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Mário de Andrade fotógrafo-viajante e a

linguagem modernista

Douglas Canjani1

Resumo
Mário de Andrade foi, além do escritor abrangente e vívido que conhe-
cemos, um pioneiro da fotografia modernista brasileira. Essa faceta
de sua produção estética, embora menos conhecida, reveste-se de
grande importância conforme avançam, entre nós, os estudos sobre
o desenvolvimento de uma visualidade fotográfica eminentemente
modernista. A experiência fotográfica de Mário, tão densa e original
quanto episódica (resume-se basicamente à década de 1920, aden-
sando-se nos anos de 1927 – 1929, época de suas viagens ao Norte e
Nordeste do Brasil), sofreu forte influência das principais vertentes da
produção modernista europeia, que ele acompanhava principalmente
por meio de revistas europeias de arte, como L’esprit nouveau e Der
Querschnitt, as quais assinava. Analisamos aqui alguns expedientes
de linguagem que caracterizam suas fotos, abrigadas no acervo do
IEB-USP.

Palavras-chave
Fotografia, viagem, modernismo.

Recebido em 29 de abril de 2013


Aprovado em 30 de julho de 2013

CANJANI, Douglas. Mário de Andrade fotógrafo-viajante e a linguagem modernista. Revista do Instituto de


Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 51-82, 2013.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i57p 51-82

1 Pontifícia Universidade Católica (PUC, São Paulo, SP, Brasil).

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The Travel Photographs of the Brazilian
Writer Mário de Andrade and their
Connection to the Modernist Visual
Language

Douglas Canjani

Abstract
Mário de Andrade, one of the most important modernist Brazilian
writers, developed an intense but short interest in photographing
in the 1920’s. His pictures taken while in travels in the north and
northeast of Brazil (1927 – 1929) are outstanding examples of a
modernist way of creating pictures, which are both documentary
and experimental. He, who never left Brazil, was influenced by Euro-
pean vanguards, which he knew by art magazine reproductions. We
analyze here some of these travels’ pictures, which are housed at the
archives of IEB-USP.

Keywords
Photography, travels, modernism.

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m ário de Andrade é um de
nossos intelectuais mais fecundos e abrangentes. Ele foi poeta, roman-
cista, cronista, jornalista; pesquisador e professor de música, historiador
da arquitetura, crítico literário e de artes plásticas. Estabeleceu um
diálogo estimulante entre as culturas popular e erudita, numa época em
que a separação entre elas era estrita. Promoveu, assim como os outros
modernistas de sua geração, uma revisão dos valores culturais vigentes
no início do século XX, buscando formas genuinamente brasileiras de
expressão, tanto na literatura quanto nas artes visuais e na música.
Apesar desse viés nacionalista, buscou o que havia de mais moderno e
cosmopolita em termos estéticos, incorporando novas formas expressivas
e alargando os debates críticos da época.
Mas uma faceta menos conhecida de sua produção e de seus
vastos interesses é seu envolvimento com a fotografia. Mário não apenas
produziu fotografias de alto teor artístico e documental, extrapolando os
cânones então vigentes na produção fotográfica nacional, como dedicou
mais tarde pequenos artigos à produção alheia 2.
Tendo comprado em 1923 uma máquina fotográfica Kodak (que
ele grafava “Codaque”, assim como inventou o neologismo “fotar” para
designar o ato de fotografar), ele passou a exercer a linguagem fotográfica
na vida privada e nos interesses profissionais, deixando um rico acervo
pessoal de fotografias. Mas foi nas suas duas viagens que ele denominou
“etnográficas”, ao Norte (1927) e Nordeste (1928 – 1929) do Brasil, que
Mário explorou em profundidade as possibilidades que a linguagem

2 ANDRADE, Mário de. Fantasias de um poeta (fotomontagens de Jorge de Lima)


[1939]. In: ______. Será o Benedito! São Paulo: Educ, 1996. págs. 71-76. ______ O homem
que se achou (fotos de Jorge de Castro) [1940]. In: Será o Benedito! São Paulo: Educ,
1996. págs. 77-81.

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fotográfica podia então oferecer. As cerca de quinhentas fotos tiradas nas
duas viagens nos mostram um rico conjunto a ser estudado. Apresen-
tamos aqui alguns exemplos dessa produção, buscando evidenciar, na
análise de suas fotos, questões de linguagem fotográfica e o modo como
elas foram construídas ou como podem ser associadas a determinados
cânones visuais.
Em 1927, cinco anos depois da Semana de Arte Moderna e já tendo
feito com o grupo modernista viagens a Minas (1924: viagem de “redes-
coberta do Brasil”), Mário parte para uma viagem de três meses pela
Amazônia (13 de maio a 15 de agosto). Saindo do Rio de Janeiro, de navio
rumo a Manaus, ele para em algumas capitais litorâneas, alcançando
a Amazônia e, como ele mesmo diz, “até o Peru pelo [rio] Madeira até
Bolívia e por Marajó até dizer chega”. Ao longo do extenso trajeto, Mário
fez as anotações em forma de diário de viagem que geraram o livro inaca-
bado O turista aprendiz (editado apenas em 1976), e produziu um rico
acervo de fotografias que enfoca as populações e paisagens ribeirinhas e
apresenta ousadas investigações formais.
As anotações da viagem ao nordeste, feita entre novembro de 1928 e
fevereiro de 1929 por Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte foram edi-
tadas como crônicas de jornal ao longo do ano de 1929. As fotografias
então tiradas registram seus encontros com amigos como Luís da Câmara
Cascudo, com artistas populares, bem como aspectos da vida cotidiana e
das cidades, vistos sob um prisma modernista, em que a documentação
não exclui a forma inovadora.
Surpreendentemente, a incorporação da produção fotográfica de
Mário à história da fotografia brasileira é recente. Parece que, pelo fato
de Mário ser escritor, suas fotos passaram desapercebidas aos (então
poucos) estudiosos da fotografia. Apesar de as fotos de viagem terem
sido dadas a conhecer (algumas em 1976, na edição do texto d’O turista
aprendiz , outras tantas em Mário de Andrade: fotógrafo e turista
aprendiz, 1993, por Telê Ancona Lopez), foi apenas muito recentemente
que Mário começou a ser citado na historiografia fotográfica brasileira.
No texto “Arquitetura e fotografia no século XIX”3, as fotos de Mário
são citadas como exemplo de esforço de documentação isenta; não se
mencionam as características subjetivas do olhar que as preside. Por volta
de 2002, em duas situações, Rubens Fernandes Júnior4 incorpora Mário à
linhagem de artistas-fotógrafos, dedicados à experimentação fotográfica:

3 CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Sílvia Ferreira Santos. Arquitetura
e fotografia no século XIX. In: FABBRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e fun-
ções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.
4 FERNANDES JÚNIOR, Rubens. A fotografia expandida. 2002. 275 f. Tese (Doutorado
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universitária Católica de São Paulo, 2002.

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em sua tese de doutorado e na seção devotada à fotografia da exposição
levada à Valência, Brasil 1920-1950: da antropofagia a Brasília, em cura-
doria geral de Jorge Schwartz. Trabalhos importantes como A fotografia
moderna no Brasil 5 e como a seção “Fotografia” da História geral da arte
no Brasil 6 não o mencionam, o primeiro por cingir-se ao fotoclubismo, o
segundo por deter-se sobre os aspectos documentais da fotografia.
Se a produção fotográfica de Mário não é a de um “profissional”
que se dedica contínua e primordialmente à linguagem visual, ela se faz,
talvez justamente por seu caráter episódico, numa intensa turbulência,
transitando entre uma experimentação ousada e um documentarismo
direto, entre o instantâneo e olhar contemplativo: apesar de “amador”,
seu olhar (assim como sua relação técnica com a câmera) exibe maestria
e vigor na apreensão de geometrias ínsitas ao campo visual, na explo-
ração de luzes e contraluzes, na apropriação simbólica de elementos
visuais de caráter narrativo. Sua inteligência figural distingue-se de
grande parte da amostragem fotográfica brasileira de sua época, como
veremos a seguir.
Perguntamo-nos: como haverá seu olhar se formado, especifi-
camente no que concerne ao repertório fotográfico? Se analisarmos a
produção fotográfica da época, veremos que as ousadias de Mário (e mesmo
suas fotos mais comportadas) movem-se num campo destacadamente
experimental e avançado, tributário das conquistas do modernismo mais
“heroico”. As fotos de Mário se colocam em sintonia com as tentativas
mais avançadas de seu tempo. A título de comparação, convém considerar
que 1923, momento em que Mário compra sua Kodak, é o ano da morte
de Marc Ferrez, cuja obra fotográfica, vasta e importante, é emblemática
do tipo de atuação então corrente: de cunho eminentemente documental,
traz, na construção da imagem, a marca das convenções figurativas do
século XIX e dos limites técnicos de seu equipamento (grande formato,
negativo de vidro, tripé).

5 COSTA, Helouise; SILVA, Renato. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac
Naify, 2004.
6 KOSSOY, Boris. Fotografia. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983, 2 v.

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Figura 1: Marc Ferrez, Estação Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899.

Figura 2: Marc Ferrez, Baiana, s/d.

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Sem dúvida tivemos, na fotografia brasileira do início do século,
exemplos de iniciativas de caráter experimental e inovador, exempli-
ficado pela célebre fotomontagem Os trinta Valérios, de Valério Vieira.
No entanto, essa imagem, ganhadora da medalha de prata na exposição
de Saint Louis (EUA) em 1904, de grande virtuosismo técnico e certo
apelo anedótico (o fotógrafo apresenta-se em trinta poses diferentes em
um espaço de estúdio), passa ao largo das questões que logo em seguida
seriam impostas pela agenda modernista, sem maiores arroubos compo-
sitivos (isto é, abstratos) nem narrativos (marcados, poucos anos depois,
pelas poéticas expressivas das vanguardas).

Figura 3: Valério Vieira, Os trinta Valérios, 1902.

Consideremos ainda que a década de 1920 assistiria ao surgimento,


no Brasil, da imprensa ilustrada por fotografias (a revista O Cruzeiro foi
lançada em novembro de 1928, para tornar-se o veículo impresso de maior
circulação nacional), sintoma do surgimento de novas práticas sociais
relativas aos usos da imagem gráfica; mesmo assim, eram fotos com um
forte viés pictorialista, submetidas a regras clássicas de composição e
à temática assimilável ao gosto do público consumidor destas revistas.
Apenas na década de 1940 a imprensa ilustrada se aproximaria do que

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poderíamos chamar de “fotojornalismo moderno”7, ligado ao instantâneo
e ao que Cartier-Bresson chamaria de “instante decisivo”.
Por outro lado, se compararmos a obra de Mário com as experiên-
cias de fotógrafos americanos que atuavam na época (como na importante
Farm Security Administration, instituída em 1935, e que contava com
Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, entre outros), veremos que a
linguagem visual de Mário inclinava-se mais ao modelo europeu e expe-
rimental. Na viagem de Walker Evans a Havana em 1933, por exemplo, a
serviço de um diário americano (portanto na condição de viajante e de
fotojornalista profissional), Evans fez retratos bastante sóbrios e compatí-
veis com o uso em jornal isto é, realmente documentais. Apesar de possuir
recursos expressivos e técnicos que lhe possibilitavam a produção de
“instantâneos” , como os feitos em Nova Iorque, uma grande parte de sua
produção reveste-se de um tempo lento, como se cada foto fosse previa-
mente meditada e mesmo feita com tripé. Mário, em viagem, tomou
liberdades de linguagem fotográfica que Evans só tomou “em casa”. De
um modo geral, Mário incorreu em ousadias (o posicionamento diagonal
da câmera, o apreço pela apreensão do instante), que não faziam parte do
vocabulário dominante de Evans (que prefere, geralmente, a frontalidade
e uma temporalidade muito mais lenta).

Figura 4: Walker Evans, Citizen in Downtown Havana, 1933.

7 COSTA, Helouise. Pictorialismo e imprensa: o caso da revista O Cruzeiro (1928-


1932). In: FABBRIS, Annateresa (org.), op. cit., 1991.

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Figura 5: Walker Evans, City Lunch Counter, Nova Iorque, 1929.

O fato é que, a despeito de obras como a de Valério Vieira (vale


lembrar, um experimento de estúdio), a fotografia não fez parte das preo-
cupações de primeiro momento de nossos modernistas, a tal ponto que
o crítico Paulo Herkenhoff 8 nos conta que em 1921, num artigo sobre
Brecheret, Oswald de Andrade escrevia que

[…] de fato, o artista é o ser do privilégio que produz um mundo


supra-terreno, antifotográfico, irreal que seja, mas um mundo
existente, chocante, profundo. Mas isso que faz o critério julgador
das nossas populações (frases assim: como está parecido! Que
beleza! É como se fosse…) é a maior vergonheira de uma cultura.
Arte não é fotografia! Nunca foi fotografia! Arte é expressão, é
símbolo comovido.

Evidentemente, Oswald prega a autonomia das artes visuais


frente ao que se poderia chamar de resquício naturalista ou realista (um
apreço pela dimensão aparente) do século XIX, mas tal assertiva parece

8 HERKENHOFF, Paulo. Fotografia: o automático e o longo processo de modernida-


de. In: TOLIPAN et al. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de Janeiro: Funarte,
1983.

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colocar as possibilidades expressivas da fotografia em posição redutora,
de mera reprodução da realidade.
Dentro deste panorama, a produção fotográfica de Mário surpreen-
de. Apesar de ter uma atuação destacada nos principais debates estéticos
do modernismo brasileiro, e de estar a par das mais candentes discus-
sões (como quando referia-se, em artigo de 1927, à palestra pessimista
de Worringer, em Londres, sobre a continuidade do expressionismo9),
nada lhe garantia que, ao lançar-se à sua própria produção visual, ele
alcançaria algum resultado mais notável. Como se sabe, a posse de um
cabedal teórico avançado não garante, per si, uma linguagem de alto
nível: fazer linguagem é tentar fazer linguagem. Não há, ao menos den-
tro da premissa modernista da experimentação constante (que Mário
defendeu), garantia alguma dos resultados quando um artista se lança
ao processo de criação. Por outro lado, a produção fotográfica de Mário
não é ingênua; as questões com que ele dialoga em suas fotos, remetem a
uma matriz bastante complexa: há o reconhecimento da realidade brasi-
leira, mas que não se submete ao documentarismo fotográfico estrito
senso (capacidade mimética da fotografia, defendida até hoje10; ele evita
o pictorialismo e não se acomoda ao exotismo fácil, produzindo uma vi-
sualidade caleidoscópica, ágil, que subtrai-se à edulcoração do tema
enfocado e que afirma a especificidade técnica da fotografia (luz, contra
luz, enquadramento inusitado). Enfim, dialoga com a informação fresca
que lhe chega, via revistas, da Europa, mas não se deixa apanhar em
fórmulas que lhe engessem a expressão de sua subjetividade.
Em que medida o modernismo fotográfico europeu o influencia?
Seu acompanhamento das questões estéticas então correntes na Europa
pode ser aferido pela presença, em sua biblioteca, de exemplares de
L’esprit nouveau e de Der Querschnitt, revistas europeias de vanguarda
que apresentam uma ampla amostragem de informação visual então
inédita entre nós. Se L’esprit nouveau defendia a ascese racionalista e cons-
trutivista como modo de engendrar a cultura da época, Querschnitt (que
Mário assinou entre 1924 e 1931) colocava-se numa perspectiva moder-
nista bastante abrangente, que poderíamos chamar, provisoriamente e
por contraste à revista francesa, de expressionista. Enquanto a revista
francesa (editada entre 1920 e 1925) reivindicava o que convencionou-se
chamar de “retorno à ordem” (após os excessos do primeiro momento

9 Cf. SCHWARTZ, Jorge. O expressionismo pela crítica de Mário de Andrade, Má-


riategui e Borges. In: BELLUZZO, Ana Maria (org.). Modernidade: vanguardas
artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial da América Latina; Editora da
Unesp, 1990.
10 Vide KOSSOY, Boris, op. cit.

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modernista, “heroico” e transgressor), a alemã (editada a partir de 1920)
trazia, além da produção de extração construtiva (Fernand Léger, em
fevereiro de 1925, fotomontagens russas, em junho de 1925), exemplos de
arte de caráter francamente “negativo” (textos de Tristan Tzara), assim
como tópicos que envolviam uma discussão em torno do primitivo e do
espontâneo (artigos sobre jazz e arte africana).
Evidentemente, não se trata de sugerir que a inventividade visual
de Mário, no que tange à fotografia, derive apenas e diretamente do
que ele pôde ter visto nos sucessivos números da revista berlinense (ou
mesmo da francesa): ele fotografava, ocasionalmente, no seio familiar,
como quando em visita à fazenda da família em Araraquara. Enquanto
artista e pensador, Mário já estava formado quando realiza as “viagens
etnográficas”: a incorporação de elementos dinâmicos e assimétricos
em seu processo criativo está plenamente exemplificada, já então, na
sua literatura (pensemos, por exemplo, na criação de Macunaíma,
que sairia em 1928). A equação será sem dúvida mais complexa, dado
que a formação do repertório marioandradino é bastante ampla: mais
do que uma “síndrome de influência direta” que fornecesse decalques,
modelos de construção visual, trata-se de entender como ele filtrou, em
sua sensibilidade polimorfa, o caudal de questões que as vanguardas
modernistas propunham: a superação dos modelos pictorialistas que
ancoravam a linguagem fotográfica na sintaxe derivada da pintura
novecentista; a adoção do experimentalismo como uma prática legítima
e constante na busca de novas soluções formais e expressivas; o entre-
choque de conteúdos temáticos e compositivos que podiam redundar
ora num adensamento simbólico de teor surrealista, ora na fruição de
uma espontaneidade que revertia-se na produção de “instantâneos” foto-
gráficos que, ainda que documentassem a realidade vivida, beiravam a
abstração. Algumas sequências sugerem mesmo uma fluência percep-
tiva afim ao cinema, como veremos a seguir nas fotos 235, 236 e 23711.
O olhar pessoal que Mário desenvolve na sua produção fotográfica
oscila perpassa estas possibilidades então candentes: ora usa a fotografia
como registro da realidade, ora tende ao experimentalismo, sem ater-se
a um regime único. Mário parece estar mais interessado em experi-
mentar com a linguagem fotográfica, em “pintar com a luz”, arriscando
soluções com o foco e com a fotometria, em composições diagonais, etc.
Assim, comparecem tanto os instantâneos, fotos tiradas em função de

11 Números da série “Fotografias”, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP. Os códigos das


fotografias são compostos pela sigla MA-F, seguidos do número com quatro dígitos.

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uma resposta imediata aos assuntos que se impunham, como chapas que
apresentam um olhar mais propositivo e articulado.
Der Querschnitt apresenta-nos aquelas que eram as grandes
correntes que demarcavam a produção fotográfica alemã da época: uma,
ligada à precisão documental e à eficiência técnica que garantia a ve-
rossimilhança dos aspectos visíveis da realidade enfocada, era defen-
dida pelo então influente fotógrafo alemão Renger-Patzsch; outra, ligada
à renovação experimental dos códigos visuais e à exploração das possi-
bilidades do meio fotográfico, era postulada pelo então professor da
Bauhaus, o húngaro László Moholy-Nagy, que levava a fotografia à foto-
montagem, à fusão com a pintura e o desenho, bem como à abstração
em que intercedia frequentemente o acaso na interação da luz com os
materiais fotossensíveis. Der Querschnitt não reproduzia esquematica-
mente estas duas vertentes; editava-as lado a lado, entremeadas a outros
exemplos da produção fotográfica de então.
O olhar de Mário, então definido a favor de uma ampla abertura à
informação experimental mas também sempre atento às peculiaridades
e especificidades locais, revela-se, nas fotografias feitas nas duas viagens,
abalizado com a fervilhante produção internacional. Mário estabelece
um jogo ágil entre rigor construtivo e incorporação simbólica, entre
apreensão do instante e contemplação.
Consideremos algumas das suas fotos visualmente mais radicais:
Abrolhos parece ter sido feita pela escotilha do navio que o levava
ao Norte do país. A área circular deixa-nos ver uma paisagem marinha,
discernível enquanto tal, mas o escuro contra campo (o resto do visor
retangular da máquina fotográfica) do primeiro plano, sujeito a invasões
de luz, causa uma espécie de indeterminação espacial que parece colocar o
observador tanto na posição de aferição da realidade externa (a paisagem)
quanto de espectador do próprio ato de perceber (a luz que age sobre o
próprio globo ocular). (Há a possibilidade de a máquina de Mário ser de
fole e ter havido invasão de luz por essa peça, que costumava furar com
frequência nas máquinas antigas. Mas não outros indícios desse tipo nas
outras fotos.)

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Figura 6: Abrolhos (Código MA-F-0142).

Outra foto que tira partido do acaso é a imagem intitulada, pelo


próprio Mário (como todas as legendas, doravante), Futurismo pingando.
Dois aspectos sobressaem: trata-se de um instantâneo – um pescador
jogando tarrafa; instante documental, com Mário no barco – isto é, dentro
da ação. Talvez ele não tivesse percebido naquele momento, concentrado
no registro da ação, mas a objetiva foi atingida por alguns pingos d’água.
Ao colocar na foto o jocoso nome, a posteriori, ele não só associou a foto à
produção artística corrente (chamava-se então de futurismo, em sentido
corrente, todo modernismo) como incorporou o que seria um erro ou
desvio material (os pingos) à própria linguagem fotográfica. Desse modo,
via texto, ele corrige (melhor, incorpora) uma condição tecnicamente
falha: a cena é documental e específica, mas a legenda liga-a, em tom de
blague, aos “avanços” da linguagem artística. Mário define, assim, toda
uma atitude face aos acontecimentos fotográficos com que lida, tanto
incorporando as vicissitudes do meio maquínico e seus acasos, quanto

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trazendo-os para uma relação estreita com a legenda textual, isto é, para
um conjunto narrativo extremamente pessoal.

Figura 7: Futurismo pingando (Código MA-F-0235).

Futurismo pingando é a primeira de uma sequência de três


imagens que trazem outro dado perceptivo, a cronofotografia, cuja ordem
de fotogramas, nos moldes de um Muybridge, é afim ao cinema. São, ao
que parece, três arremessos consecutivos de tarrafa, o que implica uma
insistência de Mário em relação ao tema (sim, e o que fazer, uma vez
que ele está dentro do barco…?) e à busca do “instante decisivo” (para
usar a formulação, posterior, de Cartier Bresson), isto é, de um momento
significativo e exemplar, que condense em si todo o processo de ações
que estão ocorrendo. É significativo que à primeira imagem ele tenha
dado o título artístico e humorístico, enquanto no verso das outras duas
ele meramente repita a descrição (“Atirando tarrafa igarapé de Barca-
rena arredores de Manaus 7-VI-27” e “No furo de Bar Carena [Manaus]
atirando a tarrafa 7-VI-27 tarrafeando”). De todo modo, há aqui uma
série, sequência temporal de quadros que colocam um tema visual e
narrativo e suas variações.

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Figura 8: Atirando tarrafa igarapé de Barcarena arredores de Manaus 7-VI-27 (Código
MA-F-0236)

Figura 9: No furo de Bar Carena [Manaus] atirando a tarrafa 7-VI-27 tarrafeando (Código
MA-F-0237).

Ainda que sobre a foto da escotilha possa ser alegado que o efeito
difuso decorre, talvez, de imperícia técnica ou simples acaso (com o que
eu não concordaria), podemos ver que Mário apropria-se das imagens
e incorpora-as a um corpus narrativo (por assim dizer) próprio. As
duas imagens a seguir fazem parte de sua crônica visual de viagem,
mas aludem a campos imaginários bem mais amplos, que extrapolam a
narrativa meramente visual:

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Figura 10: Roupas freudianas Fortaleza 5 VIII 27 Sol 1 diaf 1 Fotografia refoulenta Refou-
lement (Código MA-F-0589).

Figura 11:O sítio se chamava FELICIDADE 9-VI-27 Solimões A poesia de Einstein n. 64


(Código MA-F-0259).

A primeira, enquanto construção da linguagem visual, é bastante


superior à segunda: uma, apreensão de instante, com enquadramento
em diagonal e em profundidade; a outra, simples registro de uma placa.
No entanto, Mário associa ambas, com suas legendas, a contextos psico-
lógicos abrangentes: o inconsciente e a estabilidade emocional (a que ele
apõe curiosamente, no verso, o comentário: “a poesia de Einstein”). Sem
dúvida, podemos associar essas imagens à poética surrealista. Devemos

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também notar o registro, no verso da primeira foto, do diafragma usado
e da condição de luz atuante para a foto: denota seu esforço para aferir
condições de controle da técnica fotográfica.
Se essas imagens pertencem ao campo das associações incons-
cientes e da ativação simbólica de cunho psicológico, temos, num
registro de linguagem bastante diverso, algumas fotos nas quais Mário
opera um léxico decididamente construtivo, em que a geometrização dos
elementos no campo visual define a aproximação aos temas:

Figura 12: Jangadas de mogno encostando no S. Salvador pra embarcar Nanay 23 de


junho Peru Vitrolas futuras (Código MA-F-0320).

Jangadas de mogno encostando no S. Salvador pra embarcar


Nanay 23 de junho Peru Vitrolas futuras nos mostra toras de mogno flu-
tuando ao lado do barco. A composição tem linhas de força em diagonal,
com a curiosa configuração superior poliédrica. A imagem informa-
nos sobre o transporte da madeira por via fluvial, mas sua composição
severa atesta que o autor está mais interessado, naquele instante, no jogo
de linhas e geometrias ínsitas à ação, que em preservar a estabilidade

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das linhas de força naturais (a linha de horizonte que pode-se adivinhar
ao fundo e acima da imagem, no canto superior esquerdo).
A mesma disposição ocorre em Almoço da 3a classe Baependy – ao
largo 6 VIII 27 diaf 1 sol 1 das 10 Em terceira voracidade. Sem dúvida,
era um enquadramento confortável ao autor, que estava no convés supe-
rior do barco mas, com um pequeno esforço de imaginação, podemos
supor que havia inúmeras outras possibilidades de posicionamento da
máquina (e de seu corpo). Por que então esta reincidência, como em Rua
Nova Recife II-29 da minha janela de hotel, em que Mário estava, não num
barco, mas na janela de um hotel? Sem dúvida, ele estava interessado em
investigar essa possibilidade de enquadramento, ousado e radical, para
os padrões de linguagem da época.

Figura 13: (Esq.) Jangadas de mogno encostando no S. Salvador pra embarcar Nanay 23
de junho Peru Vitrolas futuras (Código MA-F-0320).

Figura 14: (Dir.) Rua Nova Recife II-29 da minha janela de hotel (Código MA-F-1142).

O enquadramento extremo, de um ponto de vista espacialmente


superior ou inferior, recusando a vista frontal (usual, documental, refe-
rente ao plano do chão como plano de estabilidade para a construção e
leitura da imagem) estava sendo bastante explorado então, como novi-
dade destinada a intensificar e a potencializar os elementos construtivos

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da imagem. Rodchenko, fotógrafo russo frequentemente reproduzido
em Der Querschnitt, explorou decididamente essa opção compositiva,
e Mário estava a par desta condição, como mostra a sua coleção desta
revista. Não quero sugerir que ele copiasse ou se pautasse diretamente
no russo (ou em outro fotógrafo), mas o uso reiterado dessa disposição
gráfica constitui-se, à época, uma estratégia nova, fresca, uma nova
perspectiva possível de registro e de reelaboração formal da linguagem
visual.
Muito diverso, mas tão engenhoso, e mais sutil, é o expediente
usado para registro das grandes amplidões amazônicas. Mário, no texto
d’O turista aprendiz, sublinha frequentemente a inapreensibilidade do
espaço amazônico, cujas dimensões desafiam os sentidos e a linguagem.
Em algumas das fotos, em vez de concentrar-se nas linhas de força como
nas imagens de corte diagonal (em que ele parece esconder ou descartar
a linha do horizonte), Mário apoia a construção da imagem justamente
na linha do horizonte, a que contrapõe, no ato do enquadramento, alguns
elementos.
A imagem Entrada dum Paraná ou Paraná 5-VII-27 rio Madeira –
Ilha de Manicoré O I é o Madeira o II é o furo de Manicoré rio Mataurá
Entre duas águas nos dá uma panorâmica praticamente sem recurso
de escala, salvo uma haste, provavelmente da cobertura da barca. Para
tornar a grandeza da paisagem legível, Mário insere escalas humanas
nas imagens subsequentes.

Figura 15: Entrada dum Paraná ou Paraná 5-VII-27 rio Madeira – Ilha de Manicoré O
I é o Madeira o II é o furo de Manicoré rio Mataurá Entre duas águas (Código
MA-F-0368).

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É o caso das imagens O gaiola Índio do Brasil vindo atracar no
vitória em Pariri, Madeira 17-VII-27 Retrato do barbeiro de bordo Sol 2
Diaf. 1 Manhã e Barbeiro, Dolur na vista Mara Joara 31 VII 27 Sol 3 diaf.
3 Trombeta e O Vitória no Madeira se vê o 1o plano margem esquerda
do igarapé de Três Casas Foto tirada barranca alta, direita do mesmo
igarapé 7-VII-27.

Figura 16: O gaiola Índio do Brasil vindo atracar no vitória em Pariri, Madeira 17-VII-27
Retrato do barbeiro de bordo Sol 2 Diaf. 1 Manhã e Barbeiro (Código MA-F-0453).

Figura 17: Dolur na vista Mara Joara 31 VII 27 Sol 3 diaf. 3 Trombeta (Código MA-F-0568).

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Nas duas primeiras imagens, temos a linha do horizonte ocupando
quase toda a extensão longitudinal do campo visual. No entanto, Mário
cuidadosamente enquadra uma pessoa (o barbeiro de bordo, na primeira,
e Dolur, companheira de viagem, na segunda imagem) num dos extremos
do campo visual (à direita ou à esquerda). Assim, temos que à imen-
sidão da paisagem, contrapõe-se um elemento que ajuda a dar dimensão
apreensível ao espaço de fundo. Ao distante, contrapõe o próximo; à
geometria da linha horizontal, faz corresponder o corpo humano, ou
primeiro plano cortante, como na imagem da barca no rio Madeira. Desse
modo, Mário faz uso do expediente que, desde o fim do século XVIII, era
comumente usado em pintura quando se queria registrar grandes pano-
ramas: insere uma figura humana que funciona como escala, a partir
da qual pode-se estimar as grandezas visualmente envolvidas no jogo
da paisagem. Assim, ele recorre a um cânone da estética do sublime, em
que o contraste entre o muito grande e muito pequeno (a escala humana)
concorrem para o efeito geral que se pretende: expressar a imensidão
da natureza. Essas imagens não devem ser confundidas com os retratos
enquanto tais: o corpo (ou rosto) humano aparece aqui como elemento
da retórica da imagem. Para os retratos, vejamos a seguir.

Figura 18: O Vitória no Madeira se vê o 1o plano margem esquerda do igarapé de Três


Casas Foto tirada barranca alta, direita do mesmo igarapé 7-VII-27 (Código
MA-F-0386).

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O retrato que Mário intitula Na lagoa do Amanium perto (?) do Igarapé
de Barcarena Manaus 7-VI-27 Minha obra prima condensa tanto um
retrato quanto a visão da paisagem circundante, vista em plano médio.
Talvez por isso – pelo olhar direto do retratado, pela clareza descritiva
da paisagem, pela circunstância da foto (autor dentro do barco, como na
série das tarrafas), bem como por detalhes peculiares, como a flor entre a
vitória régia e o barco – Mário considere essa imagem sua “obra-prima”. A
figura humana, diferentemente da série anterior, dos “panoramas”, ganha
força compositiva, definindo diagonal abrupta em primeiro plano. Trata-se
de um retrato que tem todas as características clássicas de representação
visual, em que a relação entre temas expostos e composição redunda numa
imagem “fechada”, da qual nada se tira, nada se põe e à qual nada falta.

Figura 19: Na lagoa do Amanium perto (?) do Igarapé de Barcarena Manaus 7-VI-27
Minha obra prima (Código MA-F-0250 ).

Muito diferente é Assacaio 17-VI-27 O mais alto esse e negre enegre-


cido pintado de genipapo, que tem um caráter menos formal, pode-se dizer,
em virtude da atividade e da ação paralela que parece estar envolvida na

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cena. Se a cena define-se frontalmente em função do par central – prin-
cipalmente o homem de expressão carregada (pressupõe-se que seja um
carregador ou estivador, devido ao capote de proteção que ele e o rapaz ao
fundo usam) –, os elementos do fundo deixam a cena “em aberto” – barco,
céu, homens ao fundo, sugerindo continuidade espacial e de ação.

Figura 20: Assacaio 17-VI-27 O mais alto esse e negre enegrecido pintado de genipapo
(Código MA-F-0283).

Nem tão perfeita em termos compositivos quanto a primeiro retrato,


nem tão inquisitivo quanto o segundo, é Crilas de Assacaio 17-VI-27 Alto
Solimões “…o homem que tirou fotografia da gente…”, de um grupo de
crianças ribeirinhas. O registro documental, descritivo, sem dúvida
comanda a fotografia, dadas as feições das crianças (índias? Cafusas?).

Figura 21: Crilas de Assacaio 17-VI-27 Alto Solimões “…o homem que tirou fotografia da
gente…” (Código MA-F-0290).

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O mesmo poderíamos dizer de Boniteza tapuia: de fato ela era
mais bonita que o retrato S. Salvador VIII 27 A Venus de milho, não fosse
pela consonância entre a ligeira superexposição luminosa e o brilho nos
olhos da moça, cuja expressão entre melancólica ou reticente confere um
caráter mais psicológico à foto. Talvez houvesse algum leve desconforto
no encontro (ele teria pedido permissão? Ela desviou o olhar levemente?),
superado pela densidade poética que o retrato, afinal, alcançou. Além
disso, o posicionamento em ¾ (e não frontal, como os dois anteriores)
reforça a referência ao cânone artístico, em que as angulações frente ao
modelo tem papel retórico importante.

Figura 22: Boniteza tapuia: de fato ela era mais bonita que o retrato S. Salvador VIII 27 A
Venus de milho (Código MA-F-0355).

Um retrato de grupo, Procissão de Maria 31 de maio de 1927


Santarem Santa que vai santa que vem Tem procissão em Santarem,
recoloca a questão do enquadramento e do acaso: Mário está pratica-
mente dentro do grupo. Ele corta verticalmente a cena com a moça à
esquerda, com o grupo desdobrando-se para a direita e ao fundo, até o

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estandarte da procissão. No entanto, um acaso feliz fez com que a criança
central, perfeitamente focada e iluminada, voltasse o rosto para o autor.
Este acaso (terá Mário chamado a criança, naquele instante?) criou a
força maior da imagem: a cumplicidade entre observador e observado.

Figura 23: Procissão de Maria 31 de maio de 1927 Santarem Santa que vai santa que vem
Tem procissão em Santarem (Código MA-F-0211).

O fato é que, tanto num registro mais clássico e controlado quanto


em instantâneo ocasional, Mário alcança um registro de linguagem
visual bastante vigoroso e consciente, com variadas estratégias de apro-
ximação aos seus temas.
Não é à toa que ele tinha em sua coleção original um cartão postal,
assinalado no verso Parintintin / Cararnerê, que informa, de modo quase
científico (visões de frente e perfil, contra fundo neutro, eliminadas variá-
veis e interferências à observação objetiva), as características fisionômicas
de um índio. Essa seria uma foto que poderia muito bem ter sido tirada
por um Marc Ferrez, bem como por um Paul Ehrenreich (antropólogo e
fotógrafo que acompanhou Karl von den Steinen em uma de suas viagens
ao Brasil central trinta anos antes das viagens de Mário). Mário conhecia
essas contribuições e – o cartão assim o mostra – os modos de represen-
tação antropológicas em uso. Aproximar-se ou distanciar-se destes cânones
era uma questão de preferência e de ocasião ou, para usar um termo mais
impressionista, de “espanto”, isto é, de reação à própria condição dos
encontros (distância, atitude corporal e acordo psicológico entre autor e
objetos, incidência e qualidade da luz etc.).

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Figura 24: Parintintin / Cararnerê (Código MA-F-0671).

Não há timidez nas fotos de Mário: ele enfrenta as situações,


reagindo de modo variado a eles, seja frente a pessoas, à paisagem
ou a assuntos que são eminentemente gráficos, como situações de luz
extrema, desafio comum aos fotógrafos.
Isso fica evidente em fotos como Piás se banhando num igarapé
Iquitos 24-VI-27, em que o assunto é menos as fisionomias das crianças
do que a situação geral, menos a geometria dos elementos dispostos
no campo visual que a invasão de contraluz. A foto é uma reação ao
momento. Decorre daí que a foto registra tanto um conjunto de sensa-
ções (a luz, a água, a imersão e o aceno de um dos piás), uma resposta
em bloco à situação, quanto inventaria um modo de vida ribeirinha.
Na manipulação da condição de luz, a imagem aparenta-se a Abrolhos,
primeira da série aqui analisada.

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Figura 25: Piás se banhando num igarapé Iquitos 24-VI-27 (Código MA-F-0329).

A mesma relação com a luz (e com a sombra), acha-se em duas


outras fotos: Rio Madeira Retrato de minha sombra trepada no toldo do
Vitória julho 1927 Que dê o poeta? e na foto mais famosa desse tipo Sombra
minha/ Sta. Teresa do Alto I-I-28, que é capa do Mário de Andrade: fotó-
grafo e turista aprendiz. Em ambas Mário fotografou a própria sombra,
primeiro sobre o teto da barca, e na segunda sobre o chão de terra.
Na primeira, temos a contraposição entre sua sombra, minúscula
na base do enquadramento vertical, e a água, acima da qual ergue-se a
vegetação da margem oposta do rio. Aqui Mário brinca com as inver-
sões e contraposições (água-céu, muito pequeno versus muito grande,
objeto-sombra) e traz de novo o jogo de equivalências (contrastes) entre
paisagem e corpo humano. Ele transforma o jogo de sombras num escon-
de-esconde (“que dê o poeta?”), desdobrando referências e identidades.
Desse modo, ele questiona a própria especificidade da fotografia, como
fenômeno luminoso e fato ontológico.

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Figura 26: (Esq.) Rio Madeira Retrato de minha sombra trepada no toldo do Vitória
julho 1927 Que dê o poeta? (Código MA-F- 0417).

Figura 27: (Dir.) Sombra minha/ Sta. Teresa do Alto I-I-28 (Código MA-F - 0752).

Retornando às possibilidades mais prosaicas da fotografia, temos


também as fotos de documentação paisagística, urbana e arquitetônica.
Praia de Boa viagem Recife Boa Viagem no Recife bem como Olinda
Igreja de São Bento I-29 tiram partido da dimensão dos coqueiros para
enquadrar as construções. Desse modo, a arquitetura aparece inscrita
na paisagem natural, sempre em ¾, isto é, em ângulo que inclui a espa-
cialidade circundante e que valoriza o diálogo entre artefato humano
e natureza. Ligeiramente diferente é Veneza em Santarém junho 1927
É o hotel 31 de Maio To be or not to be Veneza Eis aqui estão ogivas
de Santarém, que tende ao registro frontal, uma vez que a peculiari-
dade aqui é o fato da arquitetura ter janelas ogivais, típicas do gótico
veneziano.

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Figura 28: Praia de Boa viagem Recife Boa Viagem no Recife (Código MA-F-0154).

Figura 29: Olinda Igreja de São Bento II-29 (Código MA-F-1154).

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Figura 30: Veneza em Santarém junho 1927 É o hotel 31 de Maio To be or not to be Veneza
Eis aqui estão ogivas de Santarém (Código MA-F-0206).

De todo modo, essas três imagens são registros fidedignos da arqui-


tetura e dos espaços que Mário tem diante de si. A já mencionada Rua
Nova Recife II-29 da minha janela de hotel, que apresenta enquadramento
em fraca diagonal profunda, nos traz, enquanto documentação urbana,
o espaço da rua, construções, calçadas adornadas, tipos humanos, infor-
mando sobre o teor de urbanidade daquela capital. Arrojo compositivo e
caráter descritivo são qualidades inerentes à imagem.

As fotos de Mário são emblemáticas de uma nova compreensão das


possibilidades da linguagem fotográfica entre nós, fenômeno que ocorre
com certo atraso em relação às outras artes visuais (pintura, escultura
e arquitetura) modernistas brasileiras. Na realidade, seriam precisos
alguns bons anos para que estes expedientes criativos se tornassem
correntes mesmo entre fotógrafos profissionais (apenas no pós-guerra e,
decididamente, na década de 1950, a abstração faria parte das estratégias
de linguagem visual). Ele compreendeu de imediato, ao ser apresen-
tado a essas novas linguagens, suas potencialidades, e exerceu-as. Neste
pequeno grupo de fotografias que analisamos, procuramos evidenciar
algumas diferentes estratégias de construção de suas imagens.

80 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Essa mobilidade de recursos expressivos presentes permite a
Mário transitar entre “universos de visualidade”, indo de um registro
documental para um outro mais subjetivo, e assim por diante. Ele expe-
rimenta com a linguagem fotográfica sem trauma ou esforço, explorando
em rápida sucessão as possibilidades de representação que surgiam com
as vanguardas modernistas – documentação, experimentação, construti-
vismo, simbolismo, abstração. Por outro lado, ele soube tirar partido da
relação de imediaticidade e mobilidade corporal proporcionada então pelos
avanços técnicos da máquina Kodak – pequena, mais leve que as máquinas
anteriores. Sua produção, apesar de numericamente pequena, apresenta
uma densidade qualitativa e um caudal de questões de linguagem que só
seriam plenamente desenvolvidas anos mais tarde, em contextos mais
formais de produção (jornalismo, fotoclubismo, círculos artísticos). Deste
modo, mesmo num meio expressivo em que atuou como “amador”, e em
contato com realidades que lhe eram presencialmente novas, ele colocou
em prática sua premissa de permanente pesquisa estética.

Sobre o autor:

Douglas Canjani
Professor Doutor Assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui
graduação, mestrado e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de
São Paulo.
E-mail: canjani@pucsp.br

ERRATA

No artigo “Mário de Andrade fotógrafo-viajante e a linguagem modernista”, publica-


do no número 57 de Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, na página 78, onde
se lê:

“Figura 26: (Esq.) Olinda Igreja de São Bento II-29 (Código MA-F-1154).

Figura 27: (Dir.) Veneza em Santarém junho 1927 É o hotel 31 de Maio To be or not to
be Veneza Eis aqui estão ogivas de Santarém (Código MA-F-0206).”

Leia-se:

“Figura 26: (Esq.) Rio Madeira Retrato de minha sombra trepada no toldo do Vitória
julho 1927 Que dê o poeta? (Código MA-F- 0417).
Figura 27: (Dir.) Sombra minha/ Sta. Teresa do Alto I-I-28 (Código MA-F - 0752).”

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