Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
linguagem modernista
Douglas Canjani1
Resumo
Mário de Andrade foi, além do escritor abrangente e vívido que conhe-
cemos, um pioneiro da fotografia modernista brasileira. Essa faceta
de sua produção estética, embora menos conhecida, reveste-se de
grande importância conforme avançam, entre nós, os estudos sobre
o desenvolvimento de uma visualidade fotográfica eminentemente
modernista. A experiência fotográfica de Mário, tão densa e original
quanto episódica (resume-se basicamente à década de 1920, aden-
sando-se nos anos de 1927 – 1929, época de suas viagens ao Norte e
Nordeste do Brasil), sofreu forte influência das principais vertentes da
produção modernista europeia, que ele acompanhava principalmente
por meio de revistas europeias de arte, como L’esprit nouveau e Der
Querschnitt, as quais assinava. Analisamos aqui alguns expedientes
de linguagem que caracterizam suas fotos, abrigadas no acervo do
IEB-USP.
Palavras-chave
Fotografia, viagem, modernismo.
51 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
The Travel Photographs of the Brazilian
Writer Mário de Andrade and their
Connection to the Modernist Visual
Language
Douglas Canjani
Abstract
Mário de Andrade, one of the most important modernist Brazilian
writers, developed an intense but short interest in photographing
in the 1920’s. His pictures taken while in travels in the north and
northeast of Brazil (1927 – 1929) are outstanding examples of a
modernist way of creating pictures, which are both documentary
and experimental. He, who never left Brazil, was influenced by Euro-
pean vanguards, which he knew by art magazine reproductions. We
analyze here some of these travels’ pictures, which are housed at the
archives of IEB-USP.
Keywords
Photography, travels, modernism.
52 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
m ário de Andrade é um de
nossos intelectuais mais fecundos e abrangentes. Ele foi poeta, roman-
cista, cronista, jornalista; pesquisador e professor de música, historiador
da arquitetura, crítico literário e de artes plásticas. Estabeleceu um
diálogo estimulante entre as culturas popular e erudita, numa época em
que a separação entre elas era estrita. Promoveu, assim como os outros
modernistas de sua geração, uma revisão dos valores culturais vigentes
no início do século XX, buscando formas genuinamente brasileiras de
expressão, tanto na literatura quanto nas artes visuais e na música.
Apesar desse viés nacionalista, buscou o que havia de mais moderno e
cosmopolita em termos estéticos, incorporando novas formas expressivas
e alargando os debates críticos da época.
Mas uma faceta menos conhecida de sua produção e de seus
vastos interesses é seu envolvimento com a fotografia. Mário não apenas
produziu fotografias de alto teor artístico e documental, extrapolando os
cânones então vigentes na produção fotográfica nacional, como dedicou
mais tarde pequenos artigos à produção alheia 2.
Tendo comprado em 1923 uma máquina fotográfica Kodak (que
ele grafava “Codaque”, assim como inventou o neologismo “fotar” para
designar o ato de fotografar), ele passou a exercer a linguagem fotográfica
na vida privada e nos interesses profissionais, deixando um rico acervo
pessoal de fotografias. Mas foi nas suas duas viagens que ele denominou
“etnográficas”, ao Norte (1927) e Nordeste (1928 – 1929) do Brasil, que
Mário explorou em profundidade as possibilidades que a linguagem
53 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
fotográfica podia então oferecer. As cerca de quinhentas fotos tiradas nas
duas viagens nos mostram um rico conjunto a ser estudado. Apresen-
tamos aqui alguns exemplos dessa produção, buscando evidenciar, na
análise de suas fotos, questões de linguagem fotográfica e o modo como
elas foram construídas ou como podem ser associadas a determinados
cânones visuais.
Em 1927, cinco anos depois da Semana de Arte Moderna e já tendo
feito com o grupo modernista viagens a Minas (1924: viagem de “redes-
coberta do Brasil”), Mário parte para uma viagem de três meses pela
Amazônia (13 de maio a 15 de agosto). Saindo do Rio de Janeiro, de navio
rumo a Manaus, ele para em algumas capitais litorâneas, alcançando
a Amazônia e, como ele mesmo diz, “até o Peru pelo [rio] Madeira até
Bolívia e por Marajó até dizer chega”. Ao longo do extenso trajeto, Mário
fez as anotações em forma de diário de viagem que geraram o livro inaca-
bado O turista aprendiz (editado apenas em 1976), e produziu um rico
acervo de fotografias que enfoca as populações e paisagens ribeirinhas e
apresenta ousadas investigações formais.
As anotações da viagem ao nordeste, feita entre novembro de 1928 e
fevereiro de 1929 por Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte foram edi-
tadas como crônicas de jornal ao longo do ano de 1929. As fotografias
então tiradas registram seus encontros com amigos como Luís da Câmara
Cascudo, com artistas populares, bem como aspectos da vida cotidiana e
das cidades, vistos sob um prisma modernista, em que a documentação
não exclui a forma inovadora.
Surpreendentemente, a incorporação da produção fotográfica de
Mário à história da fotografia brasileira é recente. Parece que, pelo fato
de Mário ser escritor, suas fotos passaram desapercebidas aos (então
poucos) estudiosos da fotografia. Apesar de as fotos de viagem terem
sido dadas a conhecer (algumas em 1976, na edição do texto d’O turista
aprendiz , outras tantas em Mário de Andrade: fotógrafo e turista
aprendiz, 1993, por Telê Ancona Lopez), foi apenas muito recentemente
que Mário começou a ser citado na historiografia fotográfica brasileira.
No texto “Arquitetura e fotografia no século XIX”3, as fotos de Mário
são citadas como exemplo de esforço de documentação isenta; não se
mencionam as características subjetivas do olhar que as preside. Por volta
de 2002, em duas situações, Rubens Fernandes Júnior4 incorpora Mário à
linhagem de artistas-fotógrafos, dedicados à experimentação fotográfica:
3 CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Sílvia Ferreira Santos. Arquitetura
e fotografia no século XIX. In: FABBRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e fun-
ções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.
4 FERNANDES JÚNIOR, Rubens. A fotografia expandida. 2002. 275 f. Tese (Doutorado
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universitária Católica de São Paulo, 2002.
54 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
em sua tese de doutorado e na seção devotada à fotografia da exposição
levada à Valência, Brasil 1920-1950: da antropofagia a Brasília, em cura-
doria geral de Jorge Schwartz. Trabalhos importantes como A fotografia
moderna no Brasil 5 e como a seção “Fotografia” da História geral da arte
no Brasil 6 não o mencionam, o primeiro por cingir-se ao fotoclubismo, o
segundo por deter-se sobre os aspectos documentais da fotografia.
Se a produção fotográfica de Mário não é a de um “profissional”
que se dedica contínua e primordialmente à linguagem visual, ela se faz,
talvez justamente por seu caráter episódico, numa intensa turbulência,
transitando entre uma experimentação ousada e um documentarismo
direto, entre o instantâneo e olhar contemplativo: apesar de “amador”,
seu olhar (assim como sua relação técnica com a câmera) exibe maestria
e vigor na apreensão de geometrias ínsitas ao campo visual, na explo-
ração de luzes e contraluzes, na apropriação simbólica de elementos
visuais de caráter narrativo. Sua inteligência figural distingue-se de
grande parte da amostragem fotográfica brasileira de sua época, como
veremos a seguir.
Perguntamo-nos: como haverá seu olhar se formado, especifi-
camente no que concerne ao repertório fotográfico? Se analisarmos a
produção fotográfica da época, veremos que as ousadias de Mário (e mesmo
suas fotos mais comportadas) movem-se num campo destacadamente
experimental e avançado, tributário das conquistas do modernismo mais
“heroico”. As fotos de Mário se colocam em sintonia com as tentativas
mais avançadas de seu tempo. A título de comparação, convém considerar
que 1923, momento em que Mário compra sua Kodak, é o ano da morte
de Marc Ferrez, cuja obra fotográfica, vasta e importante, é emblemática
do tipo de atuação então corrente: de cunho eminentemente documental,
traz, na construção da imagem, a marca das convenções figurativas do
século XIX e dos limites técnicos de seu equipamento (grande formato,
negativo de vidro, tripé).
5 COSTA, Helouise; SILVA, Renato. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac
Naify, 2004.
6 KOSSOY, Boris. Fotografia. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983, 2 v.
55 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 1: Marc Ferrez, Estação Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899.
56 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Sem dúvida tivemos, na fotografia brasileira do início do século,
exemplos de iniciativas de caráter experimental e inovador, exempli-
ficado pela célebre fotomontagem Os trinta Valérios, de Valério Vieira.
No entanto, essa imagem, ganhadora da medalha de prata na exposição
de Saint Louis (EUA) em 1904, de grande virtuosismo técnico e certo
apelo anedótico (o fotógrafo apresenta-se em trinta poses diferentes em
um espaço de estúdio), passa ao largo das questões que logo em seguida
seriam impostas pela agenda modernista, sem maiores arroubos compo-
sitivos (isto é, abstratos) nem narrativos (marcados, poucos anos depois,
pelas poéticas expressivas das vanguardas).
57 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
poderíamos chamar de “fotojornalismo moderno”7, ligado ao instantâneo
e ao que Cartier-Bresson chamaria de “instante decisivo”.
Por outro lado, se compararmos a obra de Mário com as experiên-
cias de fotógrafos americanos que atuavam na época (como na importante
Farm Security Administration, instituída em 1935, e que contava com
Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, entre outros), veremos que a
linguagem visual de Mário inclinava-se mais ao modelo europeu e expe-
rimental. Na viagem de Walker Evans a Havana em 1933, por exemplo, a
serviço de um diário americano (portanto na condição de viajante e de
fotojornalista profissional), Evans fez retratos bastante sóbrios e compatí-
veis com o uso em jornal isto é, realmente documentais. Apesar de possuir
recursos expressivos e técnicos que lhe possibilitavam a produção de
“instantâneos” , como os feitos em Nova Iorque, uma grande parte de sua
produção reveste-se de um tempo lento, como se cada foto fosse previa-
mente meditada e mesmo feita com tripé. Mário, em viagem, tomou
liberdades de linguagem fotográfica que Evans só tomou “em casa”. De
um modo geral, Mário incorreu em ousadias (o posicionamento diagonal
da câmera, o apreço pela apreensão do instante), que não faziam parte do
vocabulário dominante de Evans (que prefere, geralmente, a frontalidade
e uma temporalidade muito mais lenta).
58 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 5: Walker Evans, City Lunch Counter, Nova Iorque, 1929.
59 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
colocar as possibilidades expressivas da fotografia em posição redutora,
de mera reprodução da realidade.
Dentro deste panorama, a produção fotográfica de Mário surpreen-
de. Apesar de ter uma atuação destacada nos principais debates estéticos
do modernismo brasileiro, e de estar a par das mais candentes discus-
sões (como quando referia-se, em artigo de 1927, à palestra pessimista
de Worringer, em Londres, sobre a continuidade do expressionismo9),
nada lhe garantia que, ao lançar-se à sua própria produção visual, ele
alcançaria algum resultado mais notável. Como se sabe, a posse de um
cabedal teórico avançado não garante, per si, uma linguagem de alto
nível: fazer linguagem é tentar fazer linguagem. Não há, ao menos den-
tro da premissa modernista da experimentação constante (que Mário
defendeu), garantia alguma dos resultados quando um artista se lança
ao processo de criação. Por outro lado, a produção fotográfica de Mário
não é ingênua; as questões com que ele dialoga em suas fotos, remetem a
uma matriz bastante complexa: há o reconhecimento da realidade brasi-
leira, mas que não se submete ao documentarismo fotográfico estrito
senso (capacidade mimética da fotografia, defendida até hoje10; ele evita
o pictorialismo e não se acomoda ao exotismo fácil, produzindo uma vi-
sualidade caleidoscópica, ágil, que subtrai-se à edulcoração do tema
enfocado e que afirma a especificidade técnica da fotografia (luz, contra
luz, enquadramento inusitado). Enfim, dialoga com a informação fresca
que lhe chega, via revistas, da Europa, mas não se deixa apanhar em
fórmulas que lhe engessem a expressão de sua subjetividade.
Em que medida o modernismo fotográfico europeu o influencia?
Seu acompanhamento das questões estéticas então correntes na Europa
pode ser aferido pela presença, em sua biblioteca, de exemplares de
L’esprit nouveau e de Der Querschnitt, revistas europeias de vanguarda
que apresentam uma ampla amostragem de informação visual então
inédita entre nós. Se L’esprit nouveau defendia a ascese racionalista e cons-
trutivista como modo de engendrar a cultura da época, Querschnitt (que
Mário assinou entre 1924 e 1931) colocava-se numa perspectiva moder-
nista bastante abrangente, que poderíamos chamar, provisoriamente e
por contraste à revista francesa, de expressionista. Enquanto a revista
francesa (editada entre 1920 e 1925) reivindicava o que convencionou-se
chamar de “retorno à ordem” (após os excessos do primeiro momento
60 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
modernista, “heroico” e transgressor), a alemã (editada a partir de 1920)
trazia, além da produção de extração construtiva (Fernand Léger, em
fevereiro de 1925, fotomontagens russas, em junho de 1925), exemplos de
arte de caráter francamente “negativo” (textos de Tristan Tzara), assim
como tópicos que envolviam uma discussão em torno do primitivo e do
espontâneo (artigos sobre jazz e arte africana).
Evidentemente, não se trata de sugerir que a inventividade visual
de Mário, no que tange à fotografia, derive apenas e diretamente do
que ele pôde ter visto nos sucessivos números da revista berlinense (ou
mesmo da francesa): ele fotografava, ocasionalmente, no seio familiar,
como quando em visita à fazenda da família em Araraquara. Enquanto
artista e pensador, Mário já estava formado quando realiza as “viagens
etnográficas”: a incorporação de elementos dinâmicos e assimétricos
em seu processo criativo está plenamente exemplificada, já então, na
sua literatura (pensemos, por exemplo, na criação de Macunaíma,
que sairia em 1928). A equação será sem dúvida mais complexa, dado
que a formação do repertório marioandradino é bastante ampla: mais
do que uma “síndrome de influência direta” que fornecesse decalques,
modelos de construção visual, trata-se de entender como ele filtrou, em
sua sensibilidade polimorfa, o caudal de questões que as vanguardas
modernistas propunham: a superação dos modelos pictorialistas que
ancoravam a linguagem fotográfica na sintaxe derivada da pintura
novecentista; a adoção do experimentalismo como uma prática legítima
e constante na busca de novas soluções formais e expressivas; o entre-
choque de conteúdos temáticos e compositivos que podiam redundar
ora num adensamento simbólico de teor surrealista, ora na fruição de
uma espontaneidade que revertia-se na produção de “instantâneos” foto-
gráficos que, ainda que documentassem a realidade vivida, beiravam a
abstração. Algumas sequências sugerem mesmo uma fluência percep-
tiva afim ao cinema, como veremos a seguir nas fotos 235, 236 e 23711.
O olhar pessoal que Mário desenvolve na sua produção fotográfica
oscila perpassa estas possibilidades então candentes: ora usa a fotografia
como registro da realidade, ora tende ao experimentalismo, sem ater-se
a um regime único. Mário parece estar mais interessado em experi-
mentar com a linguagem fotográfica, em “pintar com a luz”, arriscando
soluções com o foco e com a fotometria, em composições diagonais, etc.
Assim, comparecem tanto os instantâneos, fotos tiradas em função de
61 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
uma resposta imediata aos assuntos que se impunham, como chapas que
apresentam um olhar mais propositivo e articulado.
Der Querschnitt apresenta-nos aquelas que eram as grandes
correntes que demarcavam a produção fotográfica alemã da época: uma,
ligada à precisão documental e à eficiência técnica que garantia a ve-
rossimilhança dos aspectos visíveis da realidade enfocada, era defen-
dida pelo então influente fotógrafo alemão Renger-Patzsch; outra, ligada
à renovação experimental dos códigos visuais e à exploração das possi-
bilidades do meio fotográfico, era postulada pelo então professor da
Bauhaus, o húngaro László Moholy-Nagy, que levava a fotografia à foto-
montagem, à fusão com a pintura e o desenho, bem como à abstração
em que intercedia frequentemente o acaso na interação da luz com os
materiais fotossensíveis. Der Querschnitt não reproduzia esquematica-
mente estas duas vertentes; editava-as lado a lado, entremeadas a outros
exemplos da produção fotográfica de então.
O olhar de Mário, então definido a favor de uma ampla abertura à
informação experimental mas também sempre atento às peculiaridades
e especificidades locais, revela-se, nas fotografias feitas nas duas viagens,
abalizado com a fervilhante produção internacional. Mário estabelece
um jogo ágil entre rigor construtivo e incorporação simbólica, entre
apreensão do instante e contemplação.
Consideremos algumas das suas fotos visualmente mais radicais:
Abrolhos parece ter sido feita pela escotilha do navio que o levava
ao Norte do país. A área circular deixa-nos ver uma paisagem marinha,
discernível enquanto tal, mas o escuro contra campo (o resto do visor
retangular da máquina fotográfica) do primeiro plano, sujeito a invasões
de luz, causa uma espécie de indeterminação espacial que parece colocar o
observador tanto na posição de aferição da realidade externa (a paisagem)
quanto de espectador do próprio ato de perceber (a luz que age sobre o
próprio globo ocular). (Há a possibilidade de a máquina de Mário ser de
fole e ter havido invasão de luz por essa peça, que costumava furar com
frequência nas máquinas antigas. Mas não outros indícios desse tipo nas
outras fotos.)
62 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 6: Abrolhos (Código MA-F-0142).
63 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
trazendo-os para uma relação estreita com a legenda textual, isto é, para
um conjunto narrativo extremamente pessoal.
64 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 8: Atirando tarrafa igarapé de Barcarena arredores de Manaus 7-VI-27 (Código
MA-F-0236)
Figura 9: No furo de Bar Carena [Manaus] atirando a tarrafa 7-VI-27 tarrafeando (Código
MA-F-0237).
Ainda que sobre a foto da escotilha possa ser alegado que o efeito
difuso decorre, talvez, de imperícia técnica ou simples acaso (com o que
eu não concordaria), podemos ver que Mário apropria-se das imagens
e incorpora-as a um corpus narrativo (por assim dizer) próprio. As
duas imagens a seguir fazem parte de sua crônica visual de viagem,
mas aludem a campos imaginários bem mais amplos, que extrapolam a
narrativa meramente visual:
65 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 10: Roupas freudianas Fortaleza 5 VIII 27 Sol 1 diaf 1 Fotografia refoulenta Refou-
lement (Código MA-F-0589).
66 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
também notar o registro, no verso da primeira foto, do diafragma usado
e da condição de luz atuante para a foto: denota seu esforço para aferir
condições de controle da técnica fotográfica.
Se essas imagens pertencem ao campo das associações incons-
cientes e da ativação simbólica de cunho psicológico, temos, num
registro de linguagem bastante diverso, algumas fotos nas quais Mário
opera um léxico decididamente construtivo, em que a geometrização dos
elementos no campo visual define a aproximação aos temas:
67 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
das linhas de força naturais (a linha de horizonte que pode-se adivinhar
ao fundo e acima da imagem, no canto superior esquerdo).
A mesma disposição ocorre em Almoço da 3a classe Baependy – ao
largo 6 VIII 27 diaf 1 sol 1 das 10 Em terceira voracidade. Sem dúvida,
era um enquadramento confortável ao autor, que estava no convés supe-
rior do barco mas, com um pequeno esforço de imaginação, podemos
supor que havia inúmeras outras possibilidades de posicionamento da
máquina (e de seu corpo). Por que então esta reincidência, como em Rua
Nova Recife II-29 da minha janela de hotel, em que Mário estava, não num
barco, mas na janela de um hotel? Sem dúvida, ele estava interessado em
investigar essa possibilidade de enquadramento, ousado e radical, para
os padrões de linguagem da época.
Figura 13: (Esq.) Jangadas de mogno encostando no S. Salvador pra embarcar Nanay 23
de junho Peru Vitrolas futuras (Código MA-F-0320).
Figura 14: (Dir.) Rua Nova Recife II-29 da minha janela de hotel (Código MA-F-1142).
68 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
da imagem. Rodchenko, fotógrafo russo frequentemente reproduzido
em Der Querschnitt, explorou decididamente essa opção compositiva,
e Mário estava a par desta condição, como mostra a sua coleção desta
revista. Não quero sugerir que ele copiasse ou se pautasse diretamente
no russo (ou em outro fotógrafo), mas o uso reiterado dessa disposição
gráfica constitui-se, à época, uma estratégia nova, fresca, uma nova
perspectiva possível de registro e de reelaboração formal da linguagem
visual.
Muito diverso, mas tão engenhoso, e mais sutil, é o expediente
usado para registro das grandes amplidões amazônicas. Mário, no texto
d’O turista aprendiz, sublinha frequentemente a inapreensibilidade do
espaço amazônico, cujas dimensões desafiam os sentidos e a linguagem.
Em algumas das fotos, em vez de concentrar-se nas linhas de força como
nas imagens de corte diagonal (em que ele parece esconder ou descartar
a linha do horizonte), Mário apoia a construção da imagem justamente
na linha do horizonte, a que contrapõe, no ato do enquadramento, alguns
elementos.
A imagem Entrada dum Paraná ou Paraná 5-VII-27 rio Madeira –
Ilha de Manicoré O I é o Madeira o II é o furo de Manicoré rio Mataurá
Entre duas águas nos dá uma panorâmica praticamente sem recurso
de escala, salvo uma haste, provavelmente da cobertura da barca. Para
tornar a grandeza da paisagem legível, Mário insere escalas humanas
nas imagens subsequentes.
Figura 15: Entrada dum Paraná ou Paraná 5-VII-27 rio Madeira – Ilha de Manicoré O
I é o Madeira o II é o furo de Manicoré rio Mataurá Entre duas águas (Código
MA-F-0368).
69 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
É o caso das imagens O gaiola Índio do Brasil vindo atracar no
vitória em Pariri, Madeira 17-VII-27 Retrato do barbeiro de bordo Sol 2
Diaf. 1 Manhã e Barbeiro, Dolur na vista Mara Joara 31 VII 27 Sol 3 diaf.
3 Trombeta e O Vitória no Madeira se vê o 1o plano margem esquerda
do igarapé de Três Casas Foto tirada barranca alta, direita do mesmo
igarapé 7-VII-27.
Figura 16: O gaiola Índio do Brasil vindo atracar no vitória em Pariri, Madeira 17-VII-27
Retrato do barbeiro de bordo Sol 2 Diaf. 1 Manhã e Barbeiro (Código MA-F-0453).
Figura 17: Dolur na vista Mara Joara 31 VII 27 Sol 3 diaf. 3 Trombeta (Código MA-F-0568).
70 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Nas duas primeiras imagens, temos a linha do horizonte ocupando
quase toda a extensão longitudinal do campo visual. No entanto, Mário
cuidadosamente enquadra uma pessoa (o barbeiro de bordo, na primeira,
e Dolur, companheira de viagem, na segunda imagem) num dos extremos
do campo visual (à direita ou à esquerda). Assim, temos que à imen-
sidão da paisagem, contrapõe-se um elemento que ajuda a dar dimensão
apreensível ao espaço de fundo. Ao distante, contrapõe o próximo; à
geometria da linha horizontal, faz corresponder o corpo humano, ou
primeiro plano cortante, como na imagem da barca no rio Madeira. Desse
modo, Mário faz uso do expediente que, desde o fim do século XVIII, era
comumente usado em pintura quando se queria registrar grandes pano-
ramas: insere uma figura humana que funciona como escala, a partir
da qual pode-se estimar as grandezas visualmente envolvidas no jogo
da paisagem. Assim, ele recorre a um cânone da estética do sublime, em
que o contraste entre o muito grande e muito pequeno (a escala humana)
concorrem para o efeito geral que se pretende: expressar a imensidão
da natureza. Essas imagens não devem ser confundidas com os retratos
enquanto tais: o corpo (ou rosto) humano aparece aqui como elemento
da retórica da imagem. Para os retratos, vejamos a seguir.
71 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
O retrato que Mário intitula Na lagoa do Amanium perto (?) do Igarapé
de Barcarena Manaus 7-VI-27 Minha obra prima condensa tanto um
retrato quanto a visão da paisagem circundante, vista em plano médio.
Talvez por isso – pelo olhar direto do retratado, pela clareza descritiva
da paisagem, pela circunstância da foto (autor dentro do barco, como na
série das tarrafas), bem como por detalhes peculiares, como a flor entre a
vitória régia e o barco – Mário considere essa imagem sua “obra-prima”. A
figura humana, diferentemente da série anterior, dos “panoramas”, ganha
força compositiva, definindo diagonal abrupta em primeiro plano. Trata-se
de um retrato que tem todas as características clássicas de representação
visual, em que a relação entre temas expostos e composição redunda numa
imagem “fechada”, da qual nada se tira, nada se põe e à qual nada falta.
Figura 19: Na lagoa do Amanium perto (?) do Igarapé de Barcarena Manaus 7-VI-27
Minha obra prima (Código MA-F-0250 ).
72 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
cena. Se a cena define-se frontalmente em função do par central – prin-
cipalmente o homem de expressão carregada (pressupõe-se que seja um
carregador ou estivador, devido ao capote de proteção que ele e o rapaz ao
fundo usam) –, os elementos do fundo deixam a cena “em aberto” – barco,
céu, homens ao fundo, sugerindo continuidade espacial e de ação.
Figura 20: Assacaio 17-VI-27 O mais alto esse e negre enegrecido pintado de genipapo
(Código MA-F-0283).
Figura 21: Crilas de Assacaio 17-VI-27 Alto Solimões “…o homem que tirou fotografia da
gente…” (Código MA-F-0290).
73 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
O mesmo poderíamos dizer de Boniteza tapuia: de fato ela era
mais bonita que o retrato S. Salvador VIII 27 A Venus de milho, não fosse
pela consonância entre a ligeira superexposição luminosa e o brilho nos
olhos da moça, cuja expressão entre melancólica ou reticente confere um
caráter mais psicológico à foto. Talvez houvesse algum leve desconforto
no encontro (ele teria pedido permissão? Ela desviou o olhar levemente?),
superado pela densidade poética que o retrato, afinal, alcançou. Além
disso, o posicionamento em ¾ (e não frontal, como os dois anteriores)
reforça a referência ao cânone artístico, em que as angulações frente ao
modelo tem papel retórico importante.
Figura 22: Boniteza tapuia: de fato ela era mais bonita que o retrato S. Salvador VIII 27 A
Venus de milho (Código MA-F-0355).
74 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
estandarte da procissão. No entanto, um acaso feliz fez com que a criança
central, perfeitamente focada e iluminada, voltasse o rosto para o autor.
Este acaso (terá Mário chamado a criança, naquele instante?) criou a
força maior da imagem: a cumplicidade entre observador e observado.
Figura 23: Procissão de Maria 31 de maio de 1927 Santarem Santa que vai santa que vem
Tem procissão em Santarem (Código MA-F-0211).
75 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 24: Parintintin / Cararnerê (Código MA-F-0671).
76 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 25: Piás se banhando num igarapé Iquitos 24-VI-27 (Código MA-F-0329).
77 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 26: (Esq.) Rio Madeira Retrato de minha sombra trepada no toldo do Vitória
julho 1927 Que dê o poeta? (Código MA-F- 0417).
Figura 27: (Dir.) Sombra minha/ Sta. Teresa do Alto I-I-28 (Código MA-F - 0752).
78 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 28: Praia de Boa viagem Recife Boa Viagem no Recife (Código MA-F-0154).
79 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Figura 30: Veneza em Santarém junho 1927 É o hotel 31 de Maio To be or not to be Veneza
Eis aqui estão ogivas de Santarém (Código MA-F-0206).
80 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013
Essa mobilidade de recursos expressivos presentes permite a
Mário transitar entre “universos de visualidade”, indo de um registro
documental para um outro mais subjetivo, e assim por diante. Ele expe-
rimenta com a linguagem fotográfica sem trauma ou esforço, explorando
em rápida sucessão as possibilidades de representação que surgiam com
as vanguardas modernistas – documentação, experimentação, construti-
vismo, simbolismo, abstração. Por outro lado, ele soube tirar partido da
relação de imediaticidade e mobilidade corporal proporcionada então pelos
avanços técnicos da máquina Kodak – pequena, mais leve que as máquinas
anteriores. Sua produção, apesar de numericamente pequena, apresenta
uma densidade qualitativa e um caudal de questões de linguagem que só
seriam plenamente desenvolvidas anos mais tarde, em contextos mais
formais de produção (jornalismo, fotoclubismo, círculos artísticos). Deste
modo, mesmo num meio expressivo em que atuou como “amador”, e em
contato com realidades que lhe eram presencialmente novas, ele colocou
em prática sua premissa de permanente pesquisa estética.
Sobre o autor:
Douglas Canjani
Professor Doutor Assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui
graduação, mestrado e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de
São Paulo.
E-mail: canjani@pucsp.br
ERRATA
“Figura 26: (Esq.) Olinda Igreja de São Bento II-29 (Código MA-F-1154).
Figura 27: (Dir.) Veneza em Santarém junho 1927 É o hotel 31 de Maio To be or not to
be Veneza Eis aqui estão ogivas de Santarém (Código MA-F-0206).”
Leia-se:
“Figura 26: (Esq.) Rio Madeira Retrato de minha sombra trepada no toldo do Vitória
julho 1927 Que dê o poeta? (Código MA-F- 0417).
Figura 27: (Dir.) Sombra minha/ Sta. Teresa do Alto I-I-28 (Código MA-F - 0752).”
81 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 51-82, dez. 2013