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PERTURBAÇÕES DE UM VOO...

Figurava-se o ano 2017 na base aérea de Monte Real, Leiria. 

Como em outros transactos recebe-se novo corpo de cadetes aviadores para


iniciação de mais um estágio de instrução especial. 

A ansiedade à chegada é notória. Uns evidenciam-na mais que uns tantos... a


etapa necessária para subirem a oficiais, o sonho que há muito os acompanha,
aguarda um desafio à sua prepotência. 

Chegados à base é hora de se submeterem à presença do instrutor como à do


monitor e acolherem instruções, indicações a serem seguidas nos próximos quatro
anos de instrução. 

Ultrapassada a tensão, que a presença de um superior hierárquico impõe, mais


afazeres têm de ser supridos na secretaria. É ali ao lado, numa sala onde o som de
secretariado não se apresenta tímido, teclas fazem lembrar as castanholas dos
nuestros hermanos e um rumrum de uma impressora, já idosa a que lhe libertem a
aposentação, inundam aquele reduto. Esse ambiente sonoro, que se transfigura
acolhedor até, enriqueceu a quadratura quando a maestrina da estranha melodia pára
e eleva o seu olhar... era um olhar felino fixado nas suas presas... os cadetes
presentes sentiram a intimidação... Tudo congelou perante letal presença. Por
segundos silêncio absoluto... Minto, apenas os pássaros da natureza circundante
tinham a coragem e a permissão em se apresentarem como violinos desta orquestra
peculiar. Que ornato hipnotizante para aqueles olhares embriagados de admiração se
apresenta. Absorção completa da sinfonia que os acolhera tornou-se uma obsessão.
Como sob o efeito da dança da serpente ficaram inanimados sem reacção. Breves
segundos após, em sussurros partilhados, surgem várias afirmações e questões: 

- Muito gira! Se pudesse e deixasse encontrava em mim o homem por quem


sempre esperou e sonhou! E como a iria fazer feliz, realizada... Risos de malícia
camuflados na mudez que os acompanham…

- Como se chama mesmo?

Fraseia o Miguel. De pronto emerge mais um outro comentário, existe sempre


quando vários galos pretendem disputar a galinha singular da capoeira…

Miguel insiste numa pergunta que não obteve resposta ainda.

Em tom insultuoso ouve-se:

- Oh pá! Não tens olhos na cara? Olha para o crachá e não te percas nas
curvas ou ainda te despistas! AH! AH! (com poucos decibéis, claro) Ficaste mesmo
apanhadinho, pareces um adolescente que perdeu o descernimento na postura...
Acorda! Chama-se Margarida mas ouvi alguém a abordá-la por Guida. (Sorrisos) 

Nisto um a um aproximam-se ao balcão a medo. Respiram fundo, soltam numa


voz grave e segura, na tentativa de impressionar o belo espécime raro, único até, os
dados requeridos. Uma hora depois dá-se por concluída a formalidade. São 12:30h,
claro, hora do almoço. Com anseio aguardam o momento do refeitório onde, como é
evidente, se vão expressar opiniões e expor o efeito borboleta da diva que se revelou.
E que revelação... 

O Miguel e o Fernando, como grandes amigos que sempre foram, caminham


em debate acérrimo sobre quem iria conquistar a sua atenção. 

- Que mulher misteriosa com um encanto atroz... só aquele olhar... Suspira de


estupefacção o Miguel. 

Depressa rebate o Fernando:

- Podes ter a convicção de que ela foi talhada à tua medida e até pode ter sido
mas deixo-te uma pergunta: E tu? Foste talhado para ela? Pois amigo, não me parece,
lamento. Para que não sofras desilusões e não entres numa montanha russa sem
travões alerto-te, desde já, desiste se não quiseres sofrer, deixa isto a quem tenha
arcaboiço para suportar os duros confrontos nos primeiros obstáculos. Tu não foste
feito para sofrer, sempre foste um menino da mamã, bastava o bater de asas de uma
libelinha e lá surgia eu para te levantar da queda... Esquece lá isso. Eu sou mais o
género dela, atrevido, destemido, aventureiro e, claro, inteligente, muito até. E não te
rias porque eu sei muito bem o quanto valho, tá? Elas gostam disso. Desculpa ser frio
ao dizer-te as verdades mas, é assim como elas são servidas, desculpa. 

- Olha, o pessoal já está a entrar no refeitório, vamos? Quero falar com o Tomás e
saber o que lhe pareceu a nossa deusa, a secretária mais desejada de Leiria,
certamente. (Risos)

Entram e um zumzum apoderou-se do silêncio no salão. Adivinhem... Sim, o


assunto tem nome de flor, Margarida. Uma flor bela na simplicidade, elegante no
branco imaculado do seu manto... Mas o que domina o epicentro das palavras soltas é
a pergunta: quem é a Margarida? Alguém conhece algo da sua vida? É solteira,
disponível? Pois é, todos se encontram em pé de igualdade… o de estado de “sítio” e
planos começam a esboçar-se. O Corpo sempre foi prendado por resultados
extremamente satisfatórios em cada missão que abraçasse e esta será mais uma,
com toda a certeza. 

O Fernando finalmente encontra o Tomás. Homem de um rosto fino, elegante,


semblante tatuado de mística nunca indiferente ao olhar de uma mulher que por ele se
cruze… e lá estava ele sentado numa mesa de caneta na mão, como apanágio,
anotando os planos. No Corpo sempre foi o homem da escrita, trata a palavra por tu e
com ela consegue entrar onde mais ninguém tem a coragem de se aventurar.

- Então mano, está tudo? Já tens algum plano em mente? Interroga o


Fernando. 

- Está tudo. Tenho vários até, tu sabes como sou, escrevo a primeira palavra e
as restantes atropelam-se para se perfilarem numa ideia genial.

- Pois. E não me queres revelar algum em primeira mão? 

Mostra-se o Fernando empolgado por alguém já ter o vislumbre da solução


desta charada.
Será a Margarida a Pandora que Zeus enviou? Talvez seja o mais certo.
Embora se vista com uma beleza única e uma perfeição ímpar ela também se faz
transportar por uma caixa que já mais poderá ser aberta. A caixa de Pandora. Pois,
como a mitologia grega nos apresentou, lá dentro encontram-se todos os males que
nos destruirão... 

Mas esta possibilidade não é lembrada por ninguém. A quem se encontra


enamorado os riscos são descurados, toda a concentração cinge-se na meta, no ponto
de chegada.

Voltamos à sala de operações.  O Fernando, em pulgas, insiste na sua


demanda:

- Então, Tomás? Vais-me revelar o plano ou...

- Calma. A tua participação vai ser de suma importância. Vais te sentir como
um peixe na água. He! He!

Sem entender a analogia, frange o sobrolho desconfiado...

- Conta logo de uma vez, já me estou a passar!

Resmunga o Fernando impaciente.

- Então é assim:

A Margarida é funcionária aqui, certo? Como tal também irá percorrer os


mesmos corredores das instalações e irá fazer as refeições por cá, quase de certeza.
Por isso está tudo ao nosso alcance.

- Pois. Na teoria é tudo muito simples na prática não o vejo tão descomplicado.
Não sei não...

- Deixa de augurar pela negativa, já está tudo bem planeado nesta cabeça,
confia.

- Conta! Conta, então.

- Quando me encaminhava até ao refeitório passei, inadvertidamente, junto ao


gabinete das Relações Públicas. A porta encontrava-se aberta, o que me permitiu ver
uma das funcionárias que lá se encontrava. Foi aí que nasceu o meu plano, ela será a
nossa porta de entrada. Lembrei-me imediatamente de ti. Tu és o homem, o homem
que possui a chave que nos vai dar as respostas.

- Tu és o homem... O homem que possui a chave... Quase pareces o Tone do


Balas & Bolinhos... Deixa-te de filmes baratos e esmiúça-me lá isso. Como entro
nesse plano e o que tenho de fazer?

- Então ouve com atenção :

A funcionária é uma jovem mulher onde a beleza lhe fez uma visita de médico.
Estatura baixa, volume acima da média, bastante até… Será este o seu ponto fraco,
facilmente a conseguirás debelar com a tua lábia onde és mestre.

- Lábia? Tinha de ser logo eu? Não há mais ninguém? Olha! O Miguel, por
exemplo, ele também é bom com as palavras, mais do que eu até...
- Nada disso. Foste o escolhido, seleccionado por unanimidade. Por mim e pelo
Camões.

- Camões? Mas quem é esse Camões?

- A minha esferográfica. Já não te lembras? Eu penso a ideia ele transcreve em


papel...

Subitamente, um tsunami vai invadindo a sala com tal placitude... A origem? A


chegada inesperada da Margarida. Todos os olhares centraram-se naquela imagem
surreal. A mais bela inspiração do criador. Altiva, elegante na marcha caminha até à
mesa que se encontra disponível.

- Olá Guida, vai ser o de costume? Abordou o empregado de mesa.

- Sim, um cimbalino com aquele cubinho de chocolate a acompanhar. Obrigada,


Luís.

Mais uma informação anotada pelo Tomás. Sempre atento ao pormenor. Quem
pede um cimbalino só pode ser alguém de origens portuenses, alguém que faz questão
em afirmar o seu berço recorrendo a uma expressão que há muito entrou em desuso.
Daqui denota-se uma personalidade forte, vincada nas suas convicções e certezas.
Detentora de uma beleza impactante e uma personalidade forte apresenta desta forma o
seu cartão de visita mas, muitos mais mistérios ainda se encontram por desvendar. Ou o
próprio mistério faz parte e serve de alimento ao seu glamour?

O Tomás, em silêncio, faz sinal ao Fernando. Este aproxima-se antevendo


novidades à espreita.

- Diz. Que querias?

- Tenta ganhar a confiança do empregado de mesa, além da miúda das R. P. ele


também nos poderá ser útil. Aproveita e podes começar já. O Porto/Benfica não vai ser
neste fim-de-semana? O futebol é uma boa deixa para desbloquear uma conversa. Força
nisso. AH! Mas não te esqueças da miúda das R. P..

Entretanto chega ao refeitório a R. P. no momento em que o Fernando iria


abordar o empregado de mesa. Dilema instaurado. Não se iria desdobrar, o tempo era
curto e a vontade de avançar rápido no plano fê-lo pensar em segundos. A R. P. é sua
tarefa (contra a vontade) então procura o Miguel, doente benfiquista, para meter
conversa com o empregado conforme sugerido pelo Tomás. As cartas estão lançadas.

A Margarida termina o café, segura delicadamente no cubo de chocolate


levando-o à boca lentamente, dá uma ligeira trinca apertando suavemente com seus
lábios carnudos o remanescente… tudo a acontecer numa repetição em câmara lenta até
ao fim da degustação… e todos eles a observar como se estivessem a ver o anúncio
“Hora Coca-Cola Light”. Nisto levanta-se, prepara-se para sair mas sem antes se
aproximar da Luísa (a R. P.) para a cumprimentar com um olá. É agora… o Fernando
aproveita o momento em que a Luísa se encontra junto ao balcão para pagar e,
deliberadamente, ao passar, embate-lhe no ombro com o seu.
- Desculpe, foi sem intenção. Estava distraído. Como compensação, por algum
dano causado, o café fica por minha conta.

Aborda desta forma com um sorriso de orelha a orelha… de imediato deixou a


Luísa de todas as cores, com um respirar acelerado e o coração sabe-se lá como mas que
não é difícil de se adivinhar.

- Ora essa. Não é necessário, está tudo bem, obrigada. São coisas que
acontecem…

- Mas eu faço questão. Perturbei a sua paz conseguida depois de um momento de


relax merecido. Mil desculpas. Fernando. O meu nome é Fernando. Desculpe não me
ter apresentado antes, fiquei todo atrapalhado com a situação. Foi intencional, acredite.

Comenta o Fernando na sua mestria de sedução.

- Muito obrigada. Assim deixa-me sem jeito. AH! Luísa... o meu nome.

Sorriu envergonhada.

- Muito bem, Luísa. Gostei de a conhecer e sinto que nos vamos entender na
perfeição. Agora que irei passar quatro anos na Formação Especial, certamente, nos
iremos cruzar mais vezes… e sem choques físicos, espero eu… EH! EH! EH!

- AH! AH! AH! Espero bem… Gostei de si. (Sorrisos)

- Confesso o mesmo (pisca um olho). Vou tomar a liberdade em…

- Em???

- Tenho receio em ser mal interpretado… deixe lá…

- Agora que começou termine, por favor…

Quase que implorava pelo resto da frase. Encontra-se em êxtase, nunca um


homem despendera mais do que dois minutos da sua atenção com ela. Ficou encantada
pelo Fernando e ele sabe disso.

- Vou tomar a liberdade em lhe propor um jantar no próximo sábado. Fui


inoportuno, atrevido? Eu sei… desculpe… esqueça o que disse, estou parvo…

E fica em silêncio olhando o chão. O Fernando tem mesmo a arte da


representação bem apurada…

- HA! HA! HA! Não seja tonto. Claro que sim. Aceito!

- Então está combinado. Vou já tratar disso…

Disse com aquele olhar matador que nunca o deixara ficar mal. Mas agora tem
de encontrar o restaurante ideal e, de preferência, o favorito dela. Começa a pensar,
pensar e depressa surge-lhe a solução. Sempre foi de pensamento rápido, não perdia
muito tempo em ponderações, pragmatismo era com ele. Já o Tomás era mais lento,
tinha de observar todos os prós e contras mas, em compensação, mais assertivo. O que
lhe veio a conceder o “título“ de cérebro de qualquer missão do Corpo. Não será a ele a
quem vai recorrer mas sim ao Miguel que, por esta altura, já deve ter conquistado a
confiança do Luís, o empregado de mesa, e assim ser-lhe-á mais fácil saber qual o
restaurante mais badalado na zona, se possível e souber, qual o preferido da Luísa.
Avista o Miguel e faz-lhe sinal para se aproximar.

- Então Miguel, já fizeste amizade com o Luís?

- Claro. Ele é um tipo porreiro, muito fixe até, pertence ao meu clube…

- Óptimo. Agora pergunta-lhe por um restaurante recomendado para levar uma


miúda e impressioná-la.

- Deixa comigo. Já viste o quanto conseguimos nas poucas horas que chegamos?
Somos do caraças. Não há obstáculo que nos trave.

- Pois não, e sacrifícios pela causa também serão tomados. Podiam terem-te
incumbido este jantar a ti… mas… até tenho pena da miúda, não queria magoá-la. Eu
também tenho coração, sabes?

- Bla, bla, bla… agora só te falta chorar… Vê as coisas por outro prisma. Pensa
que vais fazê-la feliz por algum tempo. É um jantar de amigos, certo? Não estás a fazer
promessas de amor, nem pedi-la em casamento… Relaxa.

- Pois, mas ela vai julgar que esteja apaixonado. Não está correcto. Mas… Ok!
Temos que “descobrir” a Margarida. É o que mais quero e, acredita, ela vai ser minha.

- Tem calma, amigo, não és o único que está na corrida!

Graceja o Miguel, com ciúmes, claro.

Restaurante Saloon-quinta do Paul

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