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Guiao pt leitura

Capítulo 16 – 9ºencontro
Numa dessas noites Fernando Pessoa bateu-lhe à porta…
RR – Grande ausência, julguei que nunca mais o tornaria a ver
FP – Tenho saído pouco, perco-me facilmente como uma velhinha
desmemoriada, ainda o que me salva é conservar o tino da estatua do camões,
a partir daí consigo orientar-me.
RR - oxalá não venham a tirá-la, com a febre que deu agora em quem decide
essas coisas, basta ver o que está a acontecer na avenida da liberdade, uma
completa razia.
FP - nunca mais passei por lá, não sei nada.
RR - tiraram, ou estão para tirar, a estátua do Pinheiro Chagas, e a de um José
Luís Monteiro que não sei bem quem tenha sido.
FP – Nem eu, mas o Pinheiro Chagas é bem feito.
RR – cale-se, que você não sabe para o que está guardado
FP – A mim nunca me levantarão estátuas, só se não tiverem vergonha , eu
não sou homem para estátuas.
RR – Estou de acordo consigo, não deve haver nada mais triste que ter ums
estátua do seu destino
FP – Façam-nas a militares e a políticos, eles gostam, nós somos apenas
homens de palavras, e as palavras não podem ser postas em bronze ou pedra,
são só palavras, e basta.
RR – Veja o Camões, onde estão as palavras dele
FP – Por isso fixeram um peralta de corte
RR – Um D’Artagnan
FP – De espada ao lado qualquer boneco fica bem, eu nem sequer sei que
cara é a minha
RR - Não se zangue, pode ser que escape à maldição, e se não escapar,
como o Rigoletto, sempre lhe restará a esperança de que um dia lhe deitem o
monumento abaixo , como ao Pinheiro Chagas, transferem-no para um sitio
tranquilo, ou guardaram-no num depósito, está sempre a acontecer olhe que
até há quem exigia a retirada do Chiado
FP – Tambem o Chiado, que mal lhes fez o Chiado,
RR – Que foi chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar onde o puseram
FP – Pelo contrário, O Chiado não podia estar em melhor sitio, não é possível
imaginar um Camões sem um Chiado, estão muito bem assim, ainda por cima
vieram no mesmo século, se houver alguma coisa a corrigir é a posição em que
puseram o frade, devia estar virado para o épico, com a mão estendida, não
como quem pede, mas como quem oferece e dá, Camões não tem nada a
receber de Chiado.
RR - diga antes que não estando Camões vivo, não lhe podemos perguntar,
você nem imagina as coisas de que Camões precisaria.

(RR vai a cozinha, aquecer um café, voltou ao escritório e foi sentar-se diante
de Fernando Pessoa, disse: )
RR - faz-me sempre a impressão de não lhe poder oferecer um café.
FP - encha uma chávena e ponha na minha frente, fica a fazer-lhe companhia
enquanto bebe.
RR - não consigo habituar-me à ideia que você não existe.
FP - olhe que passaram 7 meses, quanto basta para começar uma vida, mas
disso sabe você mais do que eu, é médico
RR – Há alguma intenção reservada no que acabou de dizer ?
FP - que intenção reservada poderia eu ter?
RR – Não sei
FP – Você está muito suscetível hoje.
RR – Talvez seja por causa deste tirar e pôr de estátuas, desta evidência da
precariedade dos afetos, você sabe o que aconteceu ao discóbolo, por
exemplo. ?
FP - Qual Discóbolo ?
RR – O da Avenida
FP - Já me lembro, aquele rapazinho no, a fingir de grego,.
RR - pois também o tiraram.
FP - porquê?
RR - chamaram lhe efebo e impúbere e efeminado, e que seria uma medida de
higiene espiritual poupar os olhos da cidade à exibição de nudez tão completa.
FP – Se o rapaz não ostentava os atributos físicos excessivos, se respeitava a
conveniências e as proporções, onde é que estava o mal
RR – Ah, isso não sei, a verdade é que os tais atributos, para lhes dar esse
nome, embora não demasiadamente demonstrativos, eram mais que
suficientes para uma cabal lição de anatomia
FP – Mas o mocinho era impúbere, era efeminado, não foi isso que disseram
RR – foi
FP – Entao pecava por defeito, o mal dele não foi pecar por excesso
RR – Eu limito-me a repetir, tao bem quanto sou capaz, os escândalos da
cidade
FP – Meu caro Reis, você tem a certeza de que os portugueses não terão
começado a enlouquecer devagarinho
RR – se você, que vivia cá, o pergunta, como há de responder-lhe quem
passou tantos anos longe.

(RR ACABA DE BEBER O CAFÉ E PENSA SOBRE O POEMA, FP pediu:


FP – distraia-me, conte-me outros escândalos
RR – Vou ser pai
(FP olhou o e depois largou-se a rir)
FP - Você está a brincar comigo
RR – Não estou a brincar, alias, não percebo o espanto, se um homem vai para
a cama com uma mulher, persistentemente, são muitas as probabilidades de
virem a fazer um filho, foi o que aconteceu neste caso.
FP – Das duas, qual é a mae, a sua Lidia ou a sua Marcenda, salvo se ainda
há uma terceira mulher, com você tudo é possível
RR – Não há terceira mulher, não casei com Marcenda
FP – Ah, que dizer que de sua Marcenda só poderia ter um filho se se
cassasse com ela
RR – É fácil concluir que sim, você sabe o que são as educações e as famílias
FP – uma criada não tem complicações,
RR – as vezes…
FP - Diz você muito bem basta lembrar-me do que dizia o alvaro de campos,
que muitas vezes foi comico as criadas de hotel~
RR – não é nesse sentido
FP – então, qual
RR – Uma criada de hotel também é uma mulher
FP- Grande novidade, morrer e aprender
RR – Voce não conhece a Lidia
FP – Falarei sempre com o maior respeito da mae do seu filho, meu caro Reis,
guardo em mim verdadeiramente tesouros de veneração e, como nunca fui pai,
não precisei de sujeitar esses sentimentos transcendentais ao aborrecido
quotidiano.
RR – Deixe-se de ironias,
FP – Se a sua súbita paternidade não lhe tivesse embotado o sentido da
audição, perceberia que não há nas minhas palavras qualquer ironia
RR – Ironia há, mesmo que seja mascara de outra coisa
FP – A ironia é sempre mascara
RR – De que, neste caso
FP – Talvez de uma uma certa forma de dor
RR – Não me diga que lhe doi nunca ter tido um filho
FP – quem sabe
RR – tem duvidas
FP – sou, com não deve ter esquecido, a mais duvidosa das pessoas, um
humorista diria o mais duvidoso dos Pessoasm e hoje nem sequer me atrevo a
fingir o que sinto
RR – E a sentir o que finge – pg 429

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