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Caderno de Experiências

Carla Adelina Craveiro Silva Marcelo Eduardo Leite


NORDESTE: A ARTE DO Jornalismo/UFCA Professor/UFCA
DESCOBRIMENTO NA carla.a.craveiro@gmail.com marceloeduardoleite@gmail.c
om
FOTOGRAFIA DE THOMAZ
FARKAS

1 Introdução 2 Trajetórias na análise da fotografia

No século XX, as inovações técnicas, iniciadas No processo de compreensão da mensagem


desde a segunda metade do século XIX, fotográfica, além das questões técnicas que a
culminaram na expansão do acesso à fotografia não envolvem, faz-se necessário que se considere a
só como um objeto cuja posse era desejada, mas relação entre o fotógrafo e a situação fotografada.
também como uma atividade que trazia uma Ao propor uma análise das imagens fotográficas
possibilidade de expressão antes restrita a deve-se considerar a importância da compreensão
fotógrafos profissionais. Desde o seu surgimento, do seu processo de criação, incluindo o
os estúdios de retratistas se destacaram, pois, para conhecimento dos seus preceitos técnicos e
estes, o tamanho dos equipamentos e a culturais e da relação entre o fotógrafo e o meio que
complexidade no manejo não se fazia um representa. Tais considerações são apontadas pelo
empecilho que inviabilizasse o fazer fotográfico. pesquisador Boris Kossoy em suas obras e são
Neles, as condições de luz e o espaço eram assumidas neste trabalho como bases teóricas.
manipulados para que os resultados agradassem ao Deter-se ao estudo relacionado à mídia é, também,
fotógrafo e aos clientes. Porém, fotografar em buscar compreender como se constroem suas
ambientes externos ainda era um desafio devido à mensagens. Independentemente da temática, tais
dificuldade de transporte dos instrumentos e, elementos são pistas que podem nos levar a
principalmente, pelo longo período de exposição entender as bases sobre as quais as expressões
que o processo necessitava, o que impossibilitava o comunicacionais repercutem uma determinada
registro de elementos móveis. situação na sociedade. Nos termos de Kossoy, a
Nesse contexto, o aparecimento do filme de rolo da fotografia resulta da associação de seus elementos
Kodak e a diminuição do tamanho das câmeras constitutivos e de suas coordenadas de situação. Os
determinam a melhoria técnica que viabiliza que primeiros seriam os elementos que proporcionam a
ambientes externos sejam retratados com maior efetivação do ato fotográfico, são eles: a tecnologia,
nitidez. O que não significa que esses ambientes o assunto e o fotógrafo. Os segundos constituem os
não fossem fotografados antes, porém, a partir componentes inerentes a qualquer imagem
desses avanços, a fotografia se apresenta sob novas fotográfica e que implicam a existência de um
possibilidades permeadas pela instantaneidade do contexto histórico do qual a fotografia não se
ato fotográfico e pela maior facilidade de transporte desprende, neste caso, trata-se do tempo e do
das máquinas que se somam à discrição e ao espaço nos quais o ato ocorre (KOSSOY, 1999, p.
improviso, então disponíveis ao fotógrafo. 25).
Consequentemente, o desenvolvimento da Kossoy defende que o fotógrafo faz da técnica um
fotodocumentação se intensifica. Tal prática se instrumento de articulação com seu repertório
assume como uma forma de registrar a realidade cultural constituindo assim uma representação da
tendo por objetivo captar imagens de lugares realidade, marcada pela direta interferência do
distantes, paisagens exóticas e situações fotógrafo e fruto de sucessivas escolhas que
conflitantes, e enfatizando o envolvimento de seu determinarão a mensagem construída na imagem
realizador com o tema abordado. Produções que se fotográfica (1999, p.30). Nesta perspectiva, faz-se
inserem nessa perspectiva são destaques do importante ao método de análise entrevistas, textos
trabalho de fotógrafos cuja atuação se deu críticos e materiais por meio dos quais a obra foi
principalmente no século XX. Entre elas encontra- publicada. Eles permitem que se conheçam
se a de Thomaz Farkas, húngaro-brasileiro que características pessoais e do trabalho do fotógrafo,
transitou por diferentes vertentes da produção além de detalhes do processo de elaboração da série
imagética. Ao voltar seu olhar para o Nordeste do fotográfica Assim, pelo cruzamento dessas
Brasil, Farkas produziu uma série de fotografias às informações, pode-se realizar a análise das
quais estão direcionadas as reflexões deste imagens.
trabalho, que tem por objetivo analisá-las e
compreender a forma como ele construiu sua visão
particular da região.

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3 Thomaz Farkas como símbolo de progresso para o país e que, no


entanto, é representado em suas fotografias de
Thomaz Jorge Farkas nasceu na Hungria e foi maneira a tensionar o contraste entre a exuberância
naturalizado brasileiro, país para o qual veio aos das obras e as condições de vida dos operários das
seis anos de idade. Desde muito jovem estava em construtoras, Farkas é o personagem que registra a
sintonia com os avanços técnicos, tanto por sua concepção da cidade sob perspectivas diversas,
ligação com a empresa de materiais fotográficos de além de lançar um olhar crítico sobre as situações
sua família, a Fotóptica1, como por seu contato com que encontra.
as novas propostas estéticas, por ser um dos mais O rompimento com o caráter mais artístico
atuantes membros do Foto Clube Bandeirante. apresentado nas imagens fotoclubísticas e os seus
Sobre os fotógrafos do movimento fotoclubista no posteriores trabalhos, desde as séries urbanas, que
Brasil, afirma Fernandes Júnior (2003, p. 142), datam meados de década de 50, até a série sobre
“[…] concretizaram uma atitude diferenciada na Brasília, realizado entre 1957 e 1960, inserem
produção fotográfica ao proporem a instauração de Farkas em um contexto de inquietação no cenário
novos conceitos para a prática da fotografia e a cultural brasileiro. Nesse sentido, ele se apresenta
busca de uma marca autoral em seus trabalhos.” como um observador que tem a liberdade de
Apesar de a sua iniciação no fazer fotográfico ter transitar por vários territórios, fazendo do domínio
ocorrido nesse ambiente, os trabalhos de Farkas da técnica e da sua inquietação intelectual um
apresentam fases diversas nas quais o discurso diferencial.
fotográfico transgressor é marcante. Ele não é Farkas teve contato direto com as vanguardas
abandonado, embora os cenários e as propostas artísticas da época. Nesse período, aproximou-se da
estéticas tenham mudado. concepção de expressão artística ligada à finalidade
O desenvolvimento de um discurso fotográfico social e preocupada em relatar um país que não
próprio, por meio do uso da técnica como forma de seria reconhecido por sua própria população, ideal
expressão que engloba múltiplos temas e incomuns que ganhou vigor com movimentos como o Cinema
composições, fez de Thomaz Farkas um fotógrafo Novo e a Tropicália. Seu trabalho vai, então, além
conhecido e premiado. Seus trabalhos foram do campo da fotografia. Ele passou a ter atuação de
expostos em salões nacionais e internacionais. Ele destaque na produção videográfica, na qual se vê
foi o primeiro a expor no Masp (Museu de Arte de sua inquietação sobre os temas brasileiros que, até
São Paulo) em um espaço exclusivamente então, não tinham sido relevados nas produções do
destinado à fotografia, em 1949. Porém, Farkas país. O marcante domínio da técnica na sua
distanciou-se da lógica de produção do Fotoclube. formação, aliado à atividade empresarial e ao clima
“Artista inquieto, em pouco tempo Farkas de movimentação político-cultural da década de 60,
abandonou o fotoclubismo para se dedicar ao além da experiência com o cinema, geraram a
cinema amador. Sua atividade como fotoclubista idealização de documentários cujo intuito era
estendeu-se somente até o começo da década de mostrar a cultura brasileira em toda sua
50.” (COSTA; SILVA, 2004, p. 43). diversidade. A finalidade era abordar aspectos
A partir desse processo de mudança, a fotografia de socioculturais de regiões cuja visibilidade era
Thomaz Farkas acentua uma característica que já escassa e que demonstravam, apesar da aparente
estava presente nos seus trabalhos, para Fernandes dimensão arcaica e desorganizada, construções de
Júnior, ele elaborou “[...] uma visão fotográfica sentido diferenciadas e simultaneamente
moderna trazendo para sua fotografia novos e importantes para o conhecimento da cultura
inusitados ângulos de tomada, cortes e brasileira.
aproximações geométricas de luz e sombra. (2003, Antes da ida a campo, os realizadores do projeto
p.146-147). São dessa fase as séries de Farkas sobre faziam pesquisas sobre o local que pretendiam
as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais, filmar levantando dados sobre suas questões
além dos cenários urbanos, estão presentes políticas, econômicas e culturais. Os documentários
fotografias de grupos de dança, especificamente de foram feitos entre 1965 e 1978, e, ao todo, são 51
balé, que se apresentavam nos teatros paulistas e filmes. (MACHADO; MASSI, 2006, p.140). Eles
cariocas. estão divididos em duas séries. A primeira foi feita
Outro de seus trabalhos relevantes é sobre a em preto e branco, mas o contraste causado pelas
construção e inauguração de Brasília. Se, nas séries imagens não agradou as emissoras de televisão.
urbanas, a fotografia se apresenta com o intuito de Segundo Farkas, as emissoras alegaram a presença
retratar a tensão causada pela dramaticidade do de muita miséria nos documentários2. A segunda
movimento e de salientar a construção série foi realizada em cores com a finalidade de
experimental — onde se mistura o registro do superar a dificuldade de veiculação enfrentada com
cotidiano das pessoas com a ênfase nas obras os primeiros documentários. O projeto inicialmente
arquitetônicas — nas imagens que retratam Brasília chamado de “A Condição Brasileira” ficou
seu trabalho se aproxima de um viés documental. conhecido como Caravana Farkas. Nele, atuaram
Nesta série, ao retratar um ambiente concebido cineastas como Paulo Gil Soares, Eduardo Escorel e

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Geraldo Sarno, entre outros profissionais. Os região” (2006, p. 101). Logo, a compreensão do
ambientes retratados vão desde a periferia carioca Nordeste pauta-se nas suas múltiplas realidades
até o interior do Nordeste. culturais, econômicas e sociais, e não na divisão
Nas suas declarações sobre a Caravana ele se define geográfica instituída, apesar de o fator físico ser
quanto ao seu papel nas produções: “Nunca me explorado com ênfase nas suas representações.
entendi como mecenas. Era uma ambição política A seca e suas conseqüências, as paisagens
fazer aqueles filmes. E evidentemente era época litorâneas, as manifestações religiosas, os ritos, as
para isso.”3 Esse projeto se mostra preocupado em danças e outras expressões culturais são temas
retratar, nos documentários, pessoas, usos e recorrentes quando o Nordeste é abordado. O que
costumes de um Brasil distante geográfica e não se constitui como um equívoco, exceto quando
socialmente dos centros urbanos instituídos como a postura diante dessa diversidade se instaura a
irradiadores culturais. Com relação à fotografia, partir de uma visão homogeneizada, marcada pela
pretende-se entender como tal inquietação gerou negação das diferenças e das contradições que essa
séries fotográficas que tenham o Nordeste como região abarca. A respeito da produção fotográfica
assunto; sejam elas contemporâneas à realização da brasileira, Angela Magalhães e Nadja Peregrino
Caravana ou posteriores. indicam:
Nesse sentido, buscam-se vestígios, na sua o Nordeste, como referencial
produção fotográfica, do Brasil por ele da obra de diversos fotógrafos
“redescoberto” por meio do cinema documental, contemporâneos, surge
mesmo considerando que a produção dos filmes foi, constantemente em diversas
produções, que enfocam desde
para Farkas, uma nova fase da trajetória. A
o emblemático ciclo das secas e
declaração de abandono da divulgação fotográfica dos retirantes nordestinos, até
para a dedicação ao cinema documentário não as tradições culturais e sociais
implica na inexistência de fotografias produzidas que se inscrevem de forma
durante essa fase. Em 2006, veio à tona uma série arquetípica na representação
de imagens do fotógrafo até então desconhecidas, fotográfica da experiência da
publicadas no livro Notas de Viagem, onde consta vida nordestina (1998, p. 245).
uma série de fotografias feitas por ele nos anos 70
(FARKAS, 2006). Esta série abrange os ambientes Sua série colorida produzida na década de 70 por
do Norte e Nordeste brasileiros. Assim, este Farkas se diferencia dos seus trabalhos anteriores.
trabalho analisará algumas dessas imagens feitas Não só pela exploração das cores, contrapondo-se
no Nordeste, buscando compreender como ele ao preto e branco predominante nos trabalhos
interpretou fotograficamente esta região, fotoclubistas e nas séries urbanas, mas pelo caráter
fomentando uma aproximação que evidencie suas fotodocumental das imagens. Pelo olhar que, ao
formas de representação na fotografia brasileira. mesmo tempo em que promove um
aprofundamento do que se sabe sobre uma
determinada realidade/situação, ainda está
4 O Nordeste na fotografia brasileira descobrindo-a, pois as imagens relatam uma
cultura até então desconhecida ou não explorada
Ao colocar-se diante de uma determinada realidade pelo fotógrafo.
o que o fotógrafo faz é expurgar suas impressões e
intenções por meio do registro fotográfico. Tal Trata-se, então, de reconhecer
nesse processo, uma dialética
registro se constitui, então, como produto das
que se estabelece entre o
internalizações das especificidades culturais de fotodocumentarismo e a
uma situação vivida por ele, um produto que devido cultura, reatualizada nas
a essa relação não se desprende de quem a imagens que circulam como
idealizou, do processo técnico que a viabilizou e de um traço da memória social.
tudo aquilo que é nela representado. A fotografia é Conseqüentemente, a
transgressora, pois através de uma construção fotografia documental passa a
extremamente individual pode-se tentar ser, também, um reflexo das
compreender os pressupostos dos discursos questões culturais
imagéticos e/ou textuais numa esfera mais ampla (MAGALHÃES; PEREGRINO,
1998, p. 245)
acerca do espaço e do período representado.
Quando proposta a análise da representação da
Assim, pensar o Nordeste fotografado é, também,
região Nordeste nas fotografias de Thomaz Farkas,
reconhecê-lo como um conjunto de manifestações,
entende-se o sentido da palavra região da forma
acontecimentos, ritos e falas, que, interpretadas
como coloca Albuquerque Junior: “Cada região é
pelos fotógrafos que neste universo mergulham,
esse conjunto de fragmentos imagéticos e
geram leituras desta mesma realidade. Se por um
enunciativos, que foram agrupados em torno de um
lado há pareceres pessoais nas fotografias, por
espaço, de uma ideia inicialmente abstrata de

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outro, delas emanam a força das realidades que segundo plano está desfocado e a imagem do
deste contexto emergem. sertanejo com um chapéu de couro próximo a um
galho espinhoso de uma árvore assume relevância
maior devido a isso. Do ponto de vista documental,
5 O Nordeste descoberto por Thomaz Farkas mostra a habilidade do homem que lida
cotidianamente com a situação de falta de água no
O olhar de Thomaz Farkas neste trabalho ambiente no qual está inserido, o que surge como o
fotográfico é antes de tudo, um exercício de foco da intencionalidade do fotógrafo.
partilha. Pois a forma como os elementos do campo
do visível são organizados, remetem o conjunto de Figura 2 – Detalhes da Cultura Sertaneja – Homem
imagens ao reconhecimento de um fotógrafo ainda rodeado de couro
em processo de descoberta do espaço, mas que, no
entanto, está ciente da necessidade de integração
com as pessoas e situações a serem fotografadas, e
assim o faz. As imagens desta série produzida nos
anos 70 são, nesse sentido, o resultado da troca de
experiência e da mútua valorização que se deu
entre o fotógrafo, o meio e as pessoas que o
constituíam.
Segundo Fernandes Junior, as fotografias de Farkas
feitas no Nordeste possuem características que
dialogam com o trabalho de fotógrafos como Anna
Mariani e Mario Cravo Neto, entre outros. Sobre a Fonte: FARKAS, 2006, s/ página.
série colorida a qual pertencem as fotografias a
seguir analisadas, o autor defende que: Na figura 2, há um sertanejo sem camisa apoiado
em uma corda na qual estão penduradas peças de
Farkas consegue antecipar couro para secagem. Ele usa um chapéu de palha e
uma totalidade de sua postura transmite a ideia de rigidez e cansaço
possibilidades visuais, que ao mesmo tempo. Por ser um homem magro, seus
décadas depois emergem por ossos estão visíveis e se destacam em relação a sua
partes, e em diferentes expressão facial que está recoberta pela posição de
trabalhos. Ele transita com seus braços. As peças de couro dão uma espécie de
fluência em várias alternativas
textura à fotografia, e, contrastam tanto com a
visuais, demonstrando em seu
olhar cultivado um especial vegetação no segundo plano quanto com o tecido
potencial criativo que soube jeans da calça que o homem está vestindo.
perceber e fotografar situações Cada espaço configura uma relação diferente do
ainda em estado latente e que indivíduo com o meio, nas imagens 1 e 2 Farkas
clamavam por visibilidade representa tais diferenças. Tanto a secagem de
(FERNANDES JR, 2006, p. couro quanto o conhecimento das plantas que
16). acumulam água em seu interior são formas de lidar
com a realidade na qual vivem. Sendo situações
Figura 1 – Detalhes da Cultura Sertaneja – Homem adversas ou não, essas representações de Farkas
bebe água
não são uma denúncia. Elas são a forma que ele
encontra de desvendar o território nordestino.

Fonte: FARKAS, 2006, s/ página.

As figuras 1 e 2 mostram detalhes da cultura


sertaneja, dando ênfase a peculiaridades da vida
das pessoas na região. Na figura 1 se vê
representado um homem que bebe água
proveniente da parte interna de uma planta. O
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Figura 3 – Retrato de músico da região do Cariri a partir de um processo de escolha que envolve uma
trama complexa entre o fotógrafo e a realidade
cultural que representa (KOSSOY, 1999, p. 27).

Figura 4 – Vendedores ambulantes

Fonte: FARKAS, 2006, s/ página.


Fonte: FARKAS, 2006, s/ página.
Desperta a atenção, na figura 5, o fato do primeiro
A figura 3 é um retrato de um músico da região do plano estar desfocado. Tal opção dá ênfase aos
Cariri. Ele usa uma camisa de cor clara, chapéu de elementos do segundo plano no qual estão três
palha e segura um instrumento, uma espécie de homens, apesar de haver outras pessoas na cena,
tambor artesanal. O músico parece estar em um nesta representação Farkas destaca uma situação
local mais elevado que as outras pessoas, algo como que pode ser comum para os que se encontram no
um tablado ou varanda. O segundo plano está espaço representado, mas para o fotógrafo se
desfocado, e a figura do músico está bastante apresenta como algo novo. Essa imagem apresenta
nítida, há uma ênfase em relação a ela. Outras uma característica desse trabalho de Farkas nesta
pessoas são representadas no momento, mas estas, série, a presença de interferências visuais,
que mostram rostos que denotam curiosidade, não elementos que na hierarquia de valor são menores,
estão totalmente nítidas. mas que na situação do ato fotográfico não havia
A representação do músico é o elemento visual que possibilidade de serem tirados e, então, são
se destaca na imagem, ela ganha um significado aproveitados por ele na composição.
próprio por meio da expressividade do personagem A vestimenta dos homens e a grande quantidade de
e da importância que lhe foi dada no registro. pares de óculos que um deles segura,
Apesar da existência de outros elementos, uma mão provavelmente por se tratar de um vendedor
que segura outro tambor, as pessoas, a casa no ambulante, trazem para a fotografia um teor
segundo plano, o que desperta o olhar é a figura inusitado. Esse registro feito no sul da Bahia traz a
dele. Sua postura é a de quem reconhece a razão percepção de que Farkas, na produção dessa série
pela qual está sendo retratado, já a de Farkas é a de fotográfica, não abandona sua preocupação estética
quem está prestes a descobri-la, ela só fará sentido e o seu conhecimento técnico. Porém, abre mão do
dentro da trama que envolve a relação entre o geometrismo para ao invés de dialogar com as
relato fotográfico, a intencionalidade do fotógrafo e formas, articular gestos, corpos e expressões faciais.
a realidade representada. Um detalhe chama a É a valorização humanística se sobrepondo aos
atenção, a palavra Crato escrita no tambor, pressupostos artísticos das fases de atuação
indicativo de que pode ter sido feita nesta cidade do anteriores do fotógrafo.
Ceará.
Se a realização dos documentários trazia a Figura 6 – Menino montado em jumento
necessidade de uma pré-produção que, como
anteriormente citado, consistia numa pesquisa
sobre o contexto do local que seria
vídeodocumentado, a aproximação fotográfica de
Farkas no mesmo ambiente se dá de forma
despretensiosa, sem roteiros, tímida até. O
Nordeste que é representado por Farkas não é o das
grandes festas folclóricas vistas do seu clímax ou o
Nordeste dos retirantes cercados pelo chão
rachado, embora tais situações estejam presentes
na cotidianidade da região. É aquele das cenas
tiradas das situações rotineiras, banais, Fonte: FARKAS, 2006, s/ página.
aparentemente inexpressivas, mas que se destacam
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Pesquisa em Foco

Na figura 6, visualiza-se a representação de um pela valorização daquilo que surge e o assalta ao


menino que monta um jumento no sertão ponto de merecer um registro.
nordestino. Diferentemente de algumas fotos
anteriores, o primeiro e o segundo plano estão Referências
nítidos. O animal de carga é um elemento bastante
explorado nas representações acerca da região ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A
Nordeste. Tal elemento assume, então, um valor invenção do Nordeste e outras artes. - 3.
simbólico no âmbito das referências à região ed - Recife:Ed. Massangana; São Paulo: Cortez,
nordestina. Nesta imagem Farkas a explora de 2006
forma a valorizar não apenas o elemento tomado
como símbolo, mas a relação que se estabelece COSTA, Helouise & SILVA, Renato Rodrigues da. A
entre o menino, o ambiente e o animal utilizado no fotografia moderna no Brasil. São Paulo:
auxílio de atividades ligadas ao cotidiano das Cosac Naify, 2004.
pessoas, o transporte de água ou mantimentos,
neste caso. Assim, as figuras que elege para FERNANDES JUNIOR, Rubens. Labirintos e
fotografar se relacionam a situações que passam a identidades – Panorama da Fotografia no
ser acessíveis a sua percepção; a de alguém que Brasil 1946-98. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
pertence a outra realidade cultural, mas que por
meio do olhar intimista e inquieto constrói uma FERNANDES JUNIOR, Rubens. “Farkas colorido.
narrativa fotográfica aprofundada e impactante. Viva!” In: FARKAS, Thomaz. Thomaz Farkas,
Notas de Viagem. São Paulo: Cosac Naify, 2006,
p. 8 – 21.
Considerações finais
FARKAS, Thomaz. Thomaz Farkas, Notas de
O que esse trabalho fotodocumental de Farkas Viagem. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
deixa transparecer é a construção de uma
visualidade da região pautada na postura de FARKAS, Thomaz. Otimista e delirante, mas
descobridor que o fotógrafo assume durante a nem tanto. Revista Fapesp 131. São Paulo,
realização dos documentários da Caravana. As faces 2007. Entrevista concedida a Mauriluce Moura e
desfocadas em detrimento de outras, as cenas Neldson Marcolin, p. 1-10. Disponível em: <
cotidianas, a ênfase nas expressões faciais das http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=3129&bd
pessoas representadas e a valorização da relação =1&pg=1&lg >. Acesso em: 28 de fevereiro de
homem-ambiente revelam um fotógrafo 2011.
antropologicamente envolvido organizando uma
espécie de diário de bordo fotográfico. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama
A atuação de Thomaz Farkas nesta produção é fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
bastante peculiar, se comparada com seus trabalhos
anteriores. O reposicionamento de Farkas nessa MACHADO, Alvaro; MASSI, Augusto. “Entrevista e
série reflete duas coisas: a necessidade de se Cronologia” In: FARKAS, Thomaz. Thomaz
expressar diferentemente quando inserido em um Farkas, Notas de Viagem. São Paulo: Cosac
contexto também diferenciado, e, a estruturação de Naify, 2006.
uma visualidade simples, sem extravagâncias
estéticas e intencionalidades rígidas. O Nordeste MAGALHÃES, Angela; PEREGRINO, Nadja. O
em cores de Farkas é o Nordeste plural expresso de regionalismo nordestino e suas marcas na
forma não totalizante, mas que, no entanto, ficou fotografia brasileira. Revista do Patrimônio
oculto durante três décadas. Apesar do longo Histórico e Artístico Nacional. Rio de
período no qual ficaram publicamente inacessíveis, Janeiro: IPHAN, n. 27. p. 242-268, 1998.
tais imagens delatam um indivíduo culturalmente
imerso numa realidade da qual emergem Thomaz Farkas, brasileiro. Direção de Walter Lima
representações fotográficas marcadas pelo olhar Junior. Rio de Janeiro: Cine do Tempo e Urca
aguçado, pelo interesse humanístico e, sobretudo, Filmes, 2004, (15 min).

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