Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O fogo do Purgatório é aceso por um sopro infernal, e é tão ativo que não se
chama simplesmente fogo, mas espírito de fogo (Is 4, 4), e derreteria num instante
um monte de bronze, mais facilmente que uma de nossas fornalhas devoraria uma
palha seca.
Tem ainda este fogo, além da atividade natural, uma potência superior, que
lhe dá Deus, para servir de instrumento ao Seu furor. Porém, diz o Senhor pelo
profeta Zacarias, que Ele mesmo, mais que o fogo, purgará e limpará a alma
eleita, ativando com Seu hálito as suas chamas (Zac 3, 9).
E qual não será o tormento das almas benditas naquele cárcere por
meses e anos! Podemos fazer dele uma [longínqua] idéia, considerando que:
a) A alma, assim como é mais nobre que o corpo, é também mais capaz de
sentir vivamente, seja a alegria, seja o sofrimento;
b) A alma unida ao corpo, se sente dor, sente-a temperada pelo mesmo corpo,
e como que dividida entre ambos, servindo-lhe o corpo de escudo e anteparo da dor.
Mas no Purgatório, estando longe do corpo, recebe diretamente sobre si toda a força
da dor;
a) Por quão ligeiras faltas está penando: por uma palavra inútil, por um
olhar curioso, por uma intenção menos reta, que tão facilmente pudera
evitar;
Por isso, as suas maiores ânsias, no Purgatório, são suspiros pela visão
beatífica, de que já sente a aproximação, mas que ainda não pode desfrutar. Clama
ela, como o cego do Evangelho (Lc 18, 41): 'Senhor, que eu veja' essa luz da
glória; que meus olhos desfrutem já da presença divina! Para chegar mais depressa
à visão de Deus, esta alma preferiria que se lhe duplicasse o tormento do fogo,
contanto que findasse o tormento do desejo de ver a Deus.
Conta-se [por exemplo] de Rutília que, sabendo que seu filho fora condenado
ao desterro para terras longínquas, se desterrou também, para não padecer, longe
dele, o tormento da saudade. Mas muito maior que o desejo, é o tormento do
amor. Três são os amores que atormentam as almas do Purgatório:
a) O amor natural, pelo qual a alma, por uma inclinação inata, é atraída para
Deus como a Seu Criador, seu Princípio e último Fim, com maior ímpeto que a pedra
propende para o centro da terra ou a chama para o ar;
A todos estes tormentos se deve juntar a duração das penas, por meses, por
anos e, talvez, até o fim do mundo.
Santo Agostinho diz que, no Purgatório, um dia é como mil anos (In Ps 37).
Conta Santo Antonino que um enfermo havia muito tempo que sofria horríveis
dores. Apareceu-lhe o seu Anjo da Guarda e lhe propôs, por ordem de Deus, que
escolhesse: ou sofrer aquelas dores por mais um ano, ou passar meia hora no
Purgatório. O enfermo respondeu que preferiria estar meia hora no Purgatório, pois
assim acabava mais depressa de sofrer. Pouco depois expirou, e o Anjo foi visitá-lo
no Purgatório. Ao ver o Anjo, a pobre alma começou a soltar gemidos inconsoláveis,
dizendo-lhe que a tinha enganado, pois, tendo-lhe assegurado que estaria ali só meia
hora, já eram passados vinte anos que estava lá penando. Vinte anos? - replicou o
Anjo - não passaram mais que poucos minutos de tua morte, e teu cadáver ainda
está quente sobre o leito!
Um mal qualquer, por maior que seja, se facilmente se pode evitar, não é
grande mal; mas um mal grande, que dificilmente se pode evitar, torna-se extremo.
Santa Teresa d'Ávila conta que, sendo-lhe revelado o estado de muitas almas
na outra vida, só de três sabia que tivessem ido para o Céu sem passar pelo
Purgatório [e uma destas almas era ninguém menos que um São Pedro de
Alcântara].
Nem isto nos deve maravilhar. São Bernardo diz (Decl. sup. Ecce nos) que,
assim como não há obra boa, por mais pequena que seja, que Deus não
remunere largamente, assim não há mal, por mais ligeiro que seja, que Deus
não castigue severamente. Ora, sendo a alma mais justa e santa sujeita a muitas
imperfeições, naturalmente está exposta a ir pagar por elas no Purgatório.
Se por um lado não quer Deus que nada impuro entre no Céu, por outro não
escapa a Seus olhos a mais ligeira mancha, que nós, muitas vezes, nem chegamos
a descobrir. Por isso diz a Escritura que até nos Anjos encontra Deus que
repreender (Job 4, 18), e que os mesmos céus não são puros na Sua presença
(Job 15, 15), e que até nas obras dos justos encontra que emendar (Sl 74, 3).
Oh! Como são terríveis os juízos de Deus, e como são diversos dos
d'Ele os juízos dos homens! O homem não vê senão o que aparece por fora;
Deus, porém, penetra o coração (1 Rs 16, 7).
O padre Baltasar Álvarez, da Companhia de Jesus, confessor de Santa Teresa
d'Ávila, era, por testemunho de sua Santa penitente, um dos homens mais santos e
piedosos de seu tempo. Um dia, ele pediu ao Senhor que lhe revelasse quais eram
as suas obras que mais O agradavam.
Deus Nosso Senhor ouviu a sua oração, e fez-lhe ver as suas obras no
símbolo de um cacho de uvas, em que umas eram verdes, outras amargas,
e só duas ou três estavam maduras, e estas ainda não de todo doces ao
paladar. 'Tais são, disse-lhe o Senhor, as tuas ações; delas só duas ou três
são boas, e mesmo nestas, se examinarem com rigor, não lhes faltará que
repreender'.
Não faltam exemplos na vida dos Santos que confirmam esta doutrina.
A irmã de São Pedro Damião, como ela mesma revelou a uma santa alma, foi
condenada a penar dezoito dias no Purgatório, por ter, de sua cela, ouvido
curiosamente os cantos e músicas que entoavam debaixo da janela.
Na vida, com um dia de penitência, e até com uma hora, podemos satisfazer
por nossos pecados o que no Purgatório nem por um ano expiaríamos. Ora, não é
melhor padecer por um pouco, neste mundo, que padecer no outro por longo
tempo, que pode ser até o dia do Juízo?
Conta Bernardino de Bustis que morreu um pai, e com seus bens deixou um
filho riquíssimo. Este ingrato filho não pensou mais em quem tanto o tinha
beneficiado, pois nunca mandou sufragar a alma de seu pai, que ardia no
Purgatório. Ora, que aconteceu? Ainda que os seus capitais fossem avultadíssimos,
contudo estava sempre em penúria. Contínuas tempestades lhe destruíam as
plantações, males imprevistos dizimavam-lhe os rebanhos, incêndios e
desastres arruinavam-lhe a casa. Já os pleitos, já o fisco, já os inimigos o
obrigavam a gastos desmedidos.
Imaginemos que Jesus Cristo diz a cada um de nós a respeito dos nossos
defuntos, o que disse a respeito de Lázaro: 'Desatai-o e deixai-o ir' (Jo 11, 44).