Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
(1919-1949)1
RESUMO
O movimento anarquista, surgido no final do século XIX dentro do movimento operário, criticava
todas as formas de poder e autoridade e não vislumbrava a prática da liberdade dentro do sistema
capitalista. A imprensa operária apresenta-se como importante instrumento para a organização dos
trabalhadores e divulgação de seus ideais e práticas libertárias. Em seus jornais e periódicos, os
anarquistas discutiam temas como a ação direta, as propostas libertárias para a organização do
trabalho, o amor livre, a educação e o autodidatismo, a emancipação feminina e a liberdade sexual,
bem como outras propostas para modos de viver alternativos ao sistema hegemônico. Neste
trabalho, buscaremos através da imprensa operária de viés anarquista do início do século XX (com
o jornal A Plebe) quais as formas de resistência sugeridas pelos militantes às medidas do Estado
capitalista para o controle das suas vidas e de seus corpos no que se refere aos discursos que
problematizavam a família e o casamento.
1. INTRODUÇÃO
Nesse sentido, também a organização do trabalho fabril deveria contribuir e, portanto, estar
alinhada aos interesses e exigências da expansão do capital, tal como afirma Rago -“na fábrica, a
mobilização de um amplo arsenal de conhecimentos e de técnicas coercitivas visa transformar sua
estrutura psíquica e incutir hábitos regulares de trabalho, desde as origens da industrialização”
(RAGO, 1985, p.18).
O controle do tempo através dos horários de entrada e saída dos operários das fábricas, os
regulamentos internos que limitavam os contatos entre os trabalhadores, a difusão dos “valores
burgueses da honestidade, da laboriosidade, da vida regrada e dessexuada do gosto pela
privacidade, eliminando as práticas populares consideradas ameaçadoras para a estabilidade e a
ordem social” (RAGO, 1985, p.26-27), a instituição de hábitos e costumes para a domesticação do
operariado alinhados ao imaginário da família criado pela sociedade burguesa, o discurso médico-
científico da higiene e da eugenia, constituíam-se enquanto tecnologias do poder do Estado para a
construção de “corpos dóceis” - na expressão de Foucault (1987) - indivíduos passivos
politicamente, mas úteis para a produção do capital e manutenção dos mecanismos de poder.
Em resposta a isso, os operários organizados buscavam formas de resistência aos discursos e
tecnologias disciplinares do Estado e de seus patrões. Um dos jornais de maior relevância para a
organização do movimento operário no início do século XX foi o jornal A Plebe, de viés
anarcossindicalista. Nele eram recorrentes artigos de pensadores anarquistas dos mais relevantes
(tais como Kropotkin, Malatesta, Proudhon e Bakunin) bem como artigos que sugeriam o boicote às
empresas, debatiam e informavam sobre greves, sugeriam a ação direta como forma legítima de luta
do operariado e apostavam na educação como importante elemento para a emancipação humana
(considerando, com isto, o autodidatismo e a formação de escolas operárias). Temas como a
emancipação feminina, o amor livre, a liberdade sexual, o anticlericalismo, entre outros, também
eram recorrentes e visavam criar uma consciência libertária e emancipadora da classe, sempre
aliando a importância da organização dos trabalhadores para derrubar o sistema capitalista.
Em um artigo assinado por Affonso Schimidt, n'A Plebe, intitulado A onda vermelha que se
avoluma e avança, o autor apresenta elementos que constituirão uma sociedade futura, devido à
lutas dos(as) trabalhadores(as). Além da negação da propriedade privada, do Estado, da religião e da
pátria, o autor também negou o casamento para afirmar que numa sociedade emancipada, o amor
livre se fará presente: “Não teremos mais o casamento indissolúvel e a autoridade dos pais sobre os
filhos mas a união livre daqueles que se amam, com garantia de educação, de desenvolvimento e de
vida para os filhos, sobre os quais os genitores terão apenas o direito do amar” (A PLEBE
01/03/1919). Além disso, o autor ainda afirma: “Não havendo a propriedade não teremos o “roubo”:
dando-se as uniões exclusivamente por amor: cessarão os crimes provocados pelo adultério. Como
estes, muitos outros delitos deixarão de existir” (A PLEBE 01/03/1919).
Há ainda outros artigos que questionam os discursos científicos e naturalizados da sociedade
bem como as estruturas vigentes. Exemplo disso é o artigo O espantalho da loucura em que o autor
discorre sobre a luta pela anarquia ser vista como loucura e afirma:
[...] a burguesia, vencedora acidentalmente na batalha social, procedeu como
todos os vencedores das épocas bárbaras e históricas: apossou-se de tudo na
vida. A ciência que a auxiliou na luta, ficou sob seu domínio e continuou aos
seus serviços. […] os sábios, isto é, aqueles que tinham mais conhecimentos
dos fenômenos da natureza, orgulhados com a riqueza do seu saber,
quiseram se criar uma aristocracia intelectual e foram mendigar do vencedor
seus pergaminhos e brasões. O burguês, vendo de rastos a seus pés as elites
da inteligência, impôs como condição ficar a ciência ao serviço da força que
a apoiava. […] Hoje a ciência e os sábios que a manipulam estão a soldo do
burguês, do capitalismo e do estado. Daí essas coisas absurdas e odiosas que
são a química, a economia política, o direito, a psiquiatria, a mecânica e
outras (A PLEBE 19/04/1919).
É a partir da família também que se reforça a divisão sexual entre espaço público e privado,
atribuindo às mulheres o espaço privado e aos homens o espaço público, que teve seu ápice no
século XIX na Europa Ocidental (PERROT, 2005). Essa divisão resulta na construção de discursos
acerca de quais funções e papeis que as mulheres devem cumprir na sociedade, o controle sobre sua
sexualidade, seus corpos e suas condutas.
Dentro da família, sobre a mulher caía a responsabilidade da educação dos filhos. O discurso
médico-científico atuava no sentido de moralizar o papel da mulher:
A “nova mãe” passa a desempenhar um papel fundamental no nascimento da família
nuclear moderna. Vigilante, atenta, soberana no seu espaço de atuação, ela se torna a
responsável pela saúde das crianças e do marido, pela felicidade da família e pela higiene
do lar, num momento em que cresce a obsessão contra os micróbios, a poeira, o lixo e tudo
o que facilita a propagação das doenças contagiosas. A casa é considerada como o lugar
privilegiado onde se forma o caráter das crianças, onde se adquirem os traços que definirão
a conduta da nova força de trabalho do país. Daí, a enorme responsabilidade moral
atribuída à mulher para o engrandecimento da nação (RAGO, 1985, p.80).
3. METODOLOGIA
Esta pesquisa baseia-se na perspectiva que considera a tecnologia não apenas enquanto
objetos e máquinas com determinadas funções, mas também na sua capacidade de atuar na
construção social da realidade. Assumimos uma análise sócio-histórica dos discursos científicos e
tecnológicos, compreendendo que as verdades científicas também são construtos sociais, como
afirma Vessuri:
Al suponer que las reglas de arumento y los criterios de verdad son internos al sistema
social o quizás a un conjunto de sistemas sociales, el análisis social e histórico adquiere el
potencial de proporcionar una crítica válida inclusive de nuestros próprios presupuestos,
acercándose a la tradición de la hermenéutica, la cual no supone un solo lenguaje ni la
inconmensurable relatividad de los lenguajes sino que la comprensión intercultural y la
crítica autorreflexiva son posibles e iluminadoras (VESSURI, 1991, p.60-61).
Conforme afirma Michel Foucault, governam-se coisas e “estas coisas, de que o governo deve
se encarregar, são os homens, mas em relação com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios
de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.”, e
também “os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas
de agir ou de pensar, etc.” (FOUCAULT, 1979, p. 166). Sendo assim, entender as práticas de
controle e evidenciá-las faz-se necessário para que possamos partir para a resistência e a superação
deste sistema opressor.
Muito antes das análises foucaultianas dos mecanismos de controle e poder, os(as)
libertários(as) já questionavam as formas como o poder se dava e difundiam “uma outra concepção
de poder, que recusa percebê-lo apenas no campo da política institucional” (RAGO, 1985, p. 14).
Em resposta a isso, propunham “múltiplas formas de resistência política, que investem contra as
relações de poder onde quer que se constituam: na fábrica, na escola, na família, no bairro, na rua”,
desvendando, portanto, “os inúmeros e sofisticados mecanismos tecnológicos do exercício da
dominação burguesa” (RAGO, 1985, p. 14).
Alguns artigos n'A Plebe indicam diretamente o ideal máximo do anarquismo, como este de
Henrique Malatesta sobre o Programa anarquista:
Em resumo, queremos:
1º) Abolição da propriedade capitalista ou estatista, da terra, das matérias-primas e dos
intrumentos de trabalho, para que ninguém tenha meios de viver explorando o trabalho dos
outros, e que todos, assegurados dos meios de produzir e de viver, sejam verdadeiramente
independentes e possam associar-se livremente com as simpatias pessoas.
2º) Abolição do governo e de qualquer poder que faça leis para impô-las aos outros;
portanto, abolição das monarquias, das repúblicas, dos parlamentos, dos exércitos, das
polícias, das magistraturas e de toda e qualquer instituição dotada dos meios de constranger
e de punir.
3º) Organização da vida social por iniciativa das associações livres e das livres federações
de produtores e consumidores, criadas e modificadas conforme a vontade de seus
componentes, guiados pela ciência e pela experiência, e liberta de toda a obrigação que não
se originar da necessidade natural (…).
4º) A todos garantidos os meios de vida, de desenvolvimento, de bem estar, particularmente
às crianças e a todos os que são incapazes de prover à sua subsistência.
5º) Guerra a todas as religiões e a todas as mentiras, mesmo que se ocultem sob o manto da
ciência. Instrução completa para todos, até nos graus mais elevados.
6º) Guerra às rivalidades e aos prejuízos patrióticos. Abolição das fronteiras,
confraternização de todos os povos.
7º) Reconstrução da família, de tal modo que ela resulte da prática do amor, fora de toda
pressão legal, de toda a opressão econômica ou física, de todo prejuízo religioso (A PLEBE
01/05/1949).
Outro artigo, intitulado Pelo que luta o anarquismo, afirma que os anarquistas devem lutar
pela emancipação de todos os seres humanos, independente de raça, cor ou sexo, e complementa
criticando a inferioridade econômica que leva tantas mulheres à prostituição:
O anarquismo pretende a valorização do ser humano. Se, por consequência, nega DEUSES,
CHEFES e PROTETORES, nega todos os preceitos raciais, religiosos e sexuais. A raça, a
cor ou o sexo não podem excluir, diminuir ou elevar os indivíduos. Todos são iguais nos
deveres e nos direitos, relativos entre si. Do mesmo modo, combate a discriminação sexual.
O homem e a mulher são iguais.
O socialismo libertário reconhecendo à mulher os mesmos direitos como ser humano, e
como produtora e consumidora, amplia o horizonte da sua existência moral tornando-a
igualmente um indivíduo social.
Companheira da vida do homem, só pelo amor e a cooperação livre entre ambos pode a
família tomar a feição humana que não possui. Atualmente o homem é o proprietário da
mulher e dos filhos […].
A inferioridade econômica e moral da mulher é a causa da prostituição, a chaga da
sociedade cristã burguesa que a tem como um “mal necessário” (A PLEBE 01/05/1948).
Para tanto, é preciso desconstruir os discursos em torno do modelo da família burguesa que
oprime as mulheres, e construir uma sociedade baseada na liberdade e no amor livre, como afirma
Erna Gonçalves em um artigo sobre o amor livre:
O amor, como todos os sentimentos naturais, foi amesquinhado pela tola pretensão do
direito de posse e tornou-se, como os indivíduos, escravo das conveniências. Os homens,
que temem o amor livre, não se envergonham, entretanto, de explorar a prostituta
desventurada […]; temem o amor livre, e não concebem que a prostituição e produto da
falta de liberdade no amor ou da miséria consequente de um regime em que não há
garantias para o ser humano, escravizado aos preconceitos de uma moral essencialmente
religiosa, mística e convencional baseada na mentira, no dogma, na autoridade e na força
(A PLEBE 02/02/1935).
Em resposta a esse artigo, n'A Plebe de 02/03/1935, encontramos um artigo assinado por
“Amilcar” sobre a liberdade no amor em que o autor escreve:
O ser humano precisa ser livre. Livre para trabalhar, livre para estudar, livre para brincar,
livre para amar.
Há um ideal humano. Todos sentem esse ideal sem distinção de raças, sexos, idades, todos
querem atingi-lo. Este ideal é a felicidade. É verdade que cada indivíduo tem um modo
particular de encarar a felicidade. Justamente por isto só se pode ser feliz sendo livre (A
PLEBE 02/03/1935).
Já afirmava Bakunin - importante pensador anarquista do século XIX, que também teve textos
publicados no jornal A Plebe – em sua obra O Conceito de liberdade que “o homem conquista a sua
humanidade ao afirmar e ao realizar a sua liberdade no mundo” (BAKUNIN, p.1975, p.7),
demonstrando a centralidade do discurso pela liberdade no ideário anarquista - liberdade no
trabalho, liberdade para amar, para desenvolver plenamente a humanidade garantindo a igualdade
de todos. Para os anarquistas, essa igualdade, no entanto, não se fará presente dentro de um sistema
de classes, em que a classe dominante utiliza-se do discurso científico e produz tecnologias que
justifiquem e reforcem sua hegemonia.
Encontramos no discurso anarquistas dos jornais aqui analisados o rechaço ao discurso
científico do período bem como propostas de resistência a fim de romper com os padrões do sistema
capitalista que, para avançar, busca sempre novas formas de opressões.
Os discursos sobre a família, presentes ainda na nossa sociedade, surgem em determinado
momento histórico e servem para determinados fins políticos e econômicos, ainda que nos sejam
apresentados como estruturas fixas e naturais. Os anarquistas desde o fim do século XIX já
questionavam os discursos científicos vigentes que buscavam afirmar a hegemonia da classe
dominante e justificar as opressões da classe operária e, dentro e fora desta classe, ainda que de
maneira diferente, a opressão que sofrem as mulheres.
Numa sociedade emancipada, portanto, outras configurações sociais se farão presentes,
baseadas na liberdade. Em um artigo em que se questiona o lema Deus, Pátria e Família, dos
setores conservadores do período, “M. Garcia” após refletir sobre Deus e Pátria, faz críticas ao
modelo de família propagado pelo conservadorismo burguês:
Delimitar o arcabouço da família nas quatro paredes do lar privado, onde a situação
econômica é base fundamental dessa instituição, não corresponde aos princípios de uma
ética social perfeita, porquanto sua concepção é muito elástica e brilha pela ausência de
auxílio mútuo, não somente de família para família, como também os seus membros
consanguíneos. Com efeito, a família de um opulento burguês distancia-se e evita a
convivência com pessoas ligadas a ela pelo sangue, mas que vivam pobremente.
[…] A instituição da família privada, apresentada como sendo a célula mater da
organização burguesa, não é, dentro dessa organização social, e não confuso
convencionalismo e um amontoado de preconceitos morais e políticos, e até raciais, que só
podem medrar num ambiente social corrupto e decadente; mas nunca poderão servir de
modelo para a organização de uma sociedade livre onde o princípio de solidariedade seja a
pedra angular dos valores humanos (A PLEBE 20/02/1949).
5. CONCLUSÃO
6. REFERÊNCIAS
Fontes
Referências Bibliográficas
BERQUÓ, Elza. Arranjos Familiares no Brasil: Uma visão demográfica. In: História da Vida
Privada no Brasil. v 3: República: da Belle Epoque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. P.411-438.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p.46-56.
_________________. Governamentalidade. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979, p.163-172.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, Nem Patrão. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
LIMA FILHO, Domingos Leite & Queluz, Gilson Leandro (2005). A tecnologia e a educação
tecnológica: elementos para uma sistematização conceitual. Educação & Tecnologia, Belo
Horizonte, v. 10, n. 1, p. 19-28, 2005. Disponível em: < http://www.pedagogia.seed
.pr.gov.br/arquivos/File/semanas_pedagogicas/2009/tec_educ_tecnologic_domingos.pdf>. Acesso
em: 10 Jul. 2016.
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto
Alegre, v. 15, n. 2, 1990, p. 71-99.
TOLEDO, Edilene. A trajetória do anarquismo na Primeira República. In: Jorge Ferreira; Daniel
Aarão Reis. (Org.). A formação das tradições (1890-1945). 1 ed. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2007, v. 1, p. 53-87. (Coleção Esquerdas no Brasil).
VESSURI, Hebe M.C. Perspectivas recientes en el estudio social de la ciencia. In: Interciencia,
1991, vol. 16, n. 2, p.60-68. Disponível em:
<http://www.ivic.gob.ve/estudio_de_la_ciencia/Enlapublic/documentos/Perspectivasrecientes.pdf >.
Acesso em: 10 Jul. 2016.