianos a partir de 992.
O kommerkion é cobrado por funcionários especiais, os
comerciários, que residem neste ou naquele ponto de per­
cepção da taxa. A princípio, os comerciários eram muitas
vezes personalidades locais; a partir do séc. vii, passam a
ser funcionários mais modestos. O arrendamento é muito
raro e apresenta-se claramente como um abuso. Assim,
em 893, a percepção do kommerkion sobre as trocas com
os Búlgaros foi transferida para Tessalonica, numa tenta­
tiva de fazer aceitar o seu arrendamento; os Búlgaros rea­
giram vigorosamente pelas armas. No séc. xi, o favorito
do imperador Miguel VII, Nicefórice, tentou arrendar em
seu proveito pessoal as taxas sobre o trigo de Rodosto; a
medida foi mal acolhida e pouco durou frente à revolta
popular contra este monopoleion.

2. O grande comércio no mundo


muçulmano

A encruzilhada comercial. A grande encruzilhada que


é o Próximo Oriente - entre o Extremo Oriente, o mundo
mediterrânico, o mundo das estepes e o oceano Índico -
nunca tinha correspondido, salvo na época de Alexandre,
a um espaço político unificado. A expansão dos Árabes
fez desaparecer a fronteira que o dividia, através da Alta
Mesopotâmia e o deserto sírio. Tomou-se possível o desen­
volvimento das capacidades comerciais deste espaço, até
então bloqueado pela rivalidade romano-persa, tanto mais
quanto o islão assumiu a pouco e pouco o controlo da
Ásia Central e o domínio do Mediterrâneo Oriental.
O mundo bizantino viu-se rejeitado para os Balcãs e a Ásia
Menor e, além da rota das estepes que, pelo norte do mar
Cáspio, desembocava no Ponto Euxino, todas as demais
rotas do seu comércio extremo-oriental passaram desde
então pelo território muçulmano. Somente no tráfico com
o mundo eslavo e o Ocidente é que os Bizantinos não
deparavam com o intermediário muçulmano.

187
A expansão religiosa que acompanhou a expansão
militar para o mundo das estepes e das florestas do Norte
alargou ainda mais as oportunidades comerciais do
mundo muçulmano. O Magrebe começava a estabelecer
relações com o mundo negro enquanto, na Hispânia e
na Sicília, se entabulavam contactos com o Ocidente,
para além dos confrontos militares. O islão dominava
assim vastos territórios e controlava as suas ligações em
numerosas direcções.

As rotas. A instalação do poder político no Iraque, no


coração deste espaço, consolidou a nova situação. Tal
como na época sassânida, o golfo Pérsico foi a grande via
marítima para leste. Os barcos deixavam Ubullah, porto
de Baçorá, ou Sirâf, e alcançavam a índia ou mesmo a
China; alguns dirigiam-se antes para o Iémen ou a África
oriental. Em sentido inverso, marinheiros hindus e chi­
neses frequentavam os portos muçulmanos. Entretanto,
no final do séc. IX, tumultos envolveram o massacre da
colónia mercantil de Cantão, tendo a partir de então os
contactos comerciais passado a efectuar-se essencialmente
na Malásia e em Ceilão. Os produtos deste comércio marí­
timo reencontravam no Iraque as mercadorias que tinham
seguido a tradicional rota terrestre da seda através da Ásia
Central.
Bagdade tornou-se assim a placa giratória do comér­
cio. Outras correntes de trocas ligavam-se àquelas, atra­
vés das províncias periféricas do Império: para os Búlgaros
do Volga, para Constantinopla, para o mundo escandi­
navo, para o Ocidente cristão, para o Sudão. Este grande
comércio foi particularmente florescente nos sécs. ix e x.
Em seguida, começou a sofrer as repercussões da agita­
ção oriental, das movimentações dos nômadas, da polí­
tica fatímida, da reconquista bizantina. As perturbações
políticas e sociais que marcaram a vida do Iraque no séc. x
afectaram igualmente as trocas. A pouco e pouco, o golfo
Pérsico e o Iraque perderam a sua importância em bene­
fício do mar Vermelho e do Egipto. Alexandria acaba por
suplantar Bagdade.

Os produtos. Os produtos deste comércio longínquo


eram antes de mais, como na época precedente, merca­
dorias de elevado preço e pouco peso, artigos de luxo ou
de consumo secundário destinados às aristocracias urba­
nas: especiarias - sobretudo a pimenta -, seda da China,
pedras preciosas da índia, madeiras preciosas, perfumes,
marfim e ouro de África, couros e peles do Norte. Mas o
grande comércio abrangia também outros tipos de pro­
dutos, indispensáveis à própria vida do mundo muçul­
mano. E, antes de mais, os escravos do mundo eslavo, da
O comércio e a vida urbana (sécs. viii-xi

Ásia turca ou da África que, empregados nas actividades


domésticas, no exército, nas lojas e oficinas, constituíam
uma mão-de-obra indispensável. O mesmo quanto a maté­
rias-primas como a madeira para a construção naval, que
o mundo muçulmano não produzia, e o ferro.
Os mercadores muçulmanos asseguravam o trânsito
de uma parte desses produtos e exportavam igualmente
matérias-primas como o alúmen, e artigos do artesanato
muçulmano: tecidos, objectos em vidro e metal, etc.
Exportação e reexportação iam a par, mas importa notar
que, de uma maneira geral, a finalidade do comércio não
era estimular a produção pela exportação, mas realizar
o máximo de lucros, especulando sobre as diferenças de
preços, e proporcionar aos que forneciam os capitais os
instrumentos do poder e do conforto. A religião muçul­
mana, de facto, nunca põe seriamente em questão a legi­
timidade dos lucros do comércio. Os nossos conheci­
mentos actuais em matéria de história comparada dos
preços são demasiado fracos para que seja possível tirar
daí a menor conclusão sobre a política dos mercadores
e a evolução dos mercados.

Os mercadores. Nas rotas em território muçulmano,


os produtos do grande comércio cruzavam-se com as mer­
cadorias de um activo comércio inter-regional: algodão e
linho do Egipto, incenso da Arábia, metais, pérolas... A cir­
culação destes produtos não era livre. Os mercadores paga­
vam direitos aduaneiros nas fronteiras e, uma vez chega­
dos às cidades, deviam depositar as suas mercadorias num
entreposto ou funduq e pagar novas taxas. Só então os
comerciantes locais ficavam autorizados a levantar as suas
compras. Havia, assim, uma nítida separação entre gran­
des mercadores e retalhistas, e o comércio, permanente,
não estava condicionado pela realização de feiras. O Estado
extraía dele receitas. Detinha, aliás, um certo número de
monopólios comerciais. As diferentes taxas - de origem
não corânica - variaram consideravelmente segundo as
épocas.
Este grande comércio não era praticado apenas pelos
Árabes muçulmanos. Os marinheiros mercantes eram per­
sas, egípcios, andaluzes. Entre os grandes mercadores,
havia judeus, cristãos, zoroastrianos: entre eles e os seus
correligionários dos mundos exteriores, o vínculo da fé
podia facilitar os contactos. Mas não havia qualquer espe­
cialização, nem qualquer repartição - de direito ou de
facto - dos produtos ou dos mercados. O grande comér­
cio que animava e atravessava o mundo muçulmano era,
na verdade, interconfessional. E se a língua árabe tendia
a tornar-se o instrumento das trocas, ela não era indis­
pensável.

189
■ As técnicas

Os mercadores utilizavam técnicas que não criaram


mas às quais deram uma larga difusão. Os agrupamentos
de comerciantes atenuavam os riscos; práticas de crédito
desenvolveram-se largamente. Os próprios grandes mer­
cadores asseguravam as operações bancárias, apoiados,
por vezes, em cambistas. Os capitais provinham do rein-
vestimento de lucros, mas também das aristocracias urba­
nas: grandes proprietários rurais, funcionários, califa.
As fontes raramente permitem penetrar no concreto das
actividades mercantis. Daí o excepcional interesse dos con­
tratos estabelecidos no séc. ix pelos mercadores de esto­
fos de Fayyum, o grande oásis do Ocidente Egípcio, com
os seus colegas da capital. Estes arquivos, recentemente
exumados, são os mais antigos arquivos comerciais do
islão: referem-se ao envio para Fustât de estofos de Fayyum,
antecipadamente pagos ao tecelão pelo comerciante. A ope­
ração era portanto financiada pelos fundos provenientes
da capital, isto é, da elite urbana que, através do imposto
cobrado aos agricultores das redondezas, tinha desenvol­
vido um processo de acumulação de riqueza.

As moedas. Este quadro geral do grande comércio deve


ser consideravelmente matizado, pelo menos a dois níveis.
Os aspectos monetários do comércio muçulmano e as suas
repercussões sobre os mundos vizinhos (Bizâncio e o
Ocidente) suscitaram muitas hipóteses e provocaram nume­
rosas discussões... Mas continua fora de questão decidir
num domínio onde os conhecimentos ainda são insuficien­
tes. O ouro e a prata amoedados circulavam no islão e
fora do islão: mas o que representavam exactamente? No
final do séc. ix foi oficialmente estabelecido um sistema
de equivalência do dinar de ouro sem liga com o dirham
de prata sem liga: a equivalência era de catorze e dois séti­
mos e assentava numa taxa de câmbio ouro/prata igual a
dez. Este sistema legal permitia calcular os valores relati­
vos das moedas em efectiva circulação - o islão conhecia,
com efeito, a distinção entre moedas reais e moeda de
conta. Esta distinção, por vezes pouco nítida nas fontes,
é de difícil interpretação. Tanto quanto se sabe, a taxa de
câmbio do dinar no século precedente era nitidamente
superior: de vinte e dois a vinte e cinco. Isto sugere uma
brusca mutação em fins do séc. IX, mutação que, até ao
momento, os textos não explicam. E preciso, pois, ser pru­
dente quando se fala de moedas a propósito do grande
comércio muçulmano. As regiões do Império tinham mui­
tas vezes moedas diferentes que, fora de um certo terri­
tório, eram refundidas ou aceites a peso. De um modo
geral, o Irão, o Iraque, a Ásia Central e a Hispânia eram

190
O comércio e a vida urbana (sécs. Vlll-Xl)

regiões de monometalismo-pratá - o ouro circulava aí,


mas em quantidade demasiado fraca para influenciar a
vida comercial; Egipto, Síria, Arábia, Magrebe eram, pelo
contrário, zonas de monometalismo-ouro. Apenas no séc. x
o ouro suplantaria, progressivamente e durante alguns
séculos, a prata.
Em segundo lugar, deve-se evitar considerar o mundo
muçulmano como uma unidade, um conjunto orgânico
real. E indubitável que, entre o séc. viu e o séc. x, o Iraque
é o centro de um grande comércio. Mas há um certo
número de regiões que, provavelmente, constituem com
os seus vizinhos zonas económicas muito mais efectivas,
mantendo com eles mais relações do que com o resto do
mundo muçulmano. E o caso da Ásia Central com a Europa
de Leste, do Iémen com o oceano Indico, do Próximo
Oriente com Bizâncio, do mundo hispano-magrebino e a
Sicília com o Ocidente Mediterrânico, do Magrebe com
a África Negra.
O velho esquema que trata dos problemas comerciais
medievais em função das três unidades económicas que
seriam o mundo muçulmano, o mundo bizantino e o
mundo ocidental, e que estabelece entre eles fluxos de
metais e de moedas, deve ser afastado em benefício de
uma procura de verdadeiros espaços económicos que, cer­
tamente, integraram os elementos de várias civilizações.
São necessárias muitas investigações incidindo sobre a
documentação arqueológica, os dados numismáticos e os
raros documentos da prática que chegaram até nós, para
descrever realidades muito mais movediças do que o dizem
as sínteses consagradas ao grande comércio muçulmano.
E que as rotas, as redes, os produtos das trocas, para já
não se falar dos preços, conheceram variações que foram,
em certos casos, muito importantes, e que exigem um
rigoroso respeito da cronologia.

3. O trabalho nas cidades orientais:


o Império Bizantino

A organização dos ofícios bizantinos. Sendo as fon­


tes da história bizantina sobretudo de origem constan-
tinopolitana, a organização dos ofícios chegou ao nosso
conhecimento por intermédio da capital do Império:
com o Livro do Eparca, uma espécie de código de polí­
cia dos ofícios, dispomos de um documento da maior
importância. Há todas as razões para crer, entretanto,

191
que a organização era, grosso modo, a mesma nas gran­
des cidades do Império.
O Livro do Eparca regista vinte e duas corporações de
artes e ofícios que podem ser assim classificados: serviços
públicos (notários, banqueiros, cambistas, construção),
ofícios da seda (seis profissões diferentes) e ofícios de pri­
meira necessidade, designadamente do ramo alimentar.
O exemplo mais digno de apreço é o dos notários. Para
se ser notário, é preciso passar num exame jurídico e prá­
tico, prestar juramento, ser apresentado ao Eparca que
designa os postulantes. Realiza-se então um ofício reli­
gioso, depois uma festa. Todos assistem ao enterro de
qualquer um dos vinte e quatro confrades. Estão previs­
tos honorários, punições, casos de destituição. Os regu­
lamentos fixam, por vezes, o lugar de exercício da activi-
dade e o lucro lícito em função do preço da matéria-prima;
estabelecem sempre - e é esse o seu objectivo essencial -
protecções contra o roubo, a concorrência desleal, a fraude
sobre a qualidade e a especulação.

O Eparca. A personalidade essencial da cidade é o


Eparca: o de Constantinopla está colocado no terceiro
nível do Estado pelo tratado de direito público bizantino,
Épanagôgé: ver p. 132. o Épanagôgé. O Eparca, nomeado pelo Imperador, assis­
tido pelo substituto e um assessor por corporação, detém
antes de mais poderes de polícia: admissão na corpora­
ção profissional, localização das oficinas e lojas, controle
dos pesos e medidas e da qualidade de certas mercado­
rias, garantia da livre concorrência.

Os limites do regime dos corpos profissionais. A pró­


pria existência do Livro do Eparca, composição atribuída
a Leão VI, mas que de facto é uma colectânea compósita
de artigos elaborados em diferentes épocas anteriores ao
séc. xi, e as severas regulamentações que contém, con­
duziram a interpretações algo forçadas do tipo de eco­
nomia que vigorou em Bizâncio, «paraíso do monopólio
e do privilégio» (J. Nicole).
Importa, por isso, fixar a sua dimensão e limites: o
texto que possuímos não é completo, porque os ofícios
essenciais de Constantinopla - os que empregavam mais
mão-de-obra e davam, sem dúvida, vigor à economia urbana
bizantina - não figuram nele, enquanto outros documentos
não só no-los dão a conhecer, como até nos permitem
localizá-los melhor do que a muitos dos ofícios descritos
no Livro do Eparca.
Com certeza que nem todos os Bizantinos se vestiam
de seda... Ora é esta a única indústria têxtil mencionada.
iilulUiUi

Os peleiros, os curtidores, os sapateiros, tal como todos

192
O comércio e a vida urbana (sécs. vin-xi)

os ofícios do couro, não são referidos. A metalurgia, nomea­


damente a do cobre, que deu o seu nome a um bairro
próximo de Santa Sofia (chalcoprateid), e a indústria de Chalcoprateia: bairro de Cons­
armamento não são contempladas; tão-pouco a cerâmica, tantinopla onde estava concen­
trado o artesanato do bronze.
que tanto serve à vida quotidiana e ao transporte de líqui­
dos; o mesmo quanto à construção naval. Poder-se-ia ainda
alongar a lista, por exemplo com o mosaico, objecto de
uma exportação em larga escala: os mosaicos que vão deco­
rar as igrejas do Sul de Itália são fabricados, cubo de vidro
por cubo de vidro, nas oficinas de Constantinopla; depois
são embarcados - desmontados — em navios, antes de vol­
tarem a ser montados no local de destino.
Quanto aos ofícios que aparecem no Livro do Eparca,
não são escolhidos ao acaso e as respectivas listas estão
provavelmente quase completas. E, antes de todas, a indús­
tria da seda, cuidadosamente dividida para se evitar qual­
quer concentração vertical: mercadores de seda grega,
fabricantes de tecidos, alfaiates, comerciantes de vestuá­
rio fabricado localmente - bem diferenciados dos mer­
cadores de sedas importadas. A explicação está em que a
seda é um material imperial, utilizado no guarda-roupa
do Imperador, da corte, dos dignitários e nos presentes
do Imperador ao estrangeiro. A sua exportação é quase
interdita... A seda é um têxtil político, severamente con­
trolado. A repartição do Livro do Eparca, porém, dissimula
mal a preponderância adquirida, a pouco e pouco, pelos
tecelões nos ofícios da seda.
Nos ofícios do ramo alimentar, uma vez suprimidas as
distribuições gratuitas regulares, é evidentemente de grande
interesse político evitar as flutuações dos preços dos géne­
ros básicos (pão, carne, peixe) e de outros produtos de
primeira necessidade. Também a protecção do consumi­
dor contra o dolo e a agiotagem é prosseguida através da
regulamentação da qualidade dos produtos. Enfim, afi­
gura-se normal que serviços públicos chamados a colabo­
rar directamente com o Estado, como os notários e os
cambistas, sejam regulamentados pelo mesmo Estado.
Também aí, é o consumidor que é protegido.

O trigo. O comércio do trigo, cuja organização é um


dos pontos em que se apoia a tese sobre a economia diri­
gida em Bizâncio, fornece efectivamente um exemplo
impressionante do liberalismo deste Estado. A importân­
cia deste comércio no abastecimento de uma cidade como
Constantinopla, que chega a ter 400 000 habitantes, ou
de cidades como Tessalonica que contam com 100 000,
constitui seguramente um teste sobre a questão do «diri-
gismo». Até ao princípio do séc. vil, uma parte significa­
tiva deste trigo vinha do Egipto: era «o feliz transporte».
No entanto, a rápida perda desta província (642) parece

193
não ter gerado penúria em Constantinopla, como tinha
acontecido trinta anos antes, o que mostra que esse celeiro
de trigo não era único e que o Império podia encontrar
noutras províncias, nomeadamente na Trácia e na Ásia
Menor, fontes alternativas de abastecimento. Contudo, o
trigo continua a chegar do Egipto e da Síria. Leão V virá
a proibir este comércio e o imperador Teófilo (829-842)
descobriu que sua mulher Teodora continuava a impor­
tar trigo da Síria e tinha mesmo estabelecido um mono­
pólio que privava os mercadores do seu legítimo rendi­
mento. O exemplo mais célebre de monopólio do comércio
do trigo foi o estabelecido em Rodosto pelo favorito de
Miguel VII (1071-1078), Nicefórice. Anteriormente, a liber­
dade de troca era o regime normal; o monopólio per­
turba este comércio, constrange os detentores de trigo
que o poderiam fazer a não venderem, provoca um enca­
recimento considerável e a falta do produto; na primeira
ocasião, a multidão destruiu o entreposto (phoundax), sede
do monopólio. E certo que o preço do pão é regula­
mentado segundo o custo do cereal, mas é uma regulamen­
tação com um alcance exclusivamente político, procurando
evitar os motins causados pela fome.
Em última análise, com excepção da seda, o Estado
não regula, para nenhum ofício, as quantidades produzi­
das ou comercializadas. Quanto aos preços, apenas limita
os lucros nascidos da especulação. A economia urbana
bizantina é regulamentada em certos sectores bem preci­
sos, sendo que o objectivo da regulamentação é garantir
a percepção do imposto e a livre concorrência. Não é, de
modo algum, uma economia dirigida.

4. O trabalho nas cidades orientais:


o mundo muçulmano

O artesanato era reduzido na Arábia pré-islâmica. Fora


do Iémen, famoso pelos seus têxteis e os seus couros,
nunca ia além de um nível familiar ou aldeão, limitando-
-se ao fabrico de objectos de primeira necessidade. Esta
situação contrastava com a intensa actividade que carac­
terizava a Síria e o Egipto bizantinos, ou o Irão sassânida.
A incorporação destas províncias, a abundância e a diver­
sidade das matérias-primas, a formação de uma rica clien­
tela urbana facilitaram o desenvolvimento de um artesanato
caracterizado menos pela técnica do que pela qualidade
^ artística das suas realizações.

194
O comércio e a vida urbana (sécs. vm-xi)

As matérias-primas. O mundo muçulmano dispunha


de recursos naturais não desprezíveis, produtos agrícolas
e riquezas mineiras. Na maior parte dos casos estavam mal
repartidas: geograficamente, o Ocidente muçulmano era
muito melhor dotado do que o Oriente. O cobre - da
Ásia Central, da Alta Mesopotâmia, da Hispânia - abun­
dava, ao contrário do ferro, raro fora das jazidas superfi­
ciais do Magrebe e da Hispânia. A prata provinha do Irão
e da Hispânia e o ouro, sobretudo da Núbia. As pedrei­
ras abundavam no mundo mediterrânico. O Egipto for­
necia o alúmen indispensável à indústria têxtil. A pesca
proporcionava coral e pérolas em abundância.

O artesanato. Estes recursos naturais, completados por


importações, estavam na base de um artesanato activo.
O campo assegurava sempre as suas próprias necessida­
des, mas as indústrias especializadas estavam localizadas
nas cidades. A mais importante era o trabalho têxtil. Regiões
- em certos casos cidades - eram famosas por certos tipos
de tecidos: lanifícios do Magrebe, telas do delta egípcio,
seda da Palestina, do Iraque e das margens do Cáspio,
algodões do Irão. O fabrico de tapetes e tapeçarias, o tra­
balho da madeira e do couro, a joalharia, os vidros e a
cerâmica faziam a fama dos artesãos. A única inovação,
neste domínio, foi a introdução do fabrico do papel - gra­
ças ao contacto com o mundo chinês —, que substituiu a
pouco e pouco o papiro.
O Estado reservava para si certas produções: armas,
navios de guerra construídos nos arsenais marítimos, papiro
e papéis, certos tecidos de luxo fabricados nos tirâz. Mas, Tirâz: termo persa que desig­
ao lado destes ofícios do Estado, o trabalho era feito por na ao mesmo tempo as ofici­
nas estatais de tecelagem e os
artesãos livres utilizando instrumentos muitas vezes rudi­ tecidos que nelas são produ­
mentares em pequenas oficinas, com alguns escravos e zidos.
assalariados. Os próprios artesãos vendiam a respectiva
produção, o que não excluía a existência de pequenos
comerciantes. Só os ofícios do têxtil constituíam objecto
de uma certa hierarquia.
Nas cidades, os ofícios agrupavam-se por ruas ou gru­
pos de ruas, os süq. Os têxteis, com a kaysâriya, ficavam Kaisâriya: entreposto reserva­
geralmente perto da mesquita principal, assim como os do aos têxteis.
ourives e os banqueiros. Os artesãos estavam estreitamente
ligados ao seu ofício.
Um funcionário nomeado pelo cádi era especialmente Hisba: palavra que inicial­
responsável, nas cidades, pelos ofícios e o pequeno comér­ mente designa o dever de to­
cio: o sâhib al-süq, mais tarde chamado muhtasib, quer dizer do o muçulmano «de ordenar
responsável pela hisba. A sua função era a de fazer res­ o bem e proibir o mal» e, pos­
peitar a moralidade pública e os regulamentos adminis­ teriormente, a função da en­
tidade encarregada do policia­
trativos, velando nomeadamente pela exactidão dos pesos mento dos mercados.
e medidas. Os ofícios eram portanto conhecidos da auto-

195
ridade que os controlava, mas não parece, no actual estado
dos conhecimentos, que tenha havido verdadeiras cor­
porações profissionais. Nenhum dos agrupamentos de
facto, cuja existência se constata nas cidades, tinha base
profissional.

5. As cidades e os seus habitantes


no Império Bizantino

■ A aristocracia

Uma das características da sociedade bizantina é que


uma parte importante da aristocracia fundiária, grosso modo
a classe senatorial, ainda que tenha as suas propriedades
na província e, por vezes, muito longe de Constantinopla
e das grandes urbes, vive na cidade e nos subúrbios, onde
aliás exerce, com frequência, funções administrativas. Esta
aristocracia não pode, legalmente, dedicar-se a activida-
des de fabrico e comércio; a taxa de juro a que pode aspi­
rar quando empresta dinheiro está limitada a 4 por cento,
enquanto os mercadores podem receber 8 por cento e as
rendas do Estado vão de 6 a 8 por cento. Em contrapar­
tida, ela recebe a renda de imóveis e de lojas ou oficinas
de que seja proprietária.

■ A burguesia

De todas as categorias sociais de Bizâncio, a burguesia


é a mais difícil de definir porque não suscita qualquer
interesse aos autores das fontes de que dispomos. Os arma­
dores de Constantinopla residem nas zonas portuárias,
mas são mal conhecidos por nós. Não há dúvida que se
deslocam muito pouco: confiam a navegação a um mer­
cador que, além do seu trabalho, contribui com uma parte
do capital e tem direito a metade dos lucros. Os merca­
dores bizantinos tanto circulam dentro das fronteiras do
Império como no exterior, onde são numerosas as men­
ções que lhes são feitas.

Os mercadores estrangeiros. Também os estrangeiros


se instalam no Império, sobretudo em Constantinopla,
cidade muito cosmopolita, o que não deixa de provocar
algumas fricções com a população. Encontram-se aí árabes
provenientes das mais diversas regiões. Mas certos povos
têm lá verdadeiras colónias, permanentes ou não. Os mer-

196
O comércio e a vida urbana (sécs. vui-xi)

cadores russos acantonados no Bósforo, a norte do Corno


de Ouro, no bairro de São Mammas, só têm autorização
para entrar na cidade em grupos de cinquenta, desarma­
dos, o que mostra bem o receio de rixas. São livres de exer­
cer o seu comércio e podem mesmo exportar até cinquenta
soldos de seda cada um, mas não lhes é permitido passar
o Inverno em São Mammas, onde a respectiva estada é
limitada a três meses. Desde o final do séc. xi, certos mer­
cadores ocidentais fixam domicílio em Constantinopla e
formam autênticas colónias. São, primeiro, os Amalfitanos,
presentes desde 944; em meados do séc. xi possuíam mesmo
um mosteiro e uma escola. Quando a sua cidade cai nas
mãos dos Normandos (1073), os Amalfitanos são suplan­
tados pelos Venezianos, aos quais o tratado de 992 já fazia
concessões territoriais e atribuía vantagens comerciais (redu­
ção dos direitos por barco, mas não isenção do kommer-
kiori). Os patrões de conjuntos artesanais importantes parece
terem sido pouco numerosos, mantendo-se a produção
artesanal fragmentada e sendo as manufacturas excepcio­
nais, à parte as do Estado (arsenais, fábrica da seda púr­
pura destinada às vestes imperiais).

Os artesãos e lojistas ■

Os artesãos são ainda mais mal conhecidos, se bem


que estejam à cabeça da célula de base da economia urbana
bizantina, o ergastérion, que designa tanto a oficina como Ergastérion: loja e (ou) ofici­
a loja e, por vezes, ambas ao mesmo tempo. Ao que tudo na artesanal.
indica, na maior parte dos casos o lojista ou o artesão não
são senão locatários do seu ergastérion: o preço dos esta­
belecimentos é, de facto, exorbitante face aos rendimen­
tos extraídos do artesanato. Nunca se trata, pois, de um
homem rico, embora possa ser locatário de vários ergastéria,
neste caso dirigidos em seu nome por um escravo. E o
patrão que faz parte da corporação; em consequência,
como não se pode pertencer a diversas corporações, nin­
guém pode exercer a sua autoridade sobre ergastéria de
diferentes ofícios. Alguns grandes proprietários têm quan­
tidades apreciáveis de ergastéria (sem que eles próprios
façam parte de um oficio); assim, Santa Sofia possui isen­
ção fiscal sobre cento e dez ergastéria, para garantir a gra­
tuidade dos funerais.
O tipo mais conhecido de ergastérion é o que se encon­ Ver mapa p. 396 D.
tra nas ruas de pórtico em Constantinopla, nomeadamente
na Mêsé, e nas principais praças. A loja estende-se em
comprimento, com uma fachada estreita que serve de
montra; o artesão expõe aí os seus artigos; é deixada livre
uma passagem para se deambular diante dessa montra,
havendo um segundo balcão, erguido sobre bancos, do

197
lado exterior dos pórticos. Loja e bancos têm, com fre­
quência, o mesmo proprietário, mas o comércio dos ban­
cos é muitas vezes diferente da actividade do ergastérion.

Os trabalhadores. O ergastérion tipo é uma empresa


familiar. O patrão, membro da corporação do ofício,
emprega antes de mais os membros da sua família. E o
melhor meio de se tornar mestre de ofício é ser filho ou
genro de mestre de ofício. Além dos escravos, ele emprega
um ou dois trabalhadores. O número destes em Cons­
tantinopla é suficientemente importante para que um his­
toriador como Ataliata tenha notado a correlação entre
a subida do preço do pão e de outros bens de primeira
necessidade e as reivindicações salariais. Um operário qua­
lificado é relativamente bem pago: um milliarésion por dia.
O contrato de trabalho é mensal e o Livro do Eparca pro­
tege os patrões artesãos - da mesma forma que contra o
aumento sub-reptício das rendas por instigação de um
concorrente — contra o desencaminhamento de um tra­
balhador durante a vigência do contrato. Um operário
qualificado num ofício com procura de mão-de-obra podia
assim trabalhar cerca de 280 dias por ano e receber um
salário de 20 a 25 nomismata, muito próximo do rendi­
mento líquido de um artesão médio, por exemplo de um
padeiro. Quanto ao operário não-qualificado ou tratando-
-se de um ofício com emprego mal assegurado, a situação
é nitidamente menos brilhante: o respectivo salário não
Kêration: unidade de conta va­ ultrapassa um kêration (metade de um milliarésion) por dia
lendo 1/2 milliarésion. e o número de dias de trabalho é claramente menos ele­
vado; o seu rendimento anual, que não vai além dos 8 a
9 nomismata, não permite assegurar regularmente o
mínimo vital de uma família. Está muito perto da consi­
derável massa dos marginais sem emprego nem domicí­
lio fixo, que constituem uma parte importante da popu­
lação das grandes cidades e sobretudo de Constantinopla.

Os escravos. Na maior parte das oficinas, tal como na


maior parte das explorações rurais, encontram-se um ou
dois escravos. Estes desempenham, na economia urbana,
um papel tão importante como nos campos. As centenas
que trabalham nas manufacturas imperiais (sedas, armas)
são pouca coisa ao lado dos que servem nos ofícios. O escravo
qualificado é procurado e caro: trinta soldos, quando não
cinquenta, por um escravo capaz de ser notário (negó­
cios, contabilidade), ou mesmo uma libra de ouro por um
eunuco qualificado.
A condição real dos escravos é, na realidade, melhor
do que a de muitos operários, já que aqueles têm, por
definição, emprego e alimentação assegurados. Como não
tem personalidade jurídica e o dono é inteiramente res-
O comércio e a vida urbana (sécs. vin-xi)

ponsável pelos seus actos, podem substituir este último e,


portanto, encontrar-se à cabeça de um ergastérion. Por
outro lado, a alforria dos escravos é frequente, designa­
damente desde que Leão VI convidou os donos a atribuir-
-lhes a propriedade do respectivo pecúlio.

A evolução da sociedade e da economia urbanas ■


nos sécs. X e XI

Um certo número de dados levam a que nos interro­


guemos sobre este assunto. Assim, o historiador Pselo cen­
sura Constantino Monómaco (1042-1055) por ter subver­
tido «a hierarquia das honrarias»: «abriu o Senado a quase
toda a gente». Substituiu o mérito do nascimento pelo do
acesso às mais altas funções do Estado, a que eram geral­
mente inerentes as dignidades que abriam as portas do
Senado; recrutava os titulares nas repartições povoadas
por uma parte dos filhos da burguesia constantinopoli-
tana ou dos pequenos funcionários provinciais. O mesmo
Pselo revela que os Bizantinos tomaram consciência da
existência de um grupo social urbano (o grupo «político»,
por oposição ao grupo militar). A burguesia da capital
(mercadores, principais artesãos) assume, assim, uma tal
importância que pode reivindicar uma participação no
poder, tentando o imperador basear-se nela para se opor
à aristocracia fundiária, numa altura em que lhe falta o
apoio do pequeno campesinato proprietário. A limitada
influência conquistada pela burguesia mede-se pelo rápido
fracasso desta política.
Resta explicar este desenvolvimento, restrito mas incon­
testável, da burguesia da capital, e sem dúvida de outras
cidades, quer dizer, da expansão urbana, sensível na pro­
víncia pela criação de novos kastra e pelo crescimento das Kastron: praça forte, logo ci­
antigas cidades. A evolução monetária é, a este respeito, dade.
Tetartéron: moeda emitida por
um sinal importante. Com Nicéforo Focas aparece uma Nicéforo Focas e os seus su­
nova moeda de ouro designada por nomisma tetartéron, por cessores, mais fraca do que o
oposição à habitual moeda de pleno peso, o nomisma his- nomisma.
taménow. o tetartéron tem um peso de ouro mais fraco em Nomisma: ver p. 183.
cerca de um duodécimo. Nos reinados de Focas e Tzimístis
a moeda é, exteriormente, em tudo idêntica ao histamé-
non\ os dois imperadores visavam pois, sobretudo, um
lucro de cunhagem. Mas, de futuro, o tetartéron mostra-se
muito diferente do histaménon: subsiste como uma moeda
divisionária, correspondendo a uma necessidade que o
sistema muito rígido nomisma-milliarésion-phoUisyã não pode
satisfazer num período em que as trocas se multiplicam.
O estudo das desvalorizações monetárias do séc. xi con­
firma esta impressão. O nomisma mantivera-se estável, com
um nível de variação entre 99% e 90%, desde Justiniano.

199
No princípio do reinado de Aleixo I (1081), não contém
mais do que 36% de ouro; o mesmo no que toca ao mil-
liarésion de prata. Dez anos mais tarde, Aleixo restabelece
um sistema baseado em um nomisma, dito hiperpero, com
90% de ouro e caracterizado pela abundância das moe­
das divisionárias. A desvalorização começa com a terceira
emissão de Monómaco e prossegue de maneira quase con­
tínua até ao final do reinado de Constantino X (1068);
em vinte e cinco anos, atingiu somente 16% (taxa anual
inferior a 0,7%). Permanecendo rigorosa a política fiscal
destes imperadores e não estando os cofres do Estado mais
vazios do que habitualmente, a desvalorização explica-se,
pelo menos em parte, pela insuficiência da massa mone­
tária relativamente às necessidades, isto é, numa época
em que os preços são estáveis e em que a velocidade de
circulação da moeda pouco evolui, pelo aumento das mer­
cadorias trocadas.
Este desenvolvimento comercial permitia uma expan­
são da burguesia constantinopolitana. Todavia, a expan­
são não foi suficiente para tornar a burguesia indispen­
sável. Quando Aleixo I Comneno toma o poder em 1081,
os seus adeptos desencadeiam a caça aos novos senado­
res para os humilhar. O imperador decreta que a quali­
dade senatorial é incompatível com o exercício das acti-
vidades mercantis e impõe aos interessados que escolham
entre a sua pertença ao Senado e a sua actividade eco­
nómica.
Os mercadores foram assim afastados da aristocracia.
O crisobulo outorgado aos Venezianos em 1082 enfra­
quece, aliás, a sua posição económica. A burguesia cons­
tantinopolitana não tinha atingido no séc. xi a massa crí­
tica que a tornaria indispensável e que teria permitido o
desenvolvimento de um mercado urbano independente
da aristocracia fundiária e militar, dotado da sua própria
lógica económica.

6. As cidades e os seus habitantes


no mundo muçulmano

■ A cidade muçulmana

Na época abássida, as cidades manifestam claramente,


pela sua estrutura, que são o lugar da vida política e reli­
giosa, e o motor da vida económica. O poder político e
administrativo reside na cidade: califas e emires são nelas

200
O comércio e a vida urbana (sécs. vni-xi)

proclamados e reconhecidos, aí governam, rodeados de


todo um mundo de empregados administrativos e secre­
tários - os kuttâb. Numerosas cidades comportam assim Kuttâb (sing. Kâtib}'. escribas.
um bairro do poder, por vezes criado de forma planeada, Trata-se essencialmente dos
funcionários e secretários dos
acompanhado ou não de uma cidadela ou uma zona mili­ diversos dtwâns.
tar.
As instituições religiosas estão também concentradas
na cidade: numerosas mesquitas atestam o domínio do
islão. Uma destas, a djâmi\ onde se faz a oração colectiva Djâmi*: mesquita destinada a
da sexta-feira, é muitas vezes o centro geográfico da urbe; reunir a comunidade muçul­
mana para a oração solene de
o califa é nela reconhecido e o seu nome citado durante
sexta-feira, no que se distin­
a khutba-, os crentes reúnem-se aí. Em torno destas mes­ gue das outras mesquitas (mas-
quitas gravitam os doutores, os ulemás, estreitamente asso­ djid) que podem ser conside­
ciados ao regime abássida. O palácio do governador fica radas como simples lugares de
frequentemente na sua vizinhança. oração sem valor oficial. O ter­
mo djâmi’ é às vezes traduzi­
Não longe da djâmi’, süqs e mercados atestam a inten­ do por grande mesquita ou,
muito incorrectamente, por
sidade da vida económica de uma cidade que está longe
mesquita-catedral.
de ser um simples prolongamento do campo. Os produ­ Khutba: alocução mais ou me­
tos da agricultura acumulados através do imposto ou das nos religiosa proferida pelo
rendas são aí vendidos e trabalhados; os pequenos mer­ iman que dirige a oração so­
cadores oferecem os artigos do artesanato local de que lene da sexta-feira, em nome
do califa.
são muitas vezes os próprios fabricantes; os produtos do
grande comércio passam do funduq para o circuito do
pequeno comércio.
Entretanto, é impossível imaginar uma cidade-tipo
muçulmana na base destes diferentes elementos. E que,
mais do que da cidade muçulmana, é das cidades muçul­
manas que se deve falar. A diversidade das tradições das
civilizações anteriores, geralmente urbanas, a imensidade
do domínio do islão e a variedade das condições locais
que daí decorre, a própria evolução das urbes criadas
pelos Árabes fazem «da» cidade muçulmana uma imagem
do espírito. Um exemplo permitirá talvez compreender
como os Árabes começaram por conceber uma cidade e
como ela evoluiu.
Assim, Baçorá foi criada aquando da conquista, em
função de uma rota que era necessário controlar, como
um campo militar: os soldados árabes foram nela repar­
tidos em bairros consoante o respectivo clã; lá se instalou
uma residência para o governador e um centro para a
oração em comum. A cidade muçulmana dos primeiros
tempos do islão apresenta-se pois como um centro polí­
tico apto para as comunicações e a defesa e um centro de
vida religiosa. Os elementos árabes formam ali uma espé­
cie de aristocracia, mas a pouco e pouco instalam-se nela
e mawâli. No seu apogeu, nos sécs. ix e x, Baçorá
apresenta-se como uma grande metrópole, porventura
com cerca de 200 000 habitantes, que rivaliza com Bagdade.
Centro comercial e financeiro que atrai judeus e cristãos,

201
centro industrial com os seus arsenais, intenso foco inte­
lectual e religioso, domina uma rica região de cana-do-
-açúcar e de tamareiras. Os problemas que aí se levanta­
ram por ocasião da revolta dos Zandj traduzem a influência
que Baçorá exercia sobre toda essa vasta zona. Assim, pas-
sara-se da original função política e militar para uma fun­
ção económica diversificada, que se repercute largamente
nas actividades do espaço rural envolvente; de uma cidade
de povoamento exclusivamente árabe a uma cidade cos­
mopolita, tanto do ponto de vista étnico como do reli­
gioso. Entretanto, o carácter muçulmano da cidade man­
teve-se, e até se ampliou, em resultado do desenvolvimento
dos diversos ramos do saber a partir das investigações con­
duzidas em torno do Alcorão. A personalidade e a obra
do grande prosador al-Djâhiz (nascido em Baçorá em 776
e aí falecido em 869) ilustram o advento da cidade como
foco cultural.

■ Grupos urbanos

A cidade é assim característica da civilização muçul­


mana, mas sem que tenha qualquer existência legal.
O direito muçulmano não reconhece qualquer institui­
ção intermédia entre o crente e a umma. A cidade é orga­
nizada, mas nenhum dos elementos dessa organização,
seja o cádi seja o muhtasib, emana da população. No entanto,
esta falta de instituições formais não significa ausência de
agrupamentos de facto.
Assim, as comunidades de dhimmi existem, traduzindo
os diversos bairros uma certa unidade: defrontam-se fac­
Asabiyya: «espírito de paren­ ções em nome de tal ou tal doutrina, e a palavra asabiyya,
tesco» que une os membros pela qual se designam esses grupos, traduz bem a exis­
de uma família ou de uma tri­ tência de solidariedades com bases diversas. Mas a natu­
bo, mas também os elemen­
tos de uma facção urbana. reza exacta dessas formas de organização e de solidarie­
O termo celebrizou-se sobre­ dade colectivas coloca ao historiador problemas tanto mais
tudo pelo uso que dele fez Ibn espinhosos quanto as fontes põem em cena grupos cujas
Khaldün (historiador árabe fa­ bases variaram ao longo dos séculos e cujo papel é difícil
lecido em 1406) ao colocar es­
te conceito na base da sua in­
de definir.
terpretação da história das No princípio da época abássida, as cidades assistem
sociedades humanas.
ao desenvolvimento de grupos de jovens, de meios diver­
sos, reunidos em pequenas colectividades, com o único
objectivo de viverem confortavelmente na solidariedade
e na camaradagem. Estes jovens são os fityân. Este termo,
utilizado no plural, deriva do singular fatâ, que desig­
nava desde os tempos pré-islâmicos o jovem (por oposi­
ção ao homem de idade madura) caracterizado por uma
virtude, a futuwwa, feita de valentia na guerra, de gene­
rosidade, de força e independente de qualquer vínculo \
tribal.
O comércio e a vida urbana (sécs. VIII-XI)

Progressivamente, no decurso do período abássida,


sobretudo a partir do séc. x, as fontes dão conta de outros
agrupamentos, tanto no antigo mundo bizantino como
no sassânida, e que aparecem como elementos de oposi­
ção. Duas palavras os designam, diferentes consoante a
área geográfica considerada: são os ahdâth e os ayyârun. Ahdâth: literalmente, jovens
Na Síria, na Mesopotâmia, sobretudo em Alepo e Damasco (mascul.). Palavra que, no
no séc. x, as fontes falam dos ahdâth ora em oposição ao séc. x, designa uma espécie de
milícias urbanas na Síria.
poder ora encarregados de funções de polícia; formam Ayyârun: literalmente, vaga­
uma espécie de polícia municipal e recebem um soldo; bundo, brigão. Este termo
incorporam por vezes nas suas fileiras elementos da bur­ abrange realidades sociais
guesia e constituem com frequência a clientela desta ou complexas e flutuantes. Tanto
designa grupos de combaten­
daquela grande família, à qual pertence o respectivo chefe tes no Iraque ou na Tran-
- o ra*is. A autoridade e influência deste podem equili­ soxiana, como bandos de opo­
brar as do cádi. sitores nas cidades prontos a
revoltarem-se contra os ricos
Em Bagdade, mas também no conjunto do mundo ira- e os poderosos. Nos períodos
quo-iraniano, aparecem os ayyârun, ou seja, vagabundos, em que o poder é mais fraco,
fora-da-lei, desordeiros. São muitas vezes assalariados sem apresentam-se como fautores
de desordens.
ofícios estáveis que, em períodos de relaxamento da auto­
ridade, pilham, roubam e tentam infiltrar-se na polícia
para melhor a neutralizar. Os laços entre ayyârun e fityân
são certos, mas ainda mal conhecidos. Estamos, no entanto,
bem longe do ideal inicial da futuwwa. Talvez por isso se
iniciará no séc. x e se desenvolverá mais tarde toda uma
reflexão sobre esse ideal perdido.
Nenhuma passividade, portanto, nas cidades. Existem
nelas hierarquias de facto. Grandes mercadores e funcio­
nários detêm a maior fatia do poder, antes de se desen­
volver uma nova aristocracia - a dos militares.

A rede urbana ■

Várias cidades foram fundadas em países do islão desde


o período das conquistas: Baçorá e Cufa no Iraque, Xiraz
no Irão, Fustât no Egipto, Cairuão em Ifriqíya, nomea­
damente. A estas cidades-acampamentos, tornadas em
grandes centros comerciais e intelectuais, juntaram-se
outras cidades criadas: os aglomerados que cresceram em
torno de um santuário, como Meshshed e Qumm no Irão,
e sobretudo as cidades reais. Com efeito, os soberanos
muçulmanos manifestaram desde cedo o gosto de cons­
truir para si residências faustosas, onde viviam rodeados
da sua guarda e onde reuniam os órgãos administrativos
necessários. Rapidamente se instalavam nas proximidades
cidades comerciais, permitindo a essas criações régias tor­
narem-se verdadeiras metrópoles, como Bagdade ou Fez.
Se o domínio do islão se traduziu por uma multiplicação
do número de cidades e um crescimento das antigas urbes,
esta tendência geral não deve fazer esquecer que vastas

203
regiões da Mesopotâmia, do Irão, do Egipto e do Magrebe
permaneciam fundamentalmente rurais e que muitas cida­
delas fundadas por um príncipe depressa se desfaziam em
ruínas e eram reabsorvidas pelo deserto. Os vestígios de
Samarra e dos castelos do deserto sírio, ou ainda as ruí­
nas de Razni e de Lashkari Bâzâr nos vales do Hindu Kush,
oferecem grandiosos testemunhos disso.
Um prodigioso desenvolvimento urbano caracteriza
assim o mundo do islão. Entre cidades herdadas e cida­
des criadas, as diferenças esbatem-se com o correr do
tempo. A níveis diversos, encontram-se nelas as mesmas
funções. Meios de comunicação tecem entre si uma autên­
tica teia. Os califas copiaram dos Bizantinos e dos Sassânidas
Baríd: serviço oficial dos cor­ o sistema da posta pública, cujo serviço ou baríd ê um dos
reios e informações. mais importantes do califado. Mais de novecentas e trinta f
Khân: caravançarai composto mudas, distantes entre si de 12 a 24 quilómetros, margi- í
normalmente de um extenso
pátio quadrado, fechado e for­ nam as estradas. As obras dos primeiros geógrafos, como |
tificado, que serve de pousa­ Ibn Khurdâdhbâh, dão testemunho da sua importância. |
da às caravanas. Nestas estradas, a carroça é cada vez mais substituída pelo |
camelo, que revoluciona a economia viária porque é «o I
animal mais rápido, mais confortável, melhor adaptado à |
travessia de grandes espaços sem água». A estrada é, assim, |
sobretudo uma pista, uma via caravaneira, bordejada de 1
caravançarais ou khâns. |
I
O tecido urbano não tem em toda a parte a mesma den­
sidade, em resultado das tradições regionais e das escolhas |
políticas. Deve-se, aliás, relativizar a amplidão da urbani- |
zação. Determinadas regiões, como a Síria, estavam já muito I
urbanizadas e o islão nada lhes trouxe de novo. Certas cida- |
des, como Samarra, apenas tiveram uma importância pro- |
visória, outras somente deveram o seu desenvolvimento à |
Bagdade: a cidade começou ruína de urbes antigas: Bagdade suprimiu Ctesifonte, Cairuão |
por ser concebida como uma eliminou Cartago, Alepo enfraqueceu Antioquia. j
capital política: os edifícios da
administração dispõem-se em
círculos concêntricos em tomo
Iraque. A Mesopotâmia é uma região de criação de |
do palácio califal e da grande cidades: os primeiros califas fundaram Baçorá, Cufa, mais |
mesquita. O conjunto é en­ tarde Wasit, na margem árabe do Eufrates, nas rotas para |
volvido por uma muralha cir­ a Arábia e a Síria. Os Abássidas criaram Bagdade e, pos- f
cular aberta por quatro por­ teriormente, Samarra. Ligadas ao califado, as cidades do |
tas na extremidade das quatro
grandes ruas da Cidade Re­ Iraque decaíram com ele, a começar pela capital, Bagdade. |
donda. Por medida de segu­ Coração de um império centralizado, Bagdade está loca- |
rança. comércio e artesanato lizada numa encruzilhada. A cidade foi implantada sobre j
foram rejeitados para o exte­ o Tigre - cujo curso inferior, pantanoso e impróprio para f
rior e estabeleceram-se a sul,
no subúrbio de al-Karkh. Uma
a navegação, soube evitar na junção do canal navegá- M
ponte de barcas permitia a tra­ vel que liga o rio ao baixo Eufrates. Aí se cruzam as rotas:
vessia do rio. tendo-se criado fluviais para o baixo Eufrates e o golfo Pérsico, para o alto H
na margem esquerda um bair­ Tigre e a Arménia; terrestres para a Síria, a Arábia e o
ro residencial onde os califas
Irão. No séc. ix era provavelmente a maior cidade do llj
não demoraram a edificar pa-
í lácios. Ver mapa p. 396 C. mundo, com uma população que se contava por ceiUfe-i^ÉM
nas de milhar.

204
O comércio e a vida urbana (sécs. vin-xi)

Irão. No Irão, o passado sassânida e as rotas carava-


neiras explicam a rede urbana. As grandes cidades ficam
à beira de terras altas que asseguram as suas necessidades
em água, perto de terrenos agrícolas e numa via comer­
cial: é o caso de Tabriz, Rcy, Nichapur, Harat. Os primei­
ros estabelecimentos urbanos dos Árabes surgiram ao lado
de antigas cidades designadas em persa pelo nome de sha-
ristan e nas quais se erguia muitas vezes uma cidadela. Essas
duplas cidades - caso de Merv - fundiram-se posterior­
mente: a sharistan persa tornou-se então o centro da nova
urbe. Com frequência, a cidade era assistida por postos
militares avançados. O islão não criou qualquer cidade no
Irão, mas funcionou como um factor de reanimação urbana:
exemplo disso é Samarcanda que, durante o domínio samâ-
nida, teria abrigado 500 000 habitantes nas suas quatro
cercas concêntricas. A proximidade dos nômadas condi­
cionou fortemente as cidades iranianas.

Síria. Na Síria, as cidades do interior, como Damasco,


Alepo e Jerusalém, continuam a desenvolver-se, mesmo após
a queda dos Omíadas. Elas facilitam as relações entre o
mundo mediterrânico e a Mesopotâmia. Damasco manteve-
se como um centro de produção agrícola e artesanal e
Jerusalém adquiriu a importância religiosa que os primei­
ros desenvolvimentos do islão permitiam prever, sem nunca
deixar de ser um centro de peregrinações judaicas e cris­
tãs. Os portos vêem intensificar-se a actividade e equipam-
se com cais, diques e construções marítimas. E o que se
passa em Tiro, Acre e as-Suwaydiyya (porto de Antioquia).

Egipto. O Egipto conhece as maiores transformações


sobretudo nos finais do séc. x, quando a presença fatí-
mida acelera a abertura às trocas. Entretanto, as primei­
ras dinastias emirais independentes tinham deixado os
seus vestígios. A evolução de Fustât-Cairo ilustra esta his­ Cairo: em 641, Amr funda o
tória. No princípio encontra-se a pequena cidade greco- campo de al-Fustât a norte da
antiga Babilónia do Egipto.
-romana de Babilónia, na margem oriental do Nilo, frente Os serviços públicos, nas mãos
à ilha de Roda, onde era possível, mediante duas pontes de funcionários coptas, man­
de barcas, a travessia do rio. Babilónia domina, assim, a têm-se em Babilónia até ao
rota da Síria ao Magrebe, permitindo evitar as dificulda­ séc. viu. Em 750 é fundada,
des do delta do Nilo. Beneficia do duplo tráfico do Nilo mais a norte, al-Aqsar. Ocorre
em seguida a fundação, pelos
e do mar Vermelho, ao qual está ligada pelo velho canal Tulúnidas, de uma quarta ci­
dos faraós, que passa a canal dos califas. A cidade, ou dade, al-Qatâ’i, com a sua
melhor, a sucessão de cidades que é Fustât-Cairo, desen­ grande mesquita. Finalmente
volve-se aí, na margem direita do Nilo. nasce al-Qâhira (o Cairo), com
palácios e a célebre mesquita
al-Azhar, criada em 972. Ver
Magrebe. No Magrebe, as cidades desenvolvem-se em mapa p. 396 A.
função da sua situação relativamente ao comércio tran-
sariano e, no caso da Ifriqiya, ao mar. Cairuão, fundada
em 670, conhece uma grande expansão com os Aglábidas,
o que se traduz na reconstrução da grande mesquita. Está

205
rodeada por outros centros urbanos: al-Raqqâda, a sudoeste,
onde os Aglábidas se puseram ao abrigo dos Cairuaninos,
e al-Mansúriyya, criada pelos Fatímidas com o mesmo fim.
Na costa, Tunes, fundada como arsenal, cresce a partir
de um antigo arrabalde de Cartago, Tynés. No outro
extremo do Magrebe, onde ainda se poderia citar Táhert,
os velhos centros romanos apagam-se perante Fez, povoada
por Cordoveses e Cairuaninos.

Hispânia. Na Andaluzia, as cidades muçulmanas são as


antigas urbes. As duas únicas verdadeiras fundações são
Alméria, um arsenal no litoral mediterrânico, e al-Qasr,
voltada para o Atlântico. O mais notável desenvolvimento
urbano é o de Córdova, frente à última ponte romana
que marca o limite, a montante, da navegabilidade do
Guadalquivir. Em 718, o governador árabe instala-se aí,
constrói muralhas, enquanto os subúrbios se estendem
pela margem sul do rio. No séc. x assinala-se o maior
desenvolvimento: a cidade propriamente dita, a Medina,
tem sete portas, e al-Rabad - um arrabalde - conta com
vinte e um bairros que crescem em todas as direcções.
Os sucessivos alargamentos da grande mesquita traduzem
o aumento constante de uma população que atinge, pro­
vavelmente, as 300 000 pessoas. Fora da cidade sobrepo-
voada, as residências sucessivas dos califas - Madinat al-
Zahra’, fundada em 836 por Abd al-Rahmân III, e al-Madina
al-Zâhirâ, fundada em 978 por al-Mansür - testemunham
o luxo que se vivia na corte de al-Andalus.
A riqueza destas cidades, cujos monumentos e vestígios
arqueológicos atestam ainda hoje o esplendor passado,
assentava no seu papel de capitais políticas, de pólos comer­
ciais e de metrópoles intelectuais. Mas estas actividades,
que conheceram fortes inflexões ao longo dos tempos, só
podiam desenvolver-se em relação com o campo circun­
dante, do qual a cidade drenava as riquezas e sobre o qual
estendia o seu poder. Se a história das cidades do mundo
muçulmano sempre pôs o acento na ligação entre o poder
político e o desenvolvimento urbano, interrogamo-nos hoje
sobre as relações entre a urbe e o território que ela domi­
nava e de que retirava a própria existência.

Para aprofundar este capítulo

Sobre o comércio bizantino: ter em conta a bibliogra­


fia geral, p. 14. Completá-la com H. Antonianis-Bibicou,
Recherches sur les douanes à Byzance, Paris, 1963. Sobre o

206
O comércio e a vida urbana (sécs. vni-xi)

comércio da seda: ver N. OlKONOMIDES, «Commerce et


production de la soie à Byzance», em Hommes et Richesses
dans Vempire byzantin, citado na bibliografia geral, p. 14,
pp. 187-192.
Sobre os problemas monetários: C. MORRISSON, «La
dévaluation de la monnaie byzantine au XIe siècle: une
réinterprétation», Travaux et Mémoires, t. 6, pp. 3-48; C.
MORRISSON, «La Logariké: réforme monétaire et réforme
fiscale sous Alexis ler Comnène», Travaux et Mémoires, t. 7,
Paris, 1979, pp. 419-464.
Sobre os ofícios: ver a reedição do Livre du Préfet, apre­
sentação de J. DujCEV, Londres, Variorum Reprints, 1970;
N. OlKONOMIDES, «Quelques boutiques de Constantinople
au Xe siècle; prix, loyer, imposition», Dumbarton Oaks
Papers, 26, 1972, pp. 345-356. Mais precisamente, sobre
os ofícios da seda, R. S. LOPEZ, «Silk Industry in the Byzan­
tine Empire», Speculum, t. 20, 1965, pp. 1-42.
Sobre a sociedade urbana: N. SVORONOS, artigos cita­
dos p. 14.

Quanto ao mundo muçulmano: ver a bibliografia p. 15.


Utilizar com prudência as obras póstumas e largamente
controvertidas de M. LOMBARD e nomeadamente LTslam
dans sapremière grandeur (VIII-XT siècles), Paris, 1971. O essen­
cial da bibliografia encontra-se agora em C. CAHEN,
Introduction..., pp. 89-93 e pp. 134-135 e em múltiplos arti­
gos de EI/2, com os nomes das cidades (Baçorá, Bagdade,
etc.), dos produtos (harir, seda), etc.
Quanto ao comércio: na falta de uma síntese recente,
deverá utilizar-se o estudo baseado nos documentos da
Geniza do Cairo: S. D. GOITEIN, A Mediterranean Society, 4
vols., 1967-1983; J. AUBIN, «La ruine de Siraf et les routes
du golfe Persique aux XIe et XIIe siècles», Cahiers de civi-
lisation médiévale, 1959; RlCHARDS (ed.), Islam and the Trade
ofAsia, 1979; Kh. Seeman (ed.), Islam and the Medieval West,
1980; C. CAHEN, «L’alun avant Phocée», Journal of the
Economic and Social History of the Orient, 1963. J.-C. GARCIN,
«Pour un recours à Fhistoire de Pespace vécu dans 1’étude
de 1’Égypte arabe», Annales ESC, 1980; Y. RAGHIB, Marchands
d’étoffe du Fayyoum au IIIe-IXe siècle dyaprès leurs archives,
2 vols., Cairo, 1982-1985. Para uma reflexão geral: ver M.
RODINSON, Islam et Capitalisme, Paris, 1966.
Sobre as cidades e o artesanato, A. HOURANI e S. M.
STERN (ed.), Islamic City, Oxford, 1970. Sobre Bagdade: o
número especial de Arabica, 1962; J. Lassner, The Topography
of Baghdâd in the Early Middle Ages, Detroit, 1970. Sobre
Baçorá: C. PELLAT, Le Milieu basrien et laFormation de Gâhiz,
Paris, 1953. Sobre Cufa: H. DjAIT, Al-Küfa, citado p. 89.
Sobre os meios urbanos: C. CAHEN, «Mouvements popu-

207
laires et autonomisme urbain dans 1’Asie musulmane au
Moyen Age», Arabica, 1958 e 1959; P. Chalmeta, El Senor
dei Zuoco en Espana, 1975; S. D. Goitein, «The Rise of the
Near-Eastern Bourgeoisie», Cahiers d’Histoire mondiale, 1957;
S. SABARI, Mouvements populaires à Bagdad à 1’époque abbâs-
side, IXe-XT siècles, Paris, 1981.

208
12
Os novos aspectos
do mundo oriental
e a viragem do séc. xi

No séc. XI, o alargamento da zona de influência religiosa de Bizâncio no mundo eslavo não bas­
tou para compensar a incompreensão e - mais do que isso - a hostilidade manifestadas pelo Ocidente
a seu respeito, nem as ameaças que recaem sobre o seu território: Constantinopla é cercada pelos Russos
e a Asia Menor conhece as primeiras investidas dos nômadas turcos que aí acabariam por se insta­
lar duradouramente. E, no entanto, no mundo muçulmano que se operam as transformações mais
profundas: Turcos seljúcidas e Berberes almorávidas criam novos conjuntos territoriais. E se a con­
quista turca, em si, não apelava à cruzada, a intransigência dos Almorávidas endureceu na Hispânia
a vontade de reconquista dos Cristãos. Entretanto, para Bizâncio, já atacada a leste e a norte, mais
do que para o mundo muçulmano, reorganizado e reforçado na sua ortodoxia, a expansão nascente
do Ocidente cristão seria marcada por um nítido recuo.

1. Bizâncio e os mundos exteriores

Constantinopla e Roma ■

Posição dos problemas. O vigésimo oitavo cânone do


concílio de Calcedónia reconhecia a ascensão do arce­
bispado constantinopolitano, a quem eram atribuídos o
segundo lugar na hierarquia - a seguir ao papado - e a
jurisdição sobre um extenso território. Não regulava, porém,
todos os problemas, que o enfraquecimento progressivo
de Roma a pouco e pouco ampliaria.
O concílio de Calcedónia concedia, com efeito, a pri­ Papa: título dado ao bispo de
mazia à cadeira de S. Pedro. Constantinopla limitou essa Roma e ao de Alexandria.
Patriarca: título dado aos bis­
prerrogativa a uma primazia honorífica, que deixava à pos de Antióquia e de Alexan­
nova Roma uma absoluta independência disciplinar. Pelo dria e, posteriormente, aos de
contrário, Roma entendeu dar um conteúdo efectivo ao Constantinopla e de Jerusa­
seu primado e servir, portanto, de jurisdição de recurso lém.
para os fiéis submetidos ao arcebispo de Constantinopla.
A elaboração do dogma continuava, em qualquer caso, a
caber aos concílios.
A divisão geográfica das jurisdições tinha confiado o
Ilírico a Roma, em conformidade com a tradição e com
a língua que aí se falava (o latim). Mas as invasões esla­
vas dos sécs. vi e vii subverteram o esquema político, étnico

209
e linguístico. Desde logo se abre a disputa entre as duas
Romas, que tentam controlar a jurisdição dessa região,
aproveitando-se de acontecimentos políticos e religiosos.

Roma sai do Império. A reconquista de Justiniano tinha


reaproximado muito o papa do imperador. Este último
utilizou o papa Vigílio nas querelas religiosas. Roma fazia,
incontestavelmente, parte do Império e Gregório Magno
(590-602), que aliás desconhecia a língua grega e con­
duzia uma política independente no Ocidente, procla­
mava-se súbdito bizantino.
Invasões eslavas: ver pp. 76-79. As invasões eslavas nos Balcãs e, sobretudo, as invasões
Invasões lombardas: ver p. 73. lombardas em Itália isolaram Roma de Constantinopla.
A partir do final do séc. vil o Imperador não volta a apa­
recer em Itália como o tinha feito ainda Constante II (647-
-668). Em 692, o patriarcado de Constantinopla reúne um
In Trullo: nome dado ao con­ concílio especificamente oriental - o concílio In Trullo.
cílio de 692 que se reuniu nu­ Este regulamenta as praxes da Igreja oriental sem se preo­
ma sala do palácio imperial, cupar com a do Ocidente, assim se institucionalizando as
designada por o Trullum.
i primeiras divergências sobre a prática religiosa.
Os acontecimentos do séc. vni consumam o corte. Por
um lado, o Ocidente recusa o iconoclasmo, cuja origem
oriental é conhecida, e o papa ergue-se, como defensor
da ortodoxia, contra um patriarca herético. Por outro
lado, a presença bizantina em Itália torna-se cada vez mais
discreta após o desaparecimento do exarcado de Ravena
em 751, sendo o papa levado a procurar outro protector,
que encontra na monarquia franca dos Carolíngios. Assim
se chega à coroação de Carlos Magno em 800: o papa rati­
fica a criação de um outro império e coloca-se sob a sua
protecção; recebe, em troca, o reconhecimento oficial de
um Estado pontifical que, desde Gregório Magno, o papado
tinha a pouco e pouco organizado. Roma abandona assim
Bizâncio, volta-se para o Ocidente e deixa o patriarcado
constantinopolitano em posição de monopólio no seu
Império; o patriarcado fica também livre de recusar a auto­
ridade romana, sem com isso correr o risco de o impe­
rador apoiar Roma.

FÓCIO: quanto à sua carreira O caso Fócio. O enfraquecimento do papado e do


de letrado, ver p. 231.
Império bizantino no começo do séc. IX mascara as diver­
gências. A retoma da expansão bizantina nos Balcãs após
o fim do iconoclasmo (843) e a subida de dois homens
enérgicos e valorosos às cátedras romana (Nicolau I) e
constantinopolitana (Fócio) desencadeiam um conflito
violento, de origem jurisdicional.
Os Bizantinos asseguram a conversão da Morávia e da
■ Bulgária, embora a primeira se volte para a obediência
l romana. Nicolau I reconhece o punho enérgico de Fócio.
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

Ora, as querelas internas da Igreja bizantina, exacer­


badas pela luta anti-iconoclástica e por conspirações pala­
cianas em Constantinopla, permitem a Nicolau I intervir
em nome da primazia reconhecida em 451. Efectivamente,
em 858, uma revolta de palácio garante o triunfo dos
moderados que obtêm a demissão do «zelota» Inácio; Zelota: partidário muito zelo­
Fócio torna-se patriarca. Ora Fócio é entronizado por um so de qualquer causa.
bispo deposto por Inácio, e que tinha apelado desta deci­
são para Roma, isto antes de Roma ter tomado o seu vere­
dicto. Além disso, os adeptos de Inácio recorrem a Roma,
contestando o carácter voluntário da demissão do
patriarca. Em pano de fundo, perfila-se a questão do
Ilírico.
Nicolau I, em nome da primazia romana, recusa-se a
homologar as decisões de sínodos constantinopolitanos
que confirmam a eleição de Fócio. Afirma o princípio de
que a sua jurisdição pessoal se sobrepõe aos sínodos e
proclama Fócio destronado e Inácio restabelecido em 863.
Mas o problema da Bulgária faz alinhar o poder imperial
por Fócio; em 867, o imperador preside a um concílio
que excomunga Nicolau, condena as suas intervenções no
Oriente e acusa Roma de heresia a propósito de práticas
litúrgicas e do Filioque. Filioque: no séc. IX, os Ociden­
tais acrescentam, na confissão
Todavia, alguns meses mais tarde, Nicolau I parece de fé, que o Espírito Santo
triunfar. Basílio I destrona Miguel III (Novembro de procede do Pai e do Filho {a
867) e depõe Fócio para... restabelecer Inácio na sé Paire Filioque). O facto do adi­
tamento do Filioque é certo,
constantinopolitana. Basílio convoca um concílio (869- mas o seu valor teológico é
-870) para excomungar Fócio. Mas Inácio e Fócio recon­ discutível.
ciliam-se, Fócio sucede a Inácio, falecido em 877, e o
papa João VIII aceita que um novo concílio anule o pre­
cedente. A querela parece esquecida. Fócio acabou
por garantir a sua independência, mas o vigor com que
cada parte se esforça por conseguir o apoio de Roma
demonstra que o prestígio do papa continua a ser impor­
tante, ainda que tenha perdido toda a autoridade efec-
tiva.

O século xi. Até ao séc. xi, época da reforma da Igreja


ocidental, o concílio de 869-870 permanece no esqueci­
mento. Alguns incidentes sem gravidade opõem as duas Sobre as disputas de Leão VI
e Nicolau Místico, ver p. 130.
Romas, mas a sua natureza é política: intervenção do papa
contra o imperador Leão VI, ao lado de Nicolau Místico
(906-912); coroação imperial de Henrique II por Bento VI
em 1016. Mas o importante é o fosso que se aprofunda,
a pouco e pouco, entre os dois mundos, que já não falam
a mesma língua nem têm as mesmas práticas litúrgicas.
E assim que um patriarca como Miguel Cerulário (1043-
-1057) suporta com dificuldade que os Latinos presentes
em Constantinopla não respeitem nem os seus ritos nem
a sua autoridade.

211
O único ponto de contacto entre os dois mundos con­
tinuava a ser a Itália Meridional, onde ombreavam bispa­
dos e mosteiros das duas obediências. Acresce que, desde
a chegada dos Normandos em 1018, os interesses políti­
cos do papa e do imperador bizantino coincidem nova­
Conclusão da bula de excomunhão mente. Mas Roma tenta controlar religiosamente a Itália
de 16 de Julho de 1054 do Sul; o seu governo está nas mãos de homens como
♦ «Que Miguel o neófito, que abu­
Leão IX (1047-1054) e o cardeal Humberto, originários
sivamente ostenta o título de patri­
arca e que apenas um temor huma­ da Lorena e muito distantes das preocupações bizantinas.
no levou a vestir o hábito monástico, Assim, estes condenam o título adoptado pelo arcebispo
actualmente exposto às mais gra­ de Constantinopla de patriarca ecuménico: o título quer
ves acusações provenientes de nu­ dizer patriarca do Império - o que corresponde à reali­
merosas pessoas, e com ele Leão
que se diz bispo de Ocrida e o
dade bizantina mas os Ocidentais entendem «ecumé­
chanceler de Miguel, Constantino, nico» como «universal» - o que é o seu significado lite­
que calcou a seus pés o sacramen­ ral.
to dos Latinos, e todos os que os
seguem nos seus erros e afirmações Em 1053, o papa e os Bizantinos - apesar de tudo alia­
temerárias, sejam anátemas Mara- dos tinham sido batidos pelos Normandos, separada­
natas juntamente com os simonía- mente, em dois locais diferentes da Itália do Sul. O reforço
cos, os valentinianos, os arianos, os
donatistas, os nicolaítas, os severi- da aliança e o estabelecimento de uma estreita coorde­
anos, os teomantes, os maniqueus nação entre os exércitos eram, pois, necessários para tra­
e os nazoreus, e com todos os he­ var o avanço normando.
réticos; mais, com o diabo e todos
os seus anjos; a menos que se retra­ A chegada a Constantinopla, em 1054, de uma dele­
tem publicamente. Amen! Amen! gação romana encabeçada por Humberto para negociar
Amen!» ♦ a aliança anti-normanda, após os fracassos militares de
1053, deu ocasião à querela entre Humberto e Cerulário;
o tom sobe rapidamente, sobre temas perfeitamente meno­
res. Em 16 de Julho de 1054, Humberto deposita no altar-
-mor de Santa Sofia uma carta excomungando Cerulário.
Isto desencadeia um verdadeiro tumulto que o Imperador
é incapaz de conter. PÕe em fuga os legados do papa,
que um sínodo excomunga. Cerulário declara-se mais inde­
pendente de Roma do que nunca.
Não se deve, entretanto, exagerar o alcance dos acon­
tecimentos de 1054 entre o legado de um papa defunto,
portanto não mandatado, e um patriarca irascível. As fon­
tes narrativas da época são quase mudas sobre o caso e o
«cisma» só será sentido como tal após 1204. Mas o pró­
prio conteúdo da querela mostra a que ponto de incom­
preensão se tinha chegado.

■ A conversão dos Eslavos

Sobre, a reconquista dos Balcãs, Primeiras conversões. A reconquista levada a efeito


ver pp. 76-79 e 117-120.
pelo Império Bizantino sobre os Eslavos instalados nos
Balcãs começa no séc. viu; é acompanhada por tentativas
de conversão à religião cristã, um dos melhores factores
de assimilação. De resto, política missionária e política de
conquista estão estreitamente ligadas, com o Basileus pre-

212
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

tendendo ser o Imperador de todos os cristãos. A con­


quista é acompanhada por tentativas de conversão dos
povos estranhos ao Império, a qual não é mais do que o
prelúdio à sua submissão política. Mas as primeiras ten­
tativas de conversão debatem-se com um obstáculo lin­
guístico: a liturgia é em Grego, os missionários falam
Grego, língua que os Eslavos ignoram.

Cirilo e Metódio. Para conter os Russos, aparecidos no


Império cerca de 860, Constantinopla conta utilizar os
Khazares, povo asiático de religião judaica instalado na
foz do Volga. Fócio tenta, desde o princípio, converter os
Russos e envia um bispo, não desde logo para a região de
Kiev mas para o Quersoneso, onde é criado o episcopado
de Córtizon.
E então que o príncipe morávio Rotislav, desejoso de
resistir à pressão carolíngia - que se manifesta designa­
damente por tentativas de conversão através de um clero
de língua alemã que tenta impor o Latim à populações
morávias -, pede a Bizâncio o envio de uma missão que
dominasse a língua eslava (862). Fócio remete-lhe dois
irmãos originários da região de Tessalonica, onde tinham
aprendido o velho Eslavo: Constantino, que adoptará o
nome de Cirilo ao tornar-se monge em vésperas de mor­
rer, e Metódio - os «irmãos morávios». Estes traduzem
para Eslavo os livros santos e a liturgia e inventam, para
escrever esta língua, um alfabeto derivado do Grego e
acrescido de sinais transcrevendo as sonoridades propria­
mente eslavas: é a escrita glagolítica, que dará lugar, mais
tarde, em território búlgaro, ao alfabeto «cirílico». Cons­
tantino e Metódio pregam em língua eslava, divulgam o
saltério e o evangelho. Pondo-se assim ao alcance das popu­
lações, obtêm um sucesso considerável, de grande dimen­
são no plano cultural, ainda que a Morávia se volte rapi­
damente, no plano religioso, para a obediência romana.

A Bulgária. Os processos empregados por Cirilo e


Metódio, de grande eficácia, apontavam para a criação de
Igrejas que a língua tendia a tornar nacionais. Foi o que
se passou com a Bulgária, por razões igualmente políti­
cas. O czar búlgaro Boris, consciente de que a conversão
ao cristianismo bizantino era o primeiro passo para a sub­
missão ao Império, pede missionários a Roma; mas as
ameaças bizantinas forçam-no a apelar ao clero grego.
Boris recebe o baptismo em 864 e adopta o nome cristão
de Miguel. O povo segue o czar na sua conversão. O clero
grego organiza a Igreja búlgara.
Boris tenta preservar a independência da sua Igreja: Sobre a luta bizantino-búlgara,
consegue ter um arcebispo e bispos propriamente búlga­ ver p. 118-119.

ros. Mas a Igreja búlgara nem por isso escapa à autori-

213
dade constantinopolitana. Esta não sobrevive, porém, aos
conflitos entre Bizâncio e os Búlgaros, cujos czares são
impelidos a afirmar a independência do seu arcebispado:
Samuel (969-1014) proclama-o mesmo como patriarcado,
portanto totalmente fora do controlo constantinopolitano.
A conquista da Bulgária por Basílio II, se é certo que
suprime o patriarcado, não deixa de manter o carácter
próprio da Igreja búlgara. O arcebispo de Ocrida con­
serva uma certa independência. Assim nascia uma das pri­
meiras Igrejas nacionais.

■ Bizâncio e os Russos

Os Varegues. A partir de 860, Constantinopla vê apa­


recer junto das suas muralhas um novo invasor, que Fócio
qualifica de «povo desconhecido»: os Russos.
O termo «russo», de origem escandinava, designa ini­
Varegues: nome genérico com cialmente Escandinavos. São os Varegues, provavelmente
que eram designados os nór­ vindos da Suécia, que asseguram o comércio Norte-Sul
dicos em Constantinopla. O Im­ entre o Báltico e Constantinopla, pelo lago Ládoga,
perador tinha uma guarda va-
regue. Novgorod, Vitebsk e o Dniepre. Mercadores mas não menos
guerreiros, os Varegues estabeleceram o seu domínio sobre
as tribos eslavas inorganizadas que viviam nas margens do
Dniepre, segundo um esquema idêntico ao adoptado pelos
Búlgaros nos Balcãs.
Além dos escravos de que se apoderam à sua passa­
gem e que vendem em Constantinopla, obtêm dos Eslavos
o fornecimento de toda a espécie de mercadorias (mel,
madeiras, peles...) e de barcos bem característicos - os
monóxilos talhados num só tronco de árvore. Estes
monóxilos, relativamente ligeiros, permitem descer o
Dniepre: para contornar os rápidos, os barcos são des­
carregados e transportados por terra, nas margens do
rio.
O Estado varegue está organizado em torno de algu­
mas cidades: Chernigov, Perejaslav e sobretudo Kiev, a
capital. O desenvolvimento das urbes, resultado do comér­
cio norte-sul, implica de facto o apagamento da antiga
organização tribal em proveito de uma organização regio­
nal baseada nas cidades, centros administrativos e políti­
cos. A praça do mercado é o centro da vida no Estado
russo. Em cada cidade, a partir do antigo conselho dos
chefes de família, é criada um vietche - assembleia muni­
cipal. Limitado aos assuntos puramente locais nas cidades
mais pequenas, o vietche desempenha um papel político,
ao lado do príncipe, nas grandes cidades. Os mercadores,
agrupados em corporações - exemplo depressa seguido
pelos artesãos -, têm um papel preponderante no vietche.

214
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

Uma parte do campesinato do Estado russo é formada


por camponeses livres (smerd), organizados em famílias
alargadas (zadruga) para quem a terra é propriedade
comum. Na aristocracia, a distinção entre Escandinavos e
Eslavos desaparece desde o séc. X: são os boiardos do
séquito do príncipe (drujina), entre os quais este recruta
os seus governadores de província e de cidade e o seu
conselho privado (duma). Os boiardos são ao mesmo tempo
proprietários de terras, mercadores e embaixadores.
A partir de meados do séc. ix, o Estado credencia embai­
xadores. A despeito destes contactos, o cerco de Cons­
tantinopla em Junho de 860, de curta duração, constitui
uma surpresa para os Bizantinos. Sem dúvida que foi,
então, concluído um primeiro tratado. Em 867 registam-
-se os primeiros baptismos e Fócio envia um bispo a Kiev.
O séc. x representa o grande período das relações entre
Bizâncio e os Russos, como o atestam as descobertas numis­
máticas. Uma expedição de Oleg, cerca de 907, leva à assi­
natura de um novo tratado em 911, que concede aos
Russos vantagens comerciais.

Igor. Em 941, Igor comanda uma nova expedição, igual­


mente infeliz para os Bizantinos, que resulta num novo
tratado em 944.

Sviatoslav. Sviatoslav, filho de Igor (957-973), é o pri­


meiro príncipe de Kiev a usar um nome eslavo, prova de
que os Varegues se estavam a eslavizar a pouco e pouco.
Com ele, o Estado de Kiev envereda por uma política de
conquistas: assegura o controlo das rotas comerciais do
Volga e do Dniepre e avança para os Balcãs. Em 966,
Bizâncio compra a sua aliança contra os Búlgaros. Sviatoslav
entra na Bulgária, derrota os Búlgaros, mas prossegue a
sua caminhada. Em 970, cerca Andrinopla. E, porém,
batido por uma operação combinada terrestre e fluvial de
João Tzimístis e vê-se obrigado a celebrar com Bizâncio,
em 971, um novo tratado, essencialmente político.

Vladimir. Na sequência disso, o príncipe Vladimir (972-


-1015), homem razoável e avisado, aproveita as circuns­
tâncias para fazer entrar definitivamente o seu Estado no
oikoumènos bizantino, tal como ele próprio o entendia.
Tendo ajudado Basílio II contra o usurpador Bardas Sclero,
desposa uma princesa porfirogeneta, Ana, e recebe o sinal
que faz dele um catecúmeno. No domingo de Pentecostes,
19 de Maio de 989, na Igreja de S. Basílio de Quersoneso,
Vladimir recebe o baptismo do bispo da cidade. De regresso
a Kiev, obtém, em 15 de Agosto do mesmo ano, o bap­
tismo colectivo de uma boa parte dos seus guerreiros.
E um imenso sucesso para Bizâncio: a metrópole de Kiev
fica submetida a Constantinopla e os seus titulares são,

215
em geral, gregos. A influência bizantina faz-se sentir tam­
Sobre o sistema monetário bém sobre a moeda. As primeiras unidades datam do
bizantino, ver p. 183.
tempo de Vladimir e são imitações das dos imperadores,
seus cunhados; são cunhadas no Estado de Kiev, de modo
deficiente.
Entretanto, a partir de meados do séc. XI, afrouxam as
relações entre Constantinopla e o Estado russo, cada vez
mais eslavizado, e cujo centro de gravidade se desloca para
nordeste. O último ataque russo conhecido data de 1043.
A chegada de novos invasores - Cumanos e Pechenegues
- torna difícil a rota do Dniepre. Não obstante, Benjamin
de Tudèle, na segunda metade do séc. xn, ainda encon­
tra mercadores russos em Constantinopla. A influência
bizantina continua a exercer-se na Rússia através da reli­
gião. Manuel Comneno recebe ainda apoio político dos
Russos. E em 1350, o grão-duque de Moscovo envia fun­
dos para restaurar Santa Sofia.

■ Novos invasores na Europa

Os Húngaros. À volta dos anos 880 surge um novo inva­


sor nas fronteiras balcânicas do império bizantino: são os
Húngaros, de origem fino-ugriana. Bizâncio chama-os em
seu socorro contra Simeão da Bulgária, no final do séc. ix.
Constrangidos pelos Búlgaros a recuarem para a margem
norte do Danúbio, os Húngaros instalam-se na planície que
ocupam actualmente, cortando em dois o mundo eslavo.
O Estado húngaro conhece um certo poderio no começo
do séc. x; encontram-se Húngaros na Campânia em 922,
na Trácia em 934, no Império ainda em 943-944. Nesta
data regista-se um primeiro tratado entre Bizâncio e os
Húngaros. Estes, batidos por O tão I em 955, só recuperam
o seu poderio com santo Etiano (1000-1038), cujas relações
com Bizâncio são boas. Autores de uma primeira investida,
com os Pechenegues, em 1059, conseguem tomar Belgrado
em 1064. Mas a verdadeira potência magiar data do séc. xn.

Pechenegues, Uzos e Cumanos. Não menos perigosa


é a pressão exercida sobre a fronteira norte do Império
bizantino por três povos ligados aos Turcos: por ordem
de chegada, com os últimos a empurrar os anteriores à
sua frente, eles são os Pechenegues, os Uzos e os Cumanos.
Durante o séc. x, os Pechenegues só indirectamente
manifestam a sua presença aos Bizantinos: são responsá­
veis pela pressão de outros povos, como os Húngaros,
sobre as fronteiras do Império. Encontramo-los nos exér­
citos de Bizâncio desde 917; em 944 integram as forças
russas que atacam Constantinopla, mas em 971 são res­
ponsáveis por uma derrota russa e pela morte de Sviatoslav.

2K
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

A anexação da Bulgária por Basílió II põe em contacto,


no Danúbio, Bizantinos e Pechenegues. Estes últimos, após
vários assaltos contra Sirmium entre 1025 e 1036, passam
massivamente o Danúbio em 1048. Incapaz de os elimi­
nar, o Império põe em prática a sua política tradicional
de instalação. Mas estes recém-chegados revelam-se peri­
gosos. Para os conter, após a sua revolta de 1053, Bizâncio
vê-se obrigada a pagar-lhes tributo, conceder-lhes novas
terras e dignidades áulicas. E certo que os Pechenegues
fornecem tropas; mas farão o Império correr novamente
um risco mortal, ao tempo de Aleixo I.
Em fins de 1064, os Uzos, que tinham abandonado a
Rússia meridional sob a pressão dos Cumanos, entram nos
Balcãs, espalham-se pela Macedónia e a Trácia, chegam
mesmo à Grécia. Uma peste providencial dizima as suas
fileiras. Desembaraçado do perigo uzo, o Império Bizantino
pode instalar os sobreviventes na Macedónia e arregi­
mentá-los para o exército, ao lado dos Pechenegues. Mas
ainda antes de Aleixo I subir ao trono, os Cumanos apa­
recem no Danúbio. Aleixo saberá utilizá-los contra os
Pechenegues, antes de os combater.

2. A expansão dos Turcos Seljúcidas

A pressão turca sobre as fronteiras do Império Muçul­


mano é um facto antigo. Com os Turcos a serem empur­
rados para Oeste pela expansão mongol, essa pressão acen­
tuou-se em meados do séc. X. Vários conjuntos de tribos
viviam então como nômadas: Carluques, Oghuzes, todos
criadores de camelos, essencialmente xamanistas, mas que
não ignoravam o islão que os mercadores e os ghâzis divul­ Sobre os ghâzis, ver p. 112
gavam entre eles, sob formas mais ou menos elaboradas.
A penetração dos elementos turcos no mundo muçulmano
era, entretanto, ainda limitada e controlada, qualquer que
fosse a forma assumida: a escravatura ou o mercenarismo
no caso dos turcos convertidos. No final do séc. X apare­
ceram, no entanto, os primeiros Estados turcos.

Os primeiros Estados turcos no Irão Oriental ■

A dinastia dos Samânidas, estabelecida na Transoxiana


e no Jurassã, utilizava, desde o séc. X, mercenários turcos
em número crescente. Em 962, um oficial turco instalou-
se em Razni onde, em 977, o poder foi tomado por outro
oficial, Sebugtigin, fundador da dinastia dos Raznévidas.

217
Sem deixar de reconhecer a autoridade dos Samânidas
de Bucara, começou a alargar os seus domínios. O apo­
geu seria atingido com Mahmúd de Razni (999-1030),
personalidade que dominou esta dinastia. A sua expan­
são voltou-se sobretudo para o Norte da índia, mas os
Raznévidas ficaram-lhe a dever a sua imposição aos
Samânidas, ameaçados na mesma altura pelos Turcos
Carluques. Em condições ainda mal conhecidas, estes
tinham, de facto, assegurado o controle sobre a bacia
do Tarim. Aliados aos Raznévidas, conseguiram vencer
os Samânidas no princípio do séc. xi, partilhando o
seu território: os Carluques, a partir de então conheci­
dos por Caracânidas, ocuparam a Transoxiana, tendo
Mahmúd ficado com toda a região a sul do Amudária.
Assim, nos primeiros anos do séc. xi, toda a parte
extremo-oriental do mundo muçulmano se achava colo­
cada sob o controle de duas dinastias turcas, converti­
das ao islão, mas apresentando características bem dife­
rentes.

Os Raznévidas. Os Raznévidas eram, sem contestação,


os mais prestigiosos. Todavia, se os seus chefes e as suas
tropas eram indubitavelmente turcos, não era esse o caso
das populações que dominavam e, em muitos aspectos, o
seu governo conservou as instituições anteriores, isto é,
Ver mapa p. 387 D. as dos Abássidas, modificadas pelos Samânidas. O exér­
cito conheceu, no entanto, um desenvolvimento notável
e original, graças às conquistas nas quais encontrava os
meios para a sua remuneração. Mahmúd, príncipe pode­
roso e conquistador, organizou numerosas expedições ao
Penjab. Aproveitando-se da fragmentação do país, multi­
plicou as campanhas, fez numerosos cativos, pilhou cida­
des e templos. Estas expedições marcaram o início da
penetração muçulmana no subcontinente indostânico. Na
morte de Mahmúd, o seu império compreendia, além do
Afeganistão, do Jurassã e da Pérsia no seu conjunto, o
Penjab e uma parte do Sind, enquanto vários estados hin­
dus reconheciam a sua suserania. Os Raznévidas, menos
tolerantes do que os Sassânidas, provocaram no Irão uma
renovação da ortodoxia, denunciando fortemente a situa­
ção que reinava no resto do islão.

Os Caracânidas. O estado dos Caracânidas apresentava


traços diferentes. Aí registou-se uma forte imigração de
elementos turcos: lado a lado com os Carluques, fixaram-
-se várias tribos oghuzes. Quanto ao território que contro­
lavam, compunha-se da Transoxiana, há muito iranizada,
mas também de regiões turcas. Daí um estado original,
combinando tradições iranianas com tradições turcas, estas
últimas manifestando-se nomeadamente através da con­
cepção de um poder familiar, largamente favorável à frag-

218
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

mentação política e à discórdia. As tribos oghuzes, implan­


tadas na Transoxiana, souberam precisamente tirar par­
tido dessas rivalidades internas e dos conflitos com os
Raznévidas: assim nasceram os Seljúcidas.

A ascensão dos Seljúcidas ■

Origens dos Seljúcidas. Os Seljúcidas retiram o seu


nome de um chefe oghuz, Seljuk, cedo convertido ao Turcomanos ou Turqueme-
islão, e que, pelo final do séc. x, se colocara, com os nos: termo de origem e signi­
filhos, ao serviço dos Caracânidas de Bucara. Em 1025, ficado obscuros, que designa
Mahmúd de Razni infligiu-lhes uma severa derrota e os Turcos muçulmanos nô­
madas, por oposição aos Tur­
deportou para o Jurassã a fracção dos Seljúcidas que, após cos muçulmanos sedentariza-
a morte de Seljuk, se tinha agrupado à volta de seu filho dos ou aos Turcos nômadas
Arslân. O resto da família, reunida em torno dos netos não crentes.
do fundador, Changri e Tughril, encontrou refúgio nas
margens do mar de Arai, no Quaresma. E por essa época
que começa a aparecer o termo Turcomanos ou Turque-
menos.

Conquista do Jurassã. A chegada ao Jurassã dos homens


de Arslân provocou tais perturbações que Mahmúd, para
se desembaraçar deles, enviou-os mais para oeste. Ao ser­
viço de diversos príncipes locais, fizeram pesar graves
ameaças sobre o reino arménio de Ani e sobre as fron­
teiras bizantinas. A sua partida tinha deixado um vazio
no Jurassã, rapidamente preenchido pelos Turcomanos
de Changri e de Tughril. Estes depressa constataram a
frágil ligação das cidades comerciais da região com os
Raznévidas, sobretudo atraídos pela índia. A partir de
1028-1029, garantiram a aliança dos notáveis de Merv e
de Nichapur. Em 1040 desbarataram em Dandanqan,
perto de Merv, as forças do príncipe Raznévida, que desde
então se desinteressou totalmente do Irão: o Jurassã e o
planalto iraniano estavam assim totalmente abertos aos
Turcomanos.
Os seus chefes tomaram, no Irão, consciência de uma
tradição política favorável a um poder forte e centrali­
zado, que contrastava com os princípios anárquicos dos
Turcomanos; depararam-se igualmente com o sentimento
difuso de escândalo que, com o tempo, a tutela buída
sobre o califa ia causando. Tughril decidiu tirar partido
desta tendência, contando com isso reforçar os laços com
os nobres jurassanianos. Estes, com efeito, alimentavam a
ideia - dada a inexperiência administrativa dos Turcos -
de garantirem o controlo sobre os territórios reconquis­
tados ao xiismo. As tropas jurassanianas, de concepção
tradicional, bem equipadas para a conquista das cidades,
podiam assim reforçar utilmente os Turcomanos, cuja
força provinha sobretudo da mobilidade.

219
A partir de 1040, os chefes seljúcidas, que usavam o
título de begs, procederam a uma partilha geográfica:
Changri ficou com o Jurassã e as suas dependências orien­
tais e Tughril recebeu tudo o que pudesse conquistar a
ocidente.

Dupla direcção da expansão. O objectivo principal de


Tughril foi desde logo o controlo das rotas que levavam
a Bagdade: entre 1040 e 1044 apoderou-se de Rey, de
Hamadã, de Ispaão. Mas tinha de contar com os Tur-
comanos. Com efeito, estes tinham naturalmente a ten­
dência para se dirigirem, na peugada de Arslân, para o
Azerbaijão e a Arménia, cujos invernos frios se adequa­
vam mais aos seus camelos. Encontravam aí possibilida­
des de pilhagem, aliás interdita por Tughril, e as satisfa­
ções religiosas de uma luta contra os infiéis, que preferiam
à luta contra os Buídas. Para não perder o seu apoio,
Tughril participou com eles em diversas operações em
1048 e 1054. Reconquistou assim aos Bizantinos antigas
fortalezas fronteiriças e readquiriu, pelo menos parcial­
mente, o controlo dos Turcomanos que haviam ficado nos
confins armeno-georgianos com o filho de Arslân,
Qutlumush. Foi portanto numa dupla direcção que se
desenvolveu a expansão turca: para a Arménia e a Anatólia
e para o Iraque.
Paralelamente a estas expedições, Tughril estendeu a
sua autoridade ao planalto iraniano, evitando cuidado­
samente qualquer conflito com os sedentários. Em 1055
produziu-se o acontecimento decisivo: a sua entrada,
solene e pacífica, em Bagdade. Tughril tinha tido ante­
riormente o cuidado de se proclamar vassalo fiel do califa
e anunciara a sua intenção de restabelecer a ortodoxia
em Bagdade e de lutar contra os Fatímidas. Recebeu do
califa um duplo título: sultão e emir do leste e do oeste.
O título turco de sultão, conferido oficialmente pela pri­
meira vez, implicava a outorga do poder temporal por
delegação do califa, enquanto o título de emir do leste
e do oeste lhe atribuía a missão de submeter todos os ter­
ritórios muçulmanos que tinham escapado à autoridade
califal, o que abrangia o Egipto e a Síria, mas não a Ásia
Menor.

I O império dos grandes Seljúcidas

Tughril e Alp-Arslân. Os problemas anatólios domina­


ram os sultanatos de Tughril e do seu sucessor Alp-Arslân,
que se esforçaram por canalizar a energia dos Turcomanos.
Os seus ataques eram facilitados pela política dos Bizantinos
em 1045, tinham, contra a vontade dos Arménios,
anexado o reino de Ani e deportado uma parte da popu­
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

lação, enfraquecendo assim a resistência cristã. Alp-Arslân,


apoiando-se nos Turcomanos, apoderou-se de Ani (1064)
e anexou os territórios georgianos (1068). Interessado
sobretudo em atacar o Egipto, Alp-Arslân ter-se-ia con­
tentado em cobrir assim o seu flanco norte com os Tur-
quemenos, mas alguns destes, aproveitando-se das difi­
culdades internas do Império bizantino, lançavam incursões
cada vez mais profundas na Anatólia, até Amorion e Icónio.
O imperador Romano Diógenes dirigiu uma expedição
contra eles, que redundou, para Bizâncio, no desastre de
Manzikert em 1071. Mas Alp-Arslân não pretendia, de
todo em todo, explorar esta vitória: a Anatólia pertencia
ao país de Rum e não apresentava nenhuma utilidade
para a conquista do Egipto.

Malik-Xá. O aparecimento do sultão Malik-Xá, em 1072,


abriu um novo período. Malik-Xá, ainda menor quando
subiu ao trono, não era um Turco das estepes: o seu nome,
que combina o título árabe de rei - malik - e o seu equi­
valente persa - xá em lugar dos títulos turcos dos seus
antecessores, é um indício da mudança que caracterizou
o seu reinado. Ele não foi um chefe militar mas essencial­
mente um administrador, mais preocupado em gerir as
conquistas do que em alargá-las. O seu reinado assegurou
a organização do império seljúcida e a emancipação dos
Turcomanos da Anatólia. O Império Seljúcida não dei­
xou, porém, de conhecer um certo alargamento. Várias
bolsas de resistência foram reabsorvidas - na Arábia, por
exemplo - e, sobretudo Tutush, irmão de Malik-Xá, con­
quistou Damasco e diversas cidades sírias. Entretanto, a
Síria do Sul permanecia nas mãos dos Fatímidas e toda a
região do Tauro, de Melitene, de Edessa, de Antioquia e
da Cilicia formava um principado detido por um Arménio,
Filareto, em nome do imperador bizantino.

A Anatólia. A Anatólia também constituía um problema,


porque a decadência bizantina permitiu aos Turcomanos
instalarem-se aí progressivamente, passando a viver do
país. A sua presença cada vez mais maciça acabou por
modificar o carácter do que viria a ser a Turquia.

Organização do Império Seljúcida. Criado graças aos


Turcomanos, o Império seljúcida não foi, no entanto, mar­
cado profundamente por isso nas suas estruturas. A impor­
tância numérica dos recém-chegados é difícil de precisar:
provavelmente várias dezenas de milhar. Instalaram-se em
regiões pouco tocadas pelo nomadismo árabe - a Anatólia
por um lado, e o Azerbaijão e uma parte do Diyar Bakr
por outro. Aliás, o clima demasiado quente e seco não
lhes convinha, tendo-se o seu domínio limitado à presença
do exército e de guarnições urbanas.

221
A dinastia, de origem turca, não rompeu totalmente
com as suas origens e certos costumes. O aspecto mais
importante é, sem dúvida, a manutenção da ideia de que
o poder deve ser familiar, partilhado pelos membros da
família sob a autoridade do mais velho. A instituição da
tughra não implica mudança administrativa: trata-se de
sinais que autenticam os escritos do sultão. Comportavam
provavelmente, a princípio, o desenho, de inspiração turca,
de um arco e flechas, que posteriormente se estilizou.
Os sultões instituíram igualmente atabaques, chefes mili­
tares encarregados de velar pela educação dos jovens prín­
cipes.

O exército. O novo Estado seljúcida é, de facto, a socie­


dade preexistente enquadrada pelos Turcos. Um dos seus
grandes traços característicos é o lugar nela ocupado pelo
exército - um exército profissional que não compreende
somente Turcomanos, sendo composto em 50% por escra­
vos. O que sobretudo o distingue do exército buída é a
sua importância numérica e o lugar reservado à cavalaria.
Os Seljúcidas debateram-se com os mesmos problemas
orçamentais quanto ao seu pagamento, e o sistema da
iqtâ’, que generalizaram, estendeu-se desde então larga­
mente para além dos domínios centrais do islão.

A administração. Quanto ao resto, a administração não


se afastou da que o Jurassã raznévida tinha conhecido, no
fundo pouco diferente da do resto do islão, salvo ao nível
da terminologia. O pessoal do império seljúcida era essen­
cialmente originário daí, e nomeadamente o homem que
durante vinte e nove anos - primeiro com Alp-Arslân e
depois com Malik-Xá - foi o seu vizir: Nizâm al-Mulk.
O Livro da Governação, no qual ele expõe as suas ideias
em matéria de governo, traduz a influência directa da tra­
dição irano-islâmica. Nenhum problema se levantou ver­
dadeiramente entre o sultão e o califa nessa época: Nizâm
mantinha, com efeito, boas relações pessoais com a corte
Madrasa: escola oficial especia­ califal. Entretanto, o vizir e o sultão não deixavam de ali­
lizada no ensino das ciências mentar, a pouco e pouco, a ideia de que o sultão retirava
religiosas e principalmente do a sua legitimidade de si próprio e não de uma delegação
Direito. A manutenção de um
ou mais professores e dos es­ do califa.
tudantes era nelas assegurada
através do controle mais ou O movimento ortodoxo. Foi durante este período que
menos directo do poder. As se organizou um poderoso movimento sunita: os Seljúcidas
primeiras madrasas foram cria­
das pelos Seljúcidas, tendo-se
souberam traduzir no concreto a reacção ortodoxa que
alargado à Síria e ao Egipto caracteriza o islão do séc. xi.
no séc. xn, e à Anatólia no Grandes construtores de mesquitas, de caravançarais
séc. xill. Em todo o lado ser­ e de pontes, os Seljúcidas desenvolveram sobretudo as
viram a política de reforço do madrasas, quer dizer, escolas onde se recrutavam funcio­
sunismo e de consolidação do
poder.
nários e cádis e cujo ensino incidia sobre as ciências reli­
giosas e jurídicas. Ricas graças às numerosas doações imo­

222
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

biliárias de que foram beneficiárias pelo sistema de waqf


as madrasas garantiram o domínio da ortodoxia. Enfren­
tando a mesquita de al-Ahzar do‘Cairo fatímida, erguia-
-se em Bagdade a Nizâmiyya, madrasa fundada pelo vizir
Nizâm.
Paralelamente, a ortodoxia alargou-se através da inte­
gração de correntes místicas, até então olhadas com sus­
peita, incarnadas pelos sufis. Durante muito tempo sus­
peitos aos olhos dos doutores sunitas, os sufis do séc. xi
tinham começado a organizar-se em pequenos grupos que
se tornaram em verdadeiras congregações. Sobretudo o
grande pensador al-Ghazâli (falecido em 1105), também
ele Iraniano, soube assumir-se como porta-voz deste movi­
mento religioso. Os Turcos favoreceram a fundação de
khanqâhs, conventos de sufis.
O grande papel dos Seljúcidas é o de terem sabido
captar e amplificar este movimento geral de reacção da
ortodoxia, face ao desenvolvimento do xiismo e à efer­
vescência intelectual dos séculos precedentes. A luta con­
tra os Fatímidas do Egipto foi sempre o seu grande objec-
tivo e nunca manifestaram uma particular hostilidade pelas
comunidades judaicas ou cristãs. Se, na Ásia Menor, os
Cristãos sofreram as consequências das pilhagens turco-
manas, susceptíveis de perturbar a passagem de peregri­
nos, a sua situação não se modificou. Os Ocidentais que,
no final do séc. xi, denunciaram as perseguições dos
Turcos, atribuem-lhes actos que, na realidade, pertencem
aos Fatímidas e ao califa al-Hâkim. O Império seljúcida
não eliminou totalmente a heresia do seu território. Na
época de Malik-Xá, os missionários ismailianos que ope­
ravam no Irão organizaram-se numa seita autónoma que
se recusava a reconhecer o novo califa fatímida e se trans­
formou numa seita terrorista: a dos Nizâris - designação
derivada do nome do califa que reconheciam -, mais
conhecidos pelo nome de Assassinos.

3. Os Almorávidas e a emancipação
do Ocidente muçulmano

Enquanto os Seljúcidas estabeleciam o seu domínio


sobre o Próximo Oriente, com excepção da zona que per­
maneceu nas mãos dos Fatímidas, o Ocidente muçulmano
(Magrebe e Hispânia), debilitado e dividido, passou para
o domínio de nômadas berberes que, pela primeira vez,
ligaram totalmente o Oeste Africano ao mundo muçul­
mano.

223
■ A fragmentação do Ocidente muçulmano

Após a partida dos Fatímidas, o Magrebe voltou a uma


situação de fragmentação política e, ao mesmo tempo que
chegava ao fim a preponderância económica e cultural
da Ifriqiya, o Magrebe Ocidental conheceu, por influên­
cia de Córdova, um primeiro desenvolvimento.

Ver mapa p. 390 C.


A partir de 1015, os governadores ziridas instalados na
Ifriqiya pelos Fatímidas tiveram de abandonar a parte oci­
dental do domínio aos seus parentes, os Hamádidas.
Depois, em 1041, sob pressão dos Maliquitas de Cairuão,
os Ziridas romperam com os Fatímidas que, à maneira de
represália, enviaram à Ifriqiya tribos árabes - os Banú Hilâl
e os Banü Suleim. A dimensão destas invasões foi objecto
de ásperas controvérsias. Certos historiadores viram nas
devastações cometidas uma verdadeira catástrofe que esta­
ria na origem do declínio económico que o Magrebe
conheceu na segunda metade da Idade Média. Outros,
mais prudentes, insistiram nas razões profundas e com­
plexas desta evolução, que uma só invasão não bastaria
para explicar, e procuraram ressituar a história dos Banú
Hilâl no contexto mais vasto de uma expansão do noma-
dismo que parece ter caracterizado todo o mundo muçul­
mano a partir do séc. XI.
No Magrebe ocidental, pelo contrário, após a partida
dos Fatímidas, predominava a influência do califado de
Córdova. Com o seu apoio, os Berberes zanatas elimina­
ram os Sanhâdjas do grande comércio transariano, que
Ver p. 111. tinham desenvolvido com a ajuda dos Fatímidas. Então,
do Níger ao Magrebe, por Awdagost, onde se trocavam o
sal e o ouro, estabeleceu-se o monopólio dos Zanatas, em
benefício dos Omíadas de Córdova. A partir do ano mil,
o ouro sudanês permitiu aos senhores de Córdova cunhar
esse metal precioso que, por seu intermédio, conquistou
o mundo cristão e a Catalunha.

■ A expansão dos Almorávidas

Origens dos Almorávidas. Desde o séc. xi que, no Sara


Ocidental, nas vizinhanças do reino negro de Gana, se
Ribât: ao mesmo tempo con­ encontravam tribos berberes sanhâdjas convertidas ao islão
vento e fortaleza, esta institui­ e excluídas dos proventos do comércio. Em 1045, um dos
ção original está ligada à obriga­
ção de defender e engrandecer seus chefes efectuou a peregrinação a Meca, onde tomou
o território do islão. Pequenas consciência da insuficiente islamização dos Berberes. Levou
comunidades semi-religiosas, consigo do Magrebe Ocidental um homem pio, de uma
semi-guerreiras, celebram nela estrita ortodoxia malikita, Abdallah ibn Yâsin, para ensi­
a oração em comum e condu­
zem a partir dela o djihâd con­
nar os que viriam a ser denominados Almorávidas, por
tra os infiéis. deformação de al-Murâbitün, termo que provavelmente
designava os combatentes da fé que viviam num ribât.

224
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. xi

A expansão. A partir de 1042, os Almorávidas come­


çaram a reunir as principais tribos nômadas sanhâdjas do
Sara Ocidental; conquistaram Sidjilmâsa em 1053-1054 e
Awdagost em 1055, pondo assim sob o seu controle a
grande rota do comércio do ouro. Conduzidos por dois
grandes chefes, Abú Bakr e, depois, Yúsif ibn Tâshfin, os
Almorávidas conseguiram implantar-se no Magrebe oci­
dental, onde obtiveram o apoio de doutores malikitas. Fez
foi tomada em 1063 e o movimento almorávida estendeu-
-se a pouco e pouco pela zona central do Magrebe. Perante
esta expansão, os pequenos príncipes muçulmanos da
Hispânia fizeram apelo a Ibn Tâshfin contra o rei Afonso VI
de Castela que, em 1085, tinha conseguido conquistar
Toledo. Ibn Tâshfin bateu Afonso em 1086 em Zalaca;
depois, cansado das querelas dos príncipes andaluzes, ane­
xou praticamente todo o país, com excepção de alguns
principados, sem desencadear qualquer operação de recon­
quista sobre os cristãos. Em 1070, os Almorávidas tinham
fundado no Magrebe a sua própria capital - Marráquexe.

Caracteres do Império Almorávida. A fundação deste


Império Almorávida teve importantes consequências. Pela
primeira vez, a Hispânia achou-se integrada num vasto
conjunto que a fez participar directamente no comércio
africano. Os dinares, de excelente qualidade, cunhados
pelos Almorávidas, afluíram à Península Ibérica. No plano
religioso, os Almorávidas favoreceram o desenvolvimento
do islão: islão sunita e rito maliquita espalharam-se por
todo o Ocidente muçulmano, mas na Hispânia a intran­
sigência dos doutores malikitas introduziu, face ao mundo
cristão, uma intolerância que se substituiu à longa tradi­
ção de coexistência. Por outro lado, lentamente ganhos
pela civilização andaluza, os Almorávidas fizeram pene­
trar no Magrebe certos dos seus aspectos, nomeadamente
na arte: demonstram-no as mesquitas de Tlemcen, de
Argel, de Marráquexe, assim como, em Fez, os embele­
zamentos introduzidos na mesquita Karawiyín.
Sem dúvida que a obra territorial dos Almorávidas não
ultrapassou os anos 1125-1147. Mas a unidade provisória
que tinham estabelecido, e que os Almóadas reconstitui­
riam ainda mais extensamente, permitiu a difusão em
África de um islão sunita rigoroso e a ligação da África
do noroeste ao mundo muçulmano. Separado do Oriente
pela Ifriqiya arruinada, o Ocidente muçulmano conhecia
assim uma evolução original.
Entretanto, a própria Hispânia omíada ia sofrer divi­
sões. O período de grandeza, atingido no séc. x, com os
califas Abderramão III e Al-Hakam II, tinha-se prolongado
durante a ditadura exercida, no final do séc. x, por Ibn
abi Âmir, cognominado o Vitorioso, Almansor, em razão

225
das suas retumbantes vitórias sobre os cristãos. Era aliás
na Península Ibérica que o sunismo mantinha todo o seu
prestígio, perante a preponderância xiita no Oriente.
Entretanto, a partir de 1010, a unidade andaluza desapa­
receu no meio das rivalidades que opuseram os diferen­
tes grupos étnicos que compunham o exército. O último
califa desapareceu em 1031, enquanto se criavam peque­
nos estados locais, os reyes de taifas. Esta situação de frag­
mentação política não excluía entretanto a manutenção
do brilho cultural e artístico da Hispânia muçulmana, mas
favorecia consideravelmente a reconquista cristã a partir
dos estados cristãos do Norte.

Para aprofundar este capítulo

Sobre as relações de Bizâncio com Roma: F. DVORNIK,


Byzance et la Primauté romaine, Paris, 1964. Sobre a época
de Fócio: F. DVORNIK, Le Schisme de Photius, Paris, 1950.
Sobre as relações no séc. xi: A. MlCHEL, Humbert und
Kerullarios, Paderborn, 1925; M.JUGIE, Le Schisme byzantin,
Paris, 1941. Vários artigos importantes de F. DVORNIK estão
agrupados em Photian and Byzantine Ecclesiastical Studies,
Variorum Reprints, Londres, 1974. Novos elementos de
reflexão são trazidos à colação por J. RlCHARDS, The Popes
and Papacy in the Early Middle Ages, Londres, 1979.

Sobre a conversão dos Eslavos: F. DVORNIK, Les Slaves,


Byzance et Rome au IXe siècle, Paris, 1926, e, mais geralmente,
F. DVORNIK, Les Slaves, e A. P. VLASTO, The Entry..., citado
p. 13. Sobre Cirilo e Metódio, F. DVORNIK, Les Légendes de
Constantin et Méthode vues de Byzance, Praga, 1933; e Byzantine
Missions among the Slavs, New-Brunswick, 1970.

Sobre os Russos: I. SORLIN, «Les traités de Byzance


avec les Russes au Xe siècle», Cahiers des mondes russe et sovi-
étique, t. 2, 1961, pp. 313-360, 447-475. M. LARAN e D. Saus-
SAY, La Russie ancienne du IX€ au XVIP siècle, Paris, 1975; A.
POPPE, The Rise of Christian Rússia, Variorum Reprints,
Londres, 1982; J.-P. Arrignon, «Les relations diplomati-
ques entre Byzance et la Russie de 860 à 1043», Revue
dÉtudes slaves, n.e 55, 1983, pp. 129-137. D. Obolensky,
The Byzantine Inheritance ofEastem Europe, Variorum Reprints,
1982; A. SOLOVIEV, Byzance et la Formation de TEtat russe,
Variorum Reprints, 1979. V. VODOFF, Naissance de la chré-
tienté russe: la conversion du prince Vladimir de Kiev (988) et
ses conséquences (XP-XI1P siècles), Paris, 1988; J.-P. ARRIGNON,
La Chaire métropolitaine de Kiev des origines à 1240, Paris, 1990.

226
'ir
Os novos aspectos do mundo oriental e a viragem do séc. XI

Sobre os Turcos seljúcidas: a obra fundamental é a de


C. CAHEN, La Turquie préottomane..., citada p. 14. Ter em
conta também diferentes artigos do mesmo autor compi­
lados em Turcobyzantina et Oriens Christianus, Variorum
Reprints, Londres, 1974, assim como o capítulo intitulado
«The Turkish invasion: the Seldchukids», que redigiu para
A History of the Crusades, citado p. 14, t. 1, pp. 135-176, e
C. E. BOSWORTH, «Barbarian invasions: the coming of the
Turks in the Islamic world», Islamic Civilization, 950-1150,
Oxford, 1973. Sobre as Madrasas: G. Makdisi, The Rise of
Colleges, Edimburgo, 1981.

Sobre o Ocidente muçulmano: dispõe-se de um ponto


da situação muito completo em C. CAHEN, Introduction...,
pp. 173-184, cit. p. 12. Recorde-se a bibliografia citada
p. 159-160. Um bom estudo sobre os Almorávidas é apre­
sentado na obra colectiva Histoire du Maghreb, Paris, 1967;
e por J. BOSH-ViLA, Les Almoravides, 1956. Sobre a expan­
são almorávida: V. LAGARDÈRE, Le Vendredi de Zallâqa, Paris,
1989. Sobre a Ifriqiya sob os Ziridas: H. R. IDRIS, Les Zirides,
2 vols., Argel, 1957. A dimensão da invasão dos Banú Hilâl
constituiu objecto de ásperas controvérsias, cuja biblio­
grafia poderá ser encontrada em C. CAHEN, «Nômades et
sédentaires...», reed. em Les Peuples musulmans..., citado
p. 12.

227
13
A vida intelectual e artística
do Próximo Oriente

1. A vida cultural e artística


no Império Bizantino

■ O ensino

A cultura bizantina descende em linha recta, sem solu­


ção de continuidade, da cultura greco-latina, tal como
esta se manifestava no Império Romano no princípio do
séc. ui. Com a passagem do Império ao cristianismo, este
assume a herança pagã. Os padres gregos do séc. rv são
modelados pela retórica grega e constituem a base da cul­
tura ulterior. A elite cultural bizantina é, portanto, total­
mente cristã, ao mesmo tempo que está totalmente imersa
na cultura grega clássica, de que começa por aprender os
rudimentos e, depois, o essencial, ao longo do ensino que
lhe é ministrado.

O ensino básico. O ensino começa com o que os bizan­


Propaideia: instrução primá­ tinos chamam a propaideia. Aí se aprende a ler e a escre­
ria. ver, na maior parte dos casos sobre textos sagrados (sal­
térios e hinos). As crianças iniciam-se entre os seis e os
dez anos, recebendo ao mesmo tempo um embrião de
ensino religioso. Cerca dos onze anos, e até aos dezas­
Paideia: ensino de tipo secun­ sete/ dezoito, é a paideia, ensino de tipo secundário à base
dário. de conhecimentos unicamente profanos. A organização e
os quadros deste ensino profano subsistiram tal como
eram na Antiguidade: os programas mantêm-se inaltera­
dos; a Igreja permanece-lhe estranha. Esta não tem esco­
las. O único ensino verdadeiramente religioso destina-se
a instruir os futuros escribas e os futuros chantres de igreja
a desempenharem bem a sua missão.

Os programas. Quanto ao programa, é deveras clás­


sico: trivium (gramática, retórica, dialéctica) e quadrivium
(aritmética, geometria, música, astronomia). O trivium é,
aliás, o essencial: visa a perfeição formal da linguagem,
aprendendo-se de cor autores antigos e tentando que os
alunos se exprimam como eles. Daí um arcaísmo muitas
vezes obscuro, um conformismo sem brilho, mas também
uma profunda impregnação da cultura helénica. Aprende-

228
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

-se a retórica com o grau de complexidade a que a tinham


conduzido os autores helenísticos do séc. II. Mestres e
alunos rivalizam em eloquência nos concursos de retó­
rica, ao ponto de se criar um género particular, caracte­
rístico deste desvio formalista: os schêdé, constituídos numa
ciência, a cedografia. Trata-se de fazer entrar num dis­
curso com uma extensão dada o máximo de figuras de
estilo.
As escolas secundárias são independentes e privadas,
com um só professor, o maistor, por vezes ajudado por Maistor: professor de uma es­
um segundo, o proximos. Assim, em meados do séc. x, o cola secundária.
futuro Atanásio o Atónito, que foi um aluno de excep-
ção, exerce esta função antes de ser colocado à cabeça
de uma escola própria. O maistor ministra o seu ensino
aos alunos mais avançados - os ekkritoi; estes, por sua vez, Ekkritoi: alunos mais avança­
ensinam os mais jovens, que o mestre controla uma ou dos que ensinam os mais no­
vos.
duas vezes por semana. O ensino é livre e concorrencial;
os alunos pagam ao mestre, frequentemente com atraso,
e as escolas competem entre si. E por isso que Atanásio
renuncia ao mundo e se torna monge, face aos ciúmes A diferenciação entre as escolas
é mais nítida: algumas têm mais nome
que o seu sucesso provoca: ele atraía a clientela dos outros, do que outras, certamente por nelas
embora tenha sido deslocado para um bairro afastado da ensinarem mestres ilustres, como
foi o caso de Psellos, João Xiphilin e
capital. No séc. x, o Imperador exerce um certo controle Nicetas o Gramático no que toca à escola
através do «presidente das escolas». No séc. xi, a Igreja de São Pedro, em Constantinopla.
intervém mais largamente: o patriarca tem uma palavra
a dizer na nomeação dos maistores e porventura nos seus
salários.

O ensino superior. O encerramento, por Justiniano,


da Universidade de Atenas, e a conquista de Alexandria
e de Beirute pelos Árabes, envolvem a concentração do
ensino superior em Constantinopla. Mas a universidade
da capital desaparece no séc. vii, embora a redacção do
Eklogé pelos Isauros, no séc. viu, ateste o elevado nível Eklogé: sinopse do código de
mantido nos estudos jurídicos. Justiniano editada durante a
dinastia dos Isaurianos.
O César Bardas abre novamente na Magnaura, em 863, Magnaura: palácio de Cons­
um ensino superior público com quatro cadeiras: gramá­ tantinopla.
Leão o Matemático: ver p. 230.
tica, geometria, astronomia e a de filosofia, que é con­
fiada ao director, Leão o Matemático. Leão VI desenvolve
o ensino jurídico sobre o modelo de Justiniano. Professores
especializados leccionam o direito mais uma vez codifi­
cado por Basílio I e Leão VI nas «Basílicas». Esta escola
continua ao tempo de Constantino Porfirogeneta, que
controla a nomeação dos professores e se apraz em recru­
tar os respectivos funcionários. Mas no final do séc. x esta
universidade tinha desaparecido totalmente e os grandes
espíritos do séc. xi - Pselo, Xifilin, Likudés, Nicetas o Gra­
mático todos receberam a instrução de alto nível minis­
trada numa escola privada, fundada cerca de 1028 por
João Mavropos, que nela ensinava Platão.

229
E Mavropos quem está na origem do renascimento uni­
versitário. Pessoas interessadas pela cultura, designada­
mente um imperador - Constantino Monómaco - finan­
ceiramente compreensivo e que se esforça por recrutar
bons funcionários para uma escola jurídica, possibilitam
a criação de uma Universidade de Direito. A faculdade é
dotada de uma biblioteca, de edifícios próprios e de pro­
fessores assalariados. Os estudos são gratuitos e permitem
obter um diploma.
O maior espírito da época, Pselo, que recebeu o título
pomposo de «cônsul dos filósofos», conseguiu durante
muito tempo fazer crer que a Universidade compreendia
também um ensino literário, de que ele próprio teria sido
o grande mestre. De facto, trata-se da elevação do nível
de estudos na escola de São Pedro, dirigida por Pselo e
Nicetas o Gramático, cujo corpo docente era constituído
por maistores idênticos aos demais. Está-se longe da uni­
versidade da Magnaura.

■ As grandes correntes culturais

Aspectos técnicos. A difusão da cultura está essencial­


mente ligada às possibilidades de cópia das obras. A tal
respeito, esta época é marcada por duas evoluções deci­
Uncial: escrita exclusivamen­ sivas. O séc. ix assiste à passagem da escrita uncial para a
te em maiúsculas. minúscula, então já bem elaborada, e cuja invenção
Scriptorium: sala onde se co­ remonta seguramente ao séc. viu. O papel, de origem
piavam os manuscritos.
árabe, substitui o pergaminho em meados do séc. XI.
Quanto aos scriptoria, não os conhecemos bem; o mais
célebre era o do mosteiro de Studios em Constantinopla,
cujo regimento dedica oito artigos ao scriptorium. A difu­
são dos livros, quer religiosos quer laicos, era bastante
considerável. Alguns testamentos, mesmo de pessoas modes­
tas vivendo em províncias afastadas, mencionam um ele­
vado número de obras, na maior parte religiosas.

A época iconoclasta. Nestes tempos não se pode falar


de escolas ou de correntes, mas tão-só de individualida­
des. Assim se distinguem três patriarcas. Dois são antigos
Um cientista: Leão o Mate­ funcionários: Tarásio e, sobretudo, Nicéforo, que utilizou
mático escreveu tratados de
mecânica, astronomia e geo­
a filosofia de Aristóteles para justificar as imagens e que
metria: inventou um telégra­ escreveu, além de numerosos artigos polémicos, uma «his­
fo óptico ligando a fronteira tória sucinta». João o Gramático, iconoclasta, tinha sido
do Tsoío à capital e capaz, em professor; apaixonado pela ciência grega, fez experiên­
sisa Í3EK2- de informar sobre cias várias e foi acusado de magia.
os movimentos de tropas do
ifiimigo; cosBecia Ptolomeu O espírito mais elevado desta época foi Leão o Mate­
e essese ez origem da tradi­
ção s^^serdade Ass^szsedes
mático que, na falta de um mestre ao seu nível, teve de
e de EiícBões. aperfeiçoar a educação nas bibliotecas dos mosteiros. A sua
fama atravessou fronteiras e o califa tentou atraí-lo à sua

230
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

corte; acabou por dirigir a universidade da Magnaura.


Foi o primeiro Bizantino platónico; fez copiar metade da
obra de Platão e conhecia bem Porfírio. Era sobretudo
um cientista, mas a consciência cultural tinha evoluído e
livrou-se de ser acusado de magia. De 840 a 843 foi arce­
bispo de Tessalonica; deposto aquando da restauração
das Imagens, pôde então, sem dúvida, retomar o ensino
privado, até ser nomeado para dirigir a Universidade em
863.
Também desta época data a mais célebre crónica bizan­
tina, a Cronografia de Teofânio, escrita nos princípios do Cronografia: crónica anual,
séc. ix. Trata-se de um género bem bizantino, que con­ com início na criação do mun­
do.
siste em escrever a história ano por ano, começando na
criação do mundo. Teofânio retoma uma cronografia inter­
rompida em 284; juntamente com Nicéforo, ele é a única
fonte para um período que vai de 602 ao séc. IX; utiliza
fontes desconhecidas para nós. O autor é um monge ico-
nólatra de capacidades limitadas: transmite-nos os seus
documentos quase em estado bruto. Para além disso, a
cronologia é exacta e a narração, com frequência, muito
pormenorizada.

Fócio. O final do séc. ix é marcado pela personalidade


de Fócio. De boas famílias, faz uma brilhante carreira
administrativa, chega a protoasekretis, tendo desde então
um pequeno círculo de discípulos a quem fazia discursos
transcritos nos Amphilochia. Em 858 ascende a patriarca e
é no exercício dessas funções que a sua obra se torna nota­
bilíssima. Os seus trabalhos teológicos são muito nume­
rosos, de um raro talento e sólida cultura. O aspecto mais
importante da sua obra tem, porém, a ver com os traba­
lhos de erudição: antes de mais, um Léxico de oito mil
rubricas; mas, sobretudo, a sua Biblioteca, isto é, o inven­
tário e a análise dos livros que mais apreciou - um total
de 279 obras. Cento e cinquenta e oito são religiosas e
121 profanas. Algumas apenas chegaram ao nosso conhe­
cimento pela notícia que Fócio delas nos dá. Utilizando
a cultura pagã para fins cristãos - nos comentários que
faz às obras religiosas mostra-se de uma ortodoxia intran­
sigente ele marca o ponto de partida do classicismo
bizantino.

O enciclopedismo do séc. x. Esta tendência para tudo


ler e para querer resumir e classificar tudo conhece o seu
apogeu no séc. x, sob a direcção do próprio Imperador,
Constantino VII Porfirogeneta (913-959). Este é prece­
dido pelo arcebispo de Cesareia, Aretas, autor medíocre
mas editor infatigável, a quem remonta metade da tradi­
Escólios: anotações à margem,
ção manuscrita de Platão e que fez também copiar com frequência muito desen­
Aristóteles. Anota os textos com escólios, onde se revela volvidas, do leitor.
a sua cultura.

231
Com Constantino Porfirogeneta, aborda-se a compo­
sição das enciclopédias. O próprio Imperador redigiu as
que têm uma temática política. Além da vida de Basílio I,
conhecem-se dele três obras muito importantes: o «Livro
das Cerimónias» expõe o cerimonial da Corte, a liturgia
imperial; o «Livro dos Temas» descreve os temas que então
existiam, com a sua história; o «Livro da Administração
do Império» é uma obra dedicada ao filho, para lhe ensinar
as relações com o estrangeiro. Para estes três trabalhos, o
Imperador utilizou os arquivos do Palácio, essencialmente
relatórios de funcionários. O «Livro das Cerimónias», no
entanto, está escrito numa linguagem mais corrente.
A enciclopédia toca em todos os domínios. Encontra-
-se, assim, uma enciclopédia rural - os Geopónicos; uma
enciclopédia militar, agrupando os estrategos da Anti­
guidade e da época bizantina e, à parte, as considerações
tácticas desse soldado de salão que era Leão VI. O mais
belo florão deste enciclopedismo era, aos olhos dos
Bizantinos, a enciclopédia lexicográfica, a Souda. Esta uti­
liza menos os próprios autores do que as compilações pre­
cedentes. Comporta vários milhares de artigos, indo do
simples sinónimo a uma página inteira de explicações;
contém tanto a explicação de palavras raras, como ensi­
namentos gramaticais e informações sobre pessoas, luga­
res, instituições ou noções. Trabalho antes de mais his­
tórico e literário, a Souda é também uma colectânea de
provérbios e um dicionário de citações, para uso das gen­
tes cultivadas.

O séc. XI. Data incontestavelmente do séc. xi uma reno­


vação do esforço de reflexão a todos os níveis e da cria­
ção filosófica e literária. Esta renovação produzirá todos
os seus frutos no séc. xn, mas um grande número de obras
notáveis aparece ainda na centúria anterior, cuja perso­
nalidade mais destacada é incontestavelmente Miguel
Pselo. Este deu um impulso decisivo à filosofia, reservando
aos estudos platónicos o lugar merecido e evitando sem­
Uma carreira: Miguel Pselo. pre as armadilhas da heterodoxia, contrariamente ao seu
Este homem de origem mui­ sucessor João ítalos.
to modesta, mas senhor de
uma incomparável cultura, Com a sua Cronografia revelou-se também o principal
perfeitamente assimilada, era historiador. Mas não o único: outro funcionário, Miguel
dotado em todos os ramos do Ataliata, ilustrou-se também nesse género. Pselo brilhou
conhecimento e orgulha-se de com um vivo fulgor na arte do discurso, à semelhança do
numerosas obras; era insuperá­
vel na intriga política, o que seu mestre João Mavropos, passando sem transição e com
lhe valeu ocupar, a partir de igual felicidade do acto de acusação ao elogio fúnebre da
Constantino Monómaco (1042- mesma personagem! Dedicou-se também à poesia palaciana,
-1055), e durante vinte e cinco a par de João Mavropos, Teofilacto de Ocrida e, sobre­
anos, um importante lugar no
tudo, Cristóforo de Mitilene. Pelo contrário, a poesia reli­
aparelho de Estado, não obs­
tante as mudanças de regime. giosa, única criação original e geralmente muito válida da
poética bizantina, estiola por esta época, tal como a veia

232
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

hagiográfica tão florescente até ao séc. ix: o logoteto do


dromo Simeão Metafrasto limitou-se a reescrever, em estilo
oficial, biografias redigidas por outros, para compor o seu
menológio.

A codificação do direito. A tradição jurídica evoluiu


sensivelmente entre os sécs. viu e xi. Uma primeira etapa
data dos iconoclastas, quando se vê aparecer uma nova
compilação, o Eklogé ou selecção compreendendo, ao que Eklogé: ver p. 229,
se declarava, extractos do Código de Justiniano, que se
mantinha em vigor; de facto, denota-se aí uma nítida infle­
xão no sentido do direito consuetudinário. Tendo a obra
dos Isaurianos iconoclastas sido considerada nula e ine­
xistente pelos seus sucessores, Basílio I (867-886) empre­
ende uma nova codificação do Direito, para regressar, em
princípio, à fonte justiniana. Todavia, a influência do
direito dos Isaurianos (o Eklogê) permanece sensível. Aliás,
em muitos aspectos, os juristas do séc. ix já não conse­
guem sequer traduzir o vocabulário do séc. vi. Basílio
começa por publicar o Procheiron ou manual, compêndio Procheiron: manual de Direito,
da legislação em quarenta títulos. Era a preparação para destinado a preparar as «Basí­
licas».
uma verdadeira codificação, as «Basílicas», publicadas no Basílicas: corpus de Direito de­
reinado de Leão VI, que Basílio anunciara com o seu vido a Basílio I e Leão IV.
Epanagôgé (introdução), também este em quarenta títu­ Epanagôgé: ver p. 132.
los, mas cujos primeiros treze dizem respeito ao Direito Tipoukeitos: índice pormeno­
Público. As «Basílicas» são uma obra considerável de ses­ rizado das «Basílicas».
senta livros - compilação teoricamente exaustiva da legis­
lação em vigor. Nenhum exemplar completo chegou até
nós. De resto, nem sequer então elas podiam ser como­
damente divulgadas pelas províncias, onde apenas se dis­
punha de um índice-resumo, o Tipoukeitos. Imitando Justi­
niano, Leão VI acrescentou uma colecção de novelas, para
adaptar à situação da sua época um direito que se man­
tinha demasiado próximo do direito romano.
Na sequência deste trabalho, a legislação evolui pouco,
e a jurisprudência - a sua interpretação - assume uma
grande importância. Possuímos assim, sob o nome de Peira,
uma colectânea de sentenças ditadas por um célebre juiz
do séc. xi, Eustato o Romano.

A evolução artística ■

A arquitectura. A arquitectura religiosa é a mais estu­


dada, por ser a melhor conservada, e também a mais evo­
lutiva. Ela influencia a construção dos palácios laicos que
chegaram aos nossos dias. A evolução decisiva é a passa­
gem da basílica de cúpula, cujo exemplo mais perfeito é
Santa Sofia, ao plano cruciforme. A basílica de cúpula é, Santa Sofia: ver p. 12.
com efeito, um tipo ecléctico e ilógico: a cúpula exerce
os seus esforços sobre todos os lados e pode ser mais facil-

233
mente sustida por um quadrado do que por um rectân-
gulo, porque a passagem do redondo ao rectangular
implica um número elevado de resistências para trans­
mitir o esforço. Daí o aparecimento do plano em cruz
grega, isto é, de uma cruz de ramos iguais e ortogonais,
cujas abóbadas e arcos acolhem perfeitamente o esforço
da cúpula central. O melhor exemplo é a Néa construída
por Basílio I.
A igreja do mosteiro de Daphni Esta passagem para a cruz grega é acompanhada por
duas evoluções importantes. Primeiro, na distribuição do
espaço interior. O diakonikon, capela onde se reunia o
clero antes do começo do ofício, e a prothésis, onde o clero
ia buscar o Sacramento, aproximam-se da abside central
e comunicam com esta; o altar, que era projectado para
muito longe na nave na época protobizantina, é atraído
para a abside. O todo depressa passa a ser precedido de
um véu, e posteriormente de um tabique móvel, a ico-
nóstase, que separa o clero celebrante dos fiéis: a missa é
celebrada atrás do tabique, fora dos olhares da massa dos
fiéis. Torna-se um assunto de especialistas, que se distin­
guem cada vez mais do povo cristão. As igrejas marcam
assim a distância que se cava entre o clero e os leigos.
A segunda evolução é a considerável redução da dimen­
são das igrejas, o que aliás torna mais fáceis as soluções
Segundo o Guide bleu Grèce arquitectónicas. A maior parte das catedrais foi construída
entre os séculos iv e vi e mantêm-se em funcionamento.
As novas igrejas edificadas após o séc. Viu são fundações
privadas, e não já edifícios públicos erguidos pelas cida­
des. São feitas à medida das fortunas privadas que as finan­
ciam, as quais se preocupam mais com a riqueza da deco­
ração do que com as dimensões de um templo de onde
os fiéis são pura e simplesmente excluídos, seguindo a
Nártice: espécie de átrio, por missa do nártice, ou seja, de fora.
vezes fechado, que precede a
porta que dá acesso ao santuá­
A decoração. Os progressos são mais sensíveis e rápi­
rio.
dos neste domínio, tendo nisso o iconoclasmo, por defi­
nição, uma grande influência já que tem em vista as repre­
sentações. Esta influência é mais nítida nos meios oficiais
do que nas províncias e entre os monges que se manti­
veram iconólatras. O séc. viu e a primeira metade do séc. ix
vêem, pois, acentuar-se um corte entre a arte oficial de
um lado e a arte popular do outro, embora a influência
oriental seja sensível em ambas.
A arte oficial (palácios, igrejas iconoclastas) inspira-se
Anicónicas: diz-se das civiliza­ nas decorações existentes nos países anicónicos - árabes
ções que recusam a represen­ essencialmente. As paredes dos palácios revestem-se de
tação do homem e, a fortiori,
de Deus.
figuras de animais, de armas, de árvores. Nas igrejas da
Capadócia, por exemplo, os motivos são sobretudo geo­
métricos, utilizando a cruz e integrando aí animais. Este
estilo exprime-se também na decoração dos livros. Quanto

234
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

à arte que se mantém iconólatra, regressa a uma expres­


são de influência síria, deveras primitiva, com figuras muito
angulosas, alongadas, mal desenhadas, de cores pálidas.
Após 843, a renascente arte iconólatra oficial vai aí bus­
car a sua inspiração.
A partir do começo do séc. x, o plano em cruz grega
predominante nas igrejas impõe um esquema muito
rígido de decoração onde a Virgem, grande triunfadora,
ocupa um lugar privilegiado. A imagem de Maria sai da
querela com um verdadeiro valor dogmático, o que
explica que as mesmas cenas sejam tratadas em toda a
parte do mesmo modo, até ao mais pequeno pormenor.
A cúpula é ocupada pelo Cristo Pantocrator, imagem do
Apocalipse. A abside é reservada à Virgem com a Criança
nos joelhos. A abóbada que separa a abside da cúpula
exibe o trono vazio que o Cristo ocupará no julgamento
final, apenas com os instrumentos da Paixão. O resto do
santuário é consagrado à Eucaristia, nomeadamente à
missa celebrada por Cristo em hábito de oficiante. Na
nave encontram-se em geral doze cenas corresponden­
tes às grandes festas litúrgicas e, no nártice, o ciclo da
Virgem. Por cima da porta da igreja, no nártice, a deisis
(prece) da Virgem e de S. João Baptista, à direita e à
esquerda do Cristo, para cuja figura se inclinam os dois
rostos suplicantes.
Na execução desta decoração, o estilo pode diferir
notavelmente. As figuras das grandes igrejas da capital
perderam muito da sua rudeza e imprecisão; mas a orna­
mentação de São Lucas de Fócida ainda é muito influen­
ciada pelos modelos sírios.
A escultura praticamente desaparecera, salvo no caso
dos baixos-relevos, apresentando-se o marfim como prin­
cipal material. O trabalho do metal - a ourivesaria, os
esmaltes ou obras mais importantes como as portas das
igrejas e outros edifícios - assume então um lugar impor­
tante.

2. Arte e cultura no mundo muçulmano

Arte e cultura atingiram no mundo muçulmano um


desenvolvimento e uma perfeição que fazem delas uma
das glórias da sua civilização. E no séc. ix e no mundo
iraquiano que se manifestam os seus traços mais carac­
terísticos. A fragmentação do império abássida cedo pro­
vocou, no entanto, o desenvolvimento de variantes regio­
nais.

235
■ Primeiros aspectos da vida cultural
e artística (sécs. vii-vni)

Na época pré-islâmica, as artes figurativas eram total­


mente estranhas aos Árabes. Em contrapartida, possuíam
em matéria literária toda uma tradição de poesia oral que,
Qasída: ode árabe com uma ordenada em qasidas, cantava a vida no deserto; tinham
centena de versos, formada igualmente uma língua poética comum, na qual se expri­
por uma série de quadros des­
miu o Alcorão. A redacção deste notável monumento lite­
critivos.
rário assinalou, de algum modo, o início de uma cultura
escrita.
A fundação do império árabe mergulhou duradoura­
mente os conquistadores em meios culturais diversos, con­
tacto que permitiu a eclosão de uma primeira literatura
muçulmana e de uma arte que nem era absolutamente
árabe, nem puramente bizantina ou iraniana - uma arte
do islão.

A influência religiosa. As necessidades religiosas deter­


minaram antes de mais as primeiras realizações artísticas
e a elaboração de uma língua de cultura. Os Muçulmanos
edificaram lugares de culto. Por vezes limitaram-se a adap­
tar edifícios preexistentes - caso das igrejas sírias; outras
vezes criaram-nos, nomeadamente nas cidades novas. A par­
Ver pp. 110-111 e 201. tir da época omíada apareceu assim uma arquitectura reli­
giosa, a das mesquitas, que soube utilizar as tradições deco­
rativas dos mosaicistas cristãos. O plano da mesquita em
transepto, com filas de colunas perpendiculares à parede
qibla, é então o mais divulgado. As mesquitas edificadas
nesta época, por vezes apenas conhecidas através de tes­
temunhos literários, são as de Baçorá, Cufa, Medina, Alepo,
Fustât e a mesquita de al-Aqsâ, de Jerusalém.
A preocupação religiosa de fixar a língua do Alcorão,
a fim de preservar o seu carácter sagrado, determinou um
vasto inquérito que prosseguiu ao longo de todo o séc. viu
e resultou num verdadeiro corpus da língua árabe. O estudo
Ver p. 87. dos hadiths do Profeta e da velha poesia beduína manti­
dos pela tradição oral e reduzidos a escrito, a análise do
vocabulário empregado pelas diversas tribos árabes, per­
mitiram aos gramáticos e lexicógrafos de Baçorá e Cufa
estabelecer as respectivas leis e organizar uma gramática.
Sibawayh, gramático de Baçorá falecido em 793, ilustra 00
bem essa actividade. Assim se forjou a língua escrita, ins­
trumento da expressão literária.

A influência da corte. Os primeiros desenvolvimentos


artísticos e literários não se limitam a responder a neces­
sidades religiosas: a constituição de uma administração, a
formação de um ambiente cortesão, a adopção da língua
árabe como língua administrativa suscitaram outras rea- í

236
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

lizações. Com os palácios sírios, apareceu uma arquitec-


tura civil cuja decoração reserva um vasto lugar ao ele­
mento figurativo. Quanto aos poetas, eles conservaram o
seu lugar; mas, embora prolongando as grandes tradições
da poesia pré-islâmica, eles deixam perceber a marca da
nova sociedade, urbana e islamizada. A prosa literária faz
igualmente a sua aparição. Abd al-Hamid ibn Yahiâ, mem­
bro da administração omíada, é considerado o primeiro
estilista autêntico, criador da epístola. A sua obra reflecte
o aparecimento da classe dos kuttâb e do seu gosto pela Kuttâb: ver p. 201.
cultura. O seu discípulo, Ibn al-Muqaffa, deve a celebri­
dade à tradução para o árabe, a partir de uma versão
pálavi, das fábulas indianas de Kalíla e Dimna. Mas o ver­ Kalíla e Dimna: nomes de dois
dadeiro criador da prosa árabe foi al-Djâhiz, o grande chacais à volta dos quais se de­
senrola uma série de apólo­
escritor de Baçorá. Defensor de uma cultura árabe, dei­
gos.
xou uma abundante obra sobre os assuntos mais variados:
entre outros pequenos tratados descrevendo com talento
e humor a sociedade do seu tempo, contam-se o Livro dos
Avares, o tratado sobre os Turcos, o dos mercadores, etc.
A partir do séc. ix desenvolveu-se um prodigioso esforço
intelectual, particularmente afirmado entre 850 e 950. Vê-
-se então aparecer, em matéria arquitectónica e decora­
tiva, uma arte cujos elementos foram infinitamente utili­
zados e diversamente combinados pelos séculos vindouros.
Formou-se uma cultura nova nitidamente arábico-islâmica,
na qual os diferentes ramos do saber começaram a diver­
Shu 'übiyya: reacção dos kuttâb,
sificar-se. Num e noutro domínio, a influência das civili­ largamente abertos aos con­
zações antigas - grega, persa, indiana - foi manifesta; foi tributos das civilizações ante­
mesmo tão grande que, em certos momentos, alimentou riores ao islão, contra as ve­
nos meios intelectuais um debate entre defensores das lhas tradições arábicas que a
aristocracia árabe procurava
tradições árabes e adeptos destas civilizações, sobretudo impor como único modelo
da iraniana. Tal é o movimento conhecido pelo nome de cultural.
shu ’ubiyya.

A arte de Samarra ■

A arte nova é-nos revelada pela cidade de Samarra.


A antiga cidade de Bagdade - hoje inexistente - só é aces­
sível pela tradição literária, enquanto a cidade de Samarra,
criada pelo califa al-Mu’tasim que aí se instalou em 838,
foi totalmente abandonada a partir de finais do séc. ix,
tendo-se tornado num sítio desabitado que a arqueologia
nos tem vindo a restituir a pouco e pouco. Pelas formas
arquitecturais e decorativas desenvolvidas, a arte de Samarra
revela-nos o que foi a primeira arte abássida. A grande
mesquita com o seu minarete em espirais, um mausoléu
e diversos palácios manifestam formas arquitectónicas
Iwân: sala abobadada, abrin­
novas. Os palácios associam às tradicionais salas de trono
do para o exterior sem pare­
de cúpula os iwân, de inspiração sassânida. Surgem novos de de fachada. Ver p. 62.
tipos de arco, como o arco ultrapassado. A escultura orna-

237
mental em alto relevo não existe, mas a decoração ornamen­
tal deixa aparecer com crescente frequência os nichos
polilobados, sobrepostos ou em filas, assim como um pro­
cesso novo de preenchimento das superfícies: as estalac­
tites. Nas decorações em estuque, frequentemente empre­
gadas, utiliza-se o processo de talha oblíqua, que sublinha
os relevos de maneira mais matizada. A tendência para a
estilização e a ornamentação geométrica manifesta-se nos
Palmitos: ornamento que si­ palmitos diversamente combinados e nas formas primiti­
mula a forma de duas folhas vas do arabesco. O mihrab, sobretudo, é objecto de uma
de palmeira colocadas face a decoração cuidada e abandona a forma redonda para
face e unidas pelos pés.
Arabesco: forma especial e ex­
adoptar um quadro rectangular.
clusivamente islâmica de esti- As numerosas peças de cerâmica encontradas em Samarra
lização de ornamentos vege­
tais.
testemunham a introdução no mundo muçulmano da bai­
xela àe lâiança e àe porcelana da China, mas também o
aparecimento de uma cerâmica totalmente original - a cerâ­
mica lustrada, susceptível de uma espantosa diversidade de
tons. Também nelas se depara com o ornato em palmitos,
ao mesmo tempo que aparece um tipo de decoração epi-
gráfica que utiliza uma escrita árabe angular, o cúfico. O tra­
balho da madeira e do marfim atesta um elevado nível.
Assim se constituía a pouco e pouco um fundo em
matéria artística, no qual iriam basear-se as outras regiões
do Império. No final do séc. IX, a influência da arte de
Samarra é muito sensível no Egipto, na mesquita de Ibn
Túlún - construída entre 876 e 879 e notavelmente con­
servada com os seus pilares de tijolo, os seus nichos
polilobados que articulam a fachada e com o núcleo octo­
gonal acantonado sobre quatro leves colunas de mármore;
a ornamentação corresponde ao estilo de Samarra.

■ A cultura arábico-islâmica

Os seus caracteres. A cultura que se elabora a partir


do séc. ix exprime-se em árabe: pela extensão do voca­
bulário e pela sua gramática, a língua atinge então uma
certa perfeição. Entretanto, esta língua escrita vai-se afas­
tando dos dialectos e das falas citadinas. Mas é utilizada
pelos meios dirigentes e empregada na administração.
Difícil de escrever, impõe uma aprendizagem e o estudo
dos gramáticos. E certo que o árabe não fez desaparecer
as outras línguas. Todavia, os próprios Iranianos escrevem
em árabe e assiste-se mesmo à criação, em árabe, de uma
literatura cristã. E uma cultura de citadinos e de cidades:
as urbes do Iraque - como Baçorá, Cufa e Bagdade -, e
depois outros centros regionais, oferecem os instrumen­
tos de trabalho (bibliotecas cuja construção se desen­
volve...), os mecenas e a clientela: cursos, funcionários,
doutores, etc.

238
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

Mas qualquer que seja a primazia reconhecida e acor­


dada ao árabe, seja qual for a ligação às tradições árabes,
a cultura no séc. IX mostra-se antes de mais marcada pelo
reconhecimento das civilizações antigas. Se o califa al-
-Mansür passa por ter solicitado a Constantinopla obras
de matemáticos, é com al-‘Mamún que melhor se mani­
festa o cuidado de incorporar na cultura arábico-muçul­
mana os conhecimentos antigos. Assim, este pôs em prá­
tica uma verdadeira política de traduções, procurando
textos e tradutores e fazendo edificar em Bagdade a «Casa
da Sabedoria», com uma biblioteca e um centro de tra­
duções a partir de obras originais ou de traduções sírias.
Sobretudo textos gregos, mas também pálavis ou hindus
- essencialmente obras filosóficas e científicas -, foram
assim postos à disposição dos Muçulmanos. Com a tra­
dução acompanhada de reflexões e de comentários, esta
política provocaria a pouco e pouco a aparição de uma
nova forma de literatura. Este movimento prolongou-se
por todo o séc. ix, tendo sido marcado, no reinado de al-
-Mutawwakil, pela personalidade de um cristão nestoriano,
Hunayn ibn Ishâq, que traduziu, nomeadamente, a maior
parte da obra de Galiano.
Baseada nas tradições árabes e na reflexão sobre o
Alcorão, mas enriquecida progressivamente por toda uma
herança antiga, desenvolveu-se deste modo uma cultura
árabo-muçulmana que se expandiu pelos domínios mais
diversos.
Os pensadores muçulmanos da Idade Média distin­
guem expressamente as ciências propriamente ditas (em
árabe, Um, no plural ulüm) do resto da produção literá­
ria. Por ciências entendiam os diversos ramos do saber, e
opunham as ciências religiosas ou tradicionais às ciências
antigas ou racionais. As primeiras têm por fontes o Alcorão
e a Tradição, assim como a exegese, a ciência dos hadiths,
a moral, a teologia dogmática, o fiqh ou direito: estas dis­
ciplinas conheceram uma fase de intensa elaboração nos
primeiros séculos abássidas, a que se seguiu uma paragem
da reflexão. As ciências ditas racionais são as que o homem
adquire pelo mero exercício da reflexão: correspondem
aos campos cobertos hoje pela filosofia, as ciências exac-
tas e as ciências da natureza. Ao lado destes saberes espe­
cializados, religiosos e científicos, a produção literária
desenvolveu-se nas áreas da poesia, da prosa ficcional, da
história, da geografia, e mais ainda do enciclopedismo.
Esta nítida separação entre a reflexão religiosa, o pensa­
mento científico e a criação literária, não corresponde,
porém, às clivagens entre disciplinas forjadas na Europa
moderna. É assim que existem relações estreitas entre exe­
gese corâdea e história num pensador como Tabari, ou
entre filosofia e medicina num sábio como Ibn Sinâ.

239
O estudo desta cultura impõe portanto um sério esforço
para compreender as suas relações profundas e, na apre­
sentação que se segue, apenas são retidos alguns aspec­
tos, entre os mais notáveis, da imensa produção literária,
Ver pp. 143 e 153-155. científica e filosófica.

■ Os géneros literários

A poesia. A poesia tinha deixado de ser a única forma


de literatura, mas grandes poetas continuaram a ilustrá-
-la. O gosto pelos velhos poemas beduínos não desapare­
ceu, tendo suscitado mesmo imitações que, em florilégios
poéticos como o de Abú Tammâm, mal se distinguem dos
verdadeiros. Outros poemas se desenvolveram, mais bre­
ves, cantando a vida da corte, os palácios, a alegria de
viver, misturando por vezes a sátira ao panegírico. O nome
maior dos seus cultores é o de Abu Nuwâs. Mas depressa
a poesia se tornaria num exercício académico. Tem-se por
adquirida a causa disso: não podia aparecer nenhum tema
novo, só a forma podia ainda variar. Era o início do declí­
nio da verdadeira poesia árabe. Renasceu momentanea­
mente na corte hamdânida de Saif al-Dawla. Mas foi uma
espécie de reacção árabe arcaizante. E, entretanto, os poe­
tas orientais foram eclipsados por poetas andaluzes como
Ibn Hazm que, no séc. xi, compôs os poemas amorosos
do Colar da Pomba.

A história. Ao mesmo tempo que se formava o direito


com as suas diferentes escolas, o estudo dos hadiths e a
preocupação da Sunna suscitaram as primeiras manifes­
tações de um género que se pode classificar de histórico.
Foram organizadas colecções de hadiths, classificadas com
crescente frequência por matérias e utilizando largamente
o princípio da confirmação da fonte. Os maiores nomes
neste domínio são os de al-Bukhârí, Muslim e o do fun­
Ver p. 143. dador de uma escola jurídica, Ibn Hanbal.
Apareceram também as primeiras biografias do Profeta,
e se hoje já não possuímos as obras de Muhammad Ibn
Ishâq, o essencial delas foi utilizado por Ibn Hishâm, que
compôs uma biografia de Maomé, base de todos os estu­
dos ulteriores. Tratava-se, no entanto, mais de tradicio­
nalistas do que de historiadores. Outros interessaram-se
mais pelos factos propriamente militares da conquista,
pondo em evidência o papel dos clãs e desenvolvendo as
genealogias. Foi o caso de Ibn Abd al-Hakam, que des­
creveu a conquista do Magrebe e da Espanha; Wâqidi, que
se interessou pelas campanhas de Maomé; e sobretudo al-
-Balâdhurí, autor de uma notável História das Conquistas
Muçulmanas. Ibn Sa’id escreveu as biografias dos «com­
panheiros» e «sucessores» de Maomé, quer dizer, de todos

240
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

aqueles por quem os hadiths tinham sido transmitidos.


Inaugurava assim um outro género histórico, particular­
mente florescente no islão: o dos tabaqât, ou dicionários
biobibliográficos respeitantes a personagens célebres.
O género histórico está assim, nas suas origens, estrei­
tamente ligado ao facto muçulmano. No decurso do séc. x
concluiria a sua evolução: Tabari é o criador da história
universal cujo começo fixa na Criação. Em seguida, nos
sécs. x e xi, a história diversifica-se: passa a ser a história
das cidades, de dinastias, revestindo a forma de anais e
de crónicas.

A geografia. A geografia elaborou-se lentamente, influen­


ciada pela tradução de obras gregas e persas. Os Árabes,
inspirando-se em teorias iranianas, distribuíram os con­
juntos humanos em torno de um centro: o Iraque, por
vezes substituído por Meca e Medina. As primeiras obras
- de Ibn Khurdâdhbâh e Qudâma - responderam, toda­
via, a necessidades administrativas, ou resultaram de via­
gens, como a anónima Relação da China e da índia com­
posta em 851. Este último aspecto prolongar-se-ia, ilustrado
pela célebre Relação da viagem de Ibn Fadlân entre os
Búlgaros do Volga em 921. A partir do séc. x aparecem
descrições do mundo de autores como Ya’qúbi e Ibn Rustah;
com Mas’údi, a geografia inseriu-se em obras de carácter
enciclopédico. Mas, sobretudo, assiste-se ao aparecimento
de um outro tipo de geografia, voltada para a exclusiva
descrição do mundo muçulmano, conhecido por experi­
ência pessoal, e que se dedica a apresentar as actividades
humanas: começou verdadeiramente com Istakhri e desen­
volveu-se com Ibn Hawqal e al-Muqaddasi.

Ciências e filosofia. Apenas se pode fazer uma breve


alusão à ciência árabe. No entanto, neste domínio os
Árabes desenvolveram uma actividade de primeira ordem,
afirmando-se ao mesmo tempo como os continuadores de
uma rica herança antiga e como criadores capazes de aliar
reflexão e observação. Por via das traduções, recolheram
os saberes indo-persas e, sobretudo, gregos. Depressa apa­
receram também as primeiras obras árabes de matemá­
tica (al-Khwârizmi), de astronomia, de física; a medicina
desenvolveu-se consideravelmente com Ibn Sinâ e ar-Râzi.
Com grande frequência, aliás, esta actividade científica é
acompanhada pela especulação filosófica, que se desen­
volveu por impulso das traduções gregas, e muito parti­
cularmente das obras de Platão e de Aristóteles. Não há
dúvida de que, para os doutores do islão, o pensamento
antigo não deveria ter qualquer lugar no aprofundamento
do Alcorão, mas já no séc. IX o conceito de falsafa faz a
sua aparição para designar uma actividade que, metodolo­
gicamente, se apresenta como uma investigação indepen-

241
dente do dogma, sem com isso o rejeitar. Mas, ao enfren­
tarem o problema da Criação do mundo e das relações
da criatura e do criador, os filósofos acabavam por dar
provas de uma audácia intelectual que os aproximava dos
meios menos ortodoxos, e nomeadamente dos ismailia-
nos. Os grandes representantes desta actividade foram o
Árabe al-Kindi, o Turco al-Fârâbi e, sobretudo Ibn Sinâ,
mais conhecido no Ocidente pelo nome de Avicena. Este
movimento filosófico viria a suscitar a oposição dos pen­
sadores sunitas rigoristas. Um bom número destas obras
científicas e filosóficas conquistaram o Ocidente cristão,
graças às traduções feitas entre os sécs. XI e xin na Itália
meridional, na Sicília e na Hispânia, e favoreceram o
desenvolvimento intelectual do mundo latino.

Evolução da vida cultural. Foi, pois, uma verdadeira


cultura arábico-islâmica que se constituiu; uma cultura
que se pode definir como o conjunto das ciências, dos
conhecimentos, das ideias e das tradições criadas ou trans­
mitidas em língua árabe por Muçulmanos de diversas ori­
gens. Ninguém podia pretender dominar o conjunto destes
conhecimentos e cedo apareceu, no decurso do séc. ix,
uma concepção da cultura que ia pesar consideravelmente
na sua evolução. Exprime-se numa palavra de tradução
praticamente impossível, de tal modo são complexas e
evoluíram as noções que veicula: adab. Este termo designa
«a soma dos conhecimentos que tornam o homem cortês
e urbano, a cultura profana (por oposição à ciência reli­
giosa)», de algum modo a cultura geral necessária ao
homem cultivado para preencher certas funções (secre­
tário, vizir, cádi). O adab propõe-se instruir divertindo.
Djâhiz (776-868), o maior prosador do séc. ix, soube esco­
lher e dosear entre o legado da tradição árabe e das civi­
lizações antigas; Ibn Qutayba (828-889), mais dogmático,
fixou numa série de pequenos manuais os elementos de
uma cultura árabe que, pela primazia que atribuía às ques­
tões religiosas islâmicas, lhe valeu a adesão dos meios orto- |
doxos. Os dois - tanto Djâhiz como Ibn Qutayba - tinham, j
pois, optado por um saber não especializado, aberto ao
mais vasto público possível. Mas especialmente o segundo
contribuiria nitidamente para um envelhecimento da cul­
tura. E que esta evolução do adab não coincidiu com um
clima favorável à liberdade de pensamento, que o teria
podido contrabalançar. De facto, após a rejeição do muta-
zilismo, a estreita aliança dos doutores sunitas e do cali­
fado, a sua inquietação perante o desenvolvimento das
doutrinas xiitas e da filosofia, provocaram uma viva reac-
ção: «as portas do esforço pessoal» fecharam-se em todos
os domínios. O retorno à ortodoxia estritamente definidâ I
foi assim um factor considerável, se não de declínio, pefe ?
menos de empobrecimento.
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

O retomo à ortodoxia sunita. A influência dos milita­


res, com a ascensão dos Turcos e a sua subsequente con­
quista do poder, teve repercussões não menos graves.
Inquieto perante qualquer ciência profana e perante toda
a teoria susceptível de gerar ideias heterodoxas, envolvido
por um meio indiferente à cultura, o poder preocupou-
-se em dar a esses soldados profissionais uma instrução
simples e ferozmente ortodoxa. Na época seljúcida, o sis­
tema da madrasa fez aparecer um ensino oficial, obriga­
tório para os futuros quadros do país, e que contribuiu
profundamente para uma certa esterilização. Entretanto,
uma tal evolução não deve ser sistematizada: ao longo dos
sécs. x e xi, grandes espíritos continuaram, de facto, a
ilustrar o mundo muçulmano, mas num quadro menos
receptivo e capaz de uma menor compreensão. Este clima
correspondeu, aliás, a uma outra evolução: a da língua
árabe clássica, primeiro fixada e então cristalizada. Os que
realmente a falavam eram cada vez mais raros, ao ponto
de o árabe escrito poder por vezes fazer figura de uma
verdadeira língua morta. Requeria longos anos de estudo
e quando, na Nizâmiyya de Bagdade, os alunos liam a
antologia de poemas de Abú Tammâm, só a conseguiam
entender ao fim de numerosíssimos comentários grama­
ticais.
Assim tornada suspeita no mundo iraquiano, a cultura
conheceu no entanto um certo desenvolvimento noutras
províncias menos ameaçadas pela reacção sunita. Foi o
que se passou entre os Hamdânidas, entre os Raznévidas
que acolheram o grande filósofo al-Birúní - o qual pres­
sentia o declínio das letras árabes entre os Fatímidas,
sem falar da Hispânia. Aqui nasceu, num mundo político
perturbado, uma literatura puramente andaluza.

O desenvolvimento da cultura persa. Uma cultura islâ­


mica persa fez, em especial, a sua aparição: primeiro entre
os Samânidas e depois entre os Raznévidas que, ignorando
o árabe, sem cultura turca, encorajaram a iranização.
A obra-prima desta literatura é o Livro dos Reis de Firdawsi.
O árabe ficou como a língua da religião e o persa tornou-
-se na língua literária. Apareceram igualmente obras em
prosa, primeiro adaptações do árabe, e mais tarde traba­
lhos originais quer em história quer em geografia.
Esboçava-se assim uma viragem no desenvolvimento
literário do mundo muçulmano. Os sécs. ix e x tinham
sido séculos de criação; no séc. xi manifestam-se os sin­
tomas de uma anquilose.

A irradiação artística. O desenvolvimento artístico não


apresenta esta etapa na sua evolução. Com efeito, no séc. X
tinham-se desenvolvido focos regionais. A arte raznévida
manteve-se fiel ao modelo abássida. A falta de escavações

243
sistemáticas não permite conhecer verdadeiramente a
arquitectura religiosa, nomeadamente no que respeita à
grande mesquita de Mahmúd, em Razni. Mas o palácio
de Lashkari Bâzâr, construído no início do séc. xi no actual
Afeganistão, é interessante pelo plano que exibe de qua­
tro iwân envolvendo um pátio rectangular, entre os quais
o iwân setentrional se distingue pela sua fachada alteada;
é ainda interessante pelas pinturas murais da sala do trono.
Enfim, no grande palácio de Razni, um conjunto bem
conservado de placas de mármore atesta a influência hindu.
A arte fatímida tinha-se igualmente desenvolvido e
revela-se no Cairo com a mesquita de al-Azhar e a mes­
quita de al-Hâkim. Se a configuração geral se associa ao
esquema de transepto das mesquitas omíadas, a decora­
ção permanece ligada à herança abássida: o arabesco,
acompanhado por frisos de cúfico ornado, expande-se ple­
namente, mas um gosto pelo estilo realista revela-se cla­
ramente em certos revestimentos de placas de marfim e
em painéis de madeira entalhada. Formas próprias apa­
recem igualmente com uma arquitectura funerária de
mausoléus perto de Assuão e com um novo tipo de mina­
rete, de sobreposição degressiva. No entanto, esta arte não
é específica do séc. xi; desenvolver-se-ia no séc. XII, influen­
ciando aliás fortemente a arte cristã da Sicília.
A arte muçulmana atingirá no Oriente formas superio­
res de desenvolvimento no período seljúcida. E então que
o tipo de edifícios de quatro iwân à volta de um pátio pro­
voca uma transformação da arquitectura das mesquitas.
Surge também um novo tipo de minarete, isolado ou gemi­
nado: o minarete cilíndrico sobre base octogonal e coroado
por um pavilhão aberto. Multiplicam-se os mausoléus e
madrasas. Mas é nos sécs. xn e xin, designadamente na
Anatólia, que esta arte seljúcida encontra a sua mais bela
expressão.
Ao desenvolvimento artístico e cultural do Próximo
Oriente muçulmano responde o do Ocidente muçulmano,
tão bem representado pela Grande Mesquita de Córdova
e que mereceria uma longa exposição.

00

Para aprofundar este capítulo

Sobre a vida intelectual no Império Bizantino nesta |


época: P. LEMERLE, Le Premier Humanisme byzantin, citado
p. 16; J. M. HUSSEY, Church and Leaming in the Byzantine
Empire, 867-1185, Londres, 1937. Sobre o ensino: F. DVOR-
N1K, «Photius et la réorganisation de 1’Académie pa- j

244
A vida intelectual e artística do Próximo Oriente

triarcale», Analecta Bollandiana, t. 68, 1950, pp. 108-125;


P. LEMERLE, «Le gouvernement des philosophes», Cinq
Etudes sur le XIe siècle byzantin, Paris, 1975, pp. 193-248.
Os estudos de síntese sobre este ou aquele autor são
pouco numerosos. Algumas obras foram traduzidas em fran­
cês. E o caso de Phôtios, Bibliothèque, ed. e trad. R. Henry,
7 vols., Paris, 1959-1974; e de Psellos, Chronographie, ed. e
trad. Renaud, 2 vols., Paris, 1967.

Sobre a arte bizantina, ver a bibliografia geral, p. 15.


Ver, por outro lado, C. MANGO, The Ari of the Byzantine
Empire, Sources and Documents, Englewood Cliffs (New
Jersey), 2.- ed.,1986. Sobre a escultura, R. LANGE, Die byzan-
tinische Reliefikone, Reckinghausen, 1964. Sobre as pintu­
ras murais, N. e M. ThíERRY, Nouvelles églises rupestres de
Cappadoce, Paris, 1963. Sobre a miniatura, S. DUFRENNE,
Llllustration des psautiers grecs du Moyen Age, Paris, 1966.
Sobre a arquitectura, R. KRAUTHEIMER, Early Christian and
Byzantine Architecture, Nova Iorque, 1965 (nenhuma obra
recente tenta uma síntese sobre a arquitectura).

Sobre a vida intelectual do mundo muçulmano: a


melhor abordagem metodológica é a de C. CAHEN,
Introduction..., pp. 93-98, citada p. 12, que apresenta igual­
mente os principais géneros literários, pp. 68-82. Os pro­
blemas da evolução da vida cultural foram abordados por
H. GiBB, «An Interpretation of Islamic History», Cahiers
d’HistoireMondiale, 1953; e nas Actas do Colóquio Classicisme
etDéclin culturel dans Vhistoire de VIslam, Paris, 1957. Os arti­
gos clássicos de G. E. VON GRUNEBAUM estão agrupados
em Islam and Medieval Hellenism: Social and Cultural
Perspectives e em Themes in Medieval Arabic Literature,
Variorum Reprints, Londres, 1976 e 1981; os de C. PEL-
LAT, em Etudes sur Vhistoire socio-culturelle de VIslam (VIIe-XVe
siècles), Variorum Reprints, Londres, 1976. Ver ainda
R. PARET, «Contribution à 1’étude des milieux culturels
dans le Proche-Orient médiéval...», Revue Historique, 1966.

Sobre a língua e a literatura árabes: C. PELLAT, Langues


et Littérature arabes, Paris, 1952; G. WlET, Zníroducíion à la
littérature arabe, Paris, 1966, e o artigo «Arabiyya» de EI/2,
citada p. 12.

Sobre o pensamento, a filosofia e as ciências: M. ARKOUN,


La Pensée arabe, «Que Sais-je?», n.Q 915, Paris, 1975;
M. ARKOUN, Essais sur la pensée islamique (colectânea de
artigos), Paris, 1973; A. MlQUEL, La Géographie humaine du
monde musulman jusqu’au milieu du XIe siècle, 4 vols., Paris-
Haia. 1967-1988; C. CAHEN, «L’historiographie arabe: des
origines au VHe siècle», Arafàca, 1986; P. BENOIT, F. Mi-
CHEAU, «LTintermédiaire arabe?», Eléments d’histoire des sci-

245
ences (dir. M. Serres), Paris, 1989; S. H. NASR, Sciences et
Savoir en Islam, Paris, 1979; F. ROSENTHAL, The Classical
Heritage in Islam, Londres, 1980; J. VERNET, Ce que la cul-
ture doit aux Árabes dEspagne, Paris, 1985; M. M. WATT,
Llnfluence de 1’Islam sur VEurope médiévale, Paris, 1974;
D. JACQUART, F. MiCHEAU, La Médecine arabe et VOcddent
médiéval, Paris, 1990.

Sobre os problemas artísticos: ver a bibliografia p. 12


e ter em conta as indicações de C. CAHEN, Introduction...,
pp. 98-99, citado p. 15.

00
ESCLEROSE
OU MUDANÇA
NO PRÓXIMO ORIENTE

Livro terceiro

Capítulo 14 Um eclipse relativo do Oriente nos séculos XI e xn

Capítulo 15 As mudanças económicas e sociais do século xn

Capítulo 16 As transformações políticas e culturais


do Próximo Oriente nos séculos XI e xii

Capítulo 17 O mundo rural entre os séculos XIII e xv:


os progressos da dependência

Capítulo 18 Cidades e actividades comerciais no final


da Idade Média

Capítulo 19 Mudanças políticas e novas fronteiras


- séculos xiv e xv

Capítulo 20 Para um encerramento cultural do Oriente?


14
Um eclipse parcial do Oriente
nos séculos xi e xu

7. A situação política cerca de 1080

■ Manzikert (1071)

Em 1071, pode-se pensar que o desaparecimento do


Império Bizantino já só é uma questão de tempo: a
grave derrota de Manzikert, infligida pelos Turcos
Seljúcidas, podia significar a perda definitiva da Ásia
Menor, já incessantemente sujeita a razias pelos
Turcomanos desde os anos 1040. O imperador Romano
IV Diógenes, que supusera poder resolver a questão pas­
sando à ofensiva, tinha sido feito prisioneiro pelo sul­
tão Alp-Arslân; este já não encontra à sua frente nenhu­
ma defesa bizantina organizada. No entanto, o sultão
não quer a Ásia Menor: o seu verdadeiro objectivo é a
reunificação do mundo muçulmano através do derrube
do califado egípcio herético; a guerra na Anatólia
somente o poderia entravar nessa empresa. Daí a sua
moderação após Manzikert: impondo a Diógenes, além
do pagamento de um tributo em ouro e em tropas, a
cedência das principais fortificações da Arménia
(Manzikert e Argish), da Djézira (Edessa) e da Síria do
Norte (Antioquia), ele mais não visa do que obter a
consolidação da fronteira tradicional do islão, ultra­
passada pelos Bizantinos após 970.
De facto, são as convulsões internas de Bizâncio que
instalam definitivamente os Turcos na Anatólia: antes
de morrer em 1072, Alp-Arslân vira Romano IV ser des­
tronado e substituído por Miguel VII Dukas, o que tor­
nava caducas as disposições de 1071. Por outro lado, o
país é sacudido por incessantes revoltas cujos protago­
nistas - mercenários latinos como Robert Crispin e
Roussel de Bailleul, ou gregos ambiciosos como o César
João Dukas, tio do imperador - se apoiam alternada­
mente nos Turcos, na tentativa de alicerçarem a res­
pectiva autoridade. Chamados pelas facções rivais, os
Turcos circulam quase livremente pela Ásia Menor, de
Trebizonda, na costa do mar Negro, a Mileto, no lito­
ral egeu.

248
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos XI e xn

O estabelecimento dos Turcos na Asia Menor ■

Até 1078, os Turcos limitam-se, no entanto, a incur­


sões temporárias na Anatólia: a Síria setentrional e o Tauro,
partilhados pelos emires árabes de Alepo e o príncipe
arménio Filareto, formam uma zona tampão que ameaça
isolá-los das suas bases. E é ainda Bizâncio que os convida
a dar o passo decisivo para um estabelecimento estável na
península: face à revolta de Nicéforo Botaneiatés, Mi­
guel VII lança um apelo aos filhos de Kutlumush, um
primo de Alp-Arslân. Passando quase imediatamente para
o partido do usurpador, estabelecidos na região de Niceia,
controlando praticamente a margem asiática do Bósforo,
esses Turcos formam a partir de então uma massa de
manobra muito próxima de Constantinopla, à disposição
de todos os ambiciosos; enquanto Nicéforo Briennios
arrasta alguns dos seus elementos até à Europa, Nicéforo
Melissenos, na Asia, dá-lhes acesso à Galátia e à Frigia
onde - facto essencial - se instalam pela primeira vez nas
cidades. Cerca de 1080, eles são senhores das margens da
Propôntida e do Bósforo, e um dos filhos de Kutlumush,
Solimão, adopta mesmo o título de sultão.
O soberano seljúcida, Malik-Xá, menor à data da subida
ao trono, não pode, de todo, intervir antes de 1079, mas
mantém-se fiel à política paterna: enquanto o seu irmão
Tutush se apodera da Síria pela conquista de Damasco,
Jerusalém, Jaffa e Saida, em 1080, ele vai ao ponto de
enviar uma embaixada a Bizâncio pedindo a captura dos
filhos de Kutlumush, cuja actividade contraria os seus pro­
jectos. Mas o poder imperial, cégo ou míope, continua a
crer que Malik-Xá representa o verdadeiro perigo: é
enquanto vassalo de Bizâncio que Solimão empreende a
operação de submissão do Leste anatólio.

O perigo normando ■

Esta má avaliação do perigo turco não onera somente


a política oriental de Bizâncio: fecha-lhe os olhos para as
ameaças, sem dúvida mais graves, que vêm do Ocidente.
Em 1071, o mesmo ano de Manzikert, os Normandos de
Robert Guiscard concluem, com a tomada de Bari, a con­
quista da Itália bizantina, deixada praticamente sem defesa.
Embora Guiscard não esconda a sua intenção de atraves­
sar o estreito e marchar sobre Constantinopla, Bizâncio
crê poder impedi-lo pelo simples jogo da sua diplomacia
tradicional. Depois de enfrentar a rejeição por Guiscard,
em 1072-1073, de uma proposta de aliança matrimonial,
dá mostras de se aproximar, a partir de 1073, do inimigo
figadal dos Normandos, o papa Gregório VII, o que impres-

249
siona suficientemente Guiscard para que este modere a
Crisobulo: o acto mais solene
sua posição. No mês de Agosto de 1074, um crisobulo con­
da chancelaria bizantina, se­
lado com uma bula de ouro e cede títulos palatinos ao duque normando, que aceita
contendo a assinatura autó­ casar uma das suas filhas com o jovem filho de Miguel VII
grafa do Imperador. e promete defender o território imperial contra os seus
inimigos.
Também aqui, Bizâncio se enganou redondamente. Se
esperava uma ajuda de Guiscard contra os Turcos, teve
uma decepção porque jamais a recebeu. Pior: a sua aliança
familiar com Miguel passou a dar ao duque um aparente
direito a pronunciar-se sobre os assuntos do Império.
Quando, em 1078, Miguel VII é destronado, Guiscard
encontra um pretexto para se opor a Bizâncio. Enfim, o
papa tem, não sem razão, a impressão de ter sido ludi­
briado: em 1080, chega a encorajar as iniciativas do que
continuava a ser o seu inimigo detestado.

2. A obra dos Comnenos (1081-1185)

■ Normandos, Seljúcidas e Pechenegues

Nestas circunstâncias difíceis, um membro eminente


da aristocracia anatólia, o general Aleixo Comneno, apo­
dera-se do trono em 1081. Mas quando, em 4 de Abril,
ele cinge a coroa imperial, os Normandos já tinham desem­
barcado em Valona, na costa albanesa. Além das suas
magras forças, Aleixo somente lhes pôde opor os seus alia­
dos venezianos, cujo papel se limita, de resto, a uma vitó­
ria naval no mês de Julho. Durante quatro anos, os
Normandos, senhores de Dirráquio (Durazzo), mantêm-se
no litoral albanês e chegam a avançar até ao coração da
Macedónia. Aleixo I só consegue expulsá-los para o mar
após a morte de Guiscard (Julho de 1085). Enquanto isto,
Solimão, em teoria sempre como lugar-tenente de Bizâncio,
tinha-se tornado senhor de Iconion (Konya), e a seguir
da Cilicia e de Antioquia, arrancada a Filareto em
Dezembro de 1084.
Bizâncio nada pode fazer contra estas usurpações. É Malik-
Xá quem, em 1085-1086, se apodera do emirado de Alepo,
elimina Solimão e anexa quase todos os domínios de Filareto.
Mas os Gregos continuam a não compreender as suas ver­
dadeiras intenções: quando ele avança pela Anatólia a fim
de eliminar Abú’l-Qasim, regente em nome do filho menor
de Solimão, são os Bizantinos que o obrigam a retirar-se,
salvando do desastre esses Seljúcidas de Rúm que viriam a
contar-se entre os seus inimigos mais encarniçados.

250
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos xi e xn

Os perigos turco e normando são afastados cerca de


1085, mas, a partir de 1086, um outro povo turco, os
Pechenegues, invade a Trácia, chega a menos de 100 km
de Constantinopla em 1087 e, no Outono do mesmo ano,
esmaga um exército bizantino na foz do Danúbio. Aleixo
busca auxílio junto do conde de Flandres, Robert le Frison,
de passagem por Constantinopla em 1089, e consegue
em várias ocasiões lançar outro povo nômada, os Cumanos,
contra a retaguarda pechenegue. Mas quando, em 1089-
-1090, tem de responder aos ataques conjugados dos
Pechenegues na Trácia, do regente Abú’l-Qasim sobre
Nicomédia e do emir de Esmirna, Chaka, (Zachas), que
o provoca no mar com a sua frota, o imperador está só,
se se exceptuar o auxílio de quinhentos cavaleiros vin­
dos da Flandres. A vitória do monte Lebunion (29 de
Abril de 1091), que destrói radicalmente os Pechenegues,
pertence claramente às armas bizantinas. De resto, o ano
de 1092 vê o horizonte desanuviar-se: Malik-Xá, que aca­
bara de eliminar Abü’l-Qasim, propõe novamente uma
aliança aos Bizantinos que, desta vez, aceitam, ficando no
entanto muito mais aliviados ao saberem da morte bru­
tal do sultão. Entretanto, um facto deveria inquietá-los:
a chegada à Anatólia do jovem Kilij-Arslan, filho de
Solimão, até então aprisionado por Malik-Xá. Pelo con­
trário, Aleixo começa por apreciar a sua acção hostil aos
pequenos emires de Rum, o mais temível dos quais, Chaka,
é estrangulado em 1093 por ordem do jovem sultão,
enquanto na Síria o poder seljúcida mergulha numa con­
fusão de que os Fatímidas do Egipto se aproveitam. A
expansão, mais ou menos pela mesma altura, dos
Turcomanos danishmendidas sobre o eixo Ancira-Kayseri-
Sivas, faz surgir um poderoso rival para o sultão de Rúm.
Em 1095, a aparente dissolução do mundo muçulmano
abre aos Bizantinos perspectivas de paz e mesmo, por­
ventura, de reconquista dos seus antigos domínios sírio-
anatólios.

■ A primeira cruzada

Esta situação permite dar conta do papel dos Gregos


na génese da primeira cruzada. Se uma delegação bizan­
tina vem assistir ao Concílio de Plaisance, em Março de
1095, não era certamente para pedir socorro ao Ocidente:
pela primeira vez há um quarto de século, Bizâncio não
corria nenhum risco imediato. Pelo contrário, esperava
restabelecer as suas posições no Oriente e apenas aspi­
rava a obter a ajuda dos Latinos para levar essa obra a
bom termo. Tais são as bases de um trágico mal-enten­
dido: os Gregos, que pretendiam tão-só apoio para uma
empresa estritamente militar e destituída de qualquer

251
aspecto religioso, são os próprios a atrair o desabamento
sobre o respectivo Império de uma horda incontrolável e
possuída desse espírito de guerra santa que sempre lhes
fora estranho e suspeito. De resto, sob o ponto de vista
bizantino, se a cruzada contribuiu indubitavelmente para
enfraquecer ainda mais o adversário turco, ela deixou
sobretudo atrás de si o reino de Jerusalém e os demais
principados latinos do Oriente, pelo menos dois dos quais
- Edessa e, principalmente, Antioquia - se erguem em ter­
ritórios oficialmente bizantinos. O facto de Antioquia ter
sido ocupada por Bohémond, filho de Guiscard e her­
deiro das suas ambições, provoca, especialmente de 1099
a 1104, lutas confusas entre o novo príncipe, Bizâncio e
os Muçulmanos da Síria, no termo das quais Bohémond
regressa ao Ocidente onde, pela primeira vez, faz pregar
uma verdadeira cruzada contra Bizâncio, tida por res­
ponsável de todos os fracassos sofridos pelos Latinos no
Oriente. Embora a sua propaganda desperte pouco eco,
o príncipe normando julga poder, em 1107, renovar o
empreendimento de 1081; todavia, cercado na Albânia,
tem de aceitar, em Setembro de 1108, as cláusulas do tra­
tado de Déabolis que fazem dele um vassalo do impera­
dor e de uma parte do território de Antioquia um feudo
recebido das mãos dos Bizantinos. Mas o triunfo de Bi­
zâncio é aparente: Bohémond morre em 1111 e Tancredo,
regente em nome de seu filho menor, repudia as estipu­
lações de 1108.
No domínio das relações internacionais, o reinado de
Aleixo I é, no entanto, positivo: praticamente só, e graças
a uma reforma interna de que se tratará mais adiante, o
Império soube desencorajar os empreendimentos latinos
no Ocidente. Habilmente, soube tirar partido no Oriente
da confusão muçulmana, ainda acentuada pela cruzada,
enquanto que, nos Balcãs livres do perigo nômada, encon­
trava, no começo do séc. xn, o contrapeso do reino hún­
garo, tornado senhor da Croácia e da Dalmácia, a fim de
se impor aos pequenos mas irrequietos estados sérvios de
Zeta e de Ráscia.

■ A política de João II Comneno (1118-1143)

Bem mais sólida do que em 1081, Bizâncio está porém


nitidamente entrincheirada nos Balcãs quando o filho de
Aleixo, João II, sobe ao poder em 1118. O imperador
depressa se convence dessa verdade: dedica-se prioritaria­
mente à submissão dos Sérvios, que a Hungria, supor­
tando com impaciência as intervenções bizantinas nos seus
assuntos internos, passa a apoiar contra a hegemonia gregx
Quando João II concede o seu apoio ao rival do rei

252
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos XI e xn

Etiano II, Almós, os Húngaros atravessam as fronteiras e


o imperador tem de conduzir uma rude campanha para
os rechaçar e impor-lhes a paz (1128). Por outro lado, o
perigo normando ameaça reaparecer, sobretudo após 1130,
quando Rogério II da Sicília assume o título de rei. Face
a este risco, João II, que tentara falar grosso aos seus emba­
raçosos aliados venezianos, vê-se até obrigado a alargar-
-lhes os privilégios em 1126 e, depois, a completar o seu
sistema de protecção ocidental aliando-se ao império ger­
mânico e à república de Pisa. Somente então pode reto­
mar no Oriente a política de seu pai, inteiramente diri­
gida contra Antioquia. Para isso, tem primeiro que derrotar,
em 1135, os Danishmendidas de Melitene e conquistar,
de seguida, a Cilicia arménia, apoiada pelo príncipe de
Antioquia, Raymond de Poitiers. Em Agosto de 1137, o
imperador pode finalmente apossar-se da capital do seu
vassalo rebelde, a quem obriga a jurar-lhe fidelidade.
Contudo, Antioquia volta a sublevar-se em 1142, e é no
decurso de uma expedição que tinha provavelmente em
vista a sujeição global do Oriente latino que João II morre
subitamente, no mês de Abril de 1143.

Manuel / e o Ocidente ■

No reinado de seu filho Manuel I (1143-1180), Bizâncio,


cada vez mais implicada nas lutas ocidentais e balcânicas,
vai ter de fazer face, por acréscimo, a um renovado perigo
oriental. É demasiado fácil, nestas condições, condenar
esse brilhante imperador, geralmente acusado de ter ambi­
ções desmedidas, e que mais não fez do que prosseguir a
política dos primeiros Comnenos num contexto interna­
cional infinitamente mais perigoso. A crise da segunda
cruzada, na qual participa o seu aliado e cunhado
Conrado III, cava ainda mais o fosso entre Bizâncio e o
Ocidente, que volta a tomar a desconfiança grega por trai­
ção premeditada: se a aliança alemã subsiste - ainda que
ineficaz, dadas as dificuldades internas do mundo ger­
mânico -, a França de Luís VII torna-se, após 1149, niti­
damente hostil a Bizâncio; algumas vozes (Suger,
S. Bernardo) começam a preconizar uma verdadeira cru­
zada contra os Gregos. Isto satisfaz os desejos de Rogério
da Sicília que, aproveitando-se dos problemas postos a
Manuel pela cruzada, ataca o Império em 1147, apode­
rando-se de Corfu e pilhando Tebas e Corinto. Mas a opi­
nião pública latina mantém-se reticente e Manuel conti­
nua a dispor no Ocidente do apoio veneziano que lhe
permite, em 1149, expulsar os Normandos e retomar Corfu.
Tem, porém, de se acautelar, na mesma altura, face à hos­
tilidade acrescida de Roma e à expansão da diplomacia
normanda. Esta desempenha um papel activo na revolta

253
dos Sérvios e dos Húngaros, que o imperador tem de com­
bater, sempre nesse ano de 1149. E certo que Rogério II
morre em 1154. Liberto de um inimigo, tendo restabele­
cido a sua autoridade nos Balcãs, Manuel julga poder
repor o pé em Itália. Mas engana-se: se os Bizantinos,
desembarcados em Ancona em 1155, se impõem facil­
mente no golfo de Tarento, eles alienam ao mesmo tempo
a amizade de Veneza, que não pode tolerar a sombra de
uma ameaça sobre as suas ligações no Adriático, e de
Frederico I Barba-Ruiva, que sucedera a Conrado III em
1152, para quem a Itália é uma coutada do império oci­
dental. Também o rei da Sicília, Guilherme I, é portador
dos votos de todos os Latinos quando expulsa os Gregos
em 1156. A paz concluída em 1158 marca o fim das empre­
sas bizantinas no Ocidente.

■ Sucessos e reveses bizantinos: Miriocéfalo (1176)

O universalismo romano permanece, no entanto, o


ideal de Manuel que, em 1159, parece triunfar no Oriente,
onde Antioquia reconhecera a sua suserania e o rei de
Jerusalém admitira, por seu lado, a supremacia imperial.
Mas estes sucessos inquietam o renascente poderio turco.
Do mesmo modo, Bizâncio impõe-se nos Balcãs após 1161.
Intervindo de novo nos assuntos húngaros, faz reconhe­
cer o seu favorito, Bela, como herdeiro do trono. Con­
duzido a Constantinopla, o jovem príncipe, vassalo de
Manuel, casa com a filha do imperador, que aproveita o
facto para submeter a Croácia, a Dalmácia e a Bósnia. Mas
o partido derrotado apela a Barba-Ruiva; este não pode­
ria tolerar, a prazo, uma hegemonia bizantina na Europa
central. Pelo menos, o eclipse húngaro permitiu a Manuel
impor a sua autoridade, em 1172, ao príncipe sérvio Stepan
Nemanja. Pela primeira vez, porém, Veneza, aliada de
Nemanja, comporta-se como inimiga de Bizâncio: a Repú­
blica, já furiosa com a intervenção grega em Itália, não
pode aceitar uma dominação bizantina na Dalmácia.
Manuel, consciente desta hostilidade, supôs que resolve­
ria a questão ordenando a prisão, em 1171, de todos os
Venezianos de Constantinopla; só conseguiu, no entanto,
fazer de Veneza uma inimiga irredutível. Ora, contra
Veneza, ele não pode contar nem com as outras potên­
cias marítimas italianas - Génova e Pisa que celebra­
ram tratados com a república do Adriático em 1169-1170,
nem com o papa. Simultaneamente, o sultão de Rum,
Kilij-Arslan II, encorajado por estas dificuldades e até, sem
dúvida, pressionado pelo imperador germânico, desafia a
tutela bizantina, obrigando Manuel a marchar contra
Konya. E no decurso desta campanha que Bizâncio sofre
uma das mais graves derrotas da sua história, em Mirio-

254
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos xi e xn

céfalo, a 17 de Setembro de 1176. Quando Manuel I morre,


em 1180, o Império é mais vasto do que alguma vez fora
desde o começo do séc. xi; mas também nunca, porven­
tura, as suas fronteiras terão sido tão frágeis como nesse
momento em que quase todos os vizinhos se aliam con­
tra ele.

As crises bizantinas no séc. xn ■

Ora, Bizâncio está internamente minada pelas despe­


sas militares, pelo domínio latino sobre o seu comércio e
por uma aristocratização que torna frágil o seu equilíbrio
social. Este mal-estar explica as convulsões que abalam o
poder: usurpação de facto do primo de Manuel, Andrónico
Comneno, acompanhada - aliás, contra a sua vontade -
de um massacre geral dos Latinos (Maio de 1182); assas­
sínio do jovem filho de Manuel, Aleixo II (Novembro de
1183); queda sangrenta do próprio Andrónico (Setembro
de 1185); e usurpação de Isaac II Ângelo, também ele des­
tronado e cegado pelo próprio irmão, Aleixo III, em Abril
de 1195.
Sobre este fundo de desequilíbrio, Bizâncio perde toda
a iniciativa no tabuleiro das relações internacionais. Nos
Balcãs, os Húngaros, depois de terem recuperado a Croácia
e a Dalmácia, aliam-se aos Sérvios de Nemanja, sob cuja
autoridade Zeta e Ráscia se unem. Juntos, Sérvios e Hún­
garos semeiam a ruína até Sófia (1181-1183). Quanto ao
rei da Sicília, Guilherme II, aliado de Veneza desde 1175
e da Germânia desde o casamento da sua herdeira com
o jovem Henrique IV em 1184, retoma a tradição nor-
manda e desembarca na Albânia, de onde marcha sobre
Tessalonica que, ao mesmo tempo, é sitiada pela sua frota.
Em Agosto de 1185, a segunda cidade do Império é tomada
e horrivelmente saqueada. Batidos em Novembro, os
Normandos conservam no entanto as ilhas de Zante e
Cefalónia, primeiras peças desmembradas de um império
que, ao mesmo tempo, se dissolve internamente: de 1185
a 1187, apesar de uma resposta enérgica, os irmãos Asen
conseguem reconstituir uma Bulgária independente entre
os Balcãs e o Danúbio. Quinze anos de guerras esgotan-
tes não bastam para impedir os Eslavos meridionais de se
afastarem cada vez mais de Bizâncio: em 1202, Vúkan da
Sérvia reconhece a supremacia romana e, pouco depois,
em 1204, Kalojan da Bulgária recebe a coroa de um legado
de Inocente III.
É, porém, do Ocidente que chega a pior ameaça. À luz
dos precedentes, o Império não podia senão recusar a
passeem da Terceira Cruzada, em 1189-1190, o que para
Barte-Rüáva era tanto mais incompreensível quanto Isaac II

255
se aliara a Saladino (Salâh al-Din), contra quem a cruzada
era precisamente dirigida. Pela primeira vez, ainda que a
contragosto, um soberano latino esteve em vias de mar­
char sobre Constantinopla, que ficou a dever a sua salva­
ção a um recuo de última hora. Nesta questão, Bizâncio
limitou-se a perder Chipre, conquistada de passagem por
Ricardo Coração de Leão, mas a sua confusão é total
quando Henrique VI, coroado rei da Sicília em 1194, pre­
tende recuperar as conquistas balcânicas de Guilherme II.
Aleixo III, que teve de aceitar a humilhação de um tri­
buto, só sai do imbróglio graças à intervenção de
Inocente III e, principalmente, à morte prematura de
Henrique, em 1197.

3. Os esforços de renovação
no mundo muçulmano

■ Os califados rivais: Fatímidas e Sunitas

Ao mesmo tempo, o mundo muçulmano vive, tenso,


entre uma tendência natural para a dissociação e um ideal
de unidade, fundamentalmente religioso, que cada sobe­
rano importante se esforça por traduzir em termos polí­
ticos. Mas durante o longo reinado do califa fatímida al-
-Mustansir (1036-1094) o Egipto xiita afunda-se nas divisões
religiosas e nas querelas palacianas alimentadas pela acção
anárquica de um exército composto sobretudo de estran­
geiros - turcos, berberes, arménios. Se o califado se man­
tém, é à custa de um abandono progressivo dos poderes
reais nas mãos de influentes vizires, frequentemente estran­
geiros, dos quais o mais notável é o Arménio Badr al-
-Djamâli. Esta fraqueza traduz-se por uma retracção fatí­
mida no Egipto e na Arábia. Repudiado pelo Magrebe
desde os anos 1040, o califado herético é expulso da Síria
pelos Seljúcidas quarenta anos mais tarde.
Em 1092, ano da morte de Malik-Xá, em nome da orto­
doxia sunita sempre representada pelo califa fantoche de
Bagdade, a autoridade do grande sultão é reconhecida
do Tauro às fronteiras da Arábia e da índia. Mas a obra
é frágil: não tendo sido definida nenhuma regra de suces­
são, a inumerável parentela seljúcida reparte entre si o
Império. Um sultão principal subsiste no Iraque e no Irão,
mas a sua autoridade, objecto de incessantes rivalidades,
passa progressivamente para as mãos do califa abássida.
Este último, em 1192, acaba por eliminar os derradeiras

256
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos xi e xii

Seljúcidas fazendo apelo ao soberano do reino araliano


de Quaresma. No Jurassã, um outro Seljúcida, Sanjar, pare­ Ver mapa p. 382 B
cia melhor instalado; tinha mesmo submetido os Cara- e p. 384 B.
cânidas da Transoxiana e os Raznévidas dos confins afe­
gãos. Mas, a partir de 1141, essas novas aquisições eram
submergidas pelos Mongóis Khitai que, no seu avanço,
empurravam à frente o povo turco dos Oghúz. São estes
últimos que, em 1153, esmagam Sanjar nos seus próprios
domínios, que dividem entre si na maior confusão. Entre­ Todavia, somente em 1222 eles eliminam
os últimos Seljúcidas do Irão - a dinastia
tanto, ao mesmo tempo que se constitui na Anatólia o sul- de Kirman, que vegetava no sudoeste do
tanato de Rum, vários emires repartem a região entre o país desde finais do séc. XI.
Tigre e o Cáucaso - alta Djézira, Diyâr Bakr, Arménia.
Quanto à Síria, atinge o cúmulo da divisão: em Damasco
e Alepo, jovens Seljúcidas, filhos de Tutush e sobrinhos
de Malik-Xá, cedem o poder real aos seus tutores milita­
res - os atabaques -, raízes de verdadeiras dinastias (Búridas Atabaque: ver p. 280.
de Damasco, Zênkidas de Alepo...) que se entregam a
guerras extenuantes e são absolutamente incapazes de se
unir quando se anuncia a cruzada.

Para a reunificação do islão: de Zenki a Nür al-Din ■

Foi, no entanto, este meio sírio tão dividido que ser­


viu de base a uma nova e bem mais duradoura unificação
do islão. Indirectamente a cruzada é responsável por isso,
ainda que tenham sido necessários pelo menos trinta anos
para fazer compreender aos Muçulmanos sírios o sentido
do ataque de que eram objecto: até perto de 1130, os
pequenos soberanos não só não pensam em unir-se, como
não hesitam em introduzir os Francos nas suas querelas,
contando neste caso com a passividade dos súbditos. São
os meios mais devotos de Damasco e Alepo, timidamente
apoiados por uma classe mercantil desapossada dos seus
mercados, que começam a preconizar o recurso a uma
contra-cruzada cuja condição primeira é a unidade do
mundo islâmico. Cabe aos Zênkidas de Alepo o mérito de
terem ligado definitivamente estas duas ideias. Com Zenki
(1128-1146), aliás, este programa apresenta-se ainda algo
indefinido: logo a seguir à tomada de Edessa, em 1144, o
soberano é exaltado como «mudjâhid» e começa a falar- Mudjâhid: combatente da fé.
-se da reconquista de Jerusalém como de um ideal comum
a todos os Muçulmanos; mas o próprio Zenki continua a
ser um príncipe local, preocupado sobretudo com os pro­
blemas da Djézira, e que jamais terá sequer imaginado
poder ser o unificador do mundo muçulmano.
Com o filho de Zenki, Núr al-Din (1146-1174), os objec-
tivos são muito mais nítidos: a unidade do islão só será
conseguida com o triunfo da ortodoxia sunita, o que pres­
supõe simultaneamente a eliminação dos Francos e, sobre-

257
tudo, o desaparecimento da heresia xiita do Egipto.
Sustentado por uma propaganda que faz dele a própria
imagem do muçulmano-modelo, mas sobretudo apoiado
O facto de ter efectuado, em 1161, por um povo sírio em plena expansão demográfica, Núr
a peregrinação a Meca, indica claramente al-Din não tem qualquer dificuldade em demonstrar que
que ele pretendia ainda acentuar a sua
imagem de Muçulmano irrepreensível, não se pode contar com os outros soberanos muçulma­
no momento em que se preparava para nos, sempre prontos a colaborar com os Francos. Assim,
finalmente extirpar a heresia xiita.
começa por concretizar a unidade da Síria apoderando-
-se, em 1154, de Damasco - que praticamente não resiste
antes de atacar o Egipto.
Por esta altura, a fraqueza do Egipto era extrema.
O poder passa então pelas mãos de vários vizires que, afas­
tados uns atrás dos outros, buscam apoio tanto junto de
Núr al-Din como junto do rei de Jerusalém, Amaury I,
não obstante este ter desencadeado um ataque franco con­
tra o Egipto em 1163. E, portanto, em princípio para res­
tabelecer o vizir Shâwar que Núr al-Din envia, em Maio
de 1164, uma expedição ao Egipto sob o comando do
general curdo Shirkúh. Mas Shâwar, que se tinha com­
prometido a pagar tributo e mesmo a ceder o nordeste
egípcio, não respeita a palavra dada e chega ao ponto de
apelar a Amaury para se desembaraçar de Shirkúh. Os Sírios
têm de evacuar o Egipto, tal como em 1167, data na qual
outra expedição franca impõe tributo a Shâwar e deixa
atrás de si uma guarnição no Cairo. Quando, em 1168,
na sequência de um novo ataque de Amaury ao Egipto,
Shâwar se vê forçado a dirigir um novo apelo a Shirkúh,
povo, notáveis e califa deixam cair o vizir que é executado
em Janeiro de 1169. A sucessão cabe ao próprio Shirkúh
e, após a morte deste no mês de Março, ao seu sobrinho
e lugar-tenente Salâh al-Din ibn Ayyúb. Este último - depois
Khutba: ver p. 201. de ter feito ler no Cairo a «khutba» abássida, alguns dias
antes do falecimento do último califa fatímida (Setembro
de 1171) - desenvolve uma política pessoal, ao mesmo
tempo que o califa de Bagdade concede a Núr al-Din o
poder sobre a Síria e o Egipto. Até à morte do grande sul­
tão, em Maio de 1174, o Ayyúbida abeirar-se-á, em diver­
sas ocasiões, da ruptura com o seu senhor.

■ A obra de Saladino

Salâh al-Din reconhece, no entanto, a autoridade do


Salâh al-Din: mais conhecido jovem filho de Núr al-Din, al-Malik al-Sâlih Ismâ'il; mas
no Ocidente sob a forma de aproveitando-se dos motins que rebentam na Síria e na
Saladino.
Djézira, impõe-se a Damasco e faz-se reconhecer como
atabaque do jovem sultão. Em 1175, o califa de Bagdade
confere-lhe - como anteriormente a Núr al-Din - ajuris-
dição sobre a Síria e o Egipto, acrescentando, porém, a
Palestina (Sahil). Herdeiro de Núr al-Din, o novo sultão

258
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos XI e XII

deverá levar a sua missão até ao fim, expulsando defini­


tivamente os Francos da Terra Santa. Mas o seu primeiro
objectivo é refazer a unidade: em 1183 tinha conquistado
Alepo e uma parte da Djézira. Depois responde aos que
o acusam de apenas combater os Muçulmanos, atacando
enfim os Latinos. Esmagados, em 1187, na batalha de
Hattin, estes são obrigados a abandonar Jerusalém e quase
todos os domínios, salvo alguns portos isolados uns dos
outros. A terceira cruzada retoma Acre, Ascalon e Jaffa e
obtém de Saladino o livre acesso a Jerusalém, o que não
é grave em si mas traduz o cansaço e a má vontade cres­
centes dos vassalos do Ayyúbida. Ele não só não consegue
o auxílio dos príncipes muçulmanos independentes - por
exemplo, o sultão de Rum e os Almóadas -, como acon­
tece que os seus emires e a própria família pensam mais
nos negócios pessoais do que na unidade islâmica. Com
a morte de Saladino, em Março de 1193, a fragilidade da
sua obra manifesta-se claramente: Egipto, Síria e Djézira
dissolvem-se imediatamente entre as mãos da sua paren­
tela. O Egipto, onde não tardam a dominar alguns gran­
des sultões como al-Malik al-Kâmil, ainda permanece rela­
tivamente sólido, mas na Síria não se contam menos do
que sete principados rivais, os mais duradouros dos quais
são os de Alepo, de Damasco e de Hamâ.
No começo do séc. xm, a nova dispersão das forças
muçulmanas proporciona grandes oportunidades de
sucesso a um ataque latino. Mas a salvaguarda do islão
provém talvez de Bizâncio que, por essa mesma altura,
mergulhava num caos ainda mais profundo. Isto é tanto
mais admissível quanto alguns contemporâneos atribuí­
ram o desvio da cruzada para Constantinopla a um ver­
dadeiro conluio veneziano-egípcio.

Uma reunificação falhada no Ocidente ■

No Magrebe, os Almorávidas, decerto por terem ape­


nas proposto temas reunificadores demasiado tradiciona­
listas, acabam por ser derrubados em 1125. E precisamente
o momento em que um profeta berbere, Ibn Túmart, no
regresso de uma viagem ao Oriente, começa a pregar, no
Magrebe al-’Aqsa (Marrocos), uma doutrina que, sem ser
propriamente herética, acaba por introduzir o tema, algo
perdido de vista, da unicidade divina (nisso reside o almoa-
dismo) ao serviço de um novo espírito conquistador.
Cuidadosamente organizado por um conselho secreto com
sede em Tinmâl, que expede para vários destinos propa­
gandistas encarregados de divulgar a doutrina (não se
pode, erâdeatemente, deixar de evocar aqui o precedente
í fatímida), o empreendimento culmina com o discípulo

259
Até ao séc. xvi, Merínidas e Haféddas, de Ibn Túmart, 'Abd al-Mu’mín (1130-1163), que chega
que nesse aspecto não esqueceram as suas
origens almóadas, ainda que tenham a assumir o título de califa. Mas o almoadismo está longe
rejeitado os seus princípios religiosos, não de obter a unanimidade no Magrebe, onde nunca deixa
deixarão de tentar, cada qual por conta de ser considerado uma verdadeira heresia e desencadeia
própria, refazer uma unidade magrebina
cada vez mais improvável dada a permanentes rebeliões, tal como, de resto, na Andaluzia,
afirmação, sobretudo na Tunísia e em onde, após alguns sucessos contra os cristãos, os Almóadas
Marrocos, de estruturas locais que então já
não se hesita em chamar nacionais.
são esmagados, em 1212, em Navas de Tolosa. Córdova é
perdida em 1236. Dá-se então, progressivamente, a dis­
solução do novo Império. Enquanto os Násridas de Granada
são os únicos a manter um poder muçulmano na penín­
sula Ibérica, o Magrebe almóada divide-se em três Estados
saídos das suas próprias estruturas - Merínidas em Mar­
rocos, Abdaluádidas em Tlemcen e Hafécidas na Ifríqiya.

Para aprofundar este capítulo

Quanto à evolução geral do mundo bizantino no


séc. xni: ter como referência os manuais já citados (BRE-
HIER, OSTROGORSKY, DUCELLIER e col.), e as obras, velhas
mas indispensáveis, de F. CHALANDON, Essai sur le règne
dAlexis I Comnène, Paris, 1900; e Les Comnènes, Jean Comnène
et Manuel Comnène, Paris, 1912, uma e outra reeditadas,
Nova Iorque, Burt Franklin, 1958. Mas o conjunto do
período é reinterpretado por M. J. ANGOLD, Byzantine
Empire, 1025-1204, A Political History, Oxford, 1985.

Sobre a confrontação política de Bizâncio com o mundo


latino: registe-se o ensaio de R. J. Lilie, Handel und Politik
zwischen dem Byzantinischen Reich und den Italienischen
Kommunen Venedig, Pisa und Genua in der Epoche der Komnenen
und der Angeloi (1081-1204), Amesterdão, 1983, para ligar
o político e o económico; mas dever-se-á também ter em
conta os trabalhos de P. LAMMA, Comneni e Staufer, Ricerche
sui rapporti fra Bisanzio e VOccidente nel secolo XII, 2 vols.,
Roma, 1955; Fr. THIRIET, La Romanie vénitienne au Moyen
Age, Paris, 1959; e M. BALARD, La Romanie génoise (XIP
-début du XVe s.), 2 vols., Paris-Roma, 1978. As etapas finais
desta confrontação são notavelmente analisadas por Ch.
BRAND, Byzantium Confronts the West, 1180-1204, Cambridge,
Mass., 1968. Sobre as relações com Veneza, S. BORSARI,
Venezia e Bisando nel secolo XI, reed. in Storia delia Civiltà
veneziana, t. 1, Florença, 1979. Sobre a implantação nor-
manda, A. DUCELLIER, LaFaçade maritime de lAlbanie, citado,
e LAlbanie entre Byzance et Venise, Londres, Variorum, 1987.

Quanto à história do mundo muçulmano na mesma


época: além da obra citada acima de C. CAHEN, devei>

260
Um eclipse parcial do Oriente nos séculos xi e xn

utilizar-se, do mesmo, La Syrie du Nord à Vépoque des croi-


sades, Paris, 1940; e, de N. ELISSEEFF, Nür al-Din, un grand
prince syrien à Vépoque des croisades, 3 vols., Damasco, 1967.
Ver também, de C. CAHEN, o artigo «Ayyubides», Encyclopédie
de rislam, 2.~ ed. Sobre os Almóadas: além do artigo da
Encyclopédie de VIslam, ver A. HuiCI-MlRANDA, Historia poli-
tica dei império almohade, 2 vols., Tetuão, 1956-1959; ver
também D. URVOY, «Une étude sociologique des mouve-
ments religieux dans 1’Espagne musulmane de la chute
du califat au milieu du XIIIe siècle», Mélanges de la Casa
de Velasquez, VIII, 1972.

261
15
As mudanças económicas
e sociais do séc. xn

1. A terra: poderosos e fracos

■ Em Bizâncio: um combate de retaguarda


a favor dos fracos

No séc. xn, o camponês bizantino continua juridica­


mente livre: circula à sua vontade, lega e vende a terra a
seu gosto, goza das mesmas garantias jurídicas de qual­
quer outro súbdito dos basileus. Mantém mesmo, em prin­
cípio, um estatuto privilegiado, porque a legislação mace-
dónia, que o protegia das iniciativas dos ricos, nunca foi
abolida pelos Comnenos. No entanto, este camponês é
cada vez mais raro: epidemias, guerras, convulsões inter­
nas, pressão dos grandes proprietários resultam ao mesmo
tempo em êxodo rural e baixa demográfica que não são
compensados pelos reforços da Ásia Menor ocupada.
O esforço dos dunatoi para atraírem os camponeses aos
seus domínios é cada vez mais irresistível. Instalado na
terra do rico, o camponês, que permanece livre de jure,
torna-se na maior parte dos casos num pareço subjugado
de facto por todo o peso social e económico dos pode­
rosos.

A protecção dos camponeses. Sempre que tem condi­


ções para isso, o poder reage. E que, em virtude das isen­
ções fiscais de que goza um grande número de podero­
sos, cada camponês que cai sob a sua alçada é também
um contribuinte a menos. Assim, os primeiros Comnenos
entendem por bem limitar o movimento de instalação de
pareças nos grandes domínios: Manuel, por exemplo, recusa
aos monges de Patmos o direito de estabelecerem nas suas
terras um número ilimitado de camponeses; em 1175,
obriga outros monges a restituírem os camponeses exce-
dentários que tinham atraído, gesto renovado em 1186
por Isaac II Ângelo. Instalar camponeses no respectivo
domínio não é, portanto, um direito: é um favor que os
soberanos concedem com parcimónia, somente quando
se trata de homens «livres e sem obrigações», isto é, des­
providos de terra taxada pelo fisco, de modo a que o
Tesouro não seja prejudicado. E pois justo dizer que, longe

262
As mudanças económicas e sociais do séc. xii

de favorecerem a sujeição do campesinato, os Comnenos


mantiveram-se fiéis à política social dos seus antecessores.

A luta contra a grande propriedade. A luta parece ter


sido sobretudo conduzida contra a grande propriedade
eclesiástica: em 1158, Manuel Comneno proíbe aos mos­
teiros «aumentar as propriedades que detêm hoje em dia,
em terras ou em camponeses vinculados», sob pena de
confiscação. Mas o poder não se mostrava, em princípio,
mais disponível relativamente aos poderosos laicos... No
entanto, o usurpador Aleixo Comneno só podia consoli­
dar a sua autoridade favorecendo o partido aristocrático
que o tinha levado ao trono. Este o motivo por que Zonaras
o acusa de ter dado aos seus adeptos terras «às carradas».
Por outro lado, a política familiar da dinastia levou-o a
distribuir domínios aos príncipes e princesas da linhagem.
Mas Zonaras tem o cuidado de fazer notar que Aleixo não
se mostrou igualmente generoso para com «outros nobres».
De resto, mesmo tratando-se dos seus apoiantes, repug­
nava aos soberanos a doação de terras em propriedade
plena, tendo eles, sobretudo, favorecido o desenvolvimento
de uma instituição de compromisso - a pronoia.

A pronoia e a charistiké ■

A pronoia é a cessão a uma pessoa privada de uma parte


do domínio público. A princípio, a pronoia, que se pode
traduzir por «tutela», implica apenas a obrigação, para o
titular, de manter a terra em estado de produtividade,
mediante o gozo dos seus rendimentos. Além disso, a pro­
noia ê um simples usufruto, já que a terra continua a ser
propriedade do Estado, podendo ser retomada por ele
em qualquer momento. Trata-se, portanto, de um sistema
muito vantajoso para o Estado: permite satisfazer as bases
do regime sem, com isso, comprometer definitivamente
o futuro. Acresce que a pronoia serve para a defesa do
Império: com os Comnenos, adquiriu-se o hábito de exi­
gir do pronoiário, como contrapartida, uma contribuição
em homens e em equipamento militar. Enfim, seria erró­
neo crer que a pronoia era sempre enorme: podia sê-lo,
como a que Adriano Comneno, irmão de Aleixo, fez que
lhe atribuíssem em 1081 na península de Cassandreia;
mas, em geral, tratava-se de uma cessão modesta, por vezes
uma aldeia, outras vezes simplesmente algumas terras.
Nem por isso o perigo era menor para o futuro: quando
o Estado se desorganiza, no final do séc. xii, cresce o risco
- particularmente nas províncias longínquas e mal con­
troladas, como a Grécia e o Epiro - de se ver os nobres
locais acumularem nas suas mãos as funções oficiais, as
suas terras patrimoniais e, confundidas com estas últimas,

263
à sombra da desordem, antigas pronoiai para cuja recu­
peração o governo já não dispunha de meios.
As autoridades laicas e eclesiásticas tinham, aliás,
encontrado outro meio económico de manifestar a sua
generosidade: a partir do séc. XI, como o testemunha
um vingativo opúsculo de João de Antioquia, adquirira-
se o hábito de entregar nas mãos de leigos os bens de
certos mosteiros arruinados ou mal administrados, com
o encargo para essas entidades de os restaurar, benefi­
ciando, em contrapartida, temporariamente, da maior
parte dos seus rendimentos. A Igreja, pela voz dos seus
patriarcas, não deixou de protestar contra esta inovação,
denominada charistiké, mas em vão, como o provam os
Typikon: ver p. 128. numerosos typika do séc. xn que têm o cuidado de a
interditar antecipadamente. Era um meio suplementar
de luta contra a grande propriedade religiosa, mas tam­
bém com ele se corria o risco de ver os charistikarios dei­
tarem definitivamente a mão aos bens que lhes eram
confiados, o que não deixaram de fazer quando o Estado
se enfraqueceu.

■ Progressos da iqtâ' na Síria e no Iraque

Em terras do islão desenha-se uma evolução muito


semelhante pela mesma época. Na Síria, desde o início
do séc. XI, tinha-se desenvolvido uma fase de depressão,
com uma nítida inflexão demográfica que passou pelo
abandono de certas cidades: os preços agrícolas, muito
baixos, demonstram, aliás, a fraca procura de géneros ali­
mentares. As cruzadas acentuaram essa tendência: as des­
truições provocadas pelos exércitos latinos aceleraram
ainda o êxodo rural. Ao mesmo tempo que os campone­
Iqtâ’: ver definição p. 180. ses, também os titulares de iqtâ’ abandonam os campos:
os primeiros não podiam encontrar protecção junto dos
segundos que, dispondo apenas de um gozo temporário
dos seus domínios, não têm qualquer interesse em defendê-
-los. Não é pois por acaso que os grandes sultões do séc. xn,
e sobretudo Núr al-Din e Saladino, adoptaram resoluta­
mente o sistema da iqtâ" hereditária. Desde então, tendo
a garantia de poder transmitir o domínio aos filhos, o
Muqta’: titular de um iqtâ*. muqta" preocupa-se seriamente com a sua exploração e
protege os camponeses que a trabalham. A partir da região
de Damasco, um movimento de aproveitamento dos bal­
dios alarga-se, na segunda metade do século, ao conjunto
do emirado zênkida, depois ayyúbida. A curva demográ­
fica inverte-se, como bem o sentiram os autores do tempo.
E numa Síria relativamente sobrepovoada, onde a falta de
géneros faz subir os preços, que nasce e se desenvolve o
movimento da contra-cruzada.

264
As mudanças económicas e sociais do séc. XII

Positiva sob muitos aspectos, a prática da iqtâ’ heredi­


tária deu assim origem, na região sírio-mesopotâmica, a
uma aristocracia fundiária estável e implicou, por conse­
quência, uma sujeição acrescida das classes rurais.

No Egipto e no Irão ■

Dada a sua grande diversidade, o mundo muçulmano


não conheceu, no entanto, uniformemente esta evolução.
A leste, as dinastias iranianas e turcas, como os Samânidas
e os Raznévidas, pagaram sempre um soldo às suas tro­
pas; o sistema da iqtâ9 militar nunca aí se desenvolveu.
Quanto ao Egipto fatímida, teve os seus oficiais rendeiros
que receberam, sob o nome de iqtâ’, localidades com o
estatuto de terras de kharâdj', mas, para além de essas con­ Kharâdj: verp. 177.
cessões se manterem sempre revogáveis, o controlo do
Estado nunca deixou de se exercer sobre elas, sobretudo
em matéria fiscal. A este respeito, a conquista ayyúbida
do Egipto trouxe grandes mudanças: não só o país se viu
novamente sobrexplorado em proveito da Síria deficitá­
ria, como Saladino implantou aí o sistema da iqtâ’ here­
ditária, o que reduziu fortemente as liberdades do cam­
ponês. Quando o Egipto tinha conhecido, até ao final do
séc. xii, uma situação demográfica muito estável, na época
ayyúbida a curva inflectiu-se, mas sem abandono dos cam­
pos. Tal como na Síria, uma certa sujeição é compensada
pela protecção dos muqta’ hereditários, ao passo que o
Estado controla severamente os impostos e fixa o preço dos
géneros, de modo que a segurança pessoal e económica
dos camponeses melhora sensivelmente. Entretanto, a pros­
peridade e a relativa liberdade que reinavam no séc. xn
nos campos egípcios explicam em parte o pouco entusi­
asmo com que aí foi acolhida a ideia de contra-cruzada; e
permitem também compreender melhor a dificuldade com
que o poder ayyúbida aí se instalou e se manteve.

O sultanato de Rúm ■

O sultanato seljúcida de Rúm é um caso particular.


Nômadas, os Turcos ignoravam a própria ideia de proprie­
dade pessoal. Todavia, no Iraque e na Djézira a implanta­
ção do sistema muçulmano de propriedade era tão forte
que eles não puderam deixar de adoptar os seus princípios.
Na Ásia Menor, pelo contrário, o sistema bizantino tinha-
se diluído completamente aquando da invasão. Senhores
de um país cuja classe possidente tinha em geral fugido, os
Seljúcidas, tal como os Árabes do séc. Vil, importaram para
aí a ideia de que o conjunto das terras era sua propriedade
colectiva. O desaparecimento dos grandes proprietários foi

265
considerado pelos camponeses como uma libertação, o que
é sublinhado, por exemplo, pelos cronistas arménios. A inva­
são turca traduziu-se, nos campos, por uma reconquista da
liberdade: não somente os camponeses que ficaram nas suas
terras aderiram ao novo regime desde a época de Suleiman
ibn Kutlumush, mas também muitos cristãos, no decurso
do séc. xii, atraídos por estas condições mais liberais, tro­
caram o império grego pelo sultanato.
Entretanto, a propriedade privada depressa reapare­
Waqf: ver definição p. 177. ceu na Anatólia: a menção de doações em waqfs por pes­
soas privadas no começo do séc. xill prova que a ideia
estava já então bem implantada. Por outro lado, os
Seljúcidas não podiam ignorar por muito tempo o sistema
da iqtâ\ conhecido de todos os muçulmanos vizinhos.
Também ele se expande rapidamente, mas sem grande
perigo para a classe camponesa: senhor da maioria das
terras e em conformidade com o antigo uso islâmico, o
sultão só moderadamente reparte por essa forma os domí­
nios públicos, fazendo-o por tempo limitado e sem que o
titular tenha o direito de modificar o estatuto pessoal e
fiscal dos camponeses. Globalmente, os camponeses da
Anatólia, no final do séc. xil, gozavam sem dúvida de uma
liberdade maior que os dos outros países muçulmanos.
Nas vésperas da quarta cruzada, nem os campos bizan­
tinos nem os campos muçulmanos conhecem a servidão:
continuam povoados por homens livres. Mas ameaças cada
vez mais precisas pesam sobre estes últimos: aqui e ali,
sempre que o poder enfraquece logo o grande proprie­
tário se aproveita. A coisa é tanto mais grave quanto o
Oriente nunca conheceu a canga de um sistema verda­
deiramente feudal. O desaparecimento da autoridade cen­
tral dá, assim, lugar não a essa pirâmide social que, no
Ocidente, pelo jogo dos direitos e dos deveres recíprocos,
acaba sempre por dar ao homem algumas garantias ele­
mentares, mas a um pulular de pequenas autoridades sim­
plesmente justapostas e a quem nada, por conseguinte,
pode limitar a tirania arbitrária sobre o pobre ou o fraco.

2. Indústria e comércio em Bizâncio:


o crescente papel dos estrangeiros

■ O estrangulamento das actívidades urbanas

A economia urbana, artesanal e comercial, torna-se


cada vez mais tributária do estrangeiro. Com a Anatólia,

266
As mudanças económicas e sociais do séc. XII

Bizâncio perde, no final do séc. xi, os principais recursos


em lã e a sua indústria têxtil parece ter sofrido muito com
isso, num momento em que os tecidos italianos procuram
novos mercados no Oriente. Depois, em 1147-1148, o
saque de Corinto e de Tebas pelos Normandos e a trans­
ferência dos seus trabalhadores para a Sicília constituem
um golpe mortal para a indústria bizantina da seda, ao
mesmo tempo que lhe criam um concorrente cheio de
dinamismo: a partir do séc. xn, os soberanos germânicos
fazem fabricar as suas vestes de luxo na Sicília e não já
em Constantinopla. E certo que o artesanato bizantino
continua vivo: metalurgia, ourivesaria, cerâmica conti­
nuam a ser apreciadas no estrangeiro, mas a acumulação
de enormes fortunas entre as mãos dos proprietários da
terra começa a fazer perder à indústria a sua autonomia
tradicional. Extraindo os seus recursos da terra mas resi­
dindo na cidade, os ricos procuram controlar os seus
ramos mais rentáveis, cortando todo o campo de acção
às classes urbanas.
O que sobressai, porém, nessas cidades ainda aparen­
temente repletas de actividades, é um bloqueamento social
que, mais do que numa oposição de classes, assenta na
coexistência, inicialmente pacífica, mas cada vez mais con-
flitual, de comunidades de origens diversas - geográficas,
étnicas ou culturais.
Um bom exemplo é o destino dos judeus em Bizâncio:
como, aliás, em todo o lado, a evolução do seu micro-
-cosmo é um bom indicador dos movimentos que afectam
a sociedade que os envolve. Estes judeus ditos Romaniotas
que, desde Justiniano, sofriam as mesmas discriminações
que todos os outros não-cristãos e deviam, além disso, ler
as Escrituras e executar todos os seus ritos em língua grega,
estavam, no séc. xi, muito bem integrados no meio bizan­
tino que nunca os tinha perseguido, à custa de uma vida
espiritual sonolenta, sem contacto real com os textos ori­
ginais. Os Romaniotas representam um exemplo extremo
de uma importante corrente que, no mundo judaico, tende
a fazer prevalecer o comentário rabínico sobre as próprias
Escrituras. Em Bizâncio, onde os judeus possuem os seus
tribunais rituais, a aculturação é já tão profunda que se
utiliza correntemente o direito romano, mesmo nas cau­
sas que apenas envolvem cidadãos judeus; e no séc. xill
começar-se-á a ver aparecer, entre os Romaniotas, patró-
nimos helenizados.
Ora, o nascimento na viragem do séc. x para o séc. xi
de uma nova corrente - a dos Caraítas - que, primeiro no
Iraque e depois no Egipto, preconiza o regresso à inter­
pretação directa dos textos, tinha desencadeado aí con-
; fronros imercomunitários que, após 1050, se saldaram por

267
uma vaga de emigração judaica de que um dos principais
destinos foi Bizâncio. Aqui, como noutros lados, a coexis­
tência revelou-se difícil, ao ponto de Aleixo Comneno ter
sido, ao que parece, obrigado a mandar construir, em
Constantinopla, um muro entre o bairro dos Romaniotas,
maioritários, e o que os recém-chegados tinham ocupado.
Esta é, de resto, a primeira ocasião em que, na capital
bizantina, se ouve falar de bairros especificamente reser­
vados aos judeus, na margem do Corno de Ouro, onde
em breve se irão instalar os mercadores venezianos. Após
1204, a comunidade judaica de Bizâncio conhecerá uma
nova reclassificação, precisamente com a chegada dos
judeus venezianos fortes no seu estatuto de cidadãos e
determinados a não se confundirem com os pobres
Romaniotas, artesãos da seda, peleiros ou tintureiros que
raramente acedem ao comércio e nunca traficam em
dinheiro.
Assim se desenha uma sociedade urbana, onde cada
um tende a instalar-se nos seus privilégios e especificida­
des, rompendo desse modo com a bela unanimidade jurí­
dica que até então caracterizara o mundo bizantino. Mas
é evidente, no entanto, que existem cumplicidades de inte­
resses entre comunidades: a mais nítida liga os ricos pro­
dutores gregos aos seus clientes italianos.

■ A entrada em força dos Venezianos

De facto, os grandes proprietários tinham há muito


relações com os estrangeiros, sobretudo com os Venezianos,
e particularmente na Trácia, celeiro de trigo de Bizâncio,
onde os poderosos tinham portos privados (skalai) pelos
quais exportavam o respectivo cereal. Entre 1073 e 1078,
o ministro Nicefórice tentou reagir: estabeleceu um mono­
pólio dos cereais e confiscou os portos privados. Mas,
perante a coligação dos poderosos e dos estrangeiros, esta
política depressa foi abandonada: em 1078 o monopólio
foi suprimido; depois, graças à sua intervenção em 1081
contra os Normandos, os Venezianos acabaram por obter
- sem dúvida em 1084, mais do que em 1082 - uma liber­
dade quase total do comércio. Não só Veneza beneficiava
da concessão de um bairro em Constantinopla, mas tam­
bém os seus mercadores ficavam isentos do kommerkion e
usufruíam do direito de comerciar em quase todo o
Império.
Seria errado crer que, na altura, Bizâncio tenha sofrido
muito com as concessões feitas a Veneza. Esta só dispu­
nha então de uma economia muito primitiva que a impos­
sibilitava de explorar a fundo as suas vantagens no Oriente;
além disso, o Império continuava a vedar-lhe o acesso a

268
As mudanças económicas e sociais do séc. xn

certas regiões como o mar Negro, Creta, Chipre, ou seja,


ao comércio dos produtos do Norte, dos escravos e dos
vinhos. Por outro lado, as confiscações operadas à Igreja
em 1081 e, depois, a desvalorização em dois terços do
nomisma em 1090 permitiram sem dúvida ao Estado com­
pensar largamente as suas perdas em receitas aduaneiras.
Mas a lagarta roía o fruto: os produtores mostram-se cres­
centemente inclinados a vender sempre mais aos merca­
dores estrangeiros que, fiscalmente beneficiados relativa­
mente aos comerciantes gregos, lhes podem oferecer
melhores preços. Enquanto a classe mercantil indígena
periclita, a penúria e a alta dos preços instalam-se no mer­
cado interno. Os estrangeiros tornam-se cada vez mais exi­
gentes e o Imperador tenta - tarde de mais - limitar as
suas actividades: depois de ter recusado a Veneza a reno­
vação do seu privilégio, João II vê-se forçado a ceder às
ameaças e, em 1126, resolve mesmo ampliar esse privilé­
gio abrindo à República as ilhas de Creta e Chipre e,
sobretudo, isentando do kommerkion todo o Grego que Kommerkion: ver p. 186.
vendesse os seus produtos aos Venezianos, o que incitou,
evidentemente, os súbditos do Império a venderem de
preferência aos estrangeiros. Desde logo, muda a opinião
das massas populacionais: inconscientes do perigo a prin­
cípio, começam a acusar os Latinos de todos os males.

O jogo imperial face aos Italianos ■

Uma solução parece tentadora: dado que Veneza tri­


unfa insolentemente, importa suscitar-lhe rivais. Já em
1111, Aleixo I tinha, nesse sentido, concedido um privi­
légio a Pisa, que obteve um bairro e uma limitação dos
direitos alfandegários a 4 por cento. Depois, em 1155, van­
tagens semelhantes tinham sido reconhecidas a Génova;
e, após um desaguisado passageiro, as duas cidades con­
seguiam em 1170 a renovação dos privilégios. Tratava-se,
como é bom de ver, de opor Pisa e Génova a Veneza,
tendo no entanto a cautela de não lhes atribuir benefí­
cios tão extensos. Dividindo para reinar, o basileus ter-se-
-á regozijado ao ver, em 1162 e 1170, Pisanos e Venezianos
pilharem o bairro genovês.

O golpe de força de 1171. Com Génova e Pisa enfra­


quecidas, o Império corria o risco de se tornar numa presa
dos Venezianos. Para evitar este perigo, Manuel decidiu-
-se a um golpe de força: em 2 de Março de 1171, orde­
nou a prisão de todos os Venezianos e a confiscação da
totalidade dos seus bens. Perda enorme para Veneza: em
1180, os prejuízos eram estimados em cerca de 400 000
hiperperos, ao passo que Génova, em 1174, calculava-os
apenas em 43 000. Constituindo Constantinopla para os

269
Venezianos a placa giratória para o resto do Império e
para o mundo muçulmano, sobretudo o Egipto, a repú­
blica do Adriático viu-se assim privada da maior parte dos
capitais e bens que, entrepostos na capital bizantina, deve­
riam servir para alimentar o seu comércio oriental. Vê-se,
além disso, obrigada a reconverter esse comércio para o
Levante latino e islâmico, sector até então secundário para
ela, e no qual, desde a primeira cruzada, estava em posi­
ção de fraqueza relativamente às suas rivais, Pisa e Génova.
Ao mesmo tempo, os mercadores venezianos procuram
uma compensação no Magrebe, enquanto a República
conclui, em 1175, com Guilherme da Sicília, um tratado
que lhe abre as portas a uma expansão na Itália meri­
dional.
Veneza, que terá feito as pazes com Manuel pouco
antes da morte deste, mantém-se ausente do Império pelo
menos até 1183, sendo aqui naturalmente substituída pelos
Pisanos e os Genoveses. Eustato de Tessalonica estima a
colónia latina de Constantinopla em 60 000 pessoas. E ela
quem, com os mercenários ocidentais, forma a base essen­
cial de apoio da regência de Maria de Antioquia, entre
1180 e 1182. A partir de então, defrontam-se dois parti­
dos: o dos governamentais, sustentado pelos ricos e os
estrangeiros («a nossa facção», como escreve Guilherme
de Tiro) e o dos tradicionalistas, dirigido por alguns nobres
agrupados em torno de Maria, filha de Manuel, mas sobre­
tudo apoiado pelo povo e pela Igreja. Como sempre no
Oriente, a luta religiosa e nacional tinge-se de antago­
nismo social. O segundo partido, em 1182, acaba por levar
ao poder um primo de Manuel, Andrónico Comneno, e
obriga-o, em Abril, a aceitar o terrível massacre dos Latinos
de Constantinopla. Mas o Império já não pode passar sem
os Ocidentais. Andrónico vê-se forçado a retomar a polí­
tica de equilíbrio de Manuel: reintroduz no Império os
mercadores venezianos, os únicos que, expulsos em 1171,
não tinham sofrido o drama de 1182. Até 1204, os sobe­
ranos apoiam-sc numa ou noutra das cidades mercantis:
Andrónico e Isaac II favorecem sobretudo Veneza, situa­
ção de que Génova e Pisa se xingam soltando os seus pira­
tas na bacia egeia; a partir de 1192, nos últimos anos de
Isaac II e sobretudo no reinado de Aleixo III, a vantagem
reverte em favor de Génova e Pisa, para grande furor de
Veneza que obtém, no entanto, em 1198, uma importante
extensão dos seus privilégios.

■ Para a quarta cruzada

Por volta de 1204, os Italianos detêm sob tutela a eco­


nomia imperial. Pisa e Génova não representam ainda

270
As mudanças económicas e sociais do séc. xn

senão um perigo moderado, porque concentram as suas


actividades em Constantinopla e nalgumas feitorias da
Grécia (Almiro, Tessalonica, Tebas), continuam a pagar
os 4 por cento de direitos aduaneiros e permanecem sujei­
tas às jurisdições imperiais ordinárias. Veneza, essa, está
em todo o lado: Epiro, Macedónia marítima e interior,
Grécia, Tessália, Trácia, Ásia Menor, ilhas jónicas e egeias.
Só o mar Negro lhe escapa. Por outro lado, ela explora
racionalmente o seu vasto domínio: três vezes por ano,
comboios de galés com escolta armada, as mudae, deixam
Veneza em direcção à România; no decurso da rota, navios
desarmados saem do comboio e vão traficar localmente
até à passagem das galés no regresso. Enfim, a partir de
1198, os processos envolvendo Venezianos são submeti­
dos à alta jurisdição do Juiz do Vélos e do Logoteto do Logoteto do Dromo:
ver definição p. 136.
Dromo, o que os subtrai ao arbitrário dos tribunais subal­
ternos.
No começo do séc. xin, se os Latinos tinham conse­
guido assegurar o domínio económico sobre o Império
grego também a pouco e pouco concitam contra si o ódio
do povo esfomeado e dos mercadores gregos, reduzidos
ao pequeno comércio local. Para consolidar o seu domí­
nio, foi necessário disporem de garantias contra o furor
espontâneo do povo e os golpes de força do poder. Daí
a pretenderem controlar e, depois, a confiscar este último
não ia senão um passo.

3. O mundo muçulmano:
uma dispersão crescente

As perturbações no Iraque, a pirataria no golfo Pérsico,


os esforços fatímidas para desviar o comércio do Oriente
para o mar Vermelho e o Egipto tinham, ao longo de um
século, diminuído o interesse económico do Levante sírio-
-palestiniano e acentuado o do delta egípcio, ao mesmo
tempo que a invasão seljúcida desorganizava temporaria­
mente a economia da Ásia Menor.

Indústria e artesanato ■

A indústria destas regiões, no séc. xn, deixa uma


impressão de estagnação, senão mesmo de regressão.
Na Síria muçulmana, salvo talvez os tecidos de algodão
de Alepo e as sedas de Damasco, muito apreciadas pelos

271
Francos, nada testemunha então um especial desenvol­
vimento. No Egipto, a indústria têxtil, vítima das guer­
ras contra os Latinos e os Sírios, periclita no final do
séc. xii, tanto no delta como no Fayyüm. Quanto à
Anatólia, já em depressão muito antes da invasão turca,
poder-se-á pensar que conservou as suas fábricas de cerâ­
mica e que a indústria de tapetes, sobretudo em Siva,
se desenvolveu aí desde antes do séc. xm... Mas isso não
passa de uma hipótese. De facto, a única região que se
mantém próspera é a costa levantina, dominada pelos
Francos. E certo que os cruzados não criaram aí nada
de novo, mas desenvolveram as velhas indústrias têxteis
de Antioquia, Trípoli e Tiro, assim como a olaria fina,
a vidraria e a ourivesaria, produtos que os mercadores
latinos podiam então ir carregar livremente nos portos
sírios.

■ Anatólia e Levante: uma certa sonolência

Na Anatólia, onde começam a ser construídos cara­


vançarais desde os finais do séc. xn, o tráfico terrestre
parece ter sido imediatamente retomado, mas os textos
insistem nos obstáculos, naturais e humanos, com que
deparava. A Síria muçulmana mantém as suas relações
caravaneiras com o Iraque e o Irão, mas é cada vez mais
levada a abastecer-se no Egipto, atravessando o reino de
Jerusalém, cujas alfândegas encarecem as mercadorias.
Até Núr al-Dín, o comércio sírio está em estagnação, e o
seu florescimento corresponde, no termo do século, à
decadência dos Estados cruzados e à reunificação sírio-
-egípcia por Saladino: não é por acaso que as relações de
Veneza com Alepo se regularizam no princípio do séc. xm.
O Egipto, pelo contrário, é então o ponto de confluên­
cia do grande comércio oriental: «mercado público dos
dois mundos», como lhe chama Guilherme de Tiro,
Alexandria recebe pelo mar Vermelho, provenientes da
índia, da Arábia e da Pérsia, os perfumes, as pedrarias e
sobretudo as especiarias que Benjamin de Tudèle e o
Alemão Burkhard vêem descer o Nilo em enormes quan­
tidades. Graças a este tráfico, a alfândega de Alexandria,
segundo Arnold de Lubeck, rendia mais de 8000 marcos
Marco de prata: de prata fina em 1175. E no entanto, apesar dos lucros
nesta data, cerca de 245 g.
recolhidos pelos Egípcios, os produtos do Oriente eram
nitidamente menos caros em Alexandria ou em Damieta
do que em qualquer cidade da Síria. Por outro lado, o
Egipto, com falta de madeira e de ferro, é um bom mer­ ^4
cado de exportação para os Ocidentais. Como nos admi­
rarmos, então, que estes tenham de longe preferido o
Egipto muçulmano aos portos sírios submetidos aos seus
irmãos?

272
As mudanças económicas e sociais do séc. xil

Não se pode negar a actividade comercial do Levante


cristão. A presença de colónias genovesas, pisanas e vene­
zianas no reino de Jerusalém e nos principados de Antio-
quia e de Trípoli prova que os seus mercados não deixa­
vam de ter interesse. Todavia, tudo indica que o essencial
do tráfico tenha aí sido alimentado pelos produtos locais,
agrícolas e industriais, e que as respectivas quantidades
nem sempre seriam suficientes, já que vemos navios irem
completar o seu carregamento ao Egipto antes de regres­
sarem ao Ocidente.

O Egipto: as falsas aparências ■


de uma preeminência comercial

No Levante, porém, gozava-se, em princípio, de faci­


lidades muito maiores do que no Egipto, onde se era
muitas vezes objecto de atitudes hostis. Por outro lado,
as autoridades cristãs nem sempre aceitavam o princípio
da liberdade de comércio com os Muçulmanos: os papas
e os concílios, gerais e regionais, renovam incessante­
mente a proibição de venda aos infiéis de produtos estra­
tégicos como a madeira, o ferro ou o pez. Mas o Egipto
era um mercado demasiado interessante. Somente
Inocêncio III tenta, em 1198, interditar todo o tráfico
com os Sarracenos, mas é obrigado a renunciar à ideia
por pressão de Veneza. Além do que para lá se expor­
tava, havia por demais produtos a comprar no Egipto
para que alguém se deixasse impressionar por qualquer
escrúpulo religioso, ainda que traduzido numa ameaça
de excomunhão. Assim, a crer em Maqqarí, três mil mer­ Maqqarí: cronista argelino,
cadores latinos teriam passado por Alexandria apenas morto em 1632, que recolheu
no ano de 1215-1216. um grande número de docu­
mentos hoje desaparecidos.

Pisa ■

Antes da conquista ayyúbida, são os Pisanos quem está


mais bem implantado no Egipto. Em 1154, obtêm um ver­
dadeiro tratado de comércio do califa al-Zafir. Este asse­
gura-lhes a posse de um fondaco em Alexandria e de outro Fondaco: entreposto concedi­
no Cairo, a liberdade de venda em todo o país após paga­ do aos comerciantes de uma
nação ou de uma cidade, pa­
mento das taxas e a supressão do antigo sistema da res­ ra aí concentrarem as suas
ponsabilidade colectiva que permitia ao poder castigar mercadorias.
severamente os compatriotas de qualquer estrangeiro fal­
toso. A partir daí, Pisa manter-se-ia fiel aos Fatímidas: em
1167, é ela que intervém para assegurar a restituição de
Alexandria, conquistada por Shirkúh, obtendo, como
recompensa, uma redução das taxas cobráveis no Cairo.
Muito naturalmente, mostra-se hostil a Saladino nos anos
seguintes.

273
Génova, a Sicília e Veneza. Também para Génova,
Alexandria é um pólo de atracção. Em meados do séc. xil,
parece mesmo ter sido o objectivo principal do seu comér­
cio oriental, e este era tão natural que os arcebispos de
Génova cobravam um dízimo aos barcos que regressavam
de Alexandria. A Sicília manteve no séc. XII, apesar de
algumas fases de ruptura, as suas relações tradicionais com
o Egipto. Desde 1137 que Rogério II prometia aos Saler-
nitanos que obteria uma diminuição dos direitos que paga­
vam em Alexandria para o nível da taxa exigida aos
Sicilianos. Alguns anos depois conclui um tratado, «van­
tajoso para as duas partes», com o califa do Egipto.
Finalmente, Veneza mantinha, pelo menos desde 1158,
uma linha regular de galés com Alexandria. No final do
século já possuía um fondaco neste porto e em 1208 passa
a ter um segundo.

■ Os Latinos no Egipto dos Ayyúbidas

Indubitavelmente, Pisa perdeu terreno por ocasião da


conquista ayyúbida: o Minhâdj, de al-Makhzúmi, escrito
por volta de 1172, não fala dos Pisanos. Mas a República
depressa recupera, a partir de 1173, alcançando mesmo
novas concessões, o direito de utilizar os seus próprios
pesos e medidas e a supressão de certos abusos vexatórios
(vendas forçadas, exacções dos funcionários aduaneiros).
As importações de ferro, madeira, ouro e prata valiam
bem isso, segundo a confissão do próprio Saladino. Génova,
por seu lado, tem tantos interesses no Egipto ayyúbida
que, em 1192, Ricardo Coração de Leão não consegue
obter o concurso da República quando projecta atacá-lo.
Quanto a Veneza, o doge Sebastiano Ziani (1172-1178)
teria assinado uma «pax firmissima» com o Egipto.
Documentos privados provam, em todo o caso, que os
seus navios frequentavam assiduamente Alexandria no
final do século. No princípio do séc. xin, o sultão al-Mâlik
al-’Adil, irmão de Saladino, salienta a sua intenção de
beneficiar Veneza, de preferência a todas as outras nações.
Tudo isto explica o pouco entusiasmo das cidades mer­
cantis pela quarta cruzada, originalmente dirigida contra
o Egipto. No séc. xin, uma tradição acusa Veneza de a ter
desviado para poupar o sultão.
O Egipto era pois para os Latinos um mercado muito
rentável. Eles vendiam aí caro os seus produtos estratégi­
lÜiàiaUiüüuiUHiiUiUUiiktiiüUhüUUiiHlHiUiíhüHil

cos e compravam lá mais barato do que em qualquer outro


lado as especiarias e sobretudo o alúmen, indispensável
à sua jovem indústria têxtil, e que só no século seguinte
passaria a vir da Asia Menor. Não esqueçamos, entretanto,
que tinham de suportar fortes constrangimentos. O período

274
As mudanças económicas e sociais do séc. XIi

fatímida-ayyúbida parece mesmo caracterizar-se por um


reforço do controle do Estado sobre o comércio: um
documento de 1188 informa-nos de que, à chegada de
um navio latino, as autoridades procediam à apreensão
dos seus mastros e leme a fim de o impedir de partir sem
ter pago as taxas. Esta impressão de controle reforçado
ressalta também do Minhâdj, de al-Makhzúmi. Até ao
séc. xiii, os mercadores latinos estão sob um regime de
graças sempre revogáveis ou modificáveis. No entanto,
apesar desta insegurança, não houve, no Egipto do séc. xn,
nada de semelhante aos golpes de força bizantinos de
1171 e 1182. Nestas condições, compreende-se a entrega
dos Italianos a um tráfico que, graças às exportações de
matérias estratégicas, era sem dúvida mais equilibrado do
que o seu comércio com Constantinopla. Embora mais
insidiosamente, a economia dos países islâmicos, e sobre­
tudo a do Egipto, depende quase tanto do estrangeiro
como a de Bizâncio.

Para aprofundar este capítulo

Sobre a economia e a sociedade do mundo bizantino


no séc. xn, além dos trabalhos citados de N. SVORONOS
(em particular Etudes sur Vorganisation intérieure, la société
et Véconomie de Vempire byzantiri), consulte-se o ensaio de inter­
pretação global de A. P. Kazdan e A. Wharton Epstein,
Change in Byzantine Culture in the Eleventh and Twelfth
Centuries, Berkeley-Los Angeles, 1985.
Quanto aos problemas rurais, deve ter-se em conta
P. LEMERLE, The Agrarian History of Byzantium, já citado,
onde se encontrará toda a bibliografia anterior (em par­
ticular as obras de G. OSTROGORSKI). Ter-se-á acesso à his­
toriografia de inspiração marxista através de «Féodalisme
à Byzance», em Recherches internationales à la lumière du mar-
xisme, n.Q 79, Paris, 1974 (trabalhos de E. LlPCHlTS, M. I.
SlOUZIOUMOV, A. P. Kazdan) .
Sobre as classes dirigentes, M. ANGOLD (dir.), The
Byzantine Aristocracy from the IXth to the XlIIth Centuries,
Oxford, 1984, e as observações penetrantes de H.
AHRWEILER, «Erosion sociale et comportements excentri-
ques à Byzance aux XIe-XIIIe siècles», in Actes du XVe Congrès
intemational dÈtudes byzantines, t. 1, Atenas, 1977.
Sobre a cidade e as actividades urbanas em Bizâncio:
além da síntese, sempre excelente, de E. Kirsten, Die
Byzantinische Stadt, in Actes du XE Congrès intemational des

275
Études byzantines, Munique, 1958, dever-se-á ler M. J. ANGOLD,
«The Shaping of the Medieval Byzantine City», Perspectives
in Byzantine History and Culture, ed. por J. F. HALDON e J.
KOUMOULIDES, Amesterdão, 1984, Ch. Brand, Byzantine
Urban Riots, Xlth-XIIth centuries, Medievalia et Humanistica,
n.2 12, 1985. Sobre a indústria da seda, o artigo de R. S.
LOPEZ, «Silk Industry in the Byzantine Empire», Speculum,
XX, 1945, será renovado, apesar dos seus aspectos con-
testatários, graças ao de D. SlMON, «Die byzantinische
Seidenzünfte», Byzantinische Zeitschrift, LXVIII, 1, 1975.
Sobre os Judeus, além das obras citadas de J. STARR,
ver D. JACOBY, «La population de Constantinople à 1’épo-
que byzantine: un problème de démographie urbaine»,
Byzantion, 31, 1961; «Les quartiersjuifs de Constantinople
à 1’époque byzantine», Byzantion, 27, 1967; e «Les Juifs
Vénitiens de Constantinople et leur communauté du XIIIe
au milieu du XVe siècle», Revue des Études Juives, CXXXI,
3-4, 1972. A obra de St. BOWMAN, The Jews of Byzantium,
1204-1453, Univ. of Alabama Press, 1985, traz precisões
rituais e jurídicas e fornece o «dossier» completo das fon­
tes hebraicas sobre a comunidade romaniota.
Sobre o comércio bizantino (onde a presença italiana
é dominante): deverão ser tidas em conta as obras cita­
das de Fr. THIRIET e M. BALARD, sem esquecer o livro
insubstituível de W. HEYD, Histoire du Commerce du Levant
au Moyen Age, já citado; embora centrado na época seguinte,
encontrar-se-ão elementos interessantes em E. ASHTOR,
A Social and Economic History of the Near East in the Middle
Ages, Londres, 1972; lê-se ainda com utilidade C. Man-
FRONI, Storia delia marina italiana dalle invasioni barbariche
al trattato di Ninfeo, Livorno, 1899. Quanto aos aspectos
fiscais e aduaneiros, C. MORRISON, «La Logariké, réforme
monétaire et réforme fiscale sous Alexis Ier Comnène»,
Travaux et Mémoires, t. 7, 1979: e H. ANTONIADIS-BiBICOU
(cujo livro, já citado, sobre Les Douanes à Byzance, não pode
ser esquecido), «Note sur les relations de Byzance avec
Venise: de la dépendance à 1’autonomie et à 1’alliance»,
Thesaurismata, 1962. Ver também S. Borsari, «II crisobullo
di Alessio I per Venezia», Annali delVIstituto Italiano per gli
studi storici, II, 1970.
Os problemas agrários do mundo muçulmano serão
abordados através de Cl. CAHEN, «L’évolution de 1’iqtâ' du
IXe au XIIIe siècle. Contribution à une histoire comparée
des sociétés médiévales», Annales ESC, VIII, 1953, e «Le
régime rural syrien au temps de la domination franque»,
Bulletin de la Faculté des Lettres de Strasbourg, Abril de 1951.
Para uma interpretação da história do Magrebe, leia-
-se a síntese sugestiva de A. LAROUI, LfHistoire du Maghreb,
un essai de synthèse, Paris, 1970; e as observações de H. Djait,

276
As mudanças económicas e sociais do séc. xn

«Géographie économique de 1’Afrique du Nord d’après


les auteurs arabes du IXe au milieu du XIIe siècle», Annales
ESC, n.Q 3, 1973. Sobre a Turquia seljúcida, Cl. CAHEN,
La Turquie Pré-Ottomane, Istambul, 1988.
Sobre a vida e as actividades urbanas: os movimentos
urbanos são analisados por Cl. CAHEN, «Mouvements popu-
laires et autonomisme urbain dans 1’Asie musulmane du
Moyen Age», Arabica, N e VI, 1958-1959. Na condição de
ser utilizado com precaução, encontrar-se-á muito sobre
as actividades de produção e o negócio nas cidades muçul­
manas em E. ASHTOR, Histoire des prix et des salaires dans
rOrient médiéval, Paris, 1969; de P. CHALMETA, «El Senor
dei Zoco en Espana», Instituto Hispano-Arabe de Cultura,
Madrid, 1973, contém muito mais do que o título deixa
transparecer.
Comércio e sociedade estão na origem de uma abun­
dante literatura, para além da de W. Heyd, sempre indis­
pensável. A exploração dos documentos da Geniza do Cairo
deu lugar à rica e volumosa obra de Sh. GOITEIN, A
Mediterranean Society: The fewish Comunities of the Arab World
as portrayed in Documents of the Cairo Geniza, 2 vols., University
of Califórnia Press, 1967-1971. Sobre o Egipto ayyúbida,
ver os primeiros capítulos de S. LABIB, Handelsgeschichte
Agyptens im Spàtmittelalter, Wiesbaden, 1965, e o artigo
essencial de CL CAHEN, «Douanes et commerce dans les
ports méditerranéens de 1’Egypte médiévale d’après le
Min hâdj d’al-Makhzúmi», JESHO, VII, 3, 1964. Acrescente-
-se K. H. ALLMENDINGER, Die Beziehungen zwischen der
Kommune Pisa und Agypten im hohen Mittelalter, Wiesbaden,
1967, a confrontar com D. Herlihy, Pisa in the Early
Renaissance, a study on urban growth, New Haven, 1958. Várias
colectâneas recentes contribuem com grande número de
novidades: entre outras, M. A. COOK, Studies in theEconomic
History of the Middle East, Oxford, 1970; A. L. UDOVITCH
(ed.), «The Islamic Middle East 700-1900», Studies in
Economic and Social History, Princeton, 1981; ou I. M. LAPI-
DUS, Muslim Cities in the Later Middle Ages, Cambridge Mass.,
1977.

277
16
As transformações políticas
e culturais
do Próximo Oriente
nos sécs. xii e xin
Rumo à grande ruptura

7. Centralização aparente e dissolução real


dos impérios

Na mesma altura em que o Oriente cristão e muçul­


mano se deixa devorar economicamente por uma expan­
são latina de dia para dia mais audaciosa, é impressio­
nante constatar-se que o poder é aí monopolizado, com
uma firmeza crescente, por sistemas dinásticos cada vez
mais rigorosos. E assim, pelo menos, na aparência.

■ O legitimismo bizantino

À data da morte de Teodora, em 1056, os Bizantinos,


sem nunca abandonarem a ideia de que Deus pode sem­
pre escolher quem quer que seja, estão cada vez mais per­
suadidos de que o poder supremo se deve transmitir no
quadro familiar: graças a velhíssimas ligações com a linha­
gem macedónia que acaba de se extinguir, é a família dos
Dukas que lhe sucede; por uniões matrimoniais com esta,
usurpadores como Nicéforo Botaneiates e Aleixo Comneno
revestem-se de uma aparência de legitimidade. Marido de
Irene Dukas, Aleixo apresenta-se como sucessor legítimo
dos gloriosos Macedónios.
Nesta base, Aleixo Comneno apura definitivamente o
legitimismo bizantino. A sua dinastia é a primeira a ser
designada pelo nome de família. O apelido Comneno
passa a ser o símbolo de toda a legitimidade: não só os
Paleólogos o aditarão ao próprio nome, mas também um
grande número de pequenas e obscuras dinastias balcâ­
nicas, por vezes nem sequer gregas, o usarão como se fosse

278
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. xii e XJII

a sombra do Direito. Após 1204, o prestígio do seu nome


permite aos Comnenos instalarem-se em Trebizonda e
aqui se manterem até ao séc. xv.
Não é pois surpreendente que os Comnenos tenham
estabelecido um tipo de poder claramente patriarcal: no
reinado de Aleixo I, a criação de novas dignidades áuli­
cas tem principalmente por objectivo instalar a família e
os seus aliados no topo da hierarquia. Quanto aos postos-
-chave, é também a família que, de preferência, os ocupa:
assim, a guerra contra os Normandos, em 1081-1085, foi
sobretudo conduzida pelo próprio imperador e por vários
dos seus parentes. Excelente meio de controlo enquanto
a família era um pequeno clã ainda contestado e que tinha
interesse em manter-se coeso, este sistema patriarcal tor­
nou-se no pior dos perigos quando a linhagem se rami­
fica até ao infinito, com tios, sobrinhos, primos e cunha­
dos a receberem liberalmente títulos e domínios. Ao
contrário de João II, que tentou aparentemente reagir,
Manuel I deu mostras de uma indesculpável indulgência
com respeito à família. Daqui resultam duas graves con­
sequências: por um lado, apoiados em alianças mais ou
menos directas, verdadeiros pequenos dinastas reinam,
no final do séc. xii, um pouco por todo o lado do Império;
por outro, na falta de regras fixas de sucessão, todos os
membros da linhagem podem reivindicar direitos mais ou
menos equivalentes a reinar. Aleixo I teve muita dificul­
dade em transmitir o poder ao filho João, cujo filho mais
novo, Manuel, subiu ao trono em detrimento do irmão
mais velho. E nada há de espantoso em que um primo do
imperador, Andrónico, suplante e acabe por fazer desa­
parecer o filho único de Manuel, ou que simples aliados
da família, os Angelos, sejam preferidos aos numerosos
parentes mais directos.
De resto, a evolução administrativa que tende à retrac-
ção territorial dos temas e, após o desaparecimento dos
estrategos durante o séc. xi, à acumulação dos poderes
essenciais nas mãos de governadores militares - os doukes
(duques) - faz crescer ainda mais o perigo de dissolução
do poder. Que um duque ou um governador de cidade
seja ao mesmo tempo um sólido proprietário, a título here­
ditário ou como pronoiário, eis o bastante para que se
assista à formação - como acontece um pouco por toda
a parte - de pequenos enclaves aristocráticos onde a auto­
ridade imperial, reconhecida em princípio, não tem, de
facto, qualquer meio de intervir. Além disso, esta milita­
rização generalizada envolvia pesadas consequências para
o povo: enquanto os pronoiários têm tendência a explorá-
-lo cada vez mais para cumprirem as suas obrigações fis­
cais em dinheiro ou em homens, o Estado, que não podia
contentar-se com as contribuições nacionais para alimentar

279
as suas guerras constantes, reclama impostos cada vez
mais pesados a fim de recrutar mercenários estrangeiros:
russos, francos, ingleses ou turcos. Assim, o povo bizan­
tino, no final do séc. xn, suporta duas opressões: a do
Estado em crescente debilitação e a dos arcontes em plena
expansão.

■ A impossível unidade do mundo muçulmano

Entretanto, em terras do islão, a dissolução do poder,


sendo mais irregular, não era menor. Antes de mais, o
problema do poder supremo permanece sem solução: se
o califado omíada de Córdova é derrubado em 1031, dando
lugar, entre 1056 e 1147, à dinastia marroquina dos
Almorávidas, que reconhece a obediência abássida mas se
mantém, na prática, independente, o califado fatímida do
Egipto subsiste até 1171, data na qual a conquista ayyú-
bida reconstitui a unidade teórica do Próximo Oriente
muçulmano em torno do califa ortodoxo de Bagdade. Mas
este último só representa, na melhor das hipóteses, uma
autoridade moral com que os grandes sultões - como
Zenki, Núr al-Din ou Saladino detentores efectivos do
poder, gostam de se revestir nas suas tentativas de reuni­
ficação político-religiosa. De resto, ainda antes da elimi­
nação do califado egípcio, um novo competidor tinha apa­
recido no Ocidente: o soberano almóada ’Abd al-Mu’min.
Mesmo no interior dos diversos califados, o mundo
muçulmano é na realidade composto de verdadeiros
Estados - autónomos, para não dizer independentes -,
onde, além disso, a autoridade é cada vez menos exercida
pelo soberano em título. Depois da morte de Malik-Xá,
em 1092, com excepção do sultanato de Rum, os prínci­
pes seljúcidas da Síria, do Iraque e do Irão perdem na
maior parte dos casos todo o poder efectivo em proveito
das cortes que os rodeiam. Na Síria e na Alta Mesopotâmia,
Atabaque: exactamente «bei- na primeira metade do séc. xn, o regime dos atabaques
-pai». Tutor de um jovem prín­ consegue, por vezes, como em Mossul e Damasco, cons­
cipe, normalmente um gene­
ral, que acaba por exercer a
tituir verdadeiras dinastias cujas cizânias constantes con­
realidade do poder. tribuíram para o sucesso dos cruzados. No Egipto fatí­
mida, depois da morte do califa al-Hâkim em 1021, a
linhagem soberana, incessantemente agitada por rivali­
dades pessoais, perde a autoridade em benefício de vizi-
res que reúnem nas suas mãos todos os poderes civis e
militares. São eles que, no momento da conquista ayyú-
bida, dirigem realmente os destinos do Egipto, o que
explica sem dúvida, em parte, a facilidade com que a dinas­
tia xiita é afastada. Mesmo os Zênkidas e os Ayyúbidas.
embora movidos por um forte impulso unitário, nunca
conseguiram impor-se ao conjunto do Próximo Oriente:

28Ü
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. XII e Xlir

é com mil precauções que Núr al-Din se esforça por aliar


a si os pequenos dinastas, enquanto Saladino, cuja obra
tropeçara na Ásia Menor, na Djézira e no Iraque, deixa,
por morte, um Império prestes a cindir-se. Com a exten­
são do sistema da iqtâ’ militar e hereditária, cujas conse­
quências já vimos, o grande Ayyúbida ainda acelerou a
dissolução da autoridade. Onde esse sistema é desco­
nhecido ou está menos implantado, na Ásia Menor e no
Egipto, a noção de Estado subsiste e o poder sabe fazer-
se obedecer.

Embriões de nações? ■

Os impérios bizantino e muçulmano eram, desde as


origens, Estados multinacionais cuja coerência era asse­
gurada por uma ideologia comum. Nos dois casos, o enfra­
quecimento da autoridade central traduziu-se na aparição
de unidades territoriais de base étnica ou geopolítica. Em
Bizâncio, após 1185, as nacionalidades eslavas desenvol­
vem-se de modo irreversível: a Sérvia de Stepan Nemanja, Stepan (Etiano) Nemanja: gran­
depois de ter reagrupado Zeta e Ráscia, transborda sobre de jupan da Sérvia (1167-1196),
fundador da dinastia dos Nemâ-
a Macedónia, ao passo que a Bulgária se desliga definiti­ nídas.
vamente do Império durante a dinastia dos Asên. No prin­
cípio do séc. xiii, todos os soberanos eslavos fazem o jogo
de Roma para melhor manifestarem a independência reen­
contrada: em 1202 a Sérvia, em 1203 a Bósnia e em 1204
a Bulgária reconhecem sucessivamente a supremacia do
papa. Quanto ao mundo muçulmano, se o Irão, o Iraque
e a Síria-Djézira não se conseguem fixar em quadros deter­
minados, vê-se que nele se precisam dois conjuntos des­
tinados a não mais se dissolverem: a Ásia Menor, núcleo
da futura Turquia, e o Egipto, mais do que nunca refrac-
tário a qualquer integração num conjunto mais vasto.
Assim, as futuras nações desenham-se quer em terra do
islão quer no mundo cristão ortodoxo onde, no entanto,
se reforça o sentimento de pertença a uma cultura comum.

2. A crescente originalidade das culturas


orientais: o choque com o Ocidente

Paradoxalmente, com efeito, a dispersão territorial do


Oriente torna-o cada vez mais irredutível ao que consi­
dera ser-lhe estranho. E natural: consciente das suas divi­
sões, o Oriente sente-se tanto mais vulnerável face ao
estrangeiro que, precisamente, lança contra ele o grande

281
assalto das cruzadas. No islão como em Bizâncio, a mesma
causa produz os mesmos efeitos: reafirmação dos valores
tradicionais e hostilidade para com tudo o que os ponha
i em questão.

■ O mundo muçulmano e a Contracruzada

No mundo muçulmano, as Cruzadas foram mais a opor­


tunidade do que a causa deste regresso às origens. Reli­
giosamente dividido e politicamente amorfo, o islão começa
por tentar tirar partido das conquistas latinas e não vê o
que a cruzada representa de novo em relação às lutas secu­
lares que mantém contra Bizâncio. Durante meio século,
nem sequer passa pela cabeça dos pequenos príncipes de
Damasco ou de Alepo a ideia de se unirem contra os
Francos, chegando mesmo a aliarem-se a estes contra os
seus rivais muçulmanos; o mesmo sucede com os sobera­
nos egípcios antes da conquista ayyúbida. Efectivamente,
a massa da população, quando não é cúmplice como no
Egipto, é, pelo menos, indiferente como na Síria. Quando,
no início do séc. xn, alguns raros teólogos, em Damasco
e Alepo, lançam os primeiros apelos a uma Contracruzada,
tentando reanimar a velha ideia do djihâd - então com­
pletamente esquecida não suscitam qualquer eco nem
no público nem nos círculos dirigentes. O nome de mud-
jahid, ostentado de bom grado pelos príncipes sírios, como
pelos califas e os vizires do Egipto, não passa, para eles,
de um título pomposo, utilizado sobretudo contra outros
príncipes muçulmanos. Ainda no tempo de Zenki, glori­
ficado como mudjahid por ter retomado Edessa em 1144,
a ideia de coexistência com os Francos não estava posta
de parte, e as pretensões do soberano, para quem a Djézira
era a pátria, não se alargam sequer ao conjunto da Síria.
E pois somente cerca de 1150 que, por influência de vários
factores, o islão retoma consciência bastante de si próprio
para passar ao contra-ataque: a Segunda Cruzada provou
que os Latinos da Síria não eram soberanos locais como
os outros e que se apoiavam numa ameaçadora coligação
estrangeira. Ao mesmo tempo, o povo sírio, em pleno cres­
cimento demográfico, sente cada vez mais penosamente
a presença de um inimigo que ocupa as suas terras mais
férteis e toda a sua faixa marítima. Nestas condições, duas
ideias até então distintas fundem-se no tempo de Núr al-
-Dín: é necessário expulsar os cristãos, e isso só se conse­
guirá unindo todas as forças islâmicas, o que pressupõe
que todos os muçulmanos comunguem efectivamente da
ortodoxia sunita. Djihâd e triunfo da verdadeira fé são,
portanto, as duas bases da obra de Núr al-Din e, depois,
de Saladino. Assim, enquanto a reunificação islâmica refor­
çava a ideia de guerra santa cujo fim supremo se tradu-
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. xn e xni

zia na reconquista de Jerusalém e do Sahil, o estímulo do


Sahil: a costa sírio-palestiniana.
djihâd, consequência remota da cruzada, era por sua vez
um poderoso meio de voltar a soldar os membros espar­
sos do islão.
No final do século, o islão ortodoxo sai mais forte da
crise: face ao cristianismo, que se esforça por refutar, tenta
provar a sua excelência e, naturalmente, aprofunda a refle­
xão sobre si mesmo. Por ter viajado muito em países cris­
tãos, um espírito sereno como o Andaluz Ibn Djubair
manifesta-se tanto mais convencido de possuir a verdade.
Mas esta unidade e esta segurança novas têm também o
seu aspecto negativo: resultam numa intolerância até então
desconhecida nos países muçulmanos.

Em Bizâncio: bons Gregos e maus Latinos ■

Em Bizâncio, país cristão, a reacção, mais complexa,


vai no mesmo sentido. Insensíveis à ideia muçulmana de
guerra santa que denunciam há séculos, os Bizantinos
interpretam a Cruzada como uma pura e simples tenta­
tiva de apropriação do seu império. Apenas dez anos sepa­
ram o fim da guerra normanda dos começos da Primeira
Cruzada; que uma personagem como Bohémond partici­
passe numa e noutra era a prova de que se tratava de uma
única e mesma empresa. As pilhagens consecutivas à cru­
zada e a má-fé com que os cruzados deitaram mão a pro­
víncias retomadas aos Turcos, que Bizâncio contava recu­
perar, só podiam reforçar esta convicção entre os Gregos.
Além disso, o contacto directo com os Latinos forneceu
a imagem de um mundo profundamente estranho, onde
os costumes eram brutais, onde a disciplina e o ritual reli­
gioso não eram os mesmos, onde os padres, não satisfei­
tos de raparem a barba e de comungarem com pão ázimo,
não hesitavam em pegar em armas e em matar a coberto
da religião. De resto, cada cruzada era anunciada ou
seguida por outras experiências de carácter puramente
político: durante a Segunda Cruzada, Rogério da Sicília
tinha invadido a Grécia, ao passo que, cinco anos antes
da terceira, Guilherme II saqueia Tessalonica. Cada vez
mais explorada, ao mesmo tempo, pelos mercadores ita­
lianos, Bizâncio afasta-se crescentemente de um Ocidente
que julga empenhado na sua perda, ainda que mantenha
durante todo o séc. xn relações regulares e mesmo, mui­
tas vezes, cordiais com os países latinos - França, Inglaterra
e Germânia, em particular. O que conta é a formação
definitiva de uma imagem mental, a do «mau Latino»,
que vai buscar os maiores defeitos - orgulho, barbárie,
cupidez, hipocrisia e impiedade - aos invasores norman-
dos. No termo do século, o arcebispo Eustato de Tessalonica

283
escreve, a seu respeito, que «não se lhes pode chamar
seres civilizados» e que «são sobretudo ladrões, animais
selvagens, bárbaros».
Desde logo, os Gregos são naturalmente levados a com­
parar este novo inimigo com o adversário tradicional, o
Muçulmano, e a concluir, com Eustato, que o Latino é
muito mais temível. Indo mais longe, Nicétas Coniatés,
após a pilhagem de Constantinopla em 1204, sublinha
mesmo que os Latinos se mostraram aqui muito mais bru­
tais do que Saladino aquando da conquista de Jerusalém.
A aliança de Bizâncio com o grande Ayyúbida, no decurso
da Terceira Cruzada, testemunha que o Oriente, para
além das antigas divisões, começa a tomar consciência dos
seus interesses comuns face à força brutal vinda de Oeste.
Oficialmente, continua a ser sustentada a ideia de «fra­
ternidade espiritual» entre Gregos e Latinos mas, já em
declínio no séc. xil, ela mostra-se incapaz de resistir ao
grande choque da quarta cruzada.

■ Apogeu da tradição cultural bizantina

De facto, no momento em que o Ocidente se enri­


quece com muitas influências orientais, Bizâncio rejeita
como que por instinto tudo o que lhe pode advir dos
Latinos. Embora a aristocracia manifeste agrado por alguns
romances corteses e se apraza em imitar certos usos cava-
leirescos como o torneio, a literatura bizantina mantém-
-se fiel à sua tradição: o período dos Comnenos pode
mesmo ser considerado como a consagração em classi­
cismo dos dois séculos precedentes. A retórica, tão cara
aos Bizantinos, atinge então um equilíbrio, que não seria
mais modificado, entre a inspiração cristã e a roupagem
mitológica posta ainda em relevo por uma língua de um
arcaísmo pomposo: encontram-se bons exemplos disso nas
obras, principalmente destinadas à corte, de Nicéforo
Basilakés e de Nicétas Coniatés. Quanto à história, pro­
duz então a sua obra-prima com a Alexíada de Ana Comne-
no, filha de Aleixo I, um dos espíritos mais cultos do seu
tempo. Escrita numa língua que alia geralmente uma
honesta correcçào a uma vida intensa, a obra é, mais do
que um panegírico do imperador Aleixo, uma exaltação
de Bizâncio novamente vitoriosa e reforçada no seu sen­
timento de superioridade pelas incríveis acções dos
Ocidentais. Com menos talento literário, João Kinnamos
e Nicétas Coniatés estão imbuídos do mesmo sentimento,
ainda que o segundo, por ódio partidário a Manuel
Comneno, não hesite em fazer vibrantes elogios dos
Latinos, sem prejuízo de os voltar a maldizer uma vez
ultrapassado o ano de 1204. E, no entanto, a poesia que

284
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. xn e xm

dá a imagem mais fiel do século dos Comnenos: na obra


dos seus dois melhores representantes, João Tzetzés e
Teodoro Prodromo, é o fervilhar da época que se exprime
na íntima mistura de uma poesia descritiva, mitológica e
pedante com uma veia satítica e realista, ambas enraiza­
das na tradição antiga. Pelo contrário, o séc. xn, de um
classicismo já mais decorativo que profundo, não foi nada
favorável às disciplinas especulativas. Nenhum grande
nome ilustra então a ciência bizantina; a filosofia, após a
condenação do platonismo no final do séc. xi, atola-se
num aristotelismo de vistas curtas. A própria arte, sempre
brilhante, limita-se a seguir a tradição: fugindo a qualquer
influência ocidental, pouco se renova.
Mas é sobretudo no domínio religioso que se mani­
festa a recusa bizantina de qualquer concessão. Os impe­
radores podem até ter conselheiros latinos em teologia,
como os Pisanos Hugo Etéreo e Leone Toscano, muito
escutados por Manuel I, bem como podem manter infin­
dáveis e infrutíferas negociações com Roma... Nem por
isso se deixa de começar a acusar claramente os Ocidentais
de heresia, ao ponto de, no final do século, o maior cano-
nista grego, Teodoro Balsemão, chegar a negar-lhes o
direito de comungarem com os ortodoxos e de assistirem
aos ofícios destes.
As Cruzadas, que tinham galvanizado e reunificado o
islão, fizeram assim também nascer, no Oriente bizantino
e eslavo, um sentido mais agudo da unidade e da origi­
nalidade ortodoxas. Bem mais do que o pretenso cisma
de 1054, elas provocaram uma ruptura definitiva entre as
duas cristandades.

3. A grande ruptura de 1204


e as suas consequências

A partilha do Império Bizantino (Partitio Romanie); ■


o fracasso do plano latino

Tendo partido à conquista do Egipto, os cruzados de


1202 acabaram realmente por conquistar o império grego
cujos despojos partilharam entre si, embora até ao último
momento se tenham manifestado maioritariamente hos­
tis a qualquer ataque contra os irmãos orientais.
Mesmo Veneza não parece ter tido, originalmente,
outro objectivo que não fosse o de instalar no trono bizan-

285
tino um imperador grego que lhe fosse favorável, na pes­
soa do filho de Isaac II, Aleixo IV, refugiado no Ocidente.
Mas se a República conseguiu desviar a cruzada da sua
verdadeira finalidade, só o pôde fazer graças ao apoio de
uma activa minoria inspirada por uma ideologia antigrega
nascida durante a segunda cruzada em torno de S. Ber­
nardo e de Suger. Secundados pela facção mais dura do
clero latino, os Venezianos vão pois levar a cruzada até às
muralhas de Constantinopla. Forçando a mão de tropas
pouco entusiastas mas atraídas pelos esplendores imperiais
e a sede das relíquias, eles lançam-nas por duas vezes con­
tra os Gregos, primeiro para restabelecer Aleixo IV e
depois, uma vez persuadidos de que era impossível qual­
quer colaboração, para tomar, pura e simplesmente, posse
do Império. Já em Março de 1204, por um tratado conhe­
cido pelo nome de Partitio Romanie, os Venezianos e os
outros Latinos tinham antecipadamente repartido entre
si um território ainda inteiramente por conquistar.
A tomada de Constantinopla, em 13 de Abril de 1204, sig­
nifica portanto para eles o desaparecimento do império
grego: um imperador latino, Balduíno I, é eleito em
Bizâncio; o doge de Veneza proclama-se senhor do «quarto
e meio» do defunto Império; e os nobres latinos espa­
lham-se pela Tessália e pela Grécia. Bonifácio de Montferrat
lança aí as bases do futuro e efémero reino de Tessalonica,
enquanto o champanhês Villehardouin enceta a conquista
de um Peloponeso que vai converter, em 1210, no prin­
cipado da Acaia ou da Moreia.

■ A reconquista bizantina
Para fazer suceder de uma vez por todas um poder
latino ao império grego, teria sido necessário eliminar
sem demora qualquer bolsa de resistência bizantina. Ora
a implantação latina foi sempre incompleta. Mesmo na
Moreia, onde se mostrou mais sólida, a cidade de Monem-
vasie (a Malvasia dos Ocidentais) resistiu até 1248. Mais
ainda: enquanto a família Comneno se instalava em
Trebizonda, onde reinaria até 1461, apareciam dois núcleos
mais temíveis, um no Epiro à volta de Miguel Ângelo e
outro na Anatólia com Teodoro Laskaris. Estes três Estados
gregos têm uma mesma ambição: restaurar por sua conta
o império romano sobre o qual cada um tem direitos fami­
liares. Esta situação significava a guerra, ao mesmo tempo
para expulsar os Latinos e para garantir a supremacia, isto
enquanto os poderosos czares búlgaros Kalojan e, depois,
Asên II, passam de uma aliança a outra para melhor defen­
derem os seus interesses. Apesar dos esforços do impera­
dor latino Henrique, falecido em 1216, a reconquista con­
verge para 1225: ao passo que Teodoro Ângelo, do Epiro,

286
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. XII e xili

se apodera de Tessalonica onde assume a coroa imperial,


João III Vatatzés, genro de Laskaris, que se fizera procla­
mar imperador em Niceia em 1208, expulsa definitiva­
mente os Latinos da Ásia Menor, assenhoreia-se das ilhas
de Lesbo, Quios, Samos e Rodes, e desembarca na Trácia
a fim de vencer os Epirotas pela surpresa. Quando, em
Março de 1230, Teodoro do Epiro é esmagado pelos
Búlgaros em Klokotnitsa, o jogo chega ao fim com resul­
tado favorável ao Império de Niceia. O efémero império
grego do Ocidente, limitado à actual Albânia e disputado
por lutas sucessórias, tem de se contentar com o título de
despotado, apesar dos retornos ofensivos que só termi­
nam no final do século.
Para salvar o império latino, teria sido necessária uma
nova união do Ocidente. Roma trabalhava nesse sentido,
mas não encontrava eco nem em França, onde S. Luís
sonhava com cruzadas contra o Infiel, nem no império
germânico, onde Frederico II, em permanente conflito
com o papa, se contentava, em 1229, com uma cessão for­
mal de Jerusalém e, depois, estabelecia excelentes rela­
ções com Vatatézis, em quem via um útil apoio contra
Roma. A bem dizer, até à morte de João III, em 1254,
Veneza foi a única potência ocidental a defender Cons­
tantinopla, ponto de apoio essencial para a rede imperial
que a República tecia a partir de Coron e Módon, na
Moreia, até ao ducado do Arquipélago, no mar Egeu, cujo
centro vital era então Creta. Mas, só por si, não chegava:
por isso se forma uma coligação em 1258 entre o Epiro,
o rei da Sicília, Manfredo, filho bastardo de Frederico II,
e o príncipe da Acaia, Guilherme II de Villehardouin.
No Outono de 1259, os aliados são esmagados em
Pelagónia, na Macedónia, pelo novo imperador bizan­
tino, o usurpador Miguel VIII, Paleólogo. Não só o Epiro
é invadido como, após ter mantido Villehardouin prisio­
neiro durante dois anos, Miguel impõe a cedência de três
fortalezas da Moreia, a partir das quais se vai operar a
lenta reconquista do Peloponeso. A vitória grega começa
a adivinhar-se, dado que Veneza, novamente em guerra
com Génova, não tem qualquer meio de intervir, tanto
mais quanto Miguel VIII, em 13 de Março de 1261, se ali­
ara a Génova pelo tratado de Nymphaeon. Em 25 de Julho
seguinte Constantinopla cai nas mãos do general Aleixo
Strategopoulos.

A invasão mongol e as suas consequências ■

Este longo conflito mais não fez do que cavar o fosso


entre o Oriente e o Ocidente. O Império Bizantino, obri­
gado pelo esforço de guerra a uma profunda reorganiza-

287
ção interna, sai consolidado da crise. Quanto ao mundo
muçulmano, enfraquecido e dividido com a morte de
Saladino, deve sem dúvida à polarização dos interesses
ocidentais no mar Egeu umas longas tréguas, somente
interrompidas pelos lamentáveis fracassos da Sétima e da
Oitava Cruzadas (1248-1254, 1265-1272). Além disso, a
invasão mongol, após a morte de Gengiscão em 1227,
transborda sobre todo o Próximo Oriente: em 1258, o
Califado abássida desaparece sob as ruínas de Bagdade.
Mas, feitas as contas, os Mongóis acabam por reforçar o
islão. Desde meados do século, o Canato dos Qiptchak,
ou Horda de Ouro, que se estende do lago Balcache até
ao estuário do Dniepre e tem a Rússia sob vassalagem, já
se lhe tinha convertido, no que depressa foi seguido pelos
Mongóis da Pérsia (Canato dos Ilkhans ou de Hulagu),
inicialmente muito hostis ao islão, mas rapidamente ira-
nizados e ganhos para a religião dos seus súbditos. Acresce
que a invasão mongol aproveita principalmente a Bizâncio:
em Junho de 1242 , os Seljúcidas de Rum são esmagados
em Kosedagh e o seu sultanato, tomado vassalo dos Ilkhans,
deixa de ser uma ameaça para a Anatólia grega; no mesmo
ano, a Bulgária fica muito debilitada por efeito de uma
incursão mongol.
Contrariamente às esperanças do Ocidente numa pos­
sível aliança com os Mongóis contra o islão, a nova inva­
são tem como resultado, no Próximo Oriente, uma redis-
tribuição de forças mais desfavorável aos interesses latinos:
primeiro, os Mongóis fracassam diante do estado muçul­
mano mais perigoso, o Egipto, dominado desde 1250 pela
dinastia mameluca e a quem têm de entregar a Síria após
1260; mas, sobretudo, eles têm interesses comuns com
Bizâncio que obtém, sucessivamente, alianças com os dois
canatos. Com efeito, até 1272 Miguel VIII aposta nos
Ilkhans, que garantem a paralisia seljúcida; depois, toma
consciência do papel do seu império, senhor dos estrei­
tos, entre a Horda de Ouro, exportadora de escravos, e
o Egipto mameluco que tem uma necessidade vital deles.
Desde logo se constitui, do mar Negro até ao delta do
Nilo, uma tripla aliança que ameaça perturbar gravemente
o tráfico no Mediterrâneo.

■ Coligações ocidentais e tentativas de união:


do Concílio de Lyon (1274) às Vésperas Sicilianas (1282)

O Ocidente levou tempo a compreender a inutilidade


de qualquer solução de força: até 1265, Veneza manteve
contra Bizâncio uma rude guerra naval e tentou mesmo
utilizar Roma para mobilizar a opinião latina; mas o rea­
lismo acabou por se lhe impor e a República concluiu,
299999999
288
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. XII e XIII

em 1268, umas tréguas com Miguel VIII, depressa seguidas


de outras com Génova. Outro adversário foi mais difícil
de convencer: o rei de Nápoles, Carlos de Anjou, o qual,
atraído pelo papa, tinha eliminado e substituído Manfredo
em 1266. Como bom sucessor dos antigos reis norman-
dos, ele aspira à expansão balcânica, erigindo, para esse
efeito, uma grande coligação caucionada por Roma, que
se exprime pelos tratados de Viterbo de 24 e 27 de Maio
de 1267. Reconhecido pelo imperador titular de Cons­
tantinopla como suserano da Moreia e de um terço dos
territórios a reconquistar, Carlos obtém a vassalagem de
Guilherme de Villehardouin. Ao mesmo tempo que se ins­
tala em Durazzo, onde se faz proclamar rei da Albânia em
Fevereiro de 1272, Carlos completa a aliança, atraindo a
ela o czar búlgaro, Constantin Tich, e o dos Sérvios, Stepan
Urosh. Mas esta temível coligação, já abalada pela parti­
cipação de Carlos de Anjou na Cruzada de Tunes, foi des­
feita por uma nova manobra diplomática de Miguel VIII:
no concílio de Lyon, em 6 de Julho de 1274, aderia à fé
romana e reconhecia a primazia de Roma. Privado do
apoio do papa, Carlos tem de assinar uma trégua com
Bizâncio, que aproveita para reforçar as suas posições na
Albânia e mesmo na Moreia - embora esta esteja sob a
autoridade napolitana em 1278 -, ao mesmo tempo que
activos corsários asseguram temporariamente para os
Bizantinos o domínio do mar Egeu. Mas Carlos de Anjou
não desarma e Veneza, inquieta com a pirataria que per­
turba as suas ligações, inclina-se para a solução militar.
Quando, em 1281, é eleito o papa Martinho IV, favorável
aos Angevinos e hostil aos Gregos a quem acusa de não
terem respeitado minimamente os seus compromissos,
tudo está pronto para uma nova aliança.
Em 3 de Julho de 1281, pelo Tratado de Orvieto, Veneza
e Nápoles aliam-se ao imperador latino Filipe de Courtenay
«para a restauração do Império Romano usurpado pelo
Paleólogo». Contra este último, excomungado pelo papa,
juntam-se além disso João, senhor da Grande Valáquia
(Tessália), os Búlgaros e, sobretudo, o czar sérvio Stepan
Milutine, que invade imediatamente a Macedónia seten­
trional.
Pela força e pela manha, Miguel Paleólogo triunfa, no
entanto, sobre tudo e todos: na Primavera de 1281, esmaga
as tropas angevinas em Berat, na Albânia, onde as pos­
sessões latinas são condenadas à desaparição; no mesmo
ano, paralisa Veneza encorajando em Creta a revolta de
Aleixo Kalergis, que duraria até 1299; finalmente, Carlos
de Anjou é brutalmente condenado a abandonar as suas
ambições orientais na sequência da grande revolta das
Vésperas Sicilianas (Março de 1282), em grande parte
financiada pelo ouro bizantino.

289
■ O Oriente no final do séc. xiii

À data da morte de Miguel, em 1282, o Oriente


parece pois em vias de rejeitar definitivamente toda a
presença política ocidental: o desmembramento do
império veneziano é previsível, e a reconquista da Moreia
não é senão uma questão de tempo. Por outro lado, o
islão aparenta ter encontrado, no Egipto mameluco,
uma nova reserva de dinamismo: o sultão Baibars vencera
os Mongóis em Albistan, em 1277, e o seu sucessor Qala’ún
apresta-se para retomar as últimas praças da Terra Santa
latina, Trípoli e Acre, que caem em 1289 e 1291. Pela
mesma época, o sultanato de Rum, moribundo vassalo dos
Mongóis, decompõe-se numa multidão de pequenos e
médios emirados, ao mais modesto dos quais - o dos
Omanlis ou Otomanos - está reservado um grandioso
futuro.
Na realidade, um século de guerras quebrou de vez o
mundo bizantino, que já não se pode opor a uma inva­
são económica definitiva pelo Ocidente no mesmo
momento em que o perigo turco reaparece para logo se
agravar. Além disso, o enfraquecimento grego favorece
uma nova expansão eslava: em 1299, Milutine leva as suas
conquistas quase até às fronteiras setentrionais da actual
Albânia. Ao encarniçar-se contra Bizâncio, o Ocidente
abriu o campo aos estados eslavos do Sul e, mais grave­
mente, ao futuro Império Otomano.

Para aprofundar este capítulo

Sobre os aspectos ideológicos: reportar-se, quanto a


Bizâncio, â obra citada na p. 14 de H. Ahrweiler, UIdéologie
politique..., e a H. G. BECK, Res Publica Romana. Vom
Staatsdenken der Byzantiner, Munique, 1970; são apercebi­
dos através da numismática graças a M. HENDY, Coinage
andMoney in lhe'Byzantine Empire, 1081-1261, Washington,
1969. Encontram-se observações sugestivas em G. OSTRO-
GORSKI, Zum Byzantinischen Geschichte, Darmstadt, 1973; e
em A. P. Kazdan e A. EPSTEIN, Change in Byzantine Culture,
já citada. Quanto ao mundo muçulmano, importa ler, sem
prejuízo de as discutir, as obras de M. ARKOUN, e mais
especialmente os seus Essais sur la Pensée Islamique, Paris,
1985; achar-se-ão outros elementos de reflexão em Cheik
BOUAMRANE e L. Gardet, Panorama de la pensée islamique,
Paris, 1984. Ver também, abaixo, as obras relativas à Cru­
zada e à Contracruzada muçulmana.

290
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. xn e xui

Bizâncio face às Cruzadas é o objecto de uma litera­


tura abundante. Quanto aos aspectos teóricos, a base de
reflexão continua a ser P. Lemerle, «Bizâncio e a Cruzada»,
in Relazioni dei Xe Congresso Internazionale di Scienze Storiche,
III, Florença, 1955; e W. M. Daly, «Christian Fraternity,
the Crusaders and the Security of Constantinople, 1097-
-1204», Mediaeval Studies, XXII, Toronto, 1960. Consultar
também as histórias gerais das Cruzadas já citadas (RUN-
CIMAN, SETTON, Mayer, MORRISSON), nas quais o factor
bizantino, à excepção das obras de St. RUNCIMAN e de
C. MORRISSON, é geralmente subavaliado, e sobretudo
M. Balard, Les Croisades, Paris, 1989, de que grande número
de artigos proporcionam úteis actualizações e bibliogra­
fias pormenorizadas. Cfr. os números especiais, consa­
grados às Cruzadas, das revistas LTTistoire (reeditados em
volume, Seuil, Points Histoire, 1988) e Notre Histoire (Janeiro
de 1986).
Quanto às relações de Bizâncio com os estados cru­
zados, além das obras gerais já citadas, J. Richard, Orient
et Occident au Moyen Age: contacts et relations, Variorum,
Londres, 1976; Cl. CAHEN, Orient et Occident à Vépoque des
croisades, Paris, 1979; P. M. HOLT, TheEastern Mediterranean
Lands in the Period of the Crusades, Warminster (G. Br.),
1977; e R. J. Lillie, Byzanz und die Kreuzfahrerstaaten: Studien
zur Politik des Byzantinischen Reiches gegenüber den Staaten der
Kreuzfahrer in Syria und Palâstina bis zum vierten Kreuzzug
(1096-1204), Bona, 1981.
Sobre o islão e a Cruzada, E. SlVAN, LTslam et la Croisade,
idéologie et propagande dans les réactions musulmanes aux croi­
sades, Paris, 1968, parcial, não dispensa as reflexões de Cl.
CAHEN, «LTslam et la Croisade», Relazioni dei Xe Congresso
di Scienze Storiche, Florença, 1955. A imagem do Muçulmano
no Ocidente é bem estudada por N. DANIEL, Islam and the
West. The Making of an Image, Edimburgo, 1968; cfr. tam­
bém M. RODINSON, La Fascination de ITslam, Paris, 1980.
Sobre a Djihâd e a Contracruzada muçulmana, além
do artigo «Djihâd», redigido por Cl. CAHEN para a 2.- edi­
ção da Encyclopédie de ITslam, cfr. os estudos teóricos, mui­
tas vezes contraditórios ou polémicos, como os M. KHA-
DOURI, War and Peace in the Law of Islam, Baltimore, John
Hopkins Press, 1962; J.-P. Charnay, LTslam et la Guerre. De
la guerre juste à la révolution, Paris, 1986; e sobretudo
A. MORABIA, La Notion de Jihâd dans ITslam médiéval, Lille,
1975. Estes trabalhos são ilustrados por D. E. P. JACKSON,
Saladin. The Politics of the Holy War, Cambridge, G. B., 1982.
A obra de A. MAALOUF, Les Croisades vues par les Árabes,
Paris, 1983, é útil, mas falta-lhe serenidade; pode-se equi­
librá-la, do ponto de vista bizantino, graças a A. DUCEL-
LIER, «Mentalité historique et réalités politiques: ITslam

291
et les Musulmans vus par les Byzantins du XIIIe siècle»,
Byzantinische Forschungen, Band IV, Amesterdão, 1972.
Sobre cultura e aculturação, a obra de base é, no que
respeita a Bizâncio, a de A. P. KAZDAN e A. Epstein, já
citada. Sobre a literatura bizantina, dever-se-ão ler as escla­
recedoras reflexões de C. MANGO, Byzantine Literature as
a Distorting Mirror, Oxford, 1975; H. G. BECK, Geschichte der
byzantinischen Volksliteratur, Munique, 1971; J. GROSDIDIER
DE MATONS, «Courants archaisants et populaires dans la
langue et la littérature», Actes du XVe Congrès international
des Etudes byzantines, Atenas, 1976; e W. HORANDNER,
Traditionelle und populare Züge in der Profandichtung der
Komnenenzeit, ibid. Sobre a educação e as suas mudanças,
além de J. Gouillard, «La religion des philosophes»,
Travaux et Mémoires, 6, 1976; R. BROWNING, «Enlightenment
and Repression in Byzantium in the Eleventh and Twelfth
Centuries», Past and Present, 69, 1975; e N. G. WILSON,
Scholars of Byzantium, Baltimore, 1983. Sobre Ana Comneno,
G. Buckler, Anna Comnena, Oxford, 1936.
Quanto ao mundo muçulmano, reportar-se às obras,
acima mencionadas, de M. Arkoun, N. Daniel, E. Sivan
e A. MÀALOUF. Acrescente-se, de M. ARKOUN, Pourune cri­
tique de la raison islamique, Paris, 1984. Sobre os contactos
com o Ocidente, Kh. SEEMAN (ed.), Islam and the Medieval
West, Nova Iorque, 1980. Sobre a «esclerose» cultural do
mundo muçulmano, ver as observações sugestivas de A. M.
TURKI, «Comment Ibn Khaldoun explique-t-il le double
phénomène de 1’essor et de la stagnation des sciences reli-
gieuses au Maghreb et dans 1’Espagne musulmane?», reed.
em Théologiens et Juristes de 1’Espagne musulmane, Aspects polé-
miques, Paris, 1982. Sem uma incondicional adesão, ler
Y. LACOSTE, Ibn Khaldoun: naissance de Fhistoire, passé du
tiers-monde, Paris, 1966.
Sobre os aspectos religiosos, ver acima as obras res­
peitantes à Cruzada e à Contracruzada.
Quanto a Bizâncio, L. CECONOMOS, La Vie religieuse dans
1’empire byzantin au temps des Comnènes et des Anges, Paris,
1918, envelhecido mas não substituído. Sobre as relações
com Roma, além das obras citadas de Fr. DVORNIK, ver
W. NORDEN, Das Papsttum und Byzanz, reed. Nova Iorque,
1959; V. Grumel, «Le patriarcat byzantin de Michel
Cérulaire à 1204», Revue des Études byzantines (REB), IV,
1946; J. DARROUZES, «Les documents byzantins du XIIe
siècle sur la Primauté romaine», REB, XXIII, 1965; e
A. DuCELLIER, L 'Église byzantine entre pouvoir et esprit, Paris,
1990. Sobre a imagem e a função do santo, P. MAGDA-
LINO, «The Byzantine Holy Man in the Twelfth Century».
The Byzantine Saint, Birmingham, 1981 (obra que, no con­
junto, deve ser consultada).

292
As transformações políticas e culturais do Próximo Oriente nos sécs. XII e xin

Quanto ao islão, ter em conta as obras gerais e os tra­


balhos citados acima sobre o islão e a Cruzada.
Sobre a quarta cruzada e as suas consequências, além
das obras já citadas de Ch. Brand, M. J. ANGOLD e H. Ahr-
WEILER, ver a bibliografia actualizada em D. E. QUELLER
e S. J. STRATTON, «A Century of Controversy on the Fourth
Crusade», Studies in Medieval and Renaissance History, 6,
1969; exposição pormenorizada em K. M. SETTON, The
Papacy and theLevant (1204-1571), 2 vols., Filadélfia, 1976.
Ver, além disso: N. OlKONOMIDES, «La décomposition
de 1’empire byzantin à la veille de 1204 et les origines de
1’empire de Nicée: à propos de la Partitio Romanie», Actes
du XVe Congrès..., Atenas, 1976; e A. Carile, «Partitio
Terrarum Imperii Romani», Studi Veneziani, 7, 1965. Impor­
tantes considerações teóricas em S. KlNDLIMANN, Die Erobe-
rung von Konstantinopel ais Politische Forderung des Westens
im Hochmittelalter. Studien zur Entwicklung der Idee eines
Lateinischen Kaisereiches in Byzanz, Zurique, 1969.
Sobre as consequências territoriais da cruzada, ver,
quanto aos estados gregos desmembrados, M. Angold,
A Byzantine Government in Exile, Oxford, 1974; A. Bryer,
TheEmpire ofTrebizond and the Pontos, Londres, 1980; S. KAR-
POV, LTmpero di Trebizonda, Roma, 1983; e D. NlCOL, The
Despotate ofEpirus, 2 vols., Oxford, 1957-1984, sem esque­
cer D. Zakythinos, LeDespotat grec de Morée, citado no capí­
tulo seguinte.
Sobre os estados latinos nascidos da Cruzada, a obra
de J. LONGNON, LEmpire latin de Constantinople et la
Principauté de Morée, Paris, 1949, continua a ser útil, mas
deverá ser actualizada com a leitura de A. CARILE, Per una
storia delíimpero latino di Costantinopoli (1204-1261), reed.
Bolonha, 1978; e de A. BON, La Morée franque. Recherches
historiques, topographiques et archéologiques, 2 vols., 1969.

293
17
O mundo rural
entre os sécs. xm e xv:
os progressos da dependência

7. Dificuldades e disparidades
na economia rural

■ Peso acrescido dos flagelos naturais e humanos

Viver da terra é sempre aleatório. No séc. xm, e sobre­


tudo no séc. xiv, os flagelos rurais tornam-se endémicos
em quase todos os países do Oriente: além das inunda­
ções e das secas, a malária faz então avanços decisivos,
seja porque terras inteiras, abandonadas por efeito da
queda demográfica, são alagadas por águas estagnadas
- e é este, sobretudo, o caso dos países muçulmanos
(vales baixos do Meandro e da planície da Cilicia, ou a
Beqaa libanesa), onde os sistemas de irrigação são fre­
quentemente deixados ao abandono pelos grandes pro­
prietários, mais interessados na renda do que no rendi­
mento da terra -, seja porque os movimentos do solo
provocam alteamentos das terras litorais que passam a
constituir um obstáculo ao escoamento das águas para o
mar. Observa-se este fenómeno na Albânia e no Epiro,
após os grandes sismos de 1268-1270. Hoje não medimos
certamente com rigor todas as consequências de uma crise
de malária que, no Oriente, só cessará no séc. xx: mor­
tes prematuras, enfraquecimento físico, decréscimo da
natalidade, etc., conduzem a uma baixa irremediável da
produtividade.
A partir de meados do séc. xrv, a peste abate-se regu­
larmente sobre o Oriente, sem que possamos avaliar as
perdas que aí causa. Mas as descrições de um Nicéforo
Grégoras ou de um João Cantacuzeno levam a pensar que
ela não foi aí mais clemente do que no Ocidente, mani­
festando-se com retornos ainda menos intervalados.
Mudanças sociais e confrontações políticas acrescem,
ainda, às destruições do banditismo, que arruina o cam­
ponês e rompe as suas relações com a cidade, e multi­
plicam as guerras desencadeadas pelos estrangeiros -

294
O mundo rural entre os sécs. xm e xv: os progressos da dependência

Francos, Eslavos, Turcos, Mongóis -, quando não acon­


tece estas rebentarem, num mesmo Estado, entre parti­
dos adversos. E este o caso das duas guerras civis bizan­
tinas, entre 1321 e 1328, e após 1341. Só o Egipto, por
essa época, escapa aos confrontos militares; mas também
é verdade que os Mamelucos - a soldadesca no poder -
já lhe dão muito que fazer.

Baixa demográfica, migrações e emigrações ■

Por outro lado, uma aristocracia cada vez mais ávida


junta as suas malfeitorias às da administração fiscal, sem­
pre mais exigente para com os contribuintes cujo número
se vai reduzindo: em Bizâncio como na Sérvia, os cam­
poneses, desencorajados, deixam as terras que muitas vezes
voltam ao estado de baldios, com frequência em defini­
tivo pela instalação nelas de nômadas com actividades
puramente pastoris. Na Moreia, os baldios desenvolvem-
-se. No séc. XV, Venezianos e duques de Atenas chegam a
disputar entre si a mão-de-obra albanesa para as suas pos­
sessões da Messénia e da Eubeia. Mesmo em Creta, as ter­
ras abandonadas multiplicam-se, sobretudo na sequência
das pestes e das revoltas dos nobres em meados do séc. xrv.
Torna-se necessário fazer vir Gregos insulares e até Armé­
nios. Em países eslavos e na Albânia, guerras locais e avi­
dez senhorial afastam camponeses e citadinos que, a par­
tir dos fins do séc. xm, começam a passar o Adriático à
procura de uma oportunidade. Fá-lo-ão cada vez mais, a
partir do momento em que a Peste Negra desbasta as
comunidades italianas, o que lhes proporciona, dos cam­
pos venezianos à Puglia, uma possibilidade de integração
encorajada pelos soberanos locais. A coincidência destas
partidas com o começo das migrações terrestres mostra
bem que se trata de movimentos provocados pela miséria
e a opressão; também deixa claro que os Turcos, ainda
longe destas regiões, não estão na sua origem, ao con­
trário do que se diz com frequência.
No que respeita aos países do islão, a situação não é O quadro mais negro é, porém, apresentado
pelo Império bizantino: a Macedónia, país
melhor. Na Anatólia, a fuga das populações cristãs acen­ outrora rico e povoado, não passa no final
tua-se no termo do séc. xm e começo do séc. xrv, culmi­ do séc. XIII - momento em que o historiador
nando a desorganização de um território já muito deser- Nicéforo Grégoras o descreve - de uma den­
sa floresta atravessada por assustadores ca­
tificado mesmo antes da invasão seljúcida. Quanto ao minhos e ribeiros cujas pontes se deixou
Egipto, os primeiros sultões mamelucos souberam man­ ruir. Os camponeses, organizados em gru­
ter aí uma situação mais sã, mas a população começa irre­ pos de autodefesa contra os bandoleiros
omnipresentes, vivem miseravelmente nalgu­
mediavelmente a decrescer a meio do séc. xiv, com aban­ mas clareiras que persistem em cultivar.
dono das terras e diminuição sensível da produção agrícola.
O Tesouro, que recolhia 10 800 000 dinares de kharâdj Kharâdj: ver p. 176.
em 1298, não recebe mais do que 9 428 000 em 1315,
caindo a receita para 1 800 000 em 1520.

295
■ Um arcaísmo tecnológico persistente

Ora, se exceptuarmos um Egipto comercialmente flo­


rescente até ao final do séc. xv, todo o Oriente continua
Sobre Gémiste Pléton: ver p. 354. a viver sobretudo da terra: cerca de 1440, Gémiste Pléthon
sublinha que, no Peloponeso, a maior parte da popula­
ção vive da produção agrícola. Nestas condições, os Estados
e as aristocracias não podiam deixar de acentuar a com­
petição, que há séculos os opunha, pelo controlo das ter­
ras e dos homens, os quais, sendo cada vez mais raros,
tinham um valor cada vez maior. Ao mesmo tempo nota-
-se, pelo menos nos Balcãs, um facto aparentemente para­
doxal: mediante a prática de queimadas na periferia das
aldeias, os camponeses esforçam-se por alargar a superfí­
cie cultivável; mas trata-se, tão-só, de substituir terras anti­
gas que se esgotam por falta de progressos agronómicos
e também de contentar a aristocracia que procura com­
pensar os seus decrescentes rendimentos tradicionais
abrindo novas terras. Os poderosos temem, quase tanto
como os pobres, os baldios e a oligantropia.

2. Camponeses dependentes
e grandes proprietários tradicionais

■ A paréquia bizantina: uma aparente liberdade

Em Bizâncio, entre os camponeses que, fugindo ao


imposto ou aos diferentes perigos, se tinham tornado pare-
cos emigrando para as terras dos ricos, e os que o pró­
prio Estado tinha instalado em terras desertas, já não havia
: qualquer lugar para o campesinato livre tal como existia
no séc. X. Somente raras regiões, como a costa dálmata,
onde os ricos se interessam mais pelo comércio do que
pela terra, e onde nenhum Estado centralizado pode fazer
• sentir a sua autoridade, contam ainda, no séc. xv, com
i pequenos e médios camponeses independentes.
Por todo o lado, aliás, nos países eslavos como no
Império Grego, o destino comum do camponês é o de ser
pareço. E certo que este estatuto não implica nenhuma
servidão pessoal: o pareço é e será sempre um homem
livre aos olhos da lei. Em Bizâncio, os parecos depõem
em tribunal, dirigem requerimentos ao Imperador e até
intentam processos contra os vizinhos ricos, leigos ou ecle­
siásticos. Além disso, o pareço tem direitos muito exten­
sos sobre a terra: dependa do Estado ou dum grande pro-

296
O mundo rural entre os sécs. xiii e XV: os progressos da dependência

prietário, nada o impede nunca de vender, doar ou tro­


car a sua posse. Sempre que o «senhor» deseja acrescen­
tar uma terra de pareço ao seu domínio pessoal, não pode
tomá-la directamente, tendo, antes, de a comprar regu­
larmente. A terra do pareço é ainda um bem hereditário,
o que de resto corresponde ao interesse do senhor, que
assim dispõe de uma mão-de-obra estável: o pareço, dono
do seu património (gonikon) , dota as filhas e transmite as
terras aos filhos. De facto, os direitos do senhor sobre estas
terras são muito limitados: só as recupera se o camponês
foge ou morre sem herdeiros. Por outro lado, quando o
pareço vende a sua terra a um terceiro, este tem de pagar
ao senhor uma taxa anual, o epitélio, destinada a com­
pensar as rendas que o pareço lhe teria pago. Como a taxa
do epitélio é bastante elevada, por vezes até superior ao
preço de venda, o poderoso tem um particular interesse
em favorecer a passagem das terras de mão em mão.

Real dependência do pareço ■

Por trás desta aparência de liberdade esconde-se, no


entanto, uma dependência real e sempre crescente. Com
efeito, seja ao Estado seja a um grande proprietário que
lhe tenha sucedido, o pareço tem sempre de pagar um
foro. Pela força das coisas, o facto de ser um vizinho rico
a cobrar-lhe a prestação depressa é interpretado como
uma manifestação de dependência de que o poderoso se
aproveita largamente. A partir do séc. XIII, ricos proprie­
tários usam o seu «peso social» para comprar terras aos
parecos a preços irrisórios, ao passo que outros obrigam
os camponeses a pagarem os seus tributos pessoais. Além
disso, os ricos consideram o foro como um direito impres­
critível: o camponês, que pode dispor da sua terra de toda
e qualquer forma, só não pode deixá-la pura e simples­
mente, já que isto se traduziria em diminuir os recursos
do rico. Este facto, que decorre da ideia tradicional segundo
a qual a terra deve ser sempre cultivada a fim de garan­
tir o pagamento das obrigações que sobre ela incidem,
implica portanto um certo vínculo do pareço à gleba,
ainda que não lhe esteja juridicamente ligado: para a aban­
donar, terá de a vender. Ora nem sempre é fácil encon­
trar um comprador, numa altura em que o homem é mais
raro do que a terra. Assim, na prática, o pareço não é
absolutamente livre nos seus movimentos. Se foge, o grande
proprietário ou o Estado podem persegui-lo e obrigá-lo a
reintegrar a sua terra. A partir do séc. xm, os poderosos
atribuem-se assim um verdadeiro direito de disposição
sobre os respectivos camponeses. Procede-se a doações de
parecos, em geral com as terras que cultivam, mas por
vezes também separadamente; e o Estado dá o exemplo

297
com os demosiários que ainda lhe restam. E certo que,
por efeito da falta de mão-de-obra, cada qual tenta cha­
mar a si o pareço do outro. A legislação imperial trata
então de proibir tais práticas, o que acentua ainda mais
o vínculo à gleba: em 1319, Andrónico II determina que
«ninguém receba no seu domínio o pareço de outrem».

■ Os outros camponeses: um viveiro de homens disponíveis

Quanto ao resto, o pareço, proprietário estável, era


muito favorecido relativamente aos demais camponeses.
Estão neste caso, nas terras de senhorio, os trabalhadores
chamados douleutes ou douloparecos e, por vezes, mistihoi
(assalariados) que, não possuindo nada de próprio, alu­
gam os seus braços por salários de miséria. Ao mesmo
tempo, circula por todos os Balcãs um certo número de
camponeses que, por razões diversas — empurrados pelo
avanço dos Turcos ou dos Eslavos, evadindo-se ao paga­
mento dos tributos ou das rendas, com medo da justiça
ou das epidemias - abandonaram as suas terras e vaga­
bundeiam sem cessar. Nada possuindo, são considerados
como «desconhecidos do fisco». Por isso, são comum­
mente designados por «livres» (éleuthères em país grego,
svobodnici nas regiões eslavas). Bem entendido, os pro­
prietários estão sempre atentos à chegada dos éleuthères,
que se esforçam por atrair aos seus domínios; se eles se
deixam convencer, são instalados de preferência nas ter­
ras pessoais do senhor onde se tornam numa espécie de
rendeiros submetidos a uma renda relativamente ele­
vada. Muito pobres à partida, é-lhes quase impossível
enriquecer, porque o proprietário prefere aumentar os
domínios dos parecos que, possuindo geralmente um
nível cultural superior, são mais capazes do que eles de
valorizar as terras. Uma tal situação não encoraja o éleu-
thère a perseverar: como nunca chega a confundir-se com
os parecos, cujos privilégios económicos não partilha,
não pode também ser onerado com as mesmas limita­
ções de liberdade, tanto assim que abandona frequen­
temente o seu emprego na esperança de encontrar melhor
noutro lado. Deste modo se explica o paradoxo de um
país padecendo de oligantropia endémica, onde vagueiam
incessantemente bandos de camponeses sem trabalho,
que alimentam as quadrilhas de salteadores que infes­
tam caminhos e florestas.

■ Os campos egípcios no tempo dos Mamelucos

Também o mundo muçulmano é povoado por cam­


poneses juridicamente livres. No Egipto, o fellâh, muitas

298
O mundo rural entre os sécs. xni e xv: os progressos da dependência

vezes cristão, tem em geral de pagar as suas rendas a um


militar, emir ou mameluco de um emir, que detém a
na qual trabalha. Até 1315, distinguiam-se cuidadosamente
as taxas cobradas sobre a terra e a capitação pessoal devida
pelo camponês (tributo designado por jawâlí). Mas, além
disso, o fellâh tinha de entregar ao muqtâ’um certo número
de «presentes» (diyâfà), em dinheiro ou em natureza, que
muitas vezes eram abusos intoleráveis. Não escapando ao
movimento geral de despovoamento que caracteriza o
final da Idade Média, o Egipto assistiu nos seus campos a
uma crescente deserção das terras, semelhante à que se
observou nos Balcãs. Entre outros objectivos, o sultão al-
-Nâsir Muhammad ibn Qalâ’ún tinha assim a intenção de
aliviar a sorte do campesinato quando, em 1315, ordenou
um recenseamento geral dos Egipto. A partir de
então, os «presentes» e a capitação deveriam ser integra­
dos na importância total devida pela iqtâ’. Esta medida
foi, sem dúvida, favorável aos camponeses, mas agravou o
êxodo rural, porque os fellâhs, podendo desde então ale­
gar que a capitação decorria do domínio e não da sua
pessoa, fugiam a fim de escapar ao seu pagamento. Tal
como nos países cristãos, a extrema mobilidade do mundo
rural só é limitada pela necessidade de não morrer à fome;
mas é maior ainda no Egipto, cujas cidades, com um
comércio activo, são uma meta apetecida para os campo­
neses fugitivos.

O enquadramento dos campos no Império Otomano ■

No império otomano, a partir dos fins do séc. xrv, esta­


belece-se uma estrita distinção social entre a casta militar,
que serve nas forças armadas e não paga imposto, e o
mundo camponês, povoado por reâya sobre quem incidem
taxas diversas, sejam eles cristãos (reâya-zimmi) ou muçul­
manos (reâya-muslim). Em virtude do princípio segundo
o qual «um filho de camponês é um camponês», é a par­
tir de então quase impossível a este último mudar de con­
dição. Além disso, também aqui o camponês nunca tem
qualquer contacto efectivo com os agentes do Estado e
paga todas as suas taxas ao detentor da concessão militar,
ou timar, onde vive. E verdade que ele tem extensos direi­ Timar: ver p. 308.

tos sobre a sua terra, a que se dá o nome de bashtina se


é cristão, e de çiftlik se é muçulmano: pode vendê-la, na
condição de não a dividir e de ter obtido autorização do
timariota, e pode transmiti-la aos filhos. No entanto, não
é um autêntico proprietário: juridicamente, o reâya ape­
nas detém sobre a terra um direito de uso (tessarufiri) con­
dicionado pelo pagamento ao timariota de diversas pres­
tações: a taxa do tapu, específica do reâya e pagável em
dinheiro, numerosas corveias, algumas raras taxas em géne-

299
ros, às quais se junta, no caso dos cristãos, o imposto tra­
Haraç: forma turca do kharâdj. dicional do haraç. Na realidade, o timariota aproveita-se
da situação e encaixa muitos outros rendimentos dado
que, desde o final do séc. xv, os grandes proprietários são
cada vez mais os donos das funções do Estado, o que lhes
permite confundir os impostos públicos e as prestações
privadas, já sem contar com certas multas judiciais que,
em princípio, apenas seriam devidas ao Estado. E certo
Em 1432, um timariota da Albânia, além que este último ainda sabia reagir: em 1475, Maomé II
de diversas taxas sobre o trigo, a cevada, a ordena que sejam recopiadas todas as cartas de doação
vinha, o azeite e os porcos, cobrava direitos
aduaneiros e taxas sobre o mercado. constantes dos registos, com menção de todos os rendi­
mentos dos bens concedidos, a fim de pôr termo às mal­
versações e humilhações, sobretudo gritantes nos territó­
rios europeus do Império onde os camponeses cristãos
eram especialmente oprimidos. Mas a sorte dos campo­
neses não deixou de piorar: nos séculos seguintes, com o
enfraquecimento do Estado, a independência acrescida
dos beis e o aparecimento de verdadeiras autonomias
locais, o camponês torna-se verdadeiramente num joguete
nas mãos de proprietários rapaces que já não têm que
prestar contas a ninguém. A prática do rapto das crian­
Os janízaros (yeniçeri=jovem sol­ ças (devshirmê), visando a alimentar o corpo dos Janízaros,
dado) constituem a infantaria contribuía para desbastar ainda mais as fileiras de um cam­
da guarda recrutada, graças pesinato já decadente antes da conquista.
ao devshirmé, entre os cristãos.

■ O principado franco da Acaia

Na Acaia franca, admitia-se desde o início «que os povos


pagassem e servissem como era uso durante o senhorio
do imperador de Constantinopla», sendo garantidos aos
vencidos a lei, a fé e os costumes dos «Romanos». Nas ter­
ras dos arcontes gregos, não havia pois nenhum problema:
a condição dos camponeses manteve-se a que era em 1204,
evoluindo depois, como nos territórios libertos, no sen­
tido de uma sujeição acrescida. Pode mesmo dizer-se que,
com a progressiva integração dos arcontes na classe nobre,
tal como a concebiam os Latinos, a sua dominação sobre
o mundo rural acentuou-se relativamente mais do que nos
países que permaneceram gregos. O problema era mais
complexo nas terras doadas como feudos aos cavaleiros e
barões francos. Encontram-se aí alguns raros camponeses
livres, chamados homens francos, que se limitam a pagar
o acróstico, mas a população rural é quase inteiramente
constituída pelos «vilãos dos casais», de facto os antigos
parecos, que os censos do séc. xrv denominam, aliás, por
vezes, «parigi» ou «yparici». As rendas que devem ao senhor
baseiam-se no cadastro bizantino: trata-se do acróstico, tri­
buto complexo que agrupa o imposto predial e um certo
número de direitos secundários (exenium, ou dádiva
gratuita, dízima sobre os porcos, etc.); além disso, o

300
O mundo rural entre os sécs. xni e xv: os progressos da dependência

senhor cobra o gemorum, parte da colheita que corres­


ponde ao «terrage» francês, uma prestação sobre as vin­
dimas, os mostophoria, e um direito em espécie sobre o
trigo, o ycomodium; finalmente, exige dos camponeses um
certo número de corveias, quase desconhecidas na época
bizantina.
No total, os camponeses da Moreia não parece terem
tido de pagar mais do que antes de 1204; as suas liber­
dades é que são substancialmente limitadas. Primeiro, em
virtude do sistema feudal, vivem agora no quadro de um
senhorio de que dependem inteiramente; depois, estão
francamente vinculados à terra, que não podem abando­
nar sem autorização senhorial, de que carecem também
para se casarem ou casar as filhas. De resto, o senhor dis­
põe do vilão e pode, por exemplo, cedê-lo a um terceiro.
O camponês já não é verdadeiramente um homem livre,
até porque pode ser resgatado. Entretanto, também não
é um servo: a sua terra não pode ser vendida à força em
caso de endividamento, pode dispor livremente dos seus
móveis e dos seus animais e, além do seu terreno, pode
tomar outras terras de arrendamento. O vilão da Acaia
tem portanto um estatuto intermédio entre o do pareço
bizantino e o do camponês ocidental.

Os territórios venezianos: ■
vilãos senhoriais e vilãos da Comuna

No império veneziano, um princípio prevalece desde


os primeiros tempos: a Comuna é a proprietária eminente
de todas as terras. Efectivamente ela reserva para si impor­
tantes territórios (quase todo o de Coron e Módon, uma
grande parte da planície de Eubeia, 800 km2 em tomo de
Cândia, em Creta). Os antigos demosiários bizantinos,
transformados em «vilãos da Comuna», conservam o seu
estatuto. Por princípio, a República reservou, de resto,
para si a maioria dos camponeses, deixando o menor
número possível aos seus feudatários: em 1307, o Grande
Conselho de Veneza fixa em dez o número de parecos de
que pode dispor cada milícia. E verdade que todos os
parecos estão sujeitos às mesmas obrigações: o acróstico,
como na Moreia, o capinicho, imposto por domicílio her­
dado do Ãa/míÃon bizantino e, em Creta, o vilanazio, que,
como o nome indica, é inerente à condição camponesa;
além disso, o pareço deve toda a espécie de serviços ou
corveias, agrupadas sob o nome de angarie.
Entretanto, o vilão da Comuna é um privilegiado:
embora não podendo abandonar Creta, tem o direito de
circular à sua vontade em toda a ilha e é-lhe solenemente
prometido que jamais será confundido com os outros

301
vilãos, o que deveria constituir para ele uma permanente
obsessão. Em contrapartida, o vilão senhorial, que tem
um estatuto idêntico nos domínios dos arcontes gregos
e dos feudatários venezianos, não passa de um objecto
pelo menos em Creta, já que a sua situação é melhor no
Negroponte (Eubeia) e na Moreia veneziana: não só é
obrigado a residir nas terras do senhor, como este o pode
vender, alugá-lo ou emprestá-lo temporariamente, por
exemplo na época das colheitas ou das vindimas. Se aban­
donar o domínio, as autoridades encarregam-se de o per­
seguir e de o devolver à força. Depende tanto mais do
senhor quanto é este que está incumbido da cobrança
das taxas. Enfim, não pode dispor dos bens que possui e
o seu direito de comercializar os respectivos produtos é
limitado.
Como se vê, o regime veneziano, partindo do estatuto
bizantino do pareço, levou-o até às últimas consequên­
cias. O que se passava nas terras dos nobres venezianos
encorajou mesmo os arcontes gregos a agravarem a con­
dição dos respectivos camponeses. Daí uma atmosfera
geralmente explosiva sobretudo nos campos cretenses:
fugas, criminalidade, assaltos, revoltas abertas são moeda
corrente. Os camponeses colaboram, por vezes, com os
bandoleiros, eles próprios camponeses esbulhados ou em
fuga. O êxodo rural é tal que no séc. xrv a produção agrí­
cola se acha ameaçada, ao mesmo tempo que muitos feu­
datários estão completamente arruinados. A política de
aproximação com a comunidade grega, sensível desde
meados do século, permitirá uma importante retoma da
agricultura sem, no entanto, eliminar os baldios, ainda
frequentemente assinalados no séc. xv.

3. Esforços e fracassos dos estados:


a grande propriedade condicionada

■ Em Bizâncio: a tendência para a patrimonialização

Para esta crescente sujeição do campesinato, reco­


nhecemos por toda a parte uma mesma causa: o desen­
volvimento da grande propriedade, facto genérico que,
no entanto, é preciso matizar.
O Oriente conhecera desde sempre uma propriedade
patrimonial clássica. Em Bizâncio, na época dos Laskaris
e depois dos Paleólogos, a eliminação progressiva dos
médios proprietários, incapazes de defrontarem as con-

302
O mundo rural entre os sécs. Xlll e xv: os progressos da dependência

trariedades naturais, concentrou o património entre as


mãos dos mais poderosos. Pela mesma altura, os senho­
res latinos da Moreia, que necessitavam do apoio dos gran­
des proprietários gregos, os arcontes, não só lhes garan­
tiram a posse tranquila dos seus bens patrimoniais, mas
também, fosse por ignorância, fosse para mais lhes agra­
dar, deixaram que eles patrimonializassem os bens con­
dicionados, nomeadamente os pronoiai detidos no momento
da conquista. Quando a Moreia voltou para as mãos dos
Bizantinos, estes foram obrigados a reconhecer o facto
consumado e a conceder aos arcontes novos benefícios,
como a imunidade, parcial ou total, dos respectivos bens
patrimoniais. Em 1393-1394, o arconte Mamonas consi­
dera-se proprietário de Monemvasia e, no começo do
séc. xv, um cronista assevera que os arcontes da Moreia
não obedeciam ao governo «a não ser na medida em que
a coisa lhes fosse proveitosa».

Os países eslavos: Sérvia, Bósnia, Rússia ■

Nos países eslavos, a situação é semelhante. Na Sérvia,


a propriedade patrimonial, a que se dá o nome de bash-
tina, é um bem de que o possuidor pode dispor plena e
inteiramente, como o provam as duas versões do Código
de Stepan Dusan, de 1349 e 1354. Os czares sérvios têm,
é certo, tendência para restringir este tipo de proprie­
dade, que só pode ser confiscada em caso de alta traição.
No entanto, acontece eles fazerem doações a título de
bashtina, e a existência de bens patrimoniais é ainda ates­
tada em 1447, numa lei do último déspota sérvio, Jorge
Brankovic. Mas é, sem dúvida, na Bósnia que o patrimó­
nio se mantém mais florescente: lugar de eleição de uma
nobreza muito poderosa e sem nunca ter conhecido
nenhum sistema de propriedade condicionada, aí se vêem
os grandes proprietários disporem soberanamente dos
seus bens, completamente isentos de quaisquer prestações
e somente ligados ao rei por um vínculo pessoal que os
obriga, por exemplo, a fazerem campanha no caso em
que o soberano tome a iniciativa de partir para a guerra.
Trata-se de um sistema tipicamente eslavo (continua
por provar a influência da feudalidade ocidental), cujo
modelo acabado se manifesta, pela mesma ocasião, em
terra russa. Titulares de propriedades plenas, sobre as
quais o príncipe faz todavia incidir impostos, os boiardos
são livres de abandonar, em qualquer momento, o serviço
do soberano, dispondo de todos os seus bens. Depois de
se terem aproveitado desta situação para atraírem os boi­
ardos dos outros príncipes - sobretudo os de Tver e de
Riazan -, os grandes príncipes de Moscovo, a partir do

303
reinado de Ivan III (1462-1505), reduziram cada vez mais
aquela perigosa liberdade, exigindo dos seus nobres um
juramento de fidelidade cuja violação implica uma impie­
dosa confiscação. Desde então, a Rússia moscovita enca­
minha-se para a eliminação pura e simples dos bens patri­
moniais.
No que respeita aos países cristãos, uma conclusão se
impõe: a propriedade patrimonial manteve-se neles em
todo o lado, mas é nas regiões menos submetidas à influên­
cia bizantina - Moreia, Bósnia, Rússia - que conhece o
maior desenvolvimento.

■ A grande propriedade nos países islâmicos

Pelo contrário, o património não existe nos países


muçulmanos. No Egipto mameluco, apenas é conhecido
o sistema condicional da iqtâ’, enquanto no antigo sulta-
nato seljúcida, o aparecimento dos beilhiques, no início
do séc. xiv, significa a dissolução da autoridade central e
não a patrimonialização na base. Neste aspecto, foi o impé­
rio otomano que introduziu a noção de domínio patri­
monial: se a grande maioria das terras são consideradas
como domínios do Estado (erz-i-mirie), o novo regime reco­
nhece, no entanto, a existência de terras privadas (e-vz-i-
-mulk), constituídas sobretudo pelas doações feitas aos
generais e aos altos funcionários do Estado (gazi-mulk).
Desigualmente repartidos segundo as províncias (não exis­
tem na Albânia até ao final do séc. xv, mas já na Sérvia,
Bulgária e até na Grécia se desenvolvem enormes mulk
desde o séc. Xiv), estes grandes proprietários cobram as
Timar, timariota: ver p. 308. mesmas taxas que os timariotas, mantêm os seus campo­
neses numa estreita sujeição e sobretudo não estão adstri­
tos a nenhuma obrigação militar. No entanto, eles só pas­
sam a ser verdadeiramente perigosos para o Estado a partir
do séc. xvi, tendo até então o seu número sido estrita­
mente limitado pelos sultões.

■ Destinos da propriedade condicionada:


a pronoia bizantina

De qualquer modo, o sistema patrimonial é sempre


mal visto pela autoridade política à qual impede um ver­
dadeiro controlo da terra. Por isso, aqui e ali, sem pode­
rem já combater frontalmente a grande propriedade, os
Estados pretendem impor-lhe, na medida do possível, con­
dições garantindo com rigor o exercício do seu direito de
fiscalização. Encorajam o desenvolvimento das proprie­
dades condicionais, cujo protótipo é a pronoia bizantina.

304
O mundo rural entre os sécs. xni e xv: os progressos da dependência

O Império de Niceia, muito hostil à aristocracia em


geral, e sempre em busca de novos recursos militares, favo­
receu a pronoia sem nunca deixar de lembrar firmemente
que se trata de uma propriedade eminente do Estado, não
podendo, por conseguinte, ser alienada. Em 1233, João
Vatatzés tem o cuidado de sublinhar que «as terras dadas
em pronoia se encontram sempre sob controlo do Estado»,
substituindo-se o pronoiário a este na colecta das rendas
devidas pelos camponeses. Mas a partir de Miguel VIII, o
imperador teve de reduzir o lastro: a fim de se mobilizar
a aristocracia nesses tempos de reconquista, admitiu-se a
pouco e pouco o princípio da hereditariedade dos pro-
noiai, em termos de, como escreve Paquimero, «se passar Sobre Paquimero: ver p. 355.
a ter a título perpétuo pronoiai vitalícios». Mas a heredi­
tariedade mantém-se como um favor e não como um
direito; a pronoia continua a ser um bem precário que o
soberano pode recuperar e do qual um imperador como
João VI Cantacuzeno (1341-1354) exige ainda, com rigor,
o serviço militar.

Entretanto, as guerras civis do séc. xiv envolveram um


afrouxamento do controlo do Estado. A aristocracia apro­
veitou-se disso para obter a hereditariedade completa e
uma imunidade fiscal acrescida, enquanto os mosteiros
poderosos se aliavam aos grandes pronoiários para se apro­
priarem dos pequenos e médios pronoiai, assim impossi­
bilitados de prestar o serviço das armas. Após a vitória
turca de Maritsa, em 1371, o Estado procurou reagir secu-
larizando uma grande parte dos bens monásticos para os
redistribuir sob a forma de pronoiai'. para garantir um ser­
viço militar cada vez mais evanescente, o poder cede então
aos pronoiários quase todos os seus privilégios. No séc. XV,
a família Pléthon, com possessões na Moreia, acumula as
prerrogativas clássicas do pronoiário e os direitos admi­
nistrativos e judiciais que o Estado lhe delega. Para lem­
brar que a pronoia, cada vez mais semelhante ao patri­
mónio, permanece essencialmente uma terra do Estado,
apenas subsistem a interdição de a alienar ou de a par­
celar e a obrigação teórica de prestar o serviço militar.

Destino da propriedade condicionada: a pronija eslava ■

Desde o final do séc. xm, a Sérvia e, sem dúvida, a


Bulgária tinham adoptado o mesmo sistema de concessão
precária, aqui conhecido pelo nome de pronija. Em 1349,
o Código de Dusan recorda que é proibido vender ou
comprar uma pronija e que esta está rigorosamente ads­
trita ao serviço militar, mas, ao mesmo tempo, a heredi­
tariedade da pronija impõe-se aos soberanos sérvios: pode
ser livremente transmitida, mesmo em dote, apenas estando

305
interdita a sua devolução à Igreja. Além disso, o domínio
sobre o campesinato é muito mais nítido do que em
Bizâncio. Por um lado, o pronoiário percebe anualmente
a taxa designada por «ouro imperial», a que mais tarde
será dado o nome de sotché, mas exige também dos pare-
cos pesadas e longas corveias, sem dúvida em razão do
menor desenvolvimento da economia monetária. Por outro,
talvez por efeito de influências ocidentais, há a menção
de uma terra cedida em 1361 a título de pronija por um
nobre pronijário, o que indicia uma verdadeira pirâmide
feudal pouco conforme ao modelo bizantino. Mas até ao
fim do reino sérvio, a pronija, mesmo hereditária, é um
bem do Estado cedido a título precário. Assim, nas anti­
gas terras sérvias passadas para o domínio da Bósnia, quem
quer que detivesse uma pronija sempre se esforça por trans-
formá-la em bashtina.

■ Na Rússia

Um sistema análogo aparecia, na mesma época, em


Moscóvia onde, para melhor conter os boiardos, Ivan III,
a partir de 1470, concede aos seus fiéis terras da coroa,
denominadas pomiechtchie, e cujo detentor, ou pomiechtchik,
é um verdadeiro beneficiário sempre revogável. Este maior
controlo pelo Estado tem, porém, o reverso da medalha:
o camponês fica cada vez mais amarrado ao domínio
donde, no final do séc. xv, não pode sair mais do que
uma vez por ano, ao mesmo tempo que, crescentemente
endividado perante o grande proprietário, tem de se com­
prometer a trabalhar para ele todos os dias do ano. O cam­
ponês só consegue escapar a esta servidão por dívidas eva­
dindo-se para as terras do Sul, depois da reconquista destas
aos Mongóis.

■ Tentativas de resistência do Estado no Egipto

O islão conhecia, desde a época clássica, um sistema j


semelhante - o iqtâ\ No Egipto, quando o sultão Lâjin j
subiu ao poder em 1296, com excepção das terras reser- j
vadas ao soberano e aos seus mamelucos reais, todas as •
terras cultiváveis estavam concedidas em iqtâ'aos emires, <
aos seus mamelucos, e à cavalaria não mameluca (ajnâd \
al-halqd). Os emires, cujas içtô’podiam englobar até dez =
aldeias, redistribuíam uma parte delas aos seus próprios
mamelucos, o que lhes dava um temível domínio sobre a i
região e os homens. Por duas vezes, em 1298 e em 1315, |
os sultões procederam a uma redistribuição das iqta (rawkL |
boa parte das quais tinha sido indevidamente anexada por |
certos emires; especialmente em 1315, tentou-se reduzir |

306
090509050005060310010801010002000000020002235353020002010248232323232353010001000002000200020002
O mundo rural entre os sécs. xni e xv: os progressos da dependência

o poder dos emires reatribuindo-lhes iqtâ ’ novas e disper­


sas do alto ao baixo Egipto, ao mesmo tempo que as pos­
sessões directas do sultão duplicavam e que especiais recur­
sos eram afectados ao pagamento dos funcionários civis.
A redistribuição de 1315, que serviu de base à administra­
ção fundiária do Egipto até ao final do séc. xv, permitiu
aos sultões restabelecer firmemente a sua autoridade, mas
o regime fundamentalmente militar dos mamelucos saiu
enfraquecido: apesar da concessão de moratórias às dívi­
das e de diversas outras vantagens, emires e mamelucos
não cessaram de empobrecer, num contexto de êxodo
rural e de decadência agrícola.

Estado e concessões no Império Otomano: ■


o sistema dos timars

Os Otomanos, nascidos de um mundo seljúcida que


conhecia bem a iqtâ \ e posteriormente instalados nas anti­
gas regiões bizantinas onde se tinha desenvolvido a pro-
noia, adoptavam entretanto um sistema análogo. O prin­
cípio assenta no facto de não haver separação entre o
regime fundiário e o regime administrativo do Império:
este último, antes de mais destinado a alimentar o esforço
de guerra, baseia-se inteiramente nos rendimentos de ter­
ras que, na sua esmagadora maioria, são propriedade do
Estado (erz-i-mirie). E este património público que, con­
tabilizado no amanhã da conquista, vai ser redistribuído
sob a forma de concessões — os timars. Pelo menos 90%
delas são timars de espada, atribuídas a cavaleiros ou sipa-
his, sendo o resto constituído por timars de ofício, que sus­
tentam os funcionários civis e religiosos, por exemplo os
cádis e mesmo os bispos. Conquistada uma província, todas
as terras são classificadas num registo geral (mufassai def-
teri), sem com isso serem confiscadas aos seus antigos pro­
prietários. Por pouco fiéis que sejam, os antigos titulares
de bashtina ou de pronoia podem perfeitamente tornar-se
timariotas, sem que lhes seja exigida a conversão ao islão,
pelo que a conquista turca não subverte verdadeiramente
os quadros sociais das terras conquistadas. Em 1432, em
335 timariotas registados na Albânia, somente 100 são
Turcos vindos da Ásia Menor, ao passo que 175 são
Albaneses convertidos e 56 são indígenas que permane­
ceram cristãos, sem contar com os quatro timars atribuí­
dos a bispos. Entretanto, ganhos pelo ambiente islâmico
e conscientes das vantagens sociais e morais de uma ade­
são ao islão, quase todos os timariotas cristãos lhe estão
convertidos pelo final do séc. xv.
Seja quem for o seu titular, o timaré portanto um bem
público concedido em contrapartida de um serviço, na

307
maior parte dos casos, militar. O timariota não é verda­
deiramente um proprietário e apenas usa o título de
«senhor da terra» (sahib-i-erz), o que não lhe confere o
direito de vender, doar, ceder ou hipotecar o seu bem.
Além disso, o serviço a prestar, proporcional ao valor fis­
Quanto aos timars por inerência de ofício, cal do timar, é absolutamente obrigatório: se o timariota
a sua titularidade limita-se ao tempo de que não tenha dado resposta à primeira requisição, não
exercício da função: qualquer vizir,
qualquer cádi, qualquer bispo destituído toma a iniciativa de se pôr às ordens do subasi, governa­
perde automaticamente o seu benefício. dor militar do seu distrito, a concessão é-lhe retirada e
atribuída a outro sipahi.
É certo que os timars são muito desiguais: o pro­
priamente dito é um bem cujo rendimento não ultrapassa
anualmente 20 000 akçe, utilizando-se o termo zeamet no
caso das concessões que rendam entre 20 000 e 100 000
akçee hase no caso dos domínios com um rendimento supe­
Akçe: ver p. 323. rior a 100 000 akçe. O que é grave é que zeamet e hase são
geralmente atribuídos aos altos funcionários, governado­
res de distritos ou de províncias que acumulam assim nas
suas terras os direitos do proprietário e as prerrogativas
delegadas pelo sultão. Desde logo se explica o açambar-
camento progressivo dos direitos régios, financeiros e judi­
ciários, que os grandes timariotas aditam aos direitos que
percebem normalmente dos camponeses; tanto mais quanto,
salvo indignidade, o timar é hereditário. E preciso, entre­
tanto, esperar pelo séc. xvn para se ver a autoridade cen­
tral espezinhada pelos beis e paxás. No séc. XV, o sistema
do timar representa, bem pelo contrário, uma eficaz recu­
peração pelo Estado do controlo do regime das terras.
Com todas as necessárias matizes, os campos do Oriente,
no fim do séc. XV, não deixam de ser caracterizados por
dois factos gerais: a crescente sujeição do campesinato e
o desenvolvimento de uma aristocracia fundiária cada vez
mais poderosa.

Para aprofundar este capítulo

Sobre os grandes flagelos no Oriente, na falta de uma


síntese recente, cfr. J.-M. Biraben, Les Hommes et la Peste
en France et dans les pays européens et méditerranéens, 2 vols.,
Paris-Haia, 1976. Sobre as fomes no Egipto, G. WlET, Le
Traité des famines de Maqrizi (tradução precedida de uma
importante introdução), Leiden, 1962.
Sobre a evolução demográfica, P. TOPPING, «Albanian
Settlements in Medieval Greece: Some Venetian testi-
monies», Charanis Studies, Rutgers Univ. Press, 1980; A.

ms
O mundo rural entre os sécs. xni e xv: os progressos da dependência

DUCELLIER, «Les Albanais dans les colonies vénitiennes au


XVe siècle», LAlbanie entre Byzance et Venise, já citado, e
«Démographie, migrations et frontières culturelles dans
les Balkans de la fin du Moyen Age au début de 1’époque
moderne», Ta Historika, III, 5, Atenas, 1986 (em grego).
Sobre as migrações balcânicas transadriáticas, S. ANSELMI,
«Schiavoni e Albanesi nelFagricoltura marchigiana dei
sec. XIV-XV», Le Marche e lAdriatico orientale: economia,
società, cultura dal XIII secolo al primo Ottocento, Ancona,
1978; e A. DUCELLIER, «Uétablissement des Albanais dans
la région d’Ancône. Aspects sociaux, économiques et cul-
turels (vers 1400-vers 1450)», Mercati, Mercanti, Denaro nelle
Marche (sec. XIV-XIX), Ancona, 1989.
Sobre a vida rural no mundo balcânico, A. Laiou-Tho-
MADAKIS, Peasant Society in the Late Byzantine Empire. A Social
and Démographie Study, Princeton, 1977; este livro, cujas con­
clusões não deverão ser tornadas extensivas ao conjunto
da região, não exclui o recurso aos trabalhos clássicos de
G. OSTROGORSKI, Pour 1’Histoire de la féodalité byzantine, já
citado; e Quelques problèmes d’histoire de la paysannerie byzan­
tine, Bruxelas, 1956. O trabalho antigo mas excelente de
A. P. Kazdan, Agrarnye otnocheniia v Vizantii XIII-XTV vv
(Les relations agraires à Byzance aux XJIEXIV' siècles), Moscovo,
1952, poderá ser corrigido graças a N. SVORONOS, «Sur
quelques formes de la vie rurale à Byzance. Petite et grande
exploitation», Annales ESC, XI, 1956. Os trabalhos de J.
LEFORT e sobretudo Villages de Macédoine: notices historiques
et topographiques sur la Macédoine orientale au Moyen Age, I,
Paris, 1982, assim como os da equipa de A. GUILLOU
(Sidérokausia en Chalcidique, IXe~XVIIIe s., Paris, 1988), dão
uma ideia mais precisa da ocupação do solo e da passa­
gem do regime cristão ao Império Otomano.
Sobre a vida rural nos territórios colonizados, além
das obras já citadas de Fr. Thiriet e M. Balard, poderá
apreciar-se a controvérsia sobre a sorte do campesinato e
das antigas classes dirigentes bizantinas através dos tra­
balhos de P. TOPPING, «Le régime agraire dans le Pélo-
ponnèse au XIVC siècle», LHellénisme Contemporain, 2.-
série, X, 1956; J. LONGNON, «La vie rurale dans la Grèce
franque», Journal des Savants, 1965; de Fr. Thiriet, «La
condition paysanne et les problèmes de Fexploitation
rurale en Romanie gréco-vénitienne», Studi Veneziani, IX,
1967; de D. JACOBY, «Les archontes et la féodalité en Morée
franque», Travaux et Mémoires, II, 1967; e «The Encounter
of two Societies: Western Conquerors and Byzantines in
the Peloponnesus after the IVth Crusade», The American
Historical Review, 78/4, 1973, «Citoyens, sujets et protégés
de Venise et de Gênes en Chypre du XIIIe au XVC siè­
cle», Byzantinische Forschungen, N, 1977; e de J. FERLUGA,
«L’aristocratie byzantine en Morée au temps de la con-

309
quê te latine», reed. in Byzantium on the Balkans, Amesterdão,
1976. Importantes as contribuições de A. LAIOU, «Quelques
observations sur 1’économie et la société de la Crète véni-
tienne (ca, 1270-ca. 1305)», Bisanzio e ITtalia, Raccolta di
Studi in memória di A. Pertusi, Milão, 1982; e de M. Balard,
«Les Grecs de Chio sous la domination génoise», Byzan-
tinische Forschungen, V, 1977. Quanto à Rússia, ver R. E.
SMITH, Peasant Farming in Muscovy, Oxford, 1977; e, em
russo, L. CEREPNIN, «Formirovanie kresfjanstva na Rusi
(La Formation de la paysannerie en Russie)», Istorija
krestjanstva v Evrope, t. 1, Moscovo, 1985.
A história rural do mundo muçulmano tem, sem dúvida,
sido menos renovada: muitos trabalhos importantes estão
em gestação ou inéditos. Ler-se-á ainda com vantagem A.
POLIAK, Feudalism in Egypt, Syria, Palestine and the Lebanon
(1250-1900), Londres, 1939, e, do mesmo, «Les révoltes
populaires en Egypte à 1’époque des Mamlúks et leurs cau­
ses économiques», Revue des Etudes Islamiques, VII, 1934;
ver também o importante contributo de H. RABIE, «The
Size and Value of the Iqtâ’ in Egypt, 564 A. H.-l 169-1341
A.D.», em M. A. COOK, Studies in the Economic History of the
Middle East, citado p. 277. Sobre o Magrebe, ver o t. 2 de
R. BRUNSCHVIG, La Berbérie Orientale sous les Hafsides des ori­
gines à la fin du XVe siècle, 2 vols., Paris, 1940-1947.
Quanto ao Império Otomano, as bases são estabeleci­
das por Cl. CAHEN, La Turquiepré-ottomane, citada, 1988;
e os artigos de O. BARKAN, «Les problèmes fonciers dans
PEmpire ottoman au temps de sa fondation», Annales
d’Histoire Sociale, I, 1939; e «Les formes de 1’organisation
du travail agricole dans PEmpire ottoman aux XVe et XVT
siècles», Revue de la Faculte des Sciences économiques dlstanbul,
1/1, 2 e 4, 1939-1940, continuam a ser essenciais, na impos­
sibilidade de se lerem os seus trabalhos em língua turca.
Os trabalhos do grande especialista que é H. INALCIK são
acessíveis graças à sua notável síntese, The Ottoman Empire.
The Classical Age, 1300-1600, Londres, 1973. Ver também
R. Mantran (dir.), Histoire de TEmpire Ottoman, Paris, 1989.

310
18
Cidades e actividades comerciais
no final da Idade Média

1. A decadência das cidades

As cidades gregas ■

No meio de campos desertificados, as cidades orien­


tais, que suplantavam de longe, no séc. XII, as do Ocidente,
entram em decadência no século seguinte, salvo nos impé­
rios turco e egípcio.
Já antes de 1204, guerras e invasões tinham provo­
cado um movimento de retracção das cidades. No Epiro,
na Macedónia, na Tessália, na Grécia, a cidade torna-se
uma praça-forte cujos bairros mais baixos, envolvidos por
uma primeira cerca de muralhas, são dominados por
uma cidadela para onde a população se retira em caso
de perigo. São estas praças fortes (kastra) que, na Moreia
do séc. xili, constituem os pontos de apoio dos grandes
senhores da terra, como os Sgouroi em Náuplia e Corinto,
ou os Mamonas em Monemvasia. Vê-se mesmo aparecer
um grande número de centros novos, obras destes pode­
rosos e, no séc. XIII, dos nobres latinos que os dominam
a partir do seus castelos. A própria Mistra, fortificada
pelos Villehardouin antes de se tornar na capital do des-
potado grego da Moreia, é uma cidade deste tipo, com
o seu castelo, a sua cidade murada e os seus dois subúr­
bios. Raras são as cidades onde primam as funções eco­
nómicas: na Moreia só conta o porto de Clarença.

O declínio de Constantinopla ■

Quanto às antigas grandes cidades, o êxodo rural per­


mite-lhes manterem as aparências durante algum tempo.
Tessalonica é ainda considerada, no séc. xiv, como uma
cidade populosa, mas em 1423 não tem mais do que 40 000
habitantes e, com a aceleração da emigração face ao avanço
turco, apenas 7000 cerca de 1430. Constantinopla não
escapa à regra: em 1204, tinha sido pilhada, incendiada,
abandonada pela população grega que, em 1261, ainda
não regressara. Apesar dos esforços de Miguel VIII para
atrair novos habitantes, a cidade jamais conseguiu recupe-

311
rar o seu nível anterior: as fomes do começo do séc. xrv,
as pestes de 1348, 1416 e 1447, enfim a fuga perante a
aproximação dos Turcos reduziram tanto a população que,
por volta de 1453, as estimativas dos contemporâneos são
de 36 000 habitantes para uma urbe que, no séc. xi, terá
talvez atingido o milhão. A própria cidade está ao aban­
dono: o Grande Palácio, o Hipódromo, certas igrejas estão
em ruínas, bairros inteiros estão desertos, enquanto neles
se desenvolvem campos, vinhas, jardins ou baldios. Em
1432, Bertrandon de la Broquière pode escrever que em
Constantinopla «há mais vazio do que cheio».

■ Territórios coloniais e países balcânicos

Nos territórios coloniais, se Coron, Módon ou as cida­


des de Eubeia parecem ter sido sobretudo praças-fortes,
já Creta tem algumas urbes tanto mais activas quanto os
feudatários são obrigados a terem nelas a sua residência:
é sobretudo o caso de Cândia que, no princípio do séc. xrv,
cobria 78 ha e contava com cerca de 10 000 habitantes.
Apesar do sismo de 1303, que fez 4000 vítimas, apesar da
peste negra que foi aí particularmente rude, a população
não parou de aumentar, obrigando Veneza a construir
novas muralhas em 1462.
Nos países eslavos, só a costa é verdadeiramente urbani­
zada: é o caso da Dalmácia onde as velhas cidades romano-
bizantinas como Zadar, Trogir, Split e sobretudo Dubrovnik
(Ragusa), enriquecidas graças ao tráfego comercial de e para
a Sérvia e a Bósnia, conhecem então simultaneamente uma
profunda eslavização e uma grande expansão demográfica.
Pelo contrário, mais a sul, no Epiro e na Albânia, onde todos
os recursos estavam nas mãos dos grandes proprietários da
terra, nem sequer os portos escapam à ruína: é o que sucede
com Durazzo que, tendo passado para Veneza em 1392, não
passa de uma vilória quando os Turcos a tomam em 1501.
Quanto ao interior, se a Bulgária dispõe de um centro polí­
tico, Tirnovo, residência do czar, já a Sérvia nunca teve
senão uma corte itinerante para a qual os mosteiros eram
as residências preferidas. Lá só se encontram praças-for­
tes, antigas cidades bizantinas decadentes como Nish ou
Skoplje. No entanto, os centros mineiros da Sérvia e da
Bósnia, geralmente fortificados, mostram-se particularmente
vivos. Os mais importantes são Novo Brdo e Srebrnica.

■ Cidades do islão e cidades turquizadas

No mundo muçulmano, o Egipto tinha visto declinar,


no início do séc. xm, as cidades industriais do delta como
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

Tinnis e Damieta, mas os grandes centros urbanos como


o Cairo e sobretudo Alexandria, que beneficiam de um
intenso êxodo rural, resistem melhor. Até ao séc. xv, os
sultões mamelucos constroem aí os mais belos monumentos
da arte muçulmana, o que não deve esconder as dificul­
dades crescentes. Invadido pelos produtos da indústria oci­
dental, o Egipto vê, a pouco e pouco, morrer o seu arte­
sanato: dos 14 000 teares que funcionavam em Alexandria
no final do séc. XIV, apenas restam 800 em 1434. A inac-
tividade e a miséria apoderam-se das cidades. Em 1436, é
proibido nelas o fabrico de vasos e objectos em prata.
A invasão turca provocou, por seu lado, uma verdadeira
revolução urbana: às cidades bizantinas, que se mantiveram
grosso modo conformes aos princípios antigos, fazendo pouco
caso da topografia, o islão turco faz suceder uma concep­
ção mais naturalista que valoriza outeiros e colinas, cola o
tecido urbano ao longo dos eixos fluviais, insere pracetas e
zonas verdes no coração das cidades, não hesitando em
desorganizar o seu traçado ainda relativamente geométrico.
As cidades continuam as mesmas nos mapas, pois os Turcos
não criam praticamente nenhumas, mas o seu plano modi­
fica-se profundamente e toma-se a pouco e pouco polinu-
clear: é o que se passa com Bursa, na Ásia, ou com Edirna,
na Europa. Quanto a Constantinopla, transformada em
Istambul, a sua prolongada ruína favoreceu uma profunda O nome de Istambul provém, de facto, do
mutação: os grandes eixos urbanos, como a antiga Mêsé, grego «s’tin polin» e significa «na
cidade».
são globalmente preservados, mas os fora, as ruas, os edi­
fícios públicos destruídos são recobertos por bairros habi­
tacionais; por outro lado, o futuro Grande Serralho de
Topkapi, começado em 1473, e que permanecerá por muito
tempo de uma grande simplicidade, jamais desempenhará
o papel de pólo urbano dos palácios imperiais bizantinos.
O que agora marca o ritmo da cidade são as mesquitas e
todo o complexo caritativo e universitário que as rodeia.
Quanto à população, quase nula em 1453, Maomé II dedi­
cou-se a reconstituí-la, deslocando gente das províncias
para Istambul: um inquérito conduzido pelo Grande Kadi Kadi: forma turca de Qâdz.
em 1477 permite fixá-la em cerca de 70 000 habitantes.

2. Inadaptação urbana e conflitos sociais

Um mundo urbano parasitário ■

A falta de adaptação das cidades ao seu meio, o papel


parasitário que desempenham mesmo em relação aos cam­
pos envolventes, não são factos novos neste final da Idade

313
Média, mas a dureza dos tempos torna-os então mais gri­
tantes, se não mesmo intoleráveis.
A situação é particularmente nítida no que resta do
Império grego. Tradicionalmente as cidades eram aí a sede
das autoridades e o centro de cobrança dos tributos. Mas
a cidade não redistribuía minimamente o ouro que assim
absorvia: o camponês bastava-se em geral a si próprio e só
muito raramente comprava os produtos da indústria urbana.
Esta trabalhava para os citadinos e para a exportação,
desempenhando assim, relativamente ao campo, um papel
de punção desprovido de contrapartida. Ora o desenvol­
vimento da grande propriedade só veio agravar este dese­
quilíbrio. Os poderosos, senhores de bens patrimoniais ou
de pronoiai, vivem de bom grado nas cidades, onde cons­
tituem a classe dominante. E portanto à cidade que aflui
todo o dinheiro das rendas que lhes são devidas, e é lá
que eles o gastam, sem pensarem em reinvestir no campo,
que não seja comprando terras ao mais baixo preço pos­
sível. A par das razões que vimos acima, a mera existência
de tais cidades contribui para mergulhar o mundo rural
numa depressão cada vez mais acentuada.

■ Aristocracia e povo bizantinos

Esta dominação de uma casta aristocrática, cuja for­


tuna é antes de mais fundiária, pode ser constatada tanto
em Constantinopla como nas cidades de província. Na
capital, esta base fundiária combina-se de há muito com
a titularidade das altas funções do Estado, o que faz cres­
cer ainda mais o peso social desta casta e também a sua
influência política: em 1321, é ela que apoia Andrónico III
contra o seu avô Andrónico II, reservando-se para defen­
der, após 1341, João VI Cantacuzeno, um dos seus repre­
sentantes, contra João V Paleólogo. Todavia, a alta socie­
dade não é poupada pela dureza dos tempos: a partir do
final do século, deserta da cidade que não mais lhe asse­
gura os empregos habituais. Algumas grandes famílias vão
então estabelecer-se em Mistra, onde a prosperidade tem­
porária lhes é então mais favorável, mas a maioria prefere
retirar-se para os seus domínios: emboscada nas praças-
-fortes, pensa poder proteger aí melhor os seus últimos
rendimentos contra os salteadores e a invasão turca.

Ora não há nenhuma classe média capaz de suceder


a esta aristocracia decadente. Em Tessalonica bem nos
falam de uma classe de «médios» (mésoí), composta de co-
merciantes, artesãos, armadores e membros das profissões
liberais. Mas constata-se que, quase sempre, o essencial
dos respectivos recursos provém dos seus pequenos domí-
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

nios suburbanos. Com o avanço turco, vão-se arruinando


a pouco e pouco, deixando aparecer a verdade profunda:
a divisão da cidade em duas classes - os que dominam
(prouchontes) e o povo que, significativamente, é com fre­
quência designado por os «numerosos» e os «pobres» (pol-
loi, ptôchoi). Esta mesma divisão existe em Constantinopla
onde, à parte alguns representantes do artesanato e dos
ofícios da prata em plena decadência, a massa da popu­
lação, sem emprego bem definido, vive geralmente numa
miséria cada vez mais agravada pelos cercos, as guerras e
as pestes. Ao tempo de Andrónico II, a cidade foi presa
de uma terrível fome que fez numerosos mortos, não obs­
tante a actividade caritativa do patriarca Atanásio. E mesmo
este último quem denuncia os responsáveis: são os homens
influentes, que açambarcam os cereais e fazem subir os
seus preços, mas também os Latinos que, beneficiando da
cumplicidade daqueles, preferem vender o trigo estran­
geiro no Ocidente mais do que em Bizâncio e se permi­
tem mesmo exportar para a Trácia o cereal que tanta falta
faz aos Gregos.

Os estrangeiros nas cidades bizantinas ■

O velho conluio entre os poderosos e os estrangeiros


subsiste tanto mais quanto estes últimos constituem, de
facto, a única classe verdadeiramente activa das grandes
cidades bizantinas. Na região de Tessalonica, onde são
praticamente os senhores de Cassandreia e possuem, além
disso, uma colónia organizada na cidade, os Genoveses
dominam até meados do séc. xiv, após o que têm de ceder
a primeira praça aos Venezianos. E com toda a naturali­
dade que o déspota Andrónico, desesperando de defen­
der a cidade contra os Turcos, a cede a Veneza em 1423.
Em Constantinopla, os Venezianos reaparecem após 1268.
Já não possuem aí um verdadeiro bairro e, apesar de uma
certa má vontade dos soberanos, estabelecem-se um pouco
por toda a parte da cidade, onde acabam por constituir
uma sólida rede favorável às relações com a população
grega. Pelo contrário, os Genoveses, muito inquietos,
foram excluídos do perímetro da cidade e, em 1268, ins­
talados no subúrbio de Péra-Galata. Depois de terem visto
a sua feitoria destruída pelos Venezianos em 1296, obtêm
de Andrónico II, em 1303, o direito a cercá-la de mura­
lhas, com a condição de nada construírem fora delas.
A partir de então, uma verdadeira cidade genovesa eleva-
se em frente de Constantinopla. Também outros são sen­
síveis ao interesse económico da cidade: desde 1348, a
casa bancária florentina dos Alberti possui aí uma sucur­
sal, embora Florença só consiga um privilégio de Bizâncio
em 1439.

315
Como já se viu, este avanço latino influía gravemente
no abastecimento de Constantinopla. Genoveses e Vene-
zianos penetravam agora livremente no mar Negro, donde
os antigos privilégios os excluíam. Os cereais da Crimeia
(Tana, Cafa), da Valáquia e da Bulgária constituíam uma
das suas grandes fontes de lucro. Podendo, ainda, falar
alto, Miguel VIII tinha imposto a obrigação de depositar
os cereais em armazéns do Estado e a proibição de os
exportar do Império quando os seus preços atingissem
um certo nível. Embora os tratados com Veneza (de 1302,
1310 e 1324) mantivessem esta regulamentação, depressa
faltaram os meios para a fazer respeitar. Bizâncio fica a
partir de então na inteira dependência dos comercian­
tes estrangeiros, que passam à frente dos seus cais sem
aí se deterem e que só lhe vendem os cereais quando o
preço oferecido é lucrativo. Neste aspecto, a cidade geno-
vesa de Péra é um excelente meio de evitar Constantinopla:
à volta de 1340, a sua alfândega cobrava anualmente
200 000 libras, enquanto a capital grega apenas recebia
30 000.

■ Ascensão da xenofobia

A atmosfera das cidades bizantinas, oprimidas e con­


denadas à fome pelos ricos e os estrangeiros, não podia
deixar de ser pesada e muitas vezes violenta. O estran­
geiro é aí acusado de todos os males do tempo, mesmo
dos de que ele próprio sofre. Habitualmente vingam-se
dele, fazendo-o suportar mil vexames: um embaixador
veneziano assevera «que em Constantinopla, Tessalonica,
Enos e noutros sítios, os Venezianos não podem de todo
em todo habitar e permanecer, porque os Gregos e os
Gasmules: filhos de pai es­ Gasmules lhes batem e os agridem por todo o lado, sem
trangeiro e de mãe grega. que nunca o Imperador lhes faça justiça contra os malfei­
tores». Tal como em Constantinopla, onde o nervosismo
contra Veneza aumenta em cada época de fome ou de
ruptura política - foi o caso do período de 1299-1303 -,
denuncia-se sobretudo a arrogância dos Latinos e o seu
desprezo pelos Gregos. Por exemplo, o patriarca Atanásio
revela-nos que eles não hesitam em reivindicar reféns aos
Bizantinos que lhes devem dinheiro. Entrincheirados em
Péra, os Genoveses nunca sofrem as violências constanti-
nopolitanas. Mas o mesmo não se passa fora daí, como se
verifica no império de Trebizonda onde, em 1348-1349,
eles atacam em força Cerasonte e, depois, a própria capi­
tal, provocando assim o encarceramento de todos os
Francos da cidade; ainda em 1425, todos os bens geno­
veses serão pilhados no decurso de uma revolta. Aragoneses
e Catalães foram, por seu lado, massacrados em 1305 em
? Constantinopla, na sequência da crise almugavar.

316
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

As sublevações populares em Bizâncio ■

Ao mesmo tempo, a cólera dos Gregos voltava-se con­


tra a sua própria classe dirigente. Como sempre no Oriente,
estas agitações sociais traduziam-se em termos políticos e
religiosos. Politicamente, o povo, que odeia os poderosos,
continua a ver no imperador a sua melhor defesa contra
as manobras daqueles. E este o motivo por que, em
Bizâncio, o povo é profundamente legitimista: em 1341,
é para apoiar o imperador legítimo, João V Paleólogo,
que o povo se revolta contra os nobres, partidários de
Cantacuzeno, o usurpador. Pela mesma altura, o movi­
mento dos zelotas, que expulsa os nobres de Tessalonica,
jura solenemente a sua fidelidade e o seu apoio ao jovem
João V e à imperatriz regente, enquanto sublevações seme­
lhantes, todas dirigidas contra a aristocracia, se declaram
em Verroia e Andrinopla.
Se se acrescentar a isso os factores religiosos de divi­
são - hesicasmo e união com Roma -, sempre carregados
de implicações sociais e políticas, compreender-se-á por
que, face à invasão turca, o povo bizantino está longe de
se mostrar unânime: apesar de um certo retorno à coe­
são perante o perigo iminente, alguns não puderam dei­
xar de ver nos conquistadores um meio de eliminar os
opressores, como aconteceu com grande número de cam­
poneses a quem a fuga libertou de senhores abusivos.

As cidades do Egipto ■

O mal-estar urbano existe, aliás, também no mundo


muçulmano. No Egipto, a velha classe burguesa vê-se em Hesicasmo: ver pp. 348-349.

parte esbulhada pelo regime militar mameluco: não só


deixou de poder comprar a terra que o sultão e os emi­
res repartem entre si, mas também o Estado vigia ciosa­
mente as suas actividades comerciais, ao ponto de a pri­
var parcialmente delas. Cada cidade está sob a autoridade
de um governador ou nâ’ib, que nomeia o muhtasib, ins-
pector do mercado, que fiscaliza atentamente os pesos e
as medidas, o câmbio das moedas, a observância das fes­
tas religiosas e pode mesmo, em caso de urgência, fixar
autoritariamente o preço das mercadorias. Se esta fiscali­
zação se desenrolou com honestidade até ao final do
séc. xiv, vêem-se, a partir de então, cada vez mais muhta-
sibs corruptos, que chegam mesmo a adquirir o hábito de
comprar os seus cargos; para livrar o povo da sua tirania
desonesta, são nomeados, desde meados do séc. xv, mili­
tares que, todavia, perpetuam a corrupção, aditando-lhe
até um autoritarismo acrescido. A burguesia, deste modo
submetida e espoliada, tem ainda de contar com as requi-

317
sições e as confiscações, enquanto a baixa da produção
agrícola lhe retira uma parte das suas actividades. A isto
acrescenta-se uma terrível desvalorização da moeda: o
dinar, que valia 20 dirhams no séc. xni, vale 240 em 1412,
300 em 1456, 460 em 1458. Em resultado desta inflação,
e também por efeito da falta de mão-de-obra, mercado­
res e artesãos são constantemente obrigados a consentir
em aumentos salariais, ao mesmo tempo que os seus negó­
cios vão de mal a pior: no Cairo e em Alexandria, os süqs
fecham em grande número. O povo não está mais à von­
tade porque, se os salários crescem, os géneros essenciais
são também cada vez mais caros: no séc. xni, o preço do
pão aumenta perto de 70%. Todos os escritores da época
se queixam da miséria geral, que provoca inúmeros motins
de populações esfomeadas, muitas vezes dirigidos contra
os regulamentos publicados pelo muhtasib, tidos por res­
ponsáveis pela alta de preços. Quanto aos trabalhadores,
chegam a desencadear verdadeiras greves para obter melho­
res salários, sendo ainda o muhtasib quem se encarrega de
os reprimir pela força. Assim, no começo do séc. XVI o
Estado mais não sabe do que usar a violência contra um
povo que passa, incessantemente, do furor à apatia.

■ As cidades turcas

A princípio, as cidades otomanas têm uma atmosfera


menos explosiva. A própria noção de classe social é estra­
nha aos Turcos, para quem o único critério de diferen­
ciação é o poder pessoal concedido pela autoridade
suprema. Tudo dependendo desta, que pode tirar o
homem da condição mais vil para aí o voltar a mergulhar,
não há, pelo menos até ao final do séc. xv, uma casta
nobre hereditária. Mas a situação não deixa de ser, por­
ventura, até pior: as pessoas bem colocadas num dado
momento, sabendo que só dispõem de um tempo de poder
limitado, esforçam-se por acumular rapidamente tudo
quanto possam, dado que, uma vez passada a mercê, só
lhes restará o prestígio da fortuna. Por muito instável que
seja, não deixa por isso de se esboçar uma classe superior
cujos membros, funcionários turcos ou cristãos, dignitá­
rios da corte, fazendeiros e mercadores gregos, arménios,
judeus, latinos depressa revelam uma avidez insaciável.
Nas cidades onde reside o sultão - Bursa, Edirna e depois
Istambul os seus abusos sobre as alfândegas, os impos­
tos e as taxas comerciais são temperados pela presença
do senhor, mas o mesmo não se passa nas cidades de pro­
víncia onde os tiranetes são tanto mais exploradores quanto
um inquérito do sultão pode, em qualquer momento,
puni-los com a morte. Além disso, esta classe dominante
não assegura de modo nenhum relações normais entre a
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

cidade e o campo: como na época bizantina, os altos fun­


cionários contentam-se em concentrar na cidade os ren­
dimentos das suas concessões em terras, enquanto o tima- Timariota: ver p. 308.
riota médio reside no seu domínio e não participa da vida
urbana.
Quanto ao povo dos marinheiros, dos artesãos e dos
pequenos mercadores, que ignora a existência de verda­
deiras corporações de ofícios pelo menos até ao séc. xvi,
não se põe sequer a questão de reagir aos abusos pela
revolta: em Istambul, o Grande Kadi, apoiado numa tropa
de janízaros, tem por missão punir duramente burlões e
revoltados. De resto, o governo, perpetuando uma velha
obsessão bizantina, garante o abastecimento da capital
impondo às províncias fornecimentos obrigatórios de cere­
ais e favorecendo a exportação para Istambul dos outros
géneros necessários, pelo que as cidades otomanas terão
sido certamente menos miseráveis, no séc. xv, do que as
do resto do Oriente. Mas como outrora em Bizâncio, o
cuidado de evitar as fraudes e de alimentar as populações
das cidades implicava terríveis cargas administrativas: con­
trolos, restrições de actividades, fixação autoritária dos
lugares de venda, passagem obrigatória por certos inter­
mediários como, por exemplo, o simsar que deve contro­
lar a introdução na cidade de todos os fardos de seda.
Além disso, o Império Otomano herdou também de
Bizâncio uma política económica de vistas curtas, que
ignora os benefícios comerciais propriamente ditos e ape­
nas busca sacar sobre os produtos o máximo possível em
direitos aduaneiros e em taxas diversas. Falta, pois, qual­
quer dinamismo às cidades otomanas: uma excessiva fide­
lidade aos princípios bizantinos deixa pressagiar uma estag­
nação, que se agravaria nos séculos seguintes.

3. A vitória comercial do Ocidente

Dificuldades e persistência do negócio local: ■


mercadores bizantinos e muçulmanos

Neste Oriente onde os campos se esvaziam sem, com


isso, darem mais vida às cidades, não há nenhum lugar
para os mercadores indígenas. Em Bizâncio, os Gregos
são definitivamente expulsos do grande comércio marí­
timo: desde o começo do séc. xiv, Andrónico II, a quem
o vazio do Tesouro tinha obrigado a dissolver a frota, está
reduzido a afretar navios mercantes genoveses; quando
João Cantacuzeno faz menção de reagir, são os mesmos

319
Genoveses que incendeiam os arsenais e os navios, de
modo que, como escreve Nicéforo Grégoras, «o Império
perdeu assim definitivamente toda a esperança de extrair
qualquer lucro da actividade comercial de Constantinopla».
Se ainda restam mercadores gregos, trata-se de peque­
níssimos comerciantes que, com os seus modestos caíques,
se entregam a um tráfico puramente local. Na realidade,
os únicos Gregos dinâmicos tinham-se instalado no estran­
geiro. A sua actividade é notável no mar Negro, em Cafa
e em Soldaia, e as colónias cretense e cipriota de Alexandria
têm uma certa importância. Em Veneza, a instalação dos
Gregos acelera-se a partir do séc. xv, sobretudo após a
queda de Constantinopla: em 1494 é criada a Scuola dei
Greci, e desde então os mercadores gregos de Veneza, que
podem até possuir navios, enriquecem no tráfico com o
Império Otomano. Mais modestamente, a colónia grega
de Ragusa tem, no séc. xv, relações com Corfu, Coron,
Módon, Creta, Rodes e mesmo com a Síria, onde um
grande mercador como Manuel de Comestabilibus, afre-
tador de navios e fundador de companhias comerciais,
se dedica principalmente ao comércio dos cereais e do
azeite. Facto interessante é o de, mesmo os Gregos dos
antigos territórios imperiais retomarem a actividade sob
o domínio otomano: em Istambul como nas províncias,
eles enriquecem nas funções de aduaneiros e de transi-
tários e assinam contratos com o Estado. Agrupados em
Istambul no bairro do Fanar, é deles que nasce essa rica
burguesia grega que, após séculos de trabalho silencioso,
tanto contribuirá para a renovação do sentimento naci­
onal. Libertos - seja pelo exílio, seja pela conquista turca
- de uma estrutura esclerosada e paralisante, os Gregos
parece terem reencontrado, no séc. xv, o génio comer­
cial dos seus antepassados.
Entre os outros mercadores indígenas há, evidente­
mente, Muçulmanos. Do Oriente até ao Magrebe eles dão
porém provas de uma fraqueza evidente: para não caírem
sob as arreliadoras exigências das alfândegas, que arruí- |
nam o que ainda resta de mercadores independentes em =
Alexandria, Trípoli ou Tunes, entram numa cumplicidade [
exagerada com as autoridades e os seus agentes, com quem ]
se confundem demasiadas vezes. Mais grave ainda, os nego- ■
ciantes da Síria, do Egipto e do Magrebe estão quase sem- i
pre reduzidos ao tráfico local e, quando tentam ir mais {
longe, só podem recorrer aos serviços de estrangeiros -
Venezianos e Genoveses -, quando não se limitam a aguar- i
dar, de Alexandria a Málaga, a chegada dos seus clientes ;
e fornecedores italianos. E verdade que o mundo muçul- j
mano, neste final da Idade Média, sente uma cruel falta
de barcos; e é por isso que, no séc. xv, Egípcios e Hafécidas |
da Tunísia solicitam a Veneza a abertura de uma nova 1

320
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

linha - a muda da Berbéria - que, até princípios do séc. XVI, Muda: ver p. 271.
lhes permite evitar a asfixia, mantendo um mínimo de
ligações entre esses dois pólos fundamentais do Medi­
terrâneo muçulmano e uma aparência de integração nos
circuitos «cristãos». Quanto aos Turcos, cuja marinha ainda
é, de resto, muito insuficiente, também a eles repugna
afastarem-se do seu país; somente o fazem para comer­
ciar com outros Muçulmanos, o que explica a existência
em Alexandria de um fonduk dos Turcos desde meados
do séc. xv. Em contrapartida, são eles que monopolizam
o tráfego caravaneiro da Asia Menor, onde cada paxá local
trafica activamente com os estrangeiros - Venezianos,
Genoveses e Ragusanos - que se interessam pelos produ­
tos da respectiva circunscrição. Entretanto, só os Ragusanos
conseguem impor-se como mercadores internacionais.
Submetida até 1358 a Veneza, que tenta limitar a sua
expansão por mar, Ragusa desenvolve sabiamente as suas
relações com a retaguarda continental eslava e com as cos­
tas da Albânia e da Grécia ocidental; completamente livre
a seguir, sob a tutela teórica da Hungria, lança-se nos mer­
cados orientais. Em 1373, o papa autoriza-a a comerciar
com os infiéis, o que é confirmado pelo concílio de Basileia
em 1432. Desde logo, os Ragusanos que se encontram na
Síria, no Egipto ou na Anatólia, e que já em 1396 obtêm
uma carta de garantia de Bayazid I, adoptam como regra
de ouro manter a todo o custo as melhores relações com
os Turcos que, de resto, em breve chegarão às suas por­
tas. E graças ao seu papel de transitário privilegiado entre
a Turquia e o Ocidente que Ragusa vai conhecer dois
séculos de uma espantosa fortuna.

Penetração e circuitos comerciais dos mercadores latinos ■

O domínio dos mercadores ocidentais é, no entanto,


incontestável. Em boa verdade, poucas vezes se encon­
tram nas terras do interior: nos Balcãs somente os
Ragusanos circulam, atraídos pelas explorações mineiras
da Sérvia e da Bósnia junto das quais têm, até ao séc. xviii,
estabelecimentos estáveis; ainda assim, apenas cobiçam a
prata e o ouro, deixando aos pequenos mercadores esla­
vos o encargo de transportarem os metais mais vis, como
o chumbo. Na Turquia, a presença latina limita-se a algu­
mas colónias florentinas, venezianas e sobretudo genove-
zas, em cidades como Sivas, Konya ou Bursa. São raros os
Ocidentais que seguem nas caravanas: em 1432, a viagem
de Bertrandon de la Broquière da Síria a Péra pela Anatólia
suscita a admiração dos Genoveses e dos Turcos.
Penetrar nas terras não tinha qualquer utilidade. Desde
o séc. xiii que os Latinos são os senhores do mar, estando

321
por consequência presentes em todos os portos onde as
caravanas fazem chegar os produtos que lhes interessam.
E além de terem as únicas frotas importantes do Mediter­
râneo - as mais consideráveis são as de Génova e Veneza —,
possuem também uma organização e meios económicos
inteiramente postos ao serviço de uma exploração comer­
cial racional.
Génova e sobretudo Veneza melhoraram ainda, após
1204, o seu sistema de ligações regulares com o Oriente.
De Veneza, as mudae escoltadas por galés armadas diri­
gem-se regularmente a Constantinopla e ao mar Negro,
a Chipre, a Beirute e a Alexandria, sem contar com a muda
da Berbéria, que escala a Sicília, Tunes, Trípoli, Bugio,
Argel, Orão e os portos muçulmanos de Espanha (Málaga
e Alméria). Todos os anos, as galés, que pertencem ao
Estado, são postas em leilão junto dos patrícios, únicos
com direito a alugá-las. Se não há guerra no mar, se se
pensa poder ir comprar os produtos desejados a preços
interessantes, se se está quase seguro de os vender em
boas condições, os lances sobem muito; no caso contrá­
rio, os preços caem e em certos anos não chega sequer a
haver leilão. Quer isto dizer que os leilões das galés vene­
zianas são um notável barómetro do comércio no Medi­
terrâneo.
Desde o séc. xni, os grandes mercadores latinos detêm
outra superioridade: deixam, eles próprios, de viajar e
remetem geralmente os seus carregamentos a mandatá­
rios estabelecidos com permanência que deverão vendê-
-los e, com a receita assim obtida, comprar outras merca­
dorias. O mandatário, muitas vezes um parente do
mercador, recebe em princípio uma comissão de 2% sobre
os produtos vendidos e de 1 % sobre os que compra. Por
outro lado, no séc. XIII operou-se uma revolução mone­
tária: não só as moedas orientais, bizantinas e muçulma­
nas, já não dominam os mercados latinos, como são as
espécies ocidentais que entretanto conquistam o próprio
Oriente.

■ Depreciação bizantina e novas moedas do Oriente

Cerca de 1204, o hiperpero bizantino, que conservava


entre 90 e 75% do seu valor, era ainda o padrão mone­
tário no Mediterrâneo. E já no império de Niceia, na época
de João Vatatzés, que ocorre a desvalorização decisiva. Em
1250, o banqueiro Alphonse de Poitiers, tendo de com­
prar numerário em ouro para o seu senhor que partia em
cruzada, considera o hiperpero como a menos segura de
todas as moedas possíveis. Após 1261, as necessidades da
reconquista obrigam Miguel VIII a ir mais longe, estabã-

322
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

lizando o hiperpero em 9 carates em vez de 24, o que não


impediu que a desvalorização se acentuasse: sem que tenha
havido um aumento notável do preço dos cereais, o kenté-
narion de trigo vale 100 hiperperos em 1285, em vez dos Kenténarion (em latim, Cente-
50 que valia em 1265. Em 1304, para pagar a soldada dos narium): vale 100 libras com
cerca de 300 gramas.
Almugavares, tem de se baixar o peso do soldo para 5 cara­
tes; desde então, os credores estrangeiros reclamam os
pagamentos em soldos do tipo antigo, enquanto o governo
grego impõe o curso forçado das emissões desvalorizadas.
Por volta de 1335, Pegalotti regista a existência de sete
espécies de hiperperos. João V (1341-1391) é o último a
emitir uma moeda de ouro: de melhor título mas com
peso reduzido, ela exibe a efígie de S. João Baptista, numa
imitação do florim. Quer isto dizer que o soldo bizantino
deixou de ser um critério, ao ponto de, mesmo nas fon­
tes gregas, se começar a converter em ducados venezia-
nos as somas expressas em moeda imperial. Sabe-se que
uma desvalorização semelhante ocorria no Egipto: desde
1302 que, mesmo em Alexandria, a moeda local - os
«besantes sarracenos» - é contada em ducados de Veneza.
Com efeito, o Oriente não tinha conseguido fazer suce­
der novas espécies dignas de crédito às antigas moedas
desvalorizadas. Ragusa, que jamais cunhará ouro, possui
desde o séc. xm uma boa moeda de prata, o dinheiro
grande, pouco menos pesado do que o de Veneza, e con­
tinua a utilizar o hiperpero como moeda de conta. Mas
além de o «grande» ragusano ter tendência para se des­
valorizar desde o séc. xiv, ele nunca foi utilizado senão No princípio do séc. XIV, 1 soldo=24
«grandes» de Veneza=30 «grandes»
nas transacções internas ou com os países eslavos. Nos ragusanos.
mercados levantinos, também os Ragusanos têm de recor­
rer ao ducado.
Quanto aos Turcos, usavam, na época seljúcida, um
dirham de prata sujeito a numerosas variações e só cunha­
ram ouro a partir do reinado de ’Alâ al-Din Kaikubâdh I
(1219-1236).
Os Otomanos, por seu lado, só conhecem inicialmente
uma moeda de prata, o akçe, a que Gregos e Latinos cha­
mam aspre. Baseado na riqueza das minas sérvias e bós-
nias, o akçe é, em princípio, emitido todos os dez anos.
Mas a política conquistadora de Murad II e de Maomé II
requer cada vez mais dinheiro, pelo que se procede a um
número de emissões sempre crescente, envolvendo uma
rápida depreciação da moeda turca. O aspre, que pesava
6 carates (1/10 de ducado) no séc. xiv, pesa 5,25 em 1451,
4,75 em 1460 e 3,75 em 1481. Isto descontenta tanto mais
a população quanto, ao mesmo tempo, se procede a con­
versões forçadas, mediante as quais se têm de trocar doze
aspres antigos por dez dos novos aspres desvalorizados.
Bayazid II acabou por banir essas práticas escandalosas e

323
proibiu que, de futuro, se tocasse no título do akçe, mas
a depreciação deste não cessou.
Por outro lado, o ouro rareia. Em 1456, Maomé II
ordena a sua cunhagem, mas o nome que é dado à nova
espécie, firengi filuri, ou florim franco, prova que se quer
imitar a moeda latina. De resto, trata-se apenas de uma
moeda de prestígio, e as transacções externas continuam
a utilizar o ducado veneziano como unidade de conta.

■ A supremacia das moedas latinas

Estava assim o espaço livre para as moedas estrangei­


ras. A partir do séc. xni, Veneza começa a impor nos mer­
cados orientais o seu dinheiro grande, que principiara a
cunhar em 1202. Ultrapassada por Génova e Florença,
que cunham os respectivos genovino e florim depois de
1252, Veneza só emitirá uma peça de ouro em 1284; mas
Ducado ou zecchino (sequim): o seu ducado, então mais conhecido pelo nome de zec­
moeda emitida pela Zecca, casa chino ou sequim, prevalecerá de longe sobre as outras moe­
da moeda de Veneza. Em 1284,
das de ouro. Orgulhosamente fundada, a partir de 1328,
tinha o título de 1000 p. mil e
o peso de 3,559 g., ligeiramente na relação 1 ducado=24 grandes, Veneza dá ao mundo
superior ao florim (985 p. mil mediterrânico uma moeda alicerçada num Tesouro flo­
e 3, 536 g.), por seu lado igual rescente e rigorosamente gerido e que as suas fortes posi­
ao genovino.
ções no Oriente lhe permitem fazer aceitar como o suces­
sor incontestado do soldo bizantino. Aliás, Genoveses,
Venezianos, Florentinos e Catalães fazem cada vez menos
transacções em moedas reais. Os progressos da banca per-
mitem-lhes regular débitos e créditos por simples jogos
contabilísticos, enquanto as grandes casas metropolitanas
abrem sucursais um pouco por todo o Oriente.

4. A competição comercial latina


no Oriente nos sécs. xiv e xv

■ As rivalidades entre Ocidentais

A superioridade dos mercadores latinos é, portanto,


esmagadora. Mas os Ocidentais estão longe de se mostrar
unidos: bem pelo contrário, entregam-se a uma guerra
encarniçada pela conquista dos mercados orientais.
Frequentemente, trata-se de hostilidades declaradas, que
opõem sobretudo os dois grandes rivais - Génova e Veneza.
E o que se passa entre 1261 e 1270, pelo controlo do mar
Egeu; entre 1294 e 1299, para saber quem dominará em

324
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

Constantinopla; entre 1375 e 1381, quando as duas repú­


blicas disputam a ilha de Tenedos, chave dos estreitos e
do mar Negro; e em 1431, quando Veneza pretende expul­
sar os Genoveses ao mesmo tempo de Quios e de Chipre.
Mas, nestes casos, trata-se apenas de crises agudas num
fundo geral de hostilidade, de que a pirataria, omnipre­
sente, é a melhor expressão: quer sejam venezianos, geno­
veses ou catalães, os piratas, consoante as épocas, fervi­
lham no Adriático, no mar Jónico, no Egeu, nos estreitos,
no mar Negro. Nesta atmosfera de perigo permanente, é
absolutamente necessário possuir bases seguras e tão apro­
ximadas quanto possível. E é nisto que se manifesta a evi­
dente superioridade de Veneza, senhora de um império
sem equivalente entre os seus rivais. Efectivamente, ao
anexar Corfu em 1390 e, depois, Durazzo em 1392, Veneza
passa a dispor de uma rede coerente que, por Coron,
Módon, Creta, Eubeia e Constantinopla, permite aos seus
navios chegar, com a maior segurança, às costas do Levante
muçulmano, dos Balcãs gregos e eslavos e aos mercados
do mar Negro. Pelo contrário, Génova tem muito poucas
posições no Mediterrâneo, sendo obrigada a cobrir lon­
gas distâncias, sem escalas hospitaleiras, para chegar ao
destino: do Ocidente, tem de ir até Quios, concedida por
Andrónico II a Benedetto Zaccaria em 1304, perdida em
1329 e recuperada em 1346; uma vez lá chegados, os
Genoveses podem, entretanto, circular no Egeu oriental
mais facilmente do que os Venezianos - detêm aqui tem­
porariamente Lesbo e Samos e dominam a Fócida, o que
lhes permite atingir Péra, graças à qual fazem a vida dura
a Veneza nos estreitos. É isto que explica o seu indiscutí­
vel predomínio no mar Negro, onde dispõem das pode­
rosas colónias de Cafa e de Soldaia, ao passo que Veneza
só esforçadamente atinge o mau porto de Tana. Além
disso, os Genoveses dominam os portos danubianos (Mavro-
castro) e a costa setentrional da Anatólia (Amastris, Sinope
e Trebizonda).

Das feitorias aos impérios coloniais ■

Pelo final do séc. xiv, Veneza e Génova parecem, assim,


ter posições muito equilibradas: Veneza dispõe de melho­
res ligações com o Oriente e domina a Romania bassa
(Moreia, Creta, Arquipélago, Eubeia), mas Génova está
melhor colocada na Romania alta (Anatólia e estreitos);
quando conquista Famagusta, em Chipre (1373), chega a Ver mapa p. 394 A.
ameaçar o tráfico veneziano com os países do islão.
No entanto, só o império veneziano é verdadeiramente
sólido. Primeiro, Génova depende demasiado estreita­
mente das potências locais: os seus domínios são os pri-

325
meiros a ser atingidos pela expansão otomana, enquanto
Veneza se defende melhor nas ilhas. A parte Quios e
Fócida, as posições genovesas, em si mesmas, só têm um
reduzido interesse económico, sendo sobretudo feitorias
que trabalham com o estrangeiro; por seu lado, Veneza
dispõe, principalmente em Creta, de recursos locais não
desprezíveis, aos quais está em condições de deitar mão
sendo caso disso. Finalmente, as colónias genovesas estão
ligadas à metrópole por laços muito frouxos, tendo até a
Comuna, no séc. xv, abandonado a sua administração à
Casa di San Giorgio que, a partir de 1407, concentra os cré­
ditos públicos; pelo contrário, Veneza soube estabelecer
no Oriente um regime muito flexível, no qual os seus
representantes são ao mesmo tempo controlados por con­
selhos locais e, a partir do séc. xiv, pelos Smitíd ad partes
Leuantis (Síndicos do Levante), temíveis inspectores dele­
gados pela metrópole. A perda de Péra, em 1453, logo
seguida da de Lesbo e da Fócida, depois da de Cafa em
1475, deixa apenas Quios nas mãos dos Genoveses, que aí
se mantêm até 1566. A partir de então os interesses geno­
veses situam-se todos no Ocidente, enquanto Veneza, gra­
ças a Creta, continua activa no Oriente até ao séc. xvn. E
sabido, de resto, que a derrota de Génova no Oriente esteve
na origem da sua fortuna: quando é descoberta a rota do
Cabo e se obliteram as antigas vias que levavam os pro­
dutos orientais para o Mediterrâneo, Génova já tem sóli­
das relações com o Oceano, ao mesmo tempo que Veneza,
demasiadamente segura de si própria no Mediterrâneo,
regista um atraso a Oeste que jamais conseguirá anular.

■ Veneza, Ragusa e os circuitos do Adriático

Tentemos, entretanto, delimitar as zonas de influên­


cia e os interesses comerciais tal como se revelavam nos
primeiros anos do séc. xv. Uma região escapa simultanea­
mente a Génova e a Veneza: a costa adriática e jónica,
desde o estuário do Neretva até ao estreito de Corinto,
onde dominam sem contestação os Ragusanos. Isto, não
obstante a implantação de Veneza em Corfu e Durazzo
no final do séc. xiv, zona muito importante que encabeça
a exportação dos minerais sérvios e bósnios e, em pri­
meiro lugar, da prata. Apesar dos esforços dos soberanos
eslavos, como o déspota Stepan Lazarevic, autor em 1412
de um Código das Minas, e apesar das tentativas venezia­
nas para explorar os privilégios que os reis da Bósnia con­
cedem à sua Comuna em 1410 e 1422, Ragusa escapa a
todo o controlo e detém um verdadeiro monopólio do
comércio da prata. Transportado para Ragusa, que dele
só retém uma pequena parte, o metal é seguidamente diri­
gido para Florença, Pesaro, Puglia, Sicília, Alexandria, mas

326
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

sobretudo para Veneza que o redistribui em todo o


Ocidente, numa altura em que as fontes tradicionais da
prata - Saxe e Boémia - estão praticamente esgotadas.
Além de ouro, relativamente raro, Ragusa exporta ainda
para Veneza o chumbo, o cobre e o cinábrio. Os recur­
sos das zonas costeiras também não são desprezados: na
Albânia e no Épiro do'Sul, Venezianos e Ragusanos dis­
putam o sal, os cereais, os couros, o peixe seco e a valla­ Vallania (do grego baianos =
nia, embora Veneza, normalmente, se contente em alu­ = bolota): baga de uma espé­
cie de carvalho utilizada na in­
gar barcos ragusanos para transporte daqueles produtos dústria de curtumes e em tin­
por sua conta. turaria.

Países gregos: Moreia, Eubeia, Creta ■

'Na Grécia, Veneza, preocupada sobretudo com Creta,


pouco se interessa, até ao séc. xiv, com o tráfico da Acaia,
onde dominam Genoveses, Apúlios, Sicilianos e Ragusanos.
Posteriormente mais tranquila, tira partido das suas posi­
ções em Coron e Módon onde, em contacto com os pro­
dutores sedentários e os nômadas locais (Valáquios e,
depois, Albaneses), a república negoceia em vinhos (mal­
vasia) , passas, figos, sal da Argólida, sedas de Mistra, cere­
ais e banhas da Moreia. Além disso, os Venezianos insta­
lam-se então em Patras e em Clarença, de onde exportam
pequenas quantidades de metais (ouro, prata, chumbo),
seda, mel, cera, trigo, uvas e aves de criação, sem contar
com as carnes, os queijos, a lã, o algodão e a púrpura.
Quando os déspotas da Moreia se apoderam de Clarença,
em 1432, Veneza não é minimamente afectada: é até a par­
tir dessa ocasião que ela aí faz os melhores negócios em
vinhos. A Moreia é tão importante que em 1422 e, mais
tarde, por altura da agitação que se segue a 1453, Veneza
chega a considerar a hipótese de a anexar; é o receio de
complicações com os Turcos que depressa a faz renunciar
à ideia. Mas ela tinha, aliás, um ponto de apoio mais seguro:
o Negroponte (Eubeia). Daqui exporta madeira, couros,
cera, vallania e um pouco de algodão a partir do final do
séc. xiv. O Negroponte desempenha o papel de um grande
entreposto: aí se concentram os trigos da Grécia central e
de Tessalonica, as uvas de Atenas, o sal de Ftéleon, a seda
de Tebas, cujas estreitas relações com a ilha são sublinha­
das por Pegolotti, e todos estes produtos são de seguida
redistribuídos para Veneza ou para as suas colónias. Assim
se compreende a importância da escala do Negroponte na
rota de Constantinopla e, sobretudo, de Tessalonica, a
quem assegura o fundamental do abastecimento.
A importância de Creta é ainda maior. E certo que
aqui se dispõe de vinhos, madeiras e cereais, mas esta pro­
dução local é secundária: em 1331, Creta fornece a Veneza

327
O starium ou staium veneziano vale 40 000 esteres (staia) de trigo, quando a Comuna, em 1342,
entre 58,8 e 64,4 kg.
tem 369 000 nos seus celeiros.
Creta é, de facto, sobretudo uma escala para a Pequena
Arménia (Lajazzo), Chipre, Beirute e Alexandria. Até 1373,
o tráfico com Chipre é o mais importante: não só de lá
chegam a Cândia os produtos cipriotas como o sal e o
açúcar, mas também se vão lá comprar os produtos do
Levante - as especiarias, o ouro e a seda —, que quase
nunca são procurados directamente na Síria. Poste­
riormente, com a conquista de Famagusta pelos Genoveses,
Veneza é obrigada a organizar uma muda especial, que
todos os anos se dirige a Beirute passando por Cândia.
Creta apenas desempenha um papel modesto no comér­
cio com o Egipto: geralmente, a muda de Alexandria evita
Cândia e faz directamente a travessia a partir de Módon;
o que não quer dizer que não haja um tráfico local entre
Cândia, importante mercado de escravos, e o Egipto mame­
luco permanentemente em busca desta mercadoria. Além
disso, Creta está ligada à Ásia Menor turca e às ilhas do
Egeu oriental: é de Creta que são enviados para os seus
postos os cônsules venezianos em Rodes, Palatia (Mileto),
ou Altologo (Efeso); aqui se compram aos Turcos cavalos
e escravos, vendidos depois em Cândia ou Rodes. Mas
essas feitorias servem sobretudo para drenar para Cândia
os produtos que não é possível comprar directamente nas
colónias genovesas de Quios e da Fócida, e acima de tudo
Alúmen: ver pp. 319-320. o alúmen e o mástique. Além disso, em caso de penúria,
Mástique: goma do lentisco, o território turco pode ainda fornecer um suplemento de
utilizada em perfumaria e em cereais que, também ele, transita por Cândia, verdadeiro
confeitaria, e monopólio de
Quios. entreposto geral da Romanie bassa.

■ Quios e a Pequena Arménia

Ao mesmo tempo, Génova pretendia atribuir um papel


semelhante à sua colónia de Quios, reconquistada em
1346 por uma companhia de armadores, a mahone. Graças
a navios maiores e mais modernos do que os de Veneza,
Génova não se especializa tanto em produtos de luxo,
entregando-se antes ao comércio de artigos essenciais: alú­
men da Fócida, cereais da Turquia e do mar Negro, algo­
dão de Chipre e da Síria, vinhos do Oriente são assim
armazenados e concentrados no mercado de Quios, o que
não impede que aqui também sejam recolhidos os açú­
cares cipriotas, bem como as especiarias e as sedas do
Levante e das colónias pônticas.
Para alimentar os seus entrepostos, Génova e Veneza
interessam-se por três mercados: o Levante muçulmano,
grande fornecedor de especiarias, onde - a crer em Sanudo -
os Latinos despenderam, em 1496, 340 000 ducados, dos

328
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

quais 220 000 só em Alexandria, e onde, em 1499, as com­


pras ocidentais são estimadas em 300 000 ducados pelo
peregrino alemão Arnold von Harff; depois, a Pequena
Arménia - «mercado de toda a especiaria» segundo Marco
Polo -, onde, desde as conquistas mongóis, os produtos
do Oriente se acumulam vindos de Baçorá e Bagdade e,
cada vez mais, de Tabriz e de Sivas. Quando a Pequena
Arménia é conquistada pelos Mamelucos, em 1347, o inte­
resse dos Latinos desloca-se para os portos turcos do sul
da Anatólia - Antália (Ataleia) e Aleia (Candelore) - onde
se desenvolvem frutuosas trocas entre as especiarias do
Egipto e a cera, o mel, o açafrão, o sésamo, a lã, o mar­
roquim, os tapetes e os escravos. Assim se compreende o
motivo por que Veneza conclui, em 1453, um tratado com Caramânia: ver p. 339.
o paxá de Caramânia, que lhe assegura uma liberdade
comercial completa nos seus Estados.

A alta România: Péra e o mar Negro ■

Resta a alta România. Já sabemos que Génova domina


aí nitidamente, graças à sua colónia de Péra. Antes de
mais nada, Péra é um importante entreposto de merca­
dorias asiáticas, que os seus mercadores vão comprar sobre­
tudo a Bursa, aonde vão ter as caravanas provenientes da
Síria e de Tabriz: por lá chegam tecidos de seda e de algo­
dão, pedras preciosas, pérolas, sabão branco. Mas Péra
serve principalmente para controlar o mercado do mar
Negro. Génova começa por dominar aqui o Império de
Trebizonda que, desde a invasão mongol, viu desviar-se
para o seu território a principal rota que, a partir de
Tabriz, escoa os produtos do Irão e da índia (seda, dro­
gas, especiarias). Todavia, as perturbações que abalam a
Pérsia têm como resultado a decadência desta via nos mea­
dos do séc. xiv. Mais modesto, o tráfico dos outros por­
tos anatólicos do mar Negro - Amasra (Amastris), Sinope,
Simisso (perto de Samsun) -, também eles dominados por
Génova, é igualmente mais regular: escalas na rota de
Trebizonda, eles exportam para o Ocidente ou para Cafa
os produtos da antiga Paflagónia, transformada no emi-
rado de Kastamonu (madeiras, alúmen, cobre, prata, lã,
marroquim).
O Oeste e o Norte do mar Negro têm maior impor­
tância. Os Genoveses, e os Venezianos quando os deixam,
vão procurar os cereais de Mesêmbria, Vama e Mavrocrasto,
que são revendidos em Constantinopla, Génova ou Veneza.
Mas a grande atracção é exercida pela Crimeia: pelo domí­
nio que detém sobre Cafa e Soldaia, Génova controla aí
a chegada da rota da China que passa por Astracã e que
faz da Gazaria genovesa um importante mercado de espe-

329
ciarias. Não há dúvida, porém, de que a exploração dos pro­
dutos locais é ainda mais rentável: lá se compra aos Turco-
-Mongóis a cera, os couros, as peles e sobretudo os escra­
vos, na sua maior parte destinados ao Egipto. Cafa conhece,
no entanto, uma decadência brutal no final do séc. xrv: as
conquistas de Timur-Lenk desorganizam as suas ligações e
o conquistador mongol dá-lhe o golpe de misericórdia ao
pilhar a região em 1395. Quando Maomé II se apossa dela
em 1475, ainda se fala das suas especiarias e dos seus bro­
cados, mas, longe de poder exportar para o Ocidente, Cafa
limita-se então a abastecer a corte do sultão.

■ Um declínio do comércio do Oriente no séc. xv?

Em valor, se não em quantidade, o comércio oriental


assenta, entre os séculos xm e xv, nos produtos de origem
longínqua e preço elevado, cujas fontes não estão nas mãos
dos Ocidentais. Com efeito, à parte o mástique de Quios,
o alúmen da Fócida, a prata da Sérvia, o mundo mediter-
rânico não produz, por si, mercadorias muito caras. Ora, já
antes de 1340, a Ásia central, e em particular a Pérsia, entram
em graves convulsões que desorganizam as rotas terrestres.
Após a morte do cã Abú-Sa’id, em 1336, os grandes mer­
cados que balizam a rota da índia entram em decadência,
e Ibn Batuta sublinha que Cabul e Razni ficam desde então
em ruínas. Pela mesma razão, o mercado de Tabriz empo­
brece e as rotas que daí partem, quer para Trebizonda, quer
para Sivas, quer para Lajazzo, deixam de oferecer qualquer
segurança. As pilhagens mongóis na Crimeia, a expansão
otomana na Anatólia, o desaparecimento da Pequena
Arménia acabam, nos começos do séc. xv, por repelir os
Latinos dos antigos mercados anatólios e pônticos. A con­
quista de Constantinopla pelos Turcos só contribuiria para
os afastar ainda mais dado que, embora os Otomanos não
sejam hostis ao comércio ocidental, a sua rude fiscalização
faz lembrar demasiado Bizâncio, mas já sem os ricos recur­
sos do séc. xiii. Contudo, os Latinos não os abandonam de
todo: apesar de lá comprarem muito menos, passam sem
dúvida a vender lá mais os produtos do Ocidente procura­
dos pelos Turcos: armas e metais da Alemanha, estanho da
Inglaterra e, sobretudo, tecidos de Florença, Placência,
Veneza (Bérgamo, Verona, Vicência), de Ragusa e mesmo
de Inglaterra e da Flandres, onde Genoveses e Venezianos
levam, em troca, os vinhos e o alúmen.
O apagamento da alta România explica a orientação,
cada vez mais nítida no séc. XV, dos mercadores latinos
para Beirute e, sobretudo, para Alexandria, tributárias das
rotas marítimas do golfo Pérsico e do mar Vermelho que
as convulsões asiáticas não perturbavam, ao mesmo tempo


Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

que o esgotamento das minas do alto Egipto e a deca­


dência da indústria têxtil do delta permitiam vender aí
melhor tecidos e metais do Ocidente. Embora os Genoveses
não deixem de ir ao Egipto, são porém os Venezianos que
triunfam, pelo menos temporariamente, e Creta conhece
então um período de grande prosperidade, tanto maior
quanto, voltada para os restos do seu império, Veneza os
explora melhor e desenvolve uma política de entendi­
mento com os indígenas, cada vez mais presentes nas ins­
tituições coloniais.
Um factor de actividade, desprezado até aqui, deve por
outro lado ser levado em conta: apesar dos seus rigores,
a conquista otomana fez desaparecer, quer na Anatólia
quer nos Balcãs, guerras públicas e privadas, ao mesmo
tempo que o banditismo decresce notavelmente. Desde
meados do séc. xv, graças ao que se pode designar por
Pax Ottomanica, mercadores locais e estrangeiros não hesi­
tam em utilizar - do litoral do Adriático ao coração dos
Balcãs, depois por Istambul e mesmo Bursa - vias terres­
tres muitas vezes abandonadas desde o séc. xn e nas quais
voltam a circular importantes caravanas, de que a maior
parte das chaves está nas mãos dos Ragusanos. E por essas
novas vias que são drenados os metais da Sérvia e da Bósnia,
as moedas turcas desvalorizadas com cujo câmbio se ganha
muito, bem como as sedas turcas que se vão buscar até à
Anatólia. Em troca, elas servem para a distribuição dos
tecidos ocidentais, dos mais comuns - os de Ragusa - aos
mais luxuosos - os de Veneza e, sobretudo, os de Florença.
E que a grande cidade toscana está estreitamente associ­
ada a Ragusa, o que lhe permite, aliás, abrir sucursais ban­
cárias até Andrinopla (Edirna): podem-se calcular os seus
lucros quando se pensa na implicação dos Florentinos,
nos anos 1460, no arrendamento das alfândegas otoma­
nas. Ainda que este tráfico não reactive realmente os paí­
ses atravessados, volta a dar uma evidente actividade às
principais encruzilhadas, como Loannina, Prizren, Skoplje,
Sofia e sobretudo Edirna, onde ricos arrabaldes «turcos»
se expandem na viragem do séc. XV para o séc. xvi.

Não deve haver pressa em falar-se de decadência do


comércio oriental no Mediterrâneo do séc. xv. É certo
que se encerraram mercados, mas outros mantêm-se muito
activos. Em breve, os grandes descobrimentos curto-cir-
cuitam o Mediterrâneo, mas os hábitos comerciais per­
dem-se lentamente: ainda no séc. XVI, muitos clientes con­
tinuam a abastecer-se em Veneza de produtos do Oriente,
até que, após 1525, é a vez de o Egipto se fechar. Só então
o Oriente, com os seus campos subjugados, as suas cida­
des esclerosadas, o seu comércio em declínio, recai numa
inércia que, feitas as contas, acaba por o salvar.

331
Para aprofundar este capítulo

Sobre a vida urbana nos últimos tempos de Bizâncio,


além do artigo de E. KlRSTEN, citado p. 275, e do livro de
G. BRATIANU, Privilèges et Franchises muniàpales dans Vempire
byzantin, Paris-Bucareste, 1936, envelhecido mas sem substi­
tuto, dever-se-á ler P. Charanis, «Town and Country in the
Byzantine Possessions of the Balkan Peninsula during the
Later Period of the Empire», Aspects of the Balkans, Continuity
and Change, Paris-Haia, 1972; E. FRANCÊS, «Constantinople
byzantine aux XIVe et XVe siècles», Revue des Etudes sud-
est européennes, n.Q 7, 1969; além disso, passou recente­
mente a dispor-se da colectânea dos principais artigos de
V. HROCHOVA, «Aspects des Balkans Médiévaux», Univerzita
Karlova, Praga, 1989 (a maior parte em língua francesa).
De notar vários estudos sobre a demografia urbana,
sobretudo D. JACOBY, «La population de Constantinople
à Fépoque byzantine: un problème de démographie
urbaine», Byzantion, 31, 1961; e «Les Juifs vénitiens de
Constantinople et leur communauté du XIIIe au XVe siè-
cle», Revue des Études Juives, CXXXI, 3-4, 1972. Quanto à
Moreia, numerosos estudos de pormenor em D. ZAKY-
THINOS, Le Despotat grec de Morée, t. 2, Atenas, 1953.
Sobre a vida urbana nas zonas latinizadas, além das
teses de Fr. Thiriet e M. BALARD, ver A. DUCELLIER, La
Façade maritime de VAlbanie au Moyen Age: Durazzo et Valona
du XIe au XVe siècle, Tessalonica, 1981; e, do mesmo, «La
présence latine sur la façade occidentale des Balkans à la
fin du Moyen Age», Actes du colloque International Cities and
Interexchange Cities in the Slavo-Byzantine Area, Erice, 1989.
De M. Balard e G. Veinstein, «Continuité ou change-
ment d’un paysage urbain? Caffa génoise et ottomane»,
Le Paysage urbain au Moyen Age, Lyon, 1981; do mesmo
M. BALARD, «Péra au XIVe siècle. Documents notariés des
Archives de Gênes», Les Italiens à Byzance, dir. por
M. BALARD, Paris, Byzantina Sorbonensia, 6, 1987. Ver tam­
bém J. KODER, Negroponte, Viena, 1973 e G. PlSTARINO,
«Chio dei Genovesi», Studi Medievali, X/l, 1969.
Sobre os impérios coloniais e as suas mudanças nos
sécs. xiv e XV, ver o conjunto da colectânea Etat et Colonisa-
tion au Moyen Age, dir. por M. BALARD, Paris, 1989, e em
particular os estudos de J. HEERS, «Origines et structures
des compagnies coloniales génoises (XIIIe-XVe siècles)»,
de B. ARBEL; «Résistance ou collaboration, les Chypriotes
sous la domination vénitienne», de B. DOUMERC, «La Tana
au XVe siècle: comptoir ou colonie?», e de S. P. Karpov,
-Grecs et Latins à Trebizonde (XIIIe-XVe siècles). Collabo­
ration économique, rapports politiques».
Cidades e actividades comerciais no final da Idade Média

Sobre os mercadores indígenas, B. KREKIC, Dubrovnik


(Raguse) et le Levant au Moyen Age, Paris-Haia, 1961; A.
LAíOU-ThoMADAKIS, «The Byzantine Economy in the
Mediterranean Trade System, XlIIth-XVth centuries»,
Dumbarton Oaks Papers, 34-35, 1982; e «The Greek Merchant
of the Palaeologian Period: a collective Portrait, Praktika
de 1’Académie d’Athènes», n.- 57, 1982.
Sobre a crise e os novos circuitos do comércio latino,
E. ASHTOR, Levant Trade in the Later Middle Ages, Princeton,
1983; e sobretudo B. Z. Kedar, Merchants in crisis. Genoese
and Venetian Men of Affairs and the XlVth century Depression,
New Haven-Londres, 1976; assim como E. A. Zacharia-
DOU, Trade and Crusade. Venetian Crete and the Emirates of
Mentesche and Aydin (1300-1415), Veneza, 1983. As novas
orientações venezianas poderão ser apreciadas através da
leitura de Fr. Thieret, «La crise des trafics au Levant dans
les premières années du XVe siècle», Studi in memória di F.
')%)&+)%'Melis,
%) " !!III,
!"!"Florença,
!" ""!" !% " !' "e de
1979; " !"B."(!" !+ ""! !"!" «La
ÜOUMERC, !! " !" ! ""!"
crise !" ""!" " sz" !! "
struc-
e
turelle de la marine vénitienne au XV siècle: le problème
du retard des mude», Annales ESC, 1985, 3. Ver também
A. DuCELLIER, «Perturbations et tentatives de reconversi-
ons en Adriatique à 1’époque de la guerre de Chioggia: le
cas de Raguse», Byzantinische Forschungen, XII, 1987.
Sobre a retoma do tráfico terrestre, A. DUCELLIER, «Du
monopole ragusain à la redécouverte des fonctions de
transit», LAlbanie entre Byzance et Venise, já citada; e «La
place des Toscans et des Italiens du Nord dans le com-
merce balkanique au XVe siècle: Fapport des sources ragu-
saines», Byzantinische Forschungen, XI, 1987.

333
19
Mudanças políticas e novas
fronteiras nos sécs. xiv-xv

1. O Império Bizantino: lutas nas fronteiras


e desagregação interna

■ Os perigos externos na viragem do séc. XIII para o séc. XIV

Politicamente, a agonia de Bizâncio começa com a


morte de Miguel Paleólogo, em 1282. A crise rural e as
punções dos Latinos esvaziam um Tesouro já rudemente
posto à prova por uma política ambiciosa conduzida ao
longo de vinte anos. Ora, o perigo externo torna-se grave
e múltiplo: no início do séc. xiv, quando Bizâncio acaba
de abandonar a Macedónia aos Sérvios e de ceder novas
ilhas a Veneza e a Génova, os emires turcos da Anatólia,
herdeiros do sultanato de Rum obscuramente desapare­
cido em 1308, devoram quase todos os seus territórios
asiáticos, com excepção do extremo Noroeste e de algu­
mas fortalezas isoladas como Sardes, Filadélfia, Magnésia,
Heracleia do Ponto, Fócida e Esmirna. Com a crise demo­
gráfica e o sistema pronoiário a impossibilitarem a cria­
ção de um exército nacional, impõe-se cada vez mais o
recurso ao mercenariado. Ora, em 1302, Carlos II da
Sicília e Frederico II de Aragão assinam a paz de Calta-
bellota, deixando sem emprego importantes tropas de
infantaria aragonesas e navarras - os Almugavares.
Contratados por Andrónico II em 1303, eles repelem
seriamente os Turcos em 1304-1305; não tendo, porém,
recebido nenhum soldo, desencadeiam uma longa revolta
que, terminada apenas em 1311, arruina o Império e
deixa atrás de si, em Atenas, um ducado catalão que sub­
siste até 1388. Debilitados, os Gregos vêem pela primeira
vez, entre 1311 e 1314, os Turcos saquearem impunemente
a Trácia.

■ Guerras civis e intervenções estrangeiras (1238-1355)

Ao que fica dito acrescentam-se as lutas intestinas.


Pelo menos desde o final do séc. xin, o exemplo dos
usos e costumes ocidentais começa a fazer esquecer aos

534
Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. xiv-xv

príncipes bizantinos o velho princípio da unicidade do


Império. Irene de Montferrat, segunda mulher de Andró-
nico II, chega a reclamar apanágios para os seus filhos:
a ideia de que o território imperial é uma possessão
familiar faz o seu percurso. Em 1321 rebenta uma guerra
civil que opõe Andrónico II ao neto, Andrónico III, e
que se salda, em 1328, por uma partilha do trono. Os
dois adversários introduziram, entretanto, estrangeiros
na sua querela, com Andrónico II fazendo apelo aos
Sérvios e o seu neto a apoiar-se nos Búlgaros; por outro
lado, o pequeno emirado dos Osmanlis (Otomanos),
aproveitando-se da crise, apodera-se de Bursa (Brusa)
em Abril de 1326 e Andrónico III - bom soldado, mas
preocupado sobretudo com o restabelecimento da ordem
no Ocidente -, intervém demasiado tarde na Ásia. Em
Fevereiro de 1331, é desbaratado em Pelêkanon, o que
permite ao sultão Orcan conquistar Niceia, a seguir
Nicomédia, até dispor, em 1340, de uma centena de pra­
ças-fortes.
Ora, com a morte de Andrónico III, em Junho de 1341,
Bizâncio mergulha de novo na guerra civil. Tendo como
fundo social a revolta dos zelotas, João VI Cantacuzeno, Sobre os zelotas: ver p. 317.
apoiado pelos Sérvios e os Turcos de Aidin, expulsa em
1347 a regente Ana de Sabóia, sustentada pelos Búlgaros.
Infelizmente para Cantacuzeno, os seus aliados sérvios são
dominados por um czar ambicioso e genial, Estevão Dusan,
que se volta contra ele, ocupa toda a Macedónia - com
excepção de Tessalonica —, depois o Epiro, a Albânia, a
Acarnânia, a Etólia e a Tessália. Coroado imperador dos
Sérvios e dos Gregos em 1346 por um patriarca que ins­
talara em Skopje, torna-se evidente que o seu objectivo é
a instauração de um grande Império greco-eslavo. Mas,
por falta de forças navais, não consegue tomar Constan­
tinopla. Vingar-se-á dando apoio a João V, revoltado con­
02000202010100020001020001020002000102000202000202010200021000020001070002090602000107000203010
tra Cantacuzeno, que é forçado a abdicar em Novembro
de 1354. Dusan morre em Dezembro de 1355 mas,
enquanto os Cantacuzenos se retiram para a Moreia, o
Império grego fica reduzido à Trácia, a Tessalonica e a
algumas ilhas egeias. Além disso, desde 1354, os Otomanos,
a quem Cantacuzeno pedira ajuda, detêm firmemente
Gallipoli, cabeça de ponte que lhes permite passar da Ásia
à Europa.
Minados pelos seus fracassos externos e desorganiza­
ção interna os estados balcânicos dissociam-se. Sobre os
restos do Império, a Moreia, convertida em despotado, é
então um verdadeiro Estado, reconquistado aos Canta­
cuzenos (1382) para ser, logo a seguir, confiado aos filhos
dos imperadores reinantes, ao mesmo tempo que outros
«apanágios» menos estáveis aparecem e desaparecem em
Tessalonica ou nas costas ainda bizantinas do mar Negro.

335
Quanto ao Império de Dusan, fragmenta-se em principa­
dos autónomos no Epiro e na Macedónia (despotado de
Serrés).

2. Progresso e crise do Império


Otomano (1362-1421)

■ Sortes e azares das coligações balcânicas

Os Turcos são os únicos beneficiários desta situação.


A pouco e pouco submetem a Trácia e apoderam-se de
Andrinopla que, com o nome de Edirna, é elevada ao nível
de capital pelo sultão Murad I (1362-1389). Quando ata­
cam a Bulgária e a Sérvia, os Eslavos tentam reagir, mas o
rei Vukasin e seu irmão, o déspota João Ugliesa, são esma­
gados na batalha de Tchernomen, nas margens do Maritza,
em 26 de Setembro de 1371. Enquanto a Macedónia se
torna tributária dos Turcos, o próprio imperador João V
se reconhece como vassalo do sultão, que é obrigado a
acompanhar, em 1373, numa campanha na Asia Menor. 04
O Ocidente não presta qualquer ajuda. Em 1367João V
dirigiu-se lá, prometendo constituir a União das Igrejas,
mas a sua conversão pessoal só lhe trouxe boas palavras.
Ora, depois de 1380, a conquista otomana acelera-se: após
a Macedónia Ocidental, a Albânia é ocupada em 1385-
-1386, ao mesmo tempo que caem Sofia e Nish. A partir
de então, nenhum obstáculo pode deter os Turcos na sua
marcha para o Danúbio e o Adriático. Único recurso: a
união contra eles dos povos balcânicos. Desde o Verão de
1388, a aliança do príncipe Lázaro da Sérvia, neto de
Dusan, com o rei Tvrtko da Bósnia, permite obter algu­
mas vitórias, o que encoraja os Búlgaros, os Albaneses e
os Valáquios a juntar-se-lhes na revolta. A superioridade
numérica e o génio militar de Murad I decidem, porém,
a vitória: em 15 de Junho de 1389, a coligação é destro­
çada em Kossovo Polje, onde perdem a vida, ao mesmo
tempo, Lázaro e o sultão, a quem sucede o filho, Bayazid I.
Este último quer levar as coisas até ao fim. A Sérvia
torna-se vassala dos Turcos; depois, a Bulgária, invadida
em 1392 apesar de uma intervenção de Segismundo, rei
da Hungria, é anexada em 1393. Mas Bayazid enfrenta,
na Europa, três obstáculos: a Bósnia, enclausurada nas
suas montanhas; a Valáquia, cujo príncipe, Mircea o
Grande, consegue bater os Turcos em Rovina em 1395;
e. por fim, os restos do império grego. A partir de 1392,

336
Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. xiv-xv

monta cerco a Constantinopla. Desta vez, o Ocidente tenta


reagir: em 1396 os Venezianos, e posteriormente, em 1399-
-1400, os Franceses do marechal de Boucicaut conseguem
romper o bloqueio. Mas uma expedição terrestre coman­
dada pelo rei da Hungria é desbaratada, no dia 25 de
Setembro de 1396, em Nicópolis, no Danúbio.

O império eurasiático de Bayazid / ■


e o choque com Tamerlão

Bayazid, no entanto, não triunfa. Primeiro sultão a ter


concebido um império eurasiático, ele quis, de facto, ata­
car, ao mesmo tempo que os Balcãs, os emirados turco-
manos da Anatólia. Enquanto em 1389 o Estado Otomano
era quase inteiramente europeu, nove anos mais tarde,
em 1398, o sultão já tinha conquistado a maior parte da
Ásia Menor: emirados marítimos de Aidin, Menteshe e
Saruhan, a costa norte, com a expulsão dos emires de
Kastamonu, e o próprio bastião da Caramânia. Senhor das
costas, constrói uma frota e assalta Esmirna - onde resis­
tem os Hospitalários -, Quios, o Negroponte, a Ática, e
faz de Antália o primeiro porto otomano no Mediterrâneo.
Não contava ainda com uma força nova e temível que
acabara de nascer na Ásia Central: a de Timur-Lenk. Este Timur-Lenke: conhecido no
turco da Transoxiana, que começou como empregado do Ocidente pelo nome de Ta­
merlão.
cã mongol de Djagatai, e foi proclamado rei da Transoxiana
em Balkh, em 1370, tinha entretanto submetido o Khwârizm,
o Turquestão oriental, o Irão, a Geórgia, a Arménia, o
Qiptchaq, o sultanato muçulmano de Deli; em 1401, é
senhor do Iraque onde, mais uma vez, Bagdade é pilhada.
Por esta altura, ele está em contacto com os dois maiores
estados muçulmanos — o Sultanato Mameluco e o Império
Otomano. Face à recusa do primeiro em reconhecer a sua
suserania, a Síria é devastada em 1400-1401; depois, tomando
como pretexto a deposição dos emires anatólios, Timur
invade a Ásia Menor em Junho de 1402. Em 20 de Julho,
Bayazid é derrotado e feito prisioneiro na batalha de Ancira.
Aparentemente, o Estado Otomano está destruído: na
Ásia não mantém senão a Bitínia e uma parte da Frigia e
os seus territórios europeus estão retalhados pela rude
rivalidade dos filhos de Bayazid. Em Bizâncio, o impera­
dor Manuel II (1391-1425) aproveita este compasso de
espera para se impor na Moreia onde, em 1414-1415, sub­
mete à sua autoridade o príncipe latino Centurione
Zaccaria e os indisciplinados magnatas gregos. Reatada
por seus filhos, os déspotas de Mistra Teodoro II e
Constantino Dragasés, a reconquista definitiva da Moreia
é concluída em 1430; dc fora, ficam Coron, Módon, Argos
e Náuplia, que continuam nas mãos de Veneza.

337
3. Recuperação otomana e morte de Bizâncio

■ A obra de Murad //, Bizâncio e o Ocidente

Mas a oportunidade perde-se. O Ocidente, dominado


pela guerra dos Cem Anos e pela rivalidade veneziano-
-húngara na Friúlia, Bósnia e Dalmácia que apenas se
extinguirá em 1437, não ouve os apelos de Manuel II e
do déspota Estevão Lazarevic. Assim, o império otomano
pode tranquilamente sair do caos em que caíra, quando,
em 1413, o sultão Maomé I, depois de ter eliminado todos
os irmãos, se acha senhor único do trono.
Pacífico e reorganizador, Maomé I mantém a paz até
à sua morte, em 1421. Mas com Murad II (1421-1451),
contra quem Manuel entendera dever apoiar o irmão
Mustafa, são retomadas as hostilidades: em 1422, Cons­
tantinopla é novamente sitiada e Manuel só vê o cerco
levantado em 1424, ao assinar um novo tratado de sujei­
ção pelo qual Bizâncio se compromete a pagar ao sultão
um tributo de 300 000 aspres e lhe cede quase todas as
posições no mar Negro. Em 1430, Tessalonica, adquirida
por Veneza em 1423, passa para as mãos dos Turcos, ao
mesmo tempo que Murad expulsa da Sérvia o déspota
Sob Maomé II, o Império é dividido em Jorge Brankovic e reduz a Albânia ao estado de sandjak.
dois governos-gerais O novo imperador grego, João VIII (1425-1448), já só
(beilerbeilicados/- a Anatólia (Ásia) e a
Romélia (Europa), englobando o primeiro domina a sua capital. A partir de 1431, resta-lhe ter alguma
20 e o segundo 28 provindas esperança nas negociações que mantém com o Ocidente
denominadas sandjaks (estandartes).
e que concluirão, em 1439, com a união das Igrejas, pro­
clamada no Concílio de Ferrara-Florença.
São, no entanto, dois pólos locais de resistência que
detêm então os Turcos: os Húngaros que, sob a direcção
de João Hunyadi, vão batê-los na Sérvia e na Bulgária, em
1443-1444, e os Albaneses que Jorge Kastrioti, o célebre
Skanderbeg, arrasta, no mesmo ano, para a revolta. Pela
primeira vez, Murad recua: em 1444, pela paz de Szeged,
aceita o restabelecimento do déspota sérvio e atenua a sua
pressão sobre a Valáquia. Mas Roma crê, à luz das recen­
tes vitórias, que é possível abater o sultão. Desvinculados
pelo papa dos juramentos prestados em Szeged e esperando
o apoio de uma frota veneziana no mar Negro, os Húngaros
invadem a Bulgária. Em Varna, onde Murad os aguarda,
só podem, porém, contar consigo mesmos em 10 de Novem­
bro de 1444: destroçados, deixam no campo de batalha o
seu rei, Vladislav, e o legado do papa, o cardeal Cesarini.
Em Varna fracassa a última das cruzadas. De futuro, o
Ocidente renuncia a salvar o que resta do Oriente cristão.
Aliviado, o sultão dedica-se a anular as resistências
locais: em 1446, invade a Moreia; em Outubro de 1448.
Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. XIV-XV

derrota João Hunyadi na segunda batalha de Kossovo; ape­


nas Skanderbeg se manteria invicto até à morte, em 1468.
Constantinopla não passava de um pormenor, que coube
enfim a Maomé II, o Conquistador, eliminar. Constan-
tino XII Dragasés, que nela reinava desde Março de 1449,
é aí sitiado desde o começo de 1451. Na falta de uma
ajuda maciça do Ocidente, soldados genoveses e navios
venezianos mais não conseguem do que retardar a queda
da cidade até 20 de Maio de 1453.

A tomada de Constantinopla ■

No decénio seguinte, Maomé elimina todas as resis­


tências: o ducado de Atenas em 1460, a Sérvia em 1459,
a Moreia em 1460, Trebizonda em 1461, a Bósnia em 1463.
Restava a Albânia... Novamente invadida após a morte de
Skanderbeg, as suas praças-fortes caem uma a seguir à
outra: Kruja em 1478, Shkodra (Scutari) em 1479: à parte
Durazzo, que Veneza ainda conserva, os Turcos passam a
ser os seus donos e senhores.
O próprio Ocidente passa a estar ameaçado: nos últi­
mos anos do Conquistador, os Turcos penetram na Áustria,
põem a Istria e a Friúlia a ferro e fogo, avançam até Veneza
e, em 1480, desembarcam na Puglia, onde se apoderam
de Otrante. O sultão, com isto, não esquece a Ásia: a pouco
e pouco, absorve os emirados reconstituídos após 1402,
sobretudo a Caramânia, passando em breve o sultanato
turcomano do Carneiro Branco (Akkoyunlu), na Anatólia
oriental, a ser o único obstáculo. Durante muito tempo,
Roma e Veneza apostaram no respectivo senhor, Uzun
Hasan, em quem viam um interessante aliado. Gravemente
batido, porém, em 1473, o sultão do Carneiro Branco
deixa de ser uma ameaça séria para os Turcos.

O Principado moscovita no séc. xv ■

À data da morte do Conquistador, em 4 de Maio de


1481, a reunificação do Oriente mediterrânico pelos Turcos
parece inevitável. Em 1517, após a conquista do Egipto,
trata-se de um facto consumado. Ao mesmo tempo, outro
poder unificador desenvolve-se no nordeste eslavo: já em
1380, o grande príncipe de Moscovo, Dmitri Donskoi,
tinha ousado defrontar, na batalha de Kulikovo, os Tatares,
em plena decadência, e ainda mais enfraquecidos após
1391, pela incursão de Timur-Lenk (Tamerlão). Exacta- Ver mapa p. 395 B.
mente cem anos mais tarde, Ivan III deixa definitivamente
de lhes pagar tributo, apoderando-se depois de Kazan, em
1487. «Unificador da terra russa», anexa os principados
de Riazan e de Tver e, sobretudo, em 1478, a república

339
de Novgorod, etapa decisiva no avanço da Rússia para o
mar. Nem todas as cartas estão, porém, jogadas. A ane­
xação de Novgorod aviva a hostilidade da Lituânia, com
quem os Russos estão em contacto desde o final do séc. xiv.
Em 1500, Ivan III é rudemente derrotado em Dorogobuj
(Vidros), ao mesmo tempo que um sobressalto tatar o faz
perder Kazan em 1505.
Depois de o ter dominado e esgotado economicamente,
o Ocidente apresta-se, no final do séc. XV, para abando­
nar o Oriente ortodoxo e muçulmano. Mas as novas rea­
lidades políticas que aqui acabam de nascer, e que os
Latinos contribuíram para suscitar sapando o velho edi­
fício imperial, representam uma verdadeira potência: com
os Turcos até ao séc. xvni, e posteriormente com os Russos,
o Ocidente tem de fazer face às ofensivas de um Oriente
de que, durante séculos, fora ele o assaltante.

4. Destino do mundo arábico-muçulmano

■ O sultanato mameluco do Egipto

Os Mamelucos, esses escravos turco-mongóis ao serviço


dos últimos sultões ayyúbidas, a quem tinham assegurado
o poder e mesmo o essencial do prestígio militar - em
Fevereiro de 1250 são eles os verdadeiros vencedores da
batalha de Mansúra -, tinham liquidado o último repre­
sentante daquela dinastia no mês de Maio seguinte, subs­
tituindo-o por um regime político-militar de que há pou­
cos exemplos. Os emires mamelucos, de origem servil,
passaram a escolher entre eles um sultão. Por definição,
o poder deste não pode ser hereditário. Assim, pelo menos
quanto ao primeiro período mameluco (1250-1382), o dos
Bahritas («os fluviais», pois esses escravos comprados no
mar Negro tinham começado por ser aquartelados numa
ilha do Nilo), não se pode falar de «dinastia» antes do
grande sultão Qala’ún (1279-1290), cuja linhagem detém
o poder até 1381.
O Egipto conheceu então horas gloriosas: Baybars
(1223-1277) é simultaneamente o vencedor dos Mongóis
em Ain Jâlüd em 1260, o «pacificador» da Síria, o res­
taurador da ordem interna e do califado abássida, numa
palavra, um novo Saladino; sucede-lhe Qala’ún, que é o
iniciador da tripla aliança com o Qiptchaq e Bizâncio e
também o que prepara a queda definitiva das últimas pra­
ças cruzadas da Palestina, em 1291, já no reinado de seu
filho. Com estes grandes soberanos, o Egipto tornou-se

340
Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. xrv-xv

incontestavelmente no pilar do mundo muçulmano, sobre­


tudo quando recupera, após a queda de Bagdade em 1258,
uma linhagem de califas abássidas, é certo que um pouco
suspeita, mas que faz dos seus sultões, para grande número
de Muçulmanos, os garantes da legitimidade sunita, tanto
mais quanto é o Egipto quem controla e protege os Lugares
Santos do islão. Também então, o Egipto floresce como
transitário dos produtos do Oriente entre o mar Vermelho
e o Mediterrâneo, para grande proveito dos mercadores
que nisso se especializam - os Kârimis.
Apesar dos esforços de reorganização dos sultões do
séc. xiv, a braços com uma crise social que não conse­
guem resolver, a dinastia bahrita extingue-se em 1381; e
os novos senhores do Egipto, os Mamelucos Circassianos
- que melhor seria designar por Tcherkessos - vêem degra­
dar-se cada vez mais uma situação interna onde, acima de
uma população «árabe» desprezada e de emires mame­
lucos empobrecidos, grandes emires e arrendatários dos
impostos são os verdadeiros detentores do poder, com
cujo exercício enriquecem ao mesmo tempo que desen­
corajam a iniciativa pela sua política de monopólios cada
vez mais tentaculares. O único episódio «glorioso», a expe­
dição do sultão Barsbay (1422-1437) a Chipre, de onde
traz, prisioneiro, o rei Janus, não passa de poeira nos
olhos. O Egipto mameluco compreende, no entanto, que
a descoberta da rota do Cabo pelos Portugueses repre­
senta para ele um perigo mortal: a última glória mameluca
é a infeliz expedição do velho sultão Qânsúh Ghaurí (1501-
-1516) que, em 1508-1509, envia a sua frota à costa da
índia para tentar barrá-la aos descobridores. Acabou por
ser aí destroçada.
A renovação muçulmana vem do Leste. O que pode
causar admiração é que o Egipto e a Síria mamelucos não
tenham conhecido, apesar de constantes cumplicidades
com os Turcos, senão revoltas sempre abortadas e que
seja preciso esperar-se por 1517 para ver os Otomanos
penetrarem enfim nas suas defesas. E também nessa data
que os Turcos desembarcam na Argélia, marcando dura­
douramente um Magrebe onde se consolidam as «nações»
magrebinas que hoje são as nossas interlocutoras.

O Magrebe e a Andaluzia no final da Idade Média ■

Na Ifriqiya, a derrocada do império almóada foi obra


de uma grande família que, durante muito tempo, fora o
mais firme apoio do califado ocidental, cuja «heresia» se
tinha tornado insuportável para populações onde o islão
sunita sempre fora catequizado, na Andaluzia como no
Magrebe, por doutores da escola malikita. E é assim que,

341
desde o princípio do séc. xin, o malikismo vai prevale­
cendo por todo o lado, e são os Hafécidas - esses firmes
apoiantes dos Almóadas - que se tornam nos seus cam­
peões.

iiÜÜliíUÜÜlUÜiiUUUUUlUlilUUliiUiUiUiiüUHiüuiiiiíiüiiiHiiüJuknuiimiHHüUiiüiiidHhiiUüUiüimüU
É em 1228 que o primeiro de entre eles, Abú Zakarya,
toma o poder para, em 1236, se achar senhor de um ter­
ritório que, segundo o relato dos Genoveses que nego­
ceiam com o novo Estado, se estende de «Trípoli da Ber-
béria até aos confins ocidentais do Bejaoua». A cidade de
Tunes torna-se então no verdadeiro centro da Ifriqiya,
como o testemunham as decorações e as fortificações com
que a dotam soberanos como al-Mustansir (1249-1277),
filho de Abú Zakarya. Ele apresenta-se como competidor
dos Mamelucos e assume o título califal: dos Násridas da
Andaluzia aos Merínidas de Fez e aos reis de Tlemcen,
todo o Magrebe reconhece a sua preeminência.
Mas com a sua morte estalam intermináveis querelas
sucessórias. As tribos seminómadas, chamadas em seu
socorro pelos candidatos ao trono e pagas por estes atra­
vés das pesadas rendas cobradas aos sedentários, desen­
cadeiam rebeliões e secessões até cerca de 1370, enquanto
a Ifriqiya vive sob a ameaça das potências cristãs e, sobre­
tudo, de Aragão (conquista de Djerba em 1284).
Os Hafécidas vêem-se então constrangidos a solicitar
o auxílio de uma potência em ascensão, os Merínidas de
Fez, cujo maior sultão, Abü’l-Hasân, depois de ter sub­
metido o reino de Tlemcen e defrontado os Castelhanos
em terra e no mar, entra em Tunes em 1347. Acabará por
renunciar perante a revolta das tribos e a secessão de
Trípoli, uma constante a partir de então na história da
Ifriqiya; o seu sucessor, Abú Inân, não conseguirá melhor
em 1357. A restauração hafécida em 1370 é, aliás, tam­
bém obra das tribos. O novo sultão, Abúl-Abbâs, graças
aos seus esforços de restauração da ordem interna e à efi­
cácia das suas defesas contra os Latinos, assegura ao país
um século de estabilidade, confirmada pelo longo reinado
de seu filho, Abú Faris (1394-1434) que, em 1431, con­
segue mesmo que os Merínidas lhe rendam homenagem.
Mas os privilégios concedidos a Génova, Veneza e a
Aragão arruinam o tesouro e privam os soberanos dos
meios que lhes teriam permitido manter a ordem. Já o
reinado do filho de Abú Faris, Uthmân (1435-1488), <
marcado por secessões, rebeliões tribais e revoltas palacia
nas, com a pirataria latina em fundo. Em breve, a Ifriqíy;
será uma presa fácil para os Turcos, senhores do Egiptc
e de Argel em 1517, e para a Espanha unificada que, en
1492, derruba o pequeno reino andaluz dos Nasridas
antes de lançar temíveis cabeças de ponte nas costas magre
binas. Tempo decisivo, no entanto, para o Magrebe onde

342
1
Mudanças políticas e novas fronteiras nos sécs. xiv-xv

ao ritmo da reconquista dos Cristãos na Península Ibérica,


chega, desde o séc. xm, um fluxo constante de emigrados
andaluzes, que aumenta ainda com a queda de Granada
e com a política de rigor dos Reis Católicos, nos primei­
ros anos do séc. xvn. De Sebta (Ceuta) a Tunes, saber, cul­
tura e arte magrebinos são então profundamente marcados.

Para aprofundar este capítulo

Sobre as crises bizantinas nos sécs. xin e xrv, além das |


obras gerais (OSTROGORSKI, DUCELLIER, etc.), e dos tra­
balhos citados na bibliografia do capítulo 16, encontrar-
-se-á um resumo cómodo em D. NlCOL, The Last Centuries
of Byzantium, 1261-1453, Londres, 1972. Sobre Andró-
nico III, ver U. V. BOSH, Andronikos III Palaiologos. Versuch
einer Darstellung der Byzantinische Geschichte in den Jahren
1321-1341, Amesterdão, 1965; e, sobre os Cantacuzenos,
deverá ler-se D. NlCOL, The Family of Kantacouzenos, ca.
1100-1460, Dumbarton Oaks Studies, XI, 1968; e o livro
de G. WEISS, Joannes Kantakuzenos. Aristokrat, Staatsmann,
Kaiser und Monch, Wiesbaden, 1969. Sobre a organização
administrativa nesta época, L. R. RAYBAUD, Le Gouvemement
et lAdministration centrale de Vempire byzantin sous les premi-
ers Paléologues, Paris, 1968; sobre a importante reforma de
Andrónico III, P. LEMERLE, «Le Juge Général des Grecs
et la réforme judiciaire d’Andronic III», Mémorial Louis
Petit, Paris, 1948; C. P. KYRRIS, «The Political Organization
of the Byzantine Urban Classes between 1204 and 1341»,
Liber Memorialis Antonio Era, Bruxelas, 1963; e «Continuity
and Differenciation on the Regime established by Andro-
nicus III after his Victory of 23-24 May 1328», Epetèris
Byzantinôn Spoudôn, XLIII, Atenas, 1978. A história da revo­
lução zelota pouco se renovou desde O. TafRALI, Thessa-
lonique au XIVe siècle, Paris, 1913, a completar com C. P.
K.YRRIS, «Gouvemés et gouvernants à Byzance pendant la
révolution des Zélotes (1341-1350)», Recueil de la Société
Jean Bodin, XXIII, Bruxelas, 1968.
Sobre as modificações do sistema imperial na viragem
do séc. xiv para o séc. xv, ver J. W. BARKER, Manuel II
Palaelogus, 1391-1425, A Study in Late Byzantine Statemanship,
New Jersey, 1969; ler, do mesmo, «The Problem of the
Appanages in Byzantium», Byzantina, III, 1971; acrescen­
tar A. DUCELLIER, «Les “principautés byzantines” sous les
Paléologues: autonomismes réels ou nouveau système impé-
rial», Actes du Colloque de lAssociation des Médiéuistes, Bordéus,
1979; sem esquecer D. ZAKYTHINOS, Le Despotat Grec de
Morée, já citado.

343
Sobre a conquista otomana, além de muitas obras cita­
das nos capítulos precedentes, deverá sempre recorrer-se,
no que respeita às bases da expansão, a P. WlTTEK, The
Rise of the Ottoman Empire, reed., Londres, 1966; e a obra
de F. BABINGER, Mahomet II le Conquérant et son Temps, Paris,
1954, engloba também um estudo do reinado de Murad II.
Actualmente já se dispõe do essencial dos artigos, funda­
mentais, de H. INALCIK, Studies in Ottoman Social and
Economic History, Londres, 1985; a completar com outra
colectânea, E. A. ZACHARIADIOU, Romania and the Turks
(c. 1380-C.1500), Londres, 1985; e com a de Sp. VRYONIS,
Studies on Byzantium, Seljuks and Ottoman, Malibu, 1981.
Sobre o caso de Dubrovnik, M. M. FREIDENBERG, Dubrovnik
i Osmanskaja Imperija, 2.- ed., Moscovo, 1989.
Sobre o mundo arábico-muçulmano, deverá ler-se, quanto
ao Egipto mameluco, R. IRWIN, The Middle East in theMiddle
Ages. The Early Mamluk Sultanate, 1250-1382, Londres, 1986;
mas, no que respeita à segunda dinastia mameluca, deverá
ainda recorrer-se ao livro, envelhecido, de W. MUIR, The
Mameluke or Slave Dynasty of Egypt, Londres, 1896, a com­
pletar e corrigir graças à colectânea de D. AYALON, Studies
on the Mamluks of Egypt, 1250-1517, Londres, 1977. Sobre
a expansão do islão na África oriental, A. G. B. e H. J. FlS-
HER, Slavery and Muslim Society in África, Londres, 1970; e
J. CUOQ, LIslam enEthiopie, Paris, 1981. Sobre o Magrebe,
além das reflexões gerais de A. LAROUI, LHistoire du
Maghreb,já citada, ver o livro, ainda essencial, de R. BRUNS-
CHVIG, La Berbérie orientale sous les Hafsides, 2 vols., Paris,
1940-1947; a contribuição de M. MRABET para a Histoire
de Tunisie, t. 2, Le Moyen Age, Tunes, s. d.; M. BRETT, «The
City-State in Medieval Ifriqya: the case of Tripoli», Cahiers
de Tunisie, t. 34, n.- 137-138, 1986; e, no mesmo volume,
M. De Epalza, Etude d’éléments urbanistiques d’al-Andalüs, e
B. ÜOURMEC, «La ville et la mer: Tunis au XVe siècle».
Sobre o Magrebe Ocidental, D. J. MEUNIE, Le Maroc saha-
rien des origines à 1670, 2 vols., Paris, 1982; e sobretudo M.
Kably, Société, pouvoir et religion au Maroc à la fin du Moyen
Age, Paris, 1986. Sobre o fim da Andaluzia muçulmana, R.
Arie, LEspagne musulmane au temps des Nasrides, Paris, 1973,
e da mesma, Espana Musulmana (siglos VIII-XV), Barcelona,
1983, onde se encontrará, por outro lado, uma preciosa
bibliografia dos trabalhos em língua espanhola, sem esque­
cer a contribuição de P. GuiCHARD para a Histoire des
Espagnols, dirigida por B. BENNASSAR, t. 1, pp. 127-158,
Paris, 1985.

344
20
Rumo a um encerramento cultural
do Oriente?

Facilmente se compreende que, desorientados pelas crises políticas, as convulsões sociais e as difi­
culdades económicas, os espíritos tenham, de um modo geral, procurado refúgio, quer no islão quer
em países cristãos, em doutrinas místicas que, face à constante adversidade, proclamavam a possibi­
lidade de cada um alcançar a verdade e a beatitude.

1. Misticismo e tradição
no mundo muçulmano

O ardor místico na Síria e no Egipto ■

No mundo islâmico, o Egipto e a Síria mamelucos, ape­


sar do seu retorno oficial à ortodoxia sunita, assistem ao
entrechocar e à mistura das doutrinas mais diversas. Os
xiitas continuam a ser numerosos, tal como o são os ilu­
minados, os místicos panteístas e os intelectuais que, arras­
tados por uma tendência geral para o sincretismo reli­
gioso e filosófico, chegam por vezes a abandonar as regras
fundamentais do islão. Foi o caso de Izz al-Dín ibn Nadjâ’
que, em Damasco, nos meados do séc. xni, não satisfeito
de renunciar ao dever da oração, reúne à sua volta muçul­
manos sunitas e xiitas, bem como cristãos, judeus e sama-
ritanos, igualmente apaixonados pelas «ciências dos
Gregos».
Os sultões mamelucos que, desde 1261, tinham insta­
lado no Cairo um califa abássida fantoche, viam com des­
confiança esta fermentação espiritual. De facto, perante
um Próximo Oriente dominado pelos cãs mongóis ini­
cialmente pagãos e, depois de 1295, convertidos a um
islão geralmente indulgente ou até favorável ao xiismo,
os Mamelucos tinham todo o interesse em afirmar-se como
os campeões da estrita ortodoxia. A tutela que então exer­
cem sobre Meca e Medina é a melhor expressão disso.
Não quer isto dizer que xiitas e zindiques fossem cons­ Zindiq: ver definição p. 143.
tantemente perseguidos. E certo que, sobretudo no
séc. xiv, e particularmente na Síria, se registam algumas
execuções de xiitas demasiado veementes, sem que com
isso se possa dizer que tenha havido caça ao herege.

345
Mesmo os Nusairi, revoltados a norte de Trípoli em 1317,
Nusairi: seita fundada por
Muhammad ibn Nusair al-
só durante algum tempo foram castigados, tendo depois
-Namírí (morto cerca de 884). podido conservar as respectivas crenças. Entretanto, o
Admite a incarnação do Es­ sunismo ganha noutro terreno: uma vez varridas as últi­
pírito Santo numa sucessão de mas praças latinas do Levante, os cristãos sírios e egípcios
imãs e rejeita a maior parte convertem-se em ritmo acelerado, ainda que muitos não
das prescrições rituais do is­
lão. Os seus sequazes são tam­ tardem a arrepender-se, expondo-se assim aos rigores da
bém designados por Alauitas. inquisição do Estado. Mas se o regime mameluco não é
por essência perseguidor, ele adormece a longo prazo os
espíritos - tão despertos no séc. xm - num conformismo
sem imaginação e cada vez menos favorável ao diálogo.

■ O Império otomano: ghâzis e ulemás

Uma evolução semelhante desenha-se no Império oto­


mano. Desde a época seljúcida, tinham-se desenvolvido
na Anatólia numerosas correntes místicas, fortalecidas
Ghâzi: ver p. 112. pelo espírito ghâzi dos Turcomanos ainda mal sedentari-
zados. Pouco inclinados para o ritualismo, frequente­
mente aliciados por certas atitudes xiitas que o povo
encara com simpatia, contestando a autoridade política
e atentos à miséria dos mais humildes, estas correntes
afastam-se da ortodoxia e, tal como no Egipto, traduzem-
-se muitas vezes por uma espécie de panteísmo pelo qual
são atraídos os próprios cristãos submetidos. No séc. xv,
este estado de espírito anima os primeiros grupos de der-
viches, sobretudo os da ordem dos Halveti. Os sultões não
têm uma atitude constante a seu respeito. Murad II e
Bayazid II são-lhes favoráveis, mas o Conquistador sente
o perigo que representam: não só contestam a sua auto­
ridade, mas também o melhor apoio deles acha-se na
Pérsia, nos Estados do seu velho inimigo Uzun Hassan.
Este o motivo por que Maomé II combateu geralmente
os místicos, tendo chegado a empregar para com eles as
medidas mais brutais.
De resto, esta mística vai ao encontro da política reli­
giosa dos Otomanos que, mais ainda do que os Mame­
lucos, optaram pelo sunismo mais rigoroso, sob a forma
Hanafismo: ver p. 144 do rito hanafita. Campeão da ortodoxia, o soberano dis­
põe-se a fazer dela o cimento do seu Império: são adstritas
Medresses: forma turca de Madrasas; a todas as mesquitas uma ou mais medresses, escolas de
ver p. 222.
direito e de teologia dominadas por um corpo docente,
Ulemá: ver p. 201. composto pelos ulemás, estritamente hierarquizado da
base à cúpula, e que molda uniformemente os inume­
ráveis funcionários de que o Estado necessita. Desde logo,
a sensibilidade popular, tão receptiva às atitudes irracio­
nais mais excessivas, entra em completa ruptura com a
religião oficial inspirada num juridicismo cada vez mais
esclerosante.

346
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

2. A união falhada de Bizâncio e Roma

Bizâncio e a união das Igrejas ■

No islão, a adopção de uma certa linha religiosa ofi­


cial é uma atitude política visando permitir, na tradição
de um Saladino, a reunificação do mundo muçulmano.
Ao mesmo tempo, os Bizantinos estão face a uma escolha
muito semelhante: ou aceitam as condições dos Latinos
para reunificar o mundo cristão e afastar assim o perigo
otomano, com o risco de se dissolverem num cristianismo
que já lhes era deveras estranho, ou se fecham em si pró­
prios a fim de preservarem a sua espiritualidade tradicio­
nal, abandonando ao mesmo tempo qualquer esperança
de ver subsistir o velho Império do Oriente. Adoptando
a segunda solução, os Gregos escolheram a morte polí­
tica pelos Turcos e rejeitaram a morte cultural que lhes
adviria do Ocidente.
O monge calabrês Barlaam escrevia em 1339: «O que
separa os Gregos de vós não é tanto uma diferença no
dogma como o ódio dedicado pelos Gregos aos Latinos
em razão dos males a que estes os submeteram.» Com
efeito, as divergências doutrinais não se agravaram desde
o séc. xii. Mesmo quanto à mais grave, o Filioque, houve
sempre bons espíritos, quer em Roma quer em Bizâncio,
para recusar admitir uma ruptura definitiva. Até ao fim,
e fora de todo o preconceito político, o dogma romano
manteve sempre adeptos em Bizâncio, como o patriarca
João Vekkos no séc. xin, ou o filósofo Demétrio Cydonés
no séc. xiv. Através do dogma, os Gregos continuavam a
visar sobretudo as pretensões disciplinares da Igreja latina
O mundo ortodoxo, no qual o papel do Sínodo tempera
e por vezes limita seriamente os poderes patriarcais, não
pode compreender a evolução nitidamente monárquica
que Roma conhece desde o séc. xi; embora continue a
admitir a preeminência teórica do papa, não pode tole­
rar que um dogma novo lhe seja imposto por este. Mesmo
os Gregos que aceitam o Filioque não concebem que ele
possa tornar-se matéria de fé à margem da sanção por um
concílio.

O Concílio de Lyon (1274) ■

Ora, após a reforma gregoriana, à autocracia romana


repugna a própria ideia de um Concílio Ecuménico, única
instância onde os Orientais poderiam manifestar a sua
livre vontade de fazer a união. Sinónimo de submissão a
Roma, a união torna-se numa questão puramente política,

347
num negócio que, pelo menos, deverá assegurar a Bizâhcio
o apoio romano contra os seus inimigos. Foi a política de
Miguel VIII - é certo que apoiada por espíritos religiosos
convictos -, que levou à união proclamada, em 6 de Julho
de 1274, no Concílio de Lyon, ao qual assistiram apenas
quatro bispos orientais. Tendo por único objectivo utili­
zar Roma como uma barreira contra Carlos d’Anjou, a
união de 1274 não foi compreendida nem pelo clero nem
pelo povo. Rejeitada primeiro pelos estados gregos dissi­
dentes (Epiro, Tessália), foi abandonada pelo papa e por
Andrónico II quando a sua necessidade política deixou
de se fazer sentir. As mesmas razões tácticas e, por con­
seguinte, o mesmo fracasso marcaram as tentativas feitas
mais tarde por Andrónico III, João V e Manuel II.

■ A união de Ferrara-Florença (1439)

No entanto, uma profunda mudança ocorre no séc. xv:


o Grande Cisma do Ocidente, ressurgimento do poder
conciliar, enfraquece bruscamente o papado. Torna-se
então possível imaginar uma solução verdadeiramente reli­
giosa, livremente e igualmente discutida pela Igreja uni­
versal. Ao contrário do Concílio de Lyon, o concílio de
Ferrara-Florença, que acaba por proclamar a união em 6
de Julho de 1439, reuniu bispos do Oriente e do Ocidente
e foi teatro de discussões reais, embora os Gregos se tenham
visto obrigados a aceitar a interpretação romana da pro­
cedência do Espírito Santo e da primazia pontifical. Mas
era demasiado tarde: os adversários da união já não esta­
vam dispostos a admitir a decisão conciliar, ainda que
apoiada pelo imperador João VIII. Sabem perfeitamente
que a massa do povo está contra a união, cuja proclama­
ção em Constantinopla teve de ser adiada até 12 de
Dezembro de 1452, sem outro resultado que não fosse
avivar ainda mais a querela. E que, desde o séc. Xin, o pró­
prio espírito da religião ortodoxa tinha mudado.

3. Os fundamentos espirituais
da desunião cristã

■ A revolução hesicasta

Aparentemente, as duas Igrejas deveriam entretanto


entender-se melhor já que, por esta época, professam a
mesma filosofia - a de Aristóteles, tornada oficial em
Bizâncio no séc. xn e adaptada no Ocidente por Tomás

348
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

de Aquino no século seguinte. Pode crer-se que o plato­


nismo bizantino, tão suspeito aos Latinos, só diz respeito
a pequenos círculos intelectuais sem influência sobre a
massa da população, mesmo quando tenta um derradeiro
e brilhante esforço com o grande filósofo de Mistra,
Gémiste Pléton, na primeira metade do séc. xv. As coisas
são, porém, mais complexas. Reforçados, pelo seu isola­
mento, na ideia de serem os únicos detentores da ver­
dade, os cristãos ortodoxos aprofundaram, em dois séculos,
o conteúdo da sua fé. Ora, pelo menos desde o séc. v
existe em Bizâncio uma corrente mística, vinda do deserto,
cujo sonho supremo é estabelecer um meio de comuni­
cação entre o homem e Deus. Compreende-se pois que
os místicos, conscientemente ou não, se pudessem aco­
modar a uma filosofia platónica que estabelecia precisa­
mente relações de participação entre o real e o ideal. Pelo
contrário, era difícil para eles, no quadro de um aristo-
telismo que separa por princípio as esferas da natureza e
do divino, conceber um qualquer ponto de encontro entre
o homem e Deus. No Ocidente, resignam-se a admitir que
só o amor, meio irracional, é capaz de operar esse encon­
tro. Mas os Bizantinos, intelectuais impenitentes, persis­
tem em crer que se pode alcançar Deus de outro modo
que não seja a pura efusão: na tradição dos Padres do
deserto, os místicos atônitas do séc. xiv, como Nicéforo o
Hesicasta e Gregório o Sinaíta, elaboram um verdadeiro
método destinado a disciplinar ao mesmo tempo o espí­
rito e o corpo e a permitir-lhes, graças à repetição de exer­
cícios apropriados - o essencial dos quais é o recurso cons­
tante à oração a Jesus entrar em contacto, se não com
a própria essência divina, pelo menos com as energias que
dela emanam. Deste modo o cristão, após uma longa e
penosa aprendizagem, pode ver, com os olhos do corpo,
a luz divina que aureola o Cristo no monte Thabor, no
momento da sua Transfiguração.

Gregório Palamas e a oficialização do Hesicasmo ■

A comunicação entre Deus e o homem estabeleceu-se


portanto segundo um esquema nitidamente platónico,
coisa tanto mais notável quanto os teóricos do novo movi­
mento repudiam Platão, pretendendo mesmo, como o
principal dentre eles, Gregório Palamas, jamais ter lido
as suas obras. O hesicasmo ou quietismo - tal é o nome
desta doutrina - é pois o ressurgimento triunfante de dois
traços essenciais da religiosidade bizantina: a mística do
deserto e a transcendência platónica. Trata-se, no fundo,
de um regresso às origens, e é isso que explica o seu
sucesso entre os monges e o povo. Combatido pelos racio-
nalistas - como Barlaam o Calabrês, Gregório Akindynos

349
e Nicéforo Grégoras -, Palamas encabeça o movimento,
a partir de 1338, ao compor as suas Tríades sobre os santos
hesi castas, mas debate-se com a desconfiança de Andró-
nico III e do patriarca que, no sínodo de 1341, tentam
impor o silêncio a uns e a outros. Mas já a querela hesi-
casta interfere nas lutas políticas: apoiado por Cantacuzeno,
Palamas triunfa com este em 1347 e torna-se arcebispo de
Tessalonica. Em Julho de 1351, um sínodo reunido no
Palácio Blachernes consagra o hesicasmo como doutrina
oficial da Igreja ortodoxa. Falecido em 1359, Gregório
Palamas será canonizado em 1368; é ainda hoje um dos
maiores santos da ortodoxia.

■ Nova sensibilidade e recusa da união

Esta grande mutação espiritual complica ainda mais o


problema da união. A bem dizer, os hesicastas não são
por princípio antilatinos. Palamas, que não hesita em dizer
que o Filioque é uma «querela de palavras», consegue
mesmo integrar a dupla procedência na doutrina orto­
doxa, distinguindo o Espírito como pessoa, que apenas
pode proceder do Pai, e o Espírito como energia, que
também pode proceder do Pai por via do Filho, ou mesmo
do Pai e do Filho. De resto, os Latinos não consideram
então o hesicasmo como uma heresia. Só no séc. xvn seria
denunciado como tal. Assistiu-se portanto, de começo, a
um esforço renovado de compreensão: por impulso de
João Cantacuzeno, que se fez monge após ter abdicado,
sábios como os irmãos Demétrio e Prócoro Cydonés dedi­
caram-se a traduzir para o grego as obras de Santo Agos­
tinho e sobretudo de S. Tomás de Aquino.
Mas os problemas doutrinais já eram então secundá­
rios. E ao nível da sensibilidade que as duas cristandades
divergem cada vez mais. Em Bizâncio, o povo e os mon­
ges, penetrados por uma nova espiritualidade que os apro­
xima ainda mais de Deus, rejeitam por isso qualquer sub­
missão aos cristãos estrangeiros que se mantêm na
ignorância deste progresso espiritual. Todos os esforços
para consumar a união a nível político e doutrinal no
séc. XV esbarram sempre nesse complexo de superiori­
dade, agravado ainda pelo ódio generalizado aos Latinos.
Aliás, o Estado tem cada vez menos controle sobre o
clero. Com efeito, a antiga associação entre os poderes
político e espiritual dissocia-se a partir do final do séc. XIV.
Desconfiada perante as tentativas de união, irritada com
o Estado que seculariza uma grande parte dos seus bens,
a Igreja percebe, além disso, que a queda do Império não
passa duma questão de tempo e que não tem qualquer
interesse em ligar a sua sorte ao de um edifício que se

350
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

desmorona. Assim, dado que não tem nenhuma estrutura


política para salvar, é em torno do seu património reli­
gioso, e por consequência em torno da Igreja, que os
Bizantinos sentem então necessidade de se reagrupar.
Pouco importa, nestas circunstâncias, o senhor temporal,
contanto que garanta a integridade desse património. Ora,
uma vez reconhecida a união de Florença, a questão aclara-
-se: um imperador cristão que assim se tenha submetido
aos Latinos não pode dar tal garantia e, sem nunca che­
gar a salvar o Império, ameaçará de morte a própria orto­
doxia, único facto «nacional» capaz, desde então, de asse­
gurar a coesão do povo grego.

Convergência com o islão e submissão aos Turcos ■

É pois por «patriotismo» religioso e cultural que os


Bizantinos admitem, a pouco e pouco, que têm menos a
perder com os Turcos do que com os Latinos. No séc. xin,
o temor sentido face ao islão atenua-se nitidamente em
Bizâncio. Os polemistas, como João Vekkos (séc. xm) e
João Cantacuzeno (séc. xrvj, mais não fazem do que repe­
tir argumentos antimuçulmanos estereotipados, enquanto
o diálogo é cada vez mais frequente e leva muitas vezes à
ideia de que o entendimento é possível. Gregório Palamas,
prisioneiro dos Turcos, discute cordialmente com os seus
doutores, e o futuro Manuel II não poupa elogios ao pro­
fessor muçulmano com quem teve vinte e seis entrevistas
em Ancira, durante o Inverno de 1390-1391. A ideia de
que o mundo muçulmano é um inferno tornara-se caduca:
Nicéforo Grégoras admira a boa administração e a liber­
dade religiosa da Síria mameluca e, face aos Turcos, a
Igreja hesita entre a resignação e a franca colaboração.
Bispos e monges constatam, efectivamente, que os sultões
garantem cuidadosamente os seus bens e não procuram
converter ninguém. Em 1381, considerando-se lesado por
Ê
E
uma decisão patriarcal, um metropolita vai pedir justiça
ao sultão declarando que os seus «únicos imperadores e
patriarcas» são os Turcos; e uma notícia datada de 1436
prova que o alto clero já não hesitava em vestir-se à moda
muçulmana. Mesmo um partidário da união como Demé-
trio Cydonés podia legitimamente escrever que, se o
i
E Ocidente não fazia nada por Bizâncio, os cristãos do Oriente
l não hesitariam em aliar-se aos Turcos para os ajudar a
sujeitar os Latinos.
Bem entendido, seria injusto dizer que o mundo orto­
doxo nada fez para resistir aos Turcos. Importa, no entanto,
observar que os maiores esforços nesse sentido foram
desenvolvidos pelos Sérvios, Búlgaros, Romenos e Alba­
neses, povos que tinham consciência de pertencerem a

351
unidades políticas jovens e viáveis. Quanto aos Gregos, só
puderam resistir de modo disperso - ainda que o tenham
feito, por vezes, com heroísmo. Era impossível baterem-
-se por um Império já morto ou por edifícios políticos
como a Moreia onde os arcontes abriam incessantemente
brechas na autoridade dos déspotas. Nos seus esforços
para levarem as populações moreotas a combater, Teodoro I
e Constantino Dragasés apenas depararam com indife­
rença e traição. E que o único horizonte político era o
do kastron e do seu pequeno território no qual, chegada
a hora da catástrofe, se soube - demasiado tarde - resis­
tir com grande valentia.
As lutas anti-otomanas dos sécs. XIV e XV inspirarão
fecundamente, muito mais tarde, os movimentos nacio­
nalistas dos Balcãs. Todavia, se a ortodoxia não sossobrou
foi porque preferiu a integridade espiritual sob domina­
ção estrangeira a uma restauração política cujo preço era
uma renúncia cultural. O facto de Jorge Escolário, um
dos mais frontais adversários da união, ter sido colocado,
em 1453, no trono patriarcal de Constantinopla por
Maomé II, é deveras significativo a este respeito.

4. O florescimento cultural
sob os Paleólogos: uma renascença?

■ O novo helenismo e as nações: eslavos e gregos

A acrescida originalidade religiosa da ortodoxia no


final da Idade Média não é senão o aspecto mais mar­
cante de um fenómeno geral: o regresso às origens. Com ;
efeito, à medida que enfraquece a ideia romana do Império |
universal, os Bizantinos sentem uma crescente necessi- •
dade de reencontrar as próprias raízes da sua cultura. Ao
longo de um milénio, tinham-se autodenominado Roma- ;
nos: os termos Helenos e helenismo significavam para eles
pagãos e paganismo; consideravam-se pois insultados •
quando lhes chamavam Gregos. Desde o séc. xrv, porém, (
o Império não passa de um fantasma e o Oriente cristão :
apenas encontra a sua coesão numa única força univer- ;
sal: a ortodoxia.
Ora esta engloba povos não-gregos que, ameaçados de 5
destruição pela expansão turca, se encarniçam em melhor
afirmar a sua personalidade. Na Bulgária, o reinado do
czar João Alexandre (1331-1371) vê prosperar as escolas
de Tirnovo desenvolvidas pelo último patriarca nacional.
Eu timo, corrector da liturgia eslavónia e coleccionador :

352
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

de textos hagiográficos. Quando os Turcos anexam o seu


país, em 1393, os sábios búlgaros emigram para a Rússia
e a Sérvia; o mais eminente deles, Constantino o Filósofo,
escreverá a história da Sérvia nos sécs. XIV e xv. Os Sérvios
participam, aliás, no mesmo esforço cultural: entre os seus
melhores escritores, o bispo Cipriano ascende a metro-
polita de Kiev em 1377 e Pácomo o Logoteto emigra para
a Rússia em 1399.
Aos Gregos só resta a língua e a cultura de que é por­
tadora. E certo que é duro para eles renunciarem à roma-
nidade: no séc. xiv, a obra-prima de Nicéforo Grégoras
intitular-se-á ainda História Romana. No entanto, o sentido
pejorativo do termo Helenos esbate-se rapidamente: o pró­
prio Grégoras leva ao cúmulo o seu elogio dos Damas-
quinos, ao escrever que a sua cultura é «em todos os aspec­
tos comum à dos Gregos». No século seguinte, o termo
adquire definitivamente um sentido laudatório: Laonikos
Calcocondilés vê a salvação num «império grego subme­
tido a um soberano grego»; Gémiste Pléton não hesita em
varrer o próprio cristianismo para reencontrar a alma
grega na mitologia antiga, inseparável da filosofia platónica.

Prestígio do ensino bizantino ■

A «Renascença bizantina» é portanto uma renovatio no


sentido medieval: mais do que um esforço de renovação,
é um movimento de regresso a uma cultura perfeita infe­
lizmente esquecida. Isto é particularmente sensível no
ensino: desmantelado em 1204, reaparece, após 1261, sob
a forma de um ensino superior privado dominado, no rei­
nado de Miguel VIII, por Jorge Acropolités e Gregório de
Chipre; mas é Andrónico II que ressuscita, com o nome
de Museu (Mouseion), a universidade de Constantinopla,
colocada sob a autoridade do Grande Logoteto. Quando
o Império já se extinguia, Manuel II, que apreciara, durante
as suas viagens ao Ocidente, o sistema das universidades
latinas, decidiu finalmente reunir todos os ensinos num
mesmo edifício: o seu «Museu universal» (Katholikon
Mouseion), dirigido por um dos quatro «juízes gerais dos Os juízes gerais dos Romanos
constituem um tribunal supremo criado
Romanos», dos quais os mais notáveis foram Jorge Escolário por Andrónico III.
e João Argiropoulos. No ensino do Museu, o desejo de
regresso às origens é manifesto: lecciona-se a filosofia e a
retórica, mas a explicação dos textos antigos já não é,
como outrora, puramente gramatical e alegórica; faz-se
um esforço para captar o seu sentido profundo mediante
um comentário literário e moral. Além disso, a Univer­
sidade redescobre o gosto das ciências exactas e naturais,
de acordo com a tradição alexandrina: um lugar impor­
tante é aí reservado, em especial, à medicina. A reputa­
ção do novo ensino bizantino atinge o Ocidente: a partir

353
de fins do séc. xiv os Latinos afluem ao «Museu», como
Francesco Filelfo, futuro genro do sábio Manuel Crisóloras.
No séc. xv, o que viria a ser o papa Pio II considera que
O humanista Eneias Sílvio
Piccolomini (1405-1464), foi papa entre quem nunca tivesse passado por Constantinopla só podia
1459 e 1464 com o nome de Pio II. ter uma instrução incompleta.

■ A filosofia: aristotelismo e neoplatonismo


Autores ou produtos deste novo ensino, os grandes
nomes abundam então em Bizâncio. Em filosofia, a cor­
rente aristotélica, única oficialmente reconhecida, nada
tem em verdade de criativa mas, graças a tradutores como
os irmãos Cidonés, ela abre-se ao pensamento tomista e
talvez mesmo, no caso de Jorge Escolário, a certos aspec­
Scotismo: doutrina de Jean tos do scotismo. Mais rica é, entretanto, a corrente para­
Duns Scot (1266-1308), que lela que perpetua o pensamento de Platão: a ela perten­
reage contra o aristotelismo cem grandes sábios como Teodoro Metoquités (1260-1332)
de Averroes, negando todo o
determinismo e, de um modo e o seu discípulo Nicéforo Grégoras (1295-1360), mas nela
geral, manifestando uma maior sobressai sobretudo o maior filósofo bizantino, Gémiste
confiança na obra humana so­ Pléton, falecido em 1452. Com este, o pensamento antigo
bre a Terra. revive verdadeiramente. Como Platão, ele pensa que o
filósofo deve ao mesmo tempo analisar e reformar a socie­
dade humana: na sua obra essencial, As Leis, o que está
em causa é uma recriação completa da economia, da estru­
tura social e do sistema político; condição necessária dessa
recriação é o regresso a uma espécie de comunismo natu­
ral pelas vias do paganismo antigo. Com Pléton, o hele-
nismo não é já só uma atitude sentimental ou intelectual:
ainda que as suas ideias jamais tenham podido ser tra­
duzidas na realidade, a sua maneira de repensar o mundo
moderno à luz do pensamento antigo anuncia já o espí­
rito da Renascença ocidental.

■ As ciências

Não se pode voltar à filosofia antiga sem descobrir os


seus íntimos laços com as ciências exactas. Como na
Antiguidade, os grandes filósofos são pois, também, gran­
des cientistas. Teodoro Metoquités e Grégoras apaixonam-
-se pelas matemáticas e sobretudo pela astronomia e a astro­
logia, mas é sobretudo Nicéforo Blemmidés (1197-1272)
quem representa o tipo acabado do sábio enciclopédico:
teólogo, filósofo, pedagogo, é também um notável mate­
mático e entrega-se ainda a importantes investigações médi­
cas. Precisamente na medicina, o séc. xiv marca uma vira­
gem. Através de Trebizonda, Bizâncio inicia-se na medicina
árabe e persa, cujas bases transmitirá ao Ocidente latino.
A compilação dos trabalhos de um médico grego tornar-
se-á, no séc. xvil, o núcleo do Codex da Faculdade de Paris.

354
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

A história ■

Naturalmente, a mudança de estado de espírito é


sobretudo sensível na história. A partir do séc. xil, a
velha cronografia cristã, que consiste em retraçar a his­
tória da humanidade desde as origens até à época do
autor, é geralmente abandonada. Ana Comneno, Kinna-
mos e Nicetas Coniatés limitam-se à história do seu tempo
e é dando-lhes continuidade que, no século seguinte,
escrevem Jorge Acropolités e Jorge Paquimero, segui­
dos, no séc. xiv, por Nicéforo Grégoras e pelo impera­
dor João Cantacuzeno. Todos estes historiadores per­
manecem, no entanto, imbuídos pelo espírito imperial
romano: nas suas obras, tudo se ordena em torno de
um império cristão, certamente vacilante, mas cuja eter­
nidade não suscita qualquer dúvida. Bem diferentes são
os historiadores do séc. xv: enquanto Laónicos Calcocon-
dilés consagra o essencial da respectiva obra à história
otomana, Dukas faz da expansão turca a própria trama
da sua e Jorge Sphrantzés começa a sua história com a
genealogia da família de Osman; o último historiador
grego da Idade Média, Critóbulos dTmbros, irá mesmo
mais longe, dedicando toda a sua obra à vida de Maomé
II. Neste mundo novo que descrevem, os Bizantinos são
apenas um povo entre outros: se Sphrantzés e Dukas con­
tinuam a dar-lhes o nome tradicional de Romanos, Calco-
condilés, o mais sagaz de todos, apela «à unidade nacio­
nal» dos Gregos e critica até vivamente os soberanos
bizantinos que, «em razão da vaidade que sentiam ao
nomearem-se a si próprios imperadores dos Romanos e
autocratas, nunca se dignaram intitular-se imperadores
dos Gregos».

Pode-se passar rapidamente sobre os outros géneros


literários. A retórica, cultivada por Grégoras, Pléton,
Bessarion e Escolário, ou a epistolografia, ilustrada prin­
cipalmente por Grégoras, Demétrio Cidonés e o impera­
dor Manuel II são sobretudo interessantes pelo arcaísmo,
que nelas encontra livre curso. E aí que melhor se pode
captar o drama do helenismo bizantino: enquanto um
punhado de intelectuais se esforça por imitar Platão,
Heródoto, Tucídides ou os oradores áticos, o povo há
muito que fala uma língua já próxima do grego moderno
e à qual - além da crónica de Dukas — somente a poesia
popular e a literatura satírica se dignam recorrer, a fim
de serem compreendidas. De facto, o povo e os intelec­
tuais têm as suas próprias maneiras de se sentir gregos:
mais do que o retorno às antigas raízes, é o agrupamento
à volta de uma Igreja que finalmente escolheu ser grega
que permitirá à nação helénica forjar-se lentamente em
quatro séculos de ocupação turca.

355
5. A «esclerose» cultural do islão

É geralmente admitido que, após o séc. Xlll, o mundo


muçulmano mais não faz do que repetir-se. A observação,
no entanto, deve ser seriamente matizada. É certo que
não faltam factores prejudiciais à criação: triunfo de povos
mais rudes, como os Berberes na África do Norte e os
Turcos no Próximo-Oriente; invasões mongóis, que são
verdadeiras catástrofes culturais para o islão; enfim, e
sobretudo, a camisa de forças de uma religião cada vez
mais interpretada segundo um juridicismo descarnado.
Em tais condições, impressiona menos o adormecimento

liiuuiiluu
cultural geral do que o número, ainda assim considerá­
vel, de grandes obras que conservam o saber antigo e che­
gam a fazer progredir sensivelmente o conhecimento em
vários domínios.

■ Enciclopedismo muçulmano e gosto pelas viagens

A mania da compilação, tradicional no islão, exaspera-


-se após o séc. xni: aplica-se a tudo - teologia, heresiolo-
gia, filosofia, jurisprudência, literatura, história, geogra­
fia -, ao ponto de ser geralmente difícil classificar os
autores nesta ou naquela disciplina. E particularmente no
Egipto que floresce este género enciclopédico, o qual tem
muitas vezes o mérito de conservar preciosos documen­
tos, de outro modo condenados a desaparecer. Entre os
compiladores preocupados sobretudo com a história,
importa salientar os egípcios al-Qalqashandi e al-Maqrízi.
O primeiro, morto em 1418, compôs, com o título de Subh
al-A’shâ, um rico repertório institucional destinado aos
membros da administração, e o segundo, falecido em 1442,
é o autor dos Khitãt, compêndio de dados históricos e geo­
gráficos relativos ao Egipto, à Núbia e à Etiópia. Pelo con­
trário, o Sírio Abú-l-Fidâ, morto em 1331, e o persa al-
-Qazwini, em 1283, limitam-se a resumir os historiadores
e geógrafos que os precederam. Quanto ao domínio pro­
priamente literário, deverá mencionar-se somente o mérito
do damasquino Ibn Khallikân, falecido em 1282, e cujo
Wafayât al-A yân ê uma mina para o historiador da litera­
tura. Bem entendido, as enciclopédias ou reportórios rela­
tivos às ciências religiosas são inumeráveis; além de algu­
mas de autores xiitas, como al-Hilli (morto em 1326),
trata-se sobretudo de compilações severamente ortodoxas
que contribuíram largamente para a anquilose do pensa­
mento muçulmano. Entre os mais rigoristas, há que reter
principalmente o nome do damasquino Ibn Taimiya, fale­
cido em 1328, e cuja influência ainda é sensível no mundo
muçulmano contemporâneo. Mas o último grande enci-

356
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

clopedista muçulmano, al-Suyuti, Persa que viveu no Egipto


onde morreu em 1505, é inclassificável: história, litera­
tura, tradição religiosa, exegese corânica, estudos grama­
ticais e literários, tudo é bom para ele, que se vangloria
de ter escrito trezentas obras.
No entanto, o islão conta ainda com espíritos de valor
e mesmo com grandes criadores. Ibn al-’Athir, por exem­
plo, é um verdadeiro historiador. A sua História universal
(al-Kâmil) resume e completa Tabarí, cuja exposição pro­
longa até 1231, mas revela sobretudo um espírito crítico
e uma acuidade de julgamento que em vão se buscaria nos
seus predecessores, com a única excepção de Miskawayh.
Quanto à geografia, mantém-se muito viva, sendo repre­
sentada sobretudo por grandes viajantes, testemunhas
oculares daquilo a que se referem: a enciclopédia de Yâqút,
falecido em 1229, vale sobretudo pela segurança da obser­
vação directa. Mas o género favorito é o relato de viagem
ou «Rihlah», cujo protótipo é a obra do valenciano Ibn
Djubayr, morto em 1217. No séc. xrv, o marroquino Ibn
Batuta tem menos espírito crítico mas, viajante infatigá­
vel, deixa-nos preciosos ensinamentos quer sobre a África
quer sobre a índia e a China, ainda que muitas vezes seja
impossível determinar em que países realmente esteve.

Da filosofia à sociologia: Ibn Khaldún ■

O último dos grandes filósofos clássicos, Ibn Rushd Ibn Khaldún: nascido em
(Averroes), o mais ilustre dos comentadores de Aristóteles, Tunes em 1332 e falecido no
Cairo em 1406.
morreu em 1198. Desde então, a filosofia muçulmana
atola-se com frequência no formalismo ou na mística. E
o caso do murciano Ibn Sab’in, que faleceu em 1270. No
entanto, a filosofia vai renovar-se uma última vez, não já
sob a forma metafísica habitual, mas por uma reflexão
completamente original sobre a história geral da huma­
nidade: grande viajante, homem de Estado, autor de uma
volumosa compilação histórica particularmente preciosa
para o estudo do mundo berbere, o Andaluz Ibn Khaldún
faz a síntese dos seus estudos e experiências no prefácio
da sua obra, Muqaddimah ou Prolegómenos. Sensível a todos
os factores que influenciam a evolução das sociedades
humanas, desde a arte aos dados económicos, ele é o ver­
dadeiro iniciador da sociologia histórica: enquanto filó­
sofo da história, considera que todos os grupos sociais per­
correm uma mesma evolução cíclica que os leva do
conhecimento ao apogeu e, depois, à dissolução. Trata-
-se, como é evidente, de uma concepção demasiado deter­
minista mas que, pela primeira vez, impõe a ideia de que
pode haver leis num domínio até então reservado ao acaso
ou à soberana vontade divina. De resto, o óbvio génio de
Ibn Khaldún é significativo do seu tempo: profundamente
pessimista, não terá qualquer continuidade antes da época
contemporânea que o redescobriu.

■ As ciências

Na sua Muqaddimah, Ibn Khaldún retomava a classifi­


cação das ciências em tradicionais e filosóficas. Entre estas,
as mais dinâmicas são, de longe, as ciências exactas e natu­
rais. No séc. xiv, a aritmética pura faz novos progressos
com a obra de al-Qalsâdi, e o iraniano Kamâl al-Din al
Fârisi, falecido em 1320, escreve importantes trabalhos
sobre óptica, sobretudo relativos à refracção. Em astro­
nomia, a crítica do sistema ptolomaico, esboçada no séc. xn
na península Ibérica por Ibn Bâdjdja e Ibn Rushd, cul­
mina no séc. xv com as investigações de Ibn al-Shâtir que,
mantendo-se fiel ao geocentrismo, prepara o terreno à
futura revolução de Copérnico. Quanto à medicina, não
se fica pelo Cânone de Avicena, aliás incansavelmente
comentado: no séc. xm, o damasquino Ibn al-Nafis é o
primeiro a descrever parcialmente a circulação do san­
gue.
E no final do séc. xv que parece esgotar-se toda a
invenção. Dominado, no essencial, pelo poder otomano,
estreitamente conservador após o reinado esclarecido de
Maomé II, o mundo muçulmano não pára de se repetir
até ao séc. xix.

6. Tradições e renovações artísticas

■ Florescimento da arquitectura no mundo ortodoxo

Em Bizâncio, o regresso às fontes helénicas, mais espe­


cialmente alexandrinas, também é muito sensível na arte.
No séc. xi, a arquitectura bizantina tinha produzido o seu
tipo mais acabado: a igreja em cruz grega, relativamente
pouco elevada, harmoniosa de proporções, exteriormente
austera e simétrica. Mas a partir do séc. xm tudo muda.
Uma frenética necessidade de fantasia, assente sem dúvida
no pitoresco helenístico, despedaça ou deforma os esque­
mas clássicos: a decoração exterior torna-se exuberante
graças ao emprego de placas de mármore colorido alter- |
nadas com tijolo, à utilização de frisos em xadrez, de I
cunhais em cores diversas, de pilastras puramente deco­
rativas, como na fachada do Palácio de Tekfur-Sarai cons­
truído em Constantinopla nos finais do séc. xm. A dissi-
Nártice: ver p. 234. metria passa a fazer lei: ainda na capital, o nártice da Igreja I

358
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

de S. Teodoro (Kilisse-Djami) ou a Capela de Miguel Tar-


caneiotés, adjunta, em 1370, à Igreja de Pammakaristos
(Fetiye-Djami), acumulam as colunatas, as arcaturas e os
nichos, centrados, nos diferentes níveis, em eixos siste­
maticamente diferentes.
Ao mesmo tempo, as construções crescem em altura:
as cúpulas, que se limitavam a coroar o edifício, são cada
vez mais delicadas, perfuradas por vãos e aberturas e orna­
mentadas com colunatas que acentuam a sua elegância.
E o caso da Igreja dos Santos Apóstolos de Tessalonica
(1312-1315), da Parigoritissa de Arta e de certas igrejas
de Mesêmbria, na Bulgária. Além disso, a partir do séc. xiv
é o próprio plano dos santuários que se modifica; o plano
basilical, ao qual os modestos edifícios rurais sempre se
tinham mantido mais ou menos fiéis, como se pode ver
nas regiões periféricas (Albânia, Sérvia e Bulgária), com­
bina-se então com o plano em cruz grega, dando à nova
arquitectura uma nota pitoresca que é sobretudo sensível
nas igrejas de Mistra: a sé metropolitana, S. Demétrio,
reconstruída cerca de 1310, é uma basílica a que se sobre­
põe, a partir das tribunas, uma igreja em cruz grega, tal
como sucede com a Igreja do Afendiko, que lhe é con­
temporânea. O todo culmina, ainda em Mistra, com a
plasticidade barroca da Pantanassa, reconstruída em 1428,
no reinado de Constantino Dragasés.
Esta arte dos sécs. xrv-xv é claramente grega; em vão
Segundo Delvove, L’Art byzaniin,
se procurariam nela influências estrangeiras. Pelo con­ p. 401, n.2 34.
trário, na Sérvia, os artistas, muitas vezes gregos, traba­
lham geralmente sob a direcção de arquitectos locais.
Igreja do mosteiro de Decani
Mesmo na Macedónia, onde a influência bizantina conti­
nua a ser predominante, o tijolo mistura-se cada vez mais
com a pedra, as cúpulas proliferam, a sobreposição em
altura revela uma complexidade crescente, como é visível
em Lesnovo, em Staro Nagoricino, restaurada em 1313,
e sobretudo em Gracanica. A oeste, em Ráscia, os ele­
mentos gregos misturam-se com as influências latinas vin­
das da costa. No séc. xiv, em Sopocani, Mileseva e Pec as
construções são geralmente de uma só nave, com uma
parte central valorizada por uma cúpula alta e, com fre­
quência crescente, um transepto de fraca elevação. Perten­
cente a este mesmo grupo, o mosteiro de Decani, cons­
truído por Dusan entre 1327 e 1355, é uma basílica de
cinco naves combinada com o plano em cruz grega. No
séc. xv, estes traços acentuam-se: a escola de Morava, com
edifícios como Ravanica, Manasija e Kalenic, levanta altas
cúpulas sobre um tambor cúbico; chega, por vezes, ao
ponto de empregar exclusivamente a pedra e usa uma Segundo A. Deroko, Architecture
monumental# et décorative dans la Serbie
decoração esculpida. Mas na Dalmácia, em Zadar, Trogir du Moyen Age, p. 116.
ou Ragusa, constroem-se igrejas puramente latinas, embora
de um grande arcaísmo.

359
■ O Oriente cristão e as artes figurativas

As artes figurativas dão mostras de idêntico vigor. A par­


tir do séc. xill, o mosaico torna-se cada vez mais raro, para
desaparecer no século seguinte: os seus últimos testemu­
nhos, no início do séc. xiv, são as obras encomendadas
por Teodoro Metoquités para o mosteiro de Cora, a actual
Kahrie-Djami. A partir de então reina o fresco, menos dis­
pendioso nesse período de crise, mas também mais apto
a servir uma inspiração crescentemente atormentada, dra­
mática e excessiva. Imbuídas de delírio narrativo, as pin­
turas pretendem então ilustrar tudo: em Kahrie-Djami,
ainda se limitam às cenas das Escrituras, mas dezoito ima­
gens são consagradas à vida da Virgem - o que traduz
bem a devoção desses tempos - ao mesmo tempo que pro­
liferam os pormenores familiares e pitorescos. E de Kharie-
-Djami que os pintores de Mistra extraem a sua inspiração:
na Peribleptos (meados do séc. xiv), e depois na Pantanassa
(cerca de 1430), expõem quadros separados, cheios de
vida e realismo, mas onde um lugar crescente é reservado
à ilustração da própria liturgia. Entretanto, na Macedónia,
na Sérvia e na Rússia a evolução é ainda maior: passa-se
É então que se espalha por todo o lado a a pintar frisos e não já quadros, num estilo cada vez mais
ilustração estereotipada do Hino familiar, com a única ambição de pôr em imagens os mais
Akathista (que se canta «sem se sentar»),
dirigido à Virgem em agradecimento das pequenos pormenores litúrgicos, ou mesmo os salmos e
suas intervenções contra o inimigo. as orações.
Um certo helenismo é sensível nesta arte, como por
exemplo o amor pela decoração monumental de tipo ale­
xandrino, mas o que sobretudo impressiona é a sua adap­
tação à evolução espiritual do tempo: a crescente eleva­
ção dos monumentos, a acumulação de cúpulas sobrepostas
são a imagem de um misticismo cuja ambição é atingir o
céu. Quanto à preocupação de revestir tudo de imagens,
ela visa impregnar o fiel desses símbolos que lhe permi­
tirão comunicar cada vez mais estreitamente com Deus.
Isto traduz-se mesmo por modificações na técnica: em
Mistra e na escola sérvia de Morava (Ravanica, Kalenic),
o emprego do claro-escuro, o impressionismo da cor, os
efeitos de empastelamento, tudo é feito para gerar no
espectador esse choque que o deve fazer sair de si pró­
Teofânio o Grego (morto entre 1405 prio. Desde 1378, o monge grego Teofânio transplanta
e 1415) foi o mestre do maior
pintor russo medieval, esse estilo, com um expressionismo ainda mais violento,
Andrei Rubliev (c. 1370-c. 1430). para os seus frescos da Transfiguração, em Novgorod.

■ A arte islâmica
A tradição. O expressionismo domina também a arte
muçulmana no final da Idade Média. Certas regiões con­
tinuam, porém, muito conservadoras. É o caso da África
do Norte onde, até à conquista turca, apenas se constroem

360
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

mesquitas de colunatas e tectos planos, quer se trate de Istambul: plano da Mesquita


do Conquistador
edificações almorávidas, almóadas ou hafécidas. A única
novidade é devida aos Almóadas: a partir do séc. xm são
erguidas escolas de Teologia (madrasas) cujo plano, com­
posto de um pátio (sahri), uma rotunda (qibba) e um pavi­
lhão de abluções (midha), se torna muito típico. Contudo,
esta arte tradicional é transfigurada por uma decoração
exuberante: mesmo à austeridade almorávida não repugna
o emprego de arabescos complexos e sobretudo das esta­
lactites (mukarnas) que, desde então, proliferam em todo
o mundo muçulmano. No Ocidente, esta arte excessiva
atinge o seu ponto alto no Alhambra de Granada. Idêntica
evolução se nota na arte turca pré-otomana: em geral, as
mesquitas são edifícios de naves nos quais se combinam
a influência damasquina e o estilo basilical, bem vivo na
Anatólia antes da conquista. E este o caso das mesquitas
construídas por Allah al-Din Kaybubâdh I em Konya e em
Nigdé. Mas as fachadas cobrem-se de uma decoração exu­
S. K. VfcTKlN, op. cit., p. 267.
berante, os minaretes perfilam-se e multiplicam-se e apare­
cem novidades na arquitectura civil: as madrasas, quer sejam
independentes quer estejam anexas a mesquitas, como acon­
tece em Divrigi; os túmulos, redondos ou poligonais e cober­
tos por um tecto pontiagudo (turbés, kunbets); enfim, os cara­
vançarais (Khans), conjuntos de celas agrupadas em torno
de um pátio, onde se eleva uma mesquita.
E, no entanto, do Irão que parte a renovação arqui- Istambul: plano da Mesquita
de Bayazid II
tectónica. Já no séc. XI, Nizam al-Mulk, vizir de Malik-Xá,
tinha revestido de uma cúpula a grande mesquita de Ispaão,
e é este estilo que se revela nos edifícios do séc. xv, como
a mesquita Azul de Tabriz ou a mesquita Verde de Balkh.
O Egipto mameluco, terra de confluências, não escapa a
esta atracção. Fiel ao antigo tipo da mesquita de pátio e
pilares, não deixa por isso de ver proliferar as cúpulas
ricamente decoradas, os minaretes nos quais se sobrepõem
polígonos e cilindros (mesquita de Qala’ún, de 1285, ou
mesquita de Qait-bei, do final do séc. xv) e finalmente as
madrasas, já indissociáveis dos edifícios religiosos. Rasgadas
por múltiplas janelas, as fachadas adquirem uma nova
leveza.

A síntese dos conquistadores: a arte otomana ■

Mas é graças aos Otomanos que a arte islâmica se renova


verdadeiramente. Os primeiros sultões contentam-se em
aperfeiçoar o plano seljúcida: um bom exemplo é a mes­
quita Verde, construída em Bursa por Maomé I. Mas a
conquista de Constantinopla é para os Turcos um novo
ponto de partida: impressionados por Santa-Sofia, os arqui-
tectos otomanos, quase sempre de origem cristã, esfor­
çam-se por adaptar o seu tipo às necessidades do culto

361
muçulmano, que exige um espaço muito mais vasto. A mes­
quita do Conquistador, edificada em Istambul por Maomé II,
ainda se compõe apenas de uma grande cúpula apoiada,
ao fundo, numa semi-cúpula e, aos lados, em dois cola­
terais sobrepujados por cupuletas. Mas a Mesquita de
Bayazid II, terminada em 1505, já comporta duas semi-
-cúpulas enquadrando a grande cúpula central. No séc. XVI,
com o grande arquitecto Sinan, o espaço ainda se amplia
mais: em 1548, ele constrói, para a Mesquita Chehzadé,
uma cúpula de 19 metros de diâmetro e 37 metros de
altura. Mas faltava-lhe ainda edificar a sua obra-prima: a
Mesquita de Selim II, em Edima, onde uma única e enorme
cúpula de 31 metros de diâmetro culmina com tanto mais
leveza quanto assenta em todo um sistema de cúpulas
secundárias, cujos pontos de apoio se encontram todos
no interior do edifício. Deste modo, coube aos arquitec-
tos dos sultões juntarem a perfeição exterior a um tipo
de edifício ao qual os Bizantinos tinham sobretudo dado
a majestade interna.

■ Conclusão

É portanto certo que, no final do séc. XV, o Oriente se


fechou em si mesmo: economia, estruturas sociais, sistemas
políticos, tudo parece aí cristalizado de uma vez por todas.
A própria ideia de colher exemplos no Ocidente afigura-
se sacrílega. O mundo ortodoxo voltou definitivamente as
costas aos seus desprezíveis inimigos latinos e se alguns
Otomanos, como Maomé II, não desdenham olhar para
Oeste, fazem-no unicamente na esperança de aí descobri­
rem técnicas com as quais melhor o possam conquistar.
No entanto, o Oriente não está morto. No seu sono,
soube fazer frutificar incansavelmente um património que,
sobretudo no domínio intelectual e artístico, gera então
alguns dos seus produtos mais brilhantes. De resto, os
Ocidentais da época estavam bem conscientes disso: obnu-
bilados pelas vitórias otomanas, só se aperceberiam da
decadência oriental no séc. XVII e sobretudo no séc. xvni.
Antes disto, o que é para eles mais sensível é o prestígio
cultural do Oriente. E certo que não aproveitam mais
nada do mundo muçulmano, impermeável aos Latinos
desde Averroes. Mas, facilitados pelas tentativas de união
e sobretudo pela emigração progressiva dos sábios gregos
para o Ocidente, os contactos com o pensamento bizan­
tino têm importantes consequências: ainda que o Renas­
cimento italiano e francês tenha outras origens, não se
pode esquecer que Gémiste Pléton foi o iniciador do pla­
tonismo florentino e que a redescoberta da Antiguidade
passou muitas vezes pela leitura dos manuscritos gregos
com que então se enriqueceram Veneza, Nápoles e Roma.

362
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

Para aprofundar este capítulo

Sobre a União das Igrejas e os contactos com o


Ocidente, os trabalhos essenciais são de D. J. GEANAKO-
PLOS, Emperor Michael Palaelogus and the West, Cambridge,
Mass., 1959 (ver especialmente o capítulo 11 sobre a União
de Lyon) e Byzantine East and Latin West, reed., Nova Iorque,
1983. Sobre o concílio de Florença, a síntese de J. GlLL,
Le concite de Florence, Tournai-Paris, 1964, permitirá o acesso
aos outros trabalhos do mesmo autor relativos a este
assunto. Sobre a posteridade das relações culturais greco-
-latinas, D. J. GEANAKOPLOS, Greek Scholars in Venice, Cam­
bridge, Mass., 1962, e Interaction of the SiblingByzantine and
Western Cultures in the Middle Ages and Italian Renaissance
(330-1600), New Haven-Londres, 1976. Sobre este mesmo
tema, encontrar-se-ão ricos desenvolvimentos em St. RUN-
CIMAN, The Great Church in Captivity, Cambridge, 1968.
Sobre a espiritualidade na ortodoxia tardia, a melhor
introdução é J. MEYENDORFF, Grégoire, Palamas et la Mystique
orthodoxe, Paris, 1959, a que se acrescentará O. CLEMENT,
LEssor du christianisme oriental, Paris, 1964. Uma síntese
020002020101000200480200010100020001020001000002
notável é a de J. MEYENDORFF, «Society and Culture in the
XlVth Century. Religious Problems», Actes du XTVe Congrès
Intemational des Etudes Byzantines, t. 1, Bucareste, 1975.
Sobre a polémica religiosa contra o Ocidente, G. ARGY-
RIOU, «Remarques sur quelques listes grecques du XIIIe
siècle énumérant ies hérésies latines», Byzantinische
Forschungen, IV, 1972; do mesmo, sobre a polémica anti-
-islâmica, «Les écrits anti-islamiques de Macaire Makrès
(XVe siècle)», Studi e Testi, 1982. Sobre as convergências
com o islão, M. BALIVET, «Deux partisans de la fusion reli-
gieuse des Chrétiens et des Musulmans au XVe siècle»,
Byzantina, X, 1980; e A. DUCELLIER, «L’Islam et les
Musulmans vus de Byzance au XIVe siècle», Byzantina, XII,
1983. Sobre a escatologia ortodoxa na época otomana,
A. ArGYRIOU, Les Exégèses grecques de VApocalypse à Vépoque
turque (1433-1821), Tessalonica, 1982.
Sobre ensino e cultura em Bizâncio, o livro funda­
mental é C. N. CONSTANTINIDÉS, Higher Education in the
Thirteenth and Early Fourteenth Centuries (c. 1204-c. 1310),
Nicósia, 1982. Na falta de qualquer síntese sobre o último
século, não se deverá esquecer a obra de J. W. BARKER,
Manuel II Palaelogus, citada no capítulo precedente, nem
a de I. SEVCENKO, Society and Intellectual Life in Late
Byzantium, Londres, 1981. Mas é imperativo ler, sobre
Pléton e o platonismo no séc. xv e os seus prolongamen­
tos em Itália, F. Masai, Pléthon et le platonisme de Mistra,
Paris, 1956. Ter-se-á uma ideia dos problemas linguísticos
graças a E. Kriaras, «La diglossie des derniers siècles de

363
Byzance: naissance de la littérature néohellénique», Ades
du XIIT Congrès International des Etudes Byzantines, Oxford,
1966; e H. e R. KAHANE, «Abendland und Byzanz: Sprache»,
in Reallexikon der Byzantinistik, Band I, pp. 345-640, Ames-
terdão, 1976. Sobre o tema de Bizâncio e a renascença
ocidental, ver as obras citadas acima de D. J. GEANAKO-
PLOS. Quanto à transmissão da cultura bizantina à Rússia,
ver D. ClZEVSKIJ, A Histovy ofRussian Literature from the Xlth
to the end of the Baroque, Haia, 1962; e D. LlKHACHOV, The
Great Heritage - the Classical Literature of Old Rússia, Moscovo,
1980.
Sobre os problemas culturais do mundo muçulmano,
a questão da «esclerose» cultural é sobretudo levantada
por Cl. CAHEN, «Les facteurs économiques et sociaux dans
Fankylose culturelle de Plslam», Classicisme et Déclin cul-
turel dans Vhistoire de Tlslam, Paris, 1957; dever-se-á acres­
centar Abd Al-Majid Turki, «Comment Ibn Khaldoun
explique-t-il le double phénomène de 1’essor et de la stag-
nation religieuse au Maghreb et dans 1’Espagne musul-
mane», in Théologiens et Juristes de lEspagne musulmane, Paris,
1982; sem esquecer os Etudes dlslamologie de R. BRUNSCHVIG,
onde se encontra, no t. 1, Paris, 1976, a reed. do seu artigo
«Problèmes de décadence». Sobre os homens de religião,
há um excelente estudo sobre a Andaluzia: D. URVOY, Le
Monde des ulémas andalous du Xe-XLe aux XIIe-XIIIe siècles,
Etude sociologique, Genève, 1978. Sobre Ibn Khaldún,
ver o livro citado de Y. LACOSTE. Quanto ao mundo oto­
mano, reportar-se a H. INALCIK, Studies, citado no capítulo
precedente.
Sobre a arte de Bizâncio e dos países eslavos, além das
obras gerais já citadas, poderá recorrer-se a P. KANELLO-
POULOS, Mistra, Munique, 1962; à monumental publica­
ção de P. UNDERWOOD, The Kariye Djami, 3 vols., Nova
Iorque, 1966; bem como à que continua a ser a melhor sín­
tese sobre a pintura, O. DEMUS, «Die Entstehung des Palaolo-
genstils in der Malerei», Ades du XIe Congrès International
des Etudes Byzantines, Munique, 1958. Poderão apreciar-se
as mais impressionantes miniaturas do último período
bizantino em S. ClRAC-ESTOPANAN, Skylitzes Matritensis, t. 1,
Reproducciones y miniaturas, Barcelona, 1965. Sobre con­
tactos e influências entre arte bizantina e Ocidente, entre
os numerosos trabalhos de T. VELMANS, «Deux manuscrits
enluminés inédits et les influences réciproques entre
Byzance et Fltalie au XIVe siècle», Cahiers Archéologiques,
XX, 1970. Sobre a arte na Sérvia, G. MlLLET, La Peinture
au Moyen Age en Yougoslavie, 3 vols., Paris, 1954-1962; e
R. Hamann-Mac Lean, Die Monumentalmalarei in Serbien
und Makedonien, Giessen, 1963. Quanto à Bulgária, D. PANA-
JOTOVA, La Peinture monumentale bulgare au XIVe siècle, Sofia,
1966; e quanto à Rússia, V. N. LAZAREV, Old Russian Murais

364
Rumo a um encerramento cultural do Oriente?

and Mosaics, Londres, 1966; e Freski Staroj Ladogi (LesFresques


du vieux Ladoga), Moscovo, 1960.
Sobre as criações artísticas muçulmanas, a obra essen­
cial ainda é K. A. C. CRESWELL, Muslim architecture ofEgypt,
2 vols., Oxford, 1952-1959; sem esquecer L. HAUTECOEUR
e G. WlET, Les Mosquées du Caire, Paris, 1932. Ver também
R. Berardi, «Espace et ville en pays d’Islam», e D. CHE-
VALLIER, LEspace social de la ville arabe, Paris, 1979. Quanto
à arte otomana, S. K YÈTKIN, LArchitecture turque en Turquie,
Paris, 1962; U. Vogt-Goknil, Turquie Ottomane, Friburgo,
1965; G. GOODWIN, History of Ottoman architecture, Londres,
1971; e A. RAYMOND, «La conquête ottomane et le déve-
loppement des grandes villes arabes: le cas du Caire, de
Damas et d’Alep», Romm, Janeiro de 1979.

365
índice remissivo
Este índice não é exaustivo, Os números de página em itálico indicam que a palavra é definida
à margem ou no texto.

adab: 242 da’í, da’i al du’ât: 154, 158 gasmules: 316


ahdâth: 203 dar al-Islam: 108, 149 génikon: 136
akçe, aspre: 308, 323 dehkan, dihqan: 60, 62, 63, 111 Geniza: 158
Allah: 67 passim demos: 41, 131 Gentes do Livro: 84
allélengyon: 171 derviches: 346 ghanima: 81
almoadismo: 259, 279, 342 déspota, despotado: 287, 337, ghazi: 112, 217, 346
alúmen: 328, 329-330 352 giróvago: 129
amil: 85 devshirmé: 300 goroda: 112
arabesco: 238, 361 dhimmi, zimmi: 84, 101, 104,
arcontes: 301-303 107 hadiths: 87, 143, 236, 240, 241
arianismo: 45 dinar: 105, 190, 318 hadjdj: 68, 82
asabiyya: 202 direm, dirham: 61, 105, 190, 318 hanafismo: 144, 346
asékrétis: 136 diyá’: 177 hanbalismo: 155
ash’arismo: 155 djâhiliyya: 67 hanif: 67
atabaque: 222, 257, 280 djihâd: 80, 81, 104, 112, 282-283 hase: 308
Avesta: 58 djizyâ: 84, 104, 108 Haxemitas: 70, 71, 106
awâsim: 148 djund: 85 Hégira: 71
ayyârun: 157, 203 douleutes: 298 Hesicasmo: 317, 348-350
dromo: 136, 271 higomeno: 128
barid: 204 drongário do ploimon: 139 hiperpero: 200, 269, 322-323
basbtina: 299, 303, 306 drujina: 215 hisba: 195
basileus: 293 passim ducado, zecchino: 324
ibaditas: 145, 146-147
Basílicas: 233 dunatos, dunatoi:167, 262
iconoclasmo, iconoclasta: 116, 121,
bei: 220 duodecimano: 145, 153-154
128, 231
beilerbeilicado: 338 duque, dux: 37, 138, 279
iconólatra: 121
boiardos: 215, 303 idikon: 136
ekkritoi: 229 idjmâ: 143
cã, canato: 66, 288,345 éleuthères: 298 idjtihâd: 143, 155
Caaba: 68, 71, 110 emir al-mu’minin: 84, 150 Ifríqiya: 111, 150, 224, 342
Calcedónios: 91 emir al-umara: 149, 156
‘ilm: 239
califa, califado: 82, 87-88, 103, 141- emir: 110, 220, 306 imã, imanado: 106, 107, 142, 143,
-142, 144, 151-152, 155-156, enfiteuse, enfiteuta: 52 144
159, 219, 242, 248, 255-257, Épanagôgé: 132, 192, 233 iqtâ’: 152, 157, 180, 222, 264, 281,
259, 273, 280, 340-341. eparca: 191 299, 324, 306
Caraítas: 267 épibolè: 39, 97 ismaelianos: 145, 153-154
carijismo: 86, 108, 141, 144-145 Eran-Dibherbadh: 59 iwân: 62, 237, 243-244
Casas Divinas (Domus Divinaè): 39, Eran-Spahbadh: 59
51, 136 eremitismo: 128 janízaros: 300, 319
cenobitismo: 128 ergastérion: 197
chaduf: 164 esclavínias: 77 Kalila e Dimna: 62, 237
chahâda: 80 escólios: 231 kapnikon: 97
Chalcé: 121 estratego: 94, 95, 136-139 kastron: 199, 311, 352
Chalcoprateia: 193 estrateia: 138 katêpanó: 139
charfa: 82 estratiota: 95, 137-138, 168, 170 kaysáriya: 195
charistiké: 174, 263 estratiotikon: 94, 136 kentenarion: 323
chôrion: 17, 162, 168, 171 exarcado: 37, 76, 94, 116 khân: 204, 361
Código de Justiniano: 48, 233 khanqah: 223
colono: 51 falsafa: 241 kharâdj: 84, 104, 108, 177, 265,
Concílio Ecuménico: 45, 347-348 Filioque: 211, 347, 350 295, 300
Corão (qur’ân): 80, 109, 143 fiqh, fuqahâ’: 143, 150, 239 khutba: 201, 258
criado das scholes: 138 fityân: 202 kommerkion: 186, 268-269
crisobulo: 200, 250 florim: 323, 324 korymbos: 62
cronografia: 231 fondaco, funduq, phoundax: 189, krités: 137
curaichitas: 70-71, 80-81 194, 201, 273 kuttâb: 148, 201, 237

367
Larguezas Sagradas: 38, 93, 136 novela: 48, 93, 172-173, 233 sufritas: 146
laura: 128 nusairi: 346 sultão, sultanato: 220, 279, 318,
libra (de 72 nomismata): 54 passim 336, 341, 345, 351
logoteto: 136 pahlavi: 61 sunismo: 143, 150, 154-155, 242-
paideia: 228 243, 256, 345
madrasa: 212, 243, 346, 361 palmitos: 228 Sunna: 87, 106, 143, 240
Magnaura: 229 pão ázimo: 283
mahdi: 106, 150 pareço: 133, 162, 167, 262, 297, tabaqât: 241
maistor: 229 301 tagmata: 95, 138
malik: 221 patriarca ecuménico: 125, 212 takiya: 153
malikismo: 342 patriarca, patriarcado: 126, 209, taktikon: 135, 136
mameluco: 148, 288, 295, 298, 347, 352 taldjfa: 179
306, 329, 340, 345, 351 pénètai: 167 tapu: 299
Mani, maniqueísmo: 58, 87 phollis: 183, 199 télos: 97
maqsura: 110 pireu: 58 tema: 37, 94, 137, 138
marzban: 60 pomiechtchik: 306 terra clasmática: 174
mástique:32£, 330 porfirogeneta: 130, 215 tetartéron: 199
mawâli: 105, 106, 108, 142 prefeito do pretório: 37, 93 thémata: 138
mazdakismo: 61 proasteion: 162 Thughur: 148
mazdeísmo: 58 Procheiron: 233 thughúr: 148
mesquita: 110, 236 pronoia pronija: 174, 263, 303, timar, timariotas: 299-300, 304,
mestre dos ofícios: 36 305, 314 307, 308
metóquio: 129 propaideia: 228 tipoukeitos: 233
metrópole: 125 proskynese: 132 tiraz: 195
metropolita: 125 protoasekretis: 136, 231 Três Capítulos: 47
mihrab: 110, 238 turcomano, turquemeno: 219, 221,
milliarésion: 183, 199 qâdi: 106, 143, 157, 195, 222, 313, 251
minarete: 110, 244 319 typikon: 128, 264
minbar: 110 qasida: 236
mobadan, mobadan mobad: 58 qatâ’i: 105, 152, 177 ulemá: 201, 346
moçárabe: 146 qatfa: 86 umma: 80, 87, 142, 149
modios: 53 qibla: 80, 110, 236 umra: 68, 81
monofisismo, monofisita: 46, 91, qiyâs: 143
121, 123 vallania: 327
monóxilos: 78, 214 reâya: 299 Varegues: 214 37
muçulmano: 80 Res Privata: 38, 51, 93, 136 vaspuhr: 58
muda, mudae: 271, 321-322 reyes de taifas: 226 vastryoshbadh: 59
mudjahid: 257, 282 ribât: 146, 224
wâli: 85
mufti: 155 ridda: 83
mughârasa: 179 waqf, habus: 177, 223, 266
roga: 135
muhtasib: 317, 318 wâzir, vizir: 142, 159
muladis: 146 Sahil: 283 xá: 221
mulk: 304 salat: 71 xeque: 102
muqta’: 264 sandjak: 338 xiismo: 87, 101, 108, 141, 144, 148-
mutazilismo: 144 scotismo: 354 150, 153-154, 156-158, 256, 345
muzara: 178 scriptorium: 230
sékréta: 33, 94, 136 zaidismo: 108
nártice: 234, 358 sekrétikos: 136 zakât: 81, 104, 108
nestorianismo, nestoriano: 46, 58, shu’ubiyya: 237 zandj: 178
91, 239 síndicos do Levante: 326 zeamet: 308
nomisma, soldo: 135, 183, 184, skalai: 268 zelo tas: 211, 317, 335
200, 269 sotché: 306 zindiq: 143, 345
nora: 164 sufi, sufismo: 155, 223 zoroastrismo: 57, 87

368
índice dos mapas

A. Os Balcãs: relevo e itinerários 381

A. O Oriente medieval: relevo e grandes itinerários 382-383


B. Síria-Palestina: relevo e itinerários............................................................................................... 383

A. A região de Meca 384


B. A expansão do islão (622-750) 384-385
C. Os temas bizantinos 384-385
D. O monte Atos................................................................................................................................ 385

A. O Império do Oriente no tempo de Justiniano 386


B. O Império Bizantino do século ix ao século xui 386
C. O Oriente abássida do século vin ao princípio do século x 387
D. O Oriente abássida do final do século x ao princípio do século xi 387

A. Cristandade e islão no princípio do século xii 388-389


B. O Oriente em 1214....................................................................................................................... 389
C. A Creta bizantina e veneziana (séculos xin-xrv) 389

A. As transformações do Ocidente muçulmano de meados do século vm a meados do


século x 390
B. No final do século x 390
C. Na segunda metade do século xi 390
D. O Império Otomano cerca de 1503 391

A. A Moreia do século xm ao século xv 392


B. O desmembramento do Império Bizantino no século XIV 393
C. O mar Negro nos séculos xm e xiv 393

A. A vida económica no Mediterrâneo Oriental (do século xm ao século xv) 394


B. A Moscóvia do século xiv ao século xv 395

A. Cairo 396
B. Córdova 396
C. Bagdade 396
D. Constantinopla (nos séculos xrv e xv) 396

369
iliiiiiilin
B+
Legendas dos mapas
Dado não se encontrarem traduzidas as designações constantes dos mapas anteriores, listam-se,
mapa a mapa e por ordem alfabética, as respectivas traduções.

Os Balcãs: relevo e itinerários

Abydos - Abido Dobroudja - Dobrudja Nauplie — Náuplia


Albanie - Albânia Dyrrachium - Dirráquio Nègrepont - Eubeia
Alpes Dinariques - Alpes
Dináricos Ephèse - Efeso Ochrida - Ocrida
Anatolie — Anatólia Epire - Épiro
Anchialos - Anquialos Pannonie — Panónia
Andrinople - Andrinopla Héraclée - Heracleia Philippopolis - Filipópolis
Arcadiopolis - Arcadiópolis Iaonina — Joanina Pinde - Pindo
Athènes - Atenas
Karpathos - Cárpatos Raguse - Ragusa
Balkan - Balcãs Kos - Cós Rascie - Ráscia
Bosnie - Bósnia Rhodes - Rodes
Lesbos — Lesbo Rhodopes - Ródope
Candie - Cândia Leucade - Leucádia
Cap Malée - Cabo Maleia Save - Sava
Carpates - Cárpatos Macédoine - Macedónia Serdica - Sérdica
Castoria — Castória Méandre - Meandro Smyrne - Esmima
Céphallénie - Cefalónia Mégare - Mégara Sparte - Esparta
Chalcédoine - Calcedónia Mer Adriatique - Mar Adriático Sporades du Nord - Espórades do
Chio - Quios Mer Égée - Mar Egeu Norte
Constantinople - Constantinopla Mer Ionienne - Mar Jónico Sporades du Sud — Espórades do
Corfou - Corfu Mer Méditerranée - Mar Sul
Corinthe - Corinto Mediterrâneo
Crète - Creta Mer Noire - Mar Negro Thèbes - Tebas
Croatie - Croácia Mesembria - Mesêmbria Thessalonique - Tessalonica
Cyclades - Cidades Modon - Módon Transylvanie - Transilvânia
Cythère — Cítera Monemvasie - Monemvasia
Valachie - Valáquia
Danube - Danúbio Naupacte - Naupacto

O Oriente medieval: relevo e grandes itinerários

Aden - Adem Carpates — Cárpatos Euphrate - Eufrates


Adoulis - Adulis Caucase - Cáucaso
Alep - Alepo Constantinople - Constantinopla Ferghana - Fergana
Alexandrie - Alexandria Ctésiphon - Ctesifonte Fès - Fez
Alpes dinariques - Alpes Dináricos
Anatolie - Anatólia Damas - Damasco Golfe Persique - Golfo Pérsico
Antioche - Antioquia Danube - Danúbio
Arménie - Arménia Daybul - Daibul Hamadan - Hamadã
Attaleia - Ataleia Désert de Syrie - Deserto da Síria Hérat - Harat
Azerbaidjan - Azerbaijão Désert de Thar - Deserto de Tar Hidjaz - Hejaz
Dniepr - Dniepre Hindou Kouch - Hindu-Kush
Bahrayn - Bahrein Dorylée - Dorileia
Balkan - Balcãs Dyrrachium - Dirráquio Iconium - Icónio
Bukhara - Bucara Inde - índia
Elbourz - Elburz Indus - Indo

371
Irtych - Irtiche Mer Noire - Mar Negro Rayy - Rey
Ispahan — Ispaão Mer Rouge - Mar Vermelho Rhin - Reno
Mésopotamie - Mesopotâmia
Kabul - Cabul Mogadiscio - Mogadoxo Sahara - Sara
Kaschgar — Cachegar Sébastée - Sebasteia
Khwarizm - Khwarezm Nedjed - Nejed Socotra - Socotorá
Niger - Níger Sogdiane - Sogdiana
L. Tchad - Lago Chade Nil - Nilo
La Mecque - Meca Nishapur - Nichapur Taurus - Tauro
Lac Balkhach - Lago Balcache Thessalonique - Tessalónica
Le Caire - Cairo Ocèan Indien - Oceano Índico Thrace - Trácia
Ourai — Ural Tiflis - Tíflis
Marw - Merv O URAL - URALES Trébizonde - Trebizonda
Mayence - Mogúncia Oxus - Oxus Tropique du Câncer - Trópico de
Médine - Medina Câncer
Mélitène - Meliteno Pannonie - Panónia
Mer Caspienne - Mar Cáspio Pinde - Pindo Venise — Veneza
Mer d’Arai - Mar de Arai Prague - Praga
Mer Méditerranée - Mar
Mediterrâneo Qairouan — Cairuão

Síria-Palestina - relevo e itinerários


Alexandrie - Alexandria Égypte - Egipto Mer Rouge - Mar Vermelho
Anatolie - Anatólia Emèse - Homs Monts Taurus - Cordilheira do
Ancyre — Ancara Epihania - Hamã Tauro
Anti-Liban - Anti-Líbano Euphrate - Eufrates
Antioche - Antioquia Nil - Nilo
Ascalon - Ascalon Galilée - Galileia
Attaleia - Ataleia Germanicée - Germaniceia Oronte - Orontes

Baalbeck - Baalbek Iconium - Icónio Palmyre - Palmira


Béroia - Halab Portes Ciliciennes - Portas Cilicias
Beyrouth - Beirute Jérusalem - Jerusalém
Jourdain - Jordão Samarie - Samaria
Cappadoce - Capadócia Judée - Judeia Sébastée - Sebasteia
Césarée - Cesareia Seleucie - Selêucia
Chypre - Chipre La Mecque - Meca Sidon - Sídon
Ciliicie — Cilicia Laodicée - Laodiceia Sinai — Sinai
Le Caire - Cairo
Damas - Damasco Leitani - Litâni Tarse — Tarso
Damiette - Damieta Liban - Líbano Tortose - Tortosa
Désert de Syrie - Deserto da Síria Tripoli - Trípolis
Dj. Ansar - Montes Ansar Mélitène - Meliteno Tyr - Tiro
Dj. Aqra - Montes Acra Mer Mediterranée - Mar
Mediterrâneo Wadi al-Araba - Rio Araba
Edesse - Edessa Mer Morte - Mar Morto

A região de Meca
Djidda - Jidda Médine - Medina Térritoire sacré - Território sagra-
Mer Rouge - Mar Vermelho do
Hudaybiya - Hudaibiya
Piste caravanière - Rota de carava- Yathrib - Iatribe
Khaybar - Kheibar nas

La Mecque - Meca Ta’if - Taif

372
índice remissivo

A expansão do islão (622-750)


Aden - Adem Hérat - Harat Océan Atlantique — Oceano
Ajnâdayn - Ajnadain Hidjaz - Hedaz Atlântico
Alexandrie - Alexandria Océan Indien - Oceano índico
Amou Daria — Amudária Indus - Indo Ouargla - Uargla
Assouan - Assuão Iraq - Iraque
Aturies - Astúrias Ispahan - Ispaão Palerme - Palermo
Axouin - Axum
Azerbaidjan - Azerbaijão Jérusalem - Jerusalém Qaiirouan - Cairuão

B. du Chameau - B. do Camelo Kabul - Cabul Rayy - Rey


Bagdad - Bagdade Khurasân - Khurasan Rome - Roma
Barcelone - Barcelona Khwarizm - Khwarezm Royaume d’Axoum - Reino de
Barka - Barca Kufa - Cufa Axum
Basra - Baçorá Royaume Franc - Reino Franco
Bataille - Batalha Le Mecque - Meca
Bukhara - Bucara Lombards - Lombardos Saragosse - Saragoça
Seistan - Sistão
Carthage - Cartago Mansura - Mançorá Sièges de 674 à 678 et de 717 à
Constantinople - Constantinopla Marw - Merv 718 - Cercos de 674 a 678 e de
Cordoue - Córdova Médine - Medina 717 a 718
Ctésiphon - Ctesifonte Mélitène - Meliteno Syr Daria - Sirdária
Mer Caspienne - Mar Cáspio Syracuse - Siracusa
Damas - Damasco Mer d’Arai - Mar de Arai Syrie - Síria
Danube - Danúbio Mer Mediterranée - Mar
Mediterrâneo Tabaristan - Tabaristão
Egypte - Egipto Mer Noire - Mar Negro Tarse - Tarso
Empire Byzantin - Império Mer Rouge - Mar Vermelho Tiflis - Tíflis
Bizantino Multan - Multão Tolède - Toledo
Euphrate - Eufrates Tripoli - Trípolis
N. = Navarre - N. = Navarra Tripolitaine - Tripolitânia
Ferghana - Fergana Naples - Nápoles Tunis - Tunes
Fustât - Fustat Nihawend - Nihavend
Nil - Nilo Venise - Veneza
Golfe Persique - Golfo Pérsico Nishapur - Nichapur vers - cerca de

Os temas bizantinos
Antioche - Antioquia Danube - Danúbio Nikopolis - Nicópolis
Dyrraquion - Dirráquio
Bucellaires - Bucelários Paphlagonie - Paflagónia
Euphrate - Eufrates Péloponnèse - Peloponeso
Calabre - Calábria
Cappadoce - Capadócia Halys - Halis Rome — Roma
Céphallénie - Cefalónia Hellade - Hélada
Chaldée - Caldeia Sébastée - Sebasteia
Charsianon - Carsianos Longobardie - Longobardia Séleucie - Selêucia
Chersôn - Quérson Lucanie - Lucânia Sicile - Sicília
Chypre - Chipre Lykandos - Licândia Strymon - Estrímon
Cibyrrhéotes - Cibiratas
Colonée - Coloneia Macédoine - Macedónia Thessalonique - Tessalonica
Constantinople - Constantinopla Mer Egée - Mar Egeu Thrace - Trácia
Crète - Creta Mer Noire - Mar Negro Thracèsiens - Tracésios
Mésopotamie - Mesopotâmia
Dalmatie - Dalmácia

373
O monte Atos
Amalfitains - Amalfitanos Cap Akratos - Cabo Akratos Mer Égée - Mar Egeu
Ancien Canal de Xerxès - Antigo
Canal de Xerxes Golfe de Haghion Oron - Golfo Saint-Paul - São Paulo
de Haghion Oron

O Império do Oriente no tempo de Justiniano


Afrique - África Danube - Danúbio Orient - Oriente
Alamans - Alamanos Dyrrachium - Dirráquio Ostrogoths - Ostrogodos
Alexandrie - Alexandria
Andrinople - Andrinopla Edesse - Edessa Palerme — Palermo
Antioche - Antioquia Egypte - Egipto Pont - Ponto
Asie - Ásia Empire Perse - Império Persa Pont-Euxin - Ponto Euxino
Athènes - Atenas Éfhèse - Éfeso
Attaléia - Ataleia Euphrate - Eufrates Ravenne - Ravena
Avars - Ávares Rome - Roma
Francs - Francos
Beyrouth - Beirute Sardaigne - Sardenha
Bulgares - Búlgaros Gépides - Gépidas Sébastée - Sebasteia
Burgondes - Burgúndios Ghassanides - Rassânidas Sicile - Sicília
Slaves - Eslavos
Carthage - Cartago Illyricum - Ilírico Suèves - Suevos
Carthagène - Cartagena Italie - Itália
Césarée - Cesareia Thessalonique - Tessalonica
Cherson - Quérson Jérusalem - Jerusalém Thrace - Trácia
Chypre - Chipre Trébizonde - Trebizonda
Constantinople - Constantinopla Lombards - Lombardos Tripoli - Trípolis
Cordoue - Córdova
Corinthe - Corinto Mer Méditerranée - Mar Vandales - Vândalos
Corse — Córsega Mediterrâneo
Crète - Creta Wisigoths - Visigodos
Naples - Nápoles
Dalmatie - Dalmácia Nicée - Niceia
Damas - Damasco Nil - Nilo

O império bizantino do séc. IX ao xin


Abydos - Abido Édesse - Edessa Raguse - Ragusa
Ancyre - Ancara Ephese - Éfeso Rhodes - Rodes
Andrinople - Andrinopla Euphrate - Eufrates Rome - Roma
Antioche - Antioquia
Athènes - Atenas Hongrie — Hungria Sébastée - Sebasteia
Attaléia - Ataleia Séleucie - Selêucia
Iconium - Icónio Serbie - Sérvia
Bulgarie - Bulgária Italie - Itália Serdica - Sérdica (Sófia)
Sicile - Sicília
Cattaro - Cataro Mélitène - Meliteno Smyrne - Esmirna
Césarée — Cesareia Mer Méditerranée - Mar
Cherson - Quérson Mediterrâneo Théodosioupolis - Teodosiópolis
Chypre - Chipre Mer Noire — Mar Negro Thessalonique - Tessalonica
Constantinople - Constantinopla Mesembria - Mesêmbria Trébizonde - Trebizonda
Corinthe - Corinto Tripoli - Trípolis
Crète - Creta Naissus - Naissus
Nicée - Niceia Venise - Veneza
Danube - Danúbio
Dyrrachium - Dirráquio Ochrida - Ocrida

374
índice remissivo

O Oriente abássida do séc. vm ao princípio do séc. X


Alexandrie - Alexandria Hidjaz - Hejaz Nil - Nilo
Aksum - Axum Nishapur - Nichapur
Indus - Indo
Bagdad - Bagdade Iraq - Iraque Océan Indien — Oceano Indico
Bahrayn - Bahrein Oxus - Oxus
Barka - Barca Kufa - Cufa
Basra - Baçorá Samarkand - Samarcanda
Bukhara - Bucara La Mecque - Meca Sidjistan - Sistão
Syrie-Palestine - Síria-Palestina
Chypre - Chipre Marw - Merv
Constantinople - Constantinopla Médine - Medina Tropique du Câncer - Trópico de
Mer Caspienne - Mar Cáspio Câncer
Egypte - Egipto Mer d’Aral - Mar de Arai
Euphrate - Eufrates Mer Méditerranée - Mar Uman - Oman
Mediterrâneo
Golfe Persique - Golfo Pérsico Mer Noire - Mar Negro Yemen - Iémen
Mer Rouge - Mar Vermelho
Hadramawt - Hadramaute

O Oriente abássida do final do séc. x ao princípio do séc. XI


Alep - Alepo Gange - Ganges Marw - Merv
Ghazna - Razni
Bagdad - Bagdade Golfe Persique - Golfo Pérsico Nishapur - Nichapur
Basra - Baçorá
Bukhara - Bucara Hamadhan - Hamadã Samarkand - Samarcanda
Herat - Harat
Delhi - Deli Tropique du Câncer - Trópico de
Kabul - Cabul Câncer
Euphrate - Eufrates
Indus - Indo

Cristandade e Islão no princípio do séc. XII


Alexandrie - Alexandria Ebre - Ebro Khalifat Fatimide - Califado
Antioche - Antioquia Edesse - E dessa Fatímida
Arabie - Arábia Empire Almoravide - Império
Aragon - Aragão Almorávida Le Caire - Cairo
Arméniens - Arménios Empire Byzantin - Império Lithuaniens - Lituanos
Bizantino
Bagdad - Bagdade Empire Romain Germanique - Mer Méditerranée - Mar
Bulgares - Búlgaros Sacro Império Romano- Mediterrâneo
-Germânico Mer Noire - Mar Negro
Cercle polaire arctique - Círculo Empire Seljukide - Império
Polar Ártico Seljúcida Navarre - Na varra
Chersôn - Quérson Esthoniens - Estonianos Nicée - Niceia
Comté de Portugal - Condado Euphrate - Eufrates
Portucalense Obotrites - Obodritas
Constantinople - Constantinopla Fès - Fez Océan Atlantique - Oceano
Cordoue - Córdova Finnois - Finlandeses Atlântico
Croatie - Croácia
Cté. de Barcelone - Condado de Gênes - Génova Petchénègues - Pechenegues
Barcelona Géorgie - Geórgia Petite Arménie - Pequena
Grand Duché de Kiev - Grão- Arménia
Danube - Danúbio -Ducado de Kiev Poméraniens - Pomerânios
Dniepr - Dniepre
Duché Normand - Ducado Normando Jérusalem - Jerusalém Raguse - Ragusa
Rhin - Reno Royaume de Hongrie - Reino da Royaume de Suède - Reino da Suécia
Rhône - Ródano Hungria
Rome - Roma Royaume de Léon-Castille - Reino Serbes - Sérvios
Roy. de Danemark - Reino da de Leão e Castela
Dinamarca Royaume de Norvège - Reino da Tage - Tejo
Royaume d’Angleterre - Reino de Noruega Tunis - Tunes
Inglaterra Royaume de Pologne - Reino da
Royaume de France - Reino da França Polónia Venise - Veneza

O Oriente em 1214
Achaie - Acaia Empire Latin - Império Latino Propontide - Propôntida
Antalaya (Attaléia) - Antália Empire de Nicée - Império de Niceia
(Ataleia) Empire de Trébizonde - Império Raguse (Dubrovnik) - Ragusa
de Trebizonda (Dubrovnik)
Brousse - Bursa Etat Grec Occidental (Epire) - Rhodes - Rodes
Bulgarie - Bulgária Estado Grego Ocidental (Epiro) Royaume de Thessalonique -
Euphrate - Eufrates Reino de Tessalonica
Chypre - Chipre
Constantinople - Constantinopla Halys - Halis Serbie - Sérvia
Corinthe - Corinto Sofia - Sófia
Crète - Creta Mer Adriatique - Mar Adriático Sultanat de Rum - Sultanato de
Mer Egée - Mar Egeu Rum
Danube - Danúbio Mer No ire - Mar Negro
Duché d’Athènes - Ducado de Atenas Modon - Módon Thèbes - Tebas
Duché de 1’Archipel - Ducado do Thessalonique - Tessalonica
Arquipélago Nicée - Niceia Trébizonde - Trebizonda

A Creta bizantina e veneziana (séc. xin-xiv)


Candie - Cândia Les Monts Blancs - Os Montes Mont Ida - Monte Ida
Brancos
La Canée - Caneia

As transformações do Ocidente muçulmano de meados do séc. vni a meados do séc. x


Abbâssides - Abássidas Fés - Fez Qairouan - Cairuão
Aghlabides - Aglábidas Ibadites - Ibaditas
Alexandrie - Alexandria Idrissides - Edrícidas Tripoli - Trípolis
Tunis - Tunes
Barka - Barka Mer Méditerranée - Mar
Bougie - Bugio Mediterrâneo Umayyades - Omíadas

Cordoue - Córdova Nil - Nilo

No final do século x
Alexandrie - Alexandria Idrissides - Edrícidas Mer Rouge - Mar Vermelho
Barka - Barca
Bcsagse - Bugio Jérusalem - Jerusalém Nil - Nilo
La Mecque - Meca
Damas — Dagwrn Le Caire - Cairo Palerme - Palermo
Qairouan - Cairuão
Faii—— Fassiàas Médine - Medina
Fès-Fcz Mer Méditerranée — Mar Umayyades - Omíadas
Mediterrâneo Zirides - Ziridas

376
índice remissivo

Na segunda metade do século xi


Bougie - Bugio Mer Méditerranée - Mar Sénégal - Senegal
Mediterrâneo Sousse - Susa
Cordoue - Córdova Niger - Níger
Fès - Fez Nil - Nilo Tombouctou — Tombuctu
Tripoli - Trípolis
Ghadamès - Gadamez Oceán Atlantique — Oceano Atlântico Tropique du Câncer - Trópico de
La Qala - Qala Oran - Orão Câncer
Ouargla - Uargla Tunis - Tunes
Marrakech - Marraquexe Qairouan - Cairuão

O Império otomano em 1503


(à Gênes) - (de Génova) Etats du Pape - Estados do Papado Perse - Pérsia
Akkirman - Akkerman Euphrate - Eufrates (Phocée) ~ (Fócida)
Alaiye - Aleia Pô - Pó
Albanie - Albânia Hongrie - Hungria Pologne — Polónia
Amasya - Amasia Principaux raids ottomans —
Anatolie - Anatólia Istanbul - Istambul Principais ofensivas otomanas
Ancône — Ancona
Ankara - Ancara Karamanie - Caramânia Rhodes - Rodes
Antalya - Antália Khanat de Crimée - Canato da Roumélie - Romélia
Athènes - Atenas Crimeia Royaume de Naples - Reino de
Autriche - Áustria Kos - Cós Nápoles

Belgrade - Belgrado Lesbos - Lesbo Saint Empire Romain Germanique


Bosnie - Bósnia Limites de 1’Empire vers 1503 - - Sacro Império Romano-
(Brousse) - (Bursa) Limites do Império em 1503 -Germânico
Lithuanie - Lituânia Samsun - Sansum
Caffa - Cafa Save - Sava
Chio - Quios Mer d’Azov - Mar de Azov Serbie - Sérvia
Chypre - Chipre Mer Méditerranée - Mar (Smyrne - (Esmirna)
Constantinople — Constantinopla Mediterrâneo Sofia - Sófía
Corfou - Corfu Mer Noire - Mar Negro Sporades - Espórades
Grète - Creta Modon - Módon Sultanat Mamluk - Sultanato
Moldavie - Moldávia Mameluco
Danube - Danúbio Monemvasie - Monenvasia
Dniepr - Dniepre Morée — Moreia Thasos - Taso
Dniestr - Dniestre Trébizonde - Trebizonda
Drave - Drava (Nicée) — (Niceia)
Nicopolis — Nicópolis Valachie - Valáquia
Edirne - Edirna (Andrinopla) Venise - Veneza
Epire - Epiro (Ochrida) - (Ócrida)

A Moreia do séc. XIII ao séc. xv


Alphée - Alfeu Comté Palatin de Céphalénia — Golfe de Corinthe - Golfo de
Angelokastro - Angelocastro Condado Palatino de Cefalónia Corinto
Arkadia - Arcádia Corinthe - Corinto
Athènes - Atenas Kythira - Cítera
Despotat d’Epire - Despotado do
Boudonitsa - Budonitsa Epiro Lacédémone - Lacedemónia
Duché de Néopatras - Ducado de Leucade - Leucádia
Calandrice — Calandriça Neópratas
Caraintaine - Carantânia Mégare - Mégara
Céphallénie - Cefalónia Egine - Egina Mer Egée - Mar Egeu
Chalkis - Cálcis Eubée - Eubeia Mer Ionienne - Mar Jónio
Collovrate - Colovrata Modon - Módon
Naupacte - Naupacto Passavant - Passavante Thèbes - Tebas
Nauplie - Náuplia
Neai Patrai - Neópatras Salamine - Salamina Zacynte - Zacinto
Nègrepont - Negroponte (suzeraineté angevine) - Zetouni - Zetuni
(suzerania angevina)

O desmembramento do Império bizantino no séc. xrv


Alaiye - Aleia Halys - Halis Ochrida - Ócrida
Andrinople - Andrinopla
Ankara - Ancara Icarie - Icária Philadelphie - Filadélfia
Athènes - Atenas Phocée - Fócida
(aux Hospitaliers) — (dos Karpathos - Cárpatos
Hospitalários) Rhodes - Rodes
La Canée — Caneia
Candie - Cândia Lesbos - Lesbo Save - Sava
Cerigo - Cítera Smyrne - Esmirna
Chios - Quios Mer Noire - Mar Negro Sofia - Sófia
Chypre - Chipre Mesembria - Mesêmbria Sozopolis - Sozópolis
Constantinople - Constantinopla Modon - Módon
Corfou - Corfu Thasos - Taso
Crète - Creta Neai Patrai - Neópatras Thessalonique - Tessalonica
Nègrepont - Negroponte Trébizonde - Trebizonda
Danube - Danúbio Nicée - Niceia Trnovo — Tirnovo
Nicomédie - Nicomédia Turcs - Turcos
Empire mamlük - Império Nicopolis - Nicópolis
mameluco

O Mar Negro nos sécs. xin e xiv


Adramytium - Adramiteu Emp. des Osmanlis - Imp. dos Nègrepont - Eubeia
Aenos - Ainos Otomanos Nicée - Niceia
Alpes de Transylvanie - Alpes da Empire byzantin - Império bizanti­ Nicomédie - Nicomédia
Transilvânia no Nicopolis — Nicópolis
Anchialos - Anquialos Empire serbe - Império sérvio
Andrinople — Andrinopla Empire de Trébizonde - Império Philadelphie - Filadélfia
Angora — Ancara de Trebizonda Phocée - Fócida

Balkan - Balcãs Géorgie - Geórgia Rhodopes - Ródope


Brousse - Bursa Route mongole - Rota mongol
Byz. - Biz. Halys - Halis Royaume bulgare - Reino búlgaro
(Biz. jusqu’en 1390) - (Biz. até Héraclée - Heracleia
1390) Hongrie - Hungria Samsun — Sansum
Sofia - Sófia
Caffa - Caía Khanat des Ilkhans de Perse - Smyrne - Esmirna
Carpathes - Cárpatos Canato dos Ilkhans da Pérsia Sozopolis - Sozópolis
Caucase - Cáucaso Khanat de la Horde d’Or
Chaines pontiques - Cordilheiras (Kiptchak) - Canato da Horda Thessalonique — Tessalonica
pônticas de Ouro (Kiptchak) Trébizonde - Trebizonda
Cherson - Quérson Kouban - Kuban
Chio - Quios Valachie - Valáquia
Circassie - Circássia Lesbos - Lesbo
Crimée - Crimeia Licostomo - Licóstomo Vosporo - Bósforo
Constantinople - Constantinopla
Mer de Tana - Mar de Tana (Mar 1
Danube - Danúbio de Azov)
Dniepr - Dniepre Mer Noire - Mar Negro s
Dniestr - Dniestre Mésembria - Mesêmbria
Moldavie - Moldávia

378
índice remissivo

A vida económica no Mediterrâneo oriental (do século xin ao século xv)


Alâije - Aleia épices, métaux, soie, pierres de Palerme - Palermo
ALexandrie - Alexandria Tabriz - especiarias, metais, Phocée - Fócida
Ancône - Ancona seda, pedras de Tabriz pierres et ivoire de Nubie et
d’Éthiopie - Pedras e marfim da
Barcelone - Barcelona Famagouste — Famagusta Núbia e da Etiópia
Beyrouth - Beirute fourrures, blé, esclaves - peles, produits d’Orient et de la côte
Bosnie - Bósnia trigo, escravos d’Afrique - produtos do
Bulgarie - Bulgária Oriente e da costa de África
Gênes - Génova
Caffa — Cafa Raguse - Ragusa
Candie - Cândia Le Caire - Cairo Rhin - Reno
Chio - Quios Libye - Líbia Rhodes - Rodes
Chypre — Chipre
Constantinople - Constantinopla Mer d’Azov - Mar de Azov Serbie - Sérvia
Corfou - Corfu Mer Méditerranée - Mar Ste. Maure - Sta. Maura
Crète - Creta Mediterrâneo
Mer Noire - Mar Negro Theólogo - Teólogo
Danube - Danúbio Mer Rouge - Mar Vermelho Thessalonique — Tessalonica
Dniepr - Dniepre métaux, armes - metais, armas Trébizonde - Trebizonda
draps, étain de Flandre et Modon - Módon Tripoli - Trípolis
d’Angleterre - tecidos, estanho Morée - Moreia Tunis - Tunes
da Flandres e da Inglaterra Turquie - Turquia
Naples - Nápoles
Egypte - Egipto Nègrepont - Eubeia Valachie - Valáquia
épices du Golfe Persique - Nil - Nilo Venise - Veneza
especiarias do Golfo Pérsico
épices, esclaves - especiarias, or du Soudan - ouro do Sudão
escravos or, peaux, laine, blé de Barbarie -
ouro, peles, lã, trigo da Berbéria

A Moscóvia do século xrv ao século xv


Carélie - Carélia Khanat de la Horde d’or - Canato Niemen - Niémen
Cernigov - Chernigov da Horda de Ouro
Cosaques du Don - Cossacos do Koulikovo - Kulikovo Pologne - Polónia
Don Provinces roumaines - Províncias
Cosaques Zaporoges — Cossacos Lac Ladoga - Lago Ládoga romenas
Zaporógios Lac Onega - Lago Onega
Lac Peipous - Lago Peípus Saint Serge - São Sérgio
Dniepr - Dniepre Ladoga - Ládoga Suède - Suécia
Dniestr - Dniestre Lithuanie - Lituânia
Tchérémisses - Tcheremizes
Finnois - Finlandeses Mer Blanche - Mar Branco Teutoniques - Teutónicos
Mer d’Azov - Mar de Azov Toula - Tuia
Golfe de Finlande - Golfo da Monastère de Solovski - Mosteiro
Finlândia de Solovski Ukraine — Ucrânia
Mongols - Mongóis
Jaroslav - Iaroslav Mordves - Mordvos Zirianes - Zirianos
Moscou - Moscovo

379 51
Cairo
Al-Askar - Askar Saladin - Fortificações projecta- Rive actuelle du Nil - Margem ac-
Al-Fustat - Fustat das por Saladino tual do Nilo
Al-Qahira - Cairo Ile de Roda - Ilha de Roda Rive du Nil à 1’époque de
Al-Qatai - Qatai Mosquée al-Ahzar - Mesquita de Fatimide - Margem do Nilo na
al-Ahzar época fatímida
Babylone - Babilónia Mosquée al-Hakim - Mesquita de Rive du Nil à 1’époque de la
al-Hakim conquête Arabe - Margem do
Citadelle de Saladin - Cidadela de Mosquée d’Amr - Mesquita de Amr Nilo na época da conquista Arabe
Saladino Mosquée d’Ibn Tulun - Mesquita Rive du Nil à 1’époque de Saladin
fondé en... - fundada em... de Ibn Tulun - Margem do Nilo na época de
Murailles de briques fatimides - Saladino
Fortifications construites par Muralhas fatímidas de tijolos
Saladin - Fortificações construí­ (ville gréco-romaine) - (cidade
das por Saladino Pont de bateaux - Ponte de barcas greco-romana)
Fortifications projetées par

Córdova
Djanib de 1’Est - Djanib de Leste Rabanàles - Rabanales Almodovar dei Rio
Djanib de 1’Ouest - Djanib de Oeste vers Elvira - para Elvira
Sierra de Cordoba - Serra de vers Séville - para Sevilha
Extension Nord - Extensão Norte Córdova voie romaine - via romana
vers Alcolea - para Alcolea
Madina - Medina vers Almodovar dei Rio - para

Bagdade
anncien cours du Tigre - antigo enceinte de Mustazhir - cerca de Khurasan
curso do Tigre Mustazhir Porte de Kufa - Portas de Cufa
Porte de Syrie - Portas da Síria
Canal d’Isa - Canal de Isa fossé de Tahir - fosso de Tahir
Ville ronde - Cidade redonda
enceinte de Musta’in - cerca de Porte de Basra - Portas de Baçorá
Musta’in Porte de Khurasan - Portas de

Constantinopla (nos séculos xiv e xv)


Acropole - Acrópole Hippodrome - Hipódromo Palais des Manganês - Palácio dos
Aqueduc de Valens - Aqueduto de Manganês
Valente La Grande Nymphée - A Grande Palais Impérial - Palácio Imperial
Ninfeia Péra - pera
Bosphore - Bósforo Port d’Eleuthère - Porto de Eleutérío
Mésè - Mesé Port du Boukoléon - Porto do
C. d'Actius - C. de Actius Mur de Constantin (330) - Bucoleon
C. d‘Aspar - C. de Aspar Muralha de Teodósio (413) Port Sophien - Porto Sofiano
Capítoie — Capitólio Propontide - Propôntida
Ch. des Sept Tours - Cam. das P. d’Andrinople - P. de
Sete Torres Andrinopla Sénat - Senado
chalne - cadela P. Dorée - P. Dourada Ste. Irène - St.- Sofia
Come d"Or — Como de Ouro P. du Pempton - P. do Pempton Stoudios - Studios
P. du Polyandrion - P. do Sts. Apôtres - Santos Apóstolos
F. dArcafess - E de Arcádio Poliândrio Sts. Serge et Bacchus - Santos
F. de Cutot*&SH — F. de Consântino P. du Xylokerkos - P. do Xilokerkos Sérgio e Baco
F. de Thécdase — F_ de Teodósso P- Pégè - P. Pegé
F. du Boctd — F_ do Bgs P. Sr_ Romain - P. S. Romão Tour de Gaiata - Torre de Gaiata

380

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