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O santo dos novos tempos

Em um jardim de Milão, no final da Idade Antiga, um homem se convertia à fé


cristã. Seu nome era Agostinho e a sua obra, um legado que mudaria não só a
história da Igreja, como toda a humanidade.

Venha conhecer, nesta aula de História da Igreja Medieval, "o santo dos novos
tempos", que viu cair o Império Romano e nascer a gloriosa Idade Média.
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A Idade Média é o período de mil anos que vai de 476, queda do Império
Romano do Ocidente, até 1453, ano da tomada de Constantinopla pelos
turcos otomanos e derrocada do Império Bizantino. Neste período, o
pensamento cristão foi muito importante, influenciando a sociedade como um
todo e lançando as bases da civilização ocidental, hoje em franca decadência.

Antes de falar do gênio de Santo Agostinho, que perpassa toda a era


medieval, importa ressaltar a utilíssima divisão entre o Ocidente e o Oriente
para compreender a própria história da Igreja. Ao transferir a capital do
Império para Constantinopla, Constantino cria uma espécie de
“estranhamento" entre os dois lados do território romano. Enquanto a parte
oeste é cada vez mais marcada pela cultura romano-latina, preferindo o uso
da língua latina, a parte leste é fortemente influenciada pelo helenismo e
pelas culturas orientais, servindo-se do idioma grego. Além disso, na Igreja no
Ocidente, o papel soberano do bispo de Roma sempre foi reconhecido sem
muitas discussões, de modo que ele já exercia sua jurisdição universal sobre
a Igreja desde o alvorecer da fé. A Igreja no Oriente, por outro lado, sofria
com o problema do cesaropapismo, pelo qual o imperador de Constantinopla
usurpava o poder pontifício, misturando desastradamente as esferas política e
religiosa. A cisão no Império culmina com o cisma religioso do Oriente, em
1054, quando é criada a Igreja Ortodoxa.

Finalmente, detenhamo-nos sobre a figura de Agostinho de Hipona, cuja


filosofia e teologia influenciaram toda a Idade Média. Cronologicamente, o
santo pertence à Idade Antiga – nasceu em Tagaste, na África, em 13 de
novembro de 354, e morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430 –, mas sua
importância para os tempos medievais é tão grande que Daniel-Rops lhe
reserva o epíteto de “santo dos novos tempos" [1].

Tendo concluído seus estudos primários em Tagaste e se tornado grande


orador em Cartago, Agostinho, muito mais romano que seus conterrâneos,
viaja cedo para a Cidade Eterna, a fim de fazer carreira. Nessa época, ele já
entrara em contato com o maniqueísmo, a religião do profeta persa Mani, que
pregava o dualismo gnóstico. Até então, o único contato de Agostinho com a
religião católica fora por meio de sua mãe, Mônica, e ela não conseguira
trazê-lo para a fé.

Em Milão, Agostinho conhece o grande bispo e pregador Santo Ambrósio,


diante de cuja oratória fica impressionado. Depois de entrar em contato com a
obra “Hortênsio", de Cícero, e com os filósofos neoplatônicos, ele abandona
definitivamente o maniqueísmo e convence-se de que, mais do que aprender
retórica, o que ele precisa é conhecer a Verdade. Na ocasião, ainda preso às
paixões carnais que o arrastavam desde a adolescência ociosa, a narração
de um tal Ponticiano fá-lo repensar a sua vida. Ele conta a Agostinho a vida
de Santo Antão e fala de jovens na própria cidade de Milão que se decidiram
firmemente em abandonar tudo o que tinham para servir a Deus na castidade
e na vida escondida [2].

Impressionado com o que ouvia e lamentando a vida dissoluta que levava até
então, Agostinho vive uma dramática luta interior:

“Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de


costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se
as quebrava por completo. (...) E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra,
sem demoras!" E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir,
mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem
próximo, e tomava ainda alento de seu ar. (...) Mantinham-me preso umas
tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas amigas minhas, que
me puxavam por minhas vestes carnais, murmurando: 'Então, nos
abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde este
momento nunca mais te será lícito isto ou aquilo?' (...) Mas isto já dizia com
voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia passar,
mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre, sem
desordens, acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem
medo. (...) E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se
dissesse: 'Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que
estes e estas encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus?
Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apoias em ti, se és
vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não
cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará.' E enchia-me
de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e, vacilante,
continuava indeciso." [3]
Até que ele se rende e deixa que Deus vença a sua carne:

“Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e
expôs toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme
tormenta, trazendo copiosa torrente de lágrimas. (...) E embora não com estes
termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu,
Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te
de minhas iniquidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e
lamentava: Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não
agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?' Assim falava, e
chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis que, de
repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, que
cantava e repetia muitas vezes: 'Toma e lê, toma e lê'. E logo, mudando de
semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhas lembranças se
porventura esta cantiga fazia parte de um jogo que as crianças costumassem
cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindo o ímpeto
das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a vontade divina
mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capitulo que encontrasse. (...)
Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o
livro do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro
capítulo que me caiu sob os olhos: 'Não caminheis em glutonarias e
embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em
contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não
cuideis de satisfazer os desejos da carne'. Não quis ler mais, nem era
necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de luz de certeza
se insinuou em meu coração, dissipando todas as trevas de dúvida." [4]
Com aquela página das Escrituras aberta, começa a ser escrita uma nova
página da história. A conversão de Santo Agostinho não mudou somente a
sua vida, mas toda a história da Igreja e da própria humanidade. Na vigília
pascal próxima, ele, seu filho Adeodato e seu amigo Alípio são batizados por
Ambrósio. Depois, Agostinho volta para a África. Neste ínterim, morrem seu
filho e sua santa mãe, Mônica, com a qual ele tem uma grande experiência
mística em Óstia.

Já na África, levando uma vida de muita oração e contemplação da Verdade,


Agostinho percebe que, após a conversão, sua inteligência passa a
compreender mais facilmente as coisas. Além da luz natural da razão, agora o
auxiliava o dom sobrenatural da graça.

Ordenado presbítero, depois de muita insistência do bispo Valério, o doctor


gratiaesucede-o na comunidade de Hipona, onde erige o seu grande
monumento intelectual, De Civitate Dei [“A Cidade de Deus"]. Essa obra,
inspirada pela situação trágica em que do Império Romano invadido pelos
bárbaros, aponta para a existência de duas cidades invisíveis, fundadas por
dois amores opostos: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o
amor próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a celestial" [5].

Sobre esta cultura será moldada a Europa cristã. Sobre este gigante
intelectual se edificam os mil anos de Idade Média, durante os quais a Igreja
resgata o Ocidente da barbárie e das verdadeiras trevas que até hoje
ameaçam a humanidade: o afastamento de Deus e de Sua vontade.

A conversão de Clóvis, rei dos francos


Para reconduzir a Europa invadida pelos povos bárbaros à fé católica, foram
necessários os sábios conselhos de um bispo e as incansáveis orações de uma
mulher.

Saiba, nesta aula do curso de História da Igreja Medieval, como a conversão de


Clóvis transformou a Gália dos bárbaros na França católica, "a filha primogênita
da Igreja".
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Marcando a passagem da Idade Antiga para a Idade Média, a invasão do
Império Romano pelos bárbaros – que ainda Santo Agostinho presenciou, ao
ver a cidade de Hipona sitiada pelos vândalos – se deu principalmente pela
ação cruel e ambiciosa dos hunos. Esse povo que vivia na Ásia Central,
famoso por seus combates a cavalo, marchou rumo a Oeste, massacrando
populações, punindo seus desafetos com a cruel prática do empalamento e
alardeando o terror. Ao contrário dos demais povos bárbaros, eles eram
nômades e viajavam não para dominar, senão para saquear os povoados por
onde passavam. As notícias de suas incursões fizeram as populações que
viviam no oeste da Ásia migrar para a Europa, o que culminou na invasão do
Império Romano do Ocidente.

Roma não resistiu aos ataques dos bárbaros porque estava tomada pela
corrupção dos costumes. O Império já não era mais formado por tropas
destemidas e organizadas, mas por pessoas entregues aos prazeres da
comida, da bebida e da luxúria. Não foi, pois, muito difícil para os povos
estrangeiros vencerem aquela corja dissoluta e se fixarem na Europa, que se
foi descristianizando completamente.

Os cristãos não perderam os seus territórios somente para os pagãos, como


também para os hereges arianos. Sabe-se, por exemplo, que os godos e
vândalos, convertidos ao arianismo pela pregação de Úlfilas, não só
disseminavam a sua religião por onde passavam, como perseguiam e
matavam os cristãos católicos, fazendo milhares de mártires. No norte da
África, os trabalhos de Santo Agostinho para levar à fé inúmeras almas foram
substituídos por uma rápida e sistemática proibição do verdadeiro
cristianismo.

Todos esses fatos integram um quadro histórico nada animador. Roma,


saqueada por Genserico, já não era capital de mais nada, a região hoje
pertencente à Alemanha e à França fora tomada por bárbaros de todo o tipo...
Parecia ser o fim da religião cristã.

Só que Deus, em Sua providência, envia a esses tempos difíceis os Seus


santos. Na cidade de Reims, ao norte da França, o bispo São Remígio
– Rémy, em francês – não desanimou perante a destruição da Europa. No
meio da luta dos bárbaros para conquistar territórios, este santo pastor viu em
Clóvis, rei dos francos, uma oportunidade para a reconstrução do Ocidente.
Escolha sábia a de Remígio, pois “os francos eram ainda pagãos" e, segundo
o testemunho unânime de “todos os missionários que hoje difundem o
Evangelho em terras africanas", “é infinitamente mais fácil trazer para Cristo
os negros ainda idólatras do que aqueles que se converteram à religião
muçulmana" (ou às heresias da época, como o donatismo ou o arianismo) [1].

Em um arranjo política, diplomática e espiritualmente perfeito, o santo bispo


de Reims conseguiu unir em matrimônio Clóvis e a princesa católica Clotilde,
santa canonizada pela Igreja. Sua vida provada por inúmeros sofrimentos não
a fez fugir da dificuldade de um cônjuge pagão. Assistida pela Missa diária –
celebrada na capela de sua própria casa –, esta santa mulher trabalhou com
temor e tremor não só para a própria salvação, mas principalmente para a
conversão de seu marido e de seu duro coração de guerreiro. Escreve Daniel-
Rops a esse respeito:

“Assim que se viu casada, Clotilde começou a trabalhar para a conversão do


seu esposo. O resultado, porém, não foi imediato, pois Clóvis ainda se
conservou pagão durante cinco ou seis anos, e essa obstinação representou
um excelente augúrio quanto à sinceridade da sua futura adesão. Deixa que
batizem o primeiro filho que lhes nasce, mas, quando este morre, exclama
para a esposa: 'Os meus deuses tê-lo-iam curado; o teu não o salvou!' Nasce-
lhes um segundo filho, que é batizado e que adoece também; mas – diz o
bom Gregório de Tours – 'Clotilde orou tanto pela recuperação da criança que
Deus lha concedeu'. Assegura também o cronista que Clotilde não cessava
de falar a Clóvis do Deus dos cristãos. Sem resultado? Quem pode calcular a
sorte das sementes que a fé e o amor lançam no mais íntimo de uma alma,
deixando a Deus o cuidado de fazê-las germinar?" [2]
É em uma batalha contra os alamanos que as sementes lançadas por Clotilde
finalmente germinam no coração de Clóvis. Ao ver a derrota iminente de suas
tropas, Clóvis lança os olhos para o céu e faz uma promessa: “Jesus Cristo,
que Clotilde afirma ser o Filho do Deus da vida, tu que desejas vir em auxílio
daqueles que desanimam e dar-lhes a vitória, desde que esperem em ti, eu
invoco devotamente o teu glorioso socorro. Se te dignares conceder-me a
vitória sobre os meus inimigos, e se eu experimentar esse poder de que as
pessoas que usam o teu nome afirmam ter tantas provas, acreditarei em ti e
far-me-ei batizar em teu nome" [3]. Mal tinha acabado de dizer isso, as forças
alamanas debandaram e Clóvis obteve a vitória.

Fiel à sua palavra, Clóvis começa a aprender as verdades da fé, a fim de ser
batizado. Daniel-Rops escreve que o rei franco, “ao escutar a narrativa da
Paixão, exclama excitado: 'Ah! Se eu tivesse estado lá com os meus
francos!...'" [4]. Pacientemente, por meio da catequese e de seus prodígios de
taumaturgo, São Remígio vai instruindo o coração de Clóvis, até que, na
solenidade do Natal, provavelmente no ano de 496, ele é batizado.

Para a ocasião, “o prédio da catedral de Reims fora ornado de cortinas


brancas e iluminado por milhares de círios aromáticos, como símbolo da
beleza espiritual da Mãe Igreja que nesse dia acolhia os francos como filhos
(...). O próprio Clóvis, deslumbrado ante o esplendor da decoração e dos
cânticos, deteve-se na soleira do recinto sagrado e perguntou a Remígio: 'É
este o Reino dos Céus que tu me prometes? - Não, mas é o começo do
caminho que a ele conduz', respondeu o Bispo" [5]. São Gregório de Tours
narra que, quando Clóvis se apresentou diante da pia batismal, com um colar
supersticioso que os francos usavam, o santo bispo de Reims disse: “Mitis
depone colla, Sicamber; adora quod incendisti, incende quod adorasti –
Depõe humildemente o colar, ó sicâmbrio! Adora o que queimaste e queima o
que adoraste!" [6].

Com a conversão de Clóvis, começa a escrever-se uma nova página da


história ocidental. Em pouco tempo, será fundada a França, o primeiro reino
cristão da Europa, por esse motivo apelidada de “fils aîné de l'Église – filha
primogênita da Igreja". Graças à ação de santos como Remígio, Clotilde,
Genoveva, Martinho e muitos outros, os duros corações dos bárbaros e dos
pagãos eram conquistados para Cristo.

São Gregório Magno e a reconquista da Europa


No meio da Europa tomada pelos bárbaros, refulge, gloriosa, a figura de um
Papa. Seu nome é Gregório e sua estatura fará as gerações futuras o
aclamarem como "grande". Por suas santas mãos, passaram a formação do
clero, a reforma da liturgia, a salvação da Itália e a própria evangelização da
Inglaterra.

Conheça um pouco da vida deste grande pontífice e pastor de almas, nesta aula
de nosso curso de História da Igreja Medieval.
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No ano de 540, na cidade de Roma, nasce um dos Papas mais influentes de
toda a Idade Média: São Gregório Magno. Sua natividade acontece durante
um curto período de paz após a Guerra Gótica, que marcou a empresa do
Império Bizantino para recuperar a Itália, então sob o domínio dos
ostrogodos. O sucesso da campanha é devido ao famoso general Belisário,
que, após submeter os vândalos no norte da África, sobe para a Península
Itálica e a liberta da mão dos bárbaros.

Neste ambiente, o jovem Gregório, filho de um senador romano, segue desde


cedo os passos de seu pai e se aventura na carreira política, alcançando,
com 30 anos, um cargo muito importante na Cidade Eterna. Seu coração, no
entanto, pede uma entrega total a Deus. Homem de grande espiritualidade,
“na sua família não faltavam exemplos de piedade cristã; sem falar do papa
de quem descendia, basta dizer que a sua mãe Sílvia e as suas duas tias, as
monjas Tarsila e Emiliana, eram santas que a Igreja canonizara" [1].

Gregório, então, renuncia à sua vida pública e à herança que ganhara dos
pais para fazer-se monge, fundando uma fraternidade monástica no monte
Célio, uma das sete colinas de Roma.

Seu recolhimento, todavia, é interrompido quando o Papa Pelágio II o chama


para ser seu apocrisiário – hoje, a mesma função de um núncio – em
Constantinopla, a fim de interceder junto ao Imperador pela Itália, ameaçada
pelos longobardos [2] e por uma devastadora epidemia de peste bubônica.
Durante sua estadia na capital do Império, Gregório escreve seu famoso
comentário moral ao livro de Jó – Moralia in Job [3] –, uma grande obra de
espiritualidade.

De volta à Itália, Gregório permanece pouco tempo em seu monastério. Com


a morte de Pelágio II, vitimado pela peste, o povo e o clero romanos
aclamam-no Papa. A princípio, Gregório resiste, mas acaba aceitando o
pontificado.
Ao assumir o trono de Pedro, a primeira coisa que faz é ensinar aos bispos
como serem pastores. Em sua Regula Pastoralis [4], o Papa Gregório traça
as linhas da vida sacerdotal, lembrando que quem quer cuidar das almas
deve, em primeiro lugar, vigiar a própria alma. É de tal importância este
escrito que, até pouco tempo, era obrigatório que todo o episcopado o tivesse
em mãos, a fim de aprendê-lo.

Depois, o Papa Gregório tem que enfrentar o drama da peste bubônica, que
aflige o seu rebanho. Convicto de que a doença é um castigo de Deus e que
só a Sua misericórdia pode solucionar o problema, o Santo Padre recorre às
armas espirituais para vencê-la. Com o ícone de Nossa Senhora, sob o título
de Salus Populi Romani, ele faz inúmeras procissões pela cidade de Roma,
invocando ao Senhor a cura de seu povo.

Um dia, sobre o mausoléu de Adriano, o Papa vê os anjos cantando: Regina


caeli laetare, alleluia; quia quem meruísti portare, alleluia; resurrexit sicut
dixit, alleluia, ao que ele responde, extático: Ora pro nobis Deum, alleluia.
Neste momento, diante dele, o anjo da morte que pesava a mão sobre a
Cidade Eterna põe sua espada na bainha e, milagrosamente, o flagelo da
peste é afastado [5]. Esse episódio mostra como o “cônsul de Deus", como
consta em seu epitáfio, também era um homem de profunda espiritualidade.

É grande a influência de Gregório Magno na liturgia romana da Missa, a qual


ele enriqueceu com orações escritas de próprio punho e com piedosos
costumes, mantidos até hoje, como o de rezar o Pai-Nosso logo depois da
Oração Eucarística ou o de alternar várias orações e prefácios para os
diferentes tempos do ano litúrgico. Foi com ele que começou a tradição das
chamadas “missas gregorianas", para libertar as almas do purgatório [6].
Destaque-se também a sua importância para a música sacra, com o canto
gregoriano.

No exercício diplomático, o Papa Gregório, como sábio pastor, procurou


entabular um relacionamento com a rainha dos longobardos, Teodolinda,
visando pacificar a situação e, ao mesmo tempo, converter os bárbaros.

Outra nação também se beneficiaria com seu impulso evangelizador, como


conta a história:

“Quando era ainda monge no Célio, Gregório atravessara certo dia um dos
mercados de Roma, onde os traficantes expunham escravos à venda. Entre a
mercadoria humana, na sua maior parte de origem oriental, morena e de
baixa estatura, chamaram-lhe a atenção três jovens de bom aspecto, brancos
e louros, com os olhos azuis e tez rosada, como a raça inglesa os produz aos
vinte anos. 'Donde vêm estes homens?, perguntou o monge ao negociante. -
Da Bretanha. - Cristãos ou pagãos? - Pagãos. - Que pena é que figuras tão
cheias de luz estejam em poder do príncipe das trevas! E de que raça são? -
Anglos – Anglos? Anjos (Angli? Angeli), deveríamos dizer, e herdeiros do Céu
como os Anjos! - E de onde vêm? - De Deira. - Pois bem, da ira (de ira) serão
mandados para a misericórdia de Cristo. E quem é o seu rei? - Aella. - Cada
vez melhor; cantarão, pois, Aleluia...' Verdadeiro ou falso, o episódio referido
até nos seus trocadilhos proféticos pelo biógrafo do santo, João Diácono,
anunciava uma grande intenção. Tendo acolhido os três anglos entre os
monges do Célio, Gregório decidiu que os irmãos dos seus protegidos
deveriam ser chamados a ter assento entre os anjos. E, mal eleito Papa,
consagrou-se a essa tarefa." [7]
De fato, ainda durante o seu pontificado, São Gregório instruiu e enviou, para
evangelizar o território da atual Inglaterra, Agostinho de Cantuária, o qual
obteve grande sucesso em seus esforços e, hoje, é venerado como santo e
invocado como “apóstolo dos ingleses".

As expansões islâmicas e a defesa da Europa


Em pouco menos de um século após a sua fundação, o temível Islã chegou à
Europa e, não fossem o gênio militar de Carlos Martel e a disposição dos
cristãos ao combate, todo o continente teria se rendido aos muçulmanos.

Nesta aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça a história da


religião de Maomé e saiba como o exército de um simples "mordomo" foi capaz
de conter o avanço militar dos "cavaleiros de Alá".
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Até o século VI, a região da Península Arábica era habitada
predominantemente por tribos nômades. Eram poucas as comunidades que
sobreviviam de agricultura e não havia nada que unisse social ou
politicamente esses grupos.

Nasce, então, em 570, na cidade de Meca – região da atual Arábia Saudita –,


o fundador da religião islâmica, Maomé (Muhammad, em árabe). Órfão de pai
e de mãe desde muito cedo, o menino é educado pelos beduínos e, depois,
pelos próprios parentes. Com 25 anos, casa-se com uma viúva, de nome
Cadija, cuja visão religiosa provavelmente exerceu forte influência sobre ele
[1]. Cadija era ebionita; fazia parte de uma seita que aceitava a Torá e
reconhecia Jesus como um profeta, mas não como Deus.

Em 610, durante um de seus retiros espirituais, Maomé começa a receber


supostas revelações do Arcanjo Gabriel, as quais ele anota no Alcorão (Al-
Qur'an, em árabe). O livro sagrado da religião islâmica, dividido em suratas, é
organizado decrescentemente, de acordo com a sua extensão, e não serve
como fonte para conhecer a vida de Maomé, sendo necessário recorrer a
outras tradições islâmicas – como as Hadith – para descobrir a sua biografia.

O primeiro povo a receber o anúncio da nova religião de Maomé são os


coraixitas. À época, eles eram guardiões da Kaaba, um santuário que, além
de conter milhares de divindades, abriga uma “pedra negra", supostamente
sagrada [2]. É a essa tribo que o profeta anuncia primeiro a sua crença
monoteísta. Suas pregações, no entanto, não obtêm muito sucesso e ele é
obrigado a fugir para Yathrib – hoje, Medina –, em 622. Neste ano, que marca
o início do calendário islâmico, Maomé decide mudar sua estratégia: ao invés
de conseguir prosélitos pacificamente, o profeta começa a implantar o Islão
por meio de expedições políticas e militares – leia-se: pelo fio da espada –, de
modo que, ainda durante a vida do profeta, toda a Península Arábica foi
colocada sob o seu domínio.

A expansão da religião muçulmana continua mesmo após a morte do profeta


e os seus sucessores – os califas – tomam o Império Persa, a Terra Santa, o
norte da África e chegam, em 711, à Península Ibérica. À luz desses fatos,
está bem claro que o crescimento religioso do Islão começou ligado
diretamente a guerras e conquistas militares. Se é possível dizer que o
terrorismo não é a expressão mais legítima do islamismo, dizer que ele
sempre foi uma “religião da paz", definitivamente, não corresponde à
realidade histórica. É neste contexto, a propósito, que se inserem as
Cruzadas, que muitos professores de história apresentam como uma amostra
de intolerância e de violência da Igreja medieval, quando, na verdade, se
trataram de guerras de defesa contra as agressivas invasões islâmicas.

O fato é que, quando os muçulmanos colocam o pé na Europa, encontram um


clima muito propício para a sua conquista. O continente europeu encontrava-
se dividido entre várias tribos visigóticas e governado por reis mais
preocupados em lutar entre si que em organizar-se militarmente contra o
perigo islâmico. “A tradicional imagens dos 'reis fainéants', que se
deslocavam de cidade em cidade estendidos nos seus pesados carros de
bois e que passavam a vida na ociosidade e na devassidão, corresponde à
mais estrita realidade" da época [3].

Ao lado dessas figuras decadentes, porém, surge a figura do “prefeito do


palácio", “que administrava os domínios pessoais do soberano em seu nome"
e acabava por transformar-se em “uma espécie de primeiro ministro" [4]. Um
desses “mordomos", de nome Carlos Martel, teve a brilhante ideia de formar
um exército profissional e estável para conter o avanço islâmico. Para tanto,
Martel confiscou terras e bens eclesiásticos, atitude sem dúvida errada, mas
que se revelou, depois, providencial.

De fato, em 725, as cavalarias de Alá já se encontravam na Gália. Na região


da Aquitânia, os francos foram derrotados de modo tão clamoroso que,
segundo os cronistas da época, “só Deus sabia o número dos mortos". Em
732, as tropas muçulmanas, lideradas por Abd-er-Rahman, avançaram rumo
à cidade de Tours, deparando-se, no meio do caminho, com o exército de
Carlos Martel, na famosa Batalha de Poitiers:

“Os exércitos, bem diferentes um do outro – os francos, pesadamente


equipados, usavam cotas de malha e capacetes de metal; os muçulmanos,
montados em pequenos e fogosos cavalos, conduziam o ataque como um
turbilhão –, e enfrentaram-se nas colinas do Poitou. Durante sete dias,
Ocidente e Oriente estudaram-se mutuamente. Os muçulmanos, inquietos,
não ousavam abordar aquela ilha blindada de ferro, mas por fim lançaram-se.
As suas cargas loucas, em pleno galope, chocaram-se contra os batalhões
quadrados dos francos. Apoiados uns nos outros, como um mar solidificado,
os soldados de Carlos aguentaram estoicamente a saraivada de flechas, e
todo muçulmano que passasse ao alcance das suas alabardas, dos seus
gládios, das suas maças de armas, estava perdido. Ao cair da noite, o
combate se desfez. Abd-er-Rahman caíra, morto numa carga cerrada."

“As perdas do Islão foram pesadas, e o avanço em direção ao Poitou estava


barrado. Quando rompeu o novo dia, os espias de Carlos informaram que o
campo muçulmano, com as suas tendas alinhadas, continuava no mesmo
lugar, e pensou-se que a batalha ia recomeçar. Mas não: na calada da noite,
a grande velocidade, o Oriente tinha fugido..." [5]
É evidente que, mesmo após essa derrota, os árabes não pararam. Foi o filho
de Carlos Martel, Pepino, o Breve, também “prefeito do palácio", quem
conseguiu finalmente tirá-los do território franco. Então, em 751, após recorrer
à autoridade do Papa Zacarias para legitimar o seu poder – afinal, perguntava
ao Santo Padre, “convém chamar rei àquele que tem o título do poder, ou
àquele que o possui na realidade?" [6] –, Pepino é coroado rei dos francos
por São Bonifácio de Mogúncia, dando início a uma nova dinastia real: os
carolíngios. É nesta linhagem que nascerá o grande Carlos Magno, cujo
empenho e perspicácia mudarão os destinos da Europa para sempre. Mas,
este é um tema para a próxima aula.

Olhando para esse passado de guerras, no qual os cristãos tiveram que


recorrer às armas para defender a Europa, percebe-se que a história da Igreja
não pode ser separada dos eventos políticos e militares tão comuns na
história da humanidade. Embora a expansão da fé cristã não deva dar-se pela
espada, mas pela persuasão racional, é importante que o Estado garanta à
sociedade certa paz e estabilidade, defendendo-a dos perigos que ameaçam
as suas fronteiras e tentam pôr abaixo seus valores e sua cultura. Foi o que
fizeram as autoridades políticas desse tempo, tentando estabelecer um pouco
de ordem, a fim de garantir à Igreja a possibilidade de evangelizar e construir
a civilização ocidental.

Carlos, o grande
Os esforços de Carlos Magno valeram-lhe, ainda por parte de seus
contemporâneos, o título de “pai da Europa". Após a sua atuação política, o
Ocidente nunca mais seria o mesmo.

Descubra, nesta aula de História da Igreja Medieval, quais foram as


contribuições deste “guerreiro quase inculto" para a Igreja e para nossa
civilização.
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Em 768, após a morte de Pepino, o Breve, o reino franco foi dividido entre os
seus filhos, Carlomano e Carlos. Com o falecimento prematuro do primeiro,
em 771, todo o território franco ficou sob o império de Carlos (742-814), que
se sobressaiu como um grande homem, merecendo o título de “magno" e de
“pater Europae" (pai da Europa), dado por seus próprios contemporâneos,
como lembrou o Papa São João Paulo II [1].
Logo no começo de seu reinado, Carlos Magno entabula uma relação de
proximidade com o Papa Adriano I, fixando uma aliança política e espiritual
em comum. “O gênio deste homem e a grandeza do seu caráter – escreve
Daniel-Rops – mostram-se com mais clareza exatamente no fato de este
guerreiro quase inculto ter compreendido a importância da obra civilizacional,
e de se ter consagrado a ela pessoalmente" [2]. Olhando para os escombros
do Império Romano, Carlos enxergou a importância de edificar uma cultura,
muito além da simples liderança dos francos. Por isso, ele enviou emissários
aos quatro cantos da Europa e, em sua “Escola palatina", congregou
inúmeros sábios, a fim de educar a sua família e a nobreza da época nas
linhas da sabedoria antiga. Os seus múltiplos esforços foram consagrados
sob o nome de “renascimento carolíngio":

“De uma maneira ainda modesta, a Renascença carolíngia foi fecunda,


fornecendo instrumentos de trabalho à cultura intelectual. A escrita foi
transformada: ao invés das ilegíveis cursivas merovíngias, apareceu – talvez
inicialmente em Corbia – a minúscula carolíngia, bela e nítida, que Alcuíno e
os monges de Tours aperfeiçoaram e popularizaram por toda a parte. A língua
latina – muito abastardada na França e na Itália, onde, continuando a ser
língua viva, fora contaminada pelo linguajar bárbaro – foi muito melhorada
pelos monges anglo-saxões, notadamente por Alcuíno, entre os quais se
conservava como língua culta. As obras literárias clássicas, negligenciadas
durante muito tempo, recuperaram o seu lugar de honra, mesmo entre
aqueles para quem só contava a 'divina sapiência': voltaram-se a estudar
Virgílio e os grandes autores, passou a haver certa familiaridade – embora
num estreito espírito escolástico – com Boécio, Cassiodoro e Beda o
Venerável, e a obra em que Marciano Capella compilara o Sonho de Cipião e
as Metamorfoses de Ovídio desempenhou o papel de um verdadeiro manual
pedagógico." [3]
Durante o seu reinado, portanto, a cultura greco-romana e o tesouro dos
ensinamentos dos Santos Padres floresceram como nunca antes. Para ler os
manuscritos da Antiguidade, Carlos chegou a dominar a fala e a leitura da
língua latina – na qual, porém, não obteve sucesso em escrever [4]. Foi sob o
seu governo que os monges copistas começaram a incansável obra de
preservação da cultura antiga, legando às gerações futuras os escritos de
Cícero, Tito Lívio e outros nomes célebres. Da data anterior a Carlos Magno,
de fato, pouquíssimos livros sobreviveram, sendo praticamente todos de
conteúdo cristão. É a partir dele que os escritores substituem o papiro pelo
pergaminho e este, por sua vez, pelos códices – quando as letras começam a
ser gravadas em blocos de madeira. É de tal monta o crescimento intelectual
que se experimenta nessa época que o mosteiro de Reichenau, que, antes de
Carlos, continha em torno de cinquenta livros, passa a ter, depois, uma
biblioteca com mais de mil obras.

Juntamente com o Papa, Carlos Magno também empreende uma importante


reforma na educação e disciplina do clero, que se encontram bastante
prejudicadas pelas invasões bárbaras e pela degradação dos costumes. “O
clero secular foi objeto de cuidados de que até então nunca se beneficiara:
foram-lhe exigidos não só costumes puros, como também um mínimo de
conhecimentos. O bispo ou o seu delegado tinha obrigação de investigar
periodicamente, por meio de exames orais, se os padres tinham noções
suficientes de latim, de dogma e de liturgia. Uma lei obrigou os curas a pregar
em língua vernácula todos os domingos." [5]. A ação de Carlos também é
determinante para o desenvolvimento da liturgia romana. As orações da
Missa, por exemplo, que são rezadas de mãos juntas, certamente têm sua
origem na prática da corte de Carlos Magno, bem como as orações chamadas
“apologéticas".

Para dar cabo a tudo isso, Carlos, obviamente, não age sozinho. Com ele,
ergue-se, por exemplo, o bem-aventurado Alcuíno (735-804), um monge
anglo-saxão e diretor da “escola catedral" de Iorque que, nos passos de São
Beda, o Venerável, oferece uma sólida contribuição teológica e espiritual à
obra desenvolvida por Carlos Magno. Além de ajudar a resolver problemas
disciplinares dos bispos da Espanha, Alcuíno também auxilia na condenação
da heresia do adopcionismo – que afirmava ser Cristo o “filho adotivo" de
Deus –, durante o Concílio de Frankfurt, em 794.

Com a morte de Adriano I, em 795, é eleito o Papa São Leão III. Como,
apesar de romano, Leão “não descendia de uma linhagem ilustre como o seu
predecessor", apressou-se um “golpe de Estado" contra o Sumo Pontífice:

“No dia das Ladainhas maiores de 799, quando cavalgava à frente da


procissão conforme o antigo costume, Leão III foi assaltado, derrubado da
sua montaria, moído a pancadas e despojado das vestes pontifícias; por um
milagre, não lhe cortaram a língua nem lhe vazaram os olhos, à maneira
bizantina. Acusado de toda a espécie de vícios e crimes, foi preso num
convento à espera de ser 'julgado'. Felizmente para ele, conseguiu evadir-se
com a ajuda de uma corda e chegou até Spoleto, onde pôde tratar as feridas,
e em seguida correu a Paderborn, ao encontro do rei Carlos, para pedir-lhe
que o recolocasse no trono pontifício. O rei abraçou-o chorando e designou-
lhe uma escolta de soldados e de altos funcionários que o acompanhariam a
Roma e o ajudariam a reinstalar-se no trono pontifício." [6]
Diante da pretensão de Carlos de emitir um juízo acerca da situação do Papa,
o beato Alcuíno alertou-o: “Prima Sedes a nemine iudicatur – A Santa Sé não
pode ser julgada por ninguém". Mesmo assim, Leão III foi obrigado a prestar
um juramento ao rei franco, negando as acusações de seus inimigos e
confirmando a sua retidão moral. Nesse tempo, firmou-se uma relação muito
íntima entre o papado e Carlos Magno, a ponto de o Sumo Pontífice devotar-
lhe um amor declarado, que culminou com a sua coroação, no Natal de 800,
como Imperador Romano.

É importante ressaltar que, com a queda do Império Romano do Ocidente, em


476, a sede do governo romano se encontrava em Constantinopla. A
coroação de Carlos Magno como chefe de todo o Império, portanto, acirrou
ainda mais as relações entre Roma e o Oriente, como se verá na próxima
aula. Apesar de essa realidade durar pouco tempo – com a divisão dos
territórios entre os filhos de Carlos e a invasão dos vikings, o Império se
dissolverá mais uma vez –, historicamente, terá uma grande repercussão,
especialmente quando a unidade se restabelecer por meio do Sacro Império
Romano Germânico.

Disputas religiosas no Oriente: o monotelismo e a


iconoclastia
Do outro lado do mundo, a Idade Média começou com duas grandes heresias a
serem combatidas. Enquanto os monotelistas introduziam uma nova confusão a
respeito da humanidade de Cristo, os chamados iconoclastas varriam do mapa
todas e quaisquer imagens que apontassem para o sagrado.

Descubra, nesta 6.ª de nosso curso de História da Igreja Medieval, como os


santos defenderam a fé em Cristo e preservaram o culto às imagens no Oriente.
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Enquanto, no Ocidente, uma série de sucessos bélicos dos maometanos os
faz chegar à Península Ibérica, e um “mordomo do palácio", Carlos Martel,
tem que erigir um exército para conter o seu avanço – como se viu na quarta
aula deste curso; enquanto Carlos Magno, neto de Martel, toma o poder e é
coroado Imperador Romano pelo Papa Leão III – como se viu na quinta aula
deste curso –, o Oriente é agitado por duas grandes heresias: o monotelismo
e a iconoclastia.

Para compreender, primeiro, o monotelismo, é preciso entender as


consequências da definição do Concílio de Calcedônia, em 451, a respeito
das duas naturezas de Cristo.

Este Concílio estabeleceu, com bastante clareza: que Nosso Senhor é, ao


mesmo tempo, “ομοούσιος τω πατρι – consubstancial ao Pai" e “ομοούσιος
ημιν – consubstancial a nós"; que n'Ele, há “uma só pessoa" (πρόσωπον) e
“uma só hipóstase" (υπόστασιν); e, por fim, que as Suas duas naturezas se
relacionam “inconfuse, immutabiliter, indivise, inseparabiliter – sem confusão,
sem mudança, sem divisão, sem separação". Em Jesus, portanto, há duas
naturezas, a divina e a humana, que estão unidas, sem se confundirem, e
distintas, sem se separarem [1].

Em reação à doutrina de Calcedônia, algumas igrejas da Síria e do Egito


permaneceram monofisitas e entraram em cisma com Constantinopla. O
problema é que, diante das invasões árabes – no século VII, a religião
muçulmana se encontrava em franca expansão –, o Imperador não podia
permitir que a sua unidade religiosa e política fosse ameaçada dessa forma,
sob o risco de o Império Bizantino sucumbir à cavalaria islâmica. Sem poder
renunciar ao símbolo do Concílio de Calcedônia, mas tentando, ao mesmo
tempo, agradar os monofisitas, o patriarca Sérgio de Constantinopla vem,
então, à tona com uma nova heresia: o monotelismo (ou monoenergismo),
que ensinava que em Cristo, embora havendo duas naturezas, só existia uma
vontade, a divina. A humanidade de Jesus ficaria, por assim dizer, “entre
parênteses": embora existindo, ela não teria vontade própria.
Em resposta a Sérgio, o Papa Honório I escandalosamente subscreve às
suas teses, dizendo professar “uma só vontade de nosso Senhor Jesus
Cristo" [2]. Embora o III Concílio de Constantinopla tenha condenado
firmemente a atitude de Honório, os historiadores consideram que ele não
incorreu em heresia, apenas dava pouca importância às fórmulas dogmáticas,
em uma tentativa patética de agradar as duas facções.

Foi preciso que a providência levantasse São Máximo, o Confessor, para


condenar a heresia monotelita. Esse monge, discípulo de São Gregório de
Nazianzeno, entendeu melhor do que ninguém o argumento de seu mestre:
“Quod non est assumptum, non est sanatum – O que não foi assumido, não
foi curado" [3]. Ou seja, se Cristo não teve vontade humana, não existiu
vontade humana que aceitou a vontade de Deus e, portanto, o homem não foi
redimido por completo. A agonia de Jesus no horto das oliveiras [4], porém,
evidencia a luta entre as Suas duas vontades e o culto ao Sagrado Coração
de Jesus, prestado por toda a Igreja universal, recorda e adora o coração
humano que amou a Deus de forma perfeita. Em 649, o Sínodo do Latrão,
convocado pelo Papa São Martinho I, condena a heresia monotelita [5], tendo
como amparo o pensamento de São Máximo.

Até o III Concílio de Constantinopla (680-681) condenar de vez o


monotelismo, porém, será preciso que São Martinho I e São Máximo, o
Confessor, entreguem a sua vida pela autêntica fé católica, enfrentando a
prisão, a tortura e, por fim, o martírio.

Outra querela religiosa que agitou o Oriente nessa época foi a controvérsia
das imagens. O imperador Leão III, o Isáurio, embora seja considerado
“salvador do Império Bizantino" – de fato, ele conseguiu deter o avanço dos
árabes sobre Constantinopla, dispersando o exército naval com uma
inteligente e poderosa arma chamada de “fogo grego" –, é, ao mesmo tempo,
o responsável pela destruição generalizada de ícones sagrados em todo o
Império. Depois de lidar com teólogos e patriarcas defensores da iconoclastia,
Leão III manda quebrar o que vê pela frente: mosaicos, ícones, imagens e
tudo o mais que, de algum modo, represente o sagrado. A onda iconoclasta
foi bastante forte no século VIII, não deixando praticamente nenhum vestígio
vivo da arte bizantina, a não ser em regiões do Ocidente com influência
oriental, como as regiões de Ravena e Sicília, na Itália.

Contra esta heresia, que perdurou durante todos os anos 700, lutaram
homens como São Germano de Constantinopla, São João Damasceno e os
santos Papas Gregório II e Gregório III, mas foi apenas com Irene de Atenas,
mulher de Leão IV (neto de Leão III, o Isáurio), que a ortodoxia triunfou e a
iconoclastia foi finalmente fulminada. Em 787, a imperatriz convocou o II
Concílio de Niceia, no qual se definiu:

“De fato, quanto mais os santos são contemplados no ícone que os reproduz,
tanto mais os que os contemplam são levados à recordação e ao desejo dos
modelos originais e a tributar-lhes, beijando-os, respeito e veneração; não, é
claro, a verdadeira adoração própria de nossa fé, reservada só à natureza
divina, mas como se faz para a representação da cruz preciosa e vivificante,
para os santos evangelhos e os outros objetos sagrados, honrando-os com a
oferta de incenso e de luzes segundo o piedoso uso dos antigos. Pois 'a
honra prestada ao ícone passa para o modelo original', e quem venera o
ícone venera a pessoa de quem nele é reproduzido." [6]
Com isso, a Igreja recordava que Deus, invisível, não só se faz “visível" no
homem, criado à Sua imagem e semelhança, mas principalmente no Verbo
encarnado, em que o próprio Deus assume uma forma humana e pode,
portanto, ser representado.

Infelizmente, por conta de um conflito político entre o Ocidente e o Oriente –


importa lembrar que foi justamente sob o reinado de Irene de Atenas, em 800,
que Carlos Magno foi coroado pelo Papa São Leão III “ Imperator Augustus",
tentando trasladar, de alguma forma, a sede do Império para Roma – e de
uma tradução errada das atas de Niceia para o latim, o II Concílio de Niceia
não foi muito bem aceito por Carlos Magno e pelo Ocidente, como conta
Daniel-Rops:

“Quando o culto das imagens foi legitimado em 787 pelo segundo Concílio de
Nicéia, Carlos Magno e o seu clero franco saíram a campo simultaneamente
contra Bizâncio e contra Roma. A tradução latina das decisões conciliares
parecia-lhes equívoca, e além disso os germanos sempre tinham manifestado
uma certa desconfiança quanto à representação da figura humana, acentuada
pela profunda influência do Antigo Testamento. Carlos convidou os seus
teólogos a compilarem tratados contra o Concílio – que foram publicados sob
o seu nome: Livros carolinos –, (...) e a reunir em Frankfurt, em 794, um
concílio antiniceniano... Foi só em fins do século IX – e depois de alguns
excessos iconoclastas, principalmente na Turíngia – que a doutrina ortodoxa
sobre esta questão triunfou totalmente no Império franco." [7]
No século XVI, esses escritos de Carlos contestando Niceia serão
redescobertos por protestantes calvinistas e usados para ressuscitar a
iconoclastia, heresia defendida até hoje pelos evangélicos.

Os Vikings e a Batalha de Edington


Por três séculos, tripulações piratas escandinavas aterrorizaram a Europa, e
principalmente o território da Inglaterra, com saques, pilhagens e conquistas.

Nesta 7.ª aula de História da Igreja Medieval, conheça a história e as incursões


dos vikings , os guerreiros bárbaros mais famosos e temidos da Idade Média.
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Ainda durante o reinado de Carlos Magno, a Europa foi invadida por povos
vindos da Península Escandinava – região que abarca Dinamarca, Suécia e
Noruega. Os vikings – como passaram a ser chamados – realizaram saques e
pilhagens em toda a costa europeia; movidos pela ganância, aportavam os
seus navios na Inglaterra, na França e na Alemanha, confiando em que Odin ,
o deus da guerra, enviaria suas filhas, as valquírias , para carregar os corpos
dos guerreiros mortos em combate. Um de seus personagens lendários,
Ragnar Lodbrok, chegará a cercar a cidade de Paris, navegando pelo rio
Sena, tal era o seu desenvolvimento na construção de embarcações. São
esses piratas nórdicos – comumente designados como normanos – que darão
o nome à região da Normandia, ao noroeste da França. Até serem
cristianizados e pacificados, os vikings causaram um grande terror em todo o
continente europeu, desde o século VIII até metade do século XI.

A primeira grande incursão dos vikings atingiu a ilha de Lindisfarne, no leste


da Inglaterra, em 793. O mosteiro do lugar foi invadido e os nórdicos mataram
os monges, queimaram os seus manuscritos, destruíram a abadia e pilharam
todos os tesouros que obtiveram. Esta, na verdade, tornou-se praticamente
uma regra das invasões vikings : saquear os mosteiros, onde havia grandes
tesouros a tomar e pouca ou nenhuma resistência a enfrentar.

Depois de um período de saques constantes, os nórdicos conseguiram


chegar a “colonizar” a Europa. No século IX, toda a Inglaterra – que, à época,
era uma “heptarquia” de reinos – foi alvo da incursão dos vikings :

 No Reino da Nortúmbria , o rei Aella foi designado, por Ivarr, filho de


Ragnar Lodbrock, ao temido ritual denominado “águia sangrenta”,
método de execução comum entre os vikings , que consiste em fraturas
as costelas da vítima com um machado e puxado para atrás dos seus
ossos e dos pulmões, a fim de criar a ilusão de um par de asas brotando
em suas costas;
 No Reino da Ânglia Oriental , em 869, o rei Edmundo – santo e mártir –
foi amarrado numado árvore e morto com flechas;
 No Reino da Mércia , o rei, antevendo o perigo, fugiu para tornar-se
monge em Roma;
 No Reino de Wessex , o rei, derrotado, foi sucedido por seu irmão,
Alfredo, que, resistindo e lutando bravamente contra os vikings ,
conseguiu defender seu reino e empreender a unificação da Inglaterra,
recebendo por isso o epíteto de “o Grande” .Aí, ao contrário do que se
sucedeu no continente, os reis se fortaleceram e os vikings se tornaram
“vassalos” dos ingleses, com Guthrum, o chefe da armada escandinava,
aceitando o cristianismo e recebendo o sacramento do Batismo.
A vitória de Alfredo, o Grande, sobre os povos nórdicos foi versojada pelo
escritor britânico GK Chesterton, em sua famosa obra The Ballad of the White
Horse [“A Balada do Cavalo Branco”] [1].

Em determinado trecho dessa longa e inspirada poesia, Chesterton conta a


intimidade de Nossa Senhora a Alfredo, durante a qual ela encorajou o rei de
Wessex à batalha, em um período de enorme instabilidade política e religiosa
– vale lembrar que o século X ficou conhecido, na história da Igreja, como o
“século de ferro”, quando, num curto período de 40 anos, 15 papas reinaram
na Sé de Pedro. Enquanto todos se entregavam às hordasvikings e aos maus
trajes, Alfredo, animado por Maria, não se entrega.Às vésperas da Batalha de
Edington, dá-se o encontro entre os dois:
“Mãe de Deus”, disse o andarilho,
“sou apenas um rei comum,
nem perguntarei o que os santos podem perguntar,
para ver uma coisa secreta”. “As portas do céu são portas terríveis, piores
que as portas do inferno; Eu não quebraria os esplendores barrados Ou
procuraria saber o que eles guardam, O que é bom demais para ser
contado. (…) “Quando nosso último arco for quebrado, Rainha, E nosso
último dardo for lançado, Sob algum triste e verde céu noturno, Segurando
uma cruz em ruínas no alto, Sob a grama quente do oeste para
deitarmos, Voltaremos finalmente para casa?” E uma voz veio humana, mas
alta, Como uma cabana escalada entre As nuvens; ou um servo de cabana e
fazenda Que se senta junto à lareira de sua cabana como sempre, Mas ouve
em seu velho telhado nu no alto Um campanário estourou em canção. (…) “
Os portões do céu estão levemente trancados Nós não guardamos nosso
ouro, Os homens podem desenraizar onde os mundos começam, Ou ler o
nome do pecado sem nome; Mas se ele falhar ou se vencer A nenhum
homem bom é dito: “Os homens do O Oriente pode soletrar as estrelas, E os
tempos e os triunfos marcarem, Mas os homens assinados com a cruz de
Cristo Andam alegremente na escuridão. (…) “Mas você e toda a espécie de
Cristo São ignorantes e corajosos, E vocês têm guerras que dificilmente
vencer E almas que você dificilmente salva. "Nada lhe digo para seu
conforto, Sim, nada para seu desejo, Exceto que o céu fica ainda mais
escuro E o mar sobe mais alto. "A noite será três vezes noite sobre você, E o
céu será uma capa de ferro . Você tem alegria sem causa, sim, fé sem
esperança?"

A impressionante vitória de Alfredo é justamente a sua luta, mesmo sem


esperanças e apoios humanos. Na verdade, não é final, quando tudo já
parece perdido, que acontece a “eucatástrofe":

E quando a última flecha


Foi ajustada e voou,
Quando o escudo quebrado pendia do peito,
E a lança sem esperança foi colocada em repouso,
E a trombeta sem esperança foi tocada, O Rei olhou para cima, e o que ele
viu Foi uma grande luz como a morte , Pois Nossa Senhora estava nos
estandartes rasgados, Tão solitária e tão inocente Como quando entre
paredes brancas ela foi E os lírios de Nazaré. Num instante, numa luz
tranquila , Ele viu Nossa Senhora, Seu vestido era suave como o céu
ocidental, E ela era uma rainha muito feminina - Mas ela era uma rainha dos
homens. Sobre a floresta de ferro Ele viu Nossa Senhora parada, Seus olhos
estavam tristes sem arte, E sete espadas estavam em seu coração - Mas
uma estava em sua mão.
Hoje, diante da barbárie dos vikings que profanam o templo de Deus, é
preciso lutar, ainda que as expectativas humanas não sejam as mais
promissoras. A vitória do Céu é certa, mas não nos é dado conhecer os
detalhes do que vai acontecer nesta vida – “Os portões do céu estão
ligeiramente trancados / Não guardamos o nosso ouro, (...) / Mas se ele falhar
ou se ele venceu / Para nenhum homem bom é dito.

Cluny e a reforma da Igreja


No século X, a politicagem e a corrupção dos costumes chegou até à cátedra de
São Pedro. Para salvar a Igreja deste "século obscuro", os religiosos de um
mosteiro na França decidiram empunhar uma corajosa arma: sua santidade.

Descubra, nesta aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, como a


Abadia de Cluny foi decisiva para a reforma do clero e para a civilização de toda
a Europa.
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Após a invasão viking, a Europa foi totalmente fragmentada. Diferentemente
da Inglaterra, que resistiu bem à invasão dos vikings, mantendo e ampliando
a sua unidade política, o resto do continente viu pequenos senhores de terra
organizarem e fortificarem seus próprios castelos, em um fenômeno que ficou
conhecido como feudalismo. Por meio de alianças de "vassalagem", os
servos da gleba prestavam fidelidade e trabalhavam para os seus suseranos,
enquanto estes ofereciam-lhes proteção e moradia.

Para resistir aos bárbaros nórdicos – muito mais cruéis que os que fizeram
cair o Império Romano –, muitos monges e bispos encastelaram os próprios
mosteiros e ambientes eclesiásticos, copiando o modelo feudal vigente na
Europa. Isso fez o poder temporal mesclar-se ao da Igreja, de várias formas.

"A secularização dos bens da Igreja, essa doença do século IX, continua e
ultrapassa em gravidade o que se viu no tempos dos merovíngios.
Generaliza-se o preenchimento dos cargos eclesiásticos pelos poderes civis,
prática já muito cara a Carlos Magno. Chega-se, pois, ao cúmulo daquele erro
que há cinco séculos vinha ameaçando continuamente a sociedade cristã: a
intromissão do poder civil na Igreja e a sistemática confusão entre os dois
poderes." [1]
A questão das investiduras leigas – como ficou chamada a nomeação de
cargos eclesiásticos por chefes políticos –, por exemplo, fez que monges,
bispos e inclusive Papas ficassem submissos a reis, imperadores e nobres,
em um período que ficou conhecido por saeculum obscurum (expressão
cunhada pelo Cardeal Barônio, discípulo de São Filipe Néri). De fato, o século
X foi marcado pela nefasta influência de famílias romanas na eleição dos
Sumos Pontífices. Nessa época – provavelmente mais do que em qualquer
outra –, a corrupção do mundo entrou com força na Igreja. Papas praticavam
a simonia, davam de ombros para a disciplina do celibato, morriam
assassinados e, muito preocupados com maquinações políticas, praticamente
não interferiam nos assuntos da Igreja. O bispo de Roma era mais um senhor
feudal e chefe político que propriamente um líder espiritual.

O iluminista e anticlerical francês Voltaire, ao comentar a vida dos Papas


dessa época, escreveu: "É surpreendente que, sob tantos papas tão
escandalosos e tão pouco poderosos, a Igreja romana não tenha perdido nem
suas prerrogativas, nem suas pretensões" [2]. É preciso concordar com
Voltaire, complementando, porém, que, se esse fato é realmente
surpreendente, é porque ali, por trás das condutas erradas e pecaminosas
dos homens, agia o próprio Deus.

Com efeito, em 910 – ao mesmo tempo em que Roma parecia sucumbir à


corrupção dos costumes –, num canto obscuro da Europa, Guilherme de
Aquitânia (também chamado de "o Piedoso") levanta o mosteiro que será
responsável pela reforma da Igreja e pela civilização do continente.
Aconselhado por São Bernão, ele funda a Abadia de Cluny, mantendo-a livre
de influências políticas e diretamente vinculada a Roma. Graças a essa
independência do poder secular, os monges de Cluny puderam escolher os
seus próprios superiores – homens santos, que despenderam grandes
esforços para a revitalização da fé. De fato, ao cabo de muitas viagens – após
as quais inúmeros mosteiros se uniram a eles –, o abade de Cluny passou a
cuidar espiritualmente de toda a Europa: em cada porção de terra havia um
recanto diretamente submisso à abadia francesa.

A Regra de São Bento foi adotada pelos monges cluanicenses e, em pouco


tempo, aqueles ensinamentos que há muito eram conhecidos –
principalmente graças aos esforços de São Gregório Magno e do bem-
aventurado Alcuíno, à época de Carlos Magno – passaram a ser fielmente
vividos. Foi justamente nesse período de reforma monástica que surgiu uma
das mais belas flores do Evangelho: a educação cristã, pela qual as pessoas
eram formadas não simplesmente para o conhecimento, mas para a
santidade.

O primeiro superior de Cluny foi São Bernão. Como seu sucessor, foi eleito
Santo Odão. Desde pequeno, Odão fôra consagrado pelo pai a São Martinho
de Tours. Com problemas para ter filhos, ele prometeu a Deus que, se aquele
nascesse, educá-lo-ia para a vida religiosa. A promessa funcionou, pois o
menino nasceu, mas, com o passar do tempo, o seu pai acabou por
esquecer-se do compromisso que tinha feito. Embora fosse muito temente a
Deus, o jovem Odão cresceu sendo formado para a cavalaria. Quando uma
doença o prostrou, o pai recobrou a consciência de sua antiga promessa e
comunicou-a ao filho, que imediatamente deixou tudo para fazer-se monge.
Na vida monacal, sua santidade refulgia com força, principalmente nos
milagres que Deus operava por suas mãos.

Outro santo abade de Cluny, considerado o maior de todos, foi São Hugo.
Nos séculos XI e XII, praticamente não havia um concílio em que não
estivesse presente. Influenciou na eleição de Papas – foi pai espiritual de São
Gregório VII, por exemplo –, na solução de heresias – como a de Berengário
de Tours –, na luta contra a simonia e na implantação do celibato. Foi graças
à sua ação – e a de outros abades, como Odilão e Pedro, o Venerável – que
se construiu em toda a Europa uma verdadeira "rede" de mosteiros
reformados.

Quando começaram a aparecer Papas santos, então, a "rede" de Cluny foi


"colocada na tomada" e passou a iluminar todo o continente. A grande lição
de Cluny é que de nada adiantam Papas santos sem haver fiéis que os
obedeçam. Importa, antes, restaurar o "tecido eclesial", a fim de que, quando
Deus enviar um Pontífice providencial, a Igreja saia efetivamente de sua crise.
Para tanto, a solução atual talvez não esteja nos mosteiros, senão nos leigos
– homens e mulheres de fé, que queiram levar adiante a verdadeira educação
cristã, buscando a própria santificação e a contemplação da Verdade.

Enfim, após os seus anos de glória, Cluny entrou em decadência. Por


problemas financeiros e circunstâncias políticas, o rei da França começou a
nomear os abades do lugar, criando na Ordem justamente o que os seus
monges mais combateram: a influência política. Independentemente disso, a
Abadia desempenhou o seu papel histórico para o bem da Igreja. Oxalá o
século XXI seja capaz de repetir e aprimorar a experiência de Cluny,
preparando o terreno para um Papa da Providência e para o dia em que a
Igreja finalmente será colocada de volta nos trilhos.

Cruzadas
Na Baixa Idade Média, homens de todos os lugares da Europa saíram de suas
casas e partiram rumo ao Oriente, dispostos a salvarem suas almas e
defenderem a Terra Santa.

Descubra, nesta 9.ª aula de História da Igreja Medieval, o que foram realmente
as Cruzadas e por que elas se tornaram um dos principais cavalos de batalha
dos inimigos da Igreja Católica.
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É farto o material a respeito das Cruzadas. São duzentos anos de história,
envolvendo múltiplos eventos diferentes. Não bastasse isso, trata-se de um
tema polêmico. Principalmente por ocasião dos Ataques de 11 de Setembro –
antes dos quais o próprio Osama Bin Laden havia declarado uma
" jihad contra judeus e cruzados" [1] – o exame histórico das Cruzadas voltou
à tona. Afinal, o que foram realmente as Cruzadas: guerras injustas e
violentas dos cristãos contra os muçulmanos ou, ao contrário, uma história
épica, romântica e incriticável – como pintam outras pessoas?

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Para um exame acurado acerca das
Cruzadas, deve-se prescindir de preconceitos ou reducionismos e partir a
uma investigação rigorosa dos fatos e documentos históricos. Antes de tudo,
importa dizer que essa visão negativa sobre esse período histórico não foi
criada pelos árabes – como pensa, por exemplo, o presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama –, mas surgiu justamente no Ocidente, por obra de
pensadores iluministas e anticlericais. Agora, essa mentira é creditada por
terroristas islâmicos, que a usam como justificativa para uma "vingança".

A verdade é que as Cruzadas não foram uma "guerra santa". Esse conceito –
que está ligado a jihad – é muçulmano. O islamismo, de fato, expandiu-se
principalmente por guerras e investidas políticas. Na religião cristã, por outro
lado, não existe tal coisa, pois a guerra é sempre um mal. Existe sim – e a
genialidade de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino ajudou a
elaborar este pensamento [2] – a chamada "guerra justa", que acontece
quando se esgotam todas as alternativas de conciliação.

Durante o pontificado de São Gregório VII, o Imperador de Constantinopla,


Aleixo Comneno, pediu ajuda ao Ocidente para recuperar os territórios do
Oriente Próximo que haviam sido tomados pelos muçulmanos. Entre as
conquistas dos árabes, estava a Terra Santa. Nesta época, os cristãos, que
desde a época de Santa Helena peregrinavam aos lugares santos, sofriam
para visitar o local em que Cristo viveu. Às portas de Jerusalém, eram
obrigados a pagar altas somas de impostos, sem falar dos assaltos,
assassinatos e sacrilégios de que eram testemunhas e até mesmo vítimas.

A notícia de todos estes fatos indignou a Europa que, à convocação do Papa


Urbano II, decidiu se organizar para defender Jerusalém. Algumas pessoas
disseram que as Cruzadas foram convocadas pelo Sumo Pontífice porque
este queria "mostrar o seu poderio militar". Nada mais falso. Seria ilógico que
o Papa mandasse para o Oriente justamente os exércitos que o defendiam,
não fosse por uma verdadeira urgência.

Para incentivar os cavaleiros, nobres e outras pessoas a ajudarem o Império


Bizantino, Urbano II reuniu um concílio e agraciou os cruzados com uma
indulgência plenária. Este prêmio por participar de uma guerra pode parecer
absurdo, mas sempre foi uma constante na história dos povos e nações: um
soldado que morre para defender a sua pátria está fazendo algo bom e deve
ser condecorado por isso. É claro que hoje, por conta da propaganda
esquerdista associando a polícia e os militares à violência, as pessoas não
têm mais essa mentalidade. Mas é deste modo que os bons soldados devem
ser honrados: como heróis.

Por isso, a Igreja sempre estimou os cruzados. Ela enxergava como autêntica
caridade que eles saíssem de suas casas e da tranquilidade de seus lares
para enfrentarem o desconhecido e o imprevisível e defenderem Jerusalém.
Os que se decidiam a partir à Terra Santa eram, pois, assinalados com a
Cruz, tinham suas espadas abençoadas – sob a prece de que não
derramassem sangue inocente – e, enfim, partiam em peregrinação. É com
este sentido heroico de doação que aconteceram as Cruzadas.

Porém, para os marxistas, que só conseguem ler a história a partir do viés


econômico, o único objetivo desses soldados seria a conquista de riquezas ou
a posse de novas terras. Tal tese não faz absolutamente nenhum sentido. Por
que esses homens deixariam a Europa, se as terras ali eram abundantes e
férteis? Na verdade, os cristãos "se cruzavam" porque tinham fé; vendiam
suas propriedades porque criam e queriam cumprir a vontade de Deus. É
claro que isto não os canoniza. O fato de serem homens de fé não os impedia
de, ao longo do caminho, cometerem crimes e desmandos – atos que foram
condenados pelos próprios Papas da época.

A Primeira Cruzada que aconteceu – depois da fracassada "Cruzada


Popular", conduzida por Pedro, o Ermitão – começou com um voto de
fidelidade dos soldados ao Imperador de Constantinopla: qualquer terra que
fosse tomada pelos cruzados deveria passar a propriedade do Império
Bizantino. Depois de atravessarem o Bósforo, eles entraram na Turquia e
tomaram Niceia. Mais adiante, acamparam em Antioquia, na Síria e, depois
de ficarem do lado de fora por meses e perderem inúmeros soldados,
conseguiram conquistar a cidade. Enfim, em 15 de julho de 1099, animados
por Godofredo de Bulhões – que dizia ter visto São Jorge no alto do Monte
das Oliveiras –, os cruzados tomaram a Terra Santa.

Foi grande o número de mortes em Jerusalém e dificilmente se pode justificar


tudo o que os "soldados de Cristo" fizeram aí. O fato é que, após terem a
Cidade Santa nas mãos, os cruzados, ao invés de entregarem-na a Aleixo,
decidiram mantê-la para si. Por conta de um mal entendido, eles
interpretaram a falta de ajuda do Imperador em Antioquia como uma "traição"
e, por isso, se acharam livres do juramento que tinham feito em
Constantinopla. Instauraram, então, o Reino Latino de Jerusalém, cujo
primeiro rei foi justamente Godofredo de Bulhões. Este líder militar que, em
sua juventude, ajudara Henrique IV a invadir a Roma de São Gregório VII,
certamente partiu em peregrinação para purgar os pecados de sua vida
passada. Ao ser escolhido como rei do lugar, no entanto, recusou-se a ser
coroado: não queria tal honra no mesmo lugar em que Cristo tinha sido
coroado de espinhos. Foi designado, então, simplesmente como Defensor do
Santo Sepulcro.

Essas são algumas informações relevantes da primeira das Cruzadas. Como


se pode ver, foram movimentos cheios de luzes e trevas, acertos e erros –
assim como os cruzados, homens de fé e, ao mesmo tempo, pecadores.
Neste período, foi importante o papel dos Papas para coibir e condenar os
abusos dos comandantes e soldados nas expedições ao Oriente. Cruzadas
inteiras – cheias de crimes e injustiças – chegaram a ser excomungadas pelo
Papa. Não era, pois, tudo o que se lançava ao outro lado do Bósforo que
merecia o selo de aprovação da Igreja. Por isso, importa estudar não só os
fatos históricos, mas também a reação das autoridades eclesiásticas ao que
aconteceu.

Ascensão e queda dos Templários


Lendas e fatos, mitos e mistérios: o que há de tão impressionante na história dos
Templários?
Nesta aula de História da Igreja Medieval, confira um resumo da saga dos
"Pobres Cavaleiros de Cristo", desde a glória de seus primeiros anos até a sua
decadência e extinção precoce.
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Como visto na última aula, os primeiros cruzados conseguiram tomar
Jerusalém das mãos dos muçulmanos. Terminada a investida, porém, os
latinos que permaneceram no Oriente se encontravam em uma situação difícil
geopoliticamente, pois os Estados Cruzados – chamados também
de Outremer ("Ultramar") – estavam, por todos os lados, cercados de povos
islâmicos. Nesta condição – tentando governar um povo indócil e sendo
constantemente pressionado por fora –, era realmente muito complicado
manter a ordem política.

Por isso, em resposta ao pedido de ajuda dos povos latinos no Oriente, um


grupo de cavaleiros oferece-se ao Rei Balduíno II de Jerusalém, disposto a ir
à Terra Santa e cuidar dos peregrinos e dos Lugares Sagrados. Uma
característica, porém, os distingue dos combatentes comuns: os Templários –
como seriam chamados mais tarde – queriam, ao mesmo tempo, viver a
profissão dos votos religiosos de pobreza, castidade e obediência.

Mesmo com a aparente contradição do que se dispunham a fazer, o Rei viu a


conveniência de sua ajuda e deu a sua aprovação ao intento dos cavaleiros.
Com o aval do Papa Honório II uns anos mais tarde, o líder do grupo, Hugo
de Payens, percorre toda a Europa à procura de recrutas para a nova Ordem
que surge. Para tanto, conta com o valoroso auxílio e proteção de São
Bernardo de Claraval, cuja pregação fez engrossar exponencialmente as
fileiras da "nova milícia" de Cristo. Juntamente com os Templários, então, são
fundadas a Ordem dos Hospitalários – que se tornariam, mais tarde, os
Cavaleiros de Malta – e a dos Cavaleiros Teutônicos. Também elas trilham o
mesmo caminho dos "Pobres Cavaleiros de Cristo": o de ser, ao mesmo
tempo, monges e guerreiros.

Mas, por que estes militares se apresentam para viver uma vida religiosa?
Certamente não se pode entender a sua opção, sem saber que se tratam,
sobretudo, de homens de fé. Depois de uma vida cheia de percalços e
pecados, eles queriam expiar as suas faltas do passado e diminuir as penas
do seu purgatório. Seu projeto militar e espiritual, todavia, não é contraditório:
o combate que travavam contra os inimigos externos, como soldados, eles
agora deviam combater contra os vícios internos, como religiosos.

Os Templários foram, de fato, muito importantes, desde a Segunda


Cruzada (1147-1149), até a perda de Jerusalém, na famosa Batalha de
Hattin, em 1187. Para se ter uma ideia de sua fé e coragem, nesta batalha,
230 cavaleiros foram capturados e mortos como mártires, recusando-se a
abandonar a fé cristã e converter-se ao islamismo. Fica evidente, a partir
deste episódio, que os Templários realmente não eram guerreiros comuns.
Em Hattin, a sua dedicação a Cristo chegara ao ponto do martírio.
Infelizmente, a situação militar na Terra Santa iria de mal a pior e, depois de
várias cruzadas e muitas mortes, os latinos perderiam totalmente suas posses
nos Lugares Santos. Quando, em 1291, cai a fortaleza de São João de Acre,
os Templários encerram os seus trabalhos no Oriente e, com o passar dos
anos, assiste-se pouco a pouco à decadência e à extinção da Ordem que
tanto bem tinha prestado à Igreja.

Para entender como os Cavaleiros de Cristo, de homens tão destemidos e


empenhados com a causa da fé, chegaram à própria extinção, sendo
acusados até mesmo de trair a Igreja, é preciso entender o contexto em que
se deu a sua condenação.

A manutenção das posses latinas no Oriente demandava recursos, seja de


ordem humana, seja de ordem material. Por conta disso, os Templários
tinham que lidar com grandes montas de dinheiro. Além disso, os nobres,
quando "se cruzavam" e partiam ao Oriente, deixavam suas fortunas sob a
responsabilidade dos Templários, que passaram a trabalhar também como
banqueiros. Com isso, o seu poder econômico crescia, a ponto de superar o
dos próprios príncipes da época.

O ganancioso Filipe IV (Filipe, o Belo), então Rei da França, conhecendo o


tesouro pelo qual zelavam os Templários e vislumbrando uma oportunidade
de quitar as dívidas de sua administração, começou a lançar calúnias contra a
Ordem, a qual ele se tinha decidido a destruir. Os Cavaleiros do Templo,
porém, não eram imaculados. Acusações graves, relativas aos rituais de
iniciação por que tinham que passar os noviços, sujavam a sua reputação.
Dizia-se que os neófitos deviam blasfemar contra a Cruz de Cristo e dar
beijos humilhantes em seus preceptores (aqueles que os acolhiam na
Ordem). A notícia desses fatos causava escândalo da Europa e abria uma
brecha para a ação dos seus inimigos.

Atente-se, porém, que esses ritos estranhos – comuns em ambientes militares


– não tornavam os Templários necessariamente em infiéis ou hereges. O
próprio processo que culminou na sua extinção mostra que, mesmo com
esses erros, eles eram bons cristãos. No entanto, os boatos do Rei da
França, aliados ao burburinho que crescia entre o povo, fizeram o Papa
Clemente V dissolver, em 1312, a já desmoralizada Ordem dos Templários.
No começo, o Sumo Pontífice bem que tentou fazer um processo canônico
justo, mas, ao fim, faltaram-lhe pulsos firmes e os líderes da Ordem
terminaram na fogueira, por ordem de Filipe, o Belo.

O último grão-mestre da Ordem, Jacques de Molay, foi um desses cavaleiros


executados pelo príncipe francês. Homem de caráter rígido e severo, Jacques
não se dobrou às exigências de Filipe IV, exigindo justiça para si até o
momento de sua execução. Reza a lenda que, no instante em que agonizava
nas chamas, ele invocou a Deus e pediu que os responsáveis por sua
condenação fossem cobrados pela justiça divina. Impressionantemente, no
decorrer do mesmo ano de 1314, morreram Filipe IV e Clemente V.
Maldição ou não, o fato é que os Templários permaneceram esquecidos até o
século XVIII, quando a Maçonaria construiu um mito em torno desses homens
e se intitulou "herdeira" de sua constituição. Ninguém jamais conseguiu provar
essa alegação dos maçons. Na verdade, no curso sobre os Templários, há
documentação abundante para dizer exatamente o contrário: tantos contos a
respeito dos Templários, procurando relacioná-los com os maçons, com o
Santo Graal ou com os Illuminati, não passam de uma grande ficção. É um
material interessante para quem gosta de estórias, não para quem está
interessado na verdade dos fatos históricos.

Ordens mendicantes
Da vida mística e contemplativa de Domingos e Francisco o que se originou não
foi um bando de hippies revolucionários, mas uma legião de homens
profundamente religiosos, os quais, inconformados com o pecado e com a
mentalidade mundana, devolveram vitalidade à Igreja e deram um novo impulso
à evangelização de toda a Europa.

Nesta aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça as Ordens


mendicantes e descubra como a Europa foi restaurada pela pregação incansável
de São Domingos de Gusmão e pela pobreza exemplar de São Francisco de
Assis.
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Deus conduz a Sua Igreja ao longo da história, suscitando, nos tempos e
lugares propícios, homens santos, que a façam "ressuscitar" da miséria e da
morte.

As Ordens mendicantes – entre as quais se destacam os dominicanos e os


franciscanos – surgiram em um período particularmente conturbado para a
Igreja. No início do século XIII, após o sucesso de Cluny, embora os
religiosos tivessem professado o voto de pobreza, as Ordens monásticas
experimentaram um relativo enriquecimento, ao mesmo tempo em que bispos
e padres diocesanos viviam na opulência.

Em oposição a este modo de vida nada exemplar do clero, surgiram


os cátaros e os albigenses. As duas heresias tinham como ponto comum a
condenação não só das riquezas, como de qualquer realidade material –
desde possuir propriedades até alimentar-se ou casar-se –, a ponto de seus
adeptos olharem para a Criação a partir de dois princípios: um bom – que
originou o mundo espiritual – e um ruim – que deu origem ao mundo material.
Os albigenses, por exemplo, não acreditavam nos Sacramentos, pois não
podiam conceber que um sinal visível pudesse portar eficazmente uma graça
invisível e espiritual.

À época, a Igreja não parecia preparada para lidar com a expansão das duas
heresias. Enquanto os sacerdotes diocesanos não levavam vida exemplar, os
monges permaneciam encerrados em seus mosteiros, em uma estrutura
praticamente rígida e sem flexibilidade alguma. É com São Domingos de
Gusmão († 1221) e São Francisco de Assis († 1230), fundadores da Ordem
dos Pregadores e da Ordem dos Frades Menores, respectivamente, que os
religiosos poderão deslocar-se de cidades em cidades, atravessando
fronteiras para ensinar e pregar a fé católica. Santo Tomás de Aquino (†
1274), por exemplo, passou por Nápoles, Roma, Orvieto, Paris e Colônia;
Santo Antônio de Pádua († 1231), por sua vez, tendo nascido em Portugal,
girou todo o norte da Itália, França e Alemanha, pregando contra os hereges.
É essa mobilidade que vai se opor à expansão dos cátaros e albigenses, no
período da Baixa Idade Média.

Domingos de Gusmão era padre diocesano e cônego em sua diocese. Em


viagens ao sul da França, ele atende ao pedido do Papa e começa um novo
estilo de vida apostólica. Passa a dedicar-se, junto com um pequeno grupo,
ao estudo e à contemplação da Verdade, pregando o que contemplava às
pessoas, a fim de tirá-las do erro e da heresia. Para esses pregadores,
porém, não bastava o conhecimento. Era preciso ser santo, ter uma vida
mística. Afinal, "o homem contemporâneo", assim como o homem daquela
época, "escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres,
(...) ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas [1].

Pregando a pobreza e enfrentando com sabedoria as heresias de seu tempo,


os dominicanos ficaram conhecidos pelo lema: "Contemplata aliis tradere –
Dar aos outros o que foi contemplado", retirado da obra de Santo Tomás de
Aquino [2]. Também foram muito importantes no desenvolvimento da
Inquisição, que, à parte os preconceitos de muitos, foi uma instituição cercada
por santos extraordinários.

Quanto a Francisco de Assis, importa, antes de qualquer coisa, "exorcizar" a


visão revolucionária e marxista que o mundo moderno criou a respeito dele,
principalmente a partir do século XIX.

Francisco não era ecologista. Em seu amor pela Criação, o santo de Assis
combateu com eficácia a heresia cátara, que dizia ser ruim o mundo material.
Ao chamar as criaturas de "irmãs", apontava para a existência do grande pai,
que é Deus, associando a bondade existente no mundo material à bondade
divina. Francisco não era, pois, um panteísta idólatra ou algo parecido. Tinha
fé católica e conhecia muito bem a distinção entre o Criador e as Suas
criaturas.

Francisco não era pacifista. Em seu famoso Cântico das Criaturas, o santo
lamenta a sorte "dos que morrerem em pecados mortais" e bendiz "os que ela
[a Morte] achar conformes à vossa santíssima vontade, porque a morte
segunda não lhes fará mal" [3]. Ao pregar a paz, Francisco queria reconduzir
os homens a Deus, empresa que só se podia concluir, após o pecado, por
meio de um verdadeiro combate. Tendo bem claras diante de si as realidades
sobrenaturais, ele também ordenava que fossem dadas punições espirituais e
até físicas aos frades de sua Ordem. Contemporâneo das Cruzadas, o frade
de Assis não só não as condenou, como participou da Quinta Cruzada, em
uma tentativa de converter à fé cristã o sultão Al-Kamil, sobrinho de Saladino.
Francisco não era pauperista. Ainda que tenha feito da virtude da pobreza a
sua esposa e esta possa com razão ser denominada a principal característica
do santo de Assis, o que ele pregava não tinha absolutamente nada a ver
com o igualitarismo desejado pelo marxismo.

Francisco não era rebelde. Mesmo não querendo muito a institucionalização


de sua Ordem, São Francisco não era um herético errante que vivera sua
própria experiência com Cristo longe do seio da Igreja. Ao contrário, o santo
vivia em profunda comunhão com os Papas da época, inteiramente submisso
à hierarquia eclesiástica.

Francisco não era como o jovenzinho hippie do filme Brother Sun, Sister
Moon ["Irmão Sol, Irmã Lua"] (Franco Zeffirelli, 1972). Profundamente
configurado a Cristo na Cruz, quando escreveu o seu Cântico das Criaturas,
Francisco de Assis já se encontrava com chagas dolorosas por todo o corpo,
sofria terrivelmente de artroses, tinha os olhos cauterizados por conta de uma
infecção e, além disso, só se movia se fosse carregado, posto que não
conseguia mais caminhar. Foi neste estado de sofrimento e penitência que o
Pai Seráfico cantou ao seu Criador, unido totalmente a Cristo "obediente até a
morte, e morte de Cruz" (Fl 2, 8).

Dominicanos e franciscanos, os filhos desses dois gigantes espirituais, foram


os principais a ocuparem espaço nas primeiras universidades, tornando-se os
grandes mestres da Escolástica e doutores da fé católica. "A fructibus eorum
cognoscetis eos – Pelos seus frutos os conhecereis" (Mt 7, 16). Da vida
mística e contemplativa de Domingos e Francisco saiu não um bando
de hippiesmaconheiros e revolucionários, mas uma legião de homens
profundamente religiosos, que, inconformados com o pecado e com a
mentalidade mundana, devolveram vitalidade à Igreja e deram um novo e
forte impulso à evangelização de toda a Europa.

A Inquisição
Quando o assunto é Inquisição, fogueiras, crueldades e os mais bizarros
instrumentos de tortura povoam o imaginário popular. Mas o que realmente
aconteceu nesses tribunais da Igreja?

Nas últimas décadas, os historiadores finalmente começaram a estudar a


Inquisição a sério, sem mitos ou preconceitos. Saiba o que eles descobriram,
nesta 12.ª aula de História da Igreja Medieval.
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Nesta aula, falar-se-á apenas sobre a Inquisição Medieval. A quem quiser se
aprofundar no assunto e conhecer a atuação do Santo Ofício em outras
épocas da história, basta assistir ao nosso curso sobre a Inquisição.

Contexto. – Com a queda do Império Romano, em 476 d.C., os povos


bárbaros tomaram toda a Europa, lançando-se sobre o patrimônio antigo e
gerando uma onda intermitente de caos e violência. O renascimento
carolíngio tentou, sem sucesso, restaurar a ordem das coisas, mas tudo foi
por água abaixo, principalmente após a invasão dos vikings, que trataram de
espalhar o terror por onde quer que passassem, piorando ainda mais a
situação em que se encontrava a Europa.

Em meio à barbárie que se instalou em todo o continente, a Igreja Católica foi


praticamente a única tábua de salvação do Ocidente. Foi com a reforma
realizada pela Ordem de Cluny, na virada do milênio, que se conseguiu
restaurar, em certa medida, a ordem no continente. "Os mosteiros
cluniacenses dispunham de amplas propriedades que, postas diligentemente
a frutificar, contribuíram para o desenvolvimento da economia" [1]. De fato,
sem a presença dos Estados nacionais, a força que dava unidade à Europa
era o cristianismo e, entre os inúmeros dialetos que existiam na região, era a
língua latina que se impunha para o estudo e o aprendizado das pessoas. O
Rei era uma figura muito frágil nessa época e a organização política e social
se apoiava, sobretudo, em juramentos de fidelidade e pactos de suserania e
vassalagem.

Os cátaros. – Foi nessa sociedade que surgiram os cátaros. Esse grupo


religioso, vindo da região da Bulgária, pregava uma total subversão da
doutrina católica. Para esses autodenominados "puros", haveria dois deuses:
um bom, criador das coisas espirituais; e um mau, criador da matéria. A Igreja
Católica – com seus Sacramentos feitos de sinais sensíveis [2] e com seus
bispos e padres vivendo na opulência [3] – teria sido obra desse deus mau.

Mais, porém, do que causar confusão no ambiente religioso, essa heresia


gnóstica – cujo conteúdo encontrou sua resposta providencial na figura do
grande São Francisco de Assis († 1226) – fazia ruir todo o edifício da
sociedade medieval: os cátaros também eram contrários aos juramentos, que
constituíam a base das relações políticas na Idade Média.

Por isso, os mais interessados em combater essa heresia eram, além do


clero, os príncipes seculares e o próprio povo. Uma fonte primária relata, por
exemplo, que, em 1114, enquanto os bispos se reuniam em Beauvais para
decidir o que fazer com relação aos hereges, os populares se juntaram para
fazer justiça com as próprias mãos:

"Então, nós fomos ao Concílio de Beauvais para consultar os bispos sobre o


que deveria ser feito. Mas, neste ínterim, o povo fiel, temendo fraqueza por
parte do clero, assaltou a prisão, arrebatou os prisioneiros, colocou-os na
fogueira, do lado de fora da cidade, e reduziu-os a cinzas." [4]
Primeiras soluções. – Na verdade, a expansão dessa heresia pegou toda a
cristandade de surpresa. Diz a respeito o padre Shannon que, "por estranho
que possa parecer, a própria Igreja no Ocidente tinha pouca experiência em
tratar com seitas heréticas grandes e organizadas" [5]. Um longo caminho,
pois, deveria ser percorrido até que se encontrasse a solução adequada para
esse dilema.
Começou-se com a instituição da chamada Inquisição episcopal, a qual
pretendia remediar o problema com visitas dos Ordinários locais às suas
dioceses. Esse primeiro apelo do Papa, no entanto, caiu "em ouvidos
moucos" e o plano, infelizmente, não obteve eficácia.

Depois, na primeira metade do século XIII, o sul da França conheceu


a Cruzada dos Albigenses (1209-1229). O número de cátaros na cidade de
Albi era muito grande, chegando a haver muitos senhores feudais adeptos da
heresia. Por isso, o Papa Inocêncio III († 1216) convocou uma cruzada, cuja
finalidade principal seria substituir os nobres que viviam no sul por
governantes mais ortodoxos. A controversa iniciativa foi um novo fracasso.

A Inquisição papal. – Só sob o reinado do Papa Gregório IX († 1241)


instituiu-se finalmente a Inquisição pontifícia. Colocados a encargo dos
dominicanos, os tribunais do Santo Ofício evitaram que milhares de pessoas
morressem. Os frades da recém-fundada Ordem dos Pregadores, além do
conhecimento teológico, julgavam as pessoas com prudência e misericórdia,
dando-lhes a possibilidade de se converterem – coisa que não acontecia,
absolutamente, em nenhum tribunal civil.

Ao chegar a uma região, os inquisidores proclamavam um "tempo de graça" e


ficavam ali por vários dias, expondo às pessoas a verdadeira fé. A primeira
etapa do processo consistia, portanto, na persuasão. Diante da pregação dos
dominicanos, que falavam com eloquência e sabedoria, um grande número de
pessoas se apresentava aos frades, assumia os seus erros, pedia uma
penitência e voltava para o seio da Igreja. Eram recolhidas também denúncias
e acusações, as quais eram devidamente averiguadas e julgadas diante de
um grupo de testemunhas.

Depois das investigações, algumas pessoas realmente eram punidas com a


morte. Importa considerar, porém, que, no direito medieval, a pena capital era
aplicada para inúmeros crimes. Santo Tomás mesmo alude ao fato de que os
falsificadores de moedas eram condenados à morte pelos príncipes seculares
[6]. Então, a Igreja não inventou a pena de morte. O que ela fez foi tomar para
si o julgamento das heresias, a fim de evitar injustiças.

Vale destacar, também, que o número de condenações capitais nos tribunais


eclesiásticos era ínfimo diante da facilidade com que se matava os réus na
justiça comum. Notório é o comentário do filósofo e jornalista Roman Konik.
Ele diz que:

"Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos


bandidos comuns que, surpreendidos pela polícia no ato de violação, de
roubo, de assalto à mão armada, rapidamente inventavam uma motivação
religiosa para explicar o seu procedimento. Por quê? Simplesmente para cair
na esfera da justiça da Inquisição e não da justiça civil ou temporal. Pois a
justiça inquisitorial garantia pelo menos uma investigação, em vez da pena de
fogueira imediata, a qual – como a pena de morte ou o decepamento da mão
– não foi absolutamente invenção dos inquisidores." [7]
Abusos. – Houve, sim, abusos na história da Inquisição. Tome-se por
exemplo o caso de Roberto Búlgaro, o inquisidor que foi tirado de seu cargo e
punido pela Igreja, por sua má conduta.

Na verdade, os maiores abusos ocorreram quando o Santo Ofício foi deixado


sob a égide do poder local, como aconteceu no processo de Santa Joana
d'Arc († 1431), já no final da Idade Média. Na ocasião, a donzela de Orléans
foi injustamente condenada. O fato de, hoje, ela ser venerada como santa
católica e padroeira da França, só sinaliza a consciência que a Igreja tem dos
erros de seus filhos. Em seu caso, porém, o poder religioso não passou de
um "joguete" na mão do poder secular, que "forçou a mão" dos eclesiásticos
para condenar a jovem francesa. Também esse episódio serve de lição para o
nosso tempo: mostra como a Igreja deve estar livre das amarras políticas, a
fim de cumprir adequadamente a sua missão civilizatória e evangelizadora.

As universidades
Bolonha, Oxford, Paris, Salamanca... Todas as grandes universidades da
Europa são filhas da Igreja Católica. Mas você sabe o que realmente
representou a fundação das universidades para a história humana? Como era a
educação na Antiguidade e começo da Idade Média? O que o sistema
universitário realmente trouxe de novo às pessoas?

Nesta aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, Padre Paulo Ricardo
faz uma viagem pela história da educação e mostra como essa fundação tão
prestigiada da Igreja acabou se voltando contra sua própria mãe.
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Para fazer um juízo abalizado a respeito das universidades – as quais são
comumente apresentadas como uma grande façanha da Igreja Católica [1] –,
é importante adentrar a área da educação e retroceder alguns séculos na
história. Só assim se pode compreender o que significou realmente a sua
criação.

Na Idade Antiga, foi a civilização grega que se aperfeiçoou em matéria


educacional, muito embora os gregos nunca idealizassem uma educação
para todos, mas restringissem a formação intelectual a uma parcela ínfima da
sociedade. A primeira escola fixa, tal como é entendida hoje, surgiu com
Pitágoras († ± 500 a.C.), discípulo de Tales de Mileto († ± 557 a.C.). Nessa
tradição, surgiram depois a Academia de Platão († ± 348 a.C.) e o Liceu de
Aristóteles († 322 a.C.). Nelas, as pessoas entravam para se educar pelo
resto de suas vidas, sem se preocuparem com diploma ou graduação. (Nessa
época, o ensino de medicina, arquitetura e outras profissões mais técnicas
era feito diretamente com os profissionais dessas áreas.)

Paralelamente a esse fenômeno, a democracia ateniense via nascer também


o ensino da retórica. Diferentemente das escolas filosóficas, as quais eram
permanentes e tinham como fim a busca da sabedoria, os grupos de oratória
eram montados para formar as pessoas para a vida política. Ao invés de
aprender a filosofia para buscar a Verdade, elas aprendiam a oratória para
governar o povo. Desse grupo, extremamente preocupado com a
argumentação e com o uso das palavras, nasceram os sofistas.
Especializados na arte da linguagem, esses homens começaram a ensinar às
pessoas gramática, lógica e retórica, campos que posteriormente foram
designados sob o nome de trivium. Nas escolas filosóficas, por sua vez, eram
ensinadas as artes da música, da aritmética, da astronomia e da geometria –
designadas depois sob o termo quadrivium. Era só depois de passar pelas
"sete artes liberais" que se partia ao estudo da verdadeira filosofia.

Com o advento do Cristianismo, esse esquema permaneceu praticamente o


mesmo, com as seguintes (e importantes) diferenças: (a) nas "escolas
monásticas" e "escolas catedrais", a filosofia propriamente dita deu lugar ao
estudo da teologia e das Sagradas Escrituras (a questão do "diploma"
continuava não tendo nenhuma importância); e, (b) dado que a santidade e a
sabedoria estavam intimamente unidas entre si e considerando que Nosso
Senhor pediu que se anunciasse o Evangelho "a toda criatura" (Mc 16, 15), a
educação cristã não se podia mais reservar a uma "elite", devendo abarcar
todas as pessoas. Consequência inevitável da "vocação de todos à santidade
na Igreja" [2], a sabedoria era um programa universal: todos deviam ser
sábios, porque todos deviam ser santos. Assim, quem quer que se dedicasse
integralmente a uma formação intelectual devia buscar uma incessante
conversão pessoal.

Nas escolas cristãs medievais, as pessoas também deviam combater as duas


principais feridas do gênero humano, decorrentes do pecado original:
a vulnus ignorantiae, que atinge o intelecto, e a vulnus malitiae, que atinge a
vontade [3], afinal, é com essas duas potências que o homem se pode elevar
a Deus, conhecendo-O, com a sua inteligência, e amando-O, com o seu
querer [4].

Tome-se como exemplo dessas escolas a Abadia de São Vítor [5], fundada
no século XII, por Guilherme de Champeaux († 1121), nos arredores de Paris.
Foi dela que surgiu o grande Hugo de São Vítor († 1141), elogiado por São
Boaventura como o maior dos teólogos [6].

No século XIII, com a redescoberta da filosofia de Aristóteles e a sua inserção


no curriculum das escolas, os professores começaram a se reunir numa
espécie de "cooperativa", que foi chamada de universitas
studiorum ("universidade de estudos"). Nesse ambiente, ainda se buscavam a
sabedoria e a santidade de vida. Quando, porém, se fez o estatuto da
Universidade de Paris, incluiu-se nele algo que, a longo prazo, se revelaria
trágico: após os cursos, as pessoas deviam ganhar uma licentia
docendi ("licença de ensinar") – um equivalente do conhecido "diploma". Isso
fez com que as pessoas quisessem estudar não mais tendo em vista as
virtudes, mas tão somente um pedaço de papel.

Rapazes, ainda na flor da mocidade [7], saíam das universidades com seus
diplomas debaixo dos braços, autorizados a ensinar aos outros, sem se
preocuparem em aperfeiçoar a si mesmos ou cultivarem uma vida virtuosa. O
resultado disso foi que, desde o fim da Idade Média, o nível do conhecimento
começou a cair vertiginosamente. É do século XIV, por exemplo, o
nominalismo de Guilherme de Ockham († 1347) – que não passou de uma
ressurreição do sofismo – e é sob essa influência que o monge Martinho
Lutero († 1546) começará a Reforma Protestante, já na Idade Moderna.

Também no século XIII, presenciou-se o fenômeno dos goliardos, estudantes


que saíam das universidades e erravam nas tabernas, compondo poemas
eróticos e satíricos contra a Igreja. Sintoma da decadência dessa época, a
obra Carmina Burana, contendo muitos desses cantos, retrata a vida
indolente das tabernas [8]. Entregue ao vinho, às mulheres e à vida fácil, toda
uma geração viu decrescer, com o nível intelectual, a própria moralidade.

Com relação à universidade nos dias atuais, cabe um conselho: quem quer
realmente estudar não deve contentar-se com um diploma. O fim do homem
sobre a terra é tornar-se sábio, e isto não se consegue senão com uma vida
sobrenatural. Porque a graça divina ilumina o ser humano e faz com que ele
enxergue a realidade através da fé, para muito além da luz natural da razão.
É o que explica a magnitude de um Hugo de São Vítor, de um Santo Tomás
de Aquino († 1274) ou de um São Boaventura († 1274).

Objetivamente, o capítulo das universidades representou um regresso do


homem na busca da sabedoria. Isso não significa desprezar a importância
dessas instituições, mas mostrar que, para além do conhecimento e do
estudo meramente técnico, o homem foi feito para algo muito maior: a
contemplação e o amor da Verdade.

O Nominalismo de Ockham
Em meio às controvérsias filosóficas e disputas teológicas de que foi palco a
Idade Média, nenhuma corrente é tão importante para entender a decadência
intelectual de nossa civilização quanto o chamado "nominalismo".

Aventure-se conosco nesta 14.ª aula de nosso curso de História da Igreja


Medieval e descubra as raízes mais profundas da "ditadura do relativismo"
moderna.
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Em meio às controvérsias filosóficas e disputas teológicas de que foi palco a
Idade Média, nenhuma corrente é tão importante para entender o pensamento
moderno – e a decadência intelectual de nossa civilização – como
o nominalismo.

Antes do fenômeno das universidades, a Inquisição e a Ordem dos


Pregadores alcançaram tal êxito no combate à heresia albigense, que nunca
mais a humanidade ouviu falar do catarismo. Embora a doutrina gnóstica
sempre volte a fazer seus adeptos em algum momento da história, os sábios
medievais conseguiram debelar totalmente a visão religiosa dos albigenses,
mostrando ao mundo o poder das verdades reveladas por Deus. Quando,
porém, o século XVI conheceu a Reforma Protestante, nem o Santo Ofício,
nem a Companhia de Jesus, nem os sábios desse tempo conseguiram conter
a sua expansão. Como pode ser que o mundo tenha mudado tanto em tão
pouco tempo? Por que as pessoas conseguiam convencer as outras da
verdade na Idade Média, mas não mais na Era Moderna?

A resposta está no nominalismo, uma doutrina ressuscitada pelo frade


Guilherme de Ockham († 1347), segundo a qual a inteligência humana não
poderia ter acesso a verdades universais, estando o conhecimento humano
limitado à apreensão das realidades sensíveis. "O nominalismo nega a
existência de conceitos abstratos e universais e se recusa a admitir que o
intelecto tenha o poder de gerar esses conceitos. As chamadas ideias gerais
são apenas nomes (flatus vocis), meras designações verbais, que servem
para classificar uma coleção de coisas ou uma série de eventos particulares."
[1]

Para Ockham, "o conceito abstrato e universal é um sinal ( signum), também


chamado de termo (terminus), mas não tem nenhum valor real, uma vez que
o abstrato e o universal não existem de modo algum na natureza e não tem
nenhum fundamentum fora da mente. O conceito universal (intentio
secunda) tem como objeto representações internas, formadas pelo
entendimento, às quais nada correspondente no mundo externo pode
ser atribuído" [2].

Os nominalistas, portanto, não conseguem elevar-se para além das


impressões sensíveis que recebem dos objetos, levando ao extremo a frase
de Heráclito, segundo a qual "não nos podemos banhar duas vezes no
mesmo rio". Com tantas mudanças nas aparências da realidade, como dizer
que o que se conhece de alguma coisa corresponde exatamente ao que ela
é? Como afirmar que um cedro do Líbano e uma árvore retorcida do Cerrado,
com tantas diferenças em sua aparência, sejam ambas enquadradas no
conceito de "árvore"? Imobilizado pelas discrepâncias existentes no mundo
sensível, então, Ockham assume que os termos ditos "universais" não
passam de flatus vocis (sopros da voz).

Lançando um olhar à história da filosofia, é possível identificar ideias


semelhantes: (i) na Antiguidade, com os sofistas gregos, que pensavam poder
provar qualquer coisa por meio do discurso retórico; e (ii) na Idade
Moderna, com os filósofos empiristas e com Ludwig Wittgenstein, que cunhou
o termo "jogos de linguagem".

O grande problema desse tipo de pensamento é o relativismo que se segue à


sua assunção. Na filosofia tradicional, aquilo que o homem conhece tem certa
correspondência, ainda que imperfeita, com o mundo sensível. Se o que está
na mente humana não corresponde a nada na realidade, porém, o
conhecimento propriamente humano deixa de ser possível. Ao invés de partir
para abstrações superiores, o ser humano se limita a um conhecimento
animal, por generalizações.
Foi exatamente isso o que aconteceu na época de Guilherme de Ockham.
Como a sua geração não se conseguia elevar, ela fechou-se no mundo
sensível, reduzindo todo o conhecer do homem às realidades materiais.
Como eles mesmos, por conta de seu baixo nível intelectual, não conseguiam
atingir verdades universais, interpretaram que nenhum ser humano
conseguiria fazê-lo – mais ou menos como um paralítico que, não podendo
andar, assumisse que nenhum homem também o poderia fazer.

À época da fundação da Universidade de Paris, os professores universitários


ainda conseguiram refutar o nominalismo de Ockham. Alguns anos depois,
porém, dominadas pelo sensualismo de sua teoria, as gerações de
estudantes se foram corrompendo e o ensino universitário, divorciado do
mundo real, começou a decair vertiginosamente. As
grandes disputationesmedievais se transformaram em discussões inúteis, nas
quais as pessoas estavam preocupadas simplesmente com verborragias e
querelas linguísticas. Foi nessa escolástica decadente que se formou o
monge Martinho Lutero, em Wittenberg, e não é exagerado dizer que o
protestantismo é um dos frutos amargos da corrente nominalista. Alguns
séculos mais tarde, os empiristas ingleses proclamarão, do alto de sua
mediocridade intelectual, que "não há conhecimento fora da experiência
sensível": outro fruto podre da árvore de Ockham.

Hoje, as pessoas carimbaram as realidades "abstratas" como ilusórias ou


irreais (quando era justamente por meio das abstrações que os sábios e
místicos medievais conseguiam contemplar a verdade das coisas). Deitam-se
aqui as raízes da "ditadura do relativismo", a qual o Papa Bento XVI
condenou com tanta veemência antes e durante o seu pontificado [3].
Incapazes de elevar-se a abstrações superiores, próprias do conhecimento
humano, as pessoas deixaram de acreditar na própria verdade. Em um
mundo intelectualmente decadente, em que foram negadas as verdades
universais e a própria capacidade humana de conhecer, torna-se muito mais
difícil " errorem contra veritatem impugnare – impugnar o erro contrário à
verdade", como é a função de um sábio [4]. Só quando as pessoas saírem
dos limites de um diploma universitário e se dispuserem a estudar e meditar a
Verdade, as coisas poderão começar a mudar.

O cativeiro de Avignon e o grande cisma do Ocidente


Desentendimentos com o rei da França, 70 anos de exílio em Avignon e 40 anos
de cisma: os séculos XIV e XV, definitivamente, não foram os mais tranqüilos
para a Igreja. Mesmo nessa época difícil, porém, Deus suscita almas como a de
Santa Catarina de Sena para trazer luz ao papado e iluminar as almas.

Entre conosco na história conturbada do fim da Idade Média e conheça, nesta


15.ª aula de nosso curso, os eventos que prepararam o terreno para a Reforma
Protestante.
imprimir
O período histórico que marca a transição da Baixa Idade Média para a Idade
Moderna não foi "baixo" apenas no nome: a decadência que a Europa
experimentou no fim da era medieval atingiu todas as esferas sociais, desde a
política e a economia até a cultura e a própria religião.

Conflitos entre Estado e Igreja. – No intuito de se verem livres da ingerência


de poderes e famílias locais – consequência direta do sistema feudal –, o
Papa e os reis começaram a procurar por soluções que fortalecessem a sua
autoridade. Na Igreja, a reforma do clero e dos costumes, iniciada pela Ordem
de Cluny e impulsionada por São Gregório VII, ganhou consistência teológica
na pena dos intelectuais da nascente Universidade de Paris, trazendo maior
consciência do primado e da origem divina do papado. Na esfera secular, a
ascensão dos Estados nacionais começou a ganhar corpo e os estudos
jurídicos desenvolvidos na Universidade de Bolonha ajudaram a unificar o
direito civil e canônico.

Ditos esforços, todavia, trouxeram à tona o velho direito romano e, com ele,
todas as instituições pagãs ou abolidas ou aprimoradas pelo cristianismo. O
resultado foi uma sociedade profundamente religiosa arranjada por um
sistema completamente alheio à fé católica. As tensões entre o poder
sacerdotal e o braço real – amparado, agora, não só pela ganância do poder,
mas pelos novos intelectuais que faziam fama nas universidades – não
tardaram a fervilhar, atingindo o seu ponto culminante na virada do século
XIV, durante o pontificado do Papa Bonifácio VIII e o reinado de Filipe IV
(cognominado "o Belo"), rei da França.

Aconteceu que o príncipe francês – e neto de São Luís IX –, vendo o declínio


da economia de seu país, passou a cobrar impostos do clero. Como atentava
contra os direitos da Igreja, a medida insólita de Filipe foi duramente reprimida
por Bonifácio, dando início a um conflito entre a Santa Sé e a monarquia
francesa. Filipe, no entanto, não era o único desafeto do Pontífice Romano.
Desarranjos com a família italiana de Colonna constituíram ocasião para que
alguns cardeais lançassem suspeitas sobre a sua idoneidade e até sobre a
sua eleição. Cabe lembrar que o seu predecessor, São Celestino V, havia
renunciado ao sólio pontifício e, àquela altura, com interesses políticos em
jogo, não era difícil que se levantassem suspeitas levianas acerca da validade
do seu pontificado. A corte francesa deu crédito a essa história e começou a
fazer acusações contra o Papa Bonifácio VIII, uma mais insensata que a
outra, dizendo que ele era simoníaco, herege e até que fazia bruxarias.

Filipe, o Belo, porém, foi mais longe: convocou um concílio para depor o
Sumo Pontífice. Não conseguindo cumprir o seu intento, ele mesmo mandou
as suas tropas para a cidade de Anagni, onde se encontrava o Papa, a 7 de
setembro de 1303, e exigiu a renúncia pontifícia. Com os franceses,
encontravam-se membros da família Colonna, que, ante da resistência de
Bonifácio, insultaram-no e ameaçá-lo, em um episódio chamado Atentado de
Anagni. Mesmo com o povo conseguindo libertar Bonifácio das mãos de seus
perseguidores, o Papa, debilitado, não reinou senão por pouco mais de um
mês. A 11 de outubro de 1303, a Sé estava vacante. Alguns diriam que
Bonifácio VIII teria morrido de desgosto.
O cativeiro de Avignon. – Após a rápida e misteriosa morte de seu sucessor,
Bento XI, o conclave para eleger o novo Papa não conseguiu livrar-se das
influências da monarquia francesa: reunidos em território gálico, os cardeais
escolhem um francês, arcebispo de Bordeaux. Clemente V não só decide ser
coroado em Lyon, na própria França, como estabelece o seu trono na cidade
de Avignon, dadas as circunstâncias políticas desfavoráveis na Itália. A
decisão do Papa tinha caráter evidentemente temporário. Não havia por parte
de Clemente o animus manendi, i.e., a intenção de fixar residência em
Avignon. Com um território relativamente independente e o agravamento da
confusão na Cidade Eterna, todavia, o que deveria ser uma solução
passageira acabou se estendendo e, durante mais de 70 anos, com um
colégio cardinalício majoritariamente gálico – "em cento e trinta cardeais
criados entre 1305 e 1376, não haverá menos de centro e treze franceses" e
"por seis vezes estes cardeais franceses elegerão Papa um dos seus" [1] –, a
Igreja viverá o que ficou conhecido como o Cativeiro dos Papas em
Avignon (1309-1376). A expressão, retirada de um soneto do poeta
Francesco Petrarca [2], aludia ao exílio do povo de Israel na Babilônia (587
a.C. – 517 a.C.) e ilustrava a submissão da Igreja aos interesses da
monarquia francesa, bem como o descontentamento geral dos católicos com
aquele estado das coisas.

Dos Pontífices que sucederam Clemente V, alguns manifestaram claramente


o desejo de voltar a Roma. Urbano V chegou a fazê-lo, em 1367 – já movido
pela insistência de Santa Brígida da Suécia e Santa Catarina de Sena –, mas,
devido às dificuldades existentes no Estado Pontifício, acabou voltando para
a França, em 1370. Só seis anos depois, com Gregório XI, finalmente foram
ouvidos os conselhos dessas santas mulheres. Surtiram efeito, afinal, as
inúmeras cartas de Catarina, pedindo expressamente que o Papa fosse viril
[3] e retornasse a Roma. Em 1376, terminava o exílio dos Papas em Avignon.

O grande cisma do Ocidente. – Com a morte de Gregório, em 1378, o pavor


tomou conta da Cidade Eterna. Temia-se a eleição de um Papa francês e a
volta da cúria para a cidade de Avignon. A instabilidade era tanta, que o povo
chegou a invadir o recinto em que acontecia o conclave. Em meio à confusão,
por falta de um candidato melhor, escolheu-se Bartolomeo Prignano,
arcebispo de Bari, o qual tomou o nome de Urbano VI.

A princípio, não houve nenhum problema com a sua eleição: Urbano tomou
posse e foi coroado alguns dias depois. O seu espírito irascível, porém, não
demoraria a arranjar desentendimentos. Durante um consistório, o Papa
chegaria ao cúmulo de esbofetear um cardeal em público, aumentando ainda
mais a tensão que já existia no colégio cardinalício. Mais tarde, seu
temperamento iracundo faria Santa Catarina de Sena suplicar-lhe, "por amor
de Cristo crucificado", que ele moderasse as suas paixões. " Mitigate un poco
per l'amore di Cristo crocifisso quelli movimenti sùbiti, che la natura vi porge"
[4], ela escrevia.

O cisma, porém, era iminente. Reunidos em Anagni, alguns cardeais


descontentes com Urbano VI elegem um antipapa: Roberto de Genebra, o
mais odiado pelo grupo italiano. Não obtendo êxito em saquear a cidade de
Roma e tomar o poder pontifício, Roberto, agora Clemente VII, volta para
Avignon, dando início a fatídicos 40 anos de cisma – o Grande Cisma do
Ocidente (1378-1417). Por todo esse tempo, a Igreja ficou tragicamente
dividida: fiéis e povos inteiros aderiram à obediência de Roma e outros tantos
se alinharam ao partido de Avignon. Hoje, com a distância dos
acontecimentos e o avanço das pesquisas históricas, está bem claro que o
Papa legítimo era o residente na Itália. À época, entretanto, nem os santos
escaparam da confusão. A eminência de um Vicente Ferrer, por exemplo, não
impediu que ele se enganasse e desse apoio ao antipapa de Avignon.

Para restabelecer a unidade ao povo cristão, os cardeais decidiram convocar


um concílio. A intenção era depor os dois papas e eleger um novo. Todos os
bons teólogos da época sabiam, todavia, que nenhum concílio poderia depor
um Papa. No dizer de um famoso adágio, " prima Sedes a nemine iudicatur –
a Sé primeira não é julgada por ninguém" [5]. Era de Guilherme de Ockham
– o mesmo que deu início ao nominalismo – a ideia de que um concílio teria
supremacia sobre o poder papal. Também Filipe, o Belo, acenava a essa
teoria quando quis convocar um concílio para depor Bonifácio VIII. Essas
pretensões são a semente do que, mais tarde, será a heresia do
"conciliarismo". O fato é que, reunidos na cidade de Pisa, em 1409, os
cardeais não só não conseguiram solucionar o problema do cisma, como este
degenerou em uma "infame tríade": a Gregório XII e Bento XIII ajuntou-se
mais uma cabeça, Alexandre V. A confusão duraria por mais cinco anos, até
que os antipapas João XXIII e Bento XIII fossem depostos no Concílio de
Constança (1414-1418) e, em 1417, se elegesse o Papa Martinho V, o qual
pôs termo a um cisma que se arrastava por longas quatro décadas.

Como consequência dessa grave crise, que colocou em xeque a soberania do


poder pontifício e a própria unidade do povo cristão, figura o desenvolvimento
das teses conciliaristas, as quais serão cada vez mais constantes na história
subsequente da Igreja, encontrando seus defensores ainda nos dias atuais.
Ajuntem-se a isso a decadência do ensino universitário, a corrupção
generalizada dos costumes, a morte de inúmeros bons sacerdotes pela peste
negra e a ascensão do movimento renascentista – que fez ressuscitar a
cultura pagã –, e eis o terreno da história preparado para uma revolução. Já é
possível ouvir a Reforma Protestante batendo à porta.

Para entender o Renascimento


Pior que o paganismo de quem não conhece a Deus é tornar-se pagão depois
de ter conhecido a verdade de Cristo, como um cão que volta ao próprio vômito
ou uma porca que torna a revolver-se na lama.

Nesta e penúltima aula de nosso curso de História da Igreja Medieval, conheça


os fatos históricos que culminaram no Renascimento. Por que foi a Itália o berço
desse movimento? Como a cultura e a educação pagãs voltaram a florescer em
plena civilização cristã?
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Depois de examinar as consequências civilizacionais da epidemia de peste
bubônicaque eliminou mais de um terço da população da Europa, cabe tratar,
nesta aula, outras razões que levaram ao surgimento da Renascença –
causas que ajudam a entender a própria natureza desse movimento
sociocultural.

A primeira delas é uma particular organização política que se deu na região


norte da Itália, durante a Baixa Idade Média.

Neste período, o território hoje correspondente à Itália encontrava-se dividido


em três regiões independentes: no sul, estava o Reino de Nápoles, que
acabou sendo anexado ao governo espanhol; no centro, os Estados
Pontifícios, governados pelo Papa; e, ao norte, uma porção de principados –
os quais, teoricamente, pertenciam ao Sacro Império Romano-Germânico,
mas, na prática, gozavam de uma autonomia peculiar em relação ao resto do
Império.

Geograficamente isoladas, pelos Alpes, e economicamente autossuficientes,


graças a um comércio cada vez mais frequente com o Oriente, os príncipes
dessa região detinham um poder político absoluto em relação a seus
habitantes. A sua autoridade, porém, não estava baseada na sucessão
hereditária ou na eleição popular, mas tão somente no direito da força.
Duques, marqueses e príncipes ascendiam ao trono pelo uso da violência e
eram sucedidos, não por seus filhos legítimos, mas por quem possuísse
poderio político e militar para continuar a governar. Tal estado de coisas não
permitia a formação de um exército recrutado entre o povo e inflamado de
amor à pátria. Quem sustentava o poder eram os condottieri, guerreiros
contratados para matar e que, por suas habilidades, não deixavam de
constituir outra ameaça às frágeis administrações locais. Mais do que os reis,
portanto, o que reinavam eram as invejas, as inseguranças e os conflitos.

Tal clima de instabilidade era agravado por uma desordem generalizada do


apetite concupiscível: cresciam nos palácios as infidelidades e o número de
filhos fora do casamento, como relata o historiador Ludwig von Pastor:

"Talvez o pior dos lados sombrios dos italianos desta época foi a
desonestidade conjugal. Não há dúvidas de que a imoralidade fez terríveis
progressos em todas as grandes cidades e mesmo em muitas das pequenas
na época do Renascimento. As mais grosseiras desordens eram muito
freqüentes, principalmente entre as pessoas instruídas e de elevada classe. A
ilegitimidade dos filhos já não se considerava uma mancha, de maneira que
quase não se fazia mais diferença entre os filhos bastardos e os filhos
legítimos. Mesmo havendo honrosas exceções, a maioria dos príncipes
italianos do Renascimento estavam demasiadamente contaminados pela
corrupção moral.

(...)

"Quando o Papa Pio II visitou a cidade de Ferrara, em 1459, ele foi recebido
por sete príncipes, dos quais nem sequer um havia nascido de matrimônio
legítimo." [1]
Toda essa confusão política ao norte da Itália é o que explica, em parte, outro
fator importante para o desenvolvimento da Renascença: o florescimento da
cultura e da educação pagãs. De fato, em uma região com constantes
disputas de poder, frequentemente vencidas à base do medo e da violência,
demonstrações de virtù e de habilidade são muito importantes para que um
príncipe se afirme politicamente e construa em torno de si uma aparente
legitimidade. Foi o que começaram a fazer os governantes do norte da Itália,
que passaram a investir maciçamente na produção artística.

O que eles buscavam representar, contudo, não era a Beleza para iluminar a
inteligência, mas os exageros estéticos para impressionar os sentidos: nas
obras de arte, predominava o virtuosismo; na arquitetura, o luxo; nas obras
literárias, o exagero das formas. Tudo – novamente – não para buscar o Bem,
a Verdade ou a Beleza, mas simplesmente para fazer valer a fama, a vaidade
e a ostentação. Os palácios do norte da Itália chegavam a ser mais suntuosos
que as próprias cortes da França ou da Espanha, responsáveis pelo controle
de regiões muito maiores do continente europeu.

Quem eram, porém, os artistas responsáveis por essa efervescência cultural?


De um lado, havia os acadêmicos de Direito da Universidade de Bolonha,
contagiados pela descoberta do Codex Iuris Civilis, de Quintiliano, e
hipnotizados pelas instituições pagãs do Império Romano. De outro, estavam
os estudiosos do Oriente, que fugiam da invasão muçulmana ao Império
Bizantino e se abrigavam às asas dos príncipes renascentistas. Os
conhecimentos que eles tinham da língua grega e os manuscritos antigos que
eles portavam consigo ajudaram a criar um verdadeiro fascínio pela literatura
pagã – ao lado de um crescente desprezo pela filosofia escolástica, cuja
simplicidade das formas passava a impressão de uma escola muito arcaica e
inferior àquela que agora se vislumbrava. O resultado disso foi o cultivo de um
pensamento eminentemente pagão, de modo que se pode dizer, em termos
pobres, que a Renascença não foi nada mais que um ressurgimento do
paganismo.

Pior do que ser pagão, todavia, é tornar-se pagão depois de ter


conhecido a verdade de Cristo. Foi o que aconteceu ao homem do final da
Idade Média. Os humanistas Petrarca e Bocaccio, por exemplo, eram homens
de convicções cristãs, mas, infelizmente, se deixaram levar pela literatura
pagã antiga e, ao invés de ascenderem aos conhecimentos superiores –
notadamente, à contemplação da Verdade, de que fala Sto. Tomás –,
restringiram-se às matérias do trivium – permanecendo até o fim de suas
vidas naquele estágio juvenil de que fala Platão, no qual se é incapaz de fazer
verdadeira filosofia [2].

O fato é que o Renascimento não ficou circunscrito àquela região do globo. A


ação do Papa Nicolau V, aliada à invenção da imprensa, fez com que as
ideias que estragavam o norte da Itália se espalhassem também pelo resto do
mundo ocidental. É o que veremos na próxima – e última – aula deste curso.
História da Igreja Medieval
Um humanista no trono de São Pedro
Às portas da Idade Moderna, é eleito o Papa Nicolau V, cujas decisões
controversas influenciarão para sempre a história seguinte da Igreja e do mundo.
Qual foi a sua importância para a restauração de Roma e para o Papado? Como
o Renascimento saiu do norte da Itália e se espalhou pelo resto da Europa?

Nesta última aula do curso de História da Igreja Medieval, revisite os desastres


do passado e descubra quais são as consequências de uma Igreja que prefere
ficar de mãos dadas com o mundo pagão a anunciar a verdade de Cristo a todos
os povos.
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Roma caindo aos pedaços. – No começo do século XIV, a cidade de Roma
quase não tinha atrativos aos olhos. Sem uma vida comercial ativa e sem
agricultura de subsistência, a antiga capital do Império Romano sobrevivia
quase que exclusivamente das rendas da Igreja, cuja sede ela abrigava. A
transferência do papado para a França e o subsequente cisma do Ocidente,
no entanto, pavimentaram o caminho para a pobreza e a desordem política.
Tolhida de sua única fonte de sustento, a Cidade Eterna foi praticamente
abandonada, ficando refém dos ardilosos conflitos políticos entre duas
importantes famílias da época: os Colonna e os Orsini.

Foi só com a eleição do Papa Martinho V que as coisas começaram a mudar


de rumo. Eleito no ano de 1417, o novo Pontífice, membro da família Colonna,
tratou de articular a sua volta à cidade de Roma. Como a situação política da
cidade não oferecesse segurança, Martinho começou governando a Igreja
desde fora e, depois, preparou o terreno para a sua vinda, favorecendo a sua
família com vários cargos na Cúria Romana. Com a situação estável,
finalmente o Papa pôde voltar à Cidade Eterna.

Com a morte de Martinho, no entanto, sucedeu-o Eugênio IV, um homem


absolutamente intransigente e avesso ao nepotismo. Tão longo ascende ao
sólio pontifício, o novo Papa começa a retirar os cargos dos familiares de seu
antecessor. A sua atitude é o estopim para uma rebelião. Armado de paus e
pedras, o povo romano obriga Eugênio a fugir da cidade de Roma. O Pontífice
procura refúgio em Florença, centro do Renascimento, de onde passa a
governar a Igreja.

Um humanista no trono de São Pedro. – Entra em cena, então, a figura de


Tomás Parentucelli, um homem cristão, mas, ao mesmo tempo,
profundamente atraído pelo ideal da Renascença. Pouco depois de concluir
seus estudos de Teologia em Bolonha, esse jovem estudante é escolhido pelo
santo arcebispo da cidade, o beato Nicolau Albergati, como seu secretário. A
proximidade entre Eugênio e Nicolau, aliada a uma séria de circunstâncias,
faz com que Tomás termine ascendendo ao trono de S. Pedro, no ano de
1447. Para homenagear o seu mestre e benfeitor, Parentucelli toma o nome
de Nicolau. É o quinto da história da Igreja.
O juízo de seus contemporâneos atesta a bondade de Nicolau V: um Pontífice
"franco, reto, sincero, inimigo de qualquer fingimento e adulação", como
atesta o historiador Ludwig von Pastor [1]. Foi durante o seu pontificado – e
graças ao sucesso impressionante do Ano Santo de 1450 – que se deu início
aos grandes projetos arquitetônicos na cidade de Roma, como, por exemplo,
a reestruturação da Basílica de São Pedro. Todos os empreendimentos de
seu governo foram realizados por amor à Igreja e ao sólio pontifício, conforme
observa o mesmo Pastor:

"O plano de Nicolau era fazer de Roma, centro da Igreja, um foco da literatura
e das artes, uma cidade de monumentos esplêndidos, possuidora da melhor
biblioteca do mundo, de modo a assegurar na Cidade Eterna um lar
permanente para o Papado.

É de essencial importância que os motivos do Papa para tal empresa sejam


corretamente apreciados. Ele próprio os declarou, no discurso em latim que
endereçou aos Cardeais reunidos diante de seu leito de morte. Esse discurso,
preservado por seu biógrafo Manetti, é a expressão de seus últimos desejos,
e explica o fio condutor de todas as suas ações e o fim a que ele aspirava.

'Apenas os eruditos, que estudaram a origem e o desenvolvimento da


autoridade da Igreja Romana, podem realmente entender a sua grandeza', ele
afirma. 'Assim, para criar sólidas e estáveis convicções nas mentes das
massas incultas, deve haver algo que atraia a atenção dos olhos; uma fé
popular, sustentada apenas em doutrinas, será sempre débil e vacilante. Mas
se a autoridade da Santa Sé fosse visivelmente exibida em prédios
majestosos, monumentos imperecíveis e testemunhos que parecessem
plantados pela mão do próprio Deus, a fé cresceria e se fortaleceria como
uma tradição de uma geração a outra, e todo o mundo a aceitaria e
reverenciaria. Nobres edifícios, combinando bom gosto e beleza com
proporções imponentes, conduziriam imensamente à exaltação da cátedra de
São Pedro.'
(...)
'Se nós formos capazes de alcançar tudo o que almejamos, nossos
sucessores se verão mais respeitados por todas as nações cristãs e serão
capazes de viver em Roma com maior segurança, seja dos inimigos externos,
seja dos internos. Assim, não é por ostentação, ambição ou vaidade de
imortalizar o nosso nome, que nós concebemos e encomendamos todos
esses grandes trabalhos, mas para a exaltação do poder da Santa Sé em
toda a Cristandade, e a fim de que os futuros Papas não estejam mais em
perigo de ser expulsos, aprisionados, sitiados ou oprimidos de outras formas.'

Foi dito que o amor à fama constituiu o motivo preponderante a guiar Nicolau
em todas as suas ações, e que foi essa a verdadeira explicação para o
esplendor da sua corte, dos seus prédios, das suas bibliotecas e da sua
liberalidade para com os eruditos e artistas. Por essas palavras pronunciadas
às portas da eternidade, fica evidente que tal assertiva é falsa. Um homem de
cujo ódio a toda falsidade e hipocrisia tanto amigos quanto inimigos dão
testemunho, não teria mentido assim em seu leito de morte. Sem dúvida,
Nicolau não devia ter sido sempre e totalmente insensível às seduções da
fama, mas um desejo egoísta de sua própria glória nunca foi a sua principal
motivação." [2]
O paganismo entra na Igreja. – Documentos de valor histórico, portanto, não
deixam dúvidas sobre a sinceridade e retidão das intenções de Nicolau V à
frente da Igreja. O seu método, porém – exibir magnificência como
demonstração de poder –, fôra emprestado dos grandes déspotas
renascentistas do norte da Itália. Nicolau tinha consciência do risco de suas
ações: mesmo conhecendo a raiz pagã da Renascença, resolveu investir
nesse movimento artístico, acreditando que, talvez, trazendo os grandes
artistas renascentistas para o berço da Igreja, esta os evangelizaria,
cristianizando o Renascimento. O que aconteceu, no entanto, foi o movimento
inverso: foi a Renascença que paganizou os homens da Igreja, até que se
chegasse, por exemplo, à eleição de um Alexandre VI, cuja má conduta não
era senão um indicativo do espírito mundano que reinava no próprio clero da
época.

A essência desse problema, de fato, perdura até os dias de hoje. Trata-se da


mundanização da Igreja: os cristãos, que foram enviados ao mundo para
transformá-lo, para "impregnar, com as exigências da doutrina e da vida
cristã, as realidades sociais, políticas e econômicas" [3], estão sendo eles
próprios transformados pelo mundo, paganizados.

Enquanto isso, alguns pastores querem resolver a questão simplesmente


alterando a "fachada" da Igreja, como se tudo não passasse de um problema
estético. No tempo de Nicolau V, a solução parecia estar nos apelos à
sensibilidade humana: ante a pompa e a magnificência, as pessoas se
voltariam à fé cristã. Hoje, a grande ilusão está em criar um novo método
"pastoral", pretensamente mais "aberto" ao mundo: dá-se o "abraço da paz" e
espera-se a correspondência do mundo. Neste ínterim, agonizam a liturgia, a
espiritualidade e a moral católicas, enquanto se vai obscurecendo cada vez
mais a verdadeira missão da Igreja: fazer discípulos em todas as nações
e ensiná-las a observar tudo o que o Senhor ordenou aos Apóstolos
(cf. Mt 28, 19-20).

A revolução da imprensa. – O fato é que, nas condições em que se


encontravam a Europa até o ano de 1450, dificilmente o Renascimento se
espalharia para além das fronteiras da Itália. O espírito humanista estava
restrito a certos círculos intelectuais e artísticos e os meios de difusão de
ideias ainda eram muito precários. Até então, a cópia de livros era um projeto
muito trabalhoso, que poderia levar dias, meses e até anos. Transcrever a
Bíblia Sagrada em menos de um ano, por exemplo, seria uma façanha fora do
comum, impossível sem uma dedicação quase que integral.

Ao mesmo tempo, as bibliotecas eram um fenômeno de proporções


absurdamente menores que as de hoje: as maiores da Idade Média não
chegavam a possuir mil livros e, quando Nicolau V construiu em Roma uma
biblioteca com 1.300 obras, todos pensavam que já se tinha atingido o ápice
do acúmulo. Em um contexto desses, a literatura pagã não se teria
multiplicado e o movimento renascentista certamente teria morrido.
Do outro lado dos Alpes, no entanto, um homem chamado Johannes
Gutemberg inventa a imprensa, fato que constitui uma revolução quase que
sem precedentes na história da humanidade. Com meios de difusão muito
mais rápidos e fáceis, as obras intelectuais renascentistas passaram a
fervilhar em toda a Europa. Fosse inventada um século ou dois antes, a
imprensa teria feito correr livros muito diferentes, preocupados não com a
estética, mas com a verdade das coisas. A modernidade teria nascido da
genialidade de um Hugo de São Vítor ou de um Santo Tomás de Aquino. Ao
invés, o que se deu foi uma epidemia de paganismo e de vãs filosofias,
gozando de amplo prestígio e propaganda.

Disso nasceu a Idade Moderna.

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