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Edições Pedago, Lda.

Título: Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Colecção: Políticas Educativas e Curriculares

Coordenação da Colecção: João M. Paraskeva

Organizadores: João M. Paraskeva e Lia Oliveira

Tradução: João M. Paraskeva

Revisão do Texto: .........

Design e Paginação: Márcia Pires

Impressão e Acabamento: ...........

ISBN: .............

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Setembro de 2013

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Índice
Cap. 1
O que (não) se Sabe. Políticas Culturais e Tecnologia Educativa 7| 19
João M. Paraskeva

Cap. 2
A Ciência e a Tecnologia como Hegemonia 21| 62
Stanley Aronowitz

Cap. 3
Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida 63| 72
Henry Giroux

Cap. 4
Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia 73| 105
Judy Wajcman

Cap. 5
A Escola de Frankfurt: A Ciência e Tecnologia como Ideologia 107| 138
Stanley Aronowitz

Cap. 6
Problemas Filosóficos da Tecnologia 139| 163
Miguel Ángel Quintanilla

Cap. 7
Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: 165| 186
Mitos (ensarilhados) e falsas promessas
Lia R. Oliveira
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Cap. 1

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


O que (não) se sabe. Políticas
culturais e tecnologia educativa

João M. Paraskeva
University of Massachusetts, Dartmouth

No dia 19 de Abril, a vida académica no campus da Universi-


ty of Massachusetts, Dartmouth, Estados Unidos começa como
um qualquer outro dia típico de quase fim de semestre. É um dia
perfeitamente normal. Os cheiros, as cores, os risos, o vai e vem
de alunos e professores, de andar desgastado de mais um ano a
lutar vitoriosamente contra um déficit de mais de 15 milhões de
dólares. A crise do ensino superior público nos Estados Unidos
tem sido enfrentada, entre outros desvarios, através do aumen-
to desumano da dívida do(a)s aluno(a)s que ultrapassa já, em
larga escala, a dívida do cidadão ao crédito. A financialização do
capital (cf. Foster, 2011; Magdoff & Foster, 2012) escorre pela fi-
nancialização do dia a dia, e a educação não mais é vista como um
direito e valor moral e ético de uma democracia saudável, mas
como uma mercadoria (Paraskeva, 2013).
As televisões espalhadas pelo belo campus do South Coast
Massachusetts – geralmente sintonizadas na CNN, NBC ou FOX
– reproduzem as últimas das últimas dos recentes atentados na
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maratona de Boston, com imagens repetitivas temperadas com


os trivializados rodapés televisivos breaking the news. Nem um
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

acontecimento trágico fazia alterar a mundana e tantas vezes


patética – confessemos sem demoras – vida académica pauta-
da pelas aulas, atendimento aos alunos – peregrinamente cum-
prido nos Estados Unidos – conversas entre professores sobre
mais um artigo aceite para publicação, ou o último contrato de
um livro com uma dada prestigiada editora, um email da Chan-
celer congratulando-se pelas conquistas académicas de alunos
e professores no plano nacional e internacional, não esquecen-
do ainda o stress provocado pelo tenure e promoções (que aqui
não dependem de vagas na mão de Ministros, sempre parágra-
fos menores no complexo matrix do poder hegemónico, mas de
cumprimento de standards definidos por cada departamento e
aprovados pelo Provost, não obstante ser um processo formati-
vo complexo).
Numa fração de segundos tudo mudou. Os media começam
a transmitir as imagens dos supostos autores do massacre de
Boston e num ápice um dos alunos estremece ao conhecer o seu
colega de quarto no dormitório do campus. O barulho e o silêncio
casam-se e a face já tão bem desenhada por Munch multiplica-se
por todos os rostos do campus. A palavra correta aqui é não ‘co-
nhecer’. A partir deste instante, tudo mudou na vida do campus
da University of Massachusetts, Dartmouth. É dada ordem para
evacuação imediata e em frações de segundos o campus inunda-se
de forças policiais, militares e para-militares; na verdade, veio-se
a perceber, também em segundos, já cá estavam. Tornaram-se
agora visíveis. A tragédia precipitara-lhes uma outra (verdadei-
ra?) identidade.
Outras subjetividades, outros cheiros, cores, o vai e vem trans-
tornado, de corpos que não pertencem à realidade académica,
mas que já não destoam e já pouco importam questões – que
agora viram a mundanas – como as agendas de investigação. Não
importam, mas deviam importar. Todos nós estamos habituados
ao treino nas evacuações corriqueiras que a espaços somos obri-
gados a fazer nos testes coordenados pelos Bombeiros. É trivial
aqui no Estados Unidos. Mas isto foi tudo menos uma evacuação.
Como diria Slavoj Žižek (2009) o real explodira na realidade nu.
Na azáfama ‘da fuga’, passa-nos o filme da vida, por segun-
dos, e clarificamos tanta coisa. Pelo menos tentamos. Sabemos
tanto e faltam-nos palavras para forrar o momento. Não são
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mesmo as pernas que correm, é a alma. O silêncio da fuga é viola-
do por curtos murmúrios; Did you know the guy? No! You? His face

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


looks familiar. Was he from engeneering? Não há mais campus,
por momentos. Os barulhos e os silêncios da vida param. Cheira
a morte. Longe da geograficalidade do espetáculo, mais resguar-
dados vamos conhecendo mais do aluno que havia perpetrado um
atentado num dia e, no dia seguinte, andava tranquilamente pelo
campus convivendo com colegas pelos mais diversos espaços. A
vida na UMass mudou. Ninguém o disse melhor que Zeca Afonso:
‘A morte saiu à rua num dia assim’.
Transportamos todos tantas (não as mesmas, espero) pergun-
tas. Uns e outros tentam rapar o fundo da alma para perceber
uma realidade que teima em normalizar o dia a dia.
Esta tragédia deveria obrigar-nos todavia a refletir uma mi-
ríade de aspectos complexos, para além das políticas culturais
do espetáculo policial e militar (cf. Giroux, 2012) que de imediato
passaram do invisível ao visível a latitude e longitude social da
tecnologia. Ou seja, urge estudar a fundo como é que um jovem
concebe, planeia e executa tamanha barbárie num dado dia e,
no dia seguinte, retoma a vida normal numa academia, sem que
ninguém se aperceba que algo não está bem (Žižek, 2001), para-
doxalmente, numa altura em que se vive o heyday do que pode
bem vir a ser o novo panótico – o personalized learning softwa-
re (cf. Parry, 2012). A questão de fundo não é mesmo a questão
tecnológica, ou a materialidade da tecnologia (Haas, 1996) ape-
sar da educação se encontrar sufocada num mundo onde a tec-
nologia é omnisciente e omnipresente (Landauer, 1988). Com a
invasão tecnológica veio também o abalar das visões cognitivas
uniformistas, tão apregoada, por exemplo, por Charles Eliott no
dealbar do século XX (Paraskeva, 2008), ganhando espaço as vi-
sões pluralistas da mente e as perspectivas de inteligências múlti-
plas (cf. Gardner, 1988; Kincheloe, 2004). Importa, sim, perceber
qual é o ‘punctum’, para trazer Barthes (1981) à colação, sobre
o qual devemos (ou devíamos) atuar por forma, numa primeira
fase, a desnormalizar tragédias de tamanho ADN ideológico e,
posteriormente, erradicá-las? Como educadores falhamos em
que ‘punctum’?
O que aqui se pede, como Žižek (2009) tão bem propõe, é
uma análise correta – e não espartana – da construção social
desta tragédia, para que simultaneamente possamos começar
do princípio. O primeiro passo para se começar do princípio foi
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sendo dado secularmente pelo pensamento cartesiano no com-


plexo e sangrento terreno da modernidade, um momento de
grande fracasso civilizacional, como atestam os momentos de
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

insurgência global um pouco espalhados pelo mundo. Como nos


sugere Žižek (2009), para se começar do princípio, é preciso ter
falhado rotundamente bem. E que disso não restem dúvidas.
A modernidade falhou drasticamente. E, continua a falhar redon-
damente, não percebendo que há que começar do princípio.
O pensamento cartesiano parece hoje ser um ente de hospício.
A tragédia de Boston certificou o conhecimento que (não)
temos e simultaneamente força a outro conhecimento. Ou seja,
não nos diz que um outro conhecimento é possível. Diz-se com
estrondo que é real. Com uns míseros $100 ou pouco menos, um
aluno de graduação da faculdade de engenharia da University of
Massachusetts, Dartmouth, uma das melhores do pais, paralisou
uma cidade como Boston, congregou uma caça ao homem leva-
da a cabo por 9 mil homens (polícias e militares); um aluno como
tantos que conhecemos porque não conhecemos e que coloca
em causa, numa palavra, tudo. Se a tragédia revela como toda
uma civilização falhou em cheio e que deve por isso, começar do
principio, os acontecimentos que se sucederam no campus pos-
teriormente demonstram bem como, depois de se ter falhado
em cheio, se acerta também em cheio sobre o que não se deve
fazer, ou seja, ‘falha-se mal’.
No programa de doutoramento em Educational Leadership
and Policy Studies tentamos contrariar esta estratégia e alunos
e professores debateram esta questão no âmbito das políticas
culturais da negação. O facto de um dos nossos alunos ter sido
‘referenciado’ como suspeito deve obrigar a um amplo debate
no campus e a resposta da educação. E educação tem que ter
uma resposta. Mesmo que não tenha. Deve forçar-nos a repen-
sar o conhecimento curricularmente transmitido assim como as
agendas de investigação nas academias do Ocidente (Paraskeva,
2011; Paraskeva e Steinberg, 2013). Como nos alerta Barrow (2010),
as contradições e stresses do capitalismo avançado – vulgo neolibe-
ralismo – desaguam livres nas Universidades que, entroncadas na
matriz ideológica e económica do estado vegetativo para os mais
desfavorecidos, se sentam definitivamente no banco dos réus dada
a sua incapacidade – que não é de todo inocente – em lutarem por
uma sociedade igual e justa. Ou seja, a Universidade, está diretamen-
te implicada na continuada e conveniente instigada, desenvolvida e
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difundida crise do estado quer como causa, quer como solução. As
tragédias sociais não podem ser interpretadas à margem da crise
de racionalidade do modelo empresarial que coloniza o sistema

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


de ensino superior que se esgota numa evidente crise de racio-
nalidade e que deve ser vista como uma oportunidade para um
radical transformação das relações de poder no seio da próprio
ensino superior e nas suas relações com o estado e capital. Uma
das faces dessa crise é claramente o desvario relativamente às (e
nas) humanidades que tem sido complacentes com o modelo ne-
oliberal participando em processos continuados de sobre profis-
sionalização, segregação e apartheid dada a recusa em desafiar o
modelo eurocêntrico, ocidentocêntrico dominante (Maldonado
Torres, 2012).
Não vai ser possível continuar a alimentar por muito mais tem-
po a tese da crise financeira – e a crise fiscal do estado – como
um cheque em branco para, numa palavra, continuar a defender
interesses espúrios à justiça social.
Não é mesmo a ignorância que tem causado tanto sofrimento
humano nas sociedades humanas, mas precisamente o conheci-
mento e o saber dos seres humanos (Bilings, 1938). A verdade
é que nunca as sociedades escolares e as sociedades, em geral,
estiveram na posse de tanto conhecimento e saber, como já dei-
xarem bem vincado Baudelot e Establet (1994). Olhando para a
história, não é preciso recuar muito no tempo para perceber que
as grandes atrocidades que marcaram e marcam as sociedades
humanas – desde a escravatura, passando pelo genocídio que
foram os movimentos de (neo)colonialistas da modernidade (e
que são os da dita pós-modernidade), o holocausto, o extermí-
nio no Ruanda, os mais recentes eventos de 11 de Setembro, nos
Estados Unidos, e subsequentemente em Madrid e Londres, as
sistemáticas violações ambientais, as mais recentes invasões ao
Iraque e continuada tentativa de extermínio do povo Palestino,
até à mais recente crise social vivida por toda a União Europeia,
com especial incidência em nações como a Grécia, Portugal,
Espanha e Chipre – são cometidas por seres humanos educados
ou portadores de um determinado nível de conhecimento – ain-
da que alguns possuam conhecimentos certificados de formas
menos corretas.
David Orr, voz mítica neste domínio, não hesita. As maiores
atrocidades que vivemos no planeta não são produto de gente
ignorante. Pelo contrario. São o resultado do trabalho e da decisão
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de indivíduos com bacharelatos, licenciaturas, mestrados, douto-


ramentos e pós-doutoramentos (Orr, 2006, p. 43).
Apoiado no raciocínio de Wiesel (1990), Orr (2006, p. 43) desta-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ca que os mentores e responsáveis de Auschwitz, Dachau e


Buchenvald foram mesmo herdeiros de Kant e Goethe, eram das
pessoas mais bem educadas no mundo, pese embora a sua edu-
cação não tenha servido como barreira à sua barbárie. Isto colo-
ca em causa o que de facto sabemos sobre o que sabemos. Pouco.
Fragiliza o conhecimento veiculado pelas instituições sociais.
Abala o que se tem feito nas instituições escolares. E, a verdade
é que se tem feito pouco ou quase nada, para que pela socializa-
ção democrática do conhecimento se construa uma sociedade
mais justa e igual. A febre quantificadora coloniza as instituições
educacionais de uma forma desumana sob a falácia de rizomas,
meritocracias e funcionalidade matemática que tem reduzido a
importância do ser humano na produção, refutação, assimilação
e desafio do conhecimento. Se, por um lado, é bem verdade que
se sabe hoje mais do que se sabia há décadas, também não será
de todo mentira que, porventura, se saberá também muito mais
do mesmo.
Indo ao encontro de Žižek (2009), começar do princípio im-
plica compreender que a já assumida wireless society, que criou
uma rama de redes sociais que “já não é a próxima grande coisa,
é, em si, a coisa” (Bauman, 2007, p. 1), tem promovido uma elimi-
nação de destrezas sociais colocando em causa a sociologia dos
sentidos. Bauman destaca que se vive numa época em que se
aprecia a invisibilidade do ‘eu’.

Numa era de computadores e portáteis, iPads, celulares, muitos de nós


temos muita areia à nossa volta para enterrarmos a cabeça. Não há mais
necessidade de ter que enfrentar destrezas superiores de ter que ler gestos,
expressões, faces e poderes de persuasão, esconder fraquezas. Os receios
as esperanças, desejos, dúvidas ficam onde devem realmente ficar; comigo
e só comigo (Bauman, 2007, p. 18).

Esta questão entronca frontalmente com as contornos teóri-


cos e práticos do neoliberalismo que são, no entanto, distintos.
A teoria neoliberal “adopta a perspectiva que a liberdade indivi-
dual e social são clímax civilizacionais, defendendo que tais liber-
dades serão sempre melhores protegidas e atingidas através de
uma estrutura institucional” (Harvey, 2011, p. 43). Esta estrutura
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institucional, Harvey (2011, p. 43) acrescenta, “baseia-se numa
forte defesa dos direitos da propriedade individual, mercado e
comércio livres, um mundo no qual a iniciativa individual floresce

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


naturalmente”. Escusado será dizer que este tango teoria-prática
tem impulsionado o fabricar de novos espaços globais de circula-
ção de mercadorias e bens (Wacquant, 2008) hipotecados a uma
nova financialização do capital e do dia-a-dia.
A tecnologia e a forma como está a entrar na formalização
dos espaços educacionais não é inocente neste matrix imperial
de poder e tem responsabilidades diretas na multiplicação do
que Wacquant (2008) denomina marginalidade avançada. A tec-
nologia educativa está muito longe de ser a salvação pedagógica
(Angulo Rasco, 2012) numa época moderna destituída de solu-
ções modernas (Santos, 2007; Paraskeva, 2011). No caso concre-
to de Portugal, o Plano Tecnológico para a Educação, uma espé-
cie de decisão Tarzan (Pereira, 2011; Oliveira, 2012), não surge do
nada, devendo ser contextualizado no âmbito das dinâmicas de
produção ideológica promovidas pelas instituições sociais. A tec-
nologia determina(-se em) habitus (cf. Bourdieu), e importa exa-
minar a forma como as gramáticas e arqueologias institucionais
domesticam e naturalizam habitus particulares ao ponto de se
poder co-existir com a temeridade arrogante de assumirmos que
o que não sabemos não ser importante. Pior. O que não sabemos
– e julgamos tanto saber –, é porque fatalmente não existe.
Em El-Rei Junot, Raul Brandão, de uma profundidade salivante
no realismo com que descrevia o texto e contexto, destacou que
as revoluções estão já feitas antes de se iniciarem, ou seja, o fu-
turo encomenda-se no presente. Pode-se (e pede-se) assim o fu-
turo. A tragédia de Boston foi o futuro de um passado presente
que persistimos em cuspir como abjecto. Estava encomendada,
e se quisermos recuar na história, urdiu-se na primeira pedra que
se colocou ao erigir o modelo moderno Ocidental. Este é um dos
grandes paradoxos. Continuamos a ignorar o futuro.
Na aula magna que tive ocasião de proferir aos alunos e alu-
nas de doutoramento em Educational Leadership and Policy Stu-
dies aqui na University of Massachusetts, Dartmouth, na abertura
do ano académico de 2012-2013, comecei por destacar como os
seres humanos são mesmo seres humanos. Desenharam um mo-
delo social que tem como fim o seu extermínio e onde cada vez
mais o ‘presente’ se impõe como o único culto. Daniel Innerarity
(2012) é-nos aqui muito importante. Este filósofo alerta para o
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futuro em perigo nas sociedades democráticas destacando que


vivemos uma tirania presentista (Pinar, 2009 e Giroux, 2009 ha-
viam salientado esta questão, também, mas num outro contexto
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

e por outros caminhos) onde o totalitarismo da economia persiste


em cilindrar biliões de seres humanos implacavelmente. Vive-se,
segundo Innerarity (2012), o imperialismo do presente que co-
loniza tudo e todos absorvendo o futuro e vivendo dele como
um parasita. O culto do consumismo, tão bem cozinhado pelas
instituições escolares – veja-se o caso do ensino superior (cf.
Popkewitz, 1988) –, através de um feroz individualismo, promo-
ve novos tempos e novos espaços sempre distintos. Innerarity
(2012) propõe-nos o que denomina por ‘Teoria da Aceleração”
que rompeu com todas as normas e cânones da linearidade mí-
nimos (muito por culpa não da tecnologia, mas do que se tem
feito com ela e dela) e que faz com que as respostas aos desafios
sociais sejam tantas vezes descontextualizadas. Vivemos uma
época em que time is out of joint (Innerarity, 2012).
Innerarity (2012) desafia-nos a pensar o futuro não como algo
abstracto, mas na constante tentativa de questionar o presen-
te e simultaneamente diminuir as incertezas, os limites, as suas
latitudes e longitudes. É por este processo que conseguiremos
aproximar a retórica da realidade, examinando como, quem e
porque se persiste numa realidade tão dessincronizada – e que
constantemente opta por teses simplistas para resolver graves
problemas sociais – assim como propondo uma nova forma po-
lítica para uma sociedade pós-heróica e que, apesar de tudo,
transpira ainda uma esperança coletiva. O preço deste caminho é
elevado. Reza a história ‘não oficial’, as tormentas por que passa-
ram todos aqueles que enfrentaram a verdade do (não) saber, in-
telectuais como, por exemplo, o matemático Georg Cantor (1845
– 1918) que ousou tentar perceber ‘quão grande é o infinito’ de-
safiando a pretensa clareza finita da matemática ‘oficial’. Cantor
– que viria a ser considerado, pelas correntes dominantes, como
uma praga que demoraria décadas a erradicar – é um exemplo
vivido do nexus conhecimento (oficial), poder e política.
Em jeito final, e olhando para a história – mesmo que tolhida-
mente fabricada – se percebe como, por exemplo, Hitler e o na-
zismo tentarem oferecer o antissemitismo como narrativa expli-
cativa das sagas sociais. E fê-lo inclusivé pela via religiosa (Žižek,
2012). Não nos venham agora com outra narrativa – ou grande
narrativa – ancorada ao eixo do mal porque não colhe. Como tive
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oportunidade de examinar com Torres Santomé (2012) em outro
espaço, os fenómenos de des-ideologização são em sim ideoló-
gicos pois só se ‘mata’ a ideologia ideologicamente (Paraskeva &

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


Torres Santomé, 2012). A tecnologia? A tecnologia, para me so-
correr de Batista Bastos, é mesmo um parágrafo menor em tudo
isto.
Os textos que estruturam este volume III de Currículo e Tecno-
logia Educativa, vão ao encontro das questões levantadas ante-
riormente. Em A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia, Stanley
Aronowitz analisa a forma falaciosa como se defende a tecnolo-
gia, por oposição a ciência, como influenciada e dependente de
exigências económicas. Segundo o autor, esta distinção coloniza
o senso comum e visa naturalizar a atividade científica enquanto
neutra quando, efetivamente, ela depende dos poderes instituí-
dos e das ideologias dominantes. Aronowitz salienta que quando
se afirma que a ciência e a tecnologia, em si mesmas, não são
boas nem más — o que com elas se faz, sim, será bom ou mau
—, esquece-se que ambas são fabricadas com base em intenções
e ideias já definidas. Tal como a religião, num outro plano, ambas
aspiram inegavelmente ao controlo social. O autor propõe ainda
a criação de uma ciência moderna que desafie a ideologia da do-
minação.
Henry Giroux, em Mercantilizando as Crianças: A Crise Esqueci-
da, analisa a forma como jovens e adolescentes constituem ‘o’
nicho de mercado preferencial não só porque gastam muito em
compras de variados tipos mas, também, porque influenciam as
compras dos adultos. Este padrão cultural, Giroux destaca, coloca
forte pressão nos pais que não apenas compram o que os filhos
lhes pedem ou lhes dão dinheiro para gastar como entenderem,
como também compram o que pensam – por via da publicidade
– que tornará os seus filhos mais inteligentes e letrados, mais ra-
pidamente. Reconhecendo a inevitabilidade do consumo para a
sobrevivência humana, Giroux sublinha a necessidade de repensar
esta sociedade de consumo unicamente orientada para um mer-
cado capitalista desregulado, ávido e comprovadamente não sus-
tentável. Aceita a necessidade do consumo mas reclama o direito
à consciência crítica relativa ao consumo e, sobretudo, o direito à
decência na abordagem à infância, conceito este que apesar de
recente na história humana ainda continua sendo consensual.
Em Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia, Judy Wajcman
desafia o senso comum que afirma a tecnologia como neutra
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no que respeita ao género: os estereótipos sempre apresentam


as mulheres como tecnologicamente incompetentes e como
alheias a qualquer atividade técnica. Assentando os seus argu-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

mentos numa revisão aturada e crítica da literatura sociológica


e feminista sobre tecnologia dos últimos vinte anos, traz à luz
o viés masculino na definição e desenvolvimento da tecnologia
que tem contribuído para reforçar distinções sexuais na socieda-
de, em particular no trabalho pago. Analisa o impacto da tecno-
logia na vida das mulheres, ao longo dos tempos, desde a ativi-
dade doméstica até às tecnologias de reprodução. Sugere que as
mulheres terão sido, precisamente, as primeiras tecnólogas visto
terem estado entre as primeiras recoletoras e processadoras de
comida desde os primórdios da civilização, contudo, não sendo
reconhecidas enquanto tal. Poderão as tecnologias, concreta-
mente as ‘novas’, contribuir para uma efetiva libertação da mu-
lher dos múltiplos fardos que a sociedade lhe impõe ou continu-
arão elas a perpetuar uma subjugação que foi e continua sendo
culturalmente construída? Deixa-nos estas questões e também
esta: será que o problema reside no monopólio masculino exerci-
do sobre a tecnologia ou poderá a tecnologia ser, inerentemen-
te, uma construção – ideológica e cultural – patriarcal?
Stanley Aronowitz, em A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecno-
logia Como Ideologia, discute a gestão da herança marxista reali-
zada por alguns teóricos associados à Escola de Frankfurt peran-
te a massificação da cultura provocada pelo desenvolvimento das
tecnologias da informação e da comunicação da época (telefone,
rádio, televisão). A Teoria Crítica que dela emergiu, atacou a so-
ciedade tecnológica emergente mas também defendeu parado-
xalmente a arte da alta burguesia. A cultura de massas, resultado
dos recursos técnicos e económicos do capitalismo especializou-
se na distribuição das mercadorias culturais. A comunicação de
massas e os meios electrónicos tornaram-se instrumentos de
propaganda comercial mas também política, vendendo produ-
tos associados a modos de vida, alterando irremediavelmente o
rosto da política e da cultura. Pode a vida privada ser possível
sob a supremacia tecnológica? Pode a esfera pública sobreviver
à televisão essa esfera pública substituta?
Miguel Ángel Quintanilla examina os Problemas Filosóficos da
Tecnologia. O autor trata a relevância da filosofia da técnica, in-
timamente associada à filosofia da ciência, as duas entremeadas
para o controlo da realidade em consonância com os desejos ou
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necessidades humanas determinados pelos interesses dominan-
tes. Segundo Quintanilla, sendo a história das civilizações a his-
tória das suas técnicas, de entre estas sobressaem as de orga-

O que (não) se sabe. Políticas culturais e tecnologia educativa


nização social e de controlo das organizações sociais, daí a
importância de situar a origem da tecnologia atual na revolução
industrial que, ao alterar a estrutura do sistema de produção de
bens materiais, alterou irrevogavelmente a organização social do
trabalho, passando este a estar completamente separado do ca-
pital e todo o processo produtivo submetido ao princípio do lucro.
O autor destaca ainda que num mundo de artefactos como é aque-
le em que vivemos, as teorias sobre a realidade não podem esca-
par ao artificial. A fusão da informática e das telecomunicações, ao
invadir o terreno da produção de conhecimento (processamento,
armazenamento, produção e transmissão de informação), veio
afetar a estrutura social e a estrutura cultural das sociedades.
As tecnologias da informação e comunicação (TIC), em concreto,
invadiram o domínio do ócio mas também fizeram com que o ócio
se tornasse produtivo, subvertendo as relações entre produção e
cultura: a técnica transformou o negócio em ócio e o ócio em
negócio. As TIC não se limitam a armazenar, transmitir ou reprodu-
zir informação – processam-na – e este processamento gera nova
informação, fazendo com que comecem a aparecer produtos inte-
lectuais nos quais não é evidente a inteligência humana.
Finalmente, Lia Oliveira, no seu capitulo Plano Tecnológico da
Educação e Educação Pública: mitos (ensarilhados) e falsas pro-
messas trata o âmago social do Plano tecnológico. Na sequência
da Estratégia de Lisboa (Conselho Europeu de 2000) que visava
transformar a União Europeia “na economia do conhecimento
mais competitiva e dinâmica do mundo”, o Governo de Portu-
gal criou, em 2007, o Plano Tecnológico da Educação (PTE) para,
em 2010, colocar Portugal entre os cinco países europeus mais
avançados na modernização tecnológica do ensino. O PTE tem 3
objectivos: ligação à internet em banda larga de alta velocidade
(≥ 48 Mbps); número de alunos por PC com ligação à internet
(2); percentagem de docentes com certificação TIC (90%). O PTE
privilegia ainda parcerias com o sector privado (empresas e ban-
ca) e assumiu-se, à época, como a grande solução para a crise da
escolarização pública. Lia Oliveira examina a interface entre PTE
e a educação pública, apoiando-se em três hipóteses de trabalho:
uma primeira em que efetua uma espécies de zootomia ao PTE,
uma segunda em que situa o PTE no momento social coetâneo
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profundamente determinante e determinado pelas políticas de


cunho neoliberal e uma terceira em que tentar interpretar por
que porta entrou o PTE na educação pública, desnudando des-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ta forma os seus limites, mitos e falsas promessas. Conclui com


a crença numa escola pública como movimento social líder na
transformação social, o que para tal impõe uma reconceptua-
lização da interface PTE e escolarização pública que, entre ou-
tras questões, anule com o determinismo tecnológico que surge
como discurso de salvação para todos.

Referências Bibliográficas
Barthes, R. (1981). Camera Lucida. New York: Hill & Wang.
Barrow, C. (2010). The Rationality Crisis in US Higher Education. New Political
Science, 32 (3), pp., 317-344.
Baudelot, C. & Estabelet, R. (1994). O Nível Educativo Sobe. Porto: Porto Editora.
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|| 21
Cap. 2

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


A Ciência e a Tecnologia Como
Hegemonia

Stanley Aronowitz
Graduate Center of the City University of New York

Quando a minha filha Nona tinha dois anos de idade, era fre-
quente, após uma queda, exclamar: “foi a cadeira”, ou, quando
esbarrava contra uma parede, “foi a parede”. A 11 de setembro
de 1986, a bolsa de valores de Nova Iorque registou uma queda
drástica de oitenta e seis pontos. No dia seguinte, após uma
descida de trinta e quatro pontos, num artigo do New York Times
lia-se: “o amplo uso de computadores contribuiu para o declí-
nio.” Segundo o seu autor, as transações na bolsa de valores não
raras vezes são detonadas por sinais emitidos por um programa
informático. Trata-se de um processo automático de “fração de
segundo” e pelo menos aparentemente, os grandes operadores
institucionais, como os planos de pensões e os bancos principais,
reagem à mais ligeira oscilação das taxas de juro sem uma re-
flexão significativa. Neste dia em particular, quando os correto-
res da bolsa chegaram ao local de trabalho, “depararam com uma
enorme subida das taxas de juro… [o que] provocou uma imediata
descida no preço de contratos futuros para ações.”1 Isto despole-
|| 22

tou as vendas de ações existentes por parte dos gestores finan-


ceiros e aquisições generalizadas de contratos futuros. Quando
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

os grandes investidores se desfizeram das ações, outros segui-


ram o seu exemplo e os preços das ações decaíram. Os investi-
dores reagem ao computador do mesmo modo que a minha filha
explica o embate contra uma parede. Como é evidente, o Times
e os analistas por ele consultados sugeriram que os problemas
económicos nacionais e internacionais pudessem constituir uma
influência latente na considerável queda dos preços das ações
nessa semana, mas do ponto de vista dos investidores, parece
que foi o computador deles a tomar a decisão de vender.
Que vivemos numa era do computador, ninguém parece duvi-
dar. Contudo, paralelamente aos elogios dirigidos a este aparelho
electrónico, existe um crescente coro de críticas e um sentimen-
to geral de dúvida acerca das suas características redentoras.
Na realidade, o computador é hoje encarado pela generalidade
das pessoas como mais do que uma ferramenta, após três déca-
das durante as quais muitos dos seus defensores nos tentaram
afiançar que, apesar do seu considerável poder, ele é de facto
uma extensão da cabeça e da mão humanas e não possui qual-
quer autonomia. No entanto, nos últimos anos, esta visão tem
sido ferozmente atacada tanto pela investigação experimental
em computação, como pela prática daqueles que com ele inte-
ragem. Existem cientistas como Herbert Simon (1957), que lhe
atribuem poderes quase místicos, dos quais o mais importante,
seria a capacidade de pensarem (como é óbvio, de modo a pro-
var esta afirmação, Simon viu-se forçado a definir os humanos
como “processadores de informação” – podendo uma opinião
mais complexa deitar por terra esta teoria). A investigação em in-
teligência artificial procura encontrar formas de resolver o velho
dilema da incerteza na ação humana a qual tem contaminado o
processo de trabalho, a política e vastas áreas da vida social. As
máquinas que pensam tornam-se sujeitos mais confiáveis no que
respeita à previsão e ao controlo.
Porém, o computador parece ter uma mente própria, espe-
cialmente se os seus fiscalizadores forem guiados pela sua infor-
mação. Muita gente, incluindo alguns cientistas da computação,
||

1 The New York Times, 12 de setembro de 1986. O mesmo tema foi abordado pela impren-
sa após a queda de 508.33 pontos na bolsa de valores a 18 de outubro de 1987.
|| 23
já começou a comparar os computadores ao Golem do geto me-
dieval ou ao monstro criado pelo Dr. Frankenstein. Longe de per-
manecer uma ferramenta assombrosa mas obediente, o compu-

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


tador não raras vezes salta dos eixos, subvertendo os propósitos
humanos que o puseram em marcha. À semelhança das máqui-
nas que caracterizaram a Revolução Industrial, os computadores
são apenas o pretexto mais recente para que surjam receios de
que as “coisas” estão fora de controlo, que a sua origem humana
se perdeu e que é tarde de mais para a salvação.
O meu exemplo da bolsa de valores não é, de forma alguma,
o âmago da questão. Porque aqueles que não falam de Chernobil
ou de Three Mile Island também deviam calar-se a respeito das
maravilhas da tecnologia. É claro que aqueles que continuam a
defender o uso de tecnologia nuclear para produzir energia atri-
buem os problemas nestes locais ao “erro humano”, do mesmo
modo que os representantes da companhia Union Carbide acu-
saram os trabalhadores e uma supervisão inadequada de serem
responsáveis pelo desastre de Bhopal, na Índia, em dezembro de
1984, desastre esse que matou vários milhares de pessoas e feriu
outras 200 000 (Morhouse e Subramanian, 1986). A expressão
“erro humano” normalmente refere-se àqueles que trabalham
com o equipamento; quando um avião cai, o piloto ou o mecânico
responsável pela manutenção são quase sempre culpabilizados.
Quase nunca a expressão “erro humano” recai sobre a conceção
do avião ou sobre o juízo básico de que a energia nuclear é uma
aposta segura. Quando a tecnologia está envolvida, os gestores
e os media raramente perguntam se as premissas da máquina em
questão são válidas. Por exemplo, os representantes governa-
mentais são preparados para perguntar se uma companhia que
opera num reator nuclear concebeu um plano de evacuação ade-
quado; a técnica de gerar energia nuclear ou de produzir armas
nucleares está para lá da competência das agências reguladoras
porque a promoção de energia nuclear é uma política nacional.
São muitas as razões pelas quais a energia nuclear e os trans-
portes aéreos se tornaram tecnologias privilegiadas tanto na
produção de combustível e como nos transportes. Não é minha
intenção contestar os argumentos económicos e políticos utiliza-
dos pelas empresas para convencer os muitos governos, incluin-
do o dos Estados Unidos, de que estas tecnologias eram mais efi-
cazes do que os meios de produção de energia existentes. Para
os nossos propósitos, o critério da eficiência está intimamente
|| 24

ligado a conceitos como o de poupança de custos, cujo aspeto


principal é a poupança de tempo – tempo na extração de maté-
rias-primas da terra, uma actividade com muita mão de obra, ou,
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

concomitantemente, o tempo poupado a viajar a 1000 km/h em


vez de 150 ou 300 km/h, que é a atual velocidade máxima dos
transportes ferroviários. Todavia, os caminhos de ferro sofreram
às por causa dos camiões, os quais, segundo qualquer padrão
convencional, consomem mais energia do que os comboios. Os
argumentos contraditórios apresentados em defesa de diversas
formas de transporte desmentem os meros critérios de eficiên-
cia: pode ser que as escolhas da tecnologia sejam feitas de forma
inteiramente independente de decisões “racionais” de produção
mas obedecem a uma racionalidade diferente, a força do poder.
Alguns estudiosos da introdução da tecnologia da energia nu-
clear nas sociedades industriais avançadas levantaram um con-
junto completamente diferente de argumentos relativamente à
razão pela qual esta forma perigosa, e até desastrosa, de obter
energia ter recebido um apoio tão forte. O argumento central é
que as decisões de “seguir a opção nuclear” transcendem quais-
quer critérios racionais possíveis, ou que sejam escolhidos por
critérios económicos ou técnicos. Em vez disso, afirmam estes
críticos, o ímpeto básico para a introdução de energia nuclear
radica na estrutura hierárquica da sociedade. Os que estão no
topo dessa estrutura conseguem impor-se a todos nós através
de uma lógica de dominação, conseguida pela simples repetição
das suas falsidades em todos os espaços de debate e discurso
públicos. Esta explicação retira a discussão da causalidade do
domínio da razão instrumental. Não foi este ou aquele interesse
que triunfou, tragicamente, nos corredores do poder. O poder
em si mesmo comporta a sua própria exigência, que ultrapassa,
impunemente, as fronteiras da razão. Com efeito, o poder define
novos códigos racionais sem referência a qualquer ideologia.
Se isto é verdade, nenhuma das atuais críticas convencionais
e racionais é adequada à situação. Alguns defensores tentam
mostrar que alguns interessados podem esperar obter lucros gi-
gantescos com a introdução de certas tecnologias. Outros ape-
lam ao culto da eficiência como o árbitro instrumental supremo
da escolha social. Cada uma destas posições gera uma ideologia
concomitante ou justificação da ação. A noção do poder enquan-
to árbitro não implica o surgimento de qualquer ideologia inde-
pendente. Em virtude do seu controlo sobre o conhecimento,
|| 25
pode forjar uma justificação ao ponto de a necessidade de justifi-
cação continuar a ser indispensável nas democracias de massas.
Por exemplo, a sobrevivência humana é ameaçada por um outro

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


desenvolvimento científico/tecnológico de grande importância:
a engenharia genética, o elemento tecnológico associado às des-
cobertas geradas pela biologia molecular. O ADN recombinante
é uma tecnociência eugénica; a sua justificação baseia-se quase
invariavelmente na proposta de melhorar as características de
sobrevivência das espécies através da conceção do gene, em vez
de aceitar passivamente as características geneticamente rela-
cionadas, como inevitáveis. A engenharia genética é uma inter-
venção na evolução, uma tentativa de adquirir controlo sobre os
processos de vida.
Estes exemplos não são, em rigor, comensuráveis, mas são
invocados para ilustrar o espectro de problemáticas que estão
a emergir para questionar a tecnologia e a sua irmã gémea, a ci-
ência moderna. A afirmação de que a ciência e a tecnologia se
tornaram inseparáveis é, certamente, controversa, especialmen-
te entre aqueles que insistem que a ciência é independente das
preocupações do poder e da ideologia. A divisão entre ciência
e tecnologia visa proteger a ciência da sua implicação na matriz
das considerações económicas e políticas, que reconhecidamen-
te influenciam – ou até determinam – o curso do desenvolvimen-
to tecnológico e a sua disseminação. Não deixa, contudo, de ser
verdade que a maior parte dos estudiosos na área da ciência,
embora reconhecendo a influência daquilo que é comummente
designado como “fatores culturais” no processo de aquisição de
conhecimento, insiste que as questões económicas, políticas e
ideológicas devem ser rigidamente demarcadas das considera-
ções relacionadas com o conteúdo do conhecimento científico.
Em vez disso, o termo “comunidade científica” tornou-se idênti-
co ao de “contexto social”. De facto, desenvolvimentos recentes
no estudo social da ciência confinaram este contexto ao labora-
tório, deixando de parte outras influências “externas”. Apesar
dos desenvolvimentos ao longo dos últimos trinta anos, que ten-
tam estabelecer uma relação entre os discursos científicos e as
condições histórias e outras de natureza social dentro das quais
funcionam, o apoio à afirmação de que a ciência e o meio científi-
co são relativamente autónomos continua a ter muitos defenso-
res. Há, contudo, evoluções/alterações na filosofia, na história e
no estudo social da ciência que desafiaram a ideia de que o que
|| 26

conta como conhecimento do mundo exterior é obtido por via


exclusiva de procedimentos científicos. Como veremos mais
à frente, a maior parte dos investigadores em ciência conti-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

nuam amarrados ao conceito de ciência como uma esfera de


conhecimento distinta e praticamente não abordaram a sua
relação com a tecnologia. A grande exceção é, evidentemen-
te, a Teoria Crítica, cuja fundação consiste em estabelecer esta
ligação e reivindicar o domínio da tecnologia sobre a ciência,
bem como o seu domínio sobre as relações sociais contempo-
râneas.
A asserção da que a cultura ocidental é profundamente tec-
nológica deriva da crítica “romântica” alemã do Iluminismo, uma
crítica que os membros da Escola de Frankfurt partilham com
descendentes do pensamento neo-kantiano de finais do século
XIX e inícios do século XX, especialmente Edmund Husserl e Mar-
tin Heidegger. Depois de defender que “o racionalismo da Era do
Iluminismo está agora fora de questão”, Husserl apressa-se, to-
davia, a acrescentar: “mas a intenção delas [filosofias do Iluminis-
mo], no seu sentido mais geral, não deve nunca morrer em nós”;
a intenção é uma “humanidade baseada na pura razão” (Husserl,
1970, p. 290). Max Horkheimer e Theodor Adorno seguem uma li-
nha de raciocínio semelhante. Lamentam o Iluminismo, que criou
uma nova ciência e tecnologia que podiam dominar a natureza
de modo a promover o florescimento da razão, mas que, em vez
disso, conduziram ao seu declínio. O fim da razão radicava na
crença, ainda hoje comum, de que a natureza podia ser reduzida
a puro objeto, possuindo uma extensão meramente quantitati-
va. A matematização e mecanização do quadro do mundo foram
levadas a cabo pela ciência do século XVII ao serviço da predição
e do controlo. No processo, segundo Husserl, perdemos contac-
to com o “mundo da vida” numa série de dualismos: mente e
corpo, quantidade e qualidade, relações matemáticas e relações
humanas. Para a Escola de Frankfurt, o resultado lógico foi o po-
sitivismo – a alienação da razão humana de si mesma (Horkhei-
mer e Adorno, 1972).
Enquanto a crítica de Husserl se circunscreve ao nível do dis-
curso filosófico, Horkheimer, Adorno e Herbert Marcuse atribu-
íram estas dicotomias à laceração da sociedade pela dominação
social. A dominação da natureza cumpre um projeto humano, a
dominação das pessoas pelas pessoas. A ciência e a tecnologia
são práticas que espelham o mundo social.
|| 27
Ainda assim, a Escola de Frankfurt estava a criticar o Iluminis-
mo do lado de dentro. Embora Marcuse fosse ambíguo no res-
peitante à ciência, afirmando a dado ponto que era necessário

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


criar uma nova ciência livre do domínio tecnológico, declara, no
capítulo final do seu One Dimensional Man, que a ciência e a tec-
nologia “são grandes veículos de libertação” desde que possam
ser subordinadas a novos fins para substituir o da dominação.
Estes fins “operariam no planeamento e na construção de ma-
quinaria, e não apenas na sua utilização”. A tecnologia pode ser
instrumental “na redução do trabalho pesado – permanece a ver-
dadeira base da todas as formas de liberdade humana” (Marcu-
se, 1964, p. 231). Por conseguinte, os mais acérrimos críticos da
ciência e da tecnologia hesitam à porta do irracionalismo e não
atravessarão o limiar, por muito cruel que seja a sua avaliação
do sombrio registo de dominação que se encontra no rastro da
ciência e da tecnologia. No outro lado, claro está, encontra-se a
némesis da razão: a religião, o misticismo e o mito.
A batalha entre o que foi designado “ciência” e outros discur-
sos que pretendem explicar os mundos natural e social é uma
história muitas vezes contada. Tal como Gaston Bachelard (1984)
sustentou, a ciência é definida pela sua rutura com discursos con-
correntes que afirmam explicar os mesmos objetos. A física, por
exemplo, estabelece um corte com formas de “irracionalismo”,
mas também com a metafísica. Enquanto contemporâneo de Ba-
chelard, Karl Popper (1961 [1934], 1968 [1962]) comentou que a
metafísica oferece significados que poderão ser úteis para outros
aspetos das questões humanas, mas não a ciência.2 Para Popper
e Bachelard, a ciência é estabelecida através de afirmações que
possam ser sujeitas a refutação (nas palavras de Bachelard, “va-
lidação empírica”). São o espírito e a prática de uma autocrítica
implacável que demarcam a ciência de outros discursos, incluin-
do o da filosofia tradicional. Para filósofos recentes da ciência,
nem mesmo estes procedimentos garantem que os resultados
correspondam à “verdade”, apenas que se demarcam de outros
discursos. Dentro da verdadeira ciência, poderá haver sérias e,
não raras vezes, profundas disputas de interpretação. Mas o que
todos os cientistas partilham é uma comunidade que radica no
||

2 Em ambas as obras, publicadas num intervalo de quase trinta anos, Popper realça que a
sua filosofia se preocupa, sobretudo, com o problema da demarcação entre ciência e me-
tafísica, pondo em questão a afirmação dos positivistas de que a metafísica é “desprovida
de significado” mas não os seus usos noutros discursos que não o científico.
|| 28

método. A primazia de métodos partilhados garante a fiabilidade


do que conta como ciência. Por agora, é suficiente sugerir que o
que aqueles que se dedicam à ideologia científica ocidental que-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

rem dizer com o termo “ciência” se reduz a dois procedimentos:


cálculo matemático e validação/falsificação experimental de re-
sultados. A matemática assegura o rigor da investigação, estabe-
lecendo relações mensuráveis e, nas palavras de Bachelard, “dá
corpo ao pensamento puro”. A matemática é “a conversão do
racional em realidade”. No entanto, não vá a ciência tornar-se
vítima da “recusa de basear o pensamento na experiência” de
Descartes, o experimentalismo devolve à observação o seu papel
de árbitro final do conhecimento (Bachelard, 1984, pp. 165-166).
Presumivelmente, nem a filosofia nem a religião correspon-
dem a estes critérios. A ciência moderna demarca-se, não recons-
tituindo o objeto, mas definindo racionalidade de uma forma
específica. Ao mesmo tempo, dado o poder de todos os discursos
metafísicos na vida quotidiana, vê-se obrigada a abrir espaço para
o extracientífico, desde que estas esferas estejam claramente
subordinadas à racionalidade científica. Nas hierarquias do saber
das sociedades pós-feudais, a racionalidade científica moderna é
o discurso privilegiado, e todos os outros são relegados para as
margens. Como resultado, tanto as instituições do estado como
da economia – sistemas de educação, departamentos de estado,
a lei e os sistemas de justiça criminal – emulam procedimentos
científicos dentro dos constrangimentos impostos pelas suas
próprias tradições e exigências. A arte e a religião ocupam os
seus lugares nas margens do esforço humano e tornam-se extra-
curriculares, ou, para usar o termo de Freud (1961), “deflexões”,
pelas frustrações produzidas pela inibição do desejo do princípio
da realidade.
A ascensão do Protestantismo nos principais países indus-
trializados durante os séculos XVIII e XIX pareceu conferir uma
sanção moral à posição proeminente da ciência como conheci-
mento. As instituições religiosas viam-se agora como suplicantes
numa era cada vez mais secular e entendiam o seu papel não tan-
to como defletoras, mas como guardiãs morais para indivíduos
prejudicados pelas adulações do dinheiro e do poder. O tipo de
conhecimento facultado pela religião encontrava-se confinado à
esfera ética; preocupava-se com questões da vida familiar, da an-
gústia pessoal e, quando se sentiu obrigado a agir socialmente,
revelou-se terapêutico e não tanto transformador. As grandes
|| 29
denominações do Protestantismo abandonaram o que o Cato-
licismo se esforçara por conservar: uma reivindicação de uma
verdade tanto epistemológica como ontológica. No entanto, no

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


século XIX e inícios do século XX, o triunfo do capitalismo mun-
dial sobre o que restava da velha aristocracia feudal na Europa de
leste e do sul forçou até a recalcitrante igreja católica e outras de
natureza ortodoxa a acomodarem-se à nova ordem.
Em finais do século XIX, a produção industrial dependia de
tecnologias cientificamente sustentadas; as tradições de traba-
lho artesanal, no seio das quais o início do fabrico não era mais
do que uma forma de racionalização, viram-se, elas próprias, su-
bordinadas à nova tecnologia; a força propulsora da produção,
a energia, já não era mecânica – isto é, uma extensão da ener-
gia hidráulica ou manual –, mas tornou-se elétrica, sendo que os
seus princípios derivavam da “investigação pura”; a engenharia
substituiu o saber artesanal ao conceber o modo de transforma-
ção de matérias-primas em produtos finais; como consequência,
a física e a química tornaram-se a fundação intelectual da enge-
nharia, elas próprias institucionalizadas em grandes laboratórios
patrocinados e controlados pelo estado e por grandes empresas.
Por conseguinte, a própria ciência deixa de ser apenas uma ideo-
logia hegemónica da nova ordem social do capitalismo e da sua
fase industrial para se integrar nos discursos e práticas de pro-
dução. A permutabilidade da ciência e da tecnologia é, evidente-
mente, ora negada ora ignorada pela maior parte dos filósofos e
cientistas, porém a sua convergência crescente estende-se para
lá do local de trabalho.3 À medida que o discurso científico pene-
tra no estado e na sociedade civil, a cultura científica ultrapassa
os limites do laboratório. O comércio não ousa tomar quaisquer
decisões que não se sustentem no cálculo matemático que pos-
sibilite projeções; os legisladores promulgam leis com base em
“dados” gerados por especialistas com preparação científica.
Raymond Callahan (1962) realçou, referindo-se à educação, que
o critério tecnológico da eficiência se torna o novo culto das es-
colas públicas e privadas. Nas escolas, a ideia das artes liberais
é lentamente substituída pela educação ocupacional. A literacia
||

3 Embora não seja a única exceção, Bachelard é exaustivo na sua insistência de que a
ciência e a técnica são mutuamente dependentes na produção de conhecimento verificá-
vel. “Para a ciência, então, as qualidades da realidade são funções dos nossos métodos
racionais. De modo a estabelecer-se um facto científico, é necessário implementar uma
técnica coerente.” (1984, p. 171)
|| 30

“funcional” torna-se o critério de sucesso para os sistemas de


ensino público simples que veem a música e o desenho fora dos
seus currículos e que reduzem inglês e história a departamentos
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

de serviços para os programas de orientação técnica. Por con-


seguinte, em vários momentos dramáticos desde a 2.ª Guerra
Mundial, reforçar a ciência e a matemática nas escolas transfor-
mou-se numa questão absolutamente prioritária para o governo,
uma vez que estas disciplinas são tidas como vitais para a posição
económica e militar de um país num mundo cada vez mais com-
petitivo e perigoso.
No contexto da atual ansiedade resultante da perda da proe-
minência da América na produção industrial, atribui-se à educação
em ciências um papel primordial no longo caminho para a recu-
peração. Na década de 1980, ao mesmo tempo que o orçamento
para o Ministério da Defesa dos Estados Unidos aumenta drastica-
mente, engenheiros e cientistas são procurados pelas indústrias
relacionadas com as forças armadas. Assim, apesar da enorme
pressão do governo e da indústria junto das escolas, o recrutamen-
to de professores nas áreas da ciência e da matemática diminuiu,
sobretudo porque os salários eram substancialmente inferiores
aos oferecidos pela indústria privada e pelas instituições de inves-
tigação. Contrariando a sua política firme de redução das despesas
federais e a defesa dos serviços públicos em todos os níveis, a
administração Reagan viu na abertura de uma exceção para o
ensino da ciência e da matemática uma vantagem.
Estes exemplos não esgotam a extensão da penetração da
cultura tecnológica no mundo social. Logo após a 2.ª Guerra Mun-
dial, numa altura em que a América assumiu uma posição de su-
premacia económica, política e militar no mundo, o secularismo
– sempre intimamente relacionado com o crescimento da ciência
moderna e da tecnologia – parecia também ter triunfado, irre-
mediavelmente, na esfera cultural. A afluência às igrejas diminuiu
drasticamente e, nesta que era a mais religiosa das sociedades
modernizadas, a religião parecia finalmente estar a minguar, um
século após a sua marginalização final na maior parte dos países
europeus industrializados.4
||

4 Nos Estados Unidos, que não têm uma forte tradição feudal, o capitalismo industrial
moderno não foi forjado sobre um cadáver de uma Igreja Católica poderosa cujas expli-
cações do mundo natural se encontravam proximamente ligadas à preservação da velha
ordem. Nos Estados Unidos, a igreja cresceu lado a lado com a agricultura capitalista e a
indústria, e muito do seu laicado era formado por cientistas e inventores.
|| 31
A cultura tecnológica pode não facultar nenhum bálsamo para
o espírito, e pode não fazer nada para preencher o vazio deixado
pela marginalização da moralidade religiosa, no entanto, como

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


até os seus mais ferozes críticos são forçados a admitir, dá livre
curso ao princípio do prazer. Tal como observou Marcuse (1964),
nas sociedades capitalistas avançadas, especialmente nos Esta-
dos Unidos, “a estrutura de defesa torna a vida mais fácil a um
maior número de pessoas e amplia o domínio do homem sobre a
natureza”(p 33). Embora esta descrição da sociedade tecnológi-
ca como uma “não liberdade confortável, amena e democrática”
tivesse sido encarada por alguns como razão para fazer frente
ao sistema predominante, milhões de pessoas, que haviam sido
condenadas à privação durante as décadas da industrialização,
receberam a tecnologia como uma redenção. A cultura massifi-
cou-se, apoderando-se da alta cultura e marginalizando os inte-
lectuais aos quais ela servia de sustento, porém proporcionando
um alívio na escravidão do trabalho mais automatizado. Marcuse
poderá ter falado por mais pessoas do que os intelectuais. O seu
remorso pelas contradições do Iluminismo finalmente perdeu
força face às proezas da ciência e da tecnologia. Enquanto filho
da razão, foi incapaz de, a partir da sua crítica, chegar à conclu-
são lógica de que a ciência e a tecnologia se haviam tornado obs-
táculos à liberdade. Escrevendo em inícios da década de 1960,
apenas foi capaz de admitir que uma ciência e uma tecnologia
transformadas poderiam servir melhor o interesse emancipató-
rio do que a versão que emergira da Idade Média.
Goethe em tempos observou sarcasticamente: “Aquele que
possui ciência e arte também tem religião; mas aquele que não
possui nenhuma destas duas, que fique com a religião” (Marcu-
se, 1964, p. 33). A visão é profundamente pluralista. A ciência
e a arte devem existir lado a lado com a religião, que, como
referiu Freud, ecoando Goethe, era a propriedade de qualquer
homem, definido como alguém a quem falta o meio para subli-
mar o irreprimível princípio do prazer. Para o poeta ou para o
cientista do século XIX, que a religião voltasse a erguer-se para
reivindicar a posse de conhecimentos fidedignos do mundo na-
tural exterior era impensável. Freud é bastante claro: a crença
no sobrenatural é uma doutrina “insustentável” mas melhor
para o cidadão comum do que o álcool ou as drogas, desde que
não seja levada mais a sério do que um opiáceo (Freud, 1961,
pp. 21-23).
|| 32

No entanto, foi precisamente isto que sucedeu na última dé-


cada. Apesar do inequívoco triunfo da visão científica do mundo
e dos efeitos totalizadores da tecnologia, a ciência e a tecnologia
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

estão ser alvo de um ataque sem precedentes. Nos últimos quin-


ze anos, os movimentos religiosos contrailuministas assumiram
proporções à escala planetária de natureza revolucionária. Lon-
ge de desdenharem a política como algo abaixo das suas missões
éticas, alguns judeus, muçulmanos e cristãos, em igual medida,
sitiaram o estado, exigindo que a vida pública se conformasse
aos preceitos religiosos e que se pusesse um fim à separação en-
tre igreja e estado. O estado teocrático, depois de confinado ao
passado por académicos, políticos e juristas, é ruidosamente pro-
clamado pelos novos movimentos como o presente e o futuro, e
já capturou importantes postos avançados no Médio Oriente –
entre os mundos muçulmano, cristão e judaico – e está a tornar-
se rapidamente na condição sine qua non para a vitória política
dos partidos nos Estados Unidos.5 Aqui, não se trata apenas de
os legisladores adotarem critérios bíblicos para estabelecerem as
regras para a punição o que é uma velha história na América. A
doutrina do ajuste de contas opõe-se à ideia de que o criminoso
se possa sujeitar à reabilitação. Em retrospetiva, os pressupostos
liberais sobre o crime parecem um breve interlúdio numa história
contínua de conservadorismo profundo, de base religiosa, na lei
e na vida política americanas. A teologia fundamentalista também
começa a reentrar nas escolas públicas. E entre os seus adver-
sários, nenhum é mais importante do que a ciência moderna.
Conforme avisou o biólogo Douglas Futuyama (1983), a ciência
está “a ser julgada” e a razão está “debaixo de fogo”. Uma nova
ciência do criacionismo desafiou o ensino exclusivo da evolução
nas escolas públicas e exigiu que a sua “ciência” fosse alvo de
tratamento idêntico. Já não se trata meramente de um caso de
envolvimento dos sacerdotes na política, apoiando candidatos
que favoreçam o apoio estatal às escolas paroquiais. Tais apelos,
feitos pela Igreja Católica durante décadas, desafiam a separação
entre igreja e estado mas não confrontam a hegemonia ideoló-
gica da doutrina científica moderna. Com efeito, muitas escolas
paroquiais de origem católica e protestante ensinam a ciência e
a matemática modernas enquanto elementos necessários de um
||

5 No entanto, até ao momento, as teocracias do Médio Oriente subordinaram a ideologia


a considerações privadas e abstiveram-se de condenar as sociedades ocidentais.
|| 33
currículo relevante; isto é, relevante para as aspirações profis-
sionais e de carreira daqueles que advogam os seus princípios.
A distinção fundamental entre a velha intervenção política das

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


instituições religiosas, tanto em nome da justiça social como dos
seus próprios interesses paroquiais, e o novo fundamentalismo
está no facto de o segundo condenar a ciência iluminista como
ideologia, como um ponto de vista numa pluralidade de discur-
sos que não possuem qualquer conhecimento privilegiado do
mundo exterior. Daí a sua exigência de um lugar igual no currí-
culo. No essencial, o fundamentalismo avançou onde os críticos
iluministas da ciência recuaram. Para o que está em causa nesta
discussão, não é relevante destacar os absurdos da explicação
criacionista da origem do universo, da vida e da evolução das
espécies. O que está em questão é a reivindicação da certeza por
parte da ciência iluminista e a sua recusa em reconhecer o
próprio discurso como uma forma de ideologia.
Considere-se o seguinte exemplo. Durante o seu ataque às
explicações criacionistas do desenvolvimento, Futuyama apre-
senta dois argumentos: “qualquer pessoa que acredite no Gé-
nesis como uma descrição literal da história deverá, necessaria-
mente, ter uma visão do mundo que é inteiramente incompatível
com a ideia de evolução, já para não falar da própria ciência…
enquanto a ciência insiste em causas materiais e mecanicistas
que podem ser compreendidas pela física e pela química, o cren-
te literal no Génesis invoca forças sobrenaturais incognoscíveis”
(1983, p. 12).
O segundo argumento é, segundo Futuyama, mais importan-
te: “se o mundo e as suas criaturas se desenvolvessem estrita-
mente através de forças materiais e físicas, a sua existência não
teria sido possível e não teria propósito ou objetivo. O fundamen-
talista, pelo contrário, acredita que tudo no mundo, que todas
as espécies e todas as características de todas as espécies, foi
desígnio de um artífice inteligente” (1983, pp.12-13). Futuyama
defende a evolução e a ciência, no seu todo, sustentando que
são os “mecanismos”, e não a teleologia, que regem os aconte-
cimentos na natureza. Estes mecanismos libertam a ciência do
vínculo às causas finais aristotélicas, baseando-se, em vez disso,
na capacidade das causas eficientes. As mudanças das e entre as
espécies podem ser atribuídas não a propósitos últimos de Deus,
mas à luta pela existência, à adaptação dos organismos a um
ambiente mutável. A visão subjacente de Futuyama é a das
|| 34

explicações “materiais, mecanicistas” para os acontecimentos


naturais: ele identifica esta visão como idêntica à da “ciência”.
De facto, as proposições da teoria evolucionista são incom-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

patíveis com o criacionismo. Para a ciência biológica moderna,


a questão de um plano ou de um propósito na natureza não se
coloca (embora, como Alexandre Koyre demonstra, Newton
estivesse convencido de que as leis físicas correspondiam ao pla-
no de Deus, mesmo considerando que a explicação teológica não
tinha lugar na física) (Koyre, 1965, p.6).6 No entanto, muito evo-
lucionistas e filósofos da biologia vieram a insistir que a ideia de
causa final, de Aristóteles, tão veementemente rejeitada pelos
primeiros evolucionistas, ocupava um lugar na teoria científica
moderna. Stephen J. Gould salienta:

Nos círculos biológicos, ainda é antiquado usar palavras como “desígnio”,


“propósito” ou “teleologia”. Uma vez que o conceito de causa final é tão
indispensável na elucidação da adaptação, e uma vez que a seleção natu-
ral pode produzir uma estrutura bem concebida sem qualquer intervenção
consciente da sabedoria sobre-humana de Deus ou da inteligência sub-hu-
mana do animal em questão, seria de pensar que estes termos voltariam a
ser admitidos na ortodoxia. Porém, como é evidente, ainda estamos a tra-
var a batalha com os teólogos que derrotámos através de ações há quase
um século. (Gould , 1976, p. 97)

Futuyama pode ser um daqueles que ainda travam a batalha


mas, no seu zelo em distanciar a evolução da teleologia, tem
como único sucesso transformar as suas ideias na imagem inver-
tida das do seu oponente. François Jacob aborda a questão de
forma interessante. Comentando o papel da reprodução sexual
enquanto “objetivo” para cada organismo e para a história dos
organismos, conclui: “Durante muito tempo, o biólogo tratou a
teleologia como trataria uma mulher sem a qual não conseguia
passar, mas com a qual não se importava de ser visto em público.
O conceito do programa fez com que a teleologia parecesse uma
mulher honesta” (Jacob , 1973, pp. 8-9).
Hoje, as metáforas de programa e de sistema para descrever
os processos de hereditariedade e evolução orgânica abriram um
||

6 Koyre (1965), que se opõe militantemente às explicações “sociais” para a lei científica,
todavia sustenta que “o uso e crescimento da ciência experimental não são a origem,
mas, pelo contrário, o resultado da nova abordagem teórica, isto é, da nova abordagem
metafísica da natureza que forma o conteúdo da revolução científica do século XVII”.
|| 35
novo debate relativamente à questão da causalidade na ciência
biológica. A anterior crença de que a ciência podia prescindir da
explicação causal em favor da descrição tinha como finalidade re-

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


mover da ciência natural o que Laplace designou como “hipóte-
se” do desígnio de Deus. O que foi denominado “essencialismo”
não é tão facilmente abandonado. A ofensiva religiosa contra
a ciência moderna poderá ser pouco apropriada, mas entre as
pessoas comuns tem um efeito de ressonância que produz um
sentimento generalizado de que a ciência se transformou numa
espécie de sacerdócio e que os cientistas, tal como os padres de
antigamente, nem sempre estão abertos à discussão das suas
próprias dúvidas, pelo menos em público. Contudo, o novo ata-
que à ciência moderna não se sustenta simplesmente na autori-
dade da Bíblia como a palavra verdadeira de Deus, mas reivindica
o seu papel na ciência. Controvérsias no universo da ciência que
revelam fissuras profundas no seio dessa comunidade em rela-
ção a questões como as da causalidade e da verdade têm sido,
até recentemente, geridas à porta fechada. Na biologia, a ima-
gem do mundo mecânico é desafiada; na física, a imagem da na-
tureza enquanto extensão objetiva pura, sujeita à previsão e ao
controlo, é questionada por aqueles cujo trabalho se desenvolve
ao nível da teoria, ao mesmo tempo que os práticos insistem que
o que é antigo continua a ser melhor.
Talvez o ceticismo mais alargado tenha surgido no campo da
medicina. Há várias questões aqui em jogo: ao nível mais básico
está a questão do modelo médico tradicional de diagnóstico e
tratamento. Segundo esta perspetiva, o corpo humano é uma
máquina (na versão mais antiga) ou um programa de compu-
tador (no modelo moderno). As partes são relativamente autó-
nomas, tornando possível um regime de tratamento que ignora
as relações das partes com o todo, exceto em casos de efeitos
secundários que possam ser contrariados. Na prática médica à
moda antiga, a relação da pessoa com o ambiente e do estado
emocional com estado físico são irrelevantes. No primeiro caso,
a menos que se registe fome extrema, os aspetos alimentares
não são um fator a ter em conta na prática diagnóstica. O contex-
to da prática médica propriamente dita – tratar indivíduos – não
permite que os efeitos de fatores “externos” como a poluição,
os ambientes de trabalho, a qualidade de vida baseada em cir-
cunstâncias económicas e o stresse relacionado com o trabalho
ou a vida familiar, se tornem objetos de tratamento.
|| 36

A medicina, com base nas descobertas da biologia molecular,


adota uma abordagem baseada na análise de sistemas tanto no
diagnóstico como no tratamento. No modo mais ecológico, o
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

corpo humano é um sistema aberto que é determinado pelo seu


código genético, mas pode ser influenciado pelo ambiente com o
qual tem relações homeostáticas. Na versão menos interessante,
o corpo é um sistema fechado que consiste em redes de infor-
mação que apenas estão perifericamente sujeitas a influências
externas. A versão de Francis Crick dos requisitos básicos para a
vida inclui a ideia darwiniana, adaptada de Thomas Malthus, de
que o organismo deve competir pela água, pela comida e por ou-
tros recursos que sustentam a vida. Porém, em última instância,
defende que a sua capacidade de sobrevivência é o seu sistema
de informação internamente gerado que se constrói a partir das
suas estruturas moleculares (Crick, 1981, p. 53). Em segundo lu-
gar, está a sua capacidade de sofrer mutações perante condições
em transformação, uma capacidade que lhe é conferida interna-
mente. A ciência médica recente baseou-se em Crick e no seu
colega James Watson, que juntos desempenharam papéis-chave
no desenvolvimento da biologia molecular. O próprio organismo
mantém-se como o objeto de estudo, puro/intacto na sua singu-
laridade mas visto não tanto como uma série de partes senão
como um sistema de “complexidade organizada” cuja força mo-
triz é a estrutura molecular do gene (idem, pp. 49-50). Tratamos
os indivíduos de forma diferente, em relação ao antigamente.
Considerando que “o problema da vida é um problema de quí-
mica orgânica” (idem, p. 37), as medidas tomadas para tratar
órgãos danificados deviam procurar tanto o diagnóstico como o
tratamento nas disfunções das combinações químicas que afe-
tam o programa de informação dos órgãos. Por conseguinte,
patologias tão diversas como a psicose e o cancro recebem tra-
tamento químico. Procuram-se as causas das diferentes doenças
emocionais não nas ansiedades produzidas pela situação de vida
mas nos danos químicos. Deste modo, o tratamento mais usado
para alguns tipos de cancro é a quimioterapia.
Como é evidente, as aplicações médicas da biologia molecular
são apenas uma das principais mudanças iniciadas por esta nova
disciplina. Mais controversas, e seguramente mais problemáti-
cas, têm sido as novas tecnologias da engenharia genética que
se apresentam, nas suas manifestações visionárias, como capa-
zes de realizar o sonho tanto da eugenia do século XIX como da
|| 37
medicina moderna de eliminar a doença, alterando aquelas ca-
racterísticas que tornam os humanos menos competitivos num
ambiente físico em mutação. Segundo Jeremy Rifkin, “estamos

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


virtualmente a precipitar-nos para a era da biotecnologia”. A bio-
logia molecular foi bem sucedida na alteração da hereditarieda-
de do gene, transferindo genes de um organismo para outro, e,
talvez mais mais importante, sintetizou células através da enge-
nharia. As suas aplicações mais recentes na tecnologia alimentar
prometem eliminar a necessidade de conservantes químicos.
A biologia molecular é uma ciência com uma intenção e plano:
procura transformar a vida recombinando o ADN, que postulou
como o âmago da vida. Este objetivo seguramente viola um vasto
espectro de princípios religiosos mas também levanta questões
profundas de natureza ética. Mesmo que os atos de alterar ou
refazer a vida fossem tidos como um propósito social meritório,
a questão é: perante quem é que os cientistas que levam a cabo
estas tarefas têm de responder? Esta matéria está em processo
de deliberação nos tribunais dos Estados Unidos e, para alguns,
os resultados são horrorosos. O estado de espírito industrial
dominou estas descobertas e, nos Estados Unidos, isso significa
propriedade privada e controlo dos meios de produção (excisão)
e do produto (organismos alterados). Com efeito, o MIT estabe-
leceu recentemente uma série de acordos com algumas firmas
importantes de biotecnologia. Em troca de avultadas quantias
de dinheiro para investigação, a universidade concordou que as
patentes das descobertas pertencerão às empresas. Os tribunais
decidiram que estes acordos são legais porque encararam a bio-
engenharia apenas como mais uma indústria. O argumento é o de
que numa sociedade livre podemos sancionar um mercado livre
de manipulação de genes do mesmo modo que reconhecemos o
mercado livre na produção de aço ou de carros. As medidas para
impedir que as empresas se lancem no comércio violam os seus
direitos ao abrigo da lei.
Estes desenvolvimentos levantam duas questões essenciais.
A primeira é se podemos libertar as novas descobertas associa-
das às biotecnologias de um rigoroso controlo público, partindo
do pressuposto de que conseguiríamos identificar uma entidade
reguladora adequada. A segunda aponta para o âmago do con-
flito entre ciência moderna e religião, mas também foi colocada
por não fundamentalistas que, não obstante, se mantêm fiéis a
crenças éticas que são contrárias a alguns tipos de investigação
|| 38

científica. Dito de forma simples, a questão é se a ciência moder-


na tem o direito de alterar a nossa relação com a natureza, sui
generis. Por um lado, os fundamentalistas argumentam contra
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

quaisquer descobertas científicas que possam violar a palavra de


Deus tal como a interpretaram. Para aqueles que rejeitassem tais
objeções com base no pressuposto de que são “irracionais”, a
alternativa não implica aceitar as novas biotecnologias. Se o obje-
tivo da bioengenharia é transformar a nossa relação com a natu-
reza, especialmente a nossa própria “natureza”, então a reivin-
dicação, de que a ciência é desprovida de intenções, de que está
comprometida com uma qualquer conceção anterior de ciência
“pura”, é altamente suspeita. Mesmo que a ciência moderna não
implique a intervenção de poderes sobrenaturais, não pode es-
capar à interrogação dos pressupostos éticos a ela subjacentes,
nem a respeito do conteúdo das suas proposições, a que chama
“leis” da natureza, nem a respeito da sua responsabilidade pelos
resultados das suas investigações.
O que está aqui em risco é a questão da implicação. Se a biolo-
gia molecular opta por associar as suas descobertas no campo da
investigação do ADN e do ARN a tarefas industriais, não teremos
nós a legitimidade para perguntar se tais descobertas implicam
propósitos eticamente problemáticos? Isto adquire especial rele-
vância numa altura em que as universidades, os tradicionais cen-
tros da investigação científica, estão a estabelecer acordos com
grandes empresas e com o governo, que facultam o grosso dos
fundos para o seu trabalho. Nestas circunstâncias, a reivindica-
ção de investigação livre torna-se difícil de sustentar.
No entanto, seria um erro declarar que a ciência e a tecnolo-
gia são inteiramente determinadas, tanto no seu conteúdo como
nos seus usos, por aqueles que as desenvolvem. A ciência é uma
atividade complexa e multivariada. A sua relação com aquilo que
“observa” nunca é totalmente desprovida de mediação: isto é,
o ambiente económico, político e social no qual as pessoas “fa-
zem” ciência e tecnologia intervém entre a cognição e o seu obje-
to. Alexandre Koyre, que rejeita veementemente explicações para
a descoberta científica que dependam das condições práticas que
a possam estimular, substitui a metafísica e a filosofia por media-
ções entre teoria, experiência e natureza. Do mesmo modo, Paul
Davies atribui a popularidade continuada da astronomia ao facto
de o estudo do céu não estar longe do nosso desejo comum, e ain-
da apaixonado, da transcendência e do sobrenatural. Ao mesmo
|| 39
tempo, enfatiza a rebeldia da natureza, a sua “incerteza ineren-
te”, a sua “aleatoriedade”, e a relevância da “subjetividade” na
nova física. Segundo Davies (1980, pp. 42-43), o “observador co-

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


meça a desempenhar um papel de suma importância na natureza
do mundo”, tornando absurdos conceitos objetivistas de tempo
e espaço, incluindo aqueles que imputam à natureza uma ordem
intrínseca.
Com efeito, as dificuldades experimentadas pelos defensores
de uma imagem da natureza enquanto campo unificado geraram
grandes debates do seio da física. É comummente reconhecido
pelos próprios físicos que poucas das descobertas no campo da
física estão isentas da variabilidade que lhes é trazida pela in-
terpretação. Os factos não falam por si, e é por esta porta que
entram a religião e outras doutrinas metafísicas, bem como a fi-
losofia. Discuto a relação entre filosofias e as condições sociais
que poderão estar na sua origem, desafiando Koyre e outros que
desejam preservar a explicação internalista da ciência ao limitar
o contexto da descoberta a influências puramente intelectuais.
Basta mencionar aqui que muitos dos que falam da natureza en-
quanto campo unificado aproximam-se perigosamente da tele-
ologia, e até de Deus, como finalidade última. David Bohm, um
físico teórico, reclama a unidade formal de todos os fenómenos
naturais, definindo as leis físicas como tendentes para o absoluto
através do estudo de fenómenos parciais e relativos; mais impor-
tante ainda, defende a causalidade na natureza como um princí-
pio ilimitado. Ou seja, para Bohm, a ordem, não a aleatoriedade,
é algo inerente na natureza, cuja verdade pode ser alcançada
através da ciência. Embora não recorra ao sobrenatural, Bohm
(1980, pp. 65-110) insiste que existem “variáveis escondidas” na
mecânica quântica que desmentem a imagem de aleatoriedade e
de indeterminação avançada por pensadores como Niels Bohr e
Werner Heisenberg.
Em suma, a luta entre a ciência mecanicista e a religião reapa-
rece numa forma diferente dentro da própria ciência. Tal como
demonstrei, a teleologia é quase respeitável na biologia, e um
dos grandes debates iniciados por Einstein (involuntariamente) e
Heisenberg (com alguma hesitação) é saber se Deus interfere no
universo. Alguns dos esforços interpretativos nucleares no seio
da física relacionam-se com saber se podemos pressupor como
factos o tempo e o espaço reais, e se a intervenção da “subjetivi-
dade” remove estas categorias da esfera da objetividade. Numa
|| 40

perspetiva mais ampla, a questão permanece: o que sabemos


quando sabemos algo? Se o nosso conhecimento se encontra
inelutavelmente ligado aos processos de observação e experiên-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

cia, e se estes estão impregnados de pressupostos a priori acerca


do caráter do que é observado ou dos usos a que o conhecimen-
to está destinado, em que medida podemos dizer que a ciência,
como tipo de conhecimento, é superior à metafísica, incluindo a
religião?
A ecologia social e o feminismo radical, dois movimentos so-
ciais com um peso político e ideológico considerável em muitas
sociedades industriais avançadas, desafiaram, do ponto de vis-
ta ético, o conteúdo e os resultados da ciência e da tecnologia
contemporâneas. Ambos surgiram na década de 1960 e inícios da
década de 1970, numa altura em que foi invocado um ceticismo
generalizado em relação à autonomia da ciência em virtude da
subordinação de uma parte substancial da comunidade científi-
ca a exigências militares, bem como em consequência do apoio
à investigação científica e à inovação tecnológica por parte da
indústria. Contudo, o conteúdo da sua crítica difere da asserção
de que o problema da ciência e da tecnologia consiste essencial-
mente nos usos dados à descoberta e à inovação. Em vez dis-
so, a ecologia social e o feminismo radical avançaram com uma
crítica fundamental da visão científica do mundo, especialmente
através da contestação de que a ciência e a tecnologia são ins-
trumentos neutros que podem ser separados do contexto em
que foram desenvolvidos. A ecologia social sustenta que a ciên-
cia e a tecnologia, em virtude da sua subordinação ao interesse
do domínio sobre a natureza, partilham responsabilidades com o
estado e as corporações capitalistas pela “morte da natureza”,
uma metáfora que descreve o perigo crescente para a vida, for-
jado pela tecnologia de base científica. Em lugar de atribuírem a
culpa do problema crescente da poluição ambiental unicamente
à falta de regulamentação estatal, os ecologistas defendem que
as tecnologias de domínio ilimitado estão a abrir caminho para o
desastre ecológico. Por um lado, a ideia de natureza como puro
“objeto” tem sido uma pressuposição da física prática na medida
em que permitiu que a natureza fosse definida por categorias de
extensão pura ao serviço da predição e do controlo. Por outro
lado, a premência da biologia molecular consiste na sua ideologia
eugénica, na sua avidez de fazer de Deus, alterando as caracte-
rísticas distintivas das nossas espécies. Os ecologistas explicam a
|| 41
rebelião da natureza como uma reação às intervenções humanas
que perturbam as suas relações internas e as suas relações ho-
meostáticas com diversas espécies de vida. As consequências da

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


lógica industrial, que marca a biologia contemporânea, podem
ser perigosas para a vida. Porém a explicação dada pela ecologia
social para este estado de coisas transcende a esfera de ação da
política social. O que permite à ciência ocupar-se com atividades
que colocam em perigo a vida é uma crença de que os humanos
podem assegurar o seu futuro sujeitando o gene à engenharia,
do mesmo modo que anteriormente os industriais exploravam
matérias-primas não-renováveis para servir diversos fins, incluin-
do lucros e a promessa de libertação das dificuldades materiais
e outros valores socialmente aprovados. Aqui ocupamo-nos de
um drama tanto com consequências intencionais como não in-
tencionais. A ideologia da natureza como “o outro” ou como
“matéria”, não diferenciados pela qualidade ou infinitamente
fungíveis, é uma condição necessária para uma ciência que se in-
tegrou na tecnologia, na qual a diferença entre eles se torna ana-
lítica em vez de ontológica. A física teórica e a biologia podem
tentar não interferir nos usos que são dados às suas descobertas;
Einstein certamente não tencionava que as suas descobertas fos-
sem colocadas ao serviço da invenção de armas de destruição
nuclear, e os astrónomos do século XVII poderão não ter levado
a cabo o seu trabalho exclusivamente para o melhoramento dos
instrumentos de navegação. E tão-pouco é necessário estabele-
cer ligações diretas entre os desenvolvimentos no campo da me-
cânica das ondas e os avanços nas tecnologias da comunicação.
Os argumentos avançados por aqueles que tentam descobrir,
tanto pela investigação empírica como pela inferência, uma in-
tenção comercial ou industrial em processos de descoberta são
seguramente mal dirigidos. O que está em questão é examinar
a tendência da ideologia científica, a substância de que é feita
a descoberta, ou seja, situar a ciência como discurso dentro de
um sistema mais amplo de relações sociais em que não é forçoso
que as influências económicas e políticas apareçam diretamente
no laboratório.
A respeito desta questão, a ecologia toma duas direções.
Uma delas consiste em argumentar a partir do que poderá ser
designado por ponto de vista histórico: já não vivemos na era
do pensador individual no interior do seu laboratório em condi-
ções semelhantes às de um artista. Embora os procedimentos
|| 42

científicos possam ser considerados bastante diferentes dos do


artista (excetuando, talvez, o compositor), na época de Galileu
e mesmo de Lavoisier, o lado criativo da ciência e da arte eram
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

comensuráveis. O trabalho científico e o trabalho artístico reque-


rem meses, porventura anos, de trabalho de escravo. Mas o pro-
cesso de descoberta científica nos séculos XVII e XVIII, e mesmo
em grande parte do século XIX, era marcado pelo esforço indivi-
dual. O cientista, tal como o artista, trabalhava sozinho ou com
grupos muito pequenos. Depois aparece Pasteur nos finais do
século, um professor que, como refere Bruno Latour (1983, pp.
141-170), se liga a poderes da indústria e do estado e que faz da
ciência uma força social. A narrativa de Latour sobre a reivindi-
cação de Pasteur, que dissera ter criado um soro capaz de curar
uma epidemia de antraz em França, não foi validada através de
experiências reproduzíveis levadas a cabo por cientistas, mas an-
tes por três instituições que detinham o poder para atestar tal
reivindicação: a comunidade científica, evidentemente; as em-
presas de tratamento e produção de leite necessitadas de algum
alívio do dispendioso e quase devastador surto da doença no
gado; e o estado. A conclusão de Latour não é a de que a “socie-
dade” influencia o curso da ciência, mas a de que o laboratório se
transforma num modelo de poder social. Baseando-se na tese de
Foucault segundo a qual a relação conhecimento/poder se tor-
na característica da sociedade moderna, Latour não só avança
esta conjuntura enquanto condição da verdade científica, como
sustenta, inversamente, que o poder institucional tradicional vai
buscar a sua força ao laboratório que no século XX se transforma
num produtor de mercadorias e de poder social. Latour deseja
demonstrar que a ciência não está subordinada ao capital, como
sustentam Marx e os marxistas, mas que se tornou uma forma
crucial de capital, sendo o laboratório um local da sua produção.
A ciência conserva algumas das características da arte, mas o
processo de descoberta científica foi permanentemente removi-
do de qualquer coisa que se assemelhe a uma esfera autónoma.
A ciência presta-se à integração porque partilha, com o resto
da sociedade, a teleologia do domínio sobre a natureza. A sua
incorporação na indústria e no estado poderá ser necessária para
a sobrevivência das nações, considerando a ordem económica e
política do mundo. Todavia, como argumentam estes ecologis-
tas, uma relação tão próxima entre a ciência e as forças da ordem
significa que a indústria foi capaz de multiplicar os seus poderes
|| 43
produtivos em proporções geométricas na produção industrial
na era (relativamente) pré-científica. Especificamente, a trans-
formação de conhecimentos da física, da química e da biologia

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


em instrumentos de poder económico, político e militar está na
origem da nossa crise ecológica.
Pouco importa que a comunidade científica negue repetida-
mente a sua aliança com o poder económico-industrial e militar.
As provas de que isso acontece são por demais evidentes. Por
conseguinte, todas as grandes forças industriais têm uma polí-
tica científica nacional; as forças armadas dos Estados Unidos
apropriam-se de biliões de dólares por ano tanto para investiga-
ção “básica” como “aplicada”. As Instituições Nacionais de Saú-
de fornecem vastas somas para investigação que será transfor-
mada em tecnologias industriais por empresas privadas que, por
sua vez, fazem produtos para a indústria e para o consumo de
massas que não raras vezes se traduzem num desastre para o
ambiente. O que distingue esta acusação das críticas dos ambien-
talistas é a exigência, da parte dos ecologistas, de novos planos
sociais que incorporem um princípio radicalmente novo na nossa
relação coletiva com a natureza. A exigência que fazem de um
ambiente natural ecologicamente pacífico ameaça a complexida-
de organizada do casamento da indústria com a ciência em todos
os países. A natureza coletiva da investigação científica apenas
é tornada possível pelos investimentos do estado e das grandes
empresas. O melhor será pôr fim a esta forma de ciência e regres-
sar à ciência como arte. Em tais circunstâncias, terminaria um
modo de vida, dado que o desenvolvimento científico e tecnoló-
gico está na base da subida dos padrões de vida na maior parte
dos países industrialmente desenvolvidos. Para lá do padrão de
vida está todo um conceito de cultura baseado no consumo, nas
nossas noções de relação entre trabalho e aquilo a que chama-
mos “tempo livre”; em suma, a nossa relação com a experiên-
cia. Dificilmente se nega que o “sensório tecnológico” domina a
vida quotidiana.7 A questão é se é isto que queremos. A ecologia
desafia normativamente estas perceções em lugar de se centrar
apenas nos seus efeitos. Formou e inspirou movimentos, partidos
políticos e grandes protestos contra aqueles que empregam tec-
nologias cientificamente produzidas que, segundo a sua visão,
||

7 Para uma discussão soberba deste fenómeno, ver Arthur Kroker, Technology and the
Canadian Mind (Nova Iorque: St. Martins Press, 1986).
|| 44

inibem a liberdade. O que está em risco nesta alternativa é a pos-


sibilidade de se construir uma ética social que propõe diferentes
pressupostos sobre o que constitui uma vida boa. Para a filosofia
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

da ecologia, um mundo sem dominação sobre as nações, as mu-


lheres, a natureza, as culturas, requer uma conceção de ciência e
tecnologia radicalmente diferente, uma vez que aquilo que impli-
ca é uma ideia de quotidiano também radicalmente nova.
A crítica que a ecologia faz da ciência e da tecnologia, embora
não ostensivamente religiosa, sugere que a neutralidade ética a
respeito dos resultados do trabalho científico não se justifica. A
posição ecológica, na sua formulação mais sofisticada, desafia a
ideia de que qualquer forma de conhecimento humano pode ser
separada das suas consequências. Se se descobrir que a ciência
estabeleceu uma aliança com forças de destruição dominantes
para favorecer interesses de domínio sobre os humanos, a sua
posição sob a forma de discurso inatacável, quase sacrossanto,
deve ser deitada por terra. Murray Bookchin, talvez o teórico da
ecologia mais incisivo e global da América, aborda assim o assun-
to:

Nas nossas discussões em torno das modernas crises ecológicas e sociais,


tendemos a ignorar a mentalidade cada vez mais oculta de dominação do
outro e, por extensão, da natureza. Refiro-me a uma imagem do mundo
natural que vê a natureza como “cega”, “muda”, “cruel”, “competitiva” e
“mesquinha”, um “reino da necessidade” aparentemente demoníaco que
se opõe à luta do “homem” pela liberdade e pela autorrealização… Esta
imagem abrangente de uma natureza indomável, que deve ser domada por
uma humanidade racional, deu-nos uma forma dominadora de razão, ciên-
8
cia e tecnologia. (Bookchin , 1980, p. 50)

A esta imagem, Bookchin (idem, p. 55) opõe “um ponto de


vista ecológico: a natureza como uma constelação de comu-
nidades… livre de todos os ornamentos morais antropocêntri-
cos, uma esfera participativa de formas de vida que interagem
entre si e cujos mais notáveis atributos são a fecundidade, a
criatividade e o direcionamento marcados pela complementa-
ridade.” Bookchin identifica claramente noções tradicionais
de razão, ciência e tecnologia com a identificação da natureza
||

8 O texto “What is Social Ecology?” que integra esta coleção é provavelmente a melhor
declaração breve do ponto de vista de Bookchin.
|| 45
com o mercado capitalista (ele próprio ligado à teoria da evolu-
ção convencional, que, tal como referi, é adaptada por Darwin a
partir das conceções malthusianas da história natural). De facto,

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


Bookchin estabelece um contraponto entre a natureza na forma
de metáforas que derivam da arte e a natureza segundo a ciên-
cia iluminista, que empregou as metáforas das relações mercan-
tis. Em ambos os casos, recorremos a discursos éticos em que a
intenção está presente enquanto princípio regulador. A ciência
iluminista, que acredita estar livre de referências às noções de
propósito e objetivo na sua conceção da natureza, simplesmente
retratou a natureza à imagem das relações sociais capitalistas,
conforme demonstra Bookchin. Em contrapartida, refletindo as
visões de um vasto espectro do pensamento ecológico, Bookchin
admite com franqueza que a ecologia retrata a natureza como
um agente ativo e munido de propósito, agarrando-se a noções
estandardizadas de objetividade quando tenta distanciar o pen-
samento ecológico de “ornamentos morais antropocêntricos”.
Este anacronismo no discurso de Bookchin revela não tanto o ca-
ráter débil das ideias ecológicas, mas a força da ciência enquanto
ideologia hegemónica. É que o significado de “hegemonia” con-
siste precisamente na sua presença no discurso daqueles que se
opõem à ideologia dominante. Ao mesmo tempo, pode-se argu-
mentar que as críticas ecológica e feminista da ciência moderna
se baseiam na apresentação da ciência como ideologia, através
da demonstração da sua subjetividade e da sua natureza enquan-
to agente moral ambíguo.
A explosão do movimento feminista moderno desde finais da
década de 1960 gerou aquela que será, porventura, a mais rica
substância da teoria social nos últimos vinte anos – não ignoran-
do a extraordinária obra de Simone de Beauvoir (1952) ou das pri-
meiras teorizadoras do feminismo, tais como Charlotte Perkins
Gilman (1966), ou ainda das muitas romancistas feministas cujas
críticas ao casamento e à família se enquadravam nas formas lite-
rárias tradicionais. A teoria feminista procurou explorar a posição
das mulheres no ocidente bem como no Terceiro Mundo num
vasto número de campos intelectuais. As historiadoras feminis-
tas procuraram pôr fim ao mito de que não existe nenhuma his-
tória de ”ela” em termos económicos, políticos e culturais. Uma
vez que, tal como Walter Benjamin fez notar, a história é escrita
pelos vencedores, a história oculta das lutas das mulheres pela
igualdade e pela evasão ao jugo da dominação masculina tem de
|| 46

ser contada por outras mulheres que irão explorar a parte escon-
dida das narrativas dominantes. Esta história junta-se ao movi-
mento geral da história social que foi bem sucedido na tarefa
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

de pôr a descoberto as vidas de trabalhadores, escravos negros


e outros grupos “invisíveis” aos quais foi negada uma identida-
de pública por aqueles que são eleitos os guardiões da história
oficial. Sociólogas e antropólogas exploraram as vidas das do-
nas de casa e procuraram devolver a essa atividade o nome de
“trabalho”.9 Outras teorizaram o peso social idêntico do traba-
lho da reprodução biológica e social – especialmente a criação
das crianças – e da produção material, argumentando que as
mulheres participam como trabalhadoras em ambas as esferas
mas foram sistematicamente expungidas de quaisquer conside-
rações no plano das questões das relações sociais e do poder. Em
suma, as vidas das mulheres, as suas formas de autoprodução e
auto-organização, os seus sucessos e fracassos, foram o silêncio
ruidoso nos estudos científicos históricos e sociais. Um autêntico
exército de académicas feministas fez enormes esforços para re-
cuperar as vozes das mulheres, para desvendar a especificidade
do discurso das mulheres.
A tentativa de encontrar a voz de mulheres na ciência, espe-
cialmente na descoberta científica, rege-se por pelo menos dois
grandes caminhos de investigação. O primeiro consiste em rei-
vindicar que as mulheres participaram na ciência e na tecnolo-
gia, se não em igual medida, pelo menos de forma considerável.
Os números da geneticista Barbara McClintock, da teórica orga-
nizacional e tecnológica Lillian Gilbreth, da fisioterapeuta Irmã
Elizabeth Kenny e da física Marie Curie são invocados apenas
para ilustrar a variedade de contribuições dadas pelas mulheres
à descoberta científica e tecnológica (Keller, 1985, cap. 9). Citan-
do a questão de Wrik Erickson, “O que irá acontecer à ciência
se e quando as mulheres estiverem verdadeiramente represen-
tadas nela – não através de escassas exceções gloriosas, mas na
linha da frente da elite científica?” Evelyn Fox Keller rapidamen-
te nos lembra que apesar do contributo de McClintock para a
compreensão do mecanismo do património genético, ela ainda
é a exceção, e que a ciência é dominada pelos homens (idem,
||

9 Para uma soberba discussão histórica do trabalho das mulheres, ver especialmente
Susan Strasser, Never Done: A History of American Housework (Nova Iorque: Pantheon
Books, 1982).
|| 47
p. 172-73). O estudo extensivo da árdua labuta de McClintock,
como teórica genuína em vez de praticante da ciência normal,
visava ilustrar que, enquanto visionária, enfrentou resistência

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


de uma elite científica anichada nos seus próprios pressupostos
e preconceitos contra as mulheres, e que a neutralidade moral
dos cientistas não podia ser assumida, apesar da possibilidade
de McClintock contribuir com novos conhecimentos. O interesse
de Keller (idem, cap. 1) consiste em demonstrar que as relações
de sexo e género influenciam a exclusão das mulheres das comu-
nidades científicas e que estas relações se encontram profunda-
mente enraizadas na ideologia da cultura ocidental, inscrita nas
suas mais eminentes obras filosóficas – que a mulher é diferente,
é identificada com a natureza e é objeto de dominação. Francis
Bacon, uma das figuras de referência no desenvolvimento da ide-
ologia científica moderna, foi também um proponente chave da
identidade da ciência com o poder masculino. E não foi exceção.
A leitura que Keller faz de Banquete e Fedro, de Platão, revela a
relação próxima entre a sexualidade masculina e a produção de
conhecimento. O conhecimento, para Platão, tem uma base eró-
tica, mas encontra-se vedado à participação feminina.10
Embora afirmando que o género se tornou um elemento cru-
cial na exclusão das mulheres da ciência, Keller rejeita a ideia de
que a ciência ocidental é uma ciência masculina, como é afirmado
por algumas autoras feministas. Na teoria feminista, este concei-
to visa remover da ciência ocidental o manto da subjetividade,
provando que as suas práticas antiecológicas – e, ainda mais
relevante, a matematização da natureza e a ética científica da
predição e do controlo – são passos rumo à exclusão das mulhe-
res e minam as reivindicações universalistas da ciência moderna.
Enquanto Keller cinge a sua crítica à exclusão das mulheres da
elite científica, Caroline Merchant (1980) contrasta a visão cientí-
fica moderna do mundo, que é formada pelos conceitos duais de
“mecanicismo e dominação da natureza”, com uma mais antiga
“mentalidade de orientação orgânica” que se atinha a uma ima-
gem de proteção da terra, uma imagem em que o ventre, mãe/
mulher são os referentes centrais. Segundo Merchant, a substitui-
ção desta imagética, que sobreviveu até ao Renascimento, pela
imagem do mundo mecânico está associada à comercialização e
||

10 Aqui, Keller (1985, cap. 1) aproxima-se de uma leitura de género da filosofia e da ciên-
cia, mas recua.
|| 48

à industrialização, que continuam a ser o ânimo do nosso mun-


do social contemporâneo. Estas imagens haviam sido um traço
crucial da civilização ocidental, funcionando como um “constran-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

gimento ético” sobre a indústria mineira e outras atividades que


destruíam a terra. Assim, Merchant história a ciência moderna e,
longe de a conceber como “progressista”, argumenta que ela re-
presenta o regresso de uma ciência anterior que era dominante
na civilização antiga. A “violência” contra a terra está em conso-
nância com a violência contra a mulher, posto que a terra se rela-
ciona com os humanos do mesmo modo que uma mãe com um
filho. A conquista da natureza por parte do homem é, portanto,
análoga à dominação das mulheres. Para Merchant, é impossível
dissociar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia moder-
nas deste processo.
Este é um exemplo de uma visão que ficou conhecida como
“o ponto de vista feminista”. Segundo a perspetiva materialista,
a divisão sexual do trabalho em que as mulheres foram subordi-
nadas aos homens em todos os aspetos da sua existência – pro-
dução material, reprodução social, especialmente no papel que
lhes foi imposto de principal, senão única, educadora dos filhos –
tem consequências para o caráter do conhecimento. O conheci-
mento é diferenciado segundo o género, na visão de Nancy Hart-
sock (1983, cap. 10), porque a divisão sexual do trabalho força as
mulheres a ocuparem uma posição diferente na estrutura social.
Esta posição não é induzida pelas diferenças biológicas entre os
homens e as mulheres, mas sim socialmente construída. Ela reco-
nhece estas diferenças mas argumenta que nunca podemos sa-
ber até que ponto podem influenciar, ou mesmo determinar, as
formas de conhecimento até as divisões sexuais serem abolidas.
Esta é a explicação “objetivista” do ponto de vista feminista
na medida em que, para a sua discussão, não se baseia nas verda-
deiras perceções das mulheres. Em lugar disso, na senda de Marx
e Georg Lukács, a estrutura da discussão de Hartsock reitera a
visão de que a condição de ser social determina a consciência so-
cial, mas substitui as mulheres pelo proletariado. De outro modo,
seria necessário adotar o ponto de vista de que o conhecimento
se encontra isento das suas precondições materiais, de que exis-
te uma relação não mediada entre o conhecedor e o conhecido.
As metáforas centrais de Hartsock são as da economia política,
embora também se baseie largamente na literatura psicanalíti-
ca das relações de objeto. Todavia, as ideias de mercantilização,
|| 49
apropriação, exploração e opressão são as categorias analíticas
cruciais na sua tentativa de estabelecer um discurso ou um ponto
de vista especificamente feministas.

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


Hartsock não explica claramente as implicações de tal visão
para a relação entre género e ciência, mas a sua explanação apoia-
se na produção de conhecimento. Embora Hartsock se distancie
de versões culturalistas do feminismo como as dadas por Mer-
chant, Mary Daly e Susan Griffin – todas elas representantes da
queda da civilização em termos da transformação das imagens e
dos mitos maternais, ou femininos, nos da masculinidade –, adota
a sua teoria do conhecimento enquadrando-a em conceitos mar-
xistas de materialismo histórico. Os seus critérios para o conceito
de ponto de vista feminista derivam por inteiro dos pressupos-
tos da teoria marxista na sua forma lukácsiana, incluindo a ideia
de que o ponto de vista dos explorados ou dos oprimidos torna
possível o desmascaramento das relações sociais predominantes
que produzem condições de vida opressivas. É indiscutível que
existe uma experiência do mundo especificamente feminina. O
que precisa de ser questionado, contudo, é se esta experiência
produz uma epistemologia feminista. Tal como Merchant, Hart-
sock interpreta na história da filosofia ocidental uma epistemolo-
gia masculina. A dialética senhor-escravo de Hegel, em que o eu
se forma através de uma “luta de vida e morte”, é imputada por
Hartsock às relações masculinas e de classe, negando assim a sua
universalidade. Os elementos do sexo masculino sofrem de uma
consciência dualista; vivem na, mas não são da, família. As suas
experiências formativas têm um caráter abstrato “e são uma ne-
gação da relevância do mundo material para se alcançar aquilo
que é de fundamental importância: amor pelo conhecimento, ou
filosofia (masculinidade). A dualidade da natureza e da cultura
adquire a forma de uma desvalorização (ou necessidade) do tra-
balho, e depois valoriza a supremacia em vez de uma interação
puramente social para a obtenção da fama imortal” (Hartsock,
p. 241). Começando com uma explicação materialista da posição
da mulher na reprodução social, Hartsock encontra uma base de
acordo em relação ao ataque do feminismo cultural contra a ci-
ência como o reino do abstrato e à identificação das mulheres
com a natureza. Mas vai mais longe, atribuindo à ligação entre
a masculinidade e a busca do conhecimento a designação de ideal
abstrato. Neste paradigma, as mulheres preocupam-se com a es-
fera afetiva, os homens com a cognitiva; as mulheres dedicam-se
|| 50

ao concreto, os homens ao abstrato. As mulheres são natureza,


os homens cultura. Como é evidente, estas antinomias são os
elementos da ideologia masculina. Mas Hartsock não se fica por
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

aqui, pois a sua crítica às antinomias do pensamento sexista tem


um objetivo: construir uma imagem das mulheres que seja repre-
sentada como a real por oposição ao imaginário masculino:

A construção do eu das mulheres em relação aos outros conduz numa di-


reção contrária – em direção à oposição ao dualismo de qualquer espécie;
à valoração da vida quotidiana concreta; a uma sensação de variedade de
ligações e continuidades tanto com outras pessoas como com o mundo na-
tural. Se a vida material estrutura a consciência, é de esperar que a existên-
cia das mulheres, definida pelas relações, a experiência física de desafio de
fronteiras e a ação de transformar, tanto os objetos físicos como os seres
humanos, resultem numa visão do mundo a que as dicotomias são alheias.
(Hartsock , 1983, p. 242)

Por outras palavras, existe um ponto de vista feminista que


transforma radicalmente a natureza do conhecimento. Assim
acontece porque a ciência deriva dos seus pressupostos filosófi-
cos, os quais, se acompanharmos a lógica de Hartsock, têm raiz
nas condições da existência material. Hartsock omite a discus-
são do conhecimento concreto, que pode derivar deste ponto
de vista, e a discussão de até que ponto aquele conhecimento
poderia diferir do proposto pela visão masculina do mundo; ela
não propõe um método para se chegar a esse conhecimento. De
momento, devemos cingir-nos à estrutura do seu argumento.
A crítica de Hartsock, contrariamente às do ecofeminismo e do
feminismo cultural, sustenta-se firmemente nas ciências gémeas
da psicanálise e na teoria marxista da mudança histórica, o mate-
rialismo histórico. Obviamente, estes derivam das premissas abs-
tratas e universais da filosofia da ciência iluminista. Para ambos, o
eu é construído a partir das múltiplas relações em que entra; não
é uma coisa, sui generis. Freud e Marx partilham a ideia de que o
eu é uma construção reificada mascarando relações mais profun-
das que cumpre à investigação científica desvelar. Em cada caso,
vemo-nos obrigados a empregar categorias abstratas a priori
tais como a estrutura psíquica com as suas três partes (Freud)
ou o modo de produção da vida material cujos dois elementos
são as forças e as relações de produção (Marx). Em cada caso, o
domínio da natureza torna-se a precondição para a formação do
|| 51
eu; trata-se da relação estruturante na qual as relações de classe
ou psíquicas se digladiam. Portanto, seguindo Hartsock, as suas
próprias fontes teóricas encontram-se intimamente ligadas às

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


formas de conhecimento masculinas, e tem de se calcular o pre-
ço da apropriação destas formas de saber. A sua própria descri-
ção das categorias da epistemologia feminista é notoriamente
similar às produzidas pelas feministas culturais. As mulheres são
concretas; a sua relação com a natureza é contínua e não tan-
to dualista; “as dicotomias são alheias” ao seu modo de saber.
Estas conclusões também aparecem nos discursos de Merchant,
Daly e Griffin, apesar de não afirmarem seguir os preceitos da ci-
ência de orientação masculina. Em vez disso, oferecem um mito
alternativo ao da ciência: os tempos antigos eram uma época áu-
rea quando prevaleciam os modos feministas de relacionamento
com a natureza. Depois, “o comercialismo e o industrialismo”
assinalaram uma perda da graça ou, na explicação de Daly, o re-
gime patriarcal surgiu como uma contrarrevolução violenta para
a cultura maternal (Merchant, 1980, cap. 3). A história apócrifa e
utópica de Merchant torna-se uma arma na luta feminista contra
a ciência masculina. A pré-modernidade, encarada pelo Iluminis-
mo como uma visão do mundo estática e reacionária, torna-se,
para esta versão do ponto de vista feminista, uma ciência que vê
o “cosmos como uma unidade viva” na qual os humanos esta-
vam ligados tanto ao céu como aos outros animais. Aristóteles,
cuja cosmologia se transformou no objeto de refutação para a
ciência do século XVII, é aqui encarado como um pensador imper-
feito, mas essencialmente ecológico. Merchant não considera a
história da transformação da ciência uma luta de ideias. Como
já fiz notar, ela indica as razões materiais e económicas para os
pressupostos mutáveis da ciência. Porém, considerando que ela
adota um ponto de vista francamente utópico e político, a sua
explicação da “morte da natureza” não se sustenta nas cate-
gorias materiais da causalidade. Em vez disso, ela junta mito e
ciência num mosaico que leva a sério as ideias, enquanto agen-
tes históricos. Hartsock, por outro lado, revela a contradição de
um método logocêntrico com a ideologia feminista do organi-
cismo.
Num futuro trabalho, exploro a substância das reivindicações
feministas e ecológicas em relação à ciência. Por agora, é sufi-
ciente abrir a discussão. As objeções feministas de caráter reli-
gioso, ecológico e cultural à ciência moderna diferem de muitas
|| 52

formas. O que as une é a sua condenação do fracasso da ciência


em aceitar o seu próprio compromisso social e político. A virtude
das críticas feministas à ciência é que elas tentam ultrapassar a
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

tendência, dominante entre os ecologistas, os ambientalistas, e


outros, para confinar as suas objeções aos usos sem desafiarem
os pressupostos filosóficos da ciência, o conteúdo das teorias
científicas contemporâneas, ou os métodos da ciência. Merchant
facultou uma crítica, análoga à da Escola de Frankfurt, que se
centra nos fundamentos metafísicos da ciência moderna e su-
gere, na senda de Adrienne Rich, que a metáfora pejorativa das
mulheres como “outras”, segundo a razão masculina, “liberta
das amarras da patriarquia, dá origem a um vínculo… distinti-
vamente feminino com a natureza” (Merchant, 1980, p. 6). Se a
crítica feminista da ciência como uma mas não a forma da razão
for acertada, poderá não ocupar qualquer posição privilegiada
no que respeita ao conhecimento da natureza. É uma forma de
saber, sobrecarregada com pressuposições marcadas pelo inte-
resse de domínio (masculino) sobre as mulheres/natureza. Estas
pressuposições, derivadas do mundo social, configuram os seus
resultados. Deste modo, podemos sujeitar o método científico a
escrutínio bem como a acentuada tendência de alguns ramos da
física e da biologia para o reducionismo, especialmente na sua
rejeição dos conceitos dos níveis segundo os quais a biologia, a
psicologia e a ciência social se constituem como discursos cujo
objeto de conhecimento é irredutível a propriedades físicas e
químicas. Para o feminismo, os problemas das relações sociais
não são subsumidos por impulsos biológicos básicos, que, por
sua vez, derivam de “reações químicas orgânicas”. Ao mesmo
tempo, o ponto de vista feminista invoca metáforas da fisiologia
das mulheres para descrever a natureza.
Em suma, a visão mecânica e reducionista da ciência natural
está sob cerco de três grandes movimentos que questionaram
o fosso que separa o conhecimento científico das considerações
morais e éticas. Entre as armas da crítica empregues por estes
movimentos, nenhuma é mais poderosa do que as leituras do
cânone da filosofia científica desde os pós-socráticos. As provas
daquilo a que Max Black chama “modelos e metáforas” nas leis
da ciência revelam até que ponto as categorias do mito ainda
atravessam a ciência e, particularmente, a sua incapacidade de
eliminar o propósito humano a partir das múltiplas problemáti-
cas em torno da descoberta científica.
|| 53
Sem dúvida, a própria ciência proporcionou o impulso para
muito deste trabalho. Como historiadores e filósofos da ciência
tentaram demonstrar, as recentes mudanças profundas na ima-

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


gem científica do mundo reintroduziram o sujeito na descoberta
científica, reavivaram teorias em tempos odiadas e introduziram
a incerteza em relação à questão de a ciência “precisar” ou não
de uma hipótese teleológica para explicar as suas descobertas. A
reintegração da teleologia e de ideias neo-lamarckianas na bio-
logia, a incerteza na física, a parapsicologia e a ligação religiosa
à teoria do Big Bang na cosmologia apontam para comunidades
científicas que se encontram filosoficamente, e até metafisica-
mente, fendidas. Embora o rosto público da ciência permaneça
firmemente racionalista, a dúvida começa a instalar-se; alguns
cientistas lançaram o seu próprio movimento contra o controlo
empresarial e militar sobre a investigação, exigindo uma vez mais
um regresso à autonomia do trabalho científico. E, à semelhança
do que aconteceu no passado com a física e a biologia, a junção
da ciência teórica com a filosofia reapareceu, apesar de alguns
filósofos da ciência insistirem que não têm nada a oferecer que
permita a aquisição de conhecimento positivo – o seu papel con-
siste meramente em esclarecer mal-entendidos.
Desde os debates em torno da relatividade e da mecânica
quântica no primeiro terço do século XX, em que os físicos teóri-
cos entraram em conflito declarado no respeitante a questões de
interpretação dos resultados da descoberta, foi dada “permis-
são” a historiadores, sociólogos, e até a alguns filósofos da ciên-
cia, para interrogarem a ciência e sugerirem, ainda que docilmen-
te, que existem elementos ideológicos na teoria científica. Por
agora, é suficiente mencionar que existe um ceticismo generali-
zado a respeito da autonomia da ciência, no seio da própria co-
munidade científica, bem como em movimentos sociais e numa
parte das populações dos países industrializados. Alguns cientis-
tas, filósofos e cientistas sociais estão a explorar a constituição
histórica e social da ciência, especialmente os “factos” que cons-
tituem o conhecimento científico. Concluíram, de diferentes for-
mas, que aquilo que poderá ser designado por “relações sociais”
da ciência, incluindo as visões do mundo que são constitutivas
do conhecimento científico, é inseparável dos resultados da des-
coberta. A filosofia, a história e a sociologia da ciência exploram
a reivindicação da ciência moderna (a) de que é independente
do contexto social/histórico no seio do qual atua e (b) de que
|| 54

descobre “factos” que, mesmo se dependentes da teoria, cor-


respondem ao mundo exterior. O primeiro debate diz respeito
à autonomia da ciência em relação às condições de produção de
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

conhecimento. Desde a sugestão de Thomas Kuhn (1962) de que


as mudanças de paradigma na ciência estavam dependentes não
apenas das “mudanças nas perceções”, um conceito da autoria
de N. Hanson (1958), mas também das mudanças no contexto
em que a descoberta científica tinha lugar, historiadores e soci-
ólogos da ciência tentaram perceber estas influências, presumi-
velmente “externas”, sobre o desenvolvimento científico. Aque-
les que desejam preservar a autonomia fundamental da ciência,
como Koyre, Hanson e o próprio Kuhn, confinam estas influên-
cias extra-ideacionais à comunidade científica, definida em ter-
mos mais abrangentes, ou, como nalgumas histórias e estudos
sociológicos recentes, ao laboratório.11 As exceções (ver Paul
Forman, 1971) falam de uma episteme, ou ambiente cultural, que
poderá influenciar o conteúdo da teoria científica. No entanto,
apenas o Marxismo facultou uma interpretação social/histórica
que abranje tanto a ciência como a tecnologia, explicando o seu
desenvolvimento na sua relação com transformações económi-
cas, políticas e ideológicas mais vastas.
Talvez tenha sido a teoria da correspondência mecânica da
verdade científica, empregue pelo Marxismo depois de Marx,
que resultou no silêncio ensurdecedor com que os filósofos, his-
toriadores e cientistas sociais da corrente dominante saudaram
as suas explicações. Quando Marx e os marxistas são discutidos,
são-no apenas para serem postos de parte, como na refutação
de Koyre acima citada. A tradição dominante na sociologia da ci-
ência, representada por Robert Merton e a escola de Columbia,
||

11 Kuhn menciona algumas vezes as explicações marxistas da história da ciência no seu


trabalho publicado, no contexto da discussão das explicações externas-internas para
o rumo da descoberta científica. Embora distinga cuidadosamente a posição marxista,
que se centra nas influências económicas/tecnológicas, daquelas como a de Koyre, que
insistem na base metafísica da ciência moderna – as ideias que são trazidas de fora –, a
sua própria explicação não se encontra de todo dependente daquilo que ele designa por
“tese de Merton”. Robert Mertos, diz Kuhn, baseia-se em parte na extensa historiografia
marxista do Puritanismo para explicar a ciência do século XVII. Que eu tenha conhecimen-
to, não há nenhum sítio onde Kuhn faça mais do que explicar ideias através de outras
ideias ou mesmo dedique uma parte considerável de um ensaio à historiografia marxista
da ciência. Este exemplo, vindo do académico que não é só um preeminente historiador
da ciência mas também um filósofo de grande importância, foi seguido por aqueles que
tentaram dar seguimento às suas ideias e às de Koyre (ver, por exemplo, Barbara Shapiro,
Probability and Certainty in Seventeenth-Century England, Princeton: Princeton University
Press, 1983).
|| 55
confina as suas explorações do contexto social da ciência a es-
tudos da comunidade científica, particularmente “fatores insti-
tucionais e éticos” tais como o cariz da educação científica, e as

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


redes de relações pessoais baseadas em escolas frequentadas e
organizações científicas.12 Inclusive os “novos estudos sociais em
ciência” – agrupados em torno da Escola de Edimburgo (Barry Bar-
nes, David Bloor), Michael Mulkey, Karin Knorr-Cetina, e, numa
linha de certo modo diferente, Steve Woolgar e Bruno Latour –,
em nome da abolição da dicotomia entre explicações internalis-
tas e externalistas, deram forma a uma microssociologia do co-
nhecimento em que as interações dos cientistas, o seu discurso
a respeito de observações e as suas negociações, em torno do
que de facto “viram”, constituem factos científicos.13 Estas con-
siderações diferem da sociologia Mertoniana na medida em
que a escola dos estudos sociais sustenta, de diversas formas,
que os factos científicos são construídos socialmente, mas a co-
munidade científica não raras vezes é tornada quase idêntica à
social. Nesta ligação, uma das tendências dominantes do estudo
social da ciência transformou-se na etnometodologia, um suce-
dâneo da fenomenologia; a sociologia da ciência recente procura
localizar o ponto de produção do conhecimento científico como
resultado da intersubjetividade. Nos tempos mais recentes, ape-
nas a Escola de Edimburgo e Bruno Latour tentam associar o co-
nhecimento científico ao interesse social, devendo muito, a este
respeito, às conceções marxistas e neomarxistas de ideologia.
Embora os estudos sociais da ciência, incluindo o trabalho
mais antigo de Merton, não ignorem o Marxismo, também é ver-
dade que a perspetiva histórica da ciência e da tecnologia que
tem sido fortemente identificada com a tradição marxista é mar-
ginal a este trabalho. Os trabalhos historiográficos sobre ciência,
na esteira de Koyre e Kuhn, permanecem inscritos no problema
da intertextualidade, isto é, na relação das ideias científicas com
a filosofia, ou, de forma mais abrangente, na mentalidade domi-
nante de um período histórico. Ausentes destas considerações
estão estudos concretos no campo das relações sociais da ciência
||

12 O canónico The Sociology of Science (1973), de Robert Merton, dominou este campo
durante décadas e, a determinados níveis, ainda domina.
13 Para uma excelente introdução ao ponto de vista deste grupo (considerando algu-
mas diferenças no seu seio), ver Michael Mulkey, Science and the Sociology of Knowledge
(1979); também David Bloor, Knowledge and Social Imagery (1978); Bruno Latour e Steve
Woolgar, Laboratory Life (1979), e Knorr-Cetina e Mulkey, Science Observed (1983).
|| 56

que ultrapassem as fronteiras do laboratório ou dos contextos


profissionais em que os cientistas atuam.
Discutirei a teoria da descoberta científica que emana de Marx
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

e Engels. Como iremos ver, as controvérsias em torno desta ques-


tão no seio do Marxismo revelam diferenças de interpretação
tão variadas como as que se constatam na filosofia da ciência e
da tecnologia. Além disso, como irei demonstrar, o Marxismo, no
seguimento da ambivalência do próprio Marx, espelha os deba-
tes em todas as disciplinas relativamente à questão geral do que
constitui a ciência; à relevância das relações sociais para a forma
e a substância do conhecimento científico, isto é, para o que con-
ta como conhecimento; e, de modo mais abrangente, à relação
da ciência com aquilo que é designado como “sociedade”.
Segue-se uma análise da tradição marxista, na sua versão
“ortodoxa” que emana dos teóricos das Segunda e Terceira
Internacionais bem como daqueles que podem ser designados
como “neomarxistas”. Pretendo demonstrar que as transforma-
ções no seio do Marxismo tendem a seguir as mudanças de men-
talidades que acompanham tanto os desenvolvimentos sociais e
culturais como as ideologias neles inscritas. Tal como a própria
ciência natural, o Marxismo não é imune às controvérsias do(s)
tempo(s) em que teoriza os fenómenos sociais e naturais.
Ao mesmo tempo, o Marxismo é constantemente confronta-
do com uma perturbação que não aflige outras perspetivas. Ela
consiste no problema de reconciliar a sua própria reivindicação
de ser uma “ciência”, no sentido da física ou da química do século
XIX, com a sua igualmente poderosa proposição axiomática de
que natureza e história são constituídas pelas relações sociais da
produção, e de que a produção dos meios materiais de existência
social é ao mesmo tempo a produção dos próprios humanos (in-
cluindo a sua vida mental). Por conseguinte, se a produção social
não é meramente o instrumento através do qual os humanos so-
brevivem às vicissitudes do seu ambiente externo mas constitui
a multiplicidade das suas relações sociais, o Marxismo dá a pis-
ta para uma conceção radicalmente diferente do conhecimento
científico daquela que está contida na sua próprias aspirações.
Sob este axioma, não apenas a ciência, mas o próprio Marxismo,
devem ser compreendidos dentro do quadro das relações
sociais. Tanto as suas estruturas axiomáticas como as suas es-
truturas teóricas têm de ser entendidas como aspetos das re-
lações de produção dominantes. A este respeito, o referente
|| 57
do conhecimento científico não é só o objeto de investigação,
ou, como recentemente descoberto na mecânica quântica, o ob-
servador, mas também a matriz social na qual se constituem os

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


modos de pensamento. O facto de a maior parte dos principais
teóricos da ciência e da tecnologia, que seguem a perspetiva
marxista, não terem sido capazes de situar o seu próprio “para-
digma” reflexivamente, isto é, de compreender em que medida
a ciência marxista contém elementos ideológicos ou, no mínimo,
está dependente da natureza dessas relações que a constituem,
atesta o poder da fé iluminista de que a natureza (e a natureza
humana) pode ser compreendida diretamente. A propósito da
ciência neomarxista e da ciência soviética, mesmo quando eles
reconhecem a constituição social dos factos científicos, a relati-
vidade histórica do conhecimento científico é atenuada por uma
adesão estrita a uma epistemologia realista, segundo a qual a
correspondência das proposições científicas com o mundo ma-
terial pode ser estabelecida através de provas experimentais ou
matemáticas. Existem, evidentemente, exceções, mas estas tive-
ram uma influência mínima sobre o Marxismo enquanto movi-
mento intelectual.
Poder-se-á reparar em comensurabilidades impressionantes
com este desenvolvimento na historiografia, sociologia e filo-
sofia da ciência não marxistas, bem como no seio dos próprios
cientistas, especialmente aqueles que também são filósofos.
O reconhecimento de que a produção de conhecimento não é
um processo social não tem sido um lugar comum nos discursos
sobre a ciência; no entanto, desde Kuhn, a ideia tem-se torna-
do mais aceitável. Contudo, de entre as principais correntes de
pensamento originárias do século XIX, apenas o Marxismo pode
explicar teoricamente este desenvolvimento (as exceções, a filo-
sofia pós-estruturalista e a historiografia e a sociologia do conhe-
cimento, são, a níveis fundamentais, derivatórias do Marxismo,
mesmo que por negação). Ao mesmo tempo, a tendência no seio
do Marxismo para a totalidade, que serve de contrabalanço,
barra um relativismo histórico empenhado.
Não obstante, enquanto que Kuhn, por exemplo, alude às
influências culturais e sociais nas mudanças de paradigma na
ciência, o Marxismo especifica-as em termos de fatores deter-
minantes económicos, políticos e ideológicos. E é precisamen-
te porque o próprio Marx gera categorias que tornam possível
uma análise social da ciência e da tecnologia que o Marxismo,
|| 58

apesar da sua ambivalência, produziu a única teoria social da


ciência coerente, uma teoria que escandalizou os seus oponen-
tes (por exemplo, Karl Popper). No entanto, só recentemente é
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

que alguns dos que trabalham segundo a tradição marxista se


mostraram dispostos a expandir a teoria à produção de conheci-
mento científico. Outros, com particular destaque para as esco-
las estruturalista e analítica, canalizaram as suas energias para a
confirmação da cientificidade do Marxismo, declarando que os
aspetos sociais no seu desenvolvimento têm pouco ou nenhum
interesse, exceto na medida em que esclarecem até que ponto as
proposições marxistas obedecem ao cânone da prova científica.
Excetuando os comentários em cartas e as suas notas para
O Capital, publicado como o Grundrisse, Marx não apresenta em
nenhum outro sítio qualquer teoria da ciência e da tecnologia. O
que acontece é que a sua teoria se encontra inscrita, quase codi-
ficada, na descrição rica do processo de trabalho desenvolvido
no primeiro volume de O Capital e nas secções cruciais sobre a
acumulação. Marx entende a ciência em termos da dominação
do capital sobre o trabalho. A ciência é subordinada ao capital
no período da transformação do processo laboral em que da
manufatura se passou à produção industrial moderna. A subtil
mudança na teoria marxista da ciência do seu papel na produção
para uma investigação epistemológica intimamente ligada ao es-
tatuto do próprio Marxismo enquanto ciência, também conside-
ra o papel das forças produtivas na transição do capitalismo para
o socialismo, uma preocupação preponderante dos principais
teóricos do socialismo de inícios do século XX, que, interpretan-
do Marx literalmente, previram que o papel da ciência na nova
ordem social seria ainda mais central do que havia sido até ao
momento nas sociedade capitalistas avançadas.
O trabalho da Escola de Frankfurt, que, tendo levado a sério
a insistência de Lukács de que a natureza era uma categoria so-
cial e de que a ciência se encontrava inexoravelmente ligada às
relações sociais, regressa ao enfoque histórico no próprio Marx.
Mas agora o desvio das considerações do processo laboral é
definitivo. Como Lukács, Horkheimer e Adorno, Marcuse e Sohn-
-Rethel, cuja teoria da ciência é profundamente influenciada pela
crítica de Frankfurt à ciência, levam a cabo uma análise dos as-
petos ideológicos das descobertas e pressupostos científicos.
No entanto, enquanto que Sohn-Rethel mantém o enfoque de
Lukács na forma da mercadoria, a Escola de Frankfurt pressupõe
|| 59
as categorias de Marx e adota uma ênfase weberiana nas for-
mas da racionalidade. Teóricos mais recentes, particularmente
Habermas, pretendem encontrar caminhos de regresso à razão

A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


mas já não os descobrem por via da ciência. Habermas sustenta
uma teoria pós-industrial da comunicação que visa abordar os
problemas das relações sociais através da linguagem. A emer-
gência ruidosa de uma epistemologia marxista introduzida por
Althusser através das influências de Jacques Lacan e particular-
mente Gaston Bachelard também demonstra as afinidades desta
tendência com a escola italiana que emana de Galvano Della Vol-
pe. Finalmente, talvez o apogeu deste novo cientismo marxista
seja o mais recente desenvolvimento do Marxismo analítico, que
pretende articular o Marxismo com o normal método científico
positivista. A história da ideologia soviética da ciência, uma ideo-
logia que se tornou doutrina oficial do estado, evidencia que as
visões soviéticas da ciência, embora anichadas em pressupostos
marxistas ortodoxos, também confrontam tendências em teo-
rias não marxistas da ciência.
Os discursos não marxistas sobre a ciência evidenciam a bata-
lha travada principalmente ao nível epistemológico, uma vez que
as perspetivas que agrupo sob a rubrica provisória do liberalismo
não possuem qualquer teoria social específica do discurso econó-
mico, político ou científico. Na verdade, sustento que uma distin-
ção entre o Marxismo e o liberalismo ao nível ideológico reside
precisamente na ausência de uma teoria social da ciência liberal.
Dado que a ideologia iluminista, especialmente os seus modos
científicos e tecnológicos, se baseia em pressupostos de relações
de mercado individualmente motivadas, por um lado, e de reivin-
dicações respeitantes à universalidade da razão, por outro, a teo-
ria social é afastada desta antinomia. Quando muito, o liberalismo
apropria-se do comunitarianismo conservador enquanto espaço
social. Porém o liberalismo original sustenta que a sociedade é
constituída por indivíduos e que a escolha individual é a fundação
da associação coletiva. Daí a conceção sociológica da “comunida-
de científica” como o espaço da descoberta científica e o tribunal
da verdade científica. Como consequência, a comunidade científi-
ca é composta por indivíduos associados unidos pela sua forma-
ção e pelo seu conhecimento, uma unidade que torna possível de-
terminar se uma dada asserção é cientificamente válida.
Claramente, esta conceção do social deriva do individualismo
possessivo. Na verdade não há “estruturas” da vida social, nem
|| 60

relações que transcendam a determinação individual. Mais recen-


temente, Michel Foucault avançou a ideia da formação discursiva
que liga os grupos sociais a discursos dispostos espacialmente. A
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

insistência de Foucault na ligação inextricável entre conhecimen-


to e poder sugere que diversas comunidades discursivas também
são formações políticas/económicas e, de um modo mais geral,
que o que conta como conhecimento tem uma ligação com a do-
minação. Embora Foucault seja normalmente catalogado como
pertencente ao universo pós-marxista, não há dúvida de que o
referente continua a ser o materialismo histórico, mesmo que a
primazia do económico seja negada.
No entanto, não pode haver um retorno às teorias históricas
materialistas conforme foram articuladas por Marx e Engels.
Como iremos ver, ambas estão imbuídas do ideal iluminista da
ciência como de certo modo resistente à infusão das ideologias
produzidas no curso da produção e reprodução das relações so-
ciais capitalistas. Esta visão é atribuível não só ao contexto em
que os estudos da linguagem e do discurso enquanto fontes de
ideologia ainda estavam na sua infância, mas também aos proble-
mas colocados pela ideologia evolucionista. Segundo esta ideo-
logia, os humanos estão no ponto mais alto da ordem natural; o
seu estatuto único deve-se à sua capacidade de produzirem os
seus meios de subsistência, e desse modo produzirem a sua vida.
Na autoprodução de todos os aspetos da existência, a ciência é
o discurso superior e o Marxismo sublinha-se como a representa-
ção autêntica dessa superioridade no campo social, e, enquanto
meta-ciência, também no chamado campo natural.
O que está em questão são tanto proposições como a ideolo-
gia evolucionista: sustento que a ciência é um processo laboral
como muitos outros; que as suas práticas constituem uma inter-
venção de um tipo específico, cujo contraste com outros tipos
de intervenções sociais e naturais não pode ser distribuído hie-
rarquicamente numa escala de verdade e de adequação; e, final-
mente, que a ciência é um discurso que narra o mundo de uma
forma especial.

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A Ciência e a Tecnologia Como Hegemonia


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Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

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|| 63
Cap. 3

Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida


Mercantilizando as Crianças:
A Crise Esquecida

Henry Giroux
McMaster University, Hamilton, Ontário

A indústria de publicidade e marketing gasta cerca de 17 biliões de dólares


por ano a moldar as identidades e desejos das crianças.

Enquanto os Estados Unidos e o resto do mundo entram em


queda livre económica, a crise atual veio oferecer uma oportuni-
dade, não apenas de questionar as políticas do fundamentalismo
do mercado livre, o domínio da economia sobre a política, a su-
bordinação da justiça às leis da finança e a acumulação do capital,
mas, também, as maneiras pelas quais a cultura infantil tem sido
corrompida pelo crescimento incontrolável da comercialização,
da mercantilização e do consumo. Está mais em jogo nesta cri-
se do que meramente estabilizar os bancos, suster o desempre-
go e resolver o problema da habitação. Está também em jogo a
questão de que tipo de espaços públicos e valores, para além da-
queles que o mercado providencia, queremos tornar disponíveis
para que as crianças adquiram o conhecimento, as competências
e as experiências de que precisam para enfrentar a miríade de
|| 64

problemas que se afiguram ao século XXI. O caminho para a recu-


peração não pode passar pelo simples retorno a um capitalismo
modificado de mercado livre e ao restabelecer de uma sociedade
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

de consumo praticamente falida. Dado todo o sofrimento e dor


que a vasta maioria dos americanos sofreu, deveríamos pergun-
tar-nos se não existe aqui uma ocasião para aprender. Que tipo
de sociedade e futuro queremos para os nossos filhos, dado o
quão insustentável e explorador o agora falhado sistema orien-
tado pelo mercado provou ser?
Numa sociedade que mede o sucesso e o falhanço apenas
através da lente económica do produto interno bruto (PIB), tor-
na-se muito díficil definir uma juventude à margem dos princípios
de mercado, determinados, em larga escala, por critérios como
o ritmo de crescimento do mercado e a acumulação de capital.
Neste discurso, o valor e potencial das pessoas jovens é deter-
minado, em grande medida, através das categorias de custo-be-
nefício de salário, gastos, bens e dívidas. O PIB não mede justiça,
integridade, coragem, compaixão, sabedoria e aprendizagem,
entre tantos outros valores vitais aos interesses e saúde de uma
sociedade democrática. Nem tão pouco endossa a importância
da participação cívica, dos bens públicos, da dissidência e do in-
centivar das instituições democráticas. Numa sociedade condu-
zida inteiramente por mentalidades de mercado, as moralidades,
valores e ideais, consumo, venda e marketing convertem-se no
modo principal pelo qual se define a agência, as relações sociais
– íntimas e públicas – e moldam as sensibilidades e vidas íntimas
dos adultos, assim como o modo como a sociedade define e trata
as suas crianças.
Enquanto este “império do consumo” já por cá anda há algum
tempo (Cohen, 2003), a sociedade Americana sofreu, nos últimos
trinta anos, uma mudança radical no que respeita à vida diária das
crianças – uma mudança marcada por uma profunda transição de
uma cultura de inocência e proteção social, apesar de imperfeita,
para uma cultura de mercantilização. Esta é uma cultura que faz
mais do que minar os ideais de uma infância feliz e segura; exi-
be também a má fé de uma sociedade na qual, para as crianças,
“só pode haver apenas um tipo de valor: o valor de mercado; um
tipo de sucesso: lucro; um tipo de existência: mercadorias; e um
tipo de relação social: mercados” (Grossberg, 2005, p. 264). As
crianças habitam agora uma paisagem cultural na qual se podem
reconhecer apenas em termos do que é preferido pelo mercado.
|| 65
Sujeitos a uma indústria de marketing e publicidade que gasta
cerca de 17 biliões de dólares por ano a moldar as identidades
e desejos das crianças1, os jovens americanos são maciçamente

Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida


bombardeados por uma proliferação de estratégias de mercado
que colonizam a sua consciência e quotidianos. Empresas multi-
bilionárias, no comando dos mercados de bens, apoiadas pelas
mais altas instâncias do governo, tornaram-se o principal veículo
educativo e cultural que molda, senão mesmo sequestra, o modo
como os jovens definem os seus interesses, valores e relações
com os outros. Juliet Schor, uma das mais visionárias e críticas
teóricas da mercantilização das crianças, argumenta que “Estas
empresas não têm apenas um poder económico enorme, como
a sua influência política nunca foi tão grande. Canalizaram somas
de dinheiro sem precedente para partidos políticos e respetivos
funcionários… O poder detido por estas empresas é evidente de
muitas formas, desde a sua habilidade para eliminar a competi-
ção, até a sua habilidade em mobilizar o poder do estado para os
seus interesses” (Schor, 2006, pp. 114-115).
À medida que a soberania do mercado substitui a soberania
do estado, as crianças deixam de ser vistas como um investimen-
to social importante ou como um indicador central da vida moral
da nação. Ao invés, os ideais de infância associados à proteção
e bem-estar dos jovens são transformados – desacoplados do
“chamamento à consciência e ação cívicas” (Adatto, 2003, p.40)
e redefinidos através do que conta como uma cultura de cruelda-
de, abandono e descartabilidade. Cada vez mais os ideais de in-
fância dão lugar a políticas orientadas pelo mercado, através das
quais os jovens são preparados para uma vida de objetificação
e, simultaneamente, esvaziados de qualquer sentido de agência
moral e política viável. Além de mais, enquanto a economia im-
plode, o setor financeiro é saqueado pela corrupção e a usura, o
mercado imobiliário e hipotecário está em queda livre e milhões
de pessoas perdem os seus empregos, a mira nas crianças como
alvos de lucro toma contornos e tons cada vez mais insistentes
e sinistros. Isto é especialmente verdade numa sociedade de
consumo na qual, mais do que nunca, as crianças medeiam as
||

1 Ver Josh Golin, “Nation’s Strongest School Commercialism Bill Advances Out of Com-
mittee,” Common Dreams Progressive Newswire (agosto 1, 2007). Disponível em http://
www.commondreams.org/cgi-bin/newsprint.cgi?file=/news2007/0801-06.htm. Juliet Schor
argumenta que, em 2004, as despesas totais com publicidade e marketing dirigida a crian-
ças atingiram os 15 biliões de dólares. Ver Schor, 2005, p. 21.
|| 66

suas identidades e relações com os outros através do consumo


de imagens e bens. Não mais imaginada numa linguagem de res-
ponsabilidade e justiça, a infância começa com o que poderá ser
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

chamado escândalo filosófico por dinheiro – isto é, uma lógica


na qual tudo, incluindo o valor dos jovens, é medido através dos
cálculos, potencialmente bárbaros, da finança, valor de troca e
lucro. Isto faz parte da crise económica e raramente é menciona-
do na grande imprensa.
O que é distintivo acerca deste período da história é que os
Estados Unidos se tornaram a “sociedade no mundo mais orien-
tada para o consumidor”. Crianças e adolescentes, devido ao
seu valor como consumidores e à sua capacidade de influenciar
o consumo, estão, não só no “epicentro da cultura de consumo
americana”, mas são, também, os alvos mais importantes dessas
poderosas forças financeiras e de marketing que servem gran-
des empresas e o estado empresarial (Schor, 2005, p. 20). Num
mundo em que os produtos superam em larga escala os compra-
dores, os jovens foram desenterrados, não apenas como mais um
mercado proveitoso em expansão, mas enquanto fonte primária
de redenção para o futuro do capitalismo – mesmo em implosão.
Apagados como futuros cidadãos de uma democracia, as crian-
ças são agora construídas como objetos de consumo e venda.
As empresas da era das guildas, apesar de desvalorizadas, e os
seus exércitos de marketers, psicólogos e executivos publicitá-
rios focalizam-se agora naquilo que Susan Linn apelida de “toma-
da hostil da infância” (2004, p. 8), determinados a apoderar-se
do poder económico detido por crianças e adolescentes. Com
um poder de aquisição crescente a rivalizar com o dos adultos,
este mercado expandiu-se nas últimas décadas, quer pelos gas-
tos diretos das crianças, quer pela sua influência nas aquisições
dos pais. Enquanto os números dos gastos diretos das crianças
diferem, Benjamin Barber defende que “em 2000, existiam 31
milhões de crianças americanas entre os doze e os dezanove a
controlar 155 biliões de dólares de consumo. Apenas quatro anos
mais tarde, existiam 33.5 milhões de crianças a controlar 169
biliões ou, aproximadamente, 91 dólares por semana por crian-
ça” (Barber, 2007, pp. 7-8). Schor argumenta que “crianças en-
tre os quatro e doze anos fizeram… 30 biliões de dólares” em
compras em 2002, enquanto “crianças entre doze e dezanove”
contabilizaram 170 biliões de dólares em gastos pessoais” (Schor,
2005, p. 23). Molnar e Boninger citam números que indicam que
|| 67
pré adolescentes e adolescentes comandam “200 biliões de dóla-
res de poder de compra” (2007, pp. 6-7). Os jovens são atrativos
para as empresas porque são grandes gastadores, mas essa não

Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida


é a única razão. Elas também exercem uma grande influência nos
gastos dos pais, oferecendo um mercado no qual, de acordo com
Anap Shah, “Crianças (menores de doze) e adolescentes influen-
ciam as compras dos pais num total de… 670 biliões de dólares
por ano” (Shah, 2008).
Uma medida do assalto empresarial às crianças pode ser
observada no alcance, aceleração e efetividade do rolo com-
pressor de marketing e publicidade que tenta transformar crian-
ças em consumidores e infância em mercadoria vendável. Cada
criança, independentemente da idade, é agora um potencial
consumidor pronto a ser mercantilizado e imerso numa cultura
comercial definida por marcas. De acordo com Lawrence Gros-
sberg, as crianças são introduzidas a um mundo de logotipos,
publicidade e “mapas de sentido” de consumismo muito antes
de aprenderem a falar: “O capitalismo ataca as crianças mal
tenham idade suficiente para ver publicidade, mesmo que estas
não tenham idade suficiente para distinguir programação de pu-
blicidade ou até mesmo para reconhecer os efeitos do branding
e posicionamento de produto” (Grossberg, 2005, p. 88). De fac-
to, as crianças americanas, desde que nascem até à idade adulta,
são expostas a um bombardeamento intensivo de publicidade,
marketing, educação e entretenimento que não tem precedente
histórico. Existe mesmo um mercado de vídeos para bebés tão
jovens como quatro meses de idade. Um desses vídeos para
bebés chamado Baby Gourmet, alegadamente tenta “providen-
ciar uma experiência multissensorial para crianças, especialmen-
te desenhada para introduzir os pequeninos aos belos frutos e
vegetais… de uma forma gentil e divertida que estimula quer os
hemisférios esquerdo e direito” (Linn, 2004, p. 54). Isto poderia
ser uma piada se a Madison Avenue não estivesse mesmo a
sério na sua tentativa de vender este tipo de campanha publicitá-
ria – junto com outros videos para bebés como o Baby Einstein,
Brainy Baby, Sesame Street Baby e o Winnie the Pooh Baby
da Disney – aos pais desejosos de providenciar aos seus filhos
toda e qualquer concebível vantagem sobre o resto da popula-
ção. Tal não surpreende, visto tratar-se de um Mercado crescen-
te de 4.8 biliões de dólares direcionado às crianças mais jovens
(Molnar e Boninger, 2007, p. 9). Schor capta perfeitamente esta
|| 68

omnipotência da maquinaria do consumismo enquanto este en-


volucra as vidas de crianças muito jovens: com um ano de idade,
ela vê os Teletubbies e come a comida dos seus “parceiros pro-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

mocionais” - Burger King e McDonald’s. Os miúdos reconhecem


os logos a partir dos dezoito meses e, antes do segundo aniver-
sário, já pedem produtos pelo nome de marca. Pelos três ou três
anos e meio, dizem os especialistas, as crianças começam a acre-
ditar que as marcas comunicam as suas qualidades pessoais, por
exemplo, que são fixes ou fortes ou inteligentes. Mesmo antes
de começar a escolaridade, a probabilidade de terem uma televi-
são no quarto é de 25 por cento, e o seu tempo de visionamento
é de mais de duas horas por dia. Ao chegar aos degraus da esco-
la, o típico miúdo da primeira classe pode evocar 200 marcas. E
ele ou ela já acumulou um número sem precedente de posses,
começando com uma média de setenta novos brinquedos por
ano (Schor, 2005, pp. 19-20).
Cúmplice, consciente ou inconsciente, de uma política defini-
da pelo poder do mercado, o público americano oferece pouca
resistência a que a cultura da criança seja expropriada e coloniza-
da pelos publicitários da Madison Avenue. Desejosos de interiori-
zar nas crianças medos inventados e lacunas, estes publicitários
também instigam os miúdos com desejos novos inimagináveis,
atiçando-os a gastar dinheiro ou a influenciar os pais a gastá-lo de
modo a encher os cofres das empresas. Toda a criança é vulnerável
aos numerosos publicitários que diversificam os mercados atra-
vés de vários nichos, um dos quais baseado na idade. Por exem-
plo, a indústria de DVD vê os bebés como um mercado lucrativo.
Os fabricantes de brinquedos focam agora as crianças desde que
nascem até aos dez anos de idade. Crianças com idades entre
oito e doze anos constituem um mercado e os adolescentes um
mercado adicional. As crianças visitam lojas e centros comerciais
muito antes de entrarem para a escola primária e crianças tão
jovens como oito anos visitam centros comerciais sem adultos. A
Disney, a Nickelodeon e outras mega companhias providenciam
websites tais como “Os Piratas das Caraíbas” para crianças me-
nores de dez anos de idade, atraindo-as para um mundo virtual
de consumidores potenciais que atingiu os 8.2 milhões em 2007,
enquanto se prevê que este centro comercial eletrónico venha
a incluir 20 milhões de crianças por volta de 2011 (citado em Bar-
nes, 2007). Para além de mais, como Brook Barnes afirma no The
New York Times, estes centros comerciais eletrónicos não estão
|| 69
a ser, de todo, utilizados para fins de entretenimento inocente
ou de intenções educativas. Pelo contrário, afirma, “os conglo-
merados de media, em particular, pensam que estes sites – parte

Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida


role-playing games online, e parte cena social – podem providen-
ciar um crescimento rápido, ajudar a manter os franchises dos
filmes vivos e instilar lealdade à marca numa geração de novos
consumidores” (Barnes, 2007). Porém está mais em jogo aqui do
que apenas fazer dinheiro e promover a lealdade às marcas entre
crianças pequenas: está em jogo, também, a construção de mo-
dos particulares de subjetividade, identificação e agência.
Algumas destas identidades estão marcadas, explicitamente,
em publicidade endereçada às meninas. Os estrategas de marke-
ting estão a usar, de forma crescente, imagens de teor sexual
para vender mercadorias que, frequentemente, representam as
fantasias da versão adulta da sexualidade. Por exemplo, Aber-
crombie & Fitch, uma marca de roupa para jovens, ganhou re-
putação pelos seus catálogos recheados de crianças seminuas
e pelas suas colunas com conselhos sexuais para adolescentes
e pré-adolescentes; um catálogo apresentava um anúncio de
tangas para jovens de dez anos com as palavras “eye candy”2 e
“wink wink”3 escritas nelas4. Outra loja vendia roupa interior
personalizada para adolescentes com o mote “Quem precisa de
cartões de crédito…?” escrito na braguilha (Ganeva, 2008). Es-
tão a ser vendidas a crianças de seis anos, calcinhas rendadas,
soutiens push-up e “acessórios para encontros amorosos no-
turnos” para as suas variadas coleções de bonecas. Em 2006, a
cadeia de vendas Tesco vendeu um kit de dança no varão dese-
nhado para meninas para libertarem a gatinha sexual interior.
Encorajar crianças com idades compreendidas entre cinco a dez
anos a vestirem-se como trabalhadoras do sexo sugere o grau a
que as questões de ética e propriedade se afastaram do mundo
do marketing e da publicidade, mesmo quando o público-alvo
são crianças pequenas. As políticas representativas em questão,
nestas estratégias de marketing e publicidade, ligam os corpos
||

2 N.T. Em português significa algo como “regalo para os olhos”.


3 N.T. Em português significa algo como “piscadela de olhos maliciosa”.
4 Editorial, “Clothier Pushes Porn, Group Sex to Youths,” WorldNetDaily.com (Novem-
ber 15, 2003). Disponível em http://www.wnd.com/news/article.asp?ARTICLE_ID=35604.
Ver também o Editorial, “Tell Nationwide Children’s Hospital: No Naming Rights for Aber-
crombie & Fitch,” Campaign for a Commercial-Free Childhood (junho 2006). Disponível
em http://salsa.democracyinaction.org/o/621/t/5401/campaign.jsp?campaign_KEY=23662
|| 70

das crianças a uma noção de sexualidade redutora, prazer e mer-


cantilização, ao mesmo tempo que representam a sexualidade e
corpos das crianças como nada mais que objetos para consumo
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

voyeurista de adultos e cru proveito financeiro.


Nas últimas décadas, críticos como Thomas Frank, Kevin
Phillips, David Harvey e muitos outros bem nos avisaram de que
os conservadores de direita e os fundamentalistas do mercado
livre andavam a desmantelar o governo ao vendê-lo ao licitador
mais alto ou “amigável”. Porém o que não reconheceram tão
bem foi que o que acabou por ser igualmente vendido foram as
crianças e o nosso futuro coletivo, e que as consequências desta
catástrofe apenas podem ser compreendidas dentro do quadro
mais vasto de uma filosofia política de mercado que encara as
crianças como mercadoria e a democracia como inimigo. Numa
democracia, a educação em qualquer esfera, quer seja em esco-
las públicas quer nos media em geral, é ou deve ser intrinseca-
mente adversa a tratar os jovens como unidades individuais de
potencial económico e como mercadorias com pernas. É crucial
não “esquecer” que a democracia não deve ser confundida com
hipercapitalismo.
Inevitavelmente, os humanos devem consumir para sobrevi-
ver. O verdadeiro inimigo não é o consumo em si mas uma so-
ciedade de consumo orientada para o mercado, abastecida pelo
ciclo interminável de aquisição, desperdício e descartabilidade
que está no coração de um capitalismo global desregulado e
não fiscalizado. Nestas circunstâncias, sobram poucos espaços
nos quais imaginar um modo de consumo que rejeite a lógica
da mercantilização, abrace princípios de sustentabilidade e que,
simultaneamente, expanda o alcance e possibilidades de uma
democracia substantiva. Juliet Schor aflora esta questão ao cor-
retamente argumentar que a verdadeira questão é “que tipo de
consumidores queremos ser?” (Schor, 2006, p. 51). Ou, posto de
forma mais alargada, em que tipo de sociedade e mundo quere-
mos viver? À medida que a política vai abraçando todos os aspe-
tos da vida das crianças, é crucial tornar claro que a crescente
maré dos mercados livres tem menos a ver com o assegurar da
democracia e liberdade do que com o disseminar de um reinado
de terror à volta do globo, afetando as populações mais vulnerá-
veis da forma mais cruel. As políticas da mercantilização e a sua
lógica subjacente de desperdício e descartabilidade causam
danos irreparáveis às crianças; porém, o resultado material,
|| 71
psicológico e espiritual que causam deve ser entendido, não me-
ramente como um assunto politico e económico, mas também
como uma preocupação pedagógica.

Mercantilizando as Crianças: A Crise Esquecida


Ao mesmo tempo, a simples crítica do mercado, da priva-
tização dos bens e da comercialização das crianças, apesar de
ajudar, não é suficiente. Denúncias agitadoras sobre o que uma
sociedade de mercado faz às crianças não são suficientes. O
que é igualmente necessário é desenvolver espaços públicos e
movimentos sociais que ajudem os jovens a desenvolver noções
saudáveis de si próprios, identidades e visões do seu futuro não
mais definido – mais propriamente, contaminado – por valores
e mentalidades de mercado. O caminho para a recuperação de
Obama deve alinhar-se com a visão de uma democracia que este-
ja do lado das crianças, particularmente das crianças mais jovens
com mais necessidades. Deve criar condições para que os jovens
aprendam, “cresçam”, como insistia John Dewey, como atores
sociais envolvidos ativamente nas suas responsabilidades para
com as gerações futuras, mais do que a sociedade adulta con-
temporânea provou ser capaz. Tal projeto requer construir uma
política que recuse ser animada pela raiva populista tão facilmen-
te mal-direcionada, ou por um desdém pelo estado social, pela
mutualidade, reciprocidade e compaixão, entre outros valores
democráticos. Resumindo, deve rejeitar uma sociedade cuja es-
sência é correntemente refratada nas caras de crianças confron-
tadas com um futuro que até ao momento oferece muito pouca
esperança de felicidade, ou mesmo sobrevivência.

Referências Bibliográficas
Adatto, K. (2003). Selling Out Childhood, Hedgehog Review 5: 2.
Barber, B. R. (2007). Consumed: How Markets Corrupt Children, Infantilize
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(dezembro 31) Disponível em http://www.nytimes.com/2007/12/31/
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2007. Tempe: Arizona State University.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Schor, J. B. (2005). Born to Buy. New York: Scribner.


Schor, J. B. (2006). When Childhood Gets Commercialized Can Childhood Be
Protected. In U. Carlsson (ed.) Regulation, Awareness, Empowerment:
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dicom.
Shah, A. (2008). Children as Consumers. Global Issues (janeiro 8). Disponível em
http://www.globalissues.org/TradeRelated/Consumption/Children.asp.
Schor, J. (2006). Tackling Turbo Consumption: An Interview With Juliet Schor.
Soundings 34 (novembro).
|| 73
Cap. 4

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


Crítica Feminista da Ciência e Tec-
nologia

Judy Wajcman
The London School of Economics and Political Science

Ao escrever em 1844 sobre as relações entre homens e mulhe-


res, Marx disse que “era possível ajuizar a partir deste relaciona-
mento o grau de desenvolvimento inteiro da humanidade” (1975,
p. 347). Geralmente é o nível de desenvolvimento científico e
tecnológico que é tomado em conta como índice de desenvol-
vimento de uma sociedade. Os nossos ícones de progresso são
retirados da ciência, da tecnologia e da medicina; reverenciamos
aquilo que é definido como “racional” e distinto do que é julgado
“emocional”.
Contudo, conforme nos aproximamos do século vinte e um, já
não temos a certeza se a ciência e a tecnologia são a solução para
os problemas do mundo, tais como a degradação ambiental, de-
semprego e guerra, ou a própria causa destes. Não é surpreen-
dente, portanto, que a relação entre ciência e tecnologia esteja a
ser atualmente sujeita a profundo questionamento.
O desenvolvimento de uma perspetiva feminista sobre a histó-
ria e filosofia da ciência é um empreendimento relativamente
|| 74

recente. Apesar de este campo ser ainda bastante pequeno e


suscetível de controvérsia, atraiu um maior debate teórico do
que o homólogo tema de género e tecnologia. Tornar-se-á con-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

tudo aparente, no que se segue, que as feministas perseguiram


linhas de argumento similares quando dirigiram a sua atenção da
ciência para a tecnologia. Irei assim começar por examinar algu-
mas abordagens à questão do género e ciência antes de prosse-
guir para a tecnologia.

A Política Sexual da Ciência


O interesse em género e ciência despertou a partir do movi-
mento contemporâneo feminista e de uma preocupação geral
sobre a posição das mulheres nas suas profissões. Cientistas
feministas no ativo tem vindo a questionar-se sobre as relações
sociológicas entre género e ciência, pelo menos desde ínicios
da década de 70. A publicação de estudos biográficos de notó-
rias mulheres cientista serviu como um corretivo útil ao historial
mainstream da ciência ao demonstrar que as mulheres deram, de
facto, uma grande contribuição para o esforço científico. As bio-
grafias de Rosalind Franklin e Barbara McClintock, por Anne Sayre
(1975) e Evelyn Fox Keller (1983), respetivamente, são provavel-
mente os exemplos mais conhecidos. A recuperação do historial
das realizações das mulheres tornou-se agora uma parte integral
do ensino feminista num raio alargado de disciplinas. Contudo,
conforme a extensão e qualidade intransigentes da exclusão da
mulher na ciência se tornou mais aparente, a abordagem mudou
gradualmente de uma observação de mulheres excecionais para
um exame de padrões gerais de participação feminina.
Hoje em dia existem provas consideráveis sobre as formas atra-
vés das quais as mulheres apenas conseguiram acesso limitado às
instituições científicas e sobre o estatuto atual da mulher na pro-
fissão científica. Muitos estudos identificaram as barreiras estru-
turais à participação das mulheres, observando-se discriminação
sexual no emprego e no tipo de socialização e educação que as
jovens recebem e que as canaliza para longe das matemáticas e
ciência. Ao explicar a sub-representação da mulher na educação
científica, laboratórios e publicações científicas, esta investigação
critica corretamente a construção e o caráter da identidade e
comportamento femininos encorajada pela nossa cultura.
|| 75
Contudo, estes autores colocam a solução, principalmente,
em termos de conseguir que mais mulheres entrem na ciência –
vendo a questão como uma mera questão de acesso à educação

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


e ao emprego. Ao invés de questionar a ciência em si, tais estu-
dos assumem que a ciência é uma profissão nobre, uma busca de
nobre valor e que se às jovens forem dadas as mesmas oportuni-
dades e encorajamento estas irão com prazer tornar-se cientistas
em proporção igual à do seu número na população. Do presente
se aufere que, remediar o corrente défice é visto como um pro-
blema que uma combinação de diferentes processos de sociali-
zação e políticas de igualdade de oportunidade resolveriam.
Esta abordagem, tal como Sandra Harding (1986) e outros
apontaram, localiza o problema nas mulheres (a sua socialização,
as suas aspirações e valores) e não coloca a questão mais abran-
gente sobre se e de que forma a ciência e as instituições podem
ser reformuladas para acomodar as mulheres. As recomenda-
ções da igualdade de oportunidades, levam a que as mulheres
troquem aspetos importantes do seu género identitário por uma
versão masculina sem a prescrição de um processo similar de
“desgenerização” para homens. Por exemplo, a atual estrutura
de carreira para um cientista profissional dita longos períodos
ininterruptos de estudo intensivo e investigação que, simples-
mente, não permitem responsabilidades de acompanhamento
de crianças nem responsabilidades domésticas. Para ter sucesso
as mulheres teriam de moldar-se pelos homens que, tradicional-
mente, evitaram tais compromissos. A estratégia da igualdade
de oportunidades teve um sucesso limitado precisamente por-
que falha o desafio da divisão do trabalho por género na socie-
dade. O estereótipo cultural da ciência como inextricavelmente
interligada com a masculinidade é também crucial para explicar
o pequeno número de mulheres em ciência. Se a ciência é vista
como uma atividade apropriada a homens, então não é surpreen-
dente que as jovens frequentemente não queiram desenvolver
as destrezas e comportamentos considerados necessários para
o sucesso em ciência.
Quando as feministas primeiramente voltaram as suas aten-
ções para a ciência, o problema era concebido como um pro-
blema de usos e abusos aos quais a ciência fora submetida por
homens. As feministas sublinharam a forma através da qual a bio-
logia foi utilizada para a fundamentação teórica de papéis sexu-
ais biologicamente pré-determinados. A biologia foi central para
|| 76

a promoção de uma visão da natureza da mulher tida como dife-


rente e inferior, tornando-a naturalmente incapaz de realizar tra-
balho científico. Por exemplo, diferenças nas capacidades visual
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

e espacial são dadas como explicação para o facto de existirem


mais cientistas masculinos. Ao confrontar determinismos bioló-
gicos, muitas feministas questionam-se sobre o como e porquê
dos estudos de género se terem convertido numa prioridade da
investigação científica. Propuseram-se demonstrar que a inves-
tigação biológica e, de facto, a ciência Ocidental como um todo,
foi consistentemente formatada por preconceitos masculinos.
Este preconceito é evidente, argumentam, não apenas na defi-
nição sobre o que conta como problema científico mas também
nas interpretações da investigação. Decorreu desta observação
que a ciência não podia ser genuinamente objetiva até que os
preconceitos masculinos fossem eliminados. Como veremos a
seguir, esta abordagem não desafia as existentes normas meto-
dológicas de inquérito científico e identifica apenas má ciência e
não ciência como o foco do problema.
Os movimentos políticos radicais de finais dos anos sessenta
e princípios de setenta começaram a questionar os usos e abu-
sos da ciência. Nas suas campanhas contra uma ciência que fora
abusada, militarizada e tornada poluidora, argumentavam que
a ciência era direcionada para o lucro e a guerra. Inicialmente a
ciência era vista como neutra, desprovida de valor e útil enquan-
to utilizada por aqueles que trabalhassem para uma sociedade
justa. Contudo, gradualmente, o movimento radical científico de-
senvolveu uma análise Marxista do caráter de classe da ciência
e das suas ligações com os métodos capitalistas de produção.
Uma reavivada economia política da ciência começou por argu-
mentar que o crescimento e natureza da ciência moderna estava
relacionado com as necessidades da sociedade capitalista. Cada
vez mais presa ao estado e à indústria, a ciência tornara-se dire-
cionada para a dominação. A ideologia da ciência como neutra
era entendida como tendo um desenvolvimento histórico espe-
cífico. Uma das formulações mais características desta posição
associada ao movimento radical da ciência foi a de que “a ciência
é relações sociais”. A ideia era a de que a distinção entre ciência
e ideologia não poderia ser sustentada porque as relações sociais
dominantes da sociedade eram constitutivas da própria ciência.
Durante o mesmo período ocorreu uma mudança radical na
história, filosofia e sociologia da ciência que adicionava peso à
|| 77
visão de que a ciência não podia mais ser entendida simplesmen-
te como a descoberta da realidade. The Structure of Scientific Re-
volutions (1970) de Thomas Kuhn marcou o princípio daquilo que

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


se iria converter numa nova e importante área de estudo conhe-
cida por sociologia do conhecimento científico1. A sua premissa
principal é a de que o conhecimento científico, tal como outras
formas de conhecimento, é afetado ao nível mais profundo pela
sociedade na qual é conduzido.
Muita investigação examinou as circunstâncias nas quais
os cientistas atualmente produzem conhecimento científico e
demonstrou como interesses sociais reformulam este conheci-
mento. Os estudos providenciam muitas instâncias para teorias
científicas desenhando modelos e imagens da sociedade mais
vasta. Foi igualmente demonstrado que as considerações sociais
e políticas entram nas avaliações de verdade ou falsidade dos
cientistas de diferentes teorias. Até mesmo o que é considerado
“facto”, estabelecido por experimentação e observação, é so-
cial. Grupos diferentes de cientistas em circunstâncias diferentes
produziram “factos” radicalmente diferentes. Numerosos estu-
dos sobre a ciência, históricos e contemporâneos, bem como os
processos sociais através dos quais a investigação procede, des-
tacam os aspetos sociais do conhecimento científico.
Apesar dos avanços feitos pela crítica da ciência nos anos 70,
os relatos conscientes do género foram raros. Os estudos sociais
da ciência natural evitaram sistematicamente examinar a relação
entre género e ciência quer nas suas dimensões histórica quer
sociológica. Similarmente, o movimento radical da ciência focou-
se quase que exclusivamente na natureza capitalista da ciência,
ignorando a relação da ciência com o patriarcado. Em resumo, o
género não figura como uma ferramenta analítica em nenhuma
destas perspetivas da ciência.
Foi apenas durante a última década, com escritores como
Carolyn Merchant (1980), Elizabeth Fee (1981), Evelyn Fox Keller
(1985), Brian Easlea (1981), Nancy Hartsock (1983), Hilary Rose
(1983) e Ludmilla Jordanova (1980), que a ciência ocidental co-
meçou a ser catalogada como inerentemente patriarcal2. Como
coloca Sandra Harding (1986), a crítica feminina da ciência evolui
||

1 Para uma introdução a esta literatura, ver Barnes e Edge (1982) e Knorr-Cetina e Mulkay
(1983).
2 De forma a mapear o campo do género e da ciência, retirei dados em força de dois
excelentes e exaustivos estudos de Harding (1986) e Schiebinger (1987).
|| 78

do formular “a questão da mulher” na ciência para a formula-


ção mais radical da “questão da ciência” no feminismo. Ao invés
de perguntar como as mulheres podem ser tratadas mais equi-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

tativamente dentro e pela ciência, questiona “como a ciência,


aparentemente e tão profundamamente envolvida em projetos
distintivamente masculinos, poderá ser usada para fins emanci-
patórios (p. 29). É pois tempo de considerar as principais críticas
femininas sobre a própria ciência.

Conhecimento Científico como Conheci-


mento Patriarcal
A preocupação com uma análise de género do conhecimento
científico pode ser rastreada até ao movimento pela saúde da
mulher que se desenvolveu em Inglaterra e na América duran-
te os anos 70. Reconquistar o conhecimento e o controlo sobre
o corpo do mulher – a sua sexualidade e fertilidade – foi visto
como crucial para a libertação da mulher. Campanhas por me-
lhor controlo de natalidade e direitos de aborto foram centrais
para os períodos iniciais desta segunda vaga do feminismo. Exis-
tia um desencanto crescente com as teorias e práticas médicas
masculinas. O crescimento e consolidação da perícia masculina à
custa quer da saúde da mulher quer das competências curativas
das mulheres foi o tema para um estudo Americano, Witches, Mi-
dwives and Nurses: A History of Women Healers (Ehrenreich and
English, 1976). Este estudo documentava como o crescimento e
profissionalização de uma medicina dominada por homens havia
conduzido à marginalização das trabalhadoras na área da saúde.
Ao mesmo tempo, críticas sobre psiquiatria e sobre o tratamento
da depressão nas mulheres como patológico eram desmascara-
das. Questionando o porquê da incidência de doenças mentais
ser maior entre mulheres do que homens, as feministas expuse-
ram os preceitos sexistas nas definições médicas de saúde men-
tal e doença. Implícita nestas análises estava a convicção de que a
mulher podia desenvolver novos tipos de conhecimento e compe-
tências, a partir da sua experiência e necessidades. As perceções
do movimento radical da ciência contribuiram para uma visão da
ciência médica como um repositório de valores patriarcais.
Se o conhecimento médico científico é patriarcal, então e o
resto da ciência? Como Maureen McNeil (1987) ressalva, era um
|| 79
pequeno passo para a emergência de uma nova política feminis-
ta sobre o conhecimento científico em geral. Algumas feminis-
tas reexaminaram a Revolução Científica dos séculos dezasseis

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


e dezanove, argumentando que a ciência que emergiu era fun-
damentalmente baseada nos projetos masculinos de razão e ob-
jetividade. Elas caracterizaram a dicotomia concetual central ao
pensamento científico e à filosofia ocidental em geral como dis-
tintivamente masculina. Cultura versus natureza, mente versus
corpo, razão versus emoção, objetividade versus subjetividade,
o público versus o reino privado – em cada dicotomia o anterior
tem de dominar o último e o último, em cada um dos casos, pare-
ce ser sistematicamente associado ao feminino. O assunto geral
de se a dicotomia concetual é ela própria distintivamente mascu-
lina ou parte da filosofia tradicional ocidental está para além do
alcance deste texto.3 A minha preocupação é com a maneira pela
qual as metáforas de género dualistas tais como as acima usa-
das revelam os significados sociais subjacentes num pensamento
científico que se supõe neutro.
Tem-se desenvolvido uma consciencialização crescente rela-
tiva ao uso de metáforas femininas para a natureza e de metá-
foras naturais para mulheres. Um exame dos textos científicos
destaca a correspondência entre a forma como os homens trata-
vam as mulheres em determinados períodos históricos e a forma
como estes usaram a natureza. Algumas historiadoras feministas
focaram-se nas metáforas de violação e tortura nos textos de Sir
Francis Bacon e dos outros pais da ciência moderna. Merchant
(1980) argumenta que do século quinze ao século dezassete, na
Europa, quer a natureza quer a investigação científica eram con-
ceptualmente baseadas nas mais violentas e misógenas relações
que os homens mantinham com as mulheres e esta modelação
contribuiu para o simbolismo de género distintivo da subsequen-
te visão científica do mundo.
A ciência biomédica dos séculos dezoito e dezanove, na
França e na Inglaterra, implantaram simbolismos de género
similares para conceptualizar a natureza: “... ciência e medici-
na como atividades eram associadas com metáforas sexuais
que eram claramente expressas em designar a natureza como
uma mulher a ser descoberta, despida e penetrada pela ciência
||

3 Este assunto é discutido por Harding (1986). Para um relato mais detalhado do debate
sobre se a própria Razão é masculina, ver Lloyd (1984).
|| 80

masculina” (Jordanova, 1980, p.45). Anatomicamente, os ma-


chos eram retratados como representando agentes ativos e as
fêmeas como objetos passivos da ação masculina. Do seu estu-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

do, Jordanova concluiu que a ciência biomédica intensificara a


associação cultural da natureza com passivo, feminilidade obje-
tificada, e de cultura com ativo, objetificando a masculinidade.
Esta impressionante e genderizada imagética da natureza e da
investigação científica não é apenas uma relíquia histórica, pois
estas dicotomias e metáforas podem ser encontradas em textos
contemporâneos sobre ciência. Como Harding questiona, será
de admirar que as mulheres não sejam uma audiência entusiasta
destas interpretações?
Ao invés de apontar para as consequências negativas da iden-
tificação da mulher com o reino natural, algumas feministas ce-
lebram a identificação da mulher com a natureza. Tal encontra
expressão política no ecofeminismo dos anos oitenta que sugere
que as mulheres devem e irão libertar a terra pois estão mais em
sintonia com a natureza. Para elas, o envolvimento das mulheres
na ecologia e movimentos pela paz era prova deste laço espe-
cial. Como o diz Susan Griffin: “aqueles de entre nós que nascem
fêmeas são menos frequentemente alienados da natureza do
que o são a maior parte dos homens” (1983, p. 1). A capacidade
biológica da mulher para a maternidade foi percecionada como
estando interligada a um sentido inato da sua responsabilidade
para assegurar a continuidade da vida. Tomar conta e instintos
para cuidar são essenciais para o cumprimento desta responsabi-
lidade. Do mesmo modo, a inabilidade dos homens para dar à luz
tornou-os desrespeitosos da vida humana e natural, dai advindo
guerras e desastres ecológicos. A partir desta perspetiva, uma
nova ciência feminista viria a abraçar a intuição feminina e subje-
tividade, acabando com uma exploração impiedosa dos recursos
naturais. Ao rejeitar uma ciência patriarcal, esta visão celebra os
valores femininos como virtudes e subscreve a relação próxima
entre os corpos das mulheres, a cultura das mulheres e a ordem
natural.
Enquanto que o ecofeminismo vê os valores da mulher como
possuindo uma base biológica, outra abordagem à questão da
mulher e da ciência foi informada pela psicanálise. A “teoria da
relação de objectos” (ramo da teoria psicanalítica) foi particu-
larmente influente nas conceptualizações feministas sobre a ci-
ência. Esta teoria descreve os mecanismos através dos quais as
|| 81
mulheres e homens adultos acabam por modelar-se a si mesmos
e às suas relações com o mundo de diversas maneiras. Para ad-
quirir a sua identidade masculina o rapaz tem de rejeitar e negar

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


as suas dependências anteriores, ligação e identificação com a
mãe. Os conflitos sobre a masculinidade daqui resultantes no
homem criam uma psicologia de dominação masculina.
Usando esta teoria, Keller argumenta que raparigas e rapa-
zes tem diferentes competências cognitivas. Conforme o rapaz
se distingue da mãe, também aprende a diferenciar nitidamente
sujeito de objeto, a si próprio dos outros. De acordo com Kel-
ler, como os cientistas são homens, esta mentalidade masculina,
obcecada com o desprendimento e a mestria, inscreveu-se nas
normas e métodos da ciência moderna. Um método científico ra-
dicalmente diferente é descrito por Keller (1983) na sua influente
biografia de Barbara McClintock. Uma geneticista vencedora do
prémioNobel, McClintock é descrita como uma cientista que fun-
diu sujeito e objeto no seu “sentir do organismo” e cujo trabalho
era imbuído de um entendimento holístico, com grande reverên-
cia, da natureza. Para Keller, o trabalho desta mulher providen-
cia-nos um “vislumbre do que uma ciência livre do género pode-
ria ser” ao combinar características masculinas e femininas. Em
vez de celebrar uma ciência centrada na mulher como o fazem as
ecofeministas, este projeto insiste na possibilidade de uma ciên-
cia de género neutro produzida por indivíduos andróginos.4
Rejeitando enfaticamente a possibilidade de uma ciência
objetiva e neutra, outras escritoras feministas partilharam a pre-
ocupação com a exclusão da ciência de valores centrados na mu-
lher. Contudo, atribuem tais valores não à psique do indivíduo
em si, mas a uma divisão de género no trabalho, construída so-
cialmente e historicamente. Elas remontam o caminho através
do qual, conforme as esferas da vida pública e privada se torna-
ram crescentemente separadas no decurso do século dezoito,
as mulheres se viram confinadas à esfera privada do coração e
da casa. Competências como o raciocínio e a objetividade foram
associadas à vida pública, ao mesmo tempo que sentimento e
subjetividade foram associadas à vida privada. Estas dicotomias
tornaram-se historicamente associadas com o desenvolvimento
de distintas visões do mundo, femininas e masculinas.
||

4 Para uma excelente discussão sobre o trabalho de Keller, ver Dugdale (1988).
|| 82

Num artigo bem conhecido, Rose (1983) posiciona-se ela pró-


pria na tradição da ciência radical e subscreve a caracterização
Marxista da ciência burguesa como uma forma de conhecimento
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

alienado e abstrato. É a divisão entre trabalho mental (intelec-


tual) e manual, inerente à produção capitalista, que gera esta
forma de conhecimento. Rose, contudo, encontra um problema
nesta tradição que é o de não questionar o impacto da divisão de
trabalho pelo género na ciência. O foco da crítica radical da ciên-
cia, desde as relações de produção até à exclusão da reprodução,
nega a experiência da mulher, o que por sua vez empobrece glo-
balmente a ciência. À ciência foi negado o input da experiência
da mulher no cuidar, trabalho emocionalmente exigente, e que
lhe foi exclusivamente atribuído. Segundo Rose, uma ciência fe-
minista precisaria de contemplar este domínio emocional e assim
fundir modos subjetivos e objetivos de conhecer o mundo. Seria,
portanto, um conhecimento mais completo e verdadeiro pois se-
ria um conhecimento baseado numa “experiência feminina par-
tilhada de opressão”. Rose concluí que a reunificação de “mão,
cérebro e coração” fomentariam uma nova forma de ciência,
permitindo à humanidade viver em harmonia com a natureza.

Uma Ciência Baseada em Valores da Mulher?


Estes debates sobre ciência espelham as preocupações mais
gerais em que se envolveram as feministas durante as últimas
duas décadas. As primeiras manifestações da segunda vaga do
feminismo eram de molde mais liberal, reclamando mais acesso
para a mulher às existentes estruturas do poder, como a ciência.
Em princípio a igualdade podia ser alcançada pela destruição dos
estereótipos de género: por exemplo, podia providenciar-se às
raparigas melhor treino e modelos de referência mais variados;
e podiam ser criados programas de igualdade de oportunidade
bem como legislação antidiscriminação. Tais escritos feministas
focaram-se em estereótipos de género e nas expectativas habi-
tuais, negando a existência de quaisquer diferenças de sexo fun-
damentais entre mulheres e homens. Esta primeira abordagem
do feminismo liberal baseava-se numa visão empírica da ciência
como sendo neutra (livre de género). Sexismo e androcentrismo
eram assim concebidos como preconceitos sociais passiveis de
correção através de uma firme adesão às normas da investigação
|| 83
científica. Diria que as limitações desta abordagem foram torna-
das visíveis pela sociologia do conhecimento científico e pela crí-
tica profunda do empirismo que ocorreu nas últimas décadas.

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


Contudo, pelos finais dos anos setenta, uma nova forma de
feminismo radical ou feminismo cultural, como é conhecido na
América do Norte, tinha emergido exaltando a feminilidade em
si mesma. Estas escritoras enfatizavam a diferença de géneros e
celebravam o que encaravam como especificamente feminino,
tal como o maior sentido de humanismo da mulher, o pacifismo,
o carinho e o desenvolvimento espiritual. Algumas destas auto-
ras abandonaram a ideia de que o que era considerado “espe-
cificamente feminino” era socialmente produzido e noções de
diferenças inextricáveis floresceram.
Este retorno à ênfase nas diferenças de género naturais ou
psicológicas constitui um traço comum entre várias visões femi-
nistas da ciência. Promovem os valores da mulher como um as-
peto essencial da experiência humana e buscam uma nova visão
da ciência que incorpore estes valores. No entanto, nesta junção,
considero apropriado apontar alguns problemas fundamentais
com esta afirmação geral da ciência como baseada em valores
femininos.
O essencialismo ou a afirmação das naturezas femininas e
masculinas fixas, unificadas e opostas entre si, foi sujeito a uma
variedade de críticas extensas.5 A primeira coisa que deve ser dita
é que os valores que são inscritos nas mulheres tem origem na
subordinação histórica da mulher. A crença na natureza imutável
da mulher, a sua associação com a procriação, o acarinhar, calor
e criatividade, está no próprio coração (seio) das conceções tra-
dicionais e opressivas de feminilidade. “As mulheres valorizam o
acarinhar, o calor e a segurança ou, no mínimo, acreditamos que
devemos fazê-lo, precisamente, não em virtude de mas devido
aos significados, cultura e relações sociais de um mundo onde os
homens são mais poderosos do que as mulheres” (Segal, 1987,
p. 34). É importante ver como as mulheres vieram a valorizar o
acarinhar e como acarinhar, associado à maternidade, se tornou
culturalmente definido como feminino dentro de uma cultura
dominada masculinamente. Ao contrário de afirmar alguma
||

5 Para duas críticas socialistas feministas úteis sobre os elementos universalista e es-
sencialista em algumas versões da teoria radical feminista, ver Eisenstein (1984) e Segal
(1987).
|| 84

essência intrínseca de feminilidade como uma categoria ahistóri-


ca, precisamos de reconhecer as vias pelas quais quer “masculini-
dade” quer “feminilidade” são socialmente construídas e estão,
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

de facto, em constante reconstrução.


Em segundo lugar, a conceção de “natureza” é ela mesmo
uma construção cultural. As conceções do “natural” mudaram
radicalmente ao longo da história humana. Como antropologis-
tas como Marilyn Strathern e outras apontaram, “nenhum signi-
ficado por si mesmo pode ser atribuído à natureza ou cultura no
pensamento ocidental; não existe uma dicotomia consistente,
apenas uma matriz de contrastes” (Strathern, 1980, p. 177). Estas
antropologistas feministas questionaram a afirmação de que em
todas as sociedades a masculinidade é associada com cultura e
a feminilidade com natureza. Para além disso, argumentam que
não existe um comportamento ou significado que seja universal-
mente e culturalmente associado com masculinidade ou femini-
lidade. O que é considerado masculino em algumas sociedades
pode ser considerado feminino ou de género neutro em outros e
vice-versa. De facto, sugerem que mesmo onde a dicotomia na-
tureza/cultura existe, não podemos assumir que os termos “na-
tureza” e “cultura” são traduções adequadas ou razoáveis das
categorias que as outras culturas percebem. A investigação his-
tórica levada a cabo por Merchant e Jordanova e acima referida
aponta para a especificidade histórica destas metáforas de gé-
nero. Como diz Harding: “o efeito destes estudos é o de desafiar
a universalidade de determinado padrão dicotomizado de com-
portamentos sociais e significados associados com masculinida-
de ou feminilidade na cultura Ocidental” (Harding, 1986, p. 129).
Se olharmos para outras culturas tais como as dos povos Afri-
canos e Aborígenes, encontramos conceitos de natureza bastan-
te diferentes dos modelos ocidentais dominantes. As suas visões
do mundo pressupõem uma relação muito mais harmoniosa en-
tre a humanidade e o universo vivo da natureza, que encontra
notável paralelo com o que se diz ser uma perspetiva do mundo
distintivamente feminina. Da mesma forma, o que as visões do
mundo Africana e Aborígene designam como Europeu é similar
ao que as feministas designam como masculina. Mesmo entre as
tradições da filosofia ocidental existem escolas de pensamento
que reivindicam estes valores para si. Karl Mannheim (1953) des-
creve o convervadorismo romântico como um estilo antiatomísti-
co do pensamento que advoga o holismo, a unidade orgânica e o
|| 85
qualitativo ao invés do quantitativo como estilo de pensamento
preferido. Mais uma vez é difícil reivindicar que uma abordagem
holística em harmonia com a natureza é específica do género.

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


Estes argumentos levantam sérias dúvidas sobre os projetos
para uma ciência feminista, acima apresentada. Uma vez reco-
nhecido que “masculinidade” e “feminilidade”, tal como a ideia
de “natureza” são categorias culturais em mudança, deixa de
fazer sentido basear uma ciência numa base intuitiva feminina
enraizada na natureza. Autores como Keller, Rose e Hartsock
também apelam a uma ciência que incorpore os valores das mu-
lheres, apesar de expressamente se dissociarem deste essen-
cialismo radical feminista. Harding agrupa estas autoras sob a
designação de “ponto de vista epistemológico feminista”. Esta
proposta argumenta que “a posição dominante masculina na
vida social resulta em compreensão parcial e perversa, pelo que a
posição subjugada da mulher providencia a possibilidade de uma
compreensão mais completa e menos perversa” (Harding, 1986,
p. 26). Estas críticas feministas sobre ciência estabelecem uma
distintiva ciência feminista nos aspetos universais da experiência
da mulher. Não obstante, todas pairam na borda do biologismo.
Tal como as feministas radicais, confirmam versões de uma ciên-
cia baseada na subjetividade, na intuição, no holismo e na har-
monia. Enquanto que Rose e Hartsock, em particular, baseiam
as suas análises materialistas na divisão de trabalho por género,
falham ao não levar em conta de forma persistente que a “natu-
reza” não é uma categoria fixa e que a divisão do trabalho não
é algo imutável. Portanto, a subjetividade feminina, o acarinhar,
o holismo e harmonia ao qual apelam não podem ser aspetos
universais da experiência da mulher. A sua identificação entre as
tarefas de cuidar femininas e os novos valores a ser incorporados
na ciência não pode ser concebida como fixa ou de qualquer ou-
tra forma gerada “naturalmente”.
Uma tentativa de ultrapassar estas limitações de “abordagem
de ponto de vista” é a crítica da ciência feminista a partir do pon-
to de vista do pós-modernismo feminista ou deconstrucionismo.
Harding avisou-nos corretamente que as qualidades femininas
celebradas pelas feministas não refletem de forma precisa a ex-
periência social de todas as mulheres, visto que a sua experiência
é dividida por classe, raça e cultura. Se se quer criar uma nova
ciência feminista a partir do ponto de vista das experiências das
mulheres, deveria então existir uma ciência feminista baseada na
|| 86

experiência de “mulheres Negras, mulheres Asiáticas, mulheres


Nativo-Americanas, mulheres da classe trabalhadora, mulheres
lésbicas?” Tomando a sugestão do pós-modernismo, Harding
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

argumenta que o problema com os pontos de vista epistemoló-


gicos feministas é o de que estes assumem que existe uma única
posição privilegiada a partir da qual a ciência pode ser avaliada.
Não existe uma “mulher” para cuja experiência social as aborda-
gens feminista, empirista e de ponto de vista possam contribuir;
existem pelo contrário as “identitades fraturadas da mulher”.
Esta abordagem é útil no sentido em que leva em consideração
as diferenças entre os indivíduos e no seio dos próprios indiví-
duos, assim como destaca a tensão entre uma conceptualização
unitária e outra fragmentada, da voz do feminismo.
Contudo, o facto de existirem diferenças de classe, raça e de
cultura entre mulheres e homens não quer dizer que as diferen-
ças de género sejam “teoricamente não importantes ou politi-
camente irrelevantes” (Harding, 1986, p.18). Em virtualmente
todas as culturas, a diferença de género é fundamental para a
organização social e para a própria identidade pessoal. Em quase
todo o lado, as qualidades associadas a masculinidade são mais
conceituadas do que as associadas a feminilidade. As mulheres
tem em comum o facto de terem sido marginalizadas por todas
as maiores instituições da nossa sociedade e especificamente das
instituições científicas. Este reconhecimento da universalidade
da subordinação da mulher não é incompatível com um reconhe-
cimento das formas específicas e variáveis desta subordinação.
Grupos diferentes de mulheres tem necessidades e interesses
diferentes.
Partilho do ponto de vista de McNeil de que a racionalidade e
a intuição devem ser vistos como produtos sociais historicamen-
te específicos e de que devemos envolver-nos em práticas sociais
para os redefinir. O seu ensaio expressa bem o dilema ilegítimo
com que se defrontam aquelas feministas que se sentem força-
das a escolher entre a racionalidade científica e a intuição femini-
na.6 Para além disso, é importante frisar que a base para o poder
do homem não é simplesmente o produto das ideias que temos e
da linguagem que utilizamos mas sim de todas as práticas sociais
que conferem ao homem autoridade sobre a mulher. As ideias
||

6 Para um relato sobre a forma como se jogou com o par “empirismo-indutivismo” /


“construção da teoria intuitivo-especulativa”, desde o século dezassete, ver Schuster e
Yeo (1986).
|| 87
são mediações das relações sociais e para as transformar pre-
cisamos de transformar o caráter fundamental das instituições
científicas na sociedade contemporânea e as formas de poder

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


político que a ciência confere a grupos sociais específicos.
Pode até ser que a procura pela epistemologia feminista mais
apropriada, por mais filosoficamente sofisticada que possa ser
(como de facto é a de Harding), esteja mal direcionada. O tra-
balho feminista sobre ciência com uma orientação de pendor
filosófico sofre do problema de lidar com ideias divorciadas das
práticas sociais. De facto, como amplamente demonstrado por
estas autoras, declarações do ‘Método Científico’ contém visões
tipicamente masculinas do que existe para saber e sobre como o
mundo realmente é. A prática científica não é de modo algum de-
terminada por declarações de método. Mas aquelas declarações
são pronunciamentos políticos ou legitimações, mais do que des-
crições do que os cientistas realmente fazem. Elas servem para
dizer algo sobre o lugar da ciência na sociedade, ou para apoiar
uma especialidade científica ou disciplina em detrimento dos
seus competidores (Richards and Schuster, 1989).7
É a esta luz que deveríamos ver tentativas para enunciar um
método científico especificamente feminista. Estas são politica-
mente úteis no sentido em que viram o foco feminista para o
conteúdo do conhecimento científico em vez de simplesmente
destacar as questões de recrutamento para a ciência. Precisamos
de ser cautelosos ao presumir que a adoção de um método cien-
tífico ‘feminista’ conduziria a diferenças na prática científica, sem
uma muito vasta e compreensiva mudança nas relações de poder
dentro da ciência. O perigo está em que o que pode parecer ciên-
cia feminista poder simplesmente contar para a mesma prática
científica sob outro nome.

Da Ciência à Tecnologia
Durante a última década, tem existido um interesse crescente
na relação entre a ciência e a sociedade, mas tem existido uma
preocupação ainda maior com a relação entre tecnologia e mu-
dança social. O debate tem sido travado sobre se o “ferro em
||

7 Para uma comparação inteligente das biografias de McClintock e Franklin e as suas


respectivas metodologias, ver Richards e Schuster (1989).
brasa” 8 da tecnologia está a transformar radicalmente a socie-
|| 88

dade e a entregar-nos numa idade pós-industrial. Uma preocu-


pação central das feministas tem sido o impacto da nova tecno-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

logia nas vidas das mulheres e particularmente no trabalho das


mulheres. A introdução dos processadores de texto no contexto
de escritório providenciou o foco para muita investigação inicial.
O reconhecimento de que o trabalho doméstico também era tra-
balho, ainda que mal pago, conduziu a estudos sobre como o uso
crescente de tecnologia doméstica no lar afetou o tempo des-
pendido no trabalho doméstico. A exploração das mulheres do
Terceiro Mundo como uma fonte de mão de obra barata para a
manufatura de componentes de computador foi igualmente es-
crutinada. Mais recentemente tem-se verificado um debate mais
vigoroso sobre desenvolvimentos da tecnologia reprodutiva e as
implicações para o controlo das mulheres sobre a sua fertilidade.
Ao longo destes debates tem existido uma tensão entre a vi-
são de que a tecnologia iria libertar a mulher – da gravidez inde-
sejada, do trabalho doméstico e do trabalho rotineiro remune-
rado – e da visão contrária de que a maioria das tecnologias são
destrutivas e opressivas para a mulher. Por exemplo, nos prin-
cípios dos anos setenta, Shulamith Firestone (1970) elaborou a
visão de que os desenvolvimentos na tecnologia de natalidade
detinham a chave da libertação feminina através da libertação da
mulher do fardo da maternidade biológica. Nos nossos dias há
uma preocupação muito maior com as implicações negativas das
novas tecnologias, ironicamente mais refletidas no forte debate
sobre as novas tecnologias reprodutivas.
Um tema chave aqui é se o problema reside na dominação
masculina da tecnologia ou se a tecnologia em si é, de alguma
forma, inerentemente patriarcal. Se as mulheres estivessem no
controlo, aplicariam elas a tecnologia para fins mais benignos?
Na discussão que se segue sobre género e tecnologia, irei explo-
rar estas e outras questões relacionadas.
Uma dificuldade inicial ao considerar o comentário femi-
nista sobre tecnologia advém do seu fracasso em distinguir
ciência e tecnologia. Os textos feministas sobre ciência fre-
quentemente constroem a ciência como simplesmente uma
||

8 N.T. No original “the white heat of technology”, em alusão ao discurso proferido por
Harold Wilson, em 1963, na conferência do Partido Trabalhista, e habitualmente identifi-
cado como o discurso “the white heat of technology”.
|| 89
forma de conhecimento e este pressuposto foi incorporado em
muita da escrita feminista sobre tecnologia. Contudo, tal como a
ciência inclui práticas e instituições, assim como conhecimento,

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


também o faz a tecnologia. De facto, é ainda mais claro o caso da
tecnologia porque a tecnologia lida principalmente com a criação
de artefactos. Isto aponta para a necessidade de uma aborda-
gem teoricamente diferente à análise de relações de género na
tecnologia, daquela que se desenvolve à volta da ciência.
Talvez esta fusão de tecnologia com ciência não seja surpre-
endente dado que a sociologia do conhecimento científico, du-
rante os últimos dez anos, contestou a ideia de uma distinção
não controversa entre ciência e tecnologia. John Staudenmaier
(1985, pp. 83-120) comenta que apesar de a relação entre ciência
e tecnologia ter sido um tema forte nos estudos de ciência e tec-
nologia, a discussão foi amaldiçoada por uma confusão de defini-
ções entre os dois termos. O único consenso que daí emergiu foi
o de que as fronteiras entre ciência e tecnologia são demarcadas
e que as maneiras como estas estão relacionadas entre si, mu-
dam de um período histórico para outro.
Em anos recentes, contudo, tem-se desenvolvido uma reo-
rientação do pensamento acerca da forma da relação entre ci-
ência e tecnologia. O modelo da relação ciência-tecnologia que
usufruiu de uma aceitação bastante alargada durante um longo
período foi o modelo tradicional hierárquico que trata a tecno-
logia como ciência aplicada. Esta visão de que a ciência desco-
bre e a tecnologia aplica este conhecimento de forma rotineira
e pouco criativa está agora em declínio acentuado. “Uma coisa
que praticamente qualquer estudo moderno sobre inovação tec-
nológica demonstra é que, longe de ser aplicável, e por tal de-
pendente da cultura da ciência natural, os tecnólogos possuem
os seus próprios recursos culturais, o que lhes providencia a base
principal para a sua atividade inovadora” (Barnes and Edge, 1982,
p. 149). Os tecnólogos constroem sobre algo, modificam e esten-
dem a tecnologia existente mas fazem-no através de um proces-
so criativo e imaginativo. Do mesmo modo, parte da cultura que
os tecnólogos recebem, herdada no decurso da resolução dos
seus problemas práticos, é não–verbal; nem pode ser adequada-
mente transmitida pela palavra escrita. Pelo contrário é o indiví-
duo praticante que transfere conhecimento prático e compe-
tências a um outro indivíduo. Em resumo, o modelo corrente
de relação entre ciência e tecnologia caracteriza a ciência e a
|| 90

tecnologia como sub-culturas distinguíveis numa relação simétri-


ca interativa.
Deixando de parte a relação entre tecnologia e ciência, é mui-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

to importante reconhecer que a palavra “tecnologia” tem pelo


menos três camadas de significado. Primeiro, “tecnologia” é uma
forma de conhecimento, como Staudenmaier enfatiza.9 “Coisas”
tecnológicas não tem sentido sem o “know-how” para as usar,
reparar, desenhar e fazer. Esse know-how não pode frequente-
mente ser capturado em palavras. É visual, até mesmo táctil ao
contrário de simplesmente verbal ou matemático. Mas também
pode ser sistematizado e ensinado tal como nas várias disciplinas
de engenharia.
Poucos autores, contudo, estariam contentes com esta defi-
nição de tecnologia como uma forma de conhecimento. “Tecno-
logia” também se refere ao que as pessoas fazem assim como
ao que sabem. Um objeto, tal como um carro ou um aspirador,
é uma tecnologia ao invés de um caroço de matéria, pois forma
parte de um conjunto de atividades humanas. Um computador
sem programas e programadores é simplesmente um conjunto
inútil de bits de metal, plástico e silicone. “Siderurgia”, digamos,
é uma tecnologia: porém isto implica que a tecnologia inclua o
que os siderúrgicos fazem, tal como os fornos que estes usam.
Logo “tecnologia” refere-se às atividades e práticas humanas.
Finalmente, ao nível mais básico, existe a definição “hardware”
de tecnologia que se refere a um conjunto de objetos físicos, por
exemplo, carros, tornos, aspiradores e computadores.
Na prática, as tecnologias com que este livro lida cobre todos
os três aspetos e, frequentemente, não é útil separá-los ainda
mais. O meu objetivo não é o de tentar refinar uma definição.
Vale bem a pena relembrar estas diferentes camadas de signifi-
cado de “tecnologia” no que se segue.
O resto deste capítulo irá rever a literatura teórica sobre género
e tecnologia que em muitos casos reflete os debates sobre ciência
acima delineados. Porém, as perspetivas feministas sobre tecnolo-
gia são mais recentes e muito menos desenvolvidas teoricamente
do que aquelas que foram articuladas em relação à ciência. Uma
indicação clara disto é a preponderância de coleções editadas que
||

9 Staudenmaier (1985, pp. 103-20) destaca quatro características para os conceitos co-
nhecimento-científico tecnológico, dados problemáticos, teoria da engenharia e compe-
tência tecnológica.
foram publicadas nesta área.10 Tal como muitas destas coleções,

|| 91
os artigos não partilham de uma abordagem consistente ou co-
brem o campo de estudo de modo exaustivo. Portanto, irei dese-

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


nhando linhas de argumentação a partir desta literatura em vez
de apresentar as matérias como posições coerentes num debate.

Ocultas da História
Para começar, as feministas apontaram a escassez de estu-
dos sobre o tema mulher e tecnologia, especialmente dada a
florescente área de estudos tecnológicos. Até mesmo os mais
percetivos e humanísticos trabalhos sobre a relação entre tec-
nologia, cultura e sociedade raramente mencionam o género.
As contribuições da mulher foram largamente deixadas à parte
da história tecnológica. As contribuições para a Technology and
Culture, a principal revista de história da tecnologia, providencia
um barómetro preciso desta situação. A pesquisa de Joan Roths-
child (1983, pp. xii-xiv) de artigos sobre o tema da mulher nesta
revista identificou apenas quatro artigos em vinte e quatro anos
de publicação. Num livro mais recente sobre esta revista, Stau-
denmaier (ibid., p.180) também nota o preconceito extraordiná-
rio nela presente em relação às figuras masculinas e à total au-
sência de uma perspetiva de mulheres. A história da tecnologia
representa o inventor protótipo como homem. Logo, tal como
na história da ciência, uma tarefa inicial das feministas tem sido
a de destapar e recuperar as mulheres ocultadas da história que
deram o seu contributo para desenvolvimentos tecnológicos.
Existe agora prova de que durante a era industrial as mulhe-
res inventaram ou contribuíram para a invenção de máquinas tão
cruciais como o descaroçador de algodão, a máquina de costura, o
pequeno motor elétrico, a ceifa de McCormick e o tear Jacquard
(Stanley, 1993). Este tipo de conhecimento histórico em muito
depende, frequentemente, de registos de patentes para a recu-
peração das invenções perdidas das mulheres. É de notar que o
crédito de muitas das invenções das mulheres foi atribuído aos
maridos porque realmente o nome delas aparece nas patentes
||

10 Um bom cruzamento deste material pode ser encontrado em Trescott (1979); Roths-
child (1983); Faulkner e Arnold (1985); McNeil (1987); Kramarae (1988). O livro de McNeil
é particularmente útil pois contém uma bibliografia extensa que está organizada tema-
ticamente.
|| 92

feitas em nome dos maridos. Isto é explicado em termos dos limi-


tados direitos de propriedade permitidos à mulher, assim como à
ridícula possibilidade das mulheres serem inventoras nessa altu-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ra (Pursell, 1981; Amram, 1984; Griffiths, 1985). É interessante no-


tar que mesmo a própria identificação de mulheres nos registos
de patentes subestime seriamente as suas contribuições para o
desenvolvimento tecnológico. Num artigo recente sobre o papel
das patentes, Christine MacLeod (1987) observa que antes de
1700 as patentes não existiam para registar o nome do inventor
mas sim os dos credores financeiros.11 Dado isto, é ainda menos
surpreendente que tão poucos nomes de mulheres possam ser
encontrados através de registos de patentes.
Exceto para umas poucas mulheres excecionais, a criatividade
por si só não foi suficiente. De maneira a participar na atividade
inventiva da Revolução Industrial, quer capital quer ideias eram
necessários. Foi apenas em 1882 que a Lei de Propriedade das
Mulheres Casadas, Married Women’s Property Act, deu às mulhe-
res inglesas posse legal e controlo sobre qualquer propriedade
pessoal, independentemente dos seus maridos. Dot Griffiths
(1985) argumenta que o efeito desta lei foi o de virtualmente
excluir as mulheres da participação no mundo inventor-empre-
endedor. Ao mesmo tempo era negado às mulheres o acesso à
educação e especificamente à fundamentação teórica em mate-
mática e mecânica sobre a qual muitas das invenções e inovações
deste período se baseavam. Conforme as atividades de negócio
se expandiam e se deslocavam para fora da esfera caseira, as mu-
lheres da classe média foram cada vez mais deixadas entregues a
uma vida de lazer forçada. Muito em breve uma educação “apro-
priada” para raparigas se transformou em “realizações” como
os bordados e a música – realizações dificilmente conducentes à
participação no mundo do inventor-empreendedor. Atualmente,
tem existido interesse considerável nas possíveis contribuições
de Ada Lady Lovelace, Grace Hopper e de outras mulheres para o
desenvolvimento da computação. Histórias recentes da progra-
mação por computador fornecem provas substanciais de que as
mulheres desempenharam aqui um papel central.12
||

11 MacLeod (1987) sugere que apesar de a George Ravenscroft ser dado crédito no re-
gisto de patentes por ser o “heróico” inventor do cristal de chumbo de vidro, ele apenas
foi o comprador ou patrocinador da invenção de outros. Este estudo alerta-nos para o
perigo de assumirmos que os registos de patentes representaram sempre a mesma coisa.
12 Para uma biografia de Lady Lovelace, que levanta a questão dela ter sido uma gran-
de contribuidora para a programação de computadores, ver Stein (1985). Contudo, quer
|| 93
Contudo, para compreender totalmente a contribuição das
mulheres para o desenvolvimento tecnológico, uma abordagem
mais radical pode ser necessária. Para começar, a tradicional con-

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


ceção da tecnologia define com demasiada pressa tecnologia em
termos de atividade masculina. Como já mencionei antes, o con-
ceito de tecnologia está ele próprio sujeito à mudança histórica e
diferentes épocas e culturas deram nomes diferentes ao que hoje
conhecemos como tecnologia. Uma maior ênfase nas atividades
da mulher imediatamente sugere que as mulheres, em particu-
lar as mulheres negras, foram as primeiras tecnólogas. Afinal de
contas, as mulheres foram as primeiras recoletoras, processado-
ras e guardiãs de comida vegetal desde os primeiros tempos da
civilização humana e daí em diante. Era portanto lógico que fos-
sem elas a inventar as ferramentas e métodos envolvidos nestas
atividades tais como: o pau de escavar, a funda de carregamento,
a faca e a foice, e os pilões e os vasos de trituração. Nesta linha
de pensamento, Autumn Stanley (1993) ilustra as realizações ini-
ciais da mulher na horticultura e agricultura, tais como a enxada,
o arado, os enxertos, polinização manual e primeiros métodos
de irrigação.
Não fosse o preconceito masculino presente na maior parte
da investigação tecnológica, a significância destas invenções
teria sido reconhecida. Como Ruth Schwartz Cowan nota:

Os indícios das histórias padronizadas da tecnologia... não contêm uma úni-


ca referência, por exemplo, a um artefacto culturalmente tão significante
como o biberão. Aqui está uma simples implementação... a qual transfor-
mou uma experiência humana fundamental para um vasto número de bébés
e mães, convertendo-se numa das mais controversas exportações da tec-
nologia ocidental para os países subdesenvolvidos – contudo, não encontra
lugar nas nossas histórias da tecnologia. (1979, p52)

Ainda há trabalho importante a ser feito. Não apenas o de


identificar mulheres inventoras mas o de descobrir as origens e
vias de desenvolvimento de tecnologias da “esfera da mulher”
que frequentemente parecem ter sido consideradas pouco
dignas de menção.
||

Kraft (1977) quer mais recentemente Giordano (1988) documentaram a larga participação
das mulheres no desenvolvimento da programação de computadores.
|| 94

Uma Tecnologia Baseada em Valores da


Mulher?
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Durante os anos oitenta, as feministas começaram a focar-se


no caráter de género da própria tecnologia. Ao invés de pergun-
tar como as mulheres podem ser mais equitativamente tratadas
dentro e por uma tecnologia neutra, muitas feministas argumen-
tam agora que a tecnologia ocidental incorpora valores patriar-
cais. Isto encontra paralelo na forma como a crítica feminista da
ciência evoluíu de formular a “questão da mulher” na ciência para
a formulação mais radical da “questão da ciência” no feminismo.
A tecnologia, tal como a ciência, é vista como profundamente
implicada no projeto masculino de dominação e controlo da mu-
lher e da natureza.13 Do mesmo modo que muitas feministas ar-
gumentaram por uma ciência baseada em valores das mulheres,
também existiu um apelo por uma tecnologia baseada em valo-
res das mulheres. No prefácio de Joan Rothschild (1983) a uma
coleção de perspetivas feministas sobre tecnologia, esta afirma
que: “A análise feminista procurou mostrar como o subjetivo, o
intuitivo e irracional podem e de facto jogam um papel central
na nossa ciência e tecnologia”. Curiosamente, cita uma impor-
tante figura masculina no campo, Lewis Mumford, que suporta
o seu caso. As ligações que Mumford estabelece entre impulsos
subjetivos, forças geradoras de vida e um princípio feminino, são
consistentes com tais análises feministas já que subscrevem uma
visão mais holística da cultura e dos desenvolvimentos tecnoló-
gicos.
Outros autores masculinos também advogaram uma tecnolo-
gia baseada em valores das mulheres. Mike Cooley é um crítico
bem conhecido do atual design de sistemas tecnológicos e fez
muito pela popularização da idea de tecnologias centradas no
ser humano. Em Architect or Bee? (1980, p. 43) argumenta que
a mudança tecnológica possui “valores masculinos” incorpora-
dos: “os valores do Guerreiro Homem Branco, admirado pela sua
||

13 Tecnologia enquanto dominação da natureza é também um tema central no trabalho


dos críticos teóricos tais como Marcuse, para quem são as relações capitalistas (e não
as relações patriarcais) que estão embebidas na estrutura da tecnologia. “Não apenas a
aplicação da tecnologia mas a própria tecnologia é dominação (da natureza e do homem)
– metódica, científica, calculada, calculando controlo. Usos e interesses específicos de
dominação não são impingidos à tecnologia ‘subsequentemente’ e a partir do exterior;
eles entram na própria construção do apparatus técnico” (Marcuse, 1968, pp. 223-4).
|| 95
força e velocidade em eliminar os fracos, conquistando competi-
dores e dominando vastos exércitos de homens que obedecem
a cada instrução sua... A mudança tecnológica está esfomeada

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


de valores apelidados de femininos tais como intuição, subjeti-
vidade, tenacidade e compaixão”. Cooley vê como imperativo
que cada vez mais mulheres se envolvam em ciência e tecnolo-
gia para desafiar e combater os valores masculinos pré-estabele-
cidos: que paremos de colocar o objetivo acima do subjetivo, o
racional acima do tácito e o digital acima da representação ana-
lógica. Em Culture of Technology, Arnold Pacey (1983) devota um
capítulo inteiro a ‘Women and Wider Values’. Descreve três con-
juntos contrastantes de valores envolvidos na prática da tecnolo-
gia – primeiro, aqueles que sublinham a virtuosidade, em segun-
do, valores económicos e em terceiro, valores orientados para o
utilizador ou para a necessidade. As mulheres exemplificam esta
terceira orientação “responsável”, de acordo com Pacey, visto
que trabalham com a natureza em contraste com o interesse
masculino em construir e conquistar a natureza.
Ironicamente, a abordagem destes autores masculinos é, em
alguns casos, semelhante ao ecofeminismo que se tornou popu-
lar entre feministas nos anos oitenta. Este casamento da ecolo-
gia com o feminismo assenta no “princípio feminino”, a noção
de que as mulheres estão mais próximas da natureza do que os
homens e que as tecnologias que os homens criaram são basea-
das na dominação da natureza, do mesmo modo que procuram
dominar a mulher. As ecofeministas concentraram-se na tecno-
logia militar e nos efeitos ecológicos de outras tecnologias mo-
dernas. De acordo com estas, tais tecnologias são produtos de
uma cultura patriarcal que “fala violência a todos os níveis” (Ro-
thschild, 1983, p. 126). Um slogan inicial do movimento feminista
antimilitarista, “Take the Toys from the Boys” (Retirem os Brin-
quedos aos Rapazes), chamou a atenção para o simbolismo fálico
presente na forma dos mísseis. Contudo, um corolário inevitável
desta posição pareceu ser a representação da mulher como imi-
nentemente carinhosa e pacifista. Os problemas com esta po-
sição foram destacados acima em relação a uma ciência baseada
nestes valores. A resposta envolve examinar a forma pela qual
a divisão tradicional do trabalho entre homens e mulheres ge-
ralmente restringiu as mulheres a um leque de experiência mais
limitado e centrado primariamente no mundo privado do lar e
da família.
|| 96

Não obstante, a força destes argumentos é a de que eles vão


além da conceção usual do problema como sendo a exclusão da
mulher dos processos de inovação e da aquisição de competên-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

cias técnicas. As feministas apontaram a todo o tipo de barreiras


– em atitudes sociais, na educação das raparigas e nas políticas
de emprego das empresas – para dar conta do desiquilíbrio do
número de mulheres em engenharia. Porém, raramente o pro-
blema tem sido identificado como a forma como a engenharia
tem sido concebida e ensinada. Em particular, o fracasso das polí-
ticas liberais de igualdade de oportunidades levou autores como
Cynthia Cockburn (1985) a perguntar se as mulheres resistem ati-
vamente a entrar em tecnologia. Porque será que as iniciativas
de ensino de mulheres, concebidas para quebrar o monopólio
masculino na construção civil, engenharias e tecnologias da in-
formação não foram melhor sucedidas? Apesar de os esquemas
para canalizar mais mulheres para os ofícios técnicos serem de
baixa escala é dificil escapar à conclusão de que a resposta das
mulheres foi experimental hesitante e talvez ambivalente.
Partilho da visão de Cockburn de que esta relutância em “en-
trar” tem a ver com a definição sexualmente estereotipada da
tecnologia como uma atividade apropriada para homens. Tal
como na ciência, a própria linguagem da tecnologia, o seu simbo-
lismo, é masculina. Não é simplesmente uma questão de adquirir
competências pois estas competências estão embebidas numa
cultura de masculinidade que confina largamente com a cultu-
ra da tecnologia. Quer na escola quer no local de trabalho esta
cultura é incompatível com a feminilidade. Portanto, para entrar
neste mundo, para aprender a sua linguagem, as mulheres tem
primeiro que esquecer a sua feminilidade.

Tecnologia e Divisão do Trabalho


Irei agora voltar-me para uma abordagem mais histórica e socio-
lógica da análise de género e tecnologia. Esta abordagem assenta
em algumas fundações teóricas providenciadas por contribuidores
para o debate do processo de trabalho, nos anos setenta. Enquan-
to o movimento radical da ciência tinha procurado expôr o caráter
de classe da ciência, estes autores tentaram extender a análise de
classe à tecnologia. Ao fazê-lo, eles estavam a contra-atacar a teo-
ria do “determinismo tecnológico” que continua tão disseminado.
|| 97
De acordo com este relato, as mudanças na tecnologia são as
causas mais importantes da mudança social. As tecnologias em si
mesmas são neutras e repercutem na sociedade do exterior; os

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


cientistas e os técnicos que produzem novas tecnologias são vis-
tos como seres independentes da sua localização social e acima
de interesses sectaristas. Os analistas dos processos de trabalho
foram especialmente críticos relativamente à versão tecnicista
do Marxismo na qual o desenvolvimento da tecnologia e produti-
vidade é visto como a força motriz da história. Esta interpretação
representava a tecnologia como estando ela mesma para além
da luta de classes.
Com a publicação de Labor and Monopoly Capital (1974) de
Harry Braverman, reavivou-se o interesse na contribuição de
Marx para o estudo da tecnologia, particularmente em relação
ao trabalho. Braverman recuperou a crítica de Marx à tecnologia
e divisão do trabalho, trazendo-a para o centro da sua análise do
processo de desenvolvimento capitalista. O argumento básico
da literatura que se desenvolveu sobre o processo de trabalho
era o de que as relações capitalista-operário são um fator central
que afeta a tecnologia da produção no seio do capitalismo. Casos
de estudo históricos sobre a evolução e introdução de determi-
nadas tecnologias particulares documentavam a forma através
da qual estas eram deliberadamente desenhadas para destruir
e eliminar o trabalho humano.14 Ao invés das invenções técnicas
se desenvolverem inexoravelmente, a maquinaria era utilizada
pelos proprietários e detentores do capital como uma arma im-
portante na batalha pelo controlo da produção. Logo, tal como a
ciência, a tecnologia era entendida como sendo o resultado das
relação sociais capitalistas.
Esta análise providenciou um desafio oportuno à noção de
determinismo tecnológico sendo que, com o seu foco na divisão
capitalista do trabalho, pavimentou o caminho para o desenvol-
vimento de uma análise de género e tecnologia mais sofisticada.
Contudo, a abordagem do processo de trabalho era cega no que
toca ao género pois interpretava as relações sociais da tecnolo-
gia exclusivamente em termos de classe. Ainda assim, tal como
tem sido bem estabelecido pela corrente socialista feminista nes-
te debate, as relações de produção são construídas tanto pelas
||

14 Este ponto é elaborado em Wajcman, 1991, capítulo 2. Ver também a Parte Dois de
MacKenzie e Wajcman (1985) para uma coleção destes casos de estudo.
|| 98

divisões de género quanto pelas divisões de classe. Textos recen-


tes (Cockburn, 1983, 1985; Faulkner e Arnold, 1985; McNeil, 1987)
neste veio histórico veem a exclusão da mulher da tecnologia
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

como uma consequência da divisão do trabalho por género e da


dominação masculina dos ofícios especializados que se desen-
volveram sob o capitalismo. De facto, alguns argumentam que,
antes da revolução industrial, as mulheres tinham mais oportuni-
dades de adquirir competências técnicas e que a tecnologia capi-
talista se tornou mais masculina do que tecnologias anteriores.
Já aqui descrevi como, nas fases iniciais da industrialização,
foi negado o acesso às mulheres à propriedade do capital e à
educação. Mudando o foco da questão, estes autores mostram
que o rígido padrão das divisões de género que se desenvolveu
no seio da classe trabalhadora no contexto das novas indústrias,
veio a estabelecer as fundações para o domínio masculino da
tecnologia. Foi durante este período que a manufatura se des-
locou para as fábricas e que o lar foi separado do trabalho re-
munerado. O advento da maquinaria movida a energia desafiou
fundamentalmente as competências artesanais tradicionais pois
as ferramentas eram literalmente tiradas das mãos dos trabalha-
dores e combinadas com máquinas. Porém, como tinham sido os
homens que, no geral, haviam detido as competências técnicas
no período anterior à Revolução Industrial, estes encontravam-
se numa posição privilegiada para manter o monopólio sobre as
novas competências criadas pela introdução das máquinas.
Os trabalhadores artesanais não conseguiam evitar que os em-
pregadores puxassem as mulheres para as novas esferas da produ-
ção. Então, organizaram-se de forma a manter certos direitos so-
bre a tecnologia resistindo ativamente contra a entrada das mulher
nessas suas profissões. Mulheres que se converteram em operá-
rias viram-se numa posição onde trabalhavam em postos de traba-
lho considerados pouco qualificados e pelo ordenado mais baixo.
“É a denúncia mais condenável da classe trabalhadora masculina e
dos seus sindicatos que excluiram as mulheres de neles participar
e as impediram de adquirir competências que lhes poderiam ter
permitido uma existência decente” (Cockburn, 1985, p. 39). Esta
divisão do trabalho por género dentro da fábrica significava que a
maquinaria era desenhada por homens tendo em mente homens,
quer pelo inventor capitalista quer pelos artesãos qualificados. A
tecnologia industrial nas suas origens reflete, por conseguinte, o
poder masculino assim como a dominação capitalista.
|| 99
A cultura masculina da tecnologia é fundamental para a forma
pela qual a divisão do trabalho por género continua a ser repro-
duzida nos dias de hoje. Ao assegurar o controlo de tecnologias

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


chave, os homens estão a negar às mulheres a experiência prá-
tica da qual a criatividade depende. Assinalei atrás o grau que o
conhecimento técnico envolve de conhecimento tácito e intuiti-
vo e de “aprender fazendo”. Nova tecnologia tipicamente emer-
ge não por relâmpagos de inspiração mas a partir de tecnologia
existente, por um processo de modificação gradual e por novas
combinações da existente tecnologia. A inovação é, até certo
nível, um processo imaginativo mas essa imaginação repousa lar-
gamente em vislumbrar formas pelas quais dispositivos existen-
tes possam ser melhorados e em estender o alcance de técnicas
bem sucedidas numa área a outras áreas. Por esse motivo, dar às
mulheres acesso formal ao conhecimento técnico por si só não
providencia os recursos necessários à invenção. A experiência da
tecnologia existente é um pré-requisito para a invenção de nova
tecnologia.
A natureza das invenções das mulheres, tal como a dos ho-
mens, depende do tempo, lugar e recursos. Segregada no traba-
lho e sobretudo confinada à esfera privada do domínio do lar, a
experiência das mulheres foi severamente restringida e, de igual
modo, a sua capacidade inventiva. Uma ilustração interessante
deste ponto reside no facto de que as mulheres que trabalha-
vam em fábricas de munições na Primeira Guerra Mundial estão
registadas como tendo redesenhado as armas que produziam.15
Portanto, dada a oportunidade de, as mulheres já demonstraram
a sua capacidade inventiva no que agora parece ser o mais impro-
vável dos contextos.

Em falta: A Dimensão de Género na Socio-


logia da Tecnologia
A abordagem histórica constitui um avanço sobre as posições
essencialistas que procuram basear uma nova tecnologia nos
valores inatos das mulheres. A profunda alienação das mulheres
da tecnologia pode ser contabilizada em termos da construção
||

15 Amram (1984) providencia uma seleção de patentes concedidas às mulheres durante


a Primeira Guerra Mundial.
|| 100

histórica e cultural da tecnologia como iminentemente mascu-


lina. Acredito que a exclusão e rejeição da mulher da tecnologia
é explicável pela análise da tecnologia como uma cultura que
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

expressa e consolida relações entre homens. Se a competência


técnica é uma parte integral do género identitário masculino,
porque esperariam as mulheres almejá-la?
Tal registo das relações entre tecnologia e género está contu-
do ainda num nível muito geral.16 Há poucos casos onde as femi-
nistas realmente conseguiram introduzir-se na “caixa negra” da
tecnologia para fazer investigação empírica detalhada, tal como
alguma literatura sociológica mais recente tentou. Durante os úl-
timos anos, uma nova sociologia da tecnologia emergiu e tem
estudado a invenção, o desenvolvimento, a estabilização e difu-
são de artefactos específicos.17 Torna-se evidente a partir desta
investigação que a tecnologia não é simplesmente o produto de
imperativos técnicos racionais. Pelo contrário, no seu próprio de-
sign e seleção estão embebidas escolhas políticas.
As tecnologias resultam de uma série de decisões levadas a
cabo por determinados grupos de pessoas, em determinados
lugares e em determinados momentos, para os seus próprios
interesses. Como tal, as tecnologias trazem impressas em si as
pessoas e o contexto social no qual se desenvolveram. David No-
ble (1984, p. xiii) expressa este ponto de forma sucinta: “Devido
à sua concretude, as pessoas tendem a confrontar a tecnologia
como um facto bruto irredutível, algo dado, uma causa primeira
ao invés de uma história embrutecida, fragmentos congelados
de empreendimentos humanos e sociais’. A mudança tecnoló-
gica é um processo sujeito a lutas pelo controlo por diferentes
grupos. Desta forma, os resultados dependem primeiramente da
distribuição do poder e recursos na sociedade.
Existe agora uma literatura extensa sobre a história da tec-
nologia e da economia da inovação tecnológica. Os historiado-
res e sociólogos do trabalho investigaram com grande deta-
lhe a relação entre mudança social e o moldar dos processos
de produção, tendo-se também preocupado com a influência
da forma tecnológica sobre as relações sociais. A abordagem
||

16 O trabalho de Cockburn (1983, 1985) é uma importante exceção discutida em maior


detalhe em Wajcman, 1991, capítulo 2.
17 Para uma introdução a esta literatura, ver MacKenzie e Wajcamn (1985); Bijker, Hughes
e Pinch (1987).
|| 101
sociológica distanciou-se do estudo do inventor individual e
da noção de que a inovação tecnológica é resultado de alguma
lógica técnica interna. Pelo contrário, procura mostrar os efeitos

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


das relações sociais na tecnologia que podem variar desde o fo-
mentar ou inibir certas tecnologias, influenciar a escolha entre
vias de desenvolvimento tecnológico competidoras, até afetar
as características precisas do design de certos artefactos. A ino-
vação tecnológica requer agora um maior investimento e tornou-
se um processo coletivo e institucionalizado. A evolução de uma
tecnologia depende de um conjunto de fatores técnicos, sociais,
económicos e políticos. Um artefacto pode ser visto como o “re-
sultado congelado de um conjunto de negociações, compromis-
sos, conflitos, controvérsias e negócios que foram conectados
entre oponentes, em salas cheias de fumo, tornos ou terminais
de computador” (Law, 1987, p. 406).
Devido aos grupos sociais terem diferentes interesses e recur-
sos, o processo de desenvolvimento traz à tona conflitos entre
as diferentes visões dos requisitos técnicos do dispositivo. Em
consequência, a estabilidade e forma dos artefactos depende da
capacidade e recursos que os grupos sociais mais relevantes con-
seguem mobilizar no decurso do processo de desenvolvimento.
Assim sendo, na tecnologia da produção, os interesses económi-
cos, sociais e de classe muitas vezes subjazem ao desenvolvimen-
to e adoção de dispositivos. No caso da tecnologia militar, a ope-
ração de interesses burocráticos e organizacionais envolvidos no
processo de decisão serão identificáveis. Uma atenção crescente
está agora a ser dada à extensão com que o patrocínio estatal da
tecnologia militar molda a tecnologia civil.
Até agora, porém, pouca atenção foi dada à forma pela qual
os objetos tecnológicos podem ser moldados pelo operar dos
interesses de género. Esta cegueira para as questões de géne-
ro é também indicativa de um problema geral com a metologia
adotada pela nova sociologia da tecnologia. Usando uma noção
de tecnologia convencional, estes autores estudam os grupos so-
ciais que ativamente procuram influenciar a forma e direção do
design tecnológico. O que ignoram é que a ausência de influên-
cia de determinados grupos pode também ser significante. Para
eles, a ausência da mulher do conflito observável não indica que
os interesses de género estão a ser mobilizados. Para uma teo-
ria social do género, contudo, a quase total exclusão da mulher
da comunidade tecnológica aponta para a necessidade de levar
|| 102

em linha de conta a estrutura subjacente das relações de género.


Preferências por determinadas tecnologias são moldadas por um
conjunto de arranjos sociais que refletem o poder masculino na
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

sociedade em geral. O processo de desenvolvimento tecnológi-


co é socialmente estruturado e culturalmente padronizado por
vários interesses sociais que residem fora do contexto imeadiato
da inovação tecnológica.
Mais do que nunca a mudança tecnológica colide com cada
aspeto das nossas vidas públicas e privadas, desde a comida que
comemos, cultivada artificialmente, às formas de comunicação
cada vez mais sofisticadas que utilizamos. Contudo, em comum
com o debate sobre o processo de trabalho, a sociologia da
tecnologia concentrou-se quase exclusivamente nas relações
de produção remuneradas, focando-se em particular nas fases
iniciais do desenvolvimento de produto. Ao fazê-lo, ignoraram
as esferas da reprodução, do consumo e da produção não paga,
que ocorre no seio do lar. Por contraste, a análise feminista mos-
tra-nos uma direção para além dos portões da fábrica para que
se veja que a tecnologia está também centralmente envolvida
nestas esferas.
Talvez inevitavelmente, o trabalho feminista nesta área, até
ao momento, apenas levantou tantas perguntas quantas aque-
las a que respondeu. Será a tecnologia valorizada por ser asso-
ciada com masculinidade ou será a masculinidade valorizada pela
sua associação com tecnologia? Como podemos evitar a tauto-
logia de que “a tecnologia é masculina porque são os homens
que a fazem”? Porque será o trabalho das mulheres subvaloriza-
do? Existe tal coisa como um conhecimento feminino? Será isso
diferente de “intuição feminina”? Pode a tecnologia ser recons-
truída ao redor dos interesses das mulheres? Estas são as pergun-
tas que a análise abstrata até agora fracassou em responder. O
caráter dos interesses relevantes e dos grupos sociais irá diferir
dependendo do local empírico de cada tecnologia em considera-
ção. Assim sendo, precisamos de olhar com mais detalhe concre-
to e histórico para como, em áreas específicas de trabalho e vida
pessoal, as relações de género influenciaram o empreendimento
tecnológico. Este texto está focado no género apesar de ser fre-
quentemente difícil desensarilhar os efeitos do género dos efei-
tos de classe e raça que estão organizados à volta de áreas subs-
tantivas da tecnologia – a tecnologia da produção, a tecnologia
da reprodução, a tecnologia doméstica e o ambiente edificado.
|| 103
Uma abordagem de género à tecnologia não pode ser reduzida à
visão que trata a tecnologia como um conjunto de artefactos neu-
tros manipulados por homens para os seus próprios interesses.

Crítica Feminista da Ciência e Tecnologia


Embora sejam os homens quem domina as instituições científicas
e técnicas é perfeitamente plausível que chegue um tempo em
que as mulheres estejam mais fortemente representadas nestas
instituições sem por tal transformar o curso do desenvolvimento
tecnológico. Para citar apenas um exemplo, as mulheres estão a
ser recrutadas em número crescente para o programa americano
de defesa espacial porém, não escutamos as suas vozes a pro-
testar sobre as suas preocupações. Não obstante, as relações de
género são parte constituinte da organização social destas insti-
tuições e dos seus projetos. É impossível divorciar as relações de
género, que estão expressas e moldam as tecnologias, das estru-
turas sociais que as criam e sustém. Ao desenvolver uma teoria
do caráter genderizado da tecnologia, corremos inevitavelmen-
te o risco de ou adotar uma posição essencialista que observa a
tecnologia como inerentemente patriarcal, ou perder de vista a
estrutura das relações de género através de um ênfase exagera-
da da variabilidade histórica das categorias “mulher” e “tecnolo-
gia”. No que se segue irei tentar cartografar outro curso de ação.

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Cap. 5

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


A Escola de Frankfurt: A Ciência
e a Tecnologia Como Ideologia

Stanley Aronowitz
Graduate Center of the City University of New York

Apesar do fosso político que separou os socialistas após a Revo-


lução Bolchevique, a principal tendência dentro do Marxismo res-
peitante à ciência e à tecnologia foi fortemente influenciada pela
posição de Engels conforme expressa por Plekhanov e Lenine. Mes-
mo os antileninistas como Kautsky aderiram a uma visão da ciência
e da tecnologia relativamente desprovida de sentido crítico, crítica
apenas dos usos que lhe eram dados pelo capital. No entanto, a
preponderância dos teóricos marxistas saudou a “era da ciência”
com um silêncio virtual, o que significou que aceitaram a “revolu-
ção” científica e tecnológica como um aspeto progressivo da indus-
trialização. A ciência e a tecnologia tornaram-se parte dos “dados
adquiridos” do mundo social, não exigindo qualquer análise apro-
fundada. Para a maior parte dos intelectuais marxistas do século XX,
o Marxismo era idêntico ao materialismo histórico; a dialética da
natureza proveniente de Engels e de Marx, numa fase mais tardia,
ou foi saudada com embaraço ou explicitamente negada.1
||

1 Para um ataque direto ao cientismo de Engel, ver Hook (1993, pp. 25-34). Hook centra-se
|| 108

Na perspetiva do materialismo histórico, a ciência e o méto-


do científico tornaram-se um ideal cultural que merecia a pena
estimular. Esta veneração da ciência natural e dos métodos estri-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

tamente empíricos de investigação social, como é evidente, foi


sempre mediada por uma “dialética” que, pelo menos em prin-
cípio, era fortemente antipositivista. Porém a injunção de Marx
de que as propostas do materialismo histórico podiam ser veri-
ficadas através de métodos estritamente empíricos foi levada a
sério pela maior parte dos seus seguidores, como foi a máxima
de que o Marxismo significava o fim da metafísica, da filosofia
especulativa, e, nalguns quadrantes, da própria filosofia (Marx e
Engels, 1964, p. 31).
Todavia, à medida que o século XX foi avançando, tornou-se
cada vez mais difícil a alguns teóricos ignorar a enorme sombra
que a ciência e a tecnologia projetaram sobre todo o discurso;
para lá da prática industrial, começava a tornar-se claro que a
cosmovisão científica/tecnológica se transformara numa ideolo-
gia distintiva e penetrara a cultura até às suas fundações. A ideia
de que a ciência era um aspeto da vida social que poderia ser
colocado ao lado de outros foi questionada por diversos moti-
vos: o desenvolvimento das tecnologias da informação e da co-
municação (o telefone, a rádio e, posteriormente, a televisão)
levantou de forma urgente a questão da massificação da cultura
e, concomitantemente, do declínio da cultura da classe operária
e de outras formas populares autónomas. Com base nisto, uma
tendência significativa na teoria marxista, associada à Escola de
Frankfurt, desafiou a possibilidade de se manter uma oposição
política intelectual que pudesse imaginar uma alternativa às tec-
nologias em crescimento.
Como é evidente, a Escola de Frankfurt, ao escrever sobre a
cultura de massas a partir de uma perspetiva de esquerda, não
foi de modo algum a única fonte de onde a crítica emanou. José
Ortega y Gasset condenou a sociedade de massas a partir de uma
perspetiva profundamente conservadora. Para Ortega, não havia
dúvida de que a cultura emanava das “massas”. Pelo contrário,
sustentou que a democracia de massas era a inimiga da cultu-
ra (Ortega y Gasset, 1956). Tais emanações ecoaram na Teoria
||

nas interpretações que a Segunda Internacional faz do Marxismo enquanto ciência que
pode ser separada da sua intenção revolucionária. Ao mesmo tempo, Hook celebra o «ex-
perimentalismo» e o «empirismo» de Marx. Ver especialmente o capítulo 9. Ver também
Lefebvre (1968, pp. 141-44).
|| 109
Crítica da Escola de Frankfurt, cujos ataques contra a sociedade
tecnológica emergente não raras vezes se fizeram acompanhar
de uma apaixonada defesa da arte da alta burguesia e pareciam

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


confirmar o que os críticos culturais conservadores sempre
souberam – que a procura da igualdade teve consequências não
intencionais no declínio do gosto e da sensibilidade civilizada.
No entanto, só no período após a 2ª Guerra Mundial é que uma
consideração alargada da ciência e da tecnologia se torna impor-
tante no debate marxista. Talvez a essência do novo interesse
pelo que constitui uma ciência entre os intelectuais marxistas no
ocidente tenha resultado da conjuntura do milagre económico
capitalista ocidental nas décadas de 1950 e 1960, que pareceu
adiar a revolução nas sociedades capitalistas avançadas e a cri-
se económica, política e ideológica das sociedades soviética e da
Europa de Leste após a morte de Estaline, em 1953. O forte con-
traste entre a relativa prosperidade e a estabilidade política, em
grande parte do ocidente, e as convulsões no mundo socialista
existente invalidava um materialismo histórico que havia previs-
to uma ascensão pós-guerra naqueles países que tinham sido
vitimizados pelo fascismo e traídos pelos liberais. Em vez disso,
com a notável exceção de países como a Grécia, a Jugoslávia e
a Albânia, cujos movimentos de libertação antifascistas eram
liderados por comunistas, os países preponderantes da Europa,
especialmente no ocidente, aderiram aos acordos estabelecidos
por Roosevelt e Estaline em Teerão e Ialta, que dividiram a Eu-
ropa em esferas de influência. Para a esquerda, até meados da
década de 1960, a era do pós-guerra foi caracterizada pela der-
rota e pela marginalização, sendo as exceções os socialistas na
Escandinávia.
Estas inversões políticas e económicas despoletaram uma
crise no Marxismo, especialmente na França e na Itália, onde a
participação comunista e da esquerda socialista na resistência
produzira um poderoso desafio de esquerda à legitimidade dos
governos do pós-guerra da direita e do centro. Embora fosse
excessivo estabelecer uma relação direta entre o clima político e o
retorno a uma espécie de “normalidade”, o descontentamento
de duas gerações de intelectuais marxistas em relação a estes
acordos potenciou um jorro de ruminações filosóficas e literárias
sem precedentes em torno do estatuto do Marxismo enquan-
to ciência e de toda a questão da ação histórica. O período do
pós-guerra foi marcado por aquilo que Marcuse designou como
|| 110

a “integração” da classe operária, da sua organização sindical e


dos partidos trabalhistas e socialistas numa nova relação corpo-
rativa com o capital (Marcuse, 1964). O facto de as greves, as elei-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ções duramente contestadas e a manutenção do etos anticapi-


talista na esquerda acompanharem este novo ambiente político
não diminui o valor desta caracterização. Retrospetivamente, o
período de sublevação na esquerda (1965-72), embora a alguns
níveis constitua um sério repúdio pela passividade da esquerda
em todo o período do pós-guerra, deve ser encarado como um
episódio longo numa crise geral da esquerda e da teoria e prática
marxistas.
Quando o período é encarado desta forma, não é surpresa
que aqueles que reagiram facultando um discurso sobre a ciên-
cia e a tecnologia tenham abordado estas questões com a inten-
ção de contribuírem para a renovação do Marxismo a partir de
uma posição à esquerda da ortodoxia estalinista. Escusado será
dizer que o espectro de áreas abrangidas em todo o debate – a
crítica do estatuto da classe operária enquanto agente históri-
co, questões da teoria económica, a história do socialismo e do
movimento trabalhista e as contradições culturais do capitalis-
mo – se estende para lá do discurso em torno da ciência. Porém,
a relevância deste debate específico tem a ver com o facto de
ele abordar o nível meta-teórico – a questão se o Marxismo é ci-
ência ou “ideologia”. É que o processo de questionamento da
a natureza da ciência como forma de conhecimento, bem com
aquilo que a distingue da não ciência, as reivindicações de que
o materialismo dialético e histórico constituem as ciências mais
gerais da natureza e da sociedade transformam-se na problemá-
tica subjacente da filosofia marxista. Mesmo quando o objeto de
investigação é a função social ou as distinções puramente “me-
todológicas” entre ciência e não ciência, a questão implícita deve
ser o próprio Marxismo. Como viremos a constatar, a maior par-
te dos autores envolvidos neste debate meta-filosófico entende
que assim acontece.
Um dos problemas mais importantes para uma teoria crítica
(crítica no sentido geral) é a proveniência dessa crítica. Contras-
tando com quase todas as versões da ortodoxia marxista, os Mar-
xismos do pós-guerra sentiram-se obrigados a retirar elementos
das suas respetivas estruturas axiomáticas de outras tradições,
apesar de estas terem sido condenadas pelos principais teóricos
das Segunda e Terceira Internacionais. Muitos destes enxertos
|| 111
estavam em consonância com as tradições culturais intelectuais
nacionais. Desde a recuperação, no pós-guerra, dos Cadernos do
Cárcere, de Gramsci, por parte do líder comunista italiano Palmie-

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


ro Togliatti, o Marxismo italiano ficou marcado por um discurso
sobre a ideologia e a hegemonia política, mas estas categorias fo-
ram mediadas pela leitura peculiarmente croceana de Hegel que
dominou a filosofia italiana na viragem do século XX. Em França,
o partido comunista e as suas bases teóricas e culturais mantive-
ram-se sólidas ao lado da apropriação estalinista de Hegel, atra-
vés da obra de Engels e de Lenine. Embora Gramsci não pudesse
ser deitado por terra, os marxistas do pós-guerra preocupados
em reagir à ruína da ordem moral dos seus respetivos comunis-
mos nacionais, especialmente depois de 1956, não se puderam
separar facilmente do partido comunista porque este ainda go-
zava de um apoio considerável da classe operária e reivindicava
com sucesso a herança radical das revoluções democráticas nos
seus respetivos países. Consequentemente, o debate em torno
da ciência assume o caráter do debate entre Kant e Hegel, que
se torna num código para a luta entre liberdade e determinismo.
Em todo o lado, exceto na Europa de Leste, Kant e as práticas
da ciência natural significam a libertação do Marxismo do domí-
nio da predestinação hegeliana “histórico-mundial”, que coinci-
dentemente culmina na preponderância da União Soviética e da
sua ideologia sobre todos os Marxismos possíveis. A afirmação
da ciência, e do Marxismo como ciência, transforma-se numa
declaração de guerra intelectual antiestalinista. Se o Marxismo
consegue articular os seus próprios princípios meta-teóricos com
a cosmovisão da física teórica moderna, e, para alguns, a psicaná-
lise freudiana, consegue reconquistar o seu lugar como a ciência
das relações sociais.2
Para Sartre – que poderá ser, nesta repetição das tendências
dominantes do Marxismo do pós-guerra, uma espécie de anti-
cristo porque conserva um profundo respeito pelo kantianismo
especulativo da fenomenologia alemã –, isto significa, todavia, a
necessidade de uma psicologia não freudiana. Outros, contudo,
identificam o Sartre não comunista com o Estalinismo, ou, para
ser mais preciso, com a racionalidade especulativa que reduziu
||

2 Em França, sob a influência de Bachelard, a cientificidade marxista assume não uma


forma positivista, mas um caráter distintamente metafísico. É Bachelard, em sintonia com
Koyre, que insiste que a ciência tem pressupostos metafísicos, cuja verdade pode ser ve-
rificada através de experiência, mas não prescindida.
|| 112

o Marxismo a uma ideologia. Louis Althusser, Etienne Balibar e


Jacques Rancière, em França, e Galvano Della Volpe, Lucio Col-
letti e Sebastian Timpanaro, em Itália, tornam-se a manifestação
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

no seio do Marxismo da tendência em toda a filosofia ocidental


para “regressar a Kant” e, ao fazê-lo, pôr fim à cisão entre ciência
empírica e filosofia que foi criada por Hegel.
Neste contexto, não seria surpreendente se estes marxistas
tivessem regressado a Lenine e Engels, não obstante as suas
imensas reservas a respeito da maior parte das dialéticas reivin-
dicadas por teóricos anteriores. Em vez disso, sentem-se atraídos
pela vontade da cientificidade3 de Engel, pela sua insistência num
discurso marxista sobre ciência e tecnologia que havia sido igno-
rado pelo Marxismo ortodoxo durante o período entre guerras,
quando a ciência e a tecnologia haviam sido discutidas apenas
em termos das suas aplicações económicas práticas, especifica-
mente o seu papel-chave nos processos de construção socialista
ou ruína capitalista. Porém o debate teórico parece ter termina-
do com a morte de Lenine, ou, mais precisamente, com a conso-
lidação de Estaline, da sua hegemonia sobre o movimento comu-
nista, que, em meados da década de 1930, se tinha tornado, para
todos os efeitos, o Marxismo oficial. Desde inícios da década de
1930 até finais da década de 1950, o Marxismo parecia um univer-
so inacessível, hermeticamente fechado por um epígono que, na
herança, excluía tanto como incluía.
O estruturalismo marxista é constituído como um diálogo
com o “humanismo”, a doutrina segundo a qual o “homem” se
encontra no pináculo da evolução e tem poderes e prerrogativas
superiores não só aos das esferas animal e vegetal, mas também
aos de formas “inferiores” da espécie humana, nomeadamente
aquelas civilizações que não tinham entrado na órbita ideológica
e tecnológica ocidental. Não foi difícil à antropologia estrutura-
lista desconstruir o humanismo e demonstrá-lo como servo do
colonialismo, particularmente na altura da intervenção france-
sa no Vietname na década de 1950 e na mais politicamente ex-
plosiva guerra da Argélia. Assim, o estruturalismo apresenta-se
||

3 Esta vontade constitui uma categoria central do meu discurso, pelo que pretendo dis-
cuti-la um pouco mais aprofundadamente. O Marxismo de Engels partilha com outros
paradigmas a reivindicação de ser verdade, independente da sua historicidade. Assim,
apesar de a teoria da relatividade ter deslocado grande parte da cosmovisão newtoniana,
esta retém o seu caráter de ciência em virtude da forma como as suas teorias são enqua-
dradas, uma forma que permite às suas «premissas» serem «verificadas de uma forma
puramente empírica». (The German Ideology)
|| 113
como uma alternativa ao essencialismo inerente ao pensamento
evolucionista, às suas implicações políticas imperialistas e à sua
ideologia social racista. Claude Lévi-Strauss, no seu texto “The

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


Science of the Concrete” (1969), lidera o ataque ao humanismo
evolucionista focando-se no facto de a ciência reivindicar ser um
discurso singular que pressupõe o desenvolvimento de formas
sociais e mentais tanto historicamente inferiores como superio-
res. Demonstra que as chamadas funções superiores daquilo a
que chamamos ciência – classificação, observação e experiência
– já estão presentes entre os chamados selvagens. As provas et-
nográficas abundam a este respeito, e Lévi-Strauss tacitamente
infere que a forte cisão entre ciência e magia é falsa, que a sua
relação se pauta pela continuidade bem como pela descontinui-
dade. Evidentemente, ciência e mito não devem ser confundidos.
Ambos são sistemas de conhecimento, possuem categorias de
causalidade, etc. Porém, a distinção entre eles reside em dois
pontos. A ciência é sistemática não só no respeitante aos seus
fins, uma característica partilhada com a magia, mas também no
respeitante aos seus meios. Aqui, Lévi-Strauss introduz a sua fa-
mosa metáfora do mágico como bricoleur, imperfeitamente tra-
duzido como um trabalhador habilidoso cujas ferramentas são
recolhidas ao acaso do ambiente circundante, ao passo que as
ferramentas da ciência são como uma só no seu sistema geral.
Por conseguinte, a tecnologia da ciência é literalmente científica
ao passo que as ferramentas da magia são idênticas aos resíduos
da vida quotidiana. A segunda distinção, contudo, é o oposto:
apesar dos seus métodos informais, a magia postula um determi-
nismo completo e abrangente. A ciência, por outro lado, baseia-
se numa distinção entre níveis, sendo que apenas alguns deles
admitem formas de determinismo; noutros, as mesmas formas
de determinismo são tidas como não aplicáveis. Dito isto, Lévi-
Strauss prontamente acrescenta que a paixão pela ordenação,
pela classificação e pelo pensamento dedutivo é comum à ciên-
cia e à arte. A magia poderá “acertar” na explicação certa para
determinados fenómenos, mas, num determinado momento, ca-
rece da antecipação, do efeito e da capacidade de usar a prova
dos sentidos para corrigir falsas conceções com base no que é
conhecido. Assim, é o caráter ilimitado sistemático da ciência que
a distingue da magia.
Este tema, a capacidade que a ciência tem de rever a teoria
à luz da prova e, desse modo, separar-se dos determinismos da
|| 114

“ideologia”, bem como o ataque do estruturalismo contra o es-


sencialismo evolucionista, constituem os dois pilares do ataque
estruturalista ao humanismo marxista. Este debate domina os
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

círculos intelectuais do pós-guerra em França e na Itália e, como


iremos ver, também produz ecos na tradição alemã.
Neste capítulo, explorarei a crítica da ciência e da tecnologia
que emana tanto da Escola de Frankfurt como dos seus suces-
sores, não tanto por serem cronologicamente prévios ao estru-
turalismo mas porque é precisamente contra as tentativas de
Horkheimer, Adorno e Marcuse criticarem a ciência como forma
de domínio, que a nova defesa estruturalista da ciência é dirigida.
Como iremos ver, o que permanece objetável em relação à crítica
da ciência feita pela Escola de Frankfurt, a partir do ponto de vista
de Althusser e Colletti, é o seu julgamento implícito da ciência, in-
cluindo o Marxismo, como ideologia. Para além disto permanece
a questão sobre se podemos oferecer bases sólidas e fiáveis para
o conhecimento. Enquanto Horkheimer, por exemplo, rejeita o
regresso à metafísica e enquanto o ataque de Adorno contra a
fenomenologia do pós-guerra enquanto “jargão da autenticida-
de” é infundido com uma apresentação marxológica do anties-
sencialismo, existe, todavia, uma nostalgia genuína em relação à
filosofia no sentido antigo, isto é, em relação à possibilidade de a
especulação poder facultar mais do que apenas isso – o equiva-
lente da filosofia da ciência da Escola de Frankfurt que se limita a
expor os problemas metodológicos na investigação empírica ou
histórica. O que se esconde por detrás da crítica da ciência por
parte da Escola de Frankfurt é uma ânsia pela civilização integra-
da que Lukács e Ernst Bloch propõem como base para a crítica
do presente. Porém, desta vez não é evocada apenas como um
instrumento heurístico, mas como uma perspetiva alternativa
genuína contra a qual o mundo moderno deve ser julgado. Como
irei demonstrar, esta alternativa permanece incompleta, não é
uma verdadeira alternativa, e portanto o que inevitavelmente
ocorre é a reconciliação da Escola de Frankfurt com a tecnologia
e com o discurso da alta modernidade ao qual está ligada. O cará-
ter inacabado da alternativa poderá também estar ligado a outro
enigma da Teoria Crítica: o medo de que do outro lado da crítica
resida a ausência de razão, o espaço do ataque religioso contra
a evolução, da anticiência do próprio fascismo, cujo regresso à
mitologia foi exposto pela Escola de Frankfurt (juntamente com
Wilhelm Reich). Após esta discussão, explorarei os contributos
|| 115
de Sohn Rethel, que associou a crítica do iluminismo científico,
levada a cabo pela Escola de Frankfurt, à leitura que Lukács fez
da importância da forma da mercadoria para a compreensão da

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


natureza do conhecimento.
Apesar da sua dívida considerável a Marx, a Teoria Crítica man-
teve-se fora da tradição ortodoxa para fazer uma crítica funda-
mental da ciência e da tecnologia modernas. Contrariamente a
Caudwell, a Escola de Frankfurt não criticou a ciência como um
sintoma do declínio das relações sociais burguesas, mas em ter-
mos do desenvolvimento social burguês inicial e especialmente
os seus pressupostos ideológicos. Horkheimer, Adorno, Marcuse
e outros elementos associados ao Instituto de Investigação So-
cial de Frankfurt, o principal centro da Teoria Crítica, não se con-
tentaram com uma crítica da reificação como a câmara escura da
forma da mercadoria, ou com o estabelecimento de uma ligação
entre os desenvolvimentos na ciência moderna e condições his-
toricamente específicas tais como o mercado. Em vez disso, fize-
ram uma crítica constante da ciência e da tecnologia modernas
na época capitalista, começando com a fundação do próprio mé-
todo científico. Tentaram demonstrar que a cosmovisão da bur-
guesia tinha o seu equivalente no método de investigação, bem
como nos resultados da ciência e da tecnologia modernas, que
foram julgadas como uma “renúncia historicamente congelada”
ao prazer humano.
As obras cruciais sobre ciência e tecnologia do Instituto de
Frankfurt – Dialectic of the Enlightment, de Horkheimer e Ador-
no, Eclipse of Reason, de Horkheimer, e One Dimensional Man4,
de Marcuse – foram inspiradas, em parte, pelo aparente sucesso
do capitalismo ocidental não apenas no que diz respeito à sobre-
vivência à destruição da 2ª Guerra Mundial, mas também ao fac-
to de ter emergido mais forte do que nunca, pelo menos dentro
da sua própria esfera. Em segundo lugar, Horkheimer, Adorno e
Marcuse testemunharam o colapso do movimento da classe ope-
rária a seguir ao ataque arrasador contra o fascismo, na década
de 1930, apenas para descobrirem que a era do pós-guerra nada
||

4 Como é evidente, o livro de Marcuse é escrito quinze anos após Horkheimer e Ador-
no terem regressado a Frankfurt para refundarem o instituto. No entanto, muito do seu
impulso deriva de «Some Social Implications of Technology», publicado pela primeira
vez em 1941, nos Studies in Philosophy and Social Science do Instituto, e reimpresso em
Andrew Arato e E. Gebhardt, eds., The Essential Frankfurt School Reader (Nova Iorque:
Urizen Books, 1978).
|| 116

mais prometia em relação às condições para a mudança revolu-


cionária. A classe operária parecia estar confortavelmente inte-
grada na ordem capitalista, a sua consciência turvada pelo trata-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

mento duro da cultura de massas e as suas exigências materiais


satisfeitas pela capacidade, da parte do capitalismo, de “distri-
buir mercadorias” como resultado dos seus tremendos recursos
técnicos e económicos. O desaparecimento de um agente his-
tórico capaz de transformar a sociedade acompanhou o cresci-
mento das formas totalitárias do domínio capitalista. Na década
de 1940, os teóricos de Frankfurt levaram a cabo um estudo do
desenvolvimento histórico da ideologia e cultura do capitalismo
de modo a explicar a emergência destes novos traços do poder
capitalista. Ao desenvolver o estudo, a Teoria Crítica fez um corte
radical com um dos cânones sagrados do Marxismo ortodoxo.
Em vez de apenas celebrar o capitalismo como um estádio do
desenvolvimento social que precipitou o domínio dos humanos
sobre a natureza no caminho para a libertação, a Teoria Crítica
também descobriu as raízes da crise da humanidade contempo-
rânea nesta dominação. O impulso para o “domínio” sobre a na-
tureza, segundo a Teoria Crítica, foi induzido pelo medo humano
da natureza, particularmente da sua capacidade de destruição,
isto é, de tornar os seres humanos escravos das suas vicissitudes.
As pessoas criaram mitos de modo a viciar a capacidade destru-
tiva da natureza explicando e, em teoria, conquistando um obje-
tivo que o nível de tecnologia existente não conseguia alcançar.
A função da lei natural nas sociedades primitivas era criar a or-
dem no caos, mas a ciência primitiva não era mais do que uma
especulação uma vez que refletia uma compreensão muito ténue
do mundo natural. A proeza do Iluminismo foi desmitificar, ou,
nas palavras de Weber, tirar o encanto ao mundo natural através
da criação de uma teoria científica e de tecnologias que represen-
tavam um salto qualitativo no domínio humano da natureza. O
meio por via do qual este domínio foi alcançado foi a quantifica-
ção de todos os fenómenos naturais, bem como a racionalização
da natureza através da instrumentalização da razão. Dito de outro
modo, o domínio transformou-se em dominação quando a razão
perdeu a sua distância da tecnologia industrial. No essencial, ra-
cionalidade técnica significava a subordinação de todos os proble-
mas naturais a questões de controlo social. A máquina tornou-se
a principal mediação entre os seres humanos e a natureza através
da extensão dos seus poderes produtivos de transformação. “O
|| 117
que os homens querem aprender da natureza é como usá-la de
modo a dominá-la inteiramente, bem como os outros homens…
todavia, o único tipo de pensamento suficientemente forte para

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


desfazer mitos é, em última análise, autodestrutivo” (Horkhei-
mer e Adorno, 1972, p. 4). A Teoria Crítica encontrou a condição
suficiente para a dominação da natureza na capacidade que os
humanos têm de se dominarem entre si. O desenvolvimento da
racionalidade científica teve como pressuposto a repressão do
instinto do prazer e a separação dos humanos da natureza de
modo a que a natureza se pudesse tornar pura “alteridade”.
Em vez de encarar a ciência e a tecnologia e as suas regras
como um modo de pensar entre outros, o Iluminismo e o seu re-
sultado impuseram os rigores do pensamento científico a toda a
sociedade. A racionalidade instrumental tornou-se o único modo
possível de pensar, e todos os outros modos foram relegados
para a esfera do mito. No seguimento do triunfo da ciência com
base nos critérios da utilidade e da sua capacidade de subordinar
a natureza à vontade humana, foi reificada. “Quanto mais a maqui-
naria do pensamento sujeita a existência a si própria, mais cega é a
sua demissão na reprodução da existência” (idem, p. 24).
Os conceitos-chave da racionalidade tecnológica eram: sujei-
ção dos indivíduos ao aparelho produtivo, elevação do aparelho
produtivo ao estatuto de fonte de valores e autoridade e fim de
toda e qualquer distância entre pensamento e meios técnicos
(conceito de unidimensionalidade, de Marcuse).
A lógica difusa da racionalidade técnica – isto é, a ideia da do-
minação como a força motriz da atividade humana, o despoja-
mento de todas as qualidades do mundo para que possa tornar-
se objeto do cálculo matemático e da racionalização industrial,
bem como a subordinação de todas as decisões ao critério da
eficiência concebido em termos de produtividade – foi inevita-
velmente estendida ao mundo social. Nas palavras de Marcuse:

O a priori tecnológico é um a priori político na medida em que a transfor-


mação da natureza implica a do homem e também na medida em que as
criações do homem brotam de e reentram num conjunto social. Ainda se
poderá insistir que a maquinaria do universo tecnológico é “como tal”
indiferente a fins políticos – pode revolucionar ou retardar a sociedade…
No entanto, quando a técnica se torna o essencial da produção material,
circunscreve toda uma cultura: projeta uma totalidade histórica – um “mun-
do”. (Marcuse, 1964, p. 154)
|| 118

A vitória da ciência e da tecnologia na época burguesa foi tão


abrangente que a tecnologia da máquina se tornou uma parte
da natureza. A lógica da produção industrial, isto é, a divisão do
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

trabalho, organizada hierarquicamente e por via da coerção, era


agora um aspeto inquestionável da ordem natural. Já não era
encarada como um produto humano que evoluíra historicamen-
te em determinadas condições sociais. Tornou-se a única forma
possível de lidar com o mundo exterior. “O cientista sabe coisas
na medida em que consegue manipulá-las” (Horkheimer, 1947, p.
81). O critério de todos era saber se uma determinada teoria ou
técnica era utilizada ou não para dominar a natureza no sentido
de satisfazer as necessidades humanas.
A Teoria Crítica rejeitou a reificação do domínio humano sobre
a natureza e tentou retirar a aura de mito à ciência e à tecnolo-
gia. Contra a visão dominante de que, na sua essência, “o pensa-
mento é um processo automático autoativado… uma imitação
da máquina” (Horkheimer e Adorno, 1972, p. 25), a Teoria Críti-
ca sustentou que o pensamento mecanicista criou a máquina,
não o contrário, e que a invenção das máquinas constituiu uma
objetivação da cisão na sociedade e entre os próprios seres hu-
manos. Parece que as máquinas estabeleceram a sua prioridade
sobre os humanos de modo a subordinar a vontade humana aos
pré-requisitos do aparelho produtivo. A Teoria Crítica argumen-
ta ambivalentemente a favor do distanciamento do pensamen-
to em relação ao seu objeto para demonstrar que a unidade de
pensamento e objecto, sob o capitalismo, serve fins específicos:
a dominação do humano pelo humano através da mediação da
dominação da natureza. “Até as formas dedutivas da ciência re-
fletem hierarquia e controlo. Do mesmo modo que as primeiras
categorias representavam a tribo organizada e seu poder sobre o
indivíduo, a ordem lógica, a dependência, a ligação, a progressão
e a unidade dos conceitos alicerça-se na condição corresponden-
te da sociedade – ou seja, da divisão do trabalho” (idem, p. 21).
Nesta perspetiva, as chamadas forças de produção são a ob-
jetivação da dominação no interior da sociedade humana, bem
como a extensão do grau de dominação sobre a natureza. As
formas da ciência e da tecnologia são mediadas pelas divisões
sociais, e “a perda da memória é a condição transcendental para
a ciência”. Uma noção de história é prejudicial ao projeto de do-
minação porque daria origem a questões que não podem ser
respondidas instrumentalmente. Uma vez que a sociedade tec-
|| 119
nológica se apresenta como um sistema fechado, como a única
forma possível de ver, “a história é uma treta”, nas palavras de
Henry Ford. Mesmo que a renúncia ao eu seja a condição prévia

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


para a dominação da natureza e se torne problemática em cir-
cunstâncias em que a tecnologia da máquina tem a capacidade
de produzir quantidades suficientes de bens para satisfazer as
elementares necessidades físicas humanas, o sistema exige a sua
própria perpetuação e a supressão da lógica histórica pela coer-
ção e pela hierarquia. Esta é a razão para a supressão da memória
e o fim da transcendência no contexto do capitalismo tardio.
Os membros do Instituto de Frankfurt acabaram por perder a
esperança em relação às possibilidades de reverter a sociedade
estabelecida a um estado anterior, dado que se convenceram de
que o processo histórico através do qual o capitalismo alcançou
a sua vitória sobre o feudalismo foi, simultaneamente, um pro-
cesso através do qual transformou a composição genética dos
humanos.5 O capitalismo não é simplesmente um sistema de pro-
dução que se rege por regras que privilegiem a produção para a
obtenção de lucro. A apropriação privada dos meios de produção
havia-se tornado uma característica secundária do sistema à me-
dida que se desenvolveu nos séculos XIX e XX. A subsunção da
ciência ao capital significava que a tecnologia se transformava
no novo a priori de todas as relações sociais, não tanto na for-
ma da mercadoria como sustentara Lukács. A tecnologia forne-
cia os meios através dos quais as necessidades eram satisfeitas.
No entanto, em lugar de se produzirem novas necessidades que
pudessem ultrapassar a capacidade de as relações produtivas ou
as forças produtivas satisfazerem, estas necessidades foram ani-
chadas no sistema das relações sociais que eram, elas próprias,
determinadas pela tecnologia. Quando a mercadoria penetra to-
dos os cantos do mundo no século XIX (Lukács), a nova condição
para a vida social é a administração, uma totalidade de relações
que sujeita toda a interação à mediação da racionalidade instru-
mental; tudo se transforma em meios, ou, para ser mais preciso,
os meios e os fins são inteiramente fundidos (ver Horkheimer,
1947, capítulo 1). No processo, o indivíduo, não raras vezes publi-
citado como a proeza máxima da época burguesa, aparentemen-
te, sofre um declínio irreversível. A individualidade é forçada a
||

5 Marcuse usa a tese da transformação genética metaforicamente, como é evidente.


Todavia, o significado tácito subjacente à sua metáfora toca as raias do literal.
|| 120

submeter-se aos imperativos ditados pela administração social e


económica industrializada. “O indivíduo não mais tem uma histó-
ria pessoal”, escreve Horkheimer. “Embora tudo mude, nada se
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

mexe. Não precisa nem de um Zenão ou de um Cocteau, nem de


um dialetista eleático ou de um surrealista parisiense, para distin-
guir a Rainha em Alice do Outro Lado do Espelho quando ela diz
“Aqui precisas correr tão rápido quanto puderes para ficares no
mesmo sítio”” (idem, p. 159).
Horkheimer reconhece que o indivíduo “apesar de tudo, não
desaparece completamente nas novas instituições impessoais”,
mas lembra-nos que “a sua vida parece encaixar em qualquer
questionário que lhe peçam para preencher” e que “a sua exis-
tência intelectual se esgota nas sondagens públicas” (id. ib.).
Além disso, “toda a intervenção da cultura de massas serve para
reforçar as pressões sociais sobre a individualidade, excluindo
qualquer possibilidade de o indivíduo se preservar na maquina-
ria atomizada da sociedade moderna” (idem, p. 158). Por conse-
guinte, o aparelho cultural coloca-se paralelamente aos apare-
lhos económico e cultural para produzir a sociedade de massas,
uma sociedade na qual os seus participantes já não têm como
conceber alternativas para a ordem social presente, quanto mais
idealizar uma política eficaz para a ela se opor. A ausência de al-
ternativas não deixa qualquer recurso àqueles que se oporiam
ao sistema dominante. A individualidade não se consegue ex-
pressar no ato positivo de participação numa esfera pública de
discurso social e político porque o que passa por atividade pú-
blica é na verdade determinado pelo aparelho, pela maquinaria
da submissão. O que resta é a afirmação da pura individualidade
– a recusa. No entanto, tal como Paul Willis descobriu quando
estudou uma escola secundária generalista britânica na década
de 1970, até a recusa resulta na definição não da individualidade,
mas meramente das condições para a integração dos rebeldes na
ordem industrial. Willis (1981) demonstra que os jovens da classe
operária obtêm empregos da classe operária se recusarem estu-
dar, o que os deixa sem outra alternativa a não ser desempenhar
trabalho de fábrica não especializado ou semiespecializado. Em
suma, a recusa pode tornar-se uma forma de privação quando
resulta na iliteracia. Aqueles que não assimilarem o que conta
como conhecimento socialmente aprovado são relegados para
lugares de subordinação na ordem social, lugares que implicam o
desempenho de um trabalho que nega a individualidade.
|| 121
A análise crítica da escola de Frankfurt levanta de forma bas-
tante clara a questão da neutralidade científica. A sua conclusão
absoluta de que toda a ciência e todas as técnicas são mediadas

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


pelas relações sociais não significava que os Teóricos Críticos
estivessem preparados para advogar um regresso à sociedade
pré-industrial. Pelo contrário, as suas teorias tinham raiz no po-
tencial libertador da tecnologia moderna, não obstante a sua
destrutividade para a vida e o espírito humanos. À semelhança de
Marx, aceitaram a inevitabilidade da capacidade que a indústria
moderna tinha de aliviar os humanos do trabalho extenuante. A
sua visão do uso humanitário da tecnologia teve o seu apogeu na
projeção que Marcuse (1964, pp. 230-235) fez da fábrica mecani-
zada, que exigiria que as pessoas trabalhassem apenas algumas
horas por dia ou semana, ficando com tempo disponível para a
recreação, para as artes e ofícios, para a comunicação humana e
para outras atividades consideradas de “lazer” no contexto das
condições industriais repressivas da época.6 O verdadeiro “tra-
balho” seria aquele que é hoje considerado insignificante pela
nossa cultura, e o trabalho necessário com tecnologias altamen-
te automatizadas seria reduzido absolutamente ao mínimo.
Portanto, a Teoria Crítica não faz uma crítica verdadeiramen-
te abrangente da tecnologia e, consequentemente, da socieda-
de industrial. O seu fatalismo em relação às possibilidades de se
reverter o controlo da racionalidade técnica sobre a ciência e a
sociedade é revelado pelo facto de acreditar que os humanos
devem, em última análise, submeter-se à máquina porque, afinal
de contas, o progresso no alívio dos aspetos mais onerosos da
existência humana é atribuível à capacidade que a ciência tem
de fornecer as ferramentas para a dominação da natureza por
parte dos humanos. A Teoria Crítica advoga um fim para o estatu-
to hegemónico da racionalidade instrumental sobre a vida social.
Ao reconhecerem que a racionalidade crítica não tem qualquer
poder na esfera do aparelho produtivo, incluindo a classe operá-
ria que parece ter ficado assoberbada por esse aparato e os seus
feitos, os teóricos do Instituto de Frankfurt resolveram o dilema
através de um compromisso com a máquina. Geraram uma visão
||

6 O apoio fundamental de Marcuse à ciência e à tecnologia reside na sua crença de que,


com as condições políticas apropriadas, estes instrumentos de dominação podem ser
finalmente neutralizados. Mais importante, para Marcuse, a ciência pode ser criticada
pelos seus fins «transutilitários». Em último lugar, Marcuse apoia o Iluminismo como pos-
sibilidade e conclui, com um Marxismo ortodoxo, que os textos da ciência são capazes de
separação do contexto que os produz.
|| 122

que oferece um compromisso com a racionalidade técnica, ga-


rantindo-lhe um papel na sociedade futura, embora fortemente
circunscrito por um controlo social autoconsciente.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

O resultado da crítica da Escola de Frankfurt à ciência e à tecno-


logia traduz-se numa acomodação involuntária às pressuposições
que informaram tanto a teoria social marxista como a burguesa
– a inevitabilidade da renovação autocontrolada da sociedade in-
dustrial. A polémica contra a hierarquia e a dominação, contra a
coerção e uma divisão do trabalho que produz um mundo reifica-
do que parece controlar a ação e a consciência humanas de fora,
transforma-se em desespero. A Teoria Crítica reifica o reificado
através da afirmação da sua irreversibilidade.
Marx celebra os avanços da ciência e da tecnologia apesar de
expor impiedosamente os seus aspetos repressivos no âmbito
das relações sociais capitalistas. Neste sentido, tanto os Teóricos
Críticos como os marxistas ortodoxos representam verdadeira-
mente o dominador e encontram justificação nos textos dele.
Marcuse afirma eloquentemente o fim da teoria crítica:

Aqui, a racionalidade tecnológica, despojada dos seus traços exploradores, é


o único padrão e guia para o planeamento e desenvolvimento dos recursos
disponíveis para todos. A autodeterminação na produção e distribuição de
bens e serviços vitais seria ruinosa. O emprego é técnico e enquanto emprego
verdadeiramente técnico, contribui para a redução do esforço físico e mental.
Nesta esfera, o controlo centralizado é racional se estabelecer as condições
prévias para uma autodeterminação significativa. Esta torna-se eficiente na
sua própria esfera – nas decisões que implicam a produção e distribuição de
excedentes económicos, bem como na existência individual. (idem, p. 251)

Deste modo, Marcuse trata o poder da racionalidade tecnoló-


gica, especialmente a sua hegemonia histórica sobre a atividade
humana, atribuindo-lhe um papel especial na sociedade socialis-
ta futura. Dever-lhe-á ser atribuído um predomínio na esfera da
produção de necessidades, ao passo que a autodeterminação
predominará na distribuição e naquela porção da produção de-
signada por “excedentes económicos”. A partir disto, podemos
presumir que o poder da tecnologia tal como foi desenvolvido no
seio das relações sociais burguesas não pode ser radicalmente
transformado no seu centro, apenas na sua periferia.
Irei analisar estas questões respeitantes à organização social
do trabalho no próximo volume deste trabalho. O âmago da
|| 123
teoria da ciência de Marcuse é a sua declaração de que “a ciência
da natureza se desenvolve segundo o a priori tecnológico que
projeta a natureza como instrumentalidade, matéria de controlo

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


e organização” (idem, p. 153). Ao mesmo tempo, reconhece que
“ciência pura não é ciência aplicada; preserva a sua identidade
e validade independentemente da sua utilização” (idem, p. 155).
Mas o seu propósito é exatamente o inverso. Concordando, cita
a seguinte observação de von Weizsacker: “E o que é a matéria?
Na física atómica, a matéria é definida pelas suas possíveis rea-
ções às experiências humanas e pelas leis matemáticas – ou seja,
intelectuais – a que obedece. Estamos a definir a matéria como
um possível objeto de manipulação humana”. Marcuse conclui
acrescentando: “se for este o caso, então a própria ciência tor-
nou-se tecnológica”.7 Aqui, Marcuse redefine a “neutralidade
da ciência” ao demonstrar que este entendimento da ciência da
natureza só é possível se admitirmos os pressupostos da raciona-
lidade tecnológica, que devem universalizar a dominação da na-
tureza colocando-a na esfera dos interesses universais, e não dos
específicos. Se não admitirmos a validade desta afirmação, todo
o aparelho da verdade científica colapsa. Ou seja, a racionalidade
tecnológica opera em benefício da dominação, e a ciência é um
aspeto disso (mesmo que a sua linguagem sugira autonomia).
Marcuse sustenta que ao suspender-se questões metafísicas tais
como “O que é?” em favor da funcional “Como?”, a ciência da
natureza perde a sua autonomia da racionalidade que cada vez
mais impulsiona a vida social.
Se esta apreciação for acertada, as ciências humanas que
desejam emular a ciência da natureza também desejam tornar-se
parte do mesmo universo administrativo, racionalmente orga-
nizado, que integrou a ciência natural. Como é evidente, isto é
o que a ciência social contemporânea, incluindo a sua variante
marxista, deseja. Uma forma de concretizar este resultado con-
siste em fomentar os métodos da ciência natural, em transfor-
mar toda a experiência em informação, tal como Walter Benja-
min observa com pesar.
A experiência, juntamente com a informação, transforma-se
em matéria-prima quando é tratada de forma apropriada à aná-
lise científica. A informação analisada deve ser puramente quan-
titativa de modo a ser comensurável. Quando a informação foi
||

7 Ver von Weizsacker, The History of Nature, p. 71, citado em Marcuse, 1964, p. 155.
|| 124

produzida (quando já não está “em bruto”, isto é, na sua forma


pré-analítica), pode ser comparada de acordo com determinados
critérios do método “científico”. A ciência social trabalha com
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

médias, meios, medianas e frequências – as categorias estatísti-


cas padrão. O indivíduo perde identidade exceto na medida em
que a sua experiência pode ser racionalizada em relação a es-
tes métodos e aos propósitos do estudo. A informação que não
encaixe no algoritmo de um determinado estudo não pode ser
“usada” e, não raras vezes, desaparece. Lembremo-nos da queixa
de Weisacker de que a “matéria” da experiência é definida como
um objeto na medida em que possa ser manipulada.
O ponto de partida da manipulação científica social é o mes-
mo da física: enquadrar a investigação em termos dos propósitos
humanos e determinar se a informação pode ser encaixada num
esquema metodológico a priori. Assim, a Teoria Crítica insiste que
nenhuma hipótese está isenta do telos da conceção e do método.
Os métodos quantitativos permitem medição por intermédio do
estabelecimento de médias e assumem o que Durkheim defendia
ser o ponto de partida para toda a ciência social – que estas mé-
dias são representações do social, que devem ser tratadas como
um facto irredutível. O dado particular deve ser tratado como
uma instância (+ ou –) da informação sujeita a média. Embora
a conceção do social de Durkheim nunca tenha sido apenas a
agregação de instâncias individuais, a soma de dados, grande
parte da ciência social contemporânea aceita esta definição do
social.
Os dados são recolhidos de sujeitos humanos por intermédio
de inquéritos, cujos conteúdos devem permitir a quantificação.
Isto implica o maior número possível de respostas exatas, dei-
xando pouco ou nenhum espaço para ambiguidades ou respos-
tas contraditórias. Este pré-requisito dita a natureza do questio-
nário. Não se trata de um sistema aberto. Por conseguinte, muita
da investigação no campo da ciência social é semelhante a son-
dagens de votos ou de marketing. Existe uma probabilidade alta
de os resultados serem úteis, digamos, para um candidato polí-
tico que procura reduzir as questões públicas às preferências do
votante ou para testar se as suas posições são tidas como aceitá-
veis para um determinado círculo eleitoral. De igual modo, uma
empresa que procura vender um novo produto pode testar uma
amostra de potenciais utilizadores para determinar se o produto
deverá ser lançado no mercado.
|| 125
Como é evidente, o inquérito típico não se limita às preferên-
cias do produto. Quem concebeu o inquérito quer saber o sexo,
a raça, a etnia e o estatuto económico do votante ou consumidor

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


alvo. A este respeito, a ciência social é necessária para avaliar o
peso relativo de cada um destes fatores para explicar o resulta-
do. O sistema científico de levantamento de opiniões deve avan-
çar uma hipótese sobre se um dado candidato ou programa de
um candidato irá “voar” com um eleitorado racionalizado. São
concebidos métodos matemáticos para implementar esta seg-
mentação hipotética. E, como Engels disse, “a prova do pudim
está no ato de comer”. São desenvolvidos Pós-testes para de-
terminar se os votos ou compras ou um dado candidato/produ-
to correspondem ao “perfil” do cliente indicado na conceção do
inquérito. A investigação social “científica” organiza-se em torno
do princípio da falsificação: o inquérito deverá prever o compor-
tamento humano, dado o contexto no qual tal comportamento
deverá ter lugar – a vida pública na qual a participação democrá-
tica é limitada pelo voto e pela compra. Implícito na investiga-
ção por via de inquérito está o pressuposto de que as atitudes se
traduzem em ação; a ação é definida como comportamento em
reação a estímulos.
À semelhança da física moderna, a investigação social quanti-
tativa é uma intervenção condicionada pelos propósitos segundo
os quais a investigação é conduzida. Cada vez mais tal investi-
gação é “patrocinada”, não só pelos partidos políticos e/ou os
seus candidatos, ou por aqueles que desejam vender algo aos
consumidores, mas também pelo estado. A escala da investiga-
ção está muitas vezes ligada aos seus métodos necessariamente
coletivos de trabalho, que normalmente implicam os esforços
de muitas pessoas. Os fundos para a investigação são atribuídos
por entidades públicas ou privadas com o propósito de ajudar
aqueles que estão no poder a conceberem aspetos sociais, mili-
tares, e outros da política pública. Com poucas exceções, o cien-
tista social torna-se um instrumento da política pública mesmo
quando orgulhosamente recusa ser contratado como “arma”
para empresas de sabonetes ou firmas de assessoria política. A
história da investigação social quantitativa encontra-se, claro está,
intimamente ligada tanto aos seus usos comerciais como aos seus
usos no âmbito da política pública, e é relativamente recente. Os
métodos de investigação por via de inquérito foram desenvolvi-
dos em concomitância com três desenvolvimentos simultâneos na
|| 126

vida económica e política americana: (1) o crescimento do merca-


do nacional para os bens de consumo, que gerou e foi acelerado
pela publicidade, mas também pela tecnologia de marketing; (2)
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

a emergência da “escola das relações humanas” na política la-


boral e industrial, que, incidentalmente, coincidiu com o cresci-
mento de grandes empresas como a típica criação de negócios
na vida económica; e (3) a proliferação da comunicação de mas-
sas como instrumento tanto de propaganda comercial como po-
lítica. O desenvolvimento e disseminação dos media eletrónicos
como o campo para a ação política e do mercado alterou o rosto
da política e da cultura. As mensagens transmitidas pela rádio e
pela televisão vendiam não apenas “produtos”, mas também um
modo de vida.
A descoberta, por parte dos cientistas sociais, do seu valor
para este novo mundo foi determinada por desenvolvimentos
no campo das ciências sociais e novas correntes na política so-
cial, sobretudo a ascensão do estado-providência nas décadas de
1930 e 1940 e as amplas mudanças acima descritas. Tal como o
Marxismo, a ciência social foi tratada pelas ciências da natureza
como imprecisa, na melhor das hipóteses, e, nas caracterizações
mais pejorativas, como uma forma de astrologia, uma vez que,
tal como demonstrámos, a ciência foi virtualmente idêntica à ma-
tematização, ainda mais do que a observação. Porque muita da
investigação social empírica permaneceu qualitativa ao longo da
primeira metade do século XX, o seu estatuto de ciência esteve
sempre em dúvida. Contudo, o advento da “sociedade de mas-
sas” trouxe consigo um novo respeito pela estatística e outros
métodos quantitativos das ciências sociais. Desenvolvimentos
no campo da teoria social derivados de Max Weber juntaram-se
à vontade que as ciências sociais tinham de conquistar respeita-
bilidade. Lembremo-nos que Weber caracteriza as sociedades
industriais, entre outras coisas, através do desenvolvimento de
um novo sistema de racionalidade, sobretudo daquilo que ele
designa por racionalidade instrumental em que todas as formas
de ação tendem a ser orientadas em direção a fins limitados, tais
como o lucro e as prioridades da política pública e corporativa.
Weber diz que as relações sociais que vão da “amizade” ao “es-
tado” tendem a tornar-se racionais neste sentido, quer seja por
consentimento mútuo ou não.
Autores mais recentes criaram a designação “sociedade
de massas”, que expande o âmbito das relações racionais
|| 127
instrumentais na medida exata em que outros tipos de relações
enfraquecem ou inclusive se dissipam. O “indivíduo” torna-se um
conceito problemático porque o nexo das nossas relações está

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


circunscrito pelos limites impostos pela ação instrumental. Não
estou a afirmar que a teoria de Weber deu à ciência social “per-
missão” para tratar a experiência individual segundo as normas
do cálculo racional, mas que facultou um suporte teórico empíri-
co para agregar a ação social.
Um segundo elemento da teoria da sociedade de massas é,
como é evidente, o pressuposto da ideia de racionalidade capi-
talista de Weber, a teoria da burocracia. A burocracia moderna
tende a dominar o estado, a sociedade civil (“relações comer-
ciais”), bem como associações independentes do estado, como
sindicatos, organizações fraternais e movimentos sociais – em
suma, toda a sociedade. A burocratização torna-se a norma de
todas as formas de organização social. Neste contexto, a buro-
cracia é meramente a forma social da racionalidade instrumen-
tal. No entanto, as suas normas governam mais do que organi-
zações: as regras do comportamento pessoal fundem-se com as
da ação pública, e o conceito de indivíduo como ser autónomo
torna-se problemático. Para além disso, a comunidade como es-
paço cultural e geográfico autónomo de ação social é cada vez
mais enfraquecida pelos diversos elementos da massificação,
especialmente o estado centralizado e as igualmente centrali-
zadas instituições de comunicação de massas. A possibilidade
da vida privada, instalada pelas revoluções burguesas do século
XVIII tanto como programa político como putativa norma social,
é posta em causa.
Nos tempos que correm, o poder desta tese não é minima-
mente afetado pelo movimento de afastamento da vida pública
consciente, tão evidente em todos os setores das populações
norte-americanas e da Europa ocidental. O facto de a tendência
para a privatização se ter tornado mais forte é o corolário da so-
ciedade de consumo, a perceção generalizada de que a política
moderna implica os media e outros modos de manipulação e de
que todos os problemas sociais estão sujeitos a soluções pura-
mente técnicas – pelo menos esta é a ideologia dominante. A
questão é se a vida privada é possível. Mesmo que um indivíduo
opte por se abster de participar nas atividade públicas, não só
nas eleições mas nas instituições sociais que constituem a noção
de “comunidade”, o peso da supremacia tecnológica, que é em
|| 128

grande parte centralizador em termos de orientação e aplicação,


impede tal opção. Nestas sociedades em que as relações sociais
capitalistas prevalecem, é criada pela televisão uma esfera
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

pública substituta; informações acerca de pessoas desapareci-


das adornam os pacotes de leite; e o que conta como “notícia”
foca-se inevitavelmente em personalidades. Mais subversivo no
que diz respeito à ideia de “privado”, aparece no mercado um
conjunto de produtos destinados a aliviar os sintomas daquilo
que C. Wright Mills designa por “problemas privados” – dores
de cabeça, insónia, stresse emocional e físico, por exemplo – en-
quanto os meios de comunicação social exploram a substância
destes problemas, isto é, o divórcio, as doenças sexualmente
transmissíveis, o abuso de menores, o incesto, e por aí fora. O de-
semprego é investigado como um problema privado enquanto a
experiência é simulada nas “notícias”. Em suma, temos a fusão
do público e do privado, a sua determinação mútua mesmo en-
quanto a ilusão do indivíduo autónomo continua a ser a ideologia
americana dominante.
Como é evidente, Weber encarou estes fenómenos como
tendências que são inerentes aos processos de industrialização
e modernização. Escrevendo meio século depois, Marcuse viu
a massificação e a racionalidade instrumental como descrições
empíricas da situação dominante. A sua noção de unidimensiona-
lidade limita-se a aglutinar estas formas gémeas que parecem ter
suplantado os elementos indeterminados das relações sociais capi-
talistas. Porém a implicação da teoria de Marcuse produz uma
ressonância curiosa na vontade sociológica dominante da cienti-
ficidade. Embora a sua perspetiva continue a ser crítica, aceita a
premissa com base na qual a ciência social contemporânea lutou
pela legitimidade científica – o declínio do indivíduo e a ideia de
que a agregação era um procedimento metodológico correto, à
luz de uma sociedade mediada pela tecnologia massificada.
Pode-se argumentar que as outras ciências sociais – a psico-
logia, a história, a sociologia e a ciência política – se limitavam a
imitar as inovações já maduras da economia científica que ema-
nou da Escola de Viena de Menger e Bohm-Bawerk, da economia
neoclássica inglesa de Marshall, Jevons e Keynes, que tinha, em
finais do século XIX, transformado as categorias da economia po-
lítica numa ciência positiva, substituindo a “filosofia económica”
do século XVIII. Esta transformação baseou-se, paradoxalmen-
te, no pressuposto de que o comportamento económico numa
|| 129
economia de mercado era uma questão de escolha racional em
benefício da maximização da vantagem individual. Mais tarde,
Mancur Olson (1965) viria a codificar estes pressupostos como

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


uma “lógica” que governa a ação tanto coletiva como individual
naquilo que John Elster designa por pressuposto do individualis-
mo metodológico. No entanto, a diferença entre este método
e a investigação por via de inquérito é que o primeiro constrói
modelos baseados numa racionalidade ideal e egoísta que forma
as opções para o cálculo matemático. Este método dedutivo con-
trasta com os procedimentos indutivos dos inquéritos em que a
hipótese permanece amplamente implícita, ou seja, é revelada
apenas por uma “leitura” das questões para se descobrirem os
propósitos tácitos do inquérito.
Obviamente, isto são apenas variantes do positivismo, embo-
ra a construção do modelo corresponda mais aos métodos da
física. Em cada caso, a estrutura hipotética é validada, segundo
os seus defensores, pela verificação. Em muitos casos, os inves-
tigadores sociais da escola indutiva não estão conscientes dos
seus próprios pressupostos, adotando procedimentos de inqué-
rito sem hipóteses aparentes. No entanto, é possível detetar es-
tes propósitos na definição do problema sob investigação bem
como nos métodos de investigação. Por exemplo, os esforços
para encontrar explicações para comportamentos “desviantes”
como o crime variaram de acordo com o clima político e ideo-
lógico dominante. Presume-se que o indivíduo é o produto da
sua família, escola, e do ambiente mais abrangente, geralmen-
te económico. Os liberais modernos tendem a definir desvio
como uma resposta racional a estas circunstâncias. Melhorar as
oportunidades de vida dos indivíduos transforma-se no objeti-
vo primeiro das políticas sociais que aceitam este paradigma do
comportamento social. Isto implica medidas como melhorar a
oportunidade educativa, proporcionar formação profissional aos
“transgressores” e, sempre que possível, empregos. Por outro
lado, se o crime é atribuído à agressividade inata ou à inteligência
abaixo do normal, a reabilitação é vã e a melhor esperança de
contrariar o crime reside na utilização de medidas punitivas tais
como penas de prisão longas ou a pena de morte. Certamente
que os cientistas sociais, aos quais a prova corroborativa é solici-
tada pelas autoridades governamentais, são “livres” de recusar
colaborar com aqueles que adotam posições tácitas que são con-
trárias aos seus próprios limites morais. A consequência de tal
|| 130

decisão pode, como é óbvio, excluir estes investigadores sociais


de qualquer consideração aquando da atribuição de fundos. Com
efeito, as questões éticas na investigação no campo da ciência
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

social não podem ser evitadas por muito que se deseje separar
valor de facto. Os factos do mundo social estão enredados na
ideologia, mas, numa perspetiva ainda mais alargada, a ciência
social é uma parte integrante da ordem social dominante. A este
respeito, luta pela paridade com as ciências da natureza que
foram massivamente incorporadas pela indústria e pelo estado,
particularmente a investigação que tem aplicações militares.
A teoria crítica da ciência proposta pela Escola de Frankfurt
foi marginalizada pela filosofia e pelos estudos sociais da ciên-
cia precisamente por causa da sua insistência no facto de a ci-
ência consistir em relações sociais. Ao mesmo tempo, o Marxis-
mo científico purifica a crítica que a Escola de Frankfurt faz do
Iluminismo. Ouça-se Lucio Colletti, uma figura cimeira da escola
marxista-estruturalista, cujo professor, Galvano Della Volpe, po-
derá ser considerado o principal filósofo italiano marxista da ci-
ência: “Juntamente com Marcuse, eles [Horkheimer e Adorno]
são o exemplo mais flagrante da extrema confusão a que se pode
chegar ao confundir-se a crítica romântica do intelecto e da ciência
com uma crítica socio-histórica do capitalismo” (Colletti, 1973, p.
175.). Colletti acusa a Teoria Crítica de uma “negação niilista das
mais elevadas proezas do pensamento humano” (idem, pp. 174-
175). Citando History and Class Consciousness, de Lukács, Colletti
revela o propósito da sua crítica a Lukács e à Escola de Frankfurt
– distanciar o Marxismo do julgamento de Lukács, de que “a natu-
reza é uma categoria social” e “é um desenvolvimento fora das es-
truturas económicas do capitalismo”. Colletti identifica este ponto
de vista com o do Ronquentin existencial de Sartre, para quem “o
escândalo da alienação é a possibilidade da existência de um mun-
do natural”. A partir daqui, a Teoria Crítica funde-se com o “espiri-
tualismo” de Bergson e outros românticos de finais do século XIX,
tais como os neo-kantianos da escola histórica, particularmente Ri-
ckert e Tonnies. Assim a influência sobre Lukács da ideia de Weber
de que a racionalidade capitalista significa o desencantamento do
mundo é inegável. O conceito de que a natureza é analisada social-
mente pode ser interpretado a partir de premissas que derivam
de outra tendência neo-kantiana relevante, a fenomenologia.8
||

8 Com efeito, o texto-chave, excluindo History and Class Consciousness, para a crítica da
|| 131
A crítica de Colletti traduz-se numa demonstração de que estas
não são consistentes com as premissas materialistas que defi-
nem o objeto do conhecimento científico como independente

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


da vontade humana, mas não alude à validade das reivindicações
propriamente ditas. Em vez disso, recorre ao que Pierce designa
por método da autoridade para estabelecer a verdade, demons-
trando que as visões de Lukács não correspondem às de Marx,
ou, mais precisamente, que Lukács interpreta mal Marx quan-
do estende a crítica da reificação ao conhecimento positivista.
Por outras palavras, Colletti, seguindo Della Volpe (1980), deseja
fazer uma distinção radical entre vida social e ciência. Natural-
mente, à semelhança de muitos outros, Colletti considera Marx
irrepreensível; é retratado como vítima dos seus próprios segui-
dores. Além disso, a ciência natural, especialmente as prescrições
de Galileu para transformar a ciência libertando-a da sua prisão
ptolemaica, é invocada mas continua por examinar. Para Colletti,
contrastando com Lukács e a Escola de Frankfurt, a natureza é
“dada” como o objeto ao qual o conhecimento científico – leis e
proposições – corresponde. De igual modo, sustentar que a natu-
reza é socialmente constituída, e portanto sujeita às mediações
económicas, políticas e especialmente ideológicas, invalida a ci-
ência e representa pouco mais do que um retorno ao misticismo,
ao romantismo e aos outros inimigos do conhecimento positivis-
ta. Portanto, deve ser negado qualquer esforço no sentido que
ligue o conteúdo ou os métodos do conhecimento científico às
suas condições prévias de natureza social/histórica. Colletti deve,
por conseguinte, sustentar que a filosofia é um discurso crítico, e
até ideológico, tal como a sua crítica a Lukács indica claramente.
Porém o Marxismo é uma ciência precisamente na medida em
que transforma as categorias críticas em positividades que per-
mitem uma investigação científica precisa. As abstrações vagas
do Marx dos primeiros tempos, a “sociedade civil”, o “estado”,
etc., que continuam a ser categorias lógicas e especulativas tan-
to para Hegel como para a Teoria Crítica, devem ser substituídas
por conceitos como o de “relações de produção”, cujo conteúdo
é o capital, a mais-valia, o lucro e outras categorias da economia
política.
||

ciência e da tecnologia por parte da Escola de Frankfurt é o Crisis of European Sciences,


de Husserl, publicado numa altura tardia da sua vida como uma espécie de suma crítica
do anti-kantianismo imanente de uma das principais filosofias kantianas do nosso tempo.
|| 132

Apesar da elegância da estratégia polémica de Colletti – a sua


hábil utilização de Kant para restaurar o Marxismo científico, por
exemplo –, a intenção é claramente salvar Marx das tentativas
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

levadas a cabo por Lukács no rescaldo da 1ª Guerra Mundial no


sentido de tratar o Marxismo como ideologia na medida em que
todos os discursos são ideológicos. Lukács estava a tentar propor
uma nova interpretação d’ O Capital como uma crítica ao cien-
tismo, que, para os teóricos da Segunda Internacional, tal como
para Lenine, estabeleceu o materialismo histórico numa base
estritamente científica. Sem dúvida, a apropriação de Marx por
parte de Lukács esteve sempre enquadrada na retórica do Mar-
xismo “ortodoxo”. Porém a sua ortodoxia significava a restaura-
ção do significado crítico das categorias de Marx. Esta estratégia
foi tornada necessária pelo ambiente intelectual restrito que fora
produzido não apenas pela emergência da hegemonia bolchevi-
que sobre o movimento comunista mundial, que se estendeu tan-
to à filosofia como às táticas da luta política, mas também pela
preponderância dos motivos religiosos no próprio Marxismo do
pós-guerra. Vestir o manto da ortodoxia também correspondia à
relevância do epíteto “revisionismo” nos círculos marxistas, no
seguimento dos famosos debates Bernstein/Kautsky/ Luxembur-
go na viragem do século, bem como ao afastamento de Lenine
do antigo guardião da ortodoxia, Kautsky.
A crítica incisiva de Colletti identifica o maior pecado de
Lukács: se a sua crítica da ciência como relações sociais for acer-
tada, o Marxismo deve também ser socialmente constituído não
só no respeitante às suas origens, mas, de forma mais escandalo-
sa, no respeitante às suas categorias e à sua descrição dos mun-
dos social e natural. Como é evidente, isto já está implícito na
ideia de Lukács de que a dialética apenas se pode referir às rela-
ções objeto/sujeito e de que o esforço do Marxismo para fundar
uma dialética da natureza é mal direcionado, porque se agarra a
uma visão da natureza não apenas como ontologicamente inde-
pendente mas como detentora de regularidades intrínsecas que
não estão sujeitas à intervenção do investigador.
Ironicamente, o conceito de lei científica como socialmente
dependente, quando Lukács apresenta o conceito…, assemelha-se
a desenvolvimentos no campo da física moderna que reconhe-
cem que o nosso conhecimento do objeto está dependente
tanto da teoria como do “sujeito”. Por outro lado, as várias mar-
cas do objetivismo marxista, incluindo a de estruturalistas como
|| 133
Colletti e Althusser, reconhecem apenas que a teoria pode iden-
tificar o contexto social dentro do qual a ciência se desenvolve,
mas recusam o passo seguinte, que é o da atribuição tanto das

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


teorias resultantes como dos seus pressupostos metodológicos
às relações sociais. Por conseguinte, Engels sustentou que os
progressos na técnica são o catalisador das descobertas cientí-
ficas, e que estes progressos são socialmente determinados. No
entanto, as descobertas propriamente ditas são bastante autó-
nomas em relação às suas pressuposições sociais e históricas.
De modo similar, o Marxismo na sua forma prístina nasce indire-
tamente de fontes ideológicas e até metafísicas, especialmente
de Hegel, do socialismo utópico e da economia política clássica
(Lenine), e o pré-requisito social para o Marxismo é a entrada do
proletariado no palco histórico mundial, em inícios do século XIX.
Todavia o seu estatuto científico é independente destas influên-
cias. Como argumentam Althusser e Colletti, o Marxismo torna-se
uma ciência quando se liberta do jugo das suas origens metafísi-
cas e das ideologias da classe operária realmente existentes que
são limitadas pelos sindicatos, isto é, pelas exigências laborais e
industriais. Colocando a questão de forma sucinta, o Marxismo
alcança a cientificidade por intermédio da crítica, mas as suas
descobertas teóricas não são críticas na substância. Como isto
é possível é explicado claramente por Della Volpe, para quem a
ciência é constituída por uma série de negações, particularmen-
te do racionalismo, da teleologia e do dogmatismo. Contra o
racionalismo, propõe substituir “uma forma de raciocínio” que
implica a experiência e a observação mas que é, em última análi-
se, formada por uma lógica materialista. Regressarei a este pro-
blema no capítulo 7; mas antes de o fazer, pretendo examinar o
trabalho daquele que será, porventura, o único exemplo de uma
crítica marxista da ciência que se baseia sobretudo nas próprias
categorias de Marx, em lugar de adotar conceitos weberianos,
como a Escola de Frankfurt se sentiu obrigada a fazer. Refiro-me
ao trabalho de Alfred Sohn-Rethel, para cujo Intellectual and Ma-
nual Labor me volto agora.
A tese fundamental de Sohn-Rethel é a de que a análise for-
mal da mercadoria detém a chave não apenas para a crítica da
economia política, mas também para a explicação histórica do
modo conceptual abstrato de pensar e da divisão entre trabalho
intelectual e manual que com ele surgiu. O conhecimento deri-
va de relações sociais específicas, as abstrações em torno da
|| 134

mercadoria e da troca. Para Sohn-Rethel (1978, p. 18), estas abs-


trações são processos reais, não modos de pensamento: “Um su-
cedâneo da consciência do ser social pressupõe um processo de
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

abstração que é parte deste ser”. Por conseguinte, as relações


económicas, principalmente a produção e troca de mercadorias,
são a origem das categorias científicas características: a natureza
torna-se “mundo do objeto” despojado do sujeito; é configurada
como pura quantidade tal como a mercadoria, que apenas tem
valor quantitativo, quando privada das suas qualidades especí-
ficas. A teoria não epistemológica de Sohn-Rethel pressupõe a
constituição social do conhecimento mas confere a este conceito
tanto uma especificidade temporal como espacial:

Pela sua fisicalidade em termos de ação espácio-temporal, a abstração da


fisicalidade natural, que a troca reforça através da sua separação do uso,
estabelece-se como uma fisicalidade no abstrato ou uma espécie de natu-
reza abstrata. Está privada de toda a realidade sensorial e admite apenas a
diferenciação quantitativa… Esta abstração real é o arsenal ao qual o tra-
balho intelectual ao longo das eras da troca de mercadorias vai buscar as
suas bases conceptuais. Foi a matriz histórica da filosofia grega e ainda é a
matriz para os paradigmas conceptuais da ciência tal como a conhecemos.
(idem, p. 57)

Mudanças básicas que ocorrem nestes paradigmas indicam


mudanças substanciais nesta matriz, e vice-versa, porque as
formas de cognição socialmente necessárias em qualquer época
não têm qualquer fonte a partir da qual possam originar outra
coisa que não o funcionalismo dominante da síntese social. A se-
paração da cabeça e da mão que tem origem na Grécia pode ser
detetada, segundo Sohn-Rethel, no desenvolvimento do dinheiro,
ele próprio uma síntese das abstrações em torno da mercadoria
e da troca:

O que define o cariz do trabalho intelectual na sua divisão autónoma de


todo o trabalho manual é o uso das formas-abstrações não empíricas que
não podem ser representadas por outra coisa que não os “puros conceitos”
não empiristas cuja base material é a abstração real, a troca de mercadorias.
Daí vem a categoria social do intelecto independente que é autodirigido e
“autoalienador” e possui a sua noção normativa de “lógica” sem referência
material, especialmente à abstração da troca, sendo que o dinheiro repre-
senta o valor. (Idem, p. 66)
|| 135
Sob este regime, o intelecto torna-se impermeável à forma-
ção social à qual obedece. Por conseguinte, a ciência enquanto
desenvolvimento adicional deste processo alienador imagina-se

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


governada por uma lógica interna que descobre as “categorias
básicas da natureza como mundo objeto em contraste antitético
com o próprio mundo social do homem” (idem, p. 72.). Sohn-Re-
thel insiste que estes conceitos “puros” derivam inicialmente de
abstrações do trabalho manual para o qual o tempo e o espaço
socialmente constituídos são a norma. Portanto, o tempo e o es-
paço abstratos, a causalidade, a matéria, o movimento abstrato,
isto é, a natureza que é o objeto da investigação científica, são
categorias de uma “segunda natureza”. A natureza não é senão
o produto desta abstração e isso é, em si mesmo, social. A lei
científica, que o intelecto “independente” imagina como uma
espécie de representação de um objeto não mediado, refere-se a
essa natureza social, particularmente à emergência da matemá-
tica como a fundação de toda a ciência.
Sohn-Rethel apresenta uma explicação histórica do desenvol-
vimento da ciência como dependente, mas não tanto da técnica,
embora se baseie no trabalho de Lynn White, que identifica a in-
venção do estribo e do arnês como tecnologias características
das relações sociais medievais.9 A ciência ultrapassa a sua depen-
dência da técnica e parece libertar-se do trabalho manual por
altura do postulado da natureza como máquina, no século XVII.
Daqui, a tecnologia desenvolve-se a partir da ciência, e a relação
histórica é invertida. A ciência galileica estabeleceu “uma divisão
clara entre cabeça e mão”, com o trabalho intelectual a assumir
o papel dominante nas suas relações mútuas. Depois de Galileu,
o conhecimento da matemática, que inicialmente extraiu as suas
categorias de atividades como a contabilidade imobiliária, o co-
mércio internacional (atividades comerciais do capital mercan-
til), bem como do modo de produção artesanal, parece indepen-
dente das suas origens. A matemática, que Sohn-Rethel define
como “a lógica do pensamento socializado”, é agora negada aos
artesãos cujo trabalho não tinha qualquer dependência histórica
de uma linguagem simbólica. No entanto, a produção social ba-
seada na maquinaria exige esta linguagem, que aparece como o
instrumento de controlo sobre a produção. Esta “distância entre
um contexto de pensamento e a ação humana” está ligada à
||

9 Comparar Sohn-Rethel (1978, p.106) com Lynn White (1962).


|| 136

dominação do trabalho pelo capital, o qual no século XIX perdeu


a posse e o controlo sobre todos os elementos de produção. Do
mesmo modo que o capital assume o controlo da produção, a
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ciência assume o controlo do objeto isolando-o das suas “influ-


ências ambientais não controladas”.
O trabalho manual é um dos elementos de produção “não
controlados” que a tecnologia tenta excluir ou marginalizar do
processo. Concomitantemente, Galileu faculta a base para ex-
cluir o sujeito da natureza, vista como uma influência ambiental
indesejada, ao propor a teoria da inércia, que, segundo Bertrand
Russell, “conduziu à possibilidade de se encarar o mundo físico
como um sistema despreocupadamente independente”.10
Que a teoria da ciência de Sohn-Rethel está basicamente em
dívida para com a teoria da reificação de Lukács é bastante óbvio
a partir da sua análise similar dos resultados da penetração no
mundo social da forma da mercadoria, bem como da divisão do
trabalho que dela advém. Porém a teoria vai mais além da que
está presente em History and Class Consciousness e da crítica da
ciência desenvolvida pela Escola de Frankfurt. O seu avanço con-
siste em tornar concreta a crítica quer através da explicação do
próprio conhecimento científico, quer dos seus pressupostos
materiais e intelectuais.
Todavia, tal como a Escola de Frankfurt, Sohn-Rethel (1978, p.
179) recua para uma defesa dos resultados da ciência bem como
dos seus métodos: “Sejamos bem claros: metodologicamente, a
física clássica não tem nada que ver com a exploração do traba-
lho por parte do capital. As suas descobertas são válidas inde-
pendentemente de quaisquer relações específicas de produção”.
Esta afirmação sustenta-se numa única suposição epistemológi-
ca: a de que as relações de intercâmbio e a verdadeira abstração
que elas incorporam “têm uma identificação substancial com os
elementos correspondentes da verdadeira natureza”.
Apesar de Sohn-Rethel reconhecer que a ciência foi subor-
dinada à tecnologia, que por sua vez “depende do poder con-
trolador do capital sobre a produção, a pouco e pouco corta a
natureza aos pedaços isolando os seus objetos de estudo do con-
texto em que ocorrem… o padrão da ciência exata ainda é o da
física clássica” (id. ib.), apesar de desenvolvimentos recentes na
ciência terem alterado os determinismos iniciais da lei natural.
||

10 Bertrand Russell, Human Knowledge, citado em Sohn-Rethel (1978, p. 130).


|| 137
Portanto, devemos concluir que, segundo Sohn-Rethel, ciência
é ideologia na medida em que imagina as suas práticas livres dos
pré-requisitos sociais, mas permanece válida, isto é, independen-

A Escola de Frankfurt: A Ciência e a Tecnologia Como Ideologia


te do contexto social que a produz, por causa da correspondên-
cia das suas fundações materiais com a natureza, mediada
(presumivelmente) pelo trabalho manual.
O afastamento de uma conceção crítica da natureza da des-
coberta científica e das leis daí deduzidas poderá estar ligado à
dificuldade que a teoria social da ciência encontrou para imaginar
uma alternativa à ciência que não reproduza o misticismo ou o
naturalismo romântico anticientífico. O facto de uma teoria rea-
lista do conhecimento ser recorrente no discurso de Sohn-Rethel
atesta a dificuldade de sustentar uma nova conceção crítica da
ciência e o seu desenvolvimento histórico na sequência da sua
hegemonia sobre o cânone do conhecimento construído norma-
tivamente, no qual a ciência física ocupa um lugar privilegiado.
Esta dificuldade demonstra que até a Teoria Crítica tem a sua
própria segunda natureza: a dúvida incómoda de que a teoria crí-
tica da ciência não é apenas a imagem espelhada do cientismo
marxista e dominante. Esta dúvida será recolocada nos Marxis-
mos pós-Escola de Frankfurt e estruturalistas da década de 1960.
Devido a estas leituras tanto do Marxismo como da hegemonia
intelectual da ciência e da tecnologia, já não se coloca a questão
de uma teoria crítica da ciência: a teoria tem de se tornar científi-
ca ou arriscar o esquecimento.

Referências Bibliográficas
Colletti, L. (). Marxism and Hegel. London: Verso Books.
Della Volpe, G. (1980). Logic as a Positive Science. London: New Left Books.
Hook, S. (1993). Towards an Understanding of Karl Marx. New York: John Day.
Horkheimer, M. (1947). Eclipse of Reason. New York: Oxford University Press.
Horkheimer, M. & Adorno, T. (1972). Dialectic of Enlightment. New York: Herder
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Lefebvre, H. (1968). Dialectical Materialism. London: Jonathan Cope.
Lévi-Strauss, C. (1969). Structural Anthropology. New York: Anchor Books.
Marcuse, H. (1964). One Dimensional Man. Boston: Beacon Press.
Marx, K. & Engels, F. (1964). The German Ideology. Moscow: Progress Publi-
shers.
Olson, M. (1965). The Logic of collective Action. New York: Schocken Books.
Ortega y Gasset, J. (1956). The Dehumanization of Art and Other Writings on Art
and Culture. New York: Doubleday Anchor Books.
|| 138
Sohn-Rethel, A. (1978). Intellectual and Manuel Labor. London: Macmillan.
White, L. (1962). Medieval Technology and Social Change. New York: Oxford Uni-
versity Press.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Willis, P. (1981). Learning to Labor: How Working Class Kids Get Working Class
Jobs. New York: Columbia University Press.
|| 139
Cap. 6

Problemas filosóficos da tecnologia


Problemas filosóficos da tecnolo-
gia

Miguel Ángel Quintanilla


Universidade de Salamanca

A técnica sempre mereceu a atenção dos filósofos nas suas


reflexões sobre a ação humana; contudo, apenas nas últimas
décadas se foi configurando uma filosofia da técnica como uma
especialidade académica de crescente importância1. Tradicio-
nalmente, a relevância filosófica da técnica era circunscrita ao
problema de como podemos transformar a realidade, questão
aparentemente secundária se a compararmos com outros pro-
blemas filosoficamente mais interessantes e que só recentemen-
te mereceram um tratamento sistemático (Kotarbinsky, 1965).
Porém, nos nossos dias, a técnica afeta todos os aspetos da vida
humana e os mais genuínos problemas de toda a história da filo-
sofia (como é a realidade, como a conhecemos, que devemos
||

1 Para uma visão panorâmica das investigações em filosofia sobre a técnica das últimas
três décadas, ver Skolimowski (1968) y Rapp (1982). Mitcham e Mackey (1973) propor-
cionam a informação bibliográfica mais completa, à data da sua publicação, e a revista
Technology and Culture oferece revisões atualizadas dos contributos mais recentes neste
campo.
|| 140

fazer) estão condicionados pela influência da técnica sobre a


configuração de realidade em que vivemos, sobre a ciência e so-
bre a moral. Tal se deve às transformações que a técnica sofreu
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ao longo da história e à transcendência que chegou a alcançar


nas sociedades atuais.

Da técnica à tecnologia industrial


Ferramentas, máquinas e planos racionais de ação existem
nas sociedades humanas há milénios. Os antropólogos usam
como critério de identificação de fósseis pertencente à espécie
humana a capacidade de fabricar e utilizar instrumentos. O homo
sapiens identifica-se como homo faber. A história das civilizações
é a história das suas técnicas e, nas mais antigas, encontramos
a presença de grandes realizações técnicas relacionadas com a
agricultura, a caça, a pecuária, os transportes, a guerra e o con-
trolo da organização social. Os períodos da pré-história identifi-
cam-se por grandes transformações técnicas relacionadas com
a fundição e ligação de metais e o surgimento das técnicas de
escrita é usado, convencionalmente, para assinalar o início da his-
tória propriamente dita. Desde antigamente existiram máquinas
no sentido que hoje damos ao termo, enquanto dispositivos ca-
pazes de transformar uma força de determinada natureza para
realizar um trabalho útil de caráter mecânico2. Inclusivé, existi-
ram desde a antiguidade tratados teóricos acerca da construção
e funcionamento de dispositivos mecânicos (aquilo a que hoje
chamaríamos teorias tecnológicas) (Medina, 1985). Portanto,
não só as técnicas primitivas supostamente relacionadas com a
sobrevivência mas, também, as mais completas técnicas artesa-
nais e teorias abstratas de caráter tecnológico constituem com-
ponentes muito primitivos da experiência e culturas humanas.
Contudo, o que hoje entendemos por tecnologia, bem como
o papel que a técnica desempenha nas sociedades dos nossos
dias, é algo radicalmente diferente do que era suposto em época
anteriores. A origem da tecnologia atual é preciso procurá-la na
||

2 A definição de máquina que oferece Reuleaux (1875) converteu-se em clássica: “Uma


máquina é uma combinação de partes sólidas dispostas de tal forma que por meio delas
se possa fazer com que as forças naturais produzam movimentos de um determinado
tipo”.
|| 141
Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX (Braun, 1986). Nesta
época produziram-se as mudanças mais decisivas para explicar
a posterior evolução da técnica: o sistema de produção de bens

Problemas filosóficos da tecnologia


materiais viu-se alterado pela substituição generalizada das fer-
ramentas artesanais por máquinas, a introdução de uma nova
fonte de energia utilizável para o trabalho mecânico, a máquina a
vapor que permitiu tornar independente o processo de produção
industrial da disponibilidade de fontes de energia tradicionais (o
vento, a água, a força muscular) e a organização da produção em
fábricas ou manufaturas (Forbes, 1958, p. 150).
Na sua origem, o trabalho nas manufaturas inglesas era do
mesmo tipo que o trabalho artesanal que desde há centenas de
anos se havia desenvolvido em pequenas oficinas ou em unida-
des de produção de caráter familiar. Deste modo, o princípio da
revolução industrial não implicou uma inovação radical de cará-
ter tecnológico, salvo no aspeto exclusivo da organização social
do trabalho. Porém, constituiu uma mudança de perspetiva na
“lógica” do sistema produtivo, se assim nos é permitido dizer,
que teve consequências decisivas para o desenvolvimento de no-
vas técnicas, novos instrumentos e novas máquinas; sobretudo
para acelerar o ritmo da mudança tecnológica e para generalizar
a incidência das inovações técnicas em toda a organização social.
A nova “lógica da produção” reside na separação do capital
do trabalho, assim como na consequente submissão de todo o
processo produtivo ao princípio da maximização do benefício
num mercado competitivo. A disponibilidade do capital e a au-
tonomia do capitalista para o investir tornam possível a incorpo-
ração na produção de inovações técnicas cuja origem pode ter
sido completamente alheia ao processo produtivo. E o facto de
que tais inovações consigam um aumento da produtividade do
trabalho faz com que, no sistema capitalista, a sua incorporação
na produção seja, na prática, necessária. Foi assim que o desen-
volvimento da mineração e das manufaturas têxteis propiciou
a incorporação de máquinas movidas por rodas hidráulicas no
processo produtivo (bombas, teares, etc.) e rapidamente tornou
necessário dispor de fontes de energia baratas e facilmente uti-
lizáveis em qualquer lugar. Surgiu assim uma procura potencial
de máquinas como a de Newcomen (1712) capazes de utilizar o
calor e a pressão atmosférica para produzir energia mecânica
útil para um determinado propósito (no princípio, para extrair ou
elevar água das minas para fazer funcionar a roda hidráulica dos
|| 142

teares), o que, por sua vez, concedeu uma certa vantagem com-
petitiva às fábricas que dela dispunham e uma possível linha de
desenvolvimento de novos dispositivos capazes de melhorar a
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

sua eficiência e, por conseguinte, a sua competitividade.


Uma inovação artesanal num sistema produtivo pré-indus-
trial podia dar uma certa vantagem ao seu detentor, porém, a
sua existência estava vinculada ao seu utilizador e o processo da
sua difusão era semelhante ao da própria tradição artesanal no
qual tinha lugar a inovação: transmitia-se de pais para filhos ou
de mestres para aprendizes, de uma forma lenta e às vezes em
âmbitos de difusão geográfica bastante localizados. No sistema
de produção industrial capitalista, a tecnologia como fator de
produção é assunto do capital e este rege-se pela lei do máximo
benefício. De tal forma que o aumento de eficiência de uma má-
quina se traduz imediatamente em aumento de produtividade e,
assim, aquilo que antes podia ser visto apenas como uma realiza-
ção esporádica, uma curiosidade intelectual ou um instrumento
científico que dava vantagens ao seu detentor, numa determina-
da conjuntura (as máquinas de guerra, por exemplo), converte-
se agora num fator decisivo para a dinamização de todo o siste-
ma produtivo e, com ele, de toda a vida social.
Portanto, com a revolução industrial e o capitalismo, a mu-
dança tecnológica vê-se submetida a uma pressão que acelera
o seu ritmo e aumenta a sua difusão de forma a parecer impará-
vel. Com esta entramos numa nova era da civilização e com ela
surge uma nova dimensão essencial da tecnologia que, apesar
das linhas de continuidade e analogias, representa uma forte ru-
tura com a atividade técnica pré-industrial. Não é pois por acaso
que as primeiras reflexões filosóficas sobre a técnica sejam de
pensadores que, como Marx, demonstraram preocupação pelos
grandes problemas sociais decorrentes da revolução industrial
capitalista3.
Não obstante, a importância da técnica no sistema produtivo
do capitalismo não justificaria por si só o crescente interesse filo-
sófico pelo fenómeno técnico. Se fosse o caso, explicaria um tipo
de reflexão especificamente orientada para problemas morais,
||

3 As ideias, hoje bastante difundidas, a respeito da função das máquinas e, em geral, da


ciência e da tecnologia, na produção industrial e os seus efeitos sobre as relações sociais,
estão expressas com clarividência impressionante nos rascunhos do O Capital que Marx
preparou entre 1857 e 1858: Marx (1983), vol II, pp. 216 e ss.
|| 143
políticos e sociais. Mas há outras características da tecnologia
industrial que justificam um interesse filosófico mais geral.
No decurso do século XX a tecnologia industrial evoluiu numa

Problemas filosóficos da tecnologia


relação cada vez mais estreita com o desenvolvimento do conhe-
cimento científico. Isto teve consequências importantes. Por um
lado, a ciência instalou-se, até mesmo institucionalmente, nas
empresas de produção industrial, e tal fez com que a organiza-
ção da investigação mudasse profundamente e, de certo modo,
também a natureza do conhecimento científico e dos problemas
filosóficos que o seu desenvolvimento levanta. Por outro lado, a
própria inovação técnica adquire um papel motor da atividade
económica na medida em que, cada vez mais, se produzem pro-
cessos de inovação industrial empurrados pela inovação técnica,
em vez de processos de inovação técnica reclamados por uma
necessidade de renovação industrial. Ao estarem ambas ligadas,
inovação tecnológica e investigação científica, aparece no pró-
prio seio do sistema produtivo um fator de dinamização inter-
na que se impõe mesmo às exigências “naturais” do mercado,
abrindo possibilidades de um aumento da competitividade para
além do exigido por uma dada situação.
Este fator de industrialização da ciência e da técnica é decisivo
para entender as dimensões que nas sociedades dos nossos dias
adquire o fenómeno técnico. Não se trata apenas de ao seu redor
se colocarem problemas de ordem moral, económica e política
mas, também, de surgirem problemas relativos ao nosso conhe-
cimento do mundo e à forma como as exigências técnicas con-
dicionam, potenciam ou atrasam os nossos empreendimentos
intelectuais mais caracteristicamente humanos.
Mas há mais. Foi aqui dito que no meio físico de uma socieda-
de industrialmente avançada nada mais existe de natural: a vida
quotidiana dos indivíduos desenvolve-se rodeada de artefactos,
a paisagem é o produto de desenhos urbanísticos e até os par-
ques naturais são conservados graças a processos dispendiosos
de intervenção tecnológica nos quais cooperam biólogos e en-
genheiros. Este é também e sem dúvida, um dos aspetos mais
relevantes da sociedade que construímos a partir da revolução
industrial. Constitui, também, um dado significativo para expli-
car o papel crescentemente central da técnica como objeto de
reflexão filosófica: não só o nosso conhecimento da realidade
ou a nossa forma de nos comportarmos perante esta mas, tam-
bém, a própria substância da realidade que nos engloba, a qual
|| 144

é intrinsecamente tecnológica ou artificial. A teoria filosófica da


realidade já não pode ignorar a teoria do artificial.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

As novas tecnologias
A revolução industrial do século passado abriu as portas a uma
nova etapa da civilização. A partir de então a tecnologia invadiu
todos os recantos da vida humana. Contudo, para apreciar o que
isto significa na atualidade é necessário abandonar a associação
do conceito tecnologia com o de produção industrial de artefac-
tos mecânicos. Os avanços científicos do século XX e as suas re-
percussões no desenho e desenvolvimento de novas tecnologias
fizeram com que o panorama da tecnologia atual mudasse por
completo nos últimos anos. Por um lado, originaram novas fon-
tes de energia que alteraram por completo o repertório de fór-
mulas disponíveis para o desenvolvimento de energias mecâni-
cas. A enorme potencialidade da energia nuclear faz empalidecer
qualquer sonho que vise as possibilidades de transformar a reali-
dade. A síntese de novos materiais com propriedades insuspeitas
(semicondutores, supercondutores, cerâmicas) altera por com-
pleto o elenco dos componentes disponíveis para desenvolver
novos artefactos. A tecnologia laser permite utilizar a luz como
fonte de energia não só extraordinariamente potente, se dese-
jarmos, mas também imensamente versátil e adaptável tanto a
trabalhos de tipo mecânico como a funções de comunicação ou
de processamento de informação. A biotecnologia permite, pela
primeira vez, a síntese de novos organismos vivos com caracte-
rísticas predefinidas e seguindo processos inteiramente artificiais
(mais rápidos e possivelmente mais eficientes que as velhas téc-
nicas de seleção genérica). A eletrónica digital, a informática e as
tecnologias das telecomunicações supõem, por último, o apareci-
mento de um novo âmbito de desenvolvimento tecnológico que
transcende o setor tradicional da produção de bens materiais para
invadir o terreno do processamento, armazenamento, produção e
transmissão de informação (Castells et al, 1986)4.
||

4 A documentação atual acerca das repercussões sociais das novas tecnologias e em


especial das tecnologias da informação, é muito abundante e heterogénea: a UNESCO
(1982) continua a ter valor informativo e atual sobre as repercussões sociais da revolução
científica e tecnológica. No campo concreto da informática, ver Kahlbhen et al (1983),
Castilla et al (1986), tal como o relato da OIT (1987), centrado principalmente nas reper-
cussões da informática sobre o emprego.
|| 145
Este conglomerado de novas tecnologias com a sua impla-
cável invasão de todos os âmbitos da vida humana supõe uma
configuração da técnica completamente nova na história da hu-

Problemas filosóficos da tecnologia


manidade. Nunca como até agora tinha a sociedade estado no
seu conjunto tão articulada em torno da atividade tecnológica
e nunca a tecnologia tinha tido repercussões tão fortes sobre a
estrutura social e, em especial, sobre a estrutura cultural de uma
sociedade.

Tecnologia e cultura
Podemos entender por cultura o conjunto de ideias, valores
e padrões de comportamento que caracterizam uma socieda-
de. Neste sentido, a interação da técnica e da cultura tem sido
constante ao longo da história da humanidade (Margolis, 1978):
as técnicas aparecem, desenvolvem-se num determinado âmbi-
to cultural e contribuem, por sua vez, para configurar a cultura
da sociedade. O que é específico da tecnologia atual é o tipo de
cultura que origina e a intensidade com que influencia a mudança
cultural.
Existem, em concreto, dois tipos de valores culturais reque-
ridos pela tecnologia atual: por um lado, o conhecimento cientí-
fico e, por outro, determinado tipo de valores morais de caráter
racional5.
As relações entre técnica e ciência são complexas6 e teremos
ocasião de voltar a este tipo de tema ao longo do livro. Por agora,
assinalemos apenas duas notas, ambas igualmente relevantes: 1)
o desenvolvimento das tecnologias atuais depende inteiramente
do desenvolvimento do conhecimento científico; 2) o avanço do
conhecimento científico está profundamente condicionado pelo
desenvolvimento tecnológico. Como ocorre nas relações entre
produtores e consumidores, a tecnologia é a principal reivindica-
dora de conhecimento científico e, nessa medida, condiciona a
oferta científica (a direção da investigação científica).
Sucede algo parecido relativamente aos valores morais
(Boulding, 1977; Durbin, 1972). Existe um esquema simplificado
||

5 Esta secção e a seguinte são adaptações de trabalhos anteriores do autor: Quintanilla,


1984 e 1986.
6 Veja-se a discussão de Rabi (1965) e Brooks (1965).
|| 146

das relações entre tecnologia e valores morais segundo o qual a


técnica é neutra e é a sociedade, ou os indivíduos, quem utiliza
uma técnica ou outra ao serviço de certos objetivos cuja valora-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ção moral é alheia a essa técnica. Esta é só metade da verdade7. A


realidade é algo diferente. Em primeiro lugar, porque o desenvol-
vimento da técnica exige a vigência de determinados valores na
sociedade como o valor da eficácia, da racionalidade económica,
o ideal da coerência nos sistemas de preferências e, em geral,
alguma forma de moralidade racionalmente aceitável. Por outro
lado, o próprio processo de inovação tecnológica, ao ampliar o
campo do possível e do realizável, altera os conteúdos dos sis-
temas de preferências, exige novos valores e cristaliza-os. Um
exemplo notável, dadas as suas repercussões sociais, é o desen-
volvimento das técnicas de controlo da natalidade, que acabou
com alguns dos preconceitos morais mais arreigados na nossa
sociedade, ou as tecnologias de fecundação in vitro que obrigam
a alterar os códigos jurídicos para neles incluir situações inconce-
bíveis há apenas uns anos atrás e para as quais não existem ain-
da na sociedade padrões de valoração moral8. Porém, o mesmo
ocorre em relação às tecnologias de caráter físico, ecológico ou
social: quais são os valores que devem guiar-nos no que respeita
a situações de guerra quando o potencial tecnológico de destrui-
ção é total à escala planetária? De que forma é afetada a nossa
apreciação da natureza como objeto de domínio humano, uma
vez que a capacidade de domínio (e de destruição) chega aos li-
mites que nos permitem as tecnologias atuais (Doménech, 1986)?
Como se vê alterada a nossa avaliação das decisões políticas pe-
rante a evidência de que existem soluções técnicas bastante bem
definidas para muitos dos problemas gerados pela convivência
social?
Definitivamente, a tecnologia atual tem efeitos decisivos nos
aspetos mais peculiares da nossa cultura: os nossos sistemas de
conhecimento e os nossos sistemas de valores. E ainda mais, tal
não se verifica de forma esporádica e acidental, mas de forma
sistemática, contínua, intensa e geral.
||

7 Porém é uma componente importante do “mito da ciência” (Quintanilla, 1976a), de


ascendência positivista.
8 O problema tem sido enfrentado nos últimos anos com diferentes oscilações. Em Espa-
nha a regulação legal de algumas das atuais possibilidades da tecnologia biológica acaba
de ser aprovada pelo Parlamento. O projeto de lei apoiou-se num relatório prévio elabo-
rado na legislatura anterior: Palacios, 1987.
|| 147
No entanto, existe a ideia de que o tipo de cultura que o de-
senvolvimento tecnológico promove é desumanizante e aliena-
dora. Muitos filósofos pensam, em concreto, que a tecnologia

Problemas filosóficos da tecnologia


atual nos leva para uma situação cultural em que a única forma
de expressão da liberdade e dos valores e ideias mais caracte-
risticamente humanas é a que se pode manifestar através das
diversas formas da contracultura (Marcuse, 1968). Este temor,
presente em muitas reflexões sobre a técnica, tem a suas raízes
numa ideia mais profunda, porém errada, acerca do poder da téc-
nica e acerca da natureza do conhecimento científico promovido
pela inovação técnica.
Com efeito, está muito disseminada a ideia de que a técnica mo-
derna é omnipotente, que não tem limites, da mesma maneira que se
pensa que o conhecimento científico é definitivo e infalível. Porém,
ambas as ideias são completamente falsas (Quintanilla, 1980). Em
primeiro lugar, os sistemas tecnológicos, como as próprias teorias
científicas em que se apoia o que promovem, são sistemas em de-
senvolvimento, nunca estão completos ou, dito de outra forma,
nunca é possível controlar completamente todas as variáveis que
intervêm no sistema. Em segundo lugar, graças precisamente ao
desenvolvimento dos sistemas tecnológicos e do conhecimento
científico, aprendemos que as consequências de uma ação são
múltiplas e que a avaliação de uma tecnologia é uma questão com-
plexa que só à luz de novos conhecimentos e desenvolvimentos
tecnológicos podemos ir descobrindo pouco a pouco. Finalmente,
toda a tecnologia má acaba por se revelar como uma má tecnolo-
gia e qualquer problema surgido como resultado de uma tecnolo-
gia resolve-se desenvolvendo uma tecnologia melhor.
A lógica do desenvolvimento tecnológico impõe de facto uma
ampliação contínua da perspetiva até ao ponto em que cada vez
existem menos problemas tecnológicos limitados e, cada vez
mais, qualquer problema tecnológico adquire um caráter glo-
bal. Estas exigência internas do desenvolvimento tecnológico
têm também repercussões culturais importantes. Servem, por
exemplo, para promover investigações interdisciplinares ou para
relativizar e contextualizar os valores sociais, para desmantelar
os dogmas e os deveres morais absolutos, para desacreditar as
decisões irracionais e para nos prevenirmos contra o iniciar ações
com grandes repercussões sociais sem estarmos dotados de siste-
mas de controlo e acompanhamento. Tudo isto supõe, de facto,
grandes transformações culturais, porém de um tipo que não
|| 148

encontro razões para que se tenha de considerá-las contrárias à


dignidade do homem. Pelo contrário, parece-me que as exigên-
cias culturais assim entendidas estão na mesma linha do ideal de
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

liberdade e racionalidade inerente à melhor tradição da cultura


ocidental.
Outro tanto pode dizer-se do tipo de conhecimento científico
exigido pelo desenvolvimento tecnológico. É certo que o valor
fundamental do conhecimento técnico não é a verdade mas, sim,
a utilidade e, neste sentido, subordinar a ciência à técnica poderia
levar-nos a uma estagnação da tradição científica culturalmente
mais apreciada (Bunge, 1983; Skolimowski, 1970). Contudo, ainda
que a técnica nem sempre necessite de conhecimentos profun-
dos e precisos, cada vez mais necessita da ciência em todas as
suas dimensões, como um caldo de cultivo para a inovação. Se
tivesse de resumir numa só expressão o valor cultural da técnica
dos nossos dias, diria que, acima de tudo, a tecnologia promove
todos os valores relacionados com a inovação racional.

O ócio e a técnica
Até agora falamos de tecnologias industriais, da técnica como
um fator de produção, como um meio de transformação da rea-
lidade material e de construção de artefactos, de entidades no-
vas, de caráter também ambiental. A técnica, por conseguinte,
como algo pertencente ao âmbito do “negócio”, da produção
material, cuja influência sobre o âmbito do espiritual, da criação
desinteressada, da cultura ou do “ócio”, é levada a cabo atra-
vés da promoção do conhecimento e da renovação dos valores
sociais. Porém, uma das características das novas tecnologias
da informação e comunicação é precisamente a sua capacidade
para subverter o próprio sentido da distinção entre produção e
cultura. Este é pois um fenómeno que uma filosofia da técnica à
altura do nosso tempo não pode ignorar.
De acordo com os teóricos da revolução científico-tecnoló-
gica (Richta, 1969; Gvishiani, 1982), uma das contribuições mais
importantes da tecnologia moderna para a sociedade consiste
precisamente na libertação de tempo de trabalho produtivo e au-
mento do tempo de ócio9. Nessa medida, cabe supor e esperar
||

9 A ideia encontra-se nos rascunhos de Marx (1972, pág. 229), que via nela uma contra-
dição insuperável do regime capitalista de produção. Na realidade, é preciso dizer que
|| 149
que a tecnologia contribua também para o desenvolvimento e
difusão da cultura.
Não obstante, a coisa não para por aqui. O que é específico

Problemas filosóficos da tecnologia


das novas tecnologias e em especial das tecnologias da informa-
ção é que, por um lado, tenham invadido o espaço do ócio e, por
outro, que tenham convertido o ócio em algo produtivo. Se me
é permitido o jogo de palavras: a técnica transformou o negócio
em ócio e o ócio em negócio.
Esta subversão das relações entre a produção e a cultura
tem os seus antecedentes também na revolução industrial. Ati-
vidades tipicamente culturais, não produtivas, como a atividade
da imaginação estética, o desenho de modelos, a investigação
científica, há muito tempo foram incorporadas na produção. Por
outro lado, também o desenvolvimento dos instrumentos técni-
cos transformou algumas atividades produtivas em atividades de
ócio, em passatempos ou hobbies.
Porém, existe a este respeito uma mudança mais profunda
que apenas se materializou com a difusão das tecnologias da
informação. A informação é, de certo modo, um produto “es-
piritual”, imaterial; pelo menos no sentido de que uma mesma
informação pode ser dada em suportes diferentes. Até muito re-
centemente, as tecnologias relacionadas com a informação não
tinham outro objetivo que o de proporcionar diferentes suportes
materiais para transmitir, armazenar ou reproduzir a informação.
Naturalmente, estas tecnologias “clássicas” já comportam uma
influência decisiva na configuração dessa mesma informação
através de mecanismos como os expostos na secção anterior: ao
abrir novas possibilidades expressivas e comunicativas promo-
vem novos géneros, estilos e tipos de informação. O cinema, o
videoclipe, a banda desenhada, são géneros de expressão artísti-
ca promovidos por inovações técnicas. Contudo, as novas tecno-
logias da informação baseadas na informática fazem mais do que
isso. Em primeiro lugar, não se limitam a armazenar, transmitir
ou reproduzir informação. Para além de tudo isso processam a
informação. Em segundo lugar, o processamento de informação
permite ao utilizador das tecnologias informáticas criar novos
tipos de informação. Por último, a tecnologia informática gera
||

o particular da tecnologia moderna é a magnitude e intensidade das suas contribuições


para a libertação do tempo de trabalho necessário: algo que, de um modo ou outro, ca-
racteriza todas as técnicas como muito bem soube ressalvar Ortega (1939).
|| 150

nova informação. Estas afirmações podem parecer exageradas e


requerem alguma precisão.
Pensemos na natureza de um programa de compu–tador.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Fisicamente, não é mais do que um conjunto de marcas mag-


néticas, elétricas ou físicas depositadas num suporte adequa-
do (uma cassete, um disco magnético ou ótico ou um circui-
to eletrónico). Culturalmente, é uma entidade conceptual,
concretamente um algoritmo, uma “entidade” linguística ou
matemática. Diz-se, desde logo, que, enquanto objeto cultu-
ral, o programa é sempre um produto da mente humana, não
do artefacto tecnológico ao que se aplica. O que está certo.
Porém, existe algo mais: em primeiro lugar, com os progra-
mas de computador podem realizar-se operações intelectuais
que a mente humana por si só não consegue fazer. Nenhum
humano é capaz de realizar num tempo adequado todos os
cálculos que é preciso fazer para realizar previsões meteoro-
lógicas a partir dos milhares de dados proporcionados pelo
sistema mundial de observação atmosférica. Ninguém havia
sido capaz, sem utilizar computadores, de demonstrar o teo-
rema matemático das quatro cores e ninguém poderia, antes
do surgimento dos computadores, fazer o tipo de composi-
ções musicais ou pictóricas que são hoje possíveis. Poderia
dizer-se que nenhuma de todas estas novas possibilidades é
realmente extraordinária: o computador seria simplesmente
um novo instrumento que, tal como o microscópio, amplia as
capacidades humanas (Bunge, 1985, pp. 227 ss.), não as subs-
titui. Já seria por si só suficientemente extraordinário que,
neste caso, a ampliação da capacidade humana se referisse
diretamente à capacidade intelectual. Tal como na produção
de artefactos industriais, nos quais vemos cada vez mais a im-
pressão da máquina e menos a mão do homem, também na
tecnologia informática começam a aparecer produtos intelec-
tuais sem sinais aparentes da inteligência humana. Mas além
disso, o próprio processo de aprendizagem da programação e
a própria tarefa de modificar, alterar ou produzir programas
novos são, em princípio, redutíveis a tarefas de processamen-
to de informação: um programa gerado por computador, do
mesmo modo que um poema ou um quadro, é uma entidade
cultural estritamente nova em cuja origem está desde logo a
inteligência humana mas cuja configuração particular não se
|| 151
pode dizer que seja um produto intencional do programador.
São, de certo modo, produtos criativos da máquina10.
De todos estes novos produtos informáticos, os mais relevan-

Problemas filosóficos da tecnologia


tes, do ponto de vista filosófico, são os próprios programas de
computador11, essas ideias em forma de algoritmos capazes de
inverter, por sua vez, o processo de produção.
A tecnologia informática implica também uma alteração radi-
cal sobre a forma de integrar a atividade intelectual ou a cultura
no sistema produtivo. A tecnologia pré-informática tornou pos-
sível a separação entre trabalho físico e trabalho intelectual e a
incorporação desta na produção e nas tarefas de controlo, dese-
nho de produtos, de máquinas, etc. A novidade com a tecnologia
informática reside em que estas tarefas intelectuais se podem
incorporar na própria atividade das máquinas. O que diferencia
um robô de uma máquina automática é o facto de as funções
de controlo do robô serem independentes da configuração me-
cânica e isto torna possível a realização de tarefas múltiplas em
função das exigências do meio, ou seja – e entenda-se como se
entender o sentido da expressão –, torna possível o comporta-
mento “inteligente” das máquinas. Em última análise um robô
não é nada mais e nada menos do que um dispositivo técnico que
controla o uso de energia para transformar a realidade através
de uma ideia, ou seja, de um programa.
||

10 Podemos definir a criatividade de forma que, por definição, as máquinas não possam
ser criativas. Por exemplo, se só considerarmos criativa uma tarefa livremente empreen-
dida por um sujeito. As máquinas não podem criar nada; na realidade não podem fazer
nada para que não estejam programadas. Mas pode programar-se uma máquina para que
crie coisas novas: as estruturas gráficas geradas por programas de computador baseadas
em conjuntos de Mandelbrot podem ser vendidas como obras de arte.
11 Na atualidade a autoprogramação de computadores constitui mais um postulado teó-
rico do que uma realidade. Na prática o que resulta rentável é a programação de compu-
tadores assistida por computador. Porém, não existe nenhum impedimento lógico a que
um computador possa autoprogramar-se. Para construir um programa de computador há
que fazer duas coisas: fixar o objetivo do programa (o que tem que realizar) e escrever a
sequência de operações que conduzirão a esse objetivo. A primeira parte é característica
da atividade intencional mas podemos programar um computador para que tome deci-
sões sobre os objetivos que convém perseguir em determinadas circunstâncias. A segun-
da parte reduz-se a um processo de manipulação e ordenação de fórmulas para o qual
os computadores digitais estão especialmente dotados. De facto, a maneira pela qual
um sistema pericial de inteligência artificial soluciona um problema novo constitui um
exemplo de autoprogramação: perante uma situação, o sistema “decide” que objetivo é
mais conveniente perseguir e constrói uma sequência de operações (um programa) para
o conseguir (Cuena, 1985). É claro que o sistema está programado para fazer programas
mas não é por isso que os programas que cria são menos originais.
|| 152

Mitos tecnológicos
Geralmente, a tecnologia atual gera, quer no filósofo quer no
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

homem da rua, mais desassossego do que complacência. O desas-


sossego traduz-se vividamente em alguns dos mitos tecnológicos
da nossa época: como o mito das máquinas pensantes, ou o da
rebelião das máquinas, ou seja, dos robôs (Quintanilla, 1986, pp.
68-74). Uma das razões para promover a reflexão filosófica sobre
a técnica é a necessidade de destruir os preconceitos irracionais
que estão subjacentes a estes mitos, entre outros a ideia de que
os padrões da racionalidade tecnológica são incompatíveis com os
interesses humanos, a de que o poder da tecnologia é absoluto e
a de que o desenvolvimento tecnológico conduz inevitavelmen-
te à perda da liberdade e, portanto, é intrinsecamente perverso.
O mito das máquinas pensantes não consiste em supor que pos-
sa haver máquinas capazes de realizar tarefas intelectuais carac-
terísticas do pensamento humano mas, sim, em interpretar essa
realidade como se ela significasse a suplantação do pensamento
humano pelo “pensamento das máquinas”. Paradoxalmente, uma
das consequências deste mito é da reivindicação de formas de
pensamento irracional como as unicamente merecedoras de va-
lor humano: já que as máquinas podem pensar racionalmente, e
supostamente melhor que nós mesmos, o único pensamento que
merece o qualificativo humano será o pensamento irracional.
Na realidade as máquinas pensam, se entendermos, como Tu-
ring no seu famoso artigo (Turing, 1950), que o pensamento é a
condição para o comportamento inteligente. Porém, a sua capa-
cidade para suplantar o pensamento humano não é maior que a
capacidade do homem para suplantar a realidade da qual se ocu-
pa nos seus pensamentos. Uma máquina inteligente é um mode-
lo de uma parte da inteligência humana e o comportamento in-
teligente de uma máquina é uma simulação do comportamento
inteligente de alguns humanos. A resposta afirmativa à pergunta
de Turing baseia-se em dois pressupostos muito plausíveis: 1) que
todo o processo intelectual humano é suscetível de formalização;
2) que qualquer processo adequadamente formalizado se pode
reproduzir (simular) mediante um programa de computador. É
precisamente graças a isto que é possível construir modelos de
processos intelectuais e simular estes processos num computa-
dor programável. Contudo, o peculiar destes modelos é que, na
medida em que o que nos interessa num processo intelectual é
|| 153
justamente os seus aspetos formais (o que nos interessa numa
inferência dedutiva é que obtenha conclusões verdadeiras a
partir de premissas verdadeiras e não as reações químicas que

Problemas filosóficos da tecnologia


se produzem nos neurónios de quem as executa), a simulação do
processo é equivalente à sua realização. Porém, sabemos que ne-
nhum modelo formal pode esgotar (nem suplantar) a realidade
e sabemos, também, que nenhum sistema formal pode modelar
todos os aspetos formalizáveis do pensamento (teorema da
incompletude de Godel). Ou seja, as máquinas podem pensar
mas não podem suplantar o pensamento humano. Existe, contu-
do, uma forma de facilitar as coisas para que no final pareça que
assim é: que nós humanos entreguemos nas mãos das máquinas
o pensamento racional e nos dediquemos apenas a cultivar a
racionalidade (Weizenbaum, 1976).
O mito da rebelião das máquinas é a versão atualizada do
aprendiz de feiticeiro e, como no caso, tem fácil solução: basta
vigiar as consequências das nossas ações para evitar que desen-
cadeiem processos irreversíveis que não possamos controlar.
A particularidade deste mito atual não se deve à ideia de que as
máquinas ou robôs possam atuar por sua própria conta mas, sim,
à ideia de que nos podem dominar (podemos ser controlados
por máquinas, pela tecnologia, não no sentido de que nos impe-
çam de fazer o que queremos mas no sentido em que consigam
determinar o que queremos fazer: o poder da tecnologia da co-
municação!)12. Reúnem-se neste mito vários preconceitos atávi-
cos: a existência de poderes absolutos (que agora atribuímos à
técnica e até há alguns séculos atrás à divindade), a ideia de que
o desenvolvimento científico-técnico é autónomo e independen-
te da nossa vontade, ou a ideia de que toda a transformação da
realidade é uma violação da natureza que merece castigo. O mito
tem a sua versão sociológica e política adequadas para os tempos
que correm: a tecnologia atual, que é filha do capitalismo, her-
dou a perversidade do seu pai.
||

12 Há uma versao biotecnológica do mito das máquinas pensantes assim como da revolta
dos robôs: o mito dos “replicantes”, bem documentado no filme Blade Runner, herdeiro
indireto de Frankenstein e herdeiro direto de Brave New World. O problema filosófico es-
pecífico deste mito dos replicantes é o da questão de os indivíduos criados artificialmen-
te, mas dotados de todas as propriedades características dos humanos, poderem ser ver-
dadeiramente humanos. Os criadores do mito inclinam-se claramente a pensar que sim. E
eu penso que tem razão. Outra coisa diferente é que o objetivo tecnológico de criar indiví-
duos humanos com património genético controlado seja possível e moralmente razoável.
Relativamente a isto, partilho da opinião que parece ser maioritária nos nossos dias: a lei
que acaba de ser aprovada pelo parlamento espanhol proíbe este tipo de investigações.
|| 154

O conjunto de superstições e preconceitos que se reúnem


neste mito do nosso tempo é demasiado matizado para que pos-
samos dar conta dele em apenas quatro linhas. Digamos apenas,
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

para começar, que se baseiam em algumas ideias confusas e erra-


das acerca da tecnologia atual: 1) as técnicas da informação per-
mitem-nos automatizar a tomada de decisões em muitos cam-
pos mas graças a isto podemos concentrar o exercício da nossa
liberdade em assuntos muito mais importantes e determinantes
para a nossa sociedade; 2) as tecnologias de que dispomos – e,
seguramente, ainda mais as tecnologias de que disporemos no
futuro – são extraordinariamente poderosas; contudo, a tecnolo-
gia “total”, a “hipermáquina” toda poderosa, é impossível13; 3) o
desenvolvimento tecnológico responde a certas diretrizes parti-
culares da racionalidade prática, porém depende de valorações e
de atividades humanas, não é autónomo14; 4) a tecnologia não é
perversa, porém os utilizadores, os inventores ou os promotores
de uma tecnologia podem, esses sim, sê-lo. De modo a evitar que
os perversos decidam o futuro tecnológico, o melhor que nós,
homens bons, podemos fazer é dotar-nos de melhores tecnolo-
gias que eles; 5) ainda que o capitalismo fosse intrinsecamente
perverso, os filhos dos malfeitores podem ser boas pessoas e a
tecnologia é necessária para qualquer projeto social que queira
ter possibilidades de êxito, seja socialista ou anarquista.
O que subjaz aos mitos tecnológicos do nosso tempo são pois,
geralmente, preconceitos irracionais. O desenvolvimento da filo-
sofia da técnica poderá, quem sabe, ajudar a melhor entender o
que se está a passar e a descobrir que a tecnologia é sobretudo
um motivo de esperança, não de temor para a humanidade.

O sentido das teorias filosóficas


Existem muitas formas diferentes de entender as missões e
os métodos da filosofia. A abordagem que aqui vamos adotar é
clássica na medida em que supomos que os problemas filosófi-
cos ou os aspetos filosóficos de qualquer problema intelectual
são os que como tal têm sido reconhecidos pela tradição filosó-
fica ocidental. Em síntese: como é a realidade, como podemos
||

13 Ver o capítulo V em Quintanilla, 1988.


14 Ver o capítulo VI em Quintanilla, 1988.
|| 155
conhecê-la e que podemos (ou deveremos) fazer. Porém, neste
enquadramento amplo, adotamos uma perspetiva naturalista e
racionalista e entendemos, tal como na tradição da filosofia ana-

Problemas filosóficos da tecnologia


lítica, que a missão mais importante da reflexão filosófica é a de
clarificar problemas conceptuais.
Dito em poucas palavras, o naturalismo consiste em conside-
rar que todas as coisas reais são, em última análise, compostas
de elementos que existem no mundo físico ou natural15. O racio-
nalismo (compatível com o naturalismo), consiste em supor que
não existe outra maneira melhor de aumentar o nosso conheci-
mento da realidade que não seja o de aplicar o método científico
e promover o desenvolvimento da ciência. Nesta perspetiva, o
homem integra o mundo natural e os valores que guiam a ação
do homem são convenções que assumimos ou alteramos em fun-
ção do que consideramos valioso para a nossa existência.
Relativamente à tradição analítica, o que aqui dela tomare-
mos é a digressão por uma reflexão de segunda ordem que a
análise filosófica supõe, assim como o uso de instrumentos preci-
sos e formais quando sejam necessários para a análise conceptu-
al (Muguerza, 1974; Ferrater Mora, 1974; Quintanilla, 1976).
Quando falamos de reflexão de segunda ordem queremos
dizer o seguinte: perante algumas conceções românticas ou irra-
cionais da filosofia segundo as quais o filósofo acede ao conheci-
mento da realidade com métodos específicos (de forma que se
tende a falar de um “acesso filosófico” à realidade que permitiria
supostamente aceder a uma compreensão mais profunda e “au-
têntica” desta mesma), aqui iremos supor que a reflexão filosó-
fica se instala sobre conhecimentos prévios das ciências ou do
senso comum. Especificamente, não existe uma teoria filosófica
do mundo e uma teoria científica, mas antes aspetos filosóficos,
ou seja, gerais, no conhecimento científico do mundo ou pressu-
postos implícitos na estrutura conceptual do senso comum (o da
linguagem comum, se se adota uma perspetiva linguística que,
contudo, nem sempre é a mais adequada) quando se raciocina
sobre as questões humanas. A filosofia não pretende criar teorias
alternativas às teorias científicas ou às do senso comum mas an-
tes reflexões teóricas, esclarecimentos conceptuais ou propostas
||

15 Naturalismo neste sentido é sinónimo de materialismo. Trata-se de categorias filosó-


ficas de caráter extraordinariamente geral que, por isso mesmo, não são suscetíveis de
definição precisa. O máximo a que podemos aspirar é caracterizá-las de forma suficiente.
Ver Esquivel (1982). Quintanilla (1981, pp. 139 ss. e 1982), Bunge (1981).
|| 156

interpretativas em continuidade com as da ciência, das teorias


humanísticas ou das ideias do senso comum. Assim sendo, a
maior parte das reflexões e teorias filosóficas serão de segunda
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

ordem: não acerca dos átomos como componentes da matéria


mas sim das teorias atomistas; não acerca do bem e da obrigação
moral mas sim dos códigos morais. Mesmo quando o filósofo
fizer propostas substantivas sobre a estrutura da realidade ou da
obrigação moral, a sua única justificação será a idoneidade das
mesmas para clarificar problemas colocados nas teorias cientí-
ficas ou códigos morais. Por exemplo, nenhuma teoria científica
se ocupa diretamente de elucidar o conceito de causalidade ou
determinação física ainda que muitas teorias deem por assumi-
dos estes conceitos e seja uma tarefa típica da filosofia indagar o
seu sentido ou clarificar o seu significado. Ou, do mesmo modo:
nenhum código jurídico ou moral se ocupa explicitamente de cla-
rificar as condições de consistência de um sistema de normas, a
não ser dar por assumido que devem ser consistentes e é o filóso-
fo, com a ajuda da lógica deôntica, quem se ocupa de clarificar a
noção de consistência ou de racionalidade aplicada a um sistema
de normas.
A técnica, tal como a ciência, é uma parte importante da ativi-
dade humana. A ideia que preside à nossa abordagem à filosofia
da técnica é paralela à que está generalizada no âmbito da filo-
sofia da ciência: aqui, a reflexão filosófica é uma reflexão de se-
gunda ordem sobre a realidade e, de primeira ordem, sobre o co-
nhecimento científico da realidade. A filosofia da técnica é uma
reflexão de segunda ordem sobre a ação humana de transforma-
ção da realidade e, de primeira ordem, sobre as representações e
formulações – sistematizadas, elaboradas ou ingénuas – que nós
fazemos dessas ações técnicas. O propósito é o de alcançar uma
maior compreensão intelectual do fenómeno da técnica e uma
maior profundidade na análise dos problemas filosóficos, espe-
cialmente relevantes, na técnica.
Para além de objeto de reflexão filosófica, a técnica é tam-
bém objeto de estudo científico por parte de múltiplas ciências
sociais: a história, a sociologia, a psicologia e a economia podem
ajudar-nos a conhecer melhor o fenómeno técnico e uma filoso-
fia da técnica deve tomar em consideração os seus contributos.
Porém, convém assinalar as diferenças entre estudos científicos
sobre a técnica e teorias filosóficas: a abordagem filosófica será
teórica, conceptual, não empírica. Podemos propor teorias gerais
|| 157
acerca da ação técnica, da estrutura dos sistemas tecnológicos,
de fatores relevantes para o seu desenvolvimento ou da lógica
da avaliação de projetos tecnológicos. Todos eles podem ser

Problemas filosóficos da tecnologia


úteis para a economia, a sociologia, a politologia ou história da ci-
ência mas não é nosso propósito competir com elas, sendo antes
o de clarificar os problemas de caráter ontológico, conceptual e
de avaliação, subjacentes à técnica e que, nos seus aspetos gerais
ou básicos, não são objeto específico de nenhuma disciplina em-
pírica.
A perspetiva “metareflexiva”, ou de reflexão de segunda
ordem que assumimos em filosofia, acarreta uma consequência
que nem sempre é tomada, suficientemente, em consideração.
Refiro-me à componente avaliativa que é inerente à reflexão
filosófica assim entendida. De novo, a filosofia da ciência pode
servir-nos de paradigma: o pressuposto básico do qual parte diz
que a ciência é valiosa na sua função de conhecimento racional
da realidade. Por outras palavras: a ciência pode ser objeto de
interesse económico, cultural, estético, psicológico, etc.: para a
filosofia é um objeto de interesse epistémico, ou seja, enquanto
forma de conhecimento objetivo da realidade. A ideia de conhe-
cimento objetivo, de teoria verdadeira, de capacidade explicati-
va de uma teoria, de progresso científico no conhecimento da
realidade, são ideias filosóficas assim como ideias centrais para a
filosofia da ciência. E todas elas acarretam uma carga avaliativa:
ao assumir um conceito de explicação científica o filósofo não só
descreve ou interpreta as explicações dos fenómenos naturais
que fornecem as teorias científicas como também lhes atribui
um valor epistémico. Neste sentido, a filosofia não é só analítica
mas também normativa ou, se preferirmos, avaliativa. De facto,
as tarefas da filosofia da ciência poderiam ser resumidas assim:
análise e avaliação das teorias e métodos científicos do ponto de
vista da sua função e valor cognitivos (Quintanilla, 1987). Qual é a
perspetiva equivalente no caso da filosofia da técnica?
Ao contrário das ciências, que são sistemas de conhecimento,
as técnicas são sistemas de ações de determinado tipo que se ca-
racterizam, desde logo, por estarem baseadas no conhecimento
mas, também por outros critérios, como o de exercer-se sobre
objetos e processos concretos e no guiar-se por critérios prag-
máticos de eficiência, utilidade, etc. Neste sentido, a filosofia da
técnica é uma reflexão de segunda ordem sobre uma classe de
ações humanas, e a sua problemática cavalga a filosofia prática
|| 158

(filosofia da ação, filosofia moral, etc) e a teórica (epistemologia,


ontologia). O pressuposto normativo básico da filosofia da técni-
ca é o de que as ações técnicas constituem a forma mais valiosa
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

de intervir ou modificar a realidade para adaptá-la aos desejos


ou necessidades humanas. A elucidação das noções de transfor-
mação da realidade, eficiência técnica, racionalidade técnica, etc,
envolve compromissos valorativos sobre o que consideramos
uma boa técnica ou uma boa tecnologia, de forma semelhante
àquela que na filosofia da ciência nos obriga a definir uma boa te-
oria científica. De maneira que, poderíamos dizer que o objeto da
filosofia da técnica é a análise e avaliação dos sistemas técnicos e
das operações envolvidas no seu desenvolvimento do ponto de
vista da sua função e valor práticos, ou seja, da sua função e valor
para controlar a realidade de acordo com os desejos humanos.

Tarefas da filosofia da técnica


Deste modo, a técnica dos nossos dias, fruto da revolução in-
dustrial, do capitalismo e da investigação científica, é uma amos-
tragem de problemas filosóficos e um balão de ensaio para medir
a relevância das teorias filosóficas (Bunge, 1977).
Eis alguns destes problemas, a título de exemplo:
1) Problemas ontológicos: estrutura da ação intencional, enti-
dade dos artefactos, causalidade instrumental.
2) Problemas epistemológicos: o conhecimento operacional e
a sua estrutura (know how), a natureza de uma invenção, re-
lações entre conhecimento científico e tecnológico, estrutura
das teorias tecnológicas, a criação de modelos.
3) Problemas valorativos: critérios de avaliação de tecnologias,
os objetivos da ação tecnológica, implicações morais, políti-
cas, económicas e culturais do desenvolvimento tecnológico.

Trata-se apenas de uma lista de problemas abertos. Porém,


é suficiente como exemplificação da tese que estamos a expor:
na tecnologia atual surgem continuamente problemas que têm
um interesse filosófico evidente, de acordo com os padrões tra-
dicionais do que se considera ser objeto de reflexão filosófica.
Poderia inclusivé dizer-se algo mais: é impossível imaginar algu-
ma questão filosófica importante que possamos colocar-nos na
atualidade sem nos defrontarmos com fatores tecnológicos: em
|| 159
filosofia da ciência defrontar-nos-emos com as condicionantes
técnico-económicas do desenvolvimento científico; em ética,
com o paradigma da racionalidade instrumental que impõe a

Problemas filosóficos da tecnologia


tecnologia como modelo de ação racional; em filosofia política,
com os constrangimentos que a racionalidade tecnológica impõe
à adoção de decisões de interesse coletivo; na filosofia da arte,
com as repercussões que têm as tecnologias da comunicação e
informação para o processo criativo.
Portanto, não é estranha a atual expansão da filosofia da
técnica. O fenómeno inicia-se por volta dos anos 30 do século
vinte. Seguramente, a obra que mais influência teve desde a sua
publicação foi a de Mumford (1934), de caráter histórico e
sociocultural. Desde então, a filosofia da técnica seguiu vários ca-
minhos, predominando três orientações: a histórico-sociológica
(Ellul, 1954), a crítico-ética (Habermas, 1968) e a epistemológica
(Laudan, 1984).
Nas últimas décadas assiste-se ao desenvolvimento de uma
série de tradições académicas que confluem de uma forma ou de
outra no campo da filosofia da técnica, contribuindo para configu-
rar a situação atual. Em primeiro lugar, a história da ciência vai-se
deslocando das abordagens internalistas clássicas em direção a
uma maior atenção aos fatores externos sociológicos, económi-
cos, etc, do desenvolvimento científico16. Isto ajuda, por sua vez,
a que os historiadores se preocupem cada vez mais com a histó-
ria da técnica, a par com a história da ciência.
Ao mesmo tempo, as repercussões da obra de Kuhn (1962),
tanto em história como em filosofia da ciência, estabelecem uma
ponte entre as duas comunidades académicas e uma transferên-
cia de problemáticas e de centros de interesse (Gutting, 1984). A
técnica começa a ser, assim, objeto de reflexão entre especiali-
dades em filosofia da ciência que, por outro lado, constituem um
dos grupos de filósofos mais pujantes das últimas décadas. Além
de mais, nos últimos anos tem-se operado uma grande transfe-
rência e intercâmbio de abordagens entre, por um lado, o que
poderíamos chamar o âmbito anglo-saxão da filosofia contempo-
rânea, herdeira da tradição analítica e de certo modo, do empiris-
mo lógico e, por outro lado, o âmbito continental, mais vinculado
a tradições filosóficas como a fenomenologia, a hermenêutica,
||

16 Lafuente e Saldaña (1987) proporcionam uma boa panorâmica das tendências atuais
na historiografia da ciência.
|| 160

a dialética, o existencialismo, nas quais os problemas antropo-


lógicos, sociais, políticos e éticos produziram também grandes
aproximações ao fenómeno da técnica contemporânea17.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

A situação atual caracteriza-se por uma ampla difusão de es-


tudos, publicações, congressos e instituições dedicados à filoso-
fia da técnica. Mas, ao mesmo tempo, por uma grande dispersão
de abordagens e métodos e uma grande indefinição do próprio
campo de investigação. Um indício disso é, por exemplo, o facto
de qualquer trabalho sobre a filosofia da técnica (incluindo o pre-
sente) se ver na obrigação de começar por delimitar o próprio
conceito de técnica ou tecnologia e de propor um esboço da área
de investigação em que se pretende localizar. A distinção entre
técnica e tecnologia, o tema das relações entre conhecimento
científico e conhecimento tecnológico, a questão da avaliação da
tecnologia continuam a ser problemas abertos de caráter prévio
em qualquer contribuição para a filosofia da técnica.
A nossa intenção é precisamente a de delinear um esboço de
filosofia sistemática da técnica de uma perspetiva que se conec-
ta, desde logo, com a tradição da filosofia da ciência, tanto pelas
motivações profundas que guiam a nossa reflexão, como pelo
tipo de métodos analíticos e de abordagens que adotamos. Isto
não significa, todavia, que consideremos a técnica simplesmen-
te como uma ciência aplicada e a filosofia da técnica como uma
extensão da filosofia da ciência. Trata-se muito mais de ensaiar
na filosofia da técnica um tipo de abordagens que tiveram resul-
tados frutíferos em filosofia da ciência, no intuito de articular, na
medida do possível de forma sistemática, este novo campo de
investigação. Para além disso, a filosofia da técnica não é sequer
– como o é a filosofia da ciência – um ramo da epistemologia. De
certo modo, pode ser compreendido melhor como um ramo da
filosofia moral se bem que ainda melhor como uma área especia-
lizada da reflexão filosófica que abarca praticamente todos os
seus campos: a ontologia, a epistemologia e a ética.
Para a abordagem que aqui adotamos existem precedentes
notáveis que é preciso assinalar. Entre os clássicos, pela sua cla-
reza, pelo seu caráter precursor e abordagem, ao mesmo tempo
global e ajustado ao específico do tema, é obrigatório reivindi-
car a breve, porém interessante, obra de Ortega e Gasset. A sua
Meditación de la técnica (1939) deveria continuar a ser hoje um
||

17 París (1973) é um exemplo precoce desta orientação na filosofia espanhola atual.


|| 161
motivo de inspiração para quem pretenda construir uma teoria
filosófica geral da técnica18. De igual modo, entre outros autores
atuais, a obra de Mario Bunge19 é, na minha opinião, a melhor

Problemas filosóficos da tecnologia


referência para construir uma filosofia da técnica de caráter rigo-
roso.

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||

18 Um exemplo notável dessa inspiração são os ensaios de Laín Entralgo (1986) dedica-
dos a este tema. Não obstante, a herança intelectual de Ortega neste campo, como em
tantos outros, foi de igual modo adulterada pela escolástica.
19 São muitos os textos de Bunge dedicados à filosofia da técnica. Entre outros, Bunge
1963, 1974, 1976. A exposição mais sistemática e mais completa encontra-se no último
volume (o volume 7, Bunge 1985, parte II) publicado até ao momento do seu monumental
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|| 165
Cap. 7

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
Plano Tecnológico da Educação e
Educação Pública: Mitos (ensarilha-
dos), limites e falsas promessas

Lia Oliveira
Universidade do Minho

Na sequência da Estratégia de Lisboa (Conselho Europeu de


Ministros em 2000) – que visava transformar a União Europeia
“na economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do
mundo” – e na sequência de várias iniciativas europeias entretan-
to levadas a cabo, o Governo de Portugal criou, em 2007, o Plano
Tecnológico da Educação (PTE) para, em 2010, colocar Portugal
entre os cinco países europeus mais avançados na modernização
tecnológica do ensino. O PTE privilegia parcerias com o setor pri-
vado (empresas e banca) e tem-se assumido como a grande solu-
ção para a propalada crise da escola pública. Pretendemos, neste
capítulo, examinar a interface entre PTE e a educação pública.
Para a consubstanciação do nosso propósito, apoiamo-nos em
duas hipóteses de trabalho que se interpenetram. Uma primeira
em que efetuamos uma espécie de zootomia ao PTE, à luz do mo-
mento social coetâneo profundamente determinante e determi-
nado pelas políticas de cunho neoliberal e uma segunda em que
|| 166

tentaremos interpretar por que porta entrou o PTE na educação


pública, desnudando desta forma os seus limites, mitos e falsas
promessas. Concluiremos com uma reflexão acerca da crença de
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

uma escola pública como movimento social líder na transforma-


ção social.

Uma resolução máscula de um Conselho


de Ministros
O PTE encontra-se descrito num documento legal (Diário da
República) emanado do XVII Governo Constitucional de Portugal
(governo de maioria absoluta do Partido Socialista) com a desig-
nação Resolução do Conselho de Ministros nº 137/2007 (referen-
ciado aqui como PTE, 2007). Este documento assenta na necessi-
dade expressa de “reforço das qualificações e das competências
dos Portugueses” que entronca na “valorização e modernização
da escola” mediante a criação de “condições físicas que favoreçam
o sucesso escolar”, consolidando “o papel da TIC enquanto ferra-
menta básica para aprender e ensinar” (PTE, 2007, pp. 6533-6534).1
A insistência na necessidade de “reforço das qualificações e
das competências dos Portugueses para a construção da socie-
dade do conhecimento” (idem, p. 6563), omite, como sempre e
repetidamente neste tipo de discurso, a natureza e substância
dessas competências e a sua fundação na pedagogia por obje-
tivos. Como bem e atempadamente sublinhou Giméno Sacristán
(1982), esta pedagogia nasce amparada pelo eficientismo social
que vê na escola e no currículo um instrumento para conseguir
os produtos que a sociedade e o sistema de produção necessi-
tam num dado momento. O movimento associado ao discurso
das competências e à pedagogia por objetivos, ancorado no
experimentalismo positivista e na psicologia condutista, nascido
no seio do treino industrial e militar, deslocaliza o problema da
própria racionalidade tecnológica e converte-a em tecnicismo
(idem, 1982). Tecnicismo este que vem vigorando há pelo menos
||

1 Este texto foi escrito em finais de 2009, início de 2010. Entretanto, o Governo de Por-
tugal mudou em 2011 tendo o PTE caído numa espécie de esquecimento, como se nunca
tivesse existido. Contudo, em dezembro de 2011 foi lançado pelo novo governo o Progra-
ma Estratégico para o Empreendedorismo e a Inovação +E, +I (Anexo à Resolução do Con-
selho de Ministros nº 54/2011. Diário da Republica, 1ª série – Nº 243 – 21 de dezembro de 2011.
Lisboa) que, no que concerne, à ideologia subjacente e ao tipo de discurso, apresenta
características de continuidade relativamente ao documento aqui discutido.
|| 167
três décadas em Portugal, como adiante veremos, e que surge
agora renovado como “modernização conservadora” (Dale,
1989 citado por Apple, 2003).

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
Este tecnicismo (disfarçado pelas vestes da modernização, do
progresso e da inclusão social) neutraliza o problema da educa-
ção pública dissipando as discussões teóricas e ideológicas que
devem subjazer à formulação do currículo. É esta ausência de
fundamentos e valores que serve, no momento histórico que
vivemos, pautado por uma violenta globalização neoliberal (Sou-
sa Santos, 2008, Beck, 2002) como justificação para inundar as
escolas (e os lares) de computadores e de toda a parafrenália
associada.
Pode ler-se, logo de seguida (PTE, p. 6534):

Com a modernização tecnológica, a escola dará um salto qualitativo e abrir-


se-á a várias áreas do saber. A escola será assim o centro de uma rede de
projetos direcionados para o que realmente importa: aprender mais e me-
lhor, os professores e os alunos.

Esta afirmação introduz o tom panfletário e perigosamente


populista de todo o documento e glorifica o senso comum, trun-
fo das políticas neoliberais – habilmente trabalhado pela mão
dos meios de comunicação social – e que consiste em desarticu-
lar e rearticular “o verdadeiro significado de determinados con-
ceitos e práticas” (Paraskeva, 2006a, p.71). De uma assentada,
fica definido para o senso comum o que importa, sobressaindo as
palavras-chave – modernização, tecnologia, saber, projetos, mais,
melhor (palavra nunca clarificada), professores, alunos – que ar-
rombarão a fechadura. Nem uma palavra sobre a razão de ser
da escola pública e sobre a sua missão política no quadro duma
sociedade democrática. Nem uma palavra sobre que conteúdos
importa aprender, como e para quê. “O que importa” neste do-
cumento legal é proclamar uma escola pública neutra, sem clas-
ses sociais, sem problemas de género ou de raça, enfim, sem pro-
blemas nenhuns.
É inevitável lembrar Agostinho da Silva:

O homem português comporta-se, exatamente, como se tivese ao seu dis-


pôr um molho de chaves tendo de empregar cada chave na fechadura pró-
pria e não, como sucede com muitos outros povos, apenas uma chave com
a qual pretendem abrir todas as portas. (Mendanha, 1994, p. 61).
|| 168

Relendo Agostinho da Silva percebe-se que, lamentavelmen-


te, estes homens – e mulheres – portugueses andam a usar o mo-
lho de chaves errado que mais não é do que a chave mágica das
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

perversas políticas neoliberais.


A escola pública interessa a toda a sociedade e não apenas a
alunos, professores e pais porque constitui um projeto político
da comunidade (Cf. Torres Santomé, 2003). Não fosse a escola
uma das maiores indústrias, uma das maiores tarefas públicas em
qualquer economia moderna que, pela sua envergadura enquan-
to bem público, outorga a maior relevância à questão de quem
são os seus beneficiários, como adverte Connell (1993, p. 18)
quando propõe o conceito de justiça curricular.
O estudo de diagnóstico encomendado pelo Ministério da
Educação e que sustenta o PTE (GEPE/ME, 2007) determinou
que a) é necessário introduzir mais computadores nas escolas e
aumentar a velocidade de ligação à internet; b) integrar as TIC
transversalmente; c) desenvolver uma estratégia para a disponi-
bilização de conteúdos digitais; d) formar e certificar os profes-
sores; e) digitalizar processos para garantir a eficiência da gestão
escolar. A modernização da escola e o sucesso futuro dos por-
tugueses é assim resumida, na “visão e objetivos” do PTE (pp.
6566-6567), a: ligação à internet em banda larga de alta velocida-
de (≥ 48 Mbps); número de alunos por PC com ligação à internet
(2); percentagem de docentes com certificação TIC (90%). Estes
constituem os indicadores de avaliação do plano e ditam o seu
cumprimento político-partidário.
Ou seja, socorrendo-nos de Connell (1999-2000: p.8 citado por
Paraskeva, 2003, p. 74), este plano assenta, diríamos também nós,
numa lógica discursiva

ao estilo de Tarzan em que um grupo de indivíduos de pelos no peito salta


das árvores lançando gritos de “eficiência” e “competição” e de “disciplina
de mercado”, revirando todas as cabanas do avesso, regressando às árvo-
res deixando atrás de si um rasto de destruição e crise.

Como se fosse possível que tudo se resolvesse apenas com


determinação e voluntarismo.
O plano instala-se sobre quatro eixos-chave de atuação, a sa-
ber: 1) tecnologia 2) conteúdos 3) formação e, transversalmente,
4) investimento e financiamento. No âmbito de cada um serão
criados sub-projetos.
|| 169
Claramente, são identificáveis vários problemas associados a
este PTE, começando pela omissão da função da escola pública e
culminando na omissão crucial de quem será a responsabilidade

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
pela produção dos conteúdos digitais a distribuir, como adiante
realçaremos.
Passamos a enunciar alguns destes problemas, por eixos de
atuação, começando por alguns aspetos de menor importância
crítica, mas que evidenciam contradições nos discursos oficiais e
que podem ajudar a desmontar esse senso comum hegemónico
que diz que as TIC, para além de neutras, são inócuas do ponto
de vista político e ideológico.

Navegar é preciso, mesmo sem saber nadar


Navegar sem saber nadar acontece por pobreza e necessida-
de: os pescadores navegam por sobrevivência e não frequentam
a praia como banhistas. Mesmo assim navegam, enquanto o seu
métier é paulatinamente substituído pela indústria marítima
global que se apossou do “Mar Uno” que os seus antepassados
deram a ver ao mundo no século XVI (Silva, 1994). Este plano
entra pelo lado errado da história que Portugal como nação pro-
mete: “desembarcou na Europa” (Silva, 1989) mas vem envergo-
nhado dos conceitos fundadores, assente em falsas ilusões de
grandeza e ostentação inúteis.
No que toca ao eixo Tecnologia, e tendo em mente o rácio de 2
alunos por pc, estão a ser introduzidos computadores nas escolas
e, simultaneamente, estão a ser vendidos computadores portáteis
aos alunos (a preços variáveis e de acordo com o escalão sócio-
-económico), suportados por sub-projetos como o Magalhães, o
e-escolinhas e o e-escolas (dedicados aos 3 ciclos de ensino bási-
co e ao ensino secundário que termina no 12º ano, já obrigatório).
Estamos perante uma duplicação de meios e um grande consumo
de hardware que rapidamente se tornará obsoleto e precisará de
ser substituído. As máquinas que estão a ser fornecidas ficarão
obsoletas muitíssimo depressa. O seu preço revela isso mesmo! Ou
seja, a indústria dos computadores está a obrigar-nos a consumir
a tecnologia que lhe interessa vender e não aquela que já pode-
ria oferecer (cf. Kaku, 2001). O melhor exemplo desta situação é
o computador Magalhães (destinado ao 1º ciclo de escolaridade),
apresentado como tecnologia portuguesa e que é, na realidade,
|| 170

um velho pc do mercado – pc mate da Intel travestido de brin-


quedo (semelhante na aparência aos computadores que existem
nas lojas de brinquedos), que opera com tecnologia de há 4 anos
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

atrás e cujos componentes são oriundos, maioritariamente, da


Ásia – computador estragado por sistema operativo próprio e
software correspondente. Ou seja, já não é um computador co-
mum mas um computador infantilizado – um brinquedo muito
caro (o seu custo no mercado é de 400 euros!). Sabendo que es-
tes computadores são velhos e que este tipo de equipamento é
altamente poluidor, onde fica a lógica do desenvolvimento sus-
tentável e da ecologia tão difundida nos media e tão acentuada
quer nos discursos políticos quer no currículo escolar? Simples-
mente, não se discute o enorme problema de lixo e de consumo
energético que se está a criar com as TIC, com as implicações que
tal acarreta, desde a obtenção das matérias-primas até ao con-
trolo das fontes energéticas que, como sabemos, determina a
geo-política do planeta.
No que toca a ligação à internet, porque razão temos de estar
em permanente conexão? Já estamos conectados com os tele-
móveis, cada vez mais computadores complexos que permitem
todas a funções de comunicação de rede. Numa época em que as
funcionalidades dos computadores e da internet convergem, in-
tegralmente, nas tecnologias móveis – potenciais mobilizadores
de comunicação e participação –, para quê inundar as escolas e
os lares de computadores portáteis de pequenos écrãs...?
Esta “modernização” do PTE traduz-se nesta inundação das
escolas por computadores, impressoras, projetores e quadros in-
terativos. Os computadores adquiridos pelos alunos (pelas suas
famílias, a preços diferenciados de acordo com os escalões sócio-
económicos) passam a ser da sua responsabilidade, bem como o
acesso à internet, reparações e substituições (em caso de roubo
e obsolescência). Ou seja, em nome da “infoinclusão”, criam-se
às famílias dois problemas acrescidos: passam a ser responsáveis
pela atualização e manutenção do parque informático e pelos
custos de acesso à rede mundial (que em Portugal é dos mais
caros da Europa) e passam, concomitante e definitivamente, a
ser as responsáveis pelas aprendizagens e sucesso escolar dos
filhos. No espírito e na letra deste documento ter computador e
ter acesso à internet significa não só poder adquirir competências
mas ainda fazê-lo automaticamente. Quem não aprender assim é
porque não quer aprender e então fica por sua conta.
|| 171
A responsabilização do indivíduo pelo seu próprio sucesso ou
fracasso está bem identificada (e. g. Apple, 1993; Connell, 1993;
Torres Santomé, 2007; Bauman, 2001; Beck, 1997) e neste PTE ela

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
transpira em todos os parágrafos.
Ainda no âmbito deste eixo Tecnologia, para além dos proje-
tos “kit tecnológico” (computadores e afins), “internet de alta
velocidade” e “internet nas salas de aula” (redes de área local)
são previstos ainda outros dois projetos relacionados com “se-
gurança”, ou seja, a dinamização do “cartão eletrónico do alu-
no” e a implementação de sistemas de “videovigilância” (PTE,
2007, pp. 6568-6572). O cartão eletrónico do aluno serve para
“suprimir a circulação de numerário” e para “controlar as saídas
e entradas dos alunos” mas também serve para “consultar o pro-
cesso administrativo, o percurso académico e os consumos dos
alunos” (p. 6570).
Ora, quer o percurso administrativo quer o académico são
(ainda) de acesso restrito. O professor coordenador de turma é
o fiel depositário deste dossiê e mesmo os pais apenas podem
consultá-lo na presença desse professor. Tal acontece para
preservação desses dados que são pessoais e sujeitos a reser-
va. Será que com um sistema desta natureza continuarão estes
dados a ser reservados (num contexto em que se implementa
na sociedade portuguesa, também, o cartão de cidadão com da-
dos fiscais e médicos, entre outros)? Será legítimo e educativo
controlar a permanência na escola desta forma (picando o ponto,
garantindo a eficiência do sistema em manter os alunos presos
dentro da escola) e fragilizar a segurança de dados pessoais?
Está prevista ainda a possibilidade de as instituições financei-
ras poderem, “em contrapartida (e.g. do fornecimento do car-
tão), comercializar serviços financeiros baseados no cartão de
aluno aos alunos do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secun-
dário” (idem, p. 6571). Ou seja, para além destas entidades pode-
rem, como contrapartida, “evidenciar a marca” (id. ib.) poderão
acrescentar “funcionalidades adicionais” (id. ib.), leia-se, vender
serviços financeiros a menores de idade, contribuindo para o en-
dividamento crescente e insustentável das famílias, particular-
mente as das classes com menores recursos.
Por outro lado, e quanto à videovigilância, ela assenta no
pressuposto poder dissuasor do crime. Sabemos, porém, que
não o evita nem previne. De qualquer forma, a intenção de do-
tar todas as escolas de sistemas de videovigilância é justificada
|| 172

pelo facto de o aumento do parque informático constituir uma


“janela de oportunidade” (idem, p. 6565) para roubos e vandalis-
mo. Ganha, assim, aparente importância a integridade física das
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

pessoas, a pretexto dos equipamentos, sendo que, na realidade,


não são atacadas as origens sociais do roubo e do vandalismo. A
videovigilância associada a este cartão do aluno remete-nos ine-
vitavelmente para o panóptico de Foucault e relembra-nos que
basta que exista a sensação de vigilância para que esta funcione
como mecanismo de controlo e de supressão da liberdade indi-
vidual (Foucault, 1977). Esta é parte do “pesadelo desencadeado
pelas tecnologias da informação” (Steiner, 2008, p. 272) no qual
a dimensão íntima é constantemente devassada.

Alguém há de pagar a jangada


O eixo transversal Investimento e Financiamento assenta em
fundos comunitários europeus (em vias de extinção), em verbas
do orçamento de estado, das autarquias e em parcerias a estabe-
lecer com o setor privado, leia-se fornecedores de hardware e de
manutenção, fornecedores de telecomunicações e banca. Foram
já estabelecidas contrapartidas com os “principais” operadores
de tecnologias móveis (em sede de grande polémica que vai sur-
gindo, discretamente, na imprensa) e foram já efetuadas com-
pras de equipamentos e celebrados contratos de fornecimento
de acesso a internet sem abertura de concurso público (apenas
os três maiores operadores foram escolhidos). Parte dos equi-
pamentos e dos acessos serão pagos, supostamente, por estas
operadoras e pelos fabricantes eleitos mas, apesar das contra-
partidas (que nunca são muito claras e que envolvem milhões de
euros sempre muito vagos), o Estado já está em falta com paga-
mentos. Não sabemos quem paga, como paga, a troco de quê e
quem pagará no futuro as substituições dos computadores, os
acessos à internet, a manutenção de máquinas e serviços, etc.
Estas leviandades nunca explicadas, remetem-nos para a his-
tória particular da “nação portuguesa” (Cf. Paraskeva, 2006b) e
sugerem-nos o seu desenlace, imaginado por Saramago no ro-
mance A Jangada de Pedra (1986), no qual a península ibérica se
separa, literalmente (diz a metáfora), da Europa:

A primeira fenda apareceu numa grande laje natural (...) subtil (...) alargou-se
mais, tornou-se funda e avançou, rasgando a pedra (p. 19) (...) Mãe
|| 173
amorosa, a Europa afligiu-se com a sorte das suas terras extremas, a ociden-
te. Por toda a cordilheira pirenaica estalavam os granitos, multiplicavam-se
as fendas (p. 33) (...) Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais,

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
um metro, dois metros, a experimentar as forças. As cordas que serviam
de testemunhos (...) rebentaram como simples cordéis (...) sentiu-se passar
nos ares um grande sopro, como a primeira respiração de quem acorda, e a
massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas,
matos, bravios, campos cultivados, com a sua gente e seus animais, come-
çou a mover-se, barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez
desconhecido (p. 45).

Nesta ficção, na qual “O presidente da América do Norte tam-


bém falou ao mundo” (p. 321), dizendo que não poderia ajudar,
um seu conselheiro terá dito: “Eles estão a descer entre a África e
a América do Sul, senhor presidente” (p. 322). O presidente terá
dado um estrondoso soco na mesa.
De qualquer forma, como advertia Agostinho da Silva (Men-
danha,1994) a propósito das dívidas internacionais dos países:
“Haverá uma altura em que já nem se saberá quem é o credor e
quem é o devedor. Só então o problema se resolverá” (p. 100).
Não teremos ainda chegado a esse ponto a avaliar pela atual cri-
se dos déficits externos dos países.

Os(as) professores(as) são marinheiros(as)


e sabem navegar à vista
Relativamente ao eixo Formação, como será operacionaliza-
da a formação em serviço dos professores, entretanto decidida
e publicada em decreto quase um ano depois do PTE (Portugal,
2009)? Não sendo esta a ocasião de abordar este documento,
podemos adiantar que o objetivo é certificar o uso instrumental
das TIC (com vários níveis de proficiência) e será esse o indicador
quantitativo a avaliar (percentagem de professores com certifi-
cação TIC).
Mas será necessária esta certificação? Os professores sem-
pre navegaram a vista, sendo a navegação “um tipo de política”
(Silva, 1994, p.74). São adaptáveis, versáteis e aparentemente
submissos porque acreditam, ainda, na sua força: ensinam por
vocação, como diz Steiner (2003). Esta formacao instrumental é,
por um lado, insultuosa (os professores já usam computadores)
|| 174

e por outro, subentende que eles darão sempre conta do recado


e que acatarão a lógica sofista que “emerge(m) da transição (...)
da oralidade para o livro” (idem, p. 27), hoje na transição do livro
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

para o écrãn do computador. Também confia em que os profes-


sores saberão “olhar o horizonte para não enjoar a bordo” (Silva,
1989) como sempre fazem os portugueses. Mas igualmente avisa
os professores que “As perdas equivalem aos ganhos. A vida está
fadada a navegar entre os dois e nenhum marinheiro pode alar-
dear ter encontrado um itinerário seguro e sem riscos” (Bauman,
2001, p. 75). Condenados a viver na insegurança e na incerteza de
uma qualquer identidade profissional deverão devotar-se à cons-
tante certificação das suas aptidões num estado de “ansiedade
contínua” (idem, p. 93) para as quais são fornecidos os necessá-
rios exemplos/modelos incorporados nas figuras dos premiados
como professores do ano.
Por outro lado, que alterações serão introduzidas na forma-
ção inicial dos professores já reformada? Recentemente foram
abatidas, por ordem da Declaração de Bolonha, as Licenciaturas
em Ensino (5 anos de formação científica e pedagógica com es-
tágio integrado, que nasceram com a Revolução de 1974 e que
vigoraram durante 30 anos) e foram criados (patrocinados pelo
mesmo Governo autor do PTE) mestrados em ensino de 2 anos
que complementam licenciaturas genéricas de 3 anos. Estes mes-
trados pouco tempo reservam para a formação em integração
curricular de tecnologias. E muito menos tempo reservam para
refletir criticamente. As universidades, encarregues da reconfi-
guração da formação de professores, sucumbiram às pressões
governamentais e a especificidade e importância da função
docente desmoronou-se. Deste processo resulta que, em Portu-
gal e não só, o retrocesso na formação inicial de professores seja
enorme (cf. Paraskeva, 2010).
Paralelamente, reconfigura-se a carreira de professor – mais
correto seria dizer de professora, dada a esmagadora presen-
ça feminina na profissão, como acontece em todos os países
(Torres Santomé, 2006; Enguita, 2007) e que aqui não cabe ex-
planar –, questiona-se a sua competência e autoridade, aumen-
ta-se o número de horas que deve passar na escola (35 horas)
entregue a múltiplas tarefas, para além das tarefas letivas e das
tarefas a estas associadas. Introduzem-se modelos encriptados
de avaliação do desempenho dos professores e retomam-se os
exames como bitola do sucesso escolar apertando a malha do
|| 175
condicionamento quer das práticas pedagógicas dos professores
quer do acesso ao topo da pirâmide (Connell, 1993) do sistema
de ensino.

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
Qual é o papel do professor e qual é o seu valor social? O PTE
assegura a desprofissionalização dos professores (Torres Santo-
mé, 2006) – convertidos em gestores de manuais e de recursos
informáticos, “robots controlados pelas editoras de manuais
escolares” (idem, p.145) – e a revisão das carreiras, associada à
introdução de sistemas de avaliação do desempenho eficiente e
eficaz, garante a crescente “intensificação” da profissão, clara-
mente identificada por Apple (1986).
Convém ainda ter presente que, como enfatiza Boaventura de
Sousa Santos (2008), “o Banco Mundial prevê que o poder dos
docentes e a centralidade da sala de aula declinará inexoravel-
mente à medida que se for generalizando o uso de tecnologias
pedagógicas on line” (p. 29). Apesar desta afirmação se referir
aos docentes universitários ela fumega no PTE relativamente aos
docentes dos outros níveis de ensino. Estas tecnologias on line
associadas aos conteúdos digitais, preparam o terreno para os
avanços do homeschooling (Cf. Paraskeva, 2003, 2006a; Torres
Santomé, 2003, 2006; Apple, 2003), como adiante realçamos.

Os conteúdos digitais são fixes e não há


tubarões no mar português
Por fim, e por isso mesmo mais importante, apesar de dissi-
mulado na ordem dos “eixos de atuação”, como e quem produzi-
rá os “conteúdos digitais” que será necessário criar para permitir
as referidas aprendizagens online? Qual a ligação entre esta in-
trodução massiva de computadores na escola e nas famílias e os
conteúdos da escolarização?
O texto legal começa por declarar que “Os conteúdos e as
aplicações são essenciais para a alteração das práticas pedagógi-
cas, ao favorecer o recurso a métodos de ensino mais interativos
e construtivistas, contribuindo para criar uma cultura de aprendi-
zagem ao longo da vida” (PTE, 2007, p. 6572). Estranha-se aqui a
ausência de um termo muito em voga em meados dos anos 90
e hoje retomado, edutainment, ou seja, software ludo-educativo
que, em essência, vende aos pais a aprendizagem dos filhos sem
esforço (Jaquinot, 1998). Contudo a ideia está latente sempre
|| 176

que são referidos os conteúdos digitais, como se estes, pelo fac-


to de serem digitais, novos e modernos permitissem uma aprendi-
zagem facilitada e do agrado de crianças e jovens.
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

Estes métodos “interativos e construtivistas” reportam-se a


interatividade transitiva (informática, carregar no botão, no link)
e a construção de percursos pela informação sem que sejam ga-
rantidos, por via do exercício do pensamento crítico, os processos
de transformação dessa informação em conhecimento. O constru-
tivismo tornou-se num grande chapéu que tudo abarca e justifica:
do ensino assistido por computador tipicamente comportamenta-
lista ao sócio-construtivismo (cf. Gimeno Sacristán, 1982). Os dis-
cursos sobre os métodos construtivistas assentam, por norma, na
tríade professor-aluno-conhecimento, enformando, portanto, um
pré-conceito ao considerarem o conhecimento como autónomo e
pré-existente ao ato de conhecer. Também obliteram o facto de
o conhecimento oficial, socialmente aceite (a doxa), ser ideologi-
camente construído, em função dos interesses determinados por
minorias dominantes (Gimeno Sacristán, 1982, 2000; Apple, 1986,
1993; Torres Santomé, 2006; Paraskeva, 2005, 2006a, 2008).
Contudo, conhecer é ler o mundo mesmo antes de ler a pa-
lavra, que é também ela o mundo (Freire, 1989). “O saber é um
processo e a consciência é intencionalidade dirigida para o mun-
do” (Freire, 1973, p. 43). Numa educação humanista e libertadora
que respeite o homem como pessoa, entendida como praxis
social, nem professor nem aluno podem ser “coisificados” (idem,
p. 14). “Os homens educam-se entre si mediatizados pelo mun-
do” (idem, p. 18) e dessa educação resulta o conhecimento que é
assim, por natureza, partilhado e mutável.
Neste item dos conteúdos são também incluídas as práticas
de gestão. Este item conteúdos é extraordinariamente generalis-
ta, como convém, para dissimular e omitir a questão crucial dos
conteúdos da escolarização. Engloba os conteúdos da aprendi-
zagem propriamente ditos, os conteúdos de gestão e adminis-
tração, aplicações informáticas e plataformas de ordem diversa,
quer para gestão quer para ensino-aprendizagem, quer para dis-
tribuição quer para comunicação.
É considerado subaproveitado o atual uso da plataforma
Moodle (utilizada em quase metade das escolas por antigas indi-
cações ministeriais), argumentando que é utilizada fundamental-
mente como canal de comunicação e de partilha de documentos.
A grande vantagem destas plataformas – Learning Management
|| 177
Systems, subtilmente designadas por plataformas colaborativas
–, há de ser justamente a sua vertente de canal de comunicação
e de partilha! Aí reside o seu potencial transformador da edu-

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
cação no sentido da participação (Hamilton e Feenberg, 2006).
Mas pretende-se que se transformem mesmo em plataformas de
ensino a distância, como é expresso no quarto objetivo (sobre
cinco) para este eixo dos conteúdos: “Minimizar a infoexclusão,
disponibilizando conteúdos e ferramentas que tornem viável o
ensino à distância” (PTE, p. 6573).
Em que medida o ensino a distância pode minimizar a infoex-
clusão em Portugal? Para aceder a ensino a distância via internet
e usufruir de todas as suas virtualidades é preciso já não ser info-
excluído, é preciso ter superado largamente a “barreira do aces-
so” (Willinsky, 2006). Por outro lado, sabemos que a “miragem
da equidade”, subjacente ao ensino a distância (Goodfellow,
2006) se evaporou após a declaração, pela Organização Mundial
do Comércio (OMC, 1998), da educação como bem de consumo.
Tais sistemas a distância podem, de facto, servir o ensino público
em situações específicas (e. g. alunos com necessidades especiais
permanentes ou pontuais). Mas, ao afirmar que “conteúdos,
módulos e cursos” de acesso remoto são de “baixo custo” (PTE,
p. 6573), o documento trunca a realidade ou seja, encara a pos-
sibilidade, providencia os meios – a alguns – para uma migração
do sistema público e nacional de ensino para modalidades online.
Modalidades privadas, necessariamente, dado que a preparação
e manutenção de ambientes e materiais para ensino online – de
qualidade e sérios – não é de baixo custo. Apenas futuros clientes
de homeschooling (ensino doméstico da responsabilidade dos
pais) poderão vir a comprar este ensino.
O plano, ao enfatizar, exaltar, promover as modalidades online
de aprendizagem, valida “uma educação paralela mas sobretudo
alternativa expressa através da nova escol@. O homeschooling
[porém] não pode deixar de ser visto como um urdido processo
de infoexclusão” (Paraskeva, 2006a, p. 84). A possibilidade de
aprender em casa, ao gosto dos pais e da comunidade, legitimada
como direito de opção das famílias (por norma de caráter religio-
so mas não só) apenas vem acentuar as diferenças sociais já exis-
tentes e exacerbar conflitos entre as múltiplas identidades gru-
pais (Cf. Paraskeva, 2003, 2006a; Torres Santomé, 2003; Apple,
2003). Como atrás dissemos, a discussão sobre a escola pública
interessa a todos, admitindo que
|| 178
a educação é um projeto político pelo qual tratamos de conformar o futuro
da comunidade em que vivemos e da sociedade em geral (...) ou será que
as pessoas solteiras e as famílias sem filhos (...) não pagam impostos desti-
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

nados a educação? Não os preocupa o futuro da sua comunidade? (...) uma


sociedade democrática é aquela em que todas as pessoas podem intervir
nas resoluções que afetam a vida pública” (Torres Santomé, 2003, p. 30).

Entendemos, claro, que a sociedade existe e que não existem


apenas “individual men and women and families”, contrariamen-
te ao que afirmou Margaret Thatcher em 1987 (idem, p. 29).
A referência explícita aos conteúdos de ensino-aprendiza-
gem, também referidos como “conteúdos pedagógicos” e “ma-
teriais pedagógicos” (PTE, p. 6572-6573) – exemplificados como
“exercícios, manuais escolares, sebenta eletrónica, etc” –, sur-
gem embutidos num discreto quadro (p. 6572). Fica-se a saber
que os novos e modernos “métodos de ensino mais interativos e
construtivistas”, afinal, assentam nos mesmos princípios e recur-
sos dos métodos tradicionais (quais métodos, afinal?): o manual,
a sebenta, o exercício.
Identificada a forma que assumem os conteúdos do ensino-
aprendizagem (manuais, sebentas, exercícios, etc), fica por saber
quem os vai produzir, visto que este plano não prevê qualquer
revisão curricular e, em essência, distorce o potencial renovador
das TIC em mera reprodução do sistema vigente. Neste entendi-
mento, nem professores nem alunos são produtores de conhe-
cimento. O conhecimento continuará a vir pré-formatado pela
cultura científica dominante e hegemónica para ser absorvido e
“digerido” (Freire, 1973, p.43). Quem preparará materiais de es-
tudo que veiculem múltiplas perspetivas sobre os factos a partir
dos quais o conhecimento possa ser construído e reconstruído
de forma crítica e participativa, por cada indivíduo?
Há décadas que os manuais escolares determinam o que e
como se aprende nas escolas (Gimeno Sacristán, 1982, 2000;
Apple, 1986, 1993; Torres Santomé, 2006; Paraskeva, 2005,
2006a, 2008). Quem produz estes manuais é a indústria de ensino
ou seja, as editoras (empresas privadas) com quem o ministério
da educação estabelece protocolos. Existe muita investigação
feita nas universidades sobre este assunto: a forma como o co-
nhecimento é apresentado, nas várias áreas, a forma como são
introduzidas conceções falsas ou erróneas, enviesamentos de
ordem moral, científica, ideológica, a forma como são usados e
|| 179
como servem de cartilha para a preparação dos exames e con-
sequente condicionamento das práticas pedagógicas. Em Por-
tugal existem várias editoras que produzem manuais escolares

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
mas estas são cada vez menos variadas dadas as movimentações
do mercado e os conhecidos processos de monopolização dos
grupos editoriais (conhecidos por tubarões). Estão já instalados
no mercado português alguns, como no mercado global. Quem
mais depressa produzir os “manuais eletrónicos” e outros “con-
teúdos educativos” ficará com o negócio. Em Portugal já existe,
aliás, uma Escola Virtual, propriedade de um grupo editoral que
segue de perto as orientações curriculares para o ensino básico
e secundário. É fácil compreender que, rapidamente e com base
neste (escarrapachado) plano, a editora que apresentar os manu-
ais com versão eletrónica (esta ou outra), será privilegiada pelo
ministério e passará a ditar o futuro do país, na medida em que
determinará o quê e o como se aprenderá nas escolas.

A tecnologia educativa
O PTE surge num momento social profundamente determi-
nante e determinado por políticas de cunho neoliberal, impulsio-
nadas por um governo socialista assumido como centro-esquerda
e enquadrado na União Europeia neste grupo político-partidário.
São estas políticas as responsáveis pelos avanços da OMC (1998)
sobre a educação e pela naturalização, no senso comum (na ‘opi-
nião pública’), da educação como bem de consumo e serviço e
não como bem público que é.
Socorrendo-nos de novo de Torres Santomé (2006, p. 33):

Não podemos esquecer que a consecução da escolaridade obrigatória e pú-


blica foi uma conquista política, não uma causa empresarial. (...) Se analisar-
mos o ataque neoliberal contra as escolas públicas constataremos que uma
das suas principais linhas de ação consiste na desvirtuação das finalidades
dos sistemas educativos.

Esta ação neoliberal contra a escola pública integra a equação


da globalização que é o mesmo que dizer da economia do conhe-
cimento cujo ‘slogan’ é a Sociedade do Conhecimento.
A Sociedade do Conhecimento (cujas maravilhas são bem do-
cumentadas por Castells, 2002, 2004) assente numa ‘inteligência
|| 180

coletiva’ (Lévy, 1997) é uma bela ideia que até subscrevemos no


sentido em que nos faz imaginar um mundo de comunicação (no
sentido de ‘entendimento’ entre as pessoas e os povos) no qual
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

as políticas de distribuição e as políticas de reconhecimento se


complementassem (Fraser, 2001) e permitissem perspetivar um
‘real não desertificado’ (Zizek, 2006). Mas a economia do conhe-
cimento é sustentada pelas políticas da globalização que “pre-
tendem, definitivamente, desmantelar o aparato e as tarefas es-
tatais com vista à realização da utopia do anarquismo mercantil
do Estado mínimo.” (Beck, 1998, p. 17). Os empresários mundiali-
zados descobriram a “nova fórmula mágica da riqueza, que não é
outra senão ‘capitalismo sem trabalho mais capitalismo sem im-
postos’” (idem, p. 20). A globalização significa também: ausência
de estado mundial; mais concretamente: sociedade mundial sem
Estado mundial e sem governo mundial” (idem, p. 32).
Não temos distopias para os dias que vivemos (Bauman, 2001).
‘Brave New World’ (Huxley), ‘Nineteen Eighty-Four’ (Orwell),
‘Fahrenheit 451’ (Bradbury), todas apostavam, para o bem e para
o mal, numa sociedade “sólida” (idem).
Num mundo de ricos globalizados e de pobres localizados, de
problemas tão sérios de “glocalização” (Robertson, 1992 citado
por Beck, 1998), testemunhamos “a vingança do nomadismo
contra o princípio da territorialidade e do assentamento”
(Bauman, 2001, p. 20) e disponhos de total ‘liberdade’ de ação.
Apenas nos falta “a tinta vermelha” (Zizek, 2006, p. 18).
Da Agenda de Lisboa, resultante do Conselho Europeu de Mi-
nistros de Lisboa, no ano 2000, resultou, desde logo, o Plano de
Ação e-learning no qual este é definido como sendo “a utilização
das novas tecnologias multimédia e da Internet, para melhorar a
qualidade da aprendizagem, facilitando o acesso a recursos e a
serviços, bem como a intercâmbios e colaboração a distância.”
(JOCE, 2002). Esta definição, suportada por uma necessidade
afirmada de mudança (da escola e da universidade, do paradig-
ma da educação, das competências de professores e de alunos,
dos métodos e estratégias), tinha em vista a competitividade
europeia numa economia globalizada. Ao nível do ensino superior,
e. g. O ‘acordo’ de Bolonha – estratégia de redução de custos
públicos com o ensino superior universal –, diminui os anos de
graduação para três, cria os mecanismos de equivalências entre
cursos (European Credit Transference System), abre as portas ao
ensino a distância e escancara-as ao ensino privado transnacional
|| 181
(cf. Paraskeva, 2010). Tal ocorrendo “sob a égide da Organização
Mundial do Comércio no âmbito do Acordo Geral sobre o Co-
mércio de Serviços (GATS)” (Santos, 2008, p. 29) e suportada na

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
“inculcação ideológica (...) contra a educação pública” (idem,
p. 28) levada a cabo pelo Banco Mundial na área da educação
(id. ibidem).
O PTE não cai do céu nem é inovador como se quer fazer crer.
Por que porta entrou o PTE na educação pública? A primeira ‘mo-
dernização’ da escola ocorre em Portugal com a introdução dos
computadores nos sistemas de ensino básico e secundário, nos
anos oitenta, com base nos mesmos argumentos de agora. De-
signada por projeto MINERVA (Meios Informáticos no Ensino:
Racionalização, Valorização, Atualização) vigorou entre 1985 e
1994, coexistiu e gerou outras iniciativas, das quais referimos
algumas, as de maior relevo: Programa FOCO, Formação Contí-
nua de Professores (1992); Programa FORJA, Formação de Pro-
fessores do Ensino Secundário em TIC para a Vida Ativa (1993);
Programa EDUTIC, Tecnologias da Informação e Comunicação
para a Educação (na sequência da avaliação do MINERVA, 1995);
Programa Nónio-Século XXI, Tecnologias de Informação e Comu-
nicação na Educação (1996-2006).
Por outro lado, também nos anos oitenta, surge a disciplina
de Tecnologia Educativa (resultante da fusão das anteriores dis-
ciplinas de Meios Audiovisuais e Microensino que integravam o
currículo das já referidas licenciaturas integradas em ensino) na
Universidade do Minho e que viria a ser rapidamente adotada por
outras universidades, escolas superiores de educação, públicas e
privadas. Rapidamente ganhou corpo e estatuto de especialida-
de d))e doutoramento na família das Ciências da Educação. Os
cursos de mestrado e os doutoramentos na área da Tecnologia
Educativa (cujas designações vão sendo recriadas em consonân-
cia com as demandas do mercado) constituem, desde o início dos
anos noventa, uma área de formação com grande ‘procura’ junto
do público docente. A quantidade de trabalho feito é enorme (in-
vestigação sob a forma de dissertações de mestrado e teses de
doutoramento). Contudo, nestas formações não se discute, por
norma, nem a tecnologia nem as suas relações com a escola pú-
blica. A tecnologia é entendida como neutra e supôe-se, sempre
e sem discussão, que a sua integração curricular é inevitável para
além de benéfica. Aplicam-se as ‘novas’ metodologias interativas
e construtivistas que veiculam e reificam conteúdos que fazem
|| 182

crer que as coisas são como são e que não há alternativas. Os


investimentos em TIC (formações financiadas e equipamentos)
vêm sendo brutais e não há registo de análise do seu impacto no
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

sistema educativo.
Como contraditório da tecnocracia que invade a educação,
citemos apenas um estudo europeu (financiado por fundos euro-
peus) baseado em resultados de 17 estudos de impacto recentes
(entre 2004 e 2006) e em inquéritos levados a cabo a nível na-
cional, europeu e internacional, e que confirma que, como bem
sabemos, não existe uma relação direta (como geralmente se
afirma) entre TIC, aprendizagem e conhecimento.
Where studies have been conducted to measure the direct
impact of ICT on student learning and teaching it has not been
possible to identify a purely ICT effect disentangled from other
elements of the learning environment. Furthermore, it has beco-
me increasingly difficult to measure student learning as more is
understood of the complexities of learning. These factors have
to be taking into consideration when looking at the evidence for
ICT and learning outcomes and ICT and teaching methodologies
(Balanskat et al, 2006, p.55).
O primeiro estudo oficial de impacto das e-iniciativas (no âm-
bito do PTE, sub-programas destinados à compra de computa-
dores portáteis e acesso a internet de banda larga) deixa-nos já
alguma informação importante. Relativamente ao programa e-
escolas (destinado a alunos dos 2º e 3º ciclos do ensino básico e
ensino secundário):
A esmagadora maioria dos aderentes, independentemente
da iniciativa, provém de agregados onde existiam computado-
res antes da adesão. Na verdade, 91,1% dos aderentes à e.escola
possuía computador (…) É claro, porém, que aquela posse de
computadores correspondia fundamentalmente à presença de
computadores desktops (ANACOM/ KPMG, 2010, p. 20).
E continua:

Na amostra apurou-se, igualmente, uma adesão diferenciada à e.escola


(com significado estatístico) de acordo com o status socioeconómico das
famílias (ver tabela B.1.1), verificando-se, à exceção da classe baixa, um cres-
cimento progressivo dos aderentes consoante se progride para patamares
socioeconómicos mais baixos. De facto, se nas classes altas e médias altas
temos adesões a rondar os 30,0% (28,9% para a classe alta e 32,1% para a classe
média alta), nas classes médias e médias baixas ultrapassamos os 50,0% de
|| 183
aderentes (51,3% no caso da classe média e 62,7% no caso da classe média
baixa) (idem, p. 41).

Plano Tecnológico da Educação e Educação Pública: Mitos (ensarilhados), limites e falsas promessas
E esclarece em nota de rodapé:

Revela-se infrutífero o esclarecimento, por via do cruzamento com outras


variáveis, dos baixos níveis de adesão da classe baixa. Dado o reduzido nú-
mero de observações (33), qualquer cruzamento deixa de apresentar rele-
vância estatística (idem, p. 42).

Ou seja, quem já tinha computador e acesso a internet conti-


nuou a ter e a usar (ainda bem). Mas os de facto mais desfavo-
recidos, em termos estatísticos formais e oficiais, nem chegaram
lá perto.

Considerações finais não muito líquidas


A modernidade líquida, leve e volátil – a perda de consistên-
cia, perenidade, solidez das relações humanas e da vida social – é
apenas uma modernidade diferente (Bauman, 2001):

O que a faz tão moderna como era há mais ou menos um século é o que
distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio
humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incom-
pleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destrui-
ção criativa (ou de cratividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’
em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’, ‘cortar’,
‘defasar’, ‘reunir’ ou ‘reduzir’, tudo isso em nome da maior capacidade de
fazer o mesmo no futuro – em nome da produtividade ou da competitivi-
dade (p. 36).

Conceber e aceitar a existência humana em cenários físicos e


discursivos do tipo ‘Slumdog Millionaire’ é amoral. Dependendo
da ‘localização’, quem assiste à ‘ficção’ tropeça, à saída do cine-
ma, mais ou menos mas cada vez mais, seguramente, na “ima-
gem que estoura o real” (Zizek, 2006).
Esta ‘urgência’ de integração das TIC na escola pública, a sua
normalização não serve apenas para vender computadores e
para dotar os cidadãos de ‘literacia informática’ elementar. Serve
também a domesticação do seu ‘real’ potencial transformador
|| 184

da sociedade e que é mais ou menos imprevisível. Acreditamos,


contudo – e esta é uma questão de utópica esperança na espécie
humana – que os jovens que as usam hoje descobrirão caminhos
Currículo e Tecnologia Educativa. Volume 3

para melhores e mais justas formas de convivência social. Para-


fraseando Sartre, nós somos aquilo que formos capazes de fazer
sobre o que queriam fazer de nós.
E concordando uma vez mais com Agostinho da Silva:

Do português há a esperar tudo e haver um Povo no mundo do qual tudo há


a esperar parece-me ser uma coisa extraordinária. (...) Gostaria muito que o
povo português se especializasse no imprevisível (Mendanha, 1994, p. 62).

A escola pública não sendo, como sabemos, o movimento so-


cial líder para a transformação social (Enguita, 2007), é enquanto
“agência distribuidora de conhecimento (...), embora não seja
totalmente igualadora, a menos desigual das que conhecemos.”
(Gimeno Sacristán, 2000, p. 95). Impõe-se, portanto, uma recon-
ceptualização do interface PTE e escolarização pública que possa
anular o determinismo tecnológico que surge como discurso de
salvação para todos os problemas da escola pública, cujas ques-
tões fundamentais continuam por discutir.

“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido.” (Saramago,


1986, p.18).

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