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Universidade Federal de Goiás

Faculdade de Letras
Disciplina: Romance Brasileiro
Docente: Michael Silva
Discente: Nathália Mendes Silva
Matrícula: 201906530

O Quinze, de Rachel de Queiroz

Durante o século XX, mais precisamente no ano de 1915, o nordeste do Brasil


enfrentou um período de estiagem de proporções catastróficas para a região. A seca é um
fenômeno natural na Caatinga que se torna um desafio para a gestão política, econômica e
social, devido às suas consequências na agricultura e pecuária – que são as principais
atividades lucrativas da região. Com a degradação da agricultura pela redução da irrigação
e, em seguida, adoecimento e morte do gado pela falta de água e pastagem, muitas pessoas
migram para lugares menos afetados – especialmente para zonas urbanas. Tais migrações
ocorriam de tempos em tempos no aguardo da chuva, que era quando algumas famílias
voltavam para o sertão de origem. A arte regional brasileira representa bem esse fenômeno,
tanto da seca quanto das migrações, contando com músicas, filmes e literatura.
A literatura representou muito bem as mazelas vividas no Nordeste brasileiro
durante estes períodos, contando com grandes obras como a popular Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, que marcaram não apenas a literatura regionalista, mas a literatura
nacional como um todo. Outra obra de suma importância e que gerou certo burburinho em
seu lançamento – até anterior a Vidas Secas – foi O Quinze, de Rachel de Queiroz. De
linguagem objetivamente convergente à dura realidade do cenário, expondo a máxima da
seca através de várias possibilidades de ângulos, o romance chamou a atenção por narrar
de forma tão sincera aquilo que muitos tentavam fazer, ou pelo menos já haviam visto
exposto em outro lugar através de outros simbolismos – e, claro, por tanto ter sido feito por
uma mulher.
Rachel de Queiroz (1910-2003) nasceu em Fortaleza, no Ceará, e foi uma das mais
importantes autoras do século XX, estreando com apenas 19 anos justamente com O
Quinze. A jovem autora foi celebrada em seu primeiro lançamento e chamou bastante
atenção por ser uma mulher escritora. Considerando isso, nas críticas1 de O Quinze há
comentários como o de Augusto Schmidt – “(...) estive inclinado a supor que dona Rachel
de Queiroz fosse apenas um nome escondendo outro nome” – que demonstram a comoção
de uma publicação de autoria feminina. O mesmo crítico ainda comenta no mesmo texto:
Nada há no livro de dona Rachel de Queiroz que lembre,
nem de longe, o pernosticismo, a futilidade, a falsidade da
nossa literatura feminina. É uma criatura simples, grave e
forte, para quem a vida existe.

O emprego dos três adjetivos para descrever a genialidade do livro comparando-o


com outros romances, talvez mesmo de temas diferentes do tratado em O Quinze,
demonstram o desprezo que havia da crítica literária da época em relação à autoria
feminina, e revelam alguns traços do que pode ter feito a autora se destacar. Schmidt não
especifíca de quais obras se referia ao realizar a comparação, mas mais adiante reforça que
o romance é realista, sem “caráter panfletário” e “sem procurar concluir coisa nenhuma”.
Isto é, Queiroz apenas retrata a tragédia vivida na seca da forma como era, sem acrescentar
detalhes sentimentalistas ou elementos para além da pura vida e história, deixando somente
ao leitor a função de emocionar-se (ou não) diante da dura realidade.
Outro crítico importante que comentou a obra foi Mário de Andrade, que relembra
que a arte e, especificamente, a literatura usaram da estiagem como fonte de inspiração na
literatura regionalista, e, polemicamente diz: “deixem a seca como está porque se o
problema dela for resolvido, o brasileiro perde a mais bonita razão pros seus lamentos e
digressões caricativas”. A questão da seca foi o principal tema tratado pela literatura
regionalista, que teve seu auge justamente no século XX com O Quinze como destaque
junto à Vidas Secas. Entretanto, a seca não era propriamente apreciada com olhar de quem
busca algo belo mesmo que melancólico, como supõe Andrade, e o lamento dos afetados
por ela não tinham o mesmo teor de outros romances que tratam de outros temas diferente.
Como dito anteriormente por Schmidt, essas obras expressam nada além do que
representações de difíceis histórias vividas pela população nordestina durante o período de
estiagem, expondo as condições e dilemas vividos pelas comunidades rurais e de retirantes
do sertão.
Em relação à narrativa, a obra traz duas histórias paralelas, sendo estas a de
Conceição e Vicente; e de Chico Bento e sua família. Os primeiros são uma moça da

1
A fortuna crítica mencionada nesse trabalho está reunida na 119ª edição de O Quinze, impressa
em 2023 pela editora José Olympio.
cidade e um vaqueiro que vivem uma tensão romântica não resolvida. Os dois, juntos, são
padrinhos do filho de um dos funcionários da fazenda onde Vicente vive com a família,
que é Josias. Chico Bento, junto à sua esposa Cordulina e agregados, são dispensados da
fazenda junto com o gado quando os patrões percebem que a criação não iria resistir à
seca, e a família de trabalhadores se tornariam dispensáveis. Neste momento, eles decidem
partir de Quixadá, onde trabalhavam perto de Vicente, e migrar para a cidade, onde
Conceição era voluntária no “campo de concentração” de centenas de outros retirantes que
tomaram a mesma decisão.
A narração da dispensa dos trabalhadores junto às vacas e bois demonstra, de certa
forma, como eles eram vistos por seus empregadores e pessoas de hierarquias mais altas.
São colocados no mesmo nível que os animais da fazenda, e, se eles morrerão de fome e
sede, aqueles que os tratam e recebem por isso se tornam dispensáveis, mesmo que seja
para igualmente morrer de fome e sede da porteira para fora junto à criação. À medida em
que os animais na estrada vão emagrecendo, como a fraca burra que carregava as poucas
coisas da família de Chico Bento, as pessoas também começam a perder sua vitalidade. No
meio da estrada, eles encontram até mesmo homens preparando uma novilha morta
apodrecida pela doença para que sirva de alimento antes da chegada de urubus, e Chico
Bento, enojado, compartilha com os famintos com o que sobrava na miséria de seu grupo,
que repartiam tacos de rapadura e carne salgada.
– Por isso, não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação
salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros
urubus, que já é deles! Eu vou lá deixar um cristão comer
bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!
(p.49)

Chico Bento demonstra a fraternidade e misericórdia com a qual pessoas mais


abastadas não demonstravam para aqueles que estavam socialmente abaixo. Mais a frente,
na caminhada, já desolados pela fome e com Cordulina anunciando que se aproximava de
sua morte, Chico e o filho mais velho tentam abater uma cabra alheia para se alimentarem.
Entretanto, o dono da fazenda surge praguejando por conta da morte da criação e não dá
ouvidos às suplicas do retirante, xingando-o e jogando a cabra nos ombros. Em um ato de
humilhação, ele atira as tripas do animal no homem, dizendo que se quisesse se alimentar,
deveria ser daquilo, e ainda negou posteriormente água para que o sangue dos restos fosse
mínimamente lavado. Nessa noite, Pedro, o filho mais velho, desaparece do grupo sem
restar qualquer explicação para seu paradeiro – alguns supunham que após a humilhação,
ele foi embora durante a madrugada com outro grupo buscando uma vida melhor longe da
família, mas isso não é resolucionado.
Para o escritor e crítico Charles Baudelaire, a arte e literatura é verossímil com a
moral de sua época, isto é, reflete simbolicamente aquilo que os sujeitos buscam ser
(Baudelaire, 2006, p. 852-860). Então, observando o contraste entre as duas cenas onde em
uma Chico é a pessoa que oferece ajuda e na outra é a pessoa que precisa de ajuda,
podemos destacar traços morais da sociedade em relação ao preconceito social. Diante dos
mais abastados, os trabalhadores e retirantes são nivelados aos animais – que logo no início
são soltos para viver ou morrer na estrada para que não dessem prejuízo. Neste caso, até a
cabra morta foi alvo de pena, enquanto o homem e o menino famintos foram humilhados
com tripas sujas. Por outro lado, entre eles, conhecedores da mesma dor, repartem nem que
seja o último pedaço que rapadura para que um semelhante não tenha que passar pela
infâmia de comer restos podres. Queiroz faz uma crítica magistral à sociedade ao trazer
estes elementos em destaque no romance, principalmente pela forma sincera e realista que
são expostos, apenas lançados diante da realidade crua.
Prosseguindo, no longo trajeto a pé dos retirantes, o grupo começa a se desfazer aos
poucos. Primeiro, Mocinha, agregada da família que ajudou a criar os filhos de Cordulina,
consegue um subemprego em um dos locais em que pararam e por ali fica. Em seguida,
tragédias começam a ocorrer sucessivamente, começando pela fome assombrosa que
começa a assolar a família e acaba ceifando a vida de Josias, filho do meio, que,
desesperado para se alimentar, acaba por roer uma raíz crua de mandioca – que é venenosa.
Logo em seguida, vem o sumiço de Pedro. Quando enfim chegam na cidade, o filho mais
novo, “Duquinha”, ou Manuel, é entregue para sua madrinha Conceição para ser criado
dignamente. Pouco depois, o que sobrou da família parte para São Paulo, destino diferente
do almejado inicialmente, em busca de uma vida melhor, e não se tem mais nenhum
detalhe sobre o que possa ter acontecido com eles.
Ao começo, eles planejavam partir para o Amazonas, mas ao fim Conceição, os
encontrando no campo de concentração de retirantes onde ela prestava auxílios
humanitários, alertou que toda a terra pelo Nordeste e Norte se assolava pela falta –
d’água, de emprego e de oportunidade de viver. Então, ela mesma tratou prover para
mandá-los para São Paulo, terra onde se prometia prosperidade. O fenômeno migratório de
nordestinos para São Paulo ainda hoje é de grande importância para a história cultural da
região, que foi afetada pela grande densidade demográfica migratória em busca “das
oportunidades”; e também para a História nacional brasileira, visto que este êxodo no
século XX marcou o ápice das adversões provindas de questões climáticas e
socioeconômicas de algumas regiões em contraste com o desenvolvimento industrial de
outras regiões.
Durante toda essa narrativa, surgem detalhes sobre a condição desumana que os
retirantes enfretavam em suas migrações para fugir da fome e da seca. É possível ver o
fenômeno a partir de vários ângulos, já que Conceição, Vicente e Chico Bento são três
personagens que, apesar de conectados, vivem a situação sob condições diferentes,
permitindo que o leitor tenha várias óticas da realidade. Enquanto a família de retirantes
está imersa na consequente tribulação, Conceição observa os pesados frutos disso enquanto
trabalha nos auxílios dos retirantes chegados à cidade, e Vicente se lamenta da perda do
gado e da agricultura que pode condenar sua fazenda. Outra personagem que integra o
romance é Dona Inácia, avó de Conceição, que sai de sua fazenda onde morava sozinha
para ficar com a neta na cidade enquanto a chuva não dá os ares da graça.
Ao fim da narrativa a chuva finalmente vem, e Dona Inácia pode retornar para sua
casa no sertão. No trajeto de volta, sozinha, ela encontra “uma rapariga magra, suja,
esfarrapada – um dos eternos fantasmas da seca – [que] apertava ao colo um embrulho que
vagia e choramingava baixinho” (p. 147); e se surpreende ao ver que era Mocinha, sua
afilhada, que partiu junto a Chico Bento e sua família após serem dispensados. Ela conta o
desfecho de sua história, dizendo que passou de “mão em mão, cada dia pior” até chegar
no estado em que se encontrava, e agora com um filho recém nascido. Dizia não querer
voltar para o sertão por se sentir constrangida e humilhada por sua situação e preferia ficar
ali na Estação catando esmolas. Dona Inácia lhe dá dinheiro e alimento, e recomendou que
ela voltasse para sua terra, pois não queria ver a afilhada vivendo naquelas condições, e
partiu.
As consequências da seca, portanto, se estenderam para além dos graves problemas
da subsistência, e por isso é dito um problema, também, social. Muitos migrantes não
conseguiam retornar para seus empregos e lares de origem após o retorno das águas por
terem se submetidos a situações degradantes em nome da própria sobrevivência, e
posteriormente não conseguiam, por diversos motivos, reencontrar-se com suas memórias
anteriores à seca. Dona Inácia, por mais que se encontrasse em lugar de privilégio e
tentasse ajudar como podia, também demonstra outro lado de abalo ao encontrar seu lar
sem suas criações e tomado pelo mato; e da lamúria de viver diante de tanta mazela alheia
que, inevitavelmente, a afetava emocionalmente em seu lugar.
O pseudo romance entre Conceição e Vicente, por outro lado, tomam um espaço de
escape na narrativa. De frente a tanta tragédia, as interações emocionais entre os dois
primos parece um espaço onde a tragédia não habita – até mesmo por terem melhores
condições financeiras, por mais que Vicente tenha perdido todo seu gado, não chegariam
nem perto do amargor da realidade migrante. Ainda assim, há simbolismo na relação
proibida entre eles, pois Conceição é uma moça educada na cidade, por mais que preserve
suas relações com sua origem no sertão com a avó; enquanto Vicente é um vaqueiro
considerado socialmente inferior, e até mesmo comparado de forma grotesca com seu
irmão médico. É possível perceber que a proibição não vem apenas da relação familiar
entre eles, mas também da incompatibilidade social entre os dois, que gerava desconforto
nos demais. Isto é, o romance explicita que, de certa forma, as condições socioeconômicas
entre os sujeitos sempre vão guiar suas relações – em diferentes níveis e formas, mas
sempre presente.
Outro ponto sobre Conceição é que ela era dita como uma moça a frente de seu
tempo. Apesar do afeto sem sucesso, ela de qualquer forma não se preocupava com
casamento ou com formar uma família, se ocupando com sua carreira docente e com seus
livros em detrimento de outros cuidados. Ao adotar Duquinha, a jovem percebe o aflorar
da maternidade em si e é até mesmo provocada pela avó, que a zombava lembrando de
quando dizia que não seria boa mãe, e agora se dedicava aos cuidados de Duquinha – sem
alterar seu cotidiano para isso. A protagonista central se encontra nesse espaço, mas não
sem se permitir uma reflexão: ao ler um livro de empoderamento feminino enquanto o
menino brincava perto de si, ela ficou absorta na frase “e a eterna escrava vive insulada no
seu próprio ambiente, sentindo sempre que carece de qualquer coisa superior e nova…”.
Ela se pôs a refletir sobre a parte que é mencionado o ambiente, e murmura:
– É preciso criar seu ambiente… e até, no meu,
brinca uma criança…
Depois, encolhendo os ombros:
– É tão complexo isso de ambiente… Afinal…
Mas sei lá!
(p. 134)

Aqui, o ambiente pode ser alvo de reflexão das diversas situações que atravessam a
narrativa. Em O Quinze, a complexidade das relações humanas são desveladas diante da
seca, contando com riqueza de detalhes da realidade sertaneja da época expressas através
da linguagem. Rachel de Queiroz entregou à literatura regionalista e nacional uma obra
inestimável que se trata da tribulação e resiliência de um povo que não lhes restaram
muitas opções a não ser se adaptar ao trauma, adversidade e dificuldades, criando seu
ambiente. Essa reflexão final encerra a elaboração de todos os personagens que, mesmo
pertencentes à mesma comunidade, são de histórias e níveis sociais diferentes, mas todos
se recriando diante da complexidade de suas relações e afazeres.
Em conclusão, o romance de Rachel de Queiroz, através de uma prosa envolvente e
crua, nos traz a trama de uma comunidade cearense que enfrenta a devastadora seca de
1915, cujas vidas dos personagens são definidas a partir daí pelas condições dispostas a
eles diante de suas posições sociais. A complexidade de suas relações são guiadas ao longo
da narrativa abordando o amor, a perda, a sobrevivência e as decisões – todos guiando-os
por um caminho de resiliência, característica que, desde então, é marcante ao pensar na
identidade social do sertanejo nordestino.

Referências

Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Queiroz, Rachel de. O Quinze. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2023.

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