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[...] Satã, que está sempre à espreita para nos apanhar, vendo
a perfeição de Constância, tratou logo de imaginar um modo de
castigá-la por suas obras. Para isso, fez que um jovem
cavaleiro, que vivia no mesmo local, sentisse por ela um amor
tão ardente, uma paixão tão voluptuosa, que lhe pareceu que ia
morrer se não satisfizesse imediatamente o seu desejo. Ele a
cortejou, mas sem qualquer proveito; de modo algum ela
aceitava pecar. Despeitado, resolveu vingar-se, levando-a a
uma morte ignóbil. ⁽⁶⁾
Outro tarado, só que desta vez um cavaleiro. Nesse trecho vemos claramente
a influência religiosa da época na interpretação dos fatos, aonde o principal
causador para o magistrado que relata o conto não é propriamente o jovem
cavaleiro, mas Satã, que o induz. Deixando porém essa questão e fixando-nos
na atitude do jovem cavaleiro degenerado, vemos que Constância
rotineiramente corria perigo por causa dessa obsessão sexual na qual sofria.
Obsessão que vinha de todos os lados, desde um sultão desvairado, passando
por um cavaleiro lunático representante da nobreza até um ladrão estuprador
como veremos no próximo trecho, analisemos:
Quando refletimos que Constância era filha de imperador, que possuía sangue
nobre e real e que mesmo assim viveu uma vida de assédios e tentativas de
estupro, o que acontecia então às mulheres camponesas pobres e miseráveis?
O que para nós, estudiosos de História já está claro, é que a “cultura do
estupro”, como foi recentemente chamada na mídia e na grande imprensa
persegue o gênero feminino desde tempos remotos. Este é sem dúvida um dos
paradigmas a serem pisados e destruídos pela evolução da nova consciência
que todos nós temos o dever de fazer surgir.
É bom que se fique claro que esta primeira abordagem feita foi inspirada num
trecho de Vizioli que retiramos da apresentação do livro, trecho que nos
conduziu a refletir sobre a questão sexual, e sempre, mesmo que de maneira
sutil, traçando paralelos com o presente, pois essa é a tarefa nobre
intransferível do ofício de historiador. Portanto, Paulo Vizioli, tradutor e
apresentador de Os Contos de Cantuária em língua portuguesa também pensa
assim:
Interessante notar que em um simples conto, temos dois exemplos claros das
mulheres manejando o destino de reinos e governos. Temos o caso acima
mostrado, onde a mãe do rei Aella, (rei este que por acaso teve a sorte de se
casar com a já conhecida Constância), conspirando contra o filho graças ao
acesso que possuía com os mensageiros e com toda a realeza. E temos o
próximo exemplo, este por sua vez bizarro, que se trata da personagem
Sultana, mãe do também já mencionado sultão da Síria, sim, isso mesmo,
aquele apaixonado tresloucado que por causa de seus caprichos sentimentais
submeteu todo um reino a uma outra cultura e religião. Vejamos Sultana, mãe
do sultão amalucado em ação mudando os rumos da História:
[...] Pois, para ser conciso, direi, numa palavra, que o Sultão e
todos os cristãos foram apunhalados e trucidados à mesa, com
exceção da senhora Constância. E tudo por obra da velha
Sultana, aquela maldita bruxa, – juntamente com os seus
comparsas, – para satisfazer a ambição de governar sozinha o
país. Não houve na Síria um convertido sequer, um seguidor
das ideias do Sultão, que não tivesse sido retalhado antes que
pudesse fugir.⁽¹⁰⁾
Bem, nesse trecho aí vemos como uma mãe toma o poder das mãos do filho
e se torna soberana de uma nação, simplesmente matando todo mundo. Nessa
reflexão proposta, buscamos demonstrar, mesmo que amadoramente, que ao
longo da história as mulheres mesmo tendo um papel secundário, submisso ao
homem, pensando em termos gerais, com relação ao poder central aonde são
tomadas as decisões que influenciam na vida de milhões de pessoas, elas
estão lá, sempre protagonizando com homens os destinos das civilizações.
Acreditamos sinceramente que isso merecia ser posto para reflexão histórica.
Ops... Como assim “mulher masculinizada”? O que você quis dizer com isso
senhor magistrado? Bom, isso ele não poderá nos responder, mas fica claro
que o pensamento da época acerca de como uma mulher deveria ser, se
parecer, se vestir e se comportar já estava delineado. Quando o magistrado
que relata o conto faz essa afirmação, ele deixa escapar um pensamento que
beira à homofobia, pois vê na figura de Donegilda, mulher que embora má
tivesse atitudes firmes “como as de um homem”, algo que lhe provocasse
repulsa. Mas por que a repulsa? Será porque para ele as mulheres deveriam
viver confinadas aos aposentos de seus maridos e submissas como crianças
às suas vontades e desejos? Será que a opinião das mulheres, seu
engajamento político e sua influência sobre os homens de poder seria uma
ameaça ao império masculino vigente? Bom, somos simples historiadores,
difícil para nós comprarmos essa briga e tomarmos posição nesse ringue,
nossa função é apenas investigar como bons detetives o que realmente
acontecia no passado, e tendo em mãos as informações necessárias, ousamos
recriar cenários para que assim o processo de evolução humana possa ser
mais bem compreendido.
Parada Técnica
Considerações finais
Com exatamente quinze citações em cujas quais o texto orbita encerramos por
aqui professor, foi um prazer.
¹ Pág. 5 ⁹ Pág. 66
² Pág. 4 ¹⁰ Pág. 63
³ Pág. 8 ¹¹ Pág. 67
⁴ Pág. 66 ¹² Pág. 7
⁵ Pág. 61 ¹³ Pág. 66
⁶ Pág. 65 ¹⁴ Pág. 61
⁷ Pág. 68 ¹⁵ Pág. 68
⁸ Pág. 10
Bibliografia
* VIZIOLI, Paulo: Chaucer: Os Contos de Cantuária (trad.). São Paulo, T.A. Queiroz, 1988.