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História do Design Gráfico

em Portugal

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C.1OOO C.1300

Sombra e luz:
identidade e origens
da nacionalidade
História do Design Gráfico em Portugal — Pers-
pectivas Críticas é uma colecção em 10 volumes da
autoria de José Bártolo que, partindo de uma estru­
turação cronológica, atravessa 11 séculos de história
do design em Portugal, propondo um olhar con­
temporâneo para acontecimentos e processos do
passado de forma a reflectir sobre eles no presente.
Reunindo, na sua maioria, textos inéditos e alguns
textos anteriormente publicados e agora revistos e
actualizados pelo autor, esta obra não se filia num
modelo canónico da história do design, persegue,
antes, o desejo de conciliar a divulgação historiográ-
fica, junto de um público especializado e interessado,
e a leitura crítica de momentos, processos e projectos
da história do design português, colocando-os em
contexto e desenvolvendo sobre eles novas possibili­
dades de interpretação e reflexão.

José Bártolo desenvolve actividade de docência, in­


vestigação, edição e curadoria na área do design des­
de 1998. Coordenou as colecções Design Português
(2015), Almanaque Português (2015) e Designers
Portugueses (2016), distribuídas com o jornal Públi­
co. Professor Coordenador com Agregação em De­
sign, é Presidente do Conselho de Direcção da ESAD
- Escola Superior de Artes e Design e Investigador
Responsável e membro do Conselho de Direcção da
esad-idea, investigação em design e arte. Foi mem­
bro do painel de avaliação em Arquitectura, Design
e Urbanismo da FCT - Fundação para a Ciência e a
Tecnologia e integra a equipa de avaliação dos ciclos
de estudos em Design (especialidade de Design de
Comunicação) e Multimédia da A3ES - Agência de
Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. É tutor
do Programa Novos Talentos Científicos da Funda­
ção Calouste Gulbenkian. Foi editor das publicações
Pli — Arte & Design e Post Millennial Journal e Cura­
dor Geral da Porto Design Biennale (2019).

Atelier d’Alves é um estúdio de design gráfico espe­


cializado em projectos editoriais e identidade com
um forte carácter tipográfico e imagético. Sediado
no Porto desde 2013, é uma das referências inter­
nacionais do design português com distinções por
todo o mundo. Com uma linguagem experimental
e provocadora, imprime a sua visão no mundo da
arte contemporânea, teatro, música e arquitectu­
ra, no qual foca o seu trabalho.
História do Design Gráfico em Portugal:
Perspectivas críticas
vol.i
História do Design Gráfico
em Portugal:
Perspectivas críticas

José Bártolo

Sombra e luz:
identidade e origens
da nacionalidade
Introdução 07

I
Portugal, Portugal 15
ii
História - Design - 23
Portugal: A identidade
como problema

ni
Escrita e alfabeto: 45
O alfabeto latino

IV
Estilos de escrita 59
e tipos de letra

v
Origens e Fundação 77
de Portugal
FRANZ VILLIER

PORTUGA
PETITE PLANETE

A
Portugal, Portugal

15
-fi&.s Portugal. Franz Villier, Collections Microcosme, Petite Planète, 6. Seuil. Bourges, 1976.
Capa de livro. Fotografia de Nicole Gouju. Colecçâo de José Bártolo.

Portugal Franz Villier, Collections Microcosme, Pente Planète, 6, Seuil Bourges, 1959.
Pp. 10-11. Colecçâo de José Bártolo.
io. Editora francesa Entre 1954 e 1958, Chris Marker edita para a Éditions du Seuil'0 a série
fundada cm 1935 por Jcan de livros fotográficos de viagem Petite Planète. Esta série será publi­
Plaqucvcnt (1901-1965) c
adquirida, em 1937. por Paul cada, a partir de 1959, em versão inglesa dentro da colecção Vista Tra­
Flamand e Jcan Bardet. vei editada pela londrina Studio Vista e pela nova-iorquina Viking Press.
Esta série de livros integra uma das colecções Microcosme" e
11. AÉditionsdu
Seuil editou seis séries contempla um número dedicado a Portugal, publicado em 1957. Chris
distintas das colecções Marker. em colaboração com Juliette Caputo, é o responsável pela edi­
“Microcosme": Ecrivans
ção, com texto da autoria de Franz Villier e montagem fotográfica do
de toujors, l*etit Planète;
Maitres Spirituels; l-i Rayon próprio Chris Marker, a partir de fotografias suas e de outros fotógrafos,
dc la Science; Solfèges; como Agnès Varda, Roger Viollet e de clichés da Casa de Portugal.
c Le Temps qui court.
Nos Guide de Tourisme, de icónicas capas verdes e tipogra­
fia a branco, popularizados pela Michelin na década de 1950, os via­
jantes eram atraídos a visitar locais de férias, anunciados por uma
ilustração pitoresca na capa e, no interior, por descrições detalha­
das que iam desde monumentos até lugares de lazer, passando por
referências a hotéis e restaurantes.
Em contraste, os livros Petite Planète apresentavam um clo-
se-up do rosto de uma mulher na capa (cada uma originária do
país) e terminavam com um mapa ilustrado, um quase pastiche dos
mapas popularizados pelos guias turísticos ou pelas publicações de
propaganda, que se destacava, por uma aproximação a um cânone
visual dominante, mas, no ponto de vista da representação carto­
gráfica, por ser pouco preciso ou prático.
Sobre estes livros, Marker esclareceu não se tratar de guias
turísticos, nem de livros de história, nem de folhetos de propa­
ganda, nem de impressões de um viajante, mas sim “algo equiva­
lente à conversa que gostaríamos de ter com alguém inteligente e
bem versado no país que nos interessa conhecer".
Por esta razão, compreende-se, as citações são selecciona-
das com um rigoroso cuidado. Na página 21, do número dedicado
a Portugal, numa secção intitulada "Melancolia Atlântica", é citado
Gilberto Freyre. É relevante notar esta opção por um autor que.
sendo falante da língua portuguesa, não é português e que, a partir
da sua perspectiva brasileira, é um dos pioneiros dos estudos colo­
niais e da investigação sobre a colonização portuguesa.
Freyre é evocado para se clarificar que “hoje em dia já não
acreditamos na particularidade geográfica ou étnica de Portugal
face ao resto da Península Ibérica".
Esta citação pode ser entendida como um quase manifesto,
na sua reacção e oposição a uma construção, totalmente distinta,
de identidade portuguesa que os ideólogos do Estado Novo esta­
vam a montar e disseminar.

17
O número da Petite Planète centrado em Portugal é publi­
cado sete anos depois de uma outra obra, também publicada em
França, ser dedicada a este país.
Referimo-nos a Le Portugal, integrado na colecção Le
Monde em Couleurs, Les Livres de LEIite Touristique, da autoria
de Doré Ogrizek.
Le Portugal de 1950 é explicitamente apresentado como um
“guia de elite turística" e segue uma tradição de livros ilustrados,
neste caso incluindo mapas, retratos e representações de episódios

Ôfi-5 Portugal Franz Villier, Collcctions Microcosmo, Pctitc Planètc, 6, Scuil, Bourgcs, 1959.
Capa de livro. Fotografia de Yan-Casa de Portugal. Colccçâo de José Bártolo.
históricos através da ilustração (onde se destacam as contribuições
de Botelho, Paulo Ferreira, Manuel Lapa e Bernardo Marques, todos
eles ilustradores e designers com larga colaboração com o regime
do Estado Novo). Pontualmente, a imagética é trabalhada através de
gravura em madeira e, mais raramente, de fotografia.
O livro editado por Marker é totalmente distinto, seja do ponto
de vista do olhar ideológico seja do ponto de vista da montagem
visual e do design gráfico. É um livro fotográfico por diferenciação a
um livro ilustrado e nesta diferença não reside, apenas, uma opção
de discurso visual. Está, de certa forma, assumido que a fotografia
contém uma diferente objectividade, menos manipulável do que a
representação ilustrativa.
Ao longo dos volumes desta colecção teremos oportunidade
de analisar outros livros fotográficos nos quais se constrói uma
representação de Portugal: desde o álbum monumental Portugal
1934, com direcção de arte de Leitão de Barros, a Portugal — Um
País que Importa Conhecer (1972), desenhado por Sebastião Rodri­
gues e com fotografia de Augusto Cabrita e Maria Helena Prazeres,
passando, entre outros, por Portugal — Breviário da Pátria para os
Portugueses Ausentes, editado em 1946 pelo SNI — Secretariado
Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, então dirigido
por António Ferro. Voltaremos igualmente a este Portugal da Petite
Planète considerando quer a sua primeira edição de 1959, quer a
segunda, já após a Revolução de 25 de Abril de 1974, no ano de 1976.
Franz Villier começa nestes termos o livro que dedicou a
Portugal:
"Portugal é para um francês um país difícil de alcançar, senão
mesmo de entender, porque para lá chegar é preciso pri­
meiro atravessar essa tela, clara ou escura de acordo com a
ideia que se quer fazer, que é a Espanha. Para um inglês não
é o mesmo. Portugal é o velho aliado de quem bebem o vinho,
é através dele que começam o seu tour pela Europa, como
Byron e Beckford. Mas para nós, se não viajarmos de avião,
há sempre este país vizinho que não só atrasa a viagem como
até nos faz pensar se há realmente algo no fim, se à beira
do Atlântico não é apenas mais uma Espanha enfraquecida,
pouco diferente, aquilo que descobrimos."

É com as palavras de Villier que deixamos o leitor e, sem


atrasar a viagem e sem antecipar o que está no fim dela, é por esta
publicação que iniciamos as nossas perspectivas críticas.

19
Portugal. Franz Villier, Collections Microcosme, Petite Planéte. 6, Seuil. Bourges, 1959.
Capa de livro. Fotografia de Yan-Casa de Portugal. Pp. 2-3. Colecçâo de José Bártolo.
fig. 7 c 8 Portugal. Franz Villicr. Collections Microcosme, Petite Planéte, 6. Seuil, Bourgcs,
1959. Capa de livro. Fotografia de Yan-Casa de Portugal. Pp. 52-53 e 56-57.
Colecção de José Bárrolo.
UM»

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G A I. I C E TUr»» r»Ww.

E O N
II
História - Design
- Portugal:
A identidade
como problema

23
Regnorum Portugalliae et Algarbiae, mapa desenhado por P. Placídum Augustinum
incluído no livro Mapas de Portugal. Esta obra é um atlas factício, composto por mapas
de Portugal dos séculos XVI, XVII e XVIII. A compilação terá sido organizada, a avaliar
pela encadernação, na segunda metade do século XIX. Biblioteca Nacional de Portugal.

tfig. 10 Portugalliae Que Olim Lusitania. Cana de Portugal da autoria de Fernando Alvares
Seco, na versão editada no Thcatrum Orbis Tcrrarum de Abraham Ortelius, em
Antuérpia, em 1570. Primeira representação cartográfica do território continental
português, existem três edições da Cana de Álvaro Seco, todas impressas no
estrangeiro. Biblioteca Nacional de Portugal.
12. Entrevista de Alexandra O poeta e tradutor israelita Rami Saari diz-nos que, “mais do que
Lucas Coelho a Rami em qualquer outro lugar, em Musrara [bairro junto à Cidade Velha
Saari, Revista Publica.
Suplemento do Jornal de Jerusalém] tenho a sensação de não pertencer a uma só coisa.
Público. 15 de Maio, Porque eu não tenho de ser uma só coisa. E algo que detesto em
2005. Apud. Rita Ribeiro,
Israel é esta necessidade de escolher ser uma coisa, como afirma­
A Europa na Identidade
Nacional. Dissertação ção de personalidade. Não creio que tenha de ser só judeu, só israe­
de Doutoramento cm lita, só homem... (._) Nunca sou sempre o que sou".12
Sociologia, Universidade do
Se nos reconhecermos nesse lugar de privilégio onde “nunca
Minho, 2008. pp. 19-20.
somos sempre o que somos” ou onde podemos ser mais do que que­
13. Rita Ribeiro, rem que sejamos, importa questionar quem determina as escolhas
Op. Cit., p. 20.
identitárias que fazemos, isto é, “identificar a tensão latente entre a
14. Claudc Lévi-Strauss, autonomia individual, do sujeito na sua autoafirmação identitária e
durante o curso dedicado acionai, e a correlativa sujeição”13 — seja ela secular ou momentâ­
ao tema da identidade
nea, enraizada ou exercida à flor da pele — às forças de identifica­
desenvolvido em
1974/1975. afirmou que a ção, classificação, disciplina e regulação social.
“a identidade é uma espécie Vém estas notas a propósito da ideia de identidade portu­
de foyer virtual 30 qual
nos é indispensável fazer guesa, que um título como o desta obra implicitamente envolve e
referencia para explicar um deve ser entendido como lugar de problematização. Sem querer­
certo número de coisas, mas
mos questionar se existe um design português ou, num sentido
que não tem uma existência
real”. Por isso, na sua muito mais amplo, se podemos caracterizar uma identidade portu­
opinião, “toda a utilização guesa, parece-nos importante não deixar de nos aproximarmos de
da noção de identidade
uma crítica da noção de identidade.14
começa por uma crítica
desta noção". Aproximamo- O historiador José Mattoso intitulou uma das suas obras
nos, aqui, desse método. maiores de Identificação de um País.15 Mattoso considera que umas
Cf. LTdcntité. Séminairc
das questões fundamentais do conhecimento histórico consiste em
interdisciplinaire dirigé
par Ciaude Lévi-Strauss. averiguar como se formaram as nações, reconhecendo que a ques­
professeur au Collège de tão pode ser abordada, por um lado, como fenómeno próprio da
Francc, 1974-1975. Paris.
sociologia política e da sociologia da cultura, ou, por outro lado, no
Grasset, 1977. pp.33>’332-
plano concreto do tempo e do espaço, como fenómeno histórico
15. José Mattoso, próprio de uma determinada nação.
Identificação de um País;
Eventualmente, os dois lados de possível abordagem à questão
Oposição. Composição.
Ensaio sobre as origens não têm de, necessariamente, dar lugar a uma bifurcação que obriga
dc Portugal 1096-1325. a fazer uma escolha (escolher entre um ou outro caminho), provavel­
Lisboa, Temas c Debates c
Circulo de Leitores, 2015. mente eles entrecruzam-se e, frequentemente, se indissociam.
Não obstante a sugestão de Lévi-Strauss de que usemos o
16. Para um conceito de identidade com prudência crítica, a noção surge-nos,
enquadramento critico
há longo tempo, mas também actualmente, nocentrode vários dis­
do tema leia-se a obra de
Javier Gimeno-Martínez, cursos e debates disciplinares — da antropologia à ciência política
Design and National e. também, ao design16 — e tem alimentado inúmeras pesquisas
Identity, Bloomsbury, 2016.
sobre “políticas de identidade" de nacionalidade, género, sexuali­
dade, etnia e cultura.

25
17. Para uma Na sua raiz etimológica, a palavra identidade deriva do
contextualização mais
termo latino identidem, remetendo para algo que se repete, suge­
ampla, leia-se, por exemplo,
o artigo “Beyond “identity" rindo uma qualidade do que é idêntico e apresentando uma certa
de Rogers Brubaker e estabilidade e continuidade ao longo do tempo.
Frederick Cooper. Theory
Podemos, no entanto, reconhecer no conceito de identidade
and Society, 29.1 47, 2000.
uma outra dimensão, que a sociologia contemporânea tem aprofun­
18. Enciclopédia Einaudi, dado, associada à representação da identidade, à sua identificação.
vol. 10 Dialéctica, Lisboa,
Imprensa Nacional Casa
Como analisam Rogers Brubaker e Frederick Cooper, não há iden­
da Moeda. 1984, p. 44. tidade sem alteridade; não há identificação sem diferença.’7
Transcrição adaptada.
Na entrada da Enciclopédia Einaudi dedicada aos concei­
tos "Identidade/Diferença" é dito que “identidade e diferença
19- Rita Ribeiro,
A Europa na Identidade constituem um dos pares filosóficos mais significativos; extremos
Nacional, Dissertação inseparáveis de todo e qualquer método de conhecimento racio­
de Doutoramento cm
nal, quer analítico quer sintético, são categorias irrenunciáveis do
Sociologia, Universidade
do Minho. 2008, p. 16. conhecimento articulado do mundo, representando no interior de
toda e qualquer totalidade o principal meio de identificação e
informação”.'6
A identidade é construída no envolvimento de uma diver­
sidade de factores implicados numa espécie de propriocepção
individual ou colectiva. Faz-se a partir da reunião de elementos
com os quais nos identificamos, mas também na reacção aos ele­
mentos com os quais não nos identificamos: na afirmação através
da demarcação de diferenças. Faz-se, por isso, também na relação
dual com a alteridade e no “jogo de espelhos" com o Outro e o modo
como ele nos reflecte.
Pensado como conceito relacional, a identidade não é fixa,
nem exclusivista, mas construída e agenciada discursivamente,
socialmente e historicamente; a identidade não é um núcleo essen­
cial e pré-determinado de algo ou alguém, mas uma construção
condicionada por relações de querer, saber e poder; a identidade
não é uma construção fechada e inalterável, mas, antes, fragmen­
tada, compósita e em transformação constante; a identidade não é
imposta a algo ou alguém, mas resulta de processos voluntários,
aquisitivos e tendencialmente em aberto.’9
A identidade pertence, também, ao plano da representa­
ção. A identidade de um país não coincide, necessariamente, com
o conjunto dos seus elementos representativos, mas não deixa de
ser identitariamente construída a partir deles. O design do mapa ou
da bandeira que representa o país, tal como o design de elementos
que são específicos de um Estado — que, na actualidade, podem ir
da identidade gráfica do Governo ao design dos selos ou das notas
bancárias -, exercem uma função, simultaneamente, como formas

26
20. Suiart Hall e Paul de representação e formas de identificação, expressões de identi­
<Ju Gay, Questions of
dade e de diferenciação.
Cultural Identity, Londres,
SAGE, p. 4. Apud, Rita Como chama a atenção Stuart Hall, “as identidades nunca
Ribeiro, Op. Cit., p. 16. são unificadas" e, na actualidade, “cada vez mais são fragmenta­
das e fracturadas; (...) são sujeitas a uma historicização radical e
estão constantemente em processo de transformação e mudança.
(...) Ainda que pareçam invocar uma origem num passado histó­
rico a que correspondem em linha directa, na realidade as identi­
dades referem-se mais a questões do uso dado aos recursos da
história, linguagem e cultura no processo de se tornar mais do que
de ser".20
A identidade deve, assim, ser entendida como um signifi-
cante flutuante cujo significado é passível de ir sendo construído
e desconstruído no tempo. Também, por isso, a identidade é cons­
truída de cada vez e, nessa mesma lógica, em parte ela é sempre
ainda não encerrada.
Se, em relação a Portugal, como a qualquer outra nação,
quisermos falar em identidade, somos confrontados com os diver­
sos processos que contribuíram para a formação de uma ideia
de nação, para as várias formas através das quais ela foi repre­
sentada ao longo do tempo, para o seu reconhecimento e para a
sua identificação; onde somos confrontados, também, com uma
noção-problema.
Estas considerações podem valer quer para a identidade de
um país quer para a identidade de uma disciplina ou área de prática
profissional, como o design, quer para a identidade individual. Do
ponto de vista do design — da sua história e da sua análise crítica -,
a questão central não deve ser colocada na identidade do design —
questão que podia ser enunciada pela pergunta: existe um design
português? mas na forma como o design é usado para construir
expressões identitárias.
Podemos, seguindo uma noção já introduzida, falar em loca­
lizações identitárias.
A mais problemática dessas localizações é a que procura
fixar traços identitários baseados em elementos comuns da perso­
nalidade dos Portugueses.
Inúmeros retratos psicológicos dos Portugueses foram
sendo feitos sobretudo na sequência da publicação d'Os Lusíadas,
de Luís Vaz de Camões.
No Canto II d'Os Lusíadas surgem-nos termos associados à
nobreza, grandeza, força e pureza dos Portugueses:

27
O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza
Quanto a gente fortíssima merece;
E com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos ennobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem
Pera que de seus reinos se servissem.

A Portuguesa, que permanece, ainda hoje, como hino nacio­


nal, foi escrita por Henrique Lopes de Mendonça, em 1890, num
contexto histórico muito particular (certamente anacrónico se lhe
quisermos reconhecer, hoje, alguma actualidade), afirmando-se
como uma canção de cariz nacionalista acentuado por ser escrita
em reacção ao que se sentia como ataque e humilhação provoca­
dos pelo ultimato britânico.
A sua letra dissemina, na viragem do século XIX para o
século XX, um ideário que o Estado Novo, com distintos objecti-
vos políticos, tratará de enraizar:

Heróis do mar, nobre povo,


Nação valente, imortal.
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!

A narrativa histórica forjada durante a vigência do Estado


Novo encarregar-se-á de criar figuras heroicas, começando pela
narrativa mítica em torno de Viriato e a genealogia enfatizando a
descendência dos Portugueses dos bravos Lusitanos, passando
pela narrativa em torno da glosa dos heróis do mar, na qual se pro­
cura uma legitimação ancestral para a política colonial, terminando
na ficção do povo de brandos costumes que educava para valores
de submissão necessários a um regime autoritário.
Por idênticas razões são construções narrativas frágeis
aquelas que procuram criar retratos psicológicos identitários
baseados na ideia de saudade ou trabalhadas sobre a interpre­
tação da palavra final com a qual se encerra Os Lusíadas: inveja.
Uma igual fragilidade, cuja dissecação é mais complexa e
não será por nós tematizada, centra-se nas construções discursi­
vas em torno das noções de raça ou etnia.
A construção de discursos centrados na demarcação da
diferença e inferioridade do Outro, baseados na noção de raça,

28
21. Isabel Castro tendo origens bastante anteriores no tempo, consolida-se durante
Henriques, Os Pilares
o século XIX, em torno das teorias do “racismo científico" larga­
da Diferença: Relações
Portugal-Ãfrica, mente exploradas para legitimar políticas coloniais europeias em
séculos XV-XIX, iJsboa, África, na Ásia e no Pacífico.
Caleidoscópio, 2004, p. 20.
Isabel Castro Henriques escreve, com propósito: “Do ponto
22. |osé Mattoso, de vista estritamente científico poder-se-ia dizer que tais leituras
Identificação de um Pais. são simplesmente ingénuas, na medida em que se apoiam em ele­
Oposição. Composição.
mentos de parca importância. Podemos de facto aceitar a existên­
Ensaio sobre as origens
de Portugal 1096-1325. cia de uma ingenuidade científica que só a anatomia dos séculos
Lisboa, Temas e Debates/ XIX e XX conseguirá enfim resolver, mas ela é mais perversa do que
Círculo de Leitores, 2015.
ingénua, na medida em que a sua grelha do saber tem como objec-
tivo reforçar as condições de dominação, negando qualquer quali­
dade ao africano colonizado. Não se trata apenas de lhe recusar a
possibilidade de algum dia integrar os valores civilizacionais do
branco, mas antes de provar a sua selvajaria."2’
A análise feita por Isabel Castro Henriques é clara na forma
como põe em evidência o modo como os processos de afirmação
de uma identidade se constroem, frequentemente, através do exer­
cício violento em relação à diferença e na inferiorização do Outro.
Uma outra localização identitária pode ser encontrada na
história. Falar, em abstracto, em história não nos possibilita avan­
çar criticamente em nenhuma análise consequente. Devemos, por
um lado, distinguir a forma como uma nação, por exemplo, cons­
trói, processualmente, as suas formas de autorreconhecimento e,
por outro lado, o modo como a historiografia constrói interpreta­
ções narrativas desse processo.
Enquanto narrativa construída, num determinado espaço e
tempo, a história faz-se e refaz-se. Manuel Lucena intitulou uma
sua obra, publicada em Maio de 1975, de Portugal Correcto e
Aumentado O título da obra sugere-nos que quer a correcção
quer a dimensão (seja do ponto de vista da extensão territorial ou
de qualquer ordem de valor) são políticas.
Ao nível da história de Portugal, uma recorrente focalização
identitária centra-se na origem fundacional. Porém, origem e fun­
dação são noções distintas, ambas complexas.
Se nos focarmos na interpretação proposta por dois dos
mais relevantes historiadores portugueses contemporâneos, José
Mattoso e Vitorino Magalhães Godinho. encontramos duas propos­
tas de periodização da fundação da nacionalidade portuguesa
ligeiramente diferentes: José Mattoso22 considera um arco tempo­
ral de quase quatro séculos, dentro do qual os anos de 1096 e 1325
são datações fundamentais; já Vitorino Magalhães Godinho, num

29
23. Vitorino Magalhães dos seus últimos estudos23, alargou o âmbito de análise sobre as
Godinho, Portugal: a origens da nacionalidade para um arco temporal que vai do século
emergência de uma
nação: das raízes a 1480, XII até ao fim do século XV, nele situando o processo de “emergên­
Lisboa, Colibri, 2004. cia" da nação portuguesa.
Para José Mattoso, a origem de Portugal esta directamente
24. José Mattoso,
A Identidade Nacional, associada ao instaurar de uma determinada realidade político-ad­
Lisboa. Grádiva, 1998, p. 67. ministrativa. "O Estado português foi agregando a si uma série de
áreas territoriais com poucos vínculos entre si, com acentuadas
25- Idem, Ibidem.
diferenças culturais e com condições de vida muito distintas. O que
26. Paul Teyssier, História fez a sua unidade foi a continuidade de um poder político que
da Língua Pontigucsa, dominou o conjunto de uma maneira firme e fortemente centrali­
Martins Fontes. 1982.
zada."24 Nas palavras do mesmo historiador, “Portugal começou
27. Idem, Ibidem, p. 32. por ser uma formação de tipo estatal; só lentamente acabou por se
tornar numa nação.25
A diferença estabelecida por José Mattoso é significativa:
formado e reconhecido como Estado — com a sua autoridade
soberana e um conjunto de poderes políticos e administrativos
— só num processo temporal gradual Portugal se constitui como
nação, integrando num mesmo território, unificado por uma forma­
ção estatal, diversos elementos linguísticos, sociais, culturais, eco­
nómicos e históricos identificadores.
Na sua História da Língua Portuguesa, Paul Teyssier26 aju­
da-nos a compreender estes processos complexos da formação de
Portugal, como Estado e como nação, bem como a história pré-
-existente ao reconhecimento de Portugal como Estado soberano.
Teyssier e outros linguísticas históricos ajudam-nos a percepcio-
nar como um conjunto diverso e complexo de acontecimentos,
desenrolados num tempo longo, vão determinando, em fluxos
vários, a formação de três línguas peninsulares — o galego-portu­
guês, desenvolvido a partir de apropriações do latim vulgar, com
maior incidência a Oeste; o castelhano, língua indo-europeia româ­
nica, na região central e, mais predominante a leste da Península,
o catalão nos seus vários dialectos.
De acordo com Teyssier, “nas regiões setentrionais, onde se
formaram os reinos cristãos, a influência linguística e cultural dos
muçulmanos tinha sido mais ténue que nas restantes regiões.
À medida que se avança para o sul, ela vai se tornando mais saliente,
sendo profunda e duradoura do Mondego ao Algarve. Foi na pri­
meira destas regiões, ao norte do Douro — tendo talvez como
limite extremo o curso do Vouga, entre o Douro e o Mondego -, que
se formou a língua galego-portuguesa, cujos primeiros textos
escritos aparecem no século XIII".27

30
’8. Cláudio Torres e O Testamento de D. Afonso II, escrito em Coimbra e datado
Santiago Macias, “Apogeu
de 27 de Junho de 1214, é o mais antigo documento régio datado
da civilização islâmica
no Ocidente ibérico”, escrito em galego-português.
IN Roberto Carneiro Este documento é copiado pela chancelaria régia num estilo
(Coord.), Memória de
de escrita que podemos designar de escrita solene, neste caso
Portugal O milénio
português, Lisboa, Círculo com influência da letra carolina.
de Leitores, 2oot, p. n. Num contexto histórico marcado pelo evidente predomínio da
cultura oral, a língua e a escrita pertencem, de certo modo, a univer­
sos paralelos. O primeiro, em toda a sua diversidade, atravessa todas
as dimensões da vida social, pública e privada; o segundo encontra-
-se circunscrito a usos bastante específicos, nomeadamente a litur­
gia, a escrita oficial (ou político-administrativa) e a cópia de livros.
O universum regum (“reino universal" por oposição aos rei­
nos regionais e aos territórios dominados por senhores feudais ou,
a sul da Europa, sob ocupação muçulmana), conhecido por Impé­
rio Carolíngio, sob governação de Carlos Magno, dominou o Centro
e Norte da Europa entre os anos de 800 e 888, mas a sua influên­
cia prolongou-se bastante no tempo. No Sul, o império de Carlos
Magno atravessava os Pirenéus e fazia fronteira com o Emirado de
Córdova (756-929), ao qual sucederá o Califado de Córdova.
A relação dos reinos cristãos com o Califado é complexa.
Coexistem relações diplomáticas, acordos comerciais e conflitos
militares. A erosão do Califado, resultante, em grande medida, da
dificuldade de controlar um espaço de influência política e comer­
cial tão alargado dentro de um xadrez geoestratégico instável, em
parte pelo desgaste dos conflitos militares do Norte de África nas
últimas décadas de 900, encoraja os reinos cristãos, no início do
século XI, a reforçar um movimento ofensivo com vista a alcançar
a sua soberania.
Até perto do ano 1000 a maioria do território da Penín­
sula Ibérica encontra-se sob dominação do Califado de Córdova
(929-1031), que estende a sua influência política, cultural, comercial
e linguística, desde o Norte de África até ao território de Espanha.
Cláudio Torres e Santiago Macias descrevem-nos como o
século XI ficou marcado, a Norte, “por duas figuras de dimensão
maior: Fernando I, o Magno, e Afonso VI, reis de Leão e Castela.
O reinado do primeiro teve particular importância no que toca ao
Ocidente peninsular pelo apoio dado à consolidação dos poderes
locais e regionais (em detrimento da importância do conde de Por-
tucale), num primeiro momento e. também, na fase subsequente,
devido às campanhas que promoveu no território coimbrão entre
1057/448 e 1064/456"?8

31
29. Ana Maria Martins, Porém, a ideia de Reconquista que alguma historiografia usa
"O primeiro século para se referir, por exemplo, ao controlo militar e político por parte
do português escrito”,
IN A.B. Agrelo (Ed.), das monarquias feudais ibéricas em Coimbra (a partir de 1064),
Na Nosa Lyngoage Santarém e Lisboa (1147), Évora (1165) e Faro (1249) é um conceito
Galega. A cmerxcncia
erróneo. Por um lado, os Reinos Cristãos alcançaram o domínio
do Galego como lingua
escrita na Idade Media, militar de territórios que vão assumir uma nova identidade admi­
Santiago de Compostela, nistrativa apenas posteriormente à conquista islâmica, por outro
CCG&ILG, 2007, P-163.
lado, as diversas configurações identitárias que podemos reco­
30. Maria José Azevedo nhecer neste período caracterizam-se por miscigenação, proces­
Santos, “O Papel da Escrita sos longos, complexos e heterogéneos de transição e mudança.
no Tempo de D. Afonso
No século XII, quando se inicia a fundação da nacionalidade
Henriques", IN No tempo
de D. Afonso Henriques: portuguesa, no território português circulam, na oralidade, diver­
Reflexões sobre o primeiro sas línguas. Persiste a influência árabe e do latim, coexistem diver­
século português, Porto.
CITCEM, 2017, p. 235. sos dialectos e ideolectos, mas o galego-português vai ganhando
uma clara prevalência.
Ao nível da escrita, oficialmente, será em 1279, no início do
reinado de D. Dinis, que a língua portuguesa passa a ser a língua
político-administrativa oficial, mas, como ressalva Ana Maria Mar­
tins, “apesar desta oficialização do português como língua escrita,
só na última década do século XIII a produção documental em por­
tuguês cresce significativamente, tornando-se dominante relativa­
mente à latina já no século seguinte".29
Quando entramos no século XIII é possível reconhecer que
a utilização do português escrito não está já, quase em absoluto,
confinada aos usos Iitúrgicos, à produção notarial e à actividade de
cópia de livros desenvolvida nos scriptoria monásticos; também a
produção literária, iniciada pela poesia e crescendo, no século XIII,
com a introdução da prosa, vai circulando em folhas soltas que ten­
dem, depois, a ser reunidas em cancioneiros.
A longa e profunda influência árabe, a herança deixada pela
governação política do Califado de Córdova e o dinamismo das
comunidades moçárabes — na sua maioria católicos romanos
que praticavam a liturgia visigótica — ajuda-nos a compreender a
longa prevalência que a escrita visigótica terá na península ibérica.
Maria José Azevedo Santos esclarece que “a maior parte das
instituições religiosas do Portugal afonsino possuía, além da chan­
celaria vocacionada (...) para a feitura de cartas de natureza admi-
nistrativo-validatória, o scriptorium, espaço destinando à realização
da cópia dos códices, (...) de que é forçoso realçar os de Santa Cruz
e da Sé de Coimbra, da Sé de Braga, dos mosteiros de Lorvão e de
Alcobaça só para citar os maiores".30

32
3i. Idcm. Ibidem, p. 238. Em relação aos modelos gráficos da escrita, a mesma autora
sugere que “após o monopólio peninsular praticado pela chamada
32. José Marques.
escrita visigótiea, até meados do século XI. de que se conhecem,
“Caminhos da escrita no
Noroeste de Portugal, sem influências externas, três variedades (cursiva, semi-cursiva e
na Idade Média. Alguns redonda ou elegante), entra-se, ainda que paulatinamente, num
aspectos”. IN Revista
da Faculdade de Letras. longo processo de transição desta tipologia para uma outra desig­
Ciências e Técnicas do nada por letra carolina".3'
Património, Porto, 2006- Desde o século IX que, dos Pirenéus para norte, a letra domi­
2007,1 Série, Vol. VI, p. 292.
nante era a carolina minúscula, imposta por Carlos Magno como
uma espécie de escrita oficial durante o seu domínio imperial; no
33. José Marques,
Idem, p. 293. entanto, como referimos, na Península Ibérica persistirá o recurso
frequente ao estilo de escrita visigótiea, que perdurará no tempo,
34. Para um mesmo dando lugar a formas gráficas de transição ou passando a
aprofundamento sugerimos
a leitura da obra de Maria ter um uso mais circunstancial sobretudo após a mudança da litur­
José Azevedo Santos, gia visigótiea para a liturgia romana no século XI.
Da visigótiea á carolina.
José Marques chamou à atenção para como, na região
A escrita em Portugal
de 882 a 1172. Lisboa, noroeste de Portugal, à data da fundação de Portugal, no âmbito
Fundação Calouste da antiga diocese de Braga, são com ela coincidentes, “além da
Gulbenkian, 1994.
Catedral, com a respectiva escola capitular, (...) mais de setenta
mosteiros ‘de tradição visigótiea', alguns dos quais aderiram, pro­
gressivamente, às novas observâncias monásticas — beneditina,
agostinha e cisterciense — que viriam a implantar-se, em Portugal,
no último quartel do século XI e durante a primeira metade do
século XH".32
Como procuraremos complementar no capítulo dedicado
aos “Estilos de escrita e tipos de letra" e contextualizar melhor no
volume seguinte, os primeiros scriptoria dos mosteiros construí­
dos em Portugal vão fazer, em alguns casos ao longo dos séculos
XI e XIII, uma gradual adaptação às novas observâncias monásticas
evoluindo da tradição visigótiea para os modelos beneditino, agos-
tinho e cisterciense.33 Durante esse período, que podemos desig­
nar de transição, encontramos nos códices produzidos o recurso a
diversos modelos gráficos, essencialmente caracterizado pelo
recurso à escrita visigótiea (redonda e cursiva) e a progressiva e
predominante adaptação da carolina mas, também, o uso da
minúscula diplomática, bem como de formas de transição entre a
escrita carolina e a gótica cursiva e a introdução, por influência dos
mosteiros do sul de Itália, da escrita benaventana.34
Para mencionarmos, apenas, alguns exemplos, podemos
fazer referência ao Liber Codicum copiado no scriptorium do
Mosteiro de Lorvão, em 1139, na forma gráfica da letra visigótiea
de transição, e, códice contemporâneo do Liber Codicum. à Bíblia

33
35- Carlos Alberto de Santa Cruz de Coimbra, executada entre as décadas de 1130
Medeiros. Portugal:
e 1140, revela a existência de scriptors com domínio técnico da
Esboço Breve de Geografia
Humana, Lisboa, Terra escrita carolina.
Livre, 1976, p.7. Uma outra, neste caso, uma última, localização identitária
pode ser dada pela geografia. Mas a própria geografia presta-se a
36. Orlando Ribeiro,
A Formação de Portugal, ser percepcionada e representada por pontos de vista que não são
Lisboa, Série Cultura ideologicamente neutros.
Portuguesa, Ministério No nosso imaginário colectivo, a geografia de Portugal apa­
da Educação, 1987.
rece-nos como um rectângulo, grosseiramente recortado, “à bei­
ra-mar plantado", segundo a expressão de Tomás Ribeiro; uma
“jangada de pedra", como a imaginou José Saramago, que se presta
a viagens reais e ficcionais.
Localizado no extremo sudoeste do continente europeu,
Portugal tem essa configuração próxima de um rectângulo, dis­
posto ao longo da faixa costeira ocidental da Península Ibérica
sem incluir a parte norte, que corresponde à região espanhola da
Galiza. De norte para sul, o território português atinge o compri­
mento de 561 km; de oeste para leste, a sua largura varia entre 112
km e 218 km. No seu todo, o território ocupa uma superfície de 88
500 km2, correspondendo a cerca de 15% da Península Ibérica.
A geografia contemporânea portuguesa, através de autores
como Amorim Girão (1895-1960), Orlando Ribeiro (1911-1997) e
Carlos Alberto Ribeiro (1942-), tem sublinhado como, na fisionomia
geográfica de Portugal, há dois aspectos particularmente diferen-
ciadores: “a precocidade com que ficaram fixados os seus limites e
os vigorosos contrastes que se evidenciam em território de tão
reduzida extensão."35
Em A Formação de Portugal36, Orlando Ribeiro reconhecia
que a fronteira portuguesa fixada nas suas linhas principais quando
terminou a chamada Reconquista é o mais antigo limite político
mundial, perdurando há oito séculos com essa função política e
administrativa estabilizada.
Esta descrição, sendo objectiva, não deixa de se prestar a
interpretações subjectivas. Geógrafos como Francisco da Silva
Teles (1860-1930) e Hermann Lautensach (1886-1971) foram defen­
sores da ideia de que a estabilidade territorial e política de Portu­
gal estaria directamente ligada à sua caracterização geográfica.
Embora a geografia contemporânea se tenha demarcado, em
vários aspectos, da interpretação destes autores do início do século
XX, reúne algum acordo reconhecer no posicionamento geográfico
do território português um factor relevante para a precoce autono­
mia de Portugal como país soberano.

34
37. Carlos Alberto Como nos descreve Carlos Alberto Medeiros, “o actual ter­
Medeiros. Portugal: ritório português fica nos confins do mundo conhecido pelos povos
Esboço Breve dc Geografia
Humana, Lisboa, Terra da Antiguidade Clássica, no extremo ocidental da Europa, longe
Livre, 1976, pp.8-9. dos principais focos de civilização e pouco tocado pela sua influên­
cia, arredado dos caminhos das grandes invasões históricas e dos
38. Orlando Ribeiro,
fecundos contactos culturais que suscitaram, (...). A presença do
A Formação dc Portugal,
Biblioteca Breve, Instituto Atlântico traduz-se por aspectos paradoxais: percorrido apenas
dc Cultura c Língua inicialmente numa estreita faixa junto do continente e povoado até
Portuguesa, 1987.
tarde por lendas fantasiosas e monstros terríveis, ajudou a refor­
39. Lindlcy Cintra çar esse isolamento; mas, por outro lado, permitiu desde cedo
"Nova proposta de ténues contactos com o litoral do noroeste europeu e ilhas próxi­
classificação dos dialcctos
mas, através de navegações que parecem remontar à Idade dos
galego-portugueses”.
Boletim de Filologia, Metais e que, se não anularam as consequências da posição mar­
XXII, 1983, pp. 81-116. ginal do território, criaram ao mesmo tempo uma sorte de vocação
para o estabelecimento de relações distantes”.37
A descrição proposta por Orlando Ribeiro em A Formação
de Portugal38 ajuda a entender como as características da geogra­
fia e as ocorrências históricas, as especificidades culturais e as
condicionantes militares, a economia e a língua parecem interagir,
conjuntamente, nessa definição que se pode questionar como
identitária.
Sendo as línguas corpos vivos, em mudança e apresentando
diversos factores de variação sincrónica, de natureza geográfica,
política, económica, religiosa e social, oferecem espaço para que
elementos de inovação linguística coexistam com formas antigas,
podendo sobrepor-se-lhes e tornarem-se normativas ou, pelo con­
trário, regredirem e não se chegarem a impor.
Se adoptarmos a periodização proposta por Lindley Cintra,
distinguiríamos, na história da língua portuguesa, a fase do portu­
guês antigo (dos primeiros textos, nos séculos XII e XIII até ao
século XIV), médio (do século XIV até ao aparecimento da primeira
gramática, no século XVI), clássico (até às profundas convulsões
políticas, económicas e sociais do século XVIII) e moderno (depois
do século XVIII).39
No seu Roteiro de História da Língua Portuguesa, Ana
Paula Banza e Maria Filomena Gonçalves explicam como a forma­
ção histórica do português tem como antecedente um processo
longo e heterogéneo de diferenciação do latim que conduziria à
formação dos romances peninsulares e à formação do galego-por­
tuguês. À chegada dos romanos, o mapa linguístico da Península
Ibérica era caracterizado pela diversidade complexa de falantes
com origens diferentes: proto-bascos, celtas, tartéssios, iberos,

35
40. Ana Paula Banza e fenícios. À influência das línguas pré-romanas na situação de con­
Maria Filomena Gonçalves, tacto linguístico com o latim, resulta o fenómeno que a linguística
Roteiro de História da
Língua Portuguesa, histórica designa de Substrato.40
Universidade de Évora, Entre o mapa linguístico e o mapa geográfico diversas inter-
2O18,pp.l7-2t.
mediações se tendem a verificar. Ambos são da ordem do repre-
sentável, como de seguida procuraremos enunciar.
41. Vitorino Magalhães
Godinho, Op, Cit.p.iç. Nos seus dois primeiros séculos de existência independente,
Portugal vai progressivamente definindo um território e um poder
42. Suzanne Daveau,
soberanos. Depois, os século XII e XIII serão marcados pelo que
“Conhecimento Actual da
Representação Cartográfica Magalhães Godinho designa de “construção de uma realidade
de Portugal no século nova: o Estado e a comunidade de terra e povo".4'
XVI”, IN António Campar
Et. al. (Coord.) Olhar o
O processo multissecular de, na expressão de Magalhães
Mundo, Ler o Território. Godinho, “emergência” da nação portuguesa é, pois, alimentado
Uma viagem pelos mapas
simultaneamente pelos factos históricos e pela consciência colec-
(colecçâo Nabais Conde),
Coimbra, Instituto de tiva; por uma particular combinação entre território, população,
Estudos Geográficos/ cultura, falada e escrita, e língua estabelecida e desenvolvida na
Centro de Estudos
longa duração.
Geográficos, Faculdade
de Letras da Universidade O culminar da emergência da formação da nacionalidade
de Coimbra, pp. 33-37. coincide com o início da representação visual do território nacio­
nal. Em rigor, a cartografia pode, ainda, ser entendida como esse
43. Maria Helena Dias,
Portugalliae Descriptio. Do processo de “dar forma” que é, em si mesmo, constitutivo de for­
1’ mapa conhecido (1561) mas identitárias.
ao 1“ mapa moderno (1865),
Através da representação cartográfica desenvolviam-se,
Lisboa, Instituto Geográfico
do Exército, 2006. igualmente, processos de diplomacia da identidade nacional, da
sua representação, localização e reconhecimento: um darmo-nos
a ver ao Outro.
A primeira representação do território continental português
conhecida é o mapa da autoria de Álvaro Seco desenhado no início
da segunda metade do século XVI. O manuscrito original do mapa
de Álvaro Seco não chegou até nós, mas a partir dele foi impressa a
edição mais antiga que é conhecida, saída da oficina do editor vene-
ziano Michele Tramezzino e gravada por Sebastiano di Re.
Como descrevem autoras como Suzanne Daveau42 e Maria
Helena Dias43, esta primeira edição, na escala e 1:1.340.000, de for­
mato reduzido (36x66 cm), terá sido encomendada no âmbito da
preparação da embaixada diplomática de Portugal a Roma na
sequência da coroação de Sebastião I como rei em Junho de 1557.
Num contexto histórico em que a Santa Sé assumia um
poder supra estatal na geopolítica europeia e existindo uma com­
plexa agenda de assuntos de Estado para tratar, como o funciona­
mento da Inquisição, a nomeação dos núncios apostólicos em
Portugal e o processo dos Cristãos Novos, é particularmente

36
44 João Carlos Garcia, significativo que uma das ofertas diplomáticas tenha sido um mapa
“A Lusitânia para o Cardeal
de Portugal, destinado ao Cardeal Guido Sforza, influente cardeal
Guido Sforza: Um mapa
de Portugal de 1561 na da Cúria, próximo dos interesses dos Habsburgo de Espanha.44
Biblioteca Nacional”, Em 1561, o importante editor e cartógrafo quinhentista
Boletim da Faculdade de
Gerard de Jode publica em Antuérpia uma nova versão, em quatro
Letras - HISTÓRIA, Porto,
III Série, 2010, pp. 363-368. folhas (60x96 cm), numa escala maior (1:750.000), obra dos grava­
dores Jan van Doetichum e Lucas van Doetichum. Esta versão do
45- Idem, Ibidcm,, p. 364. mapa de Álvaro Seco será publicada no atlas Speculum Orbis Ter-
rarumu, de Gerard de Jobe, nas edições de 1578 e 1593.
Trata-se, já, de edições comerciais, num período onde a
comercialização de mapas e atlas se vai tornando progressiva­
mente maior, não só pela função do mapa em si, mas também pelo
interesse que despertam em coleccionadores, pelo seu valor artís­
tico, e em livreiros, no âmbito da sua actividade comercial.
A partir das referidas edições de 1561 e 1565, Abraham Orte-
lius inclui o mapa da “Lusitânia" como folha do Theatrum Orbis
Terearum, considerado o primeiro atlas moderno, cuja primeira
edição é de 1570, tornando-se um dos mais populares atlas do
último quarto do século XVI.
Sendo o mapa de Álvaro Seco a mais conhecida represen­
tação visual do território português entre a segunda metade do
século XVI e a primeira metade do século XVII, observado hoje,
ele apresenta diversas características que importa analisar. O que,
imediatamente, “salta à vista" é a orientação, com o Oeste no topo
e a representação do território “ao baixo". Esta torção do terri­
tório para Nordeste, que provoca um alinhamento impreciso do
Cabo Finisterra com o litoral norte de Portugal, tem sido objecto
de diversas hipóteses de interpretação. Terá sido o mapa manus­
crito de Álvaro Seco construído tendo por base dados cartográfi­
cos muito anteriores? Terão sido as edições impressas conhecidas
responsáveis por uma alteração significativa do original? É sabido
que, no século XVI, se vai disseminando a edição e comercializa­
ção de atlas factícios, reunindo colecções de mapas com escalas
e dimensões diversas, “forçadas" ampliações, aparos ou dobras,
para a uniformização do volume, conforme as gravuras eram de
dimensão maior ou menor.
João Carlos Garcia chama a atenção para como, neste mapa,
a representação cartográfica de Portugal, “observada de Leste
(Roma), em perspectiva, a fachada ocidental da Península Ibérica,
‘perde-se1 no horizonte, para Oeste".45 Na tradição da cartografia
do seu tempo, talvez este mapa correspondesse a uma "represen­
tação erudita" que, tal como uma obra literária ou artística,

37
46- Sobre csra tematica assumia a liberdade da construção ficcional de uma determinada
pode consultar-se a obra
representação narrativa.
de Pamcla H. Smith c
Paula Findlcn (Edi.), Na verdade, quando um mapa não era desenhado com uma
Mcrchanu & Marvck. função cartográfica claramente definida, fosse ela militar ou de
Commercc, Science,
apoio à construção de infraestruturas, seria comum entender-se a
and An in Early Modcrn
Europc, Routldgc, jooj. cartografia como uma representação a meio caminho entre a ciên­
cia, a cultura popular e a representação erudita. O seu valor comer­
47. Joio Carlos Carda.
cial, como artefacto gráfico, era reconhecido num mercado de
Op CiL, p. 365
transição entre o final da Idade Média e o início da modernidade na
48- Maria Helena Europa, que se dinamiza no comércio de artefactos que oscilam
Dias, Op. Cit., p. 8.
entre a ciência, a arte e a fantasia. Tal como a história natural — nas
obras de Conrad Gessner (1516-1565) ou de Ulisse Aldrovandi
(1522-1605) são ainda abundantes as representações visuais de
seres fantásticos, como dragões e hidras — também a cartografia
e as artes que lhe estão associadas, como a gravura, alimentam
esse comércio das mirabilias.*
Por analogia ao mapa de Álvaro Seco, dir-se-ia também que
a representação, a comunicação e o reconhecimento das identida­
des nacionais são da ordem do factício, objecto de inúmeras formas
de instrumentalização política, religiosa, científica ou discursiva.
Como descreve João Carlos Garcia, "a unidade do país" que
o primeiro mapa de Portugal representa, “é sublinhada pelas armas
da Galiza, do Reino de Leão e do Reino da Andaluzia, que circun­
dam Portugal, uno e coeso sob o escudo dos castelos e das quinas.
Na versão erudita de Tramezzino encontramos, numa mais redu­
zida dimensão, as 'Antigas Armas de Portugal', a cruz de São Jorge,
vermelha em campo branco. Na variante de 1565, as armas de Por­
tugal inscrevem-se no escudo empunhado por Neptuno, que
cavalga um monstro marinho e proclama a glória das conquistas
portuguesas no mar".47
Cerca de um século mais tarde, o mapa de Álvaro Seco e as
inúmeras versões que dele circularam é substituído pelo mapa de
Pedro Teixeira, impresso em Madrid, em 1662, sob o título de Des-
criptción del Reyno de Portugal y de los Reynos de Castilla
Trabalhado em gravura por Marcus de Orozcos, publicado em
quatro folhas, o mapa de Pedro Teixeira apresenta uma configuração
cientificamente errada do relevo do território português. “Ao contrário
do que acontece no mapa de Álvaro Seco em que só a Serra de Mon-
tejunto foi representada, aqui os pequenos montes em perspectiva,
todos levantados a partir de um mesmo plano, enchem generosa­
mente o espaço entre os numerosos cursos de água, tanto na monta­
nhosa Cordilheira Central como na região plana do Alentejo."*8
O mapa de Pedro Teixeira não pode, ainda, ser dissociado da
intensa e competitiva actividade comercial de editores, impresso­
res e livreiros que produzem e comercializam mapas em folhas sol­
tas ou encadernados em atlas. Verdadeiramente, só na sequência
da actividade da Academia das Ciências de Paris, criada em 1666,
se inicia, primeiro em França, depois irradiando a sua influência
por grande parte do espaço europeu, o desenvolvimento de uma
cartografia científica rigorosa, sendo os elementos ornamentais e
decorativos dos mapas anteriores, gradualmente, substituídos por
elementos infográficos de carácter informativo.

\<n» Rri.xi l’oll 11 MU l,S >i Al.liARhIA UCKUrrio .V .vtA-.u.s

fig. 1 Le royaumc de Portugal et dcs Algarves: divise en ses Archevéchés, Evêchés et territoircs.
Mapa (75 x 55 cm) da autoria de Nicolas Sanson (1600-1667), Impresso em Paris por Alexis-
I lubcrt Jaillot cm 1695. Biblioteca da Universidade de Coimbra. Cota: NC-639.
49. Sobre este contexto O mapa da autoria do cartógrafo francês Nicolas Sanson,
consulte-se a obra de editado por Alexis-Hubert Jaillot em 1695, Le royaume de Portugal
Andrew Pettigrec e
Arthur der Wcduwen, The et des Algarves divise en ses archevêchés et territoires, enqua­
Bookshop of the World: dra-se já nesse contexto de modernização científica da cartografia.
Making and Trading Books
Porém, o comércio das matrizes de gravura e as reimpressões, fre­
in the Dutch Golden Age,
New Haven/London, Yaic quentemente com alterações, manter-se-ão.
University Press, 2019. No início do século XVIII, provavelmente em 1710, o acervo de
mapas, chapas e matrizes de gravura do holandês Frederick de Wit
50. Augusto Santos Silva,
"Como abordar a identidade é comprado por Pierre Mortier, livreiro francês estabelecido em
nacional Portuguesa?”, Amesterdão e em Leipzig e com "privilégios" de edição e comercia­
Revista Todas As Artes.
lização de mapas na Holanda e na Alemanha.49
Porto, Vol.i, n.°t, 2018, p. 13.
É dessa corrente de circulação, aquisição e impressão de
material gráfico, tendo por base a gravura em madeira e metal, que
irá surgir, em data posterior a 1720, o mapa Novíssima Regnorum
Portugalliae et Algarbiae descriptio, da autoria de Frederick de Wit.
Obra contemporânea do mapa de de Wit é a Geografia His­
tórica de todos os Estados Soberanos da Europa, da autoria de
Luís Caetano de Lima e impressa em dois volumes (1734 e 1736),
na oficina de José António da Silva. Editada durante o reinado de
D. João V, na sua feitura terão estado envolvidos diversos desenha­
dores, gravadores, compositores e tipógrafos.
Carlos de Grandprez será o autor de um mapa, editado em
1730, dedicado a D. João V. Trata-se de uma das mais rigorosas
representações cartográficas até então editadas e, igualmente, um
trabalho de grande rigor gráfico executado em calcografia.
Num artigo publicado na década de 1930, o filósofo polaco
Alfred Korzybski escreveu que “um mapa não é o território que
representa, mas, se correctamente representado, tem uma estru­
tura semelhante ao território”.
A identidade é, em grande medida, esse campo de cons­
trução representativa, onde representado e representação podem
coincidir por semelhança.
Em “Como abordar a identidade nacional Portuguesa?”,
Augusto Santos Silva considera: “Não quer isto dizer que o único
fundamento da identidade nacional portuguesa esteja nesta pre­
ponderância do Estado como agente de definição política e terri­
torial. Se a nação é, sempre, uma certa combinação entre território,
população e cultura, estabelecida e desenvolvida na longa dura­
ção, as bases territoriais da nação que formamos existem e são
conhecidas — significando território, precisamente, o duradouro
relacionamento entre as gentes e as terras, isto é, entre a história
e a geografia.”50

40
51. Em relação a esta Embora não fugindo a lidar com as questões movediças da
temática, continua a ser de
identidade, este breve capítulo não se orienta por uma preocupa­
uma actualidade central
o ensaio de Eduardo ção de procurar contribuir para a identificação de elementos carac-
Lourenço, O Labirinto da terizadores de uma identidade portuguesa.51
Saudade. Psicanálise Mítica
Guiados pela perspectiva da história e crítica do design, não
do Destino Português,
Lisboa, Publicações temos a pretensão ou o interesse de construir recortes rígidos do
Dom Quixote, 1978. que analisamos dentro de um plano alargado do que designamos,
de um modo sujeito a discussão, de design em Portugal.
52. Onésimo Tcotónio
Almeida, A Obsessão da Por um lado, o enunciado design em Portugal integra em si
Portugalidade. Lisboa, movimentos de diáspora, expande-se e articula-se com uma prá­
Quetzal Editores, 2017.
tica exercida quer por designers de nacionalidade portuguesa,
53. Moisés de Lemos quer por designers de outras nacionalidades, seja dentro do terri­
Martins, "Da Obsessão tório português, seja noutras geografias.
da ‘Portugalidade’ aos
Por outro lado, não nos revemos em nenhum interesse em
Equívocos c possibilidades
da Lusofonia", prefácio à inscrever o design dentro de uma ideia de portugalidade ou fazer
obra de Vítor de Sousa, Da reflectir esta nos acontecimentos, processos e obras que interes­
Portugalidade à Lusofonia,
V. N. dc Famalicão,
sam a uma análise do design em Portugal.
Edições Húmus, 2017. Onésimo Teotónio publicou, em 2017, um ensaio sintomati­
camente intitulado A Obsessão da Portugalidade.52
54 Alfredo Almeida, Em
A reflexão de Teotónio desenvolve-se, na expressão de Moi­
defesa da Portugalidade,
Guimarães, 1947. sés de Lemos Martins, "à maneira de um mosaico de muitas peças
e tem como objecto a questão da identidade nacional”.53 A inscri­
55. Vítor Sousa, “O Estado
ção, dentro de uma construção teórica da identidade portuguesa,
Novo, a cunhagem da
palavra 'portugalidade' da ideia de portugalidade inicia-se em 1947, durante a vigência do
e as tentativas da sua Estado Novo, com a publicação da obra de Alfredo Pimenta Em
reabilitação na atualidade",
Revista de Estudos em
Defesa da Portugalidade.54
Comunicação, n.9 25, Vítor de Sousa contextualiza-o bem: ideologicamente ali­
vol. 1. Dezembro de
nhado com o ideário do Estado Novo, Alfredo Pimenta assume-se
2017, pp. 287-312
como defensor da tradição, antiparlamentar, antipartidário e anti-
56. A descrição é feita comunista, autointitulando-se doutrinador de portugalidade.56
c aprofundada por A ideia de um luso-tropicalismo, que autores como Gil­
Vítor dc Sousa no seu
artigo “Lusofonla(s) e berto Freyre haviam teorizado, só tardiamente foi explorada em
'portugalidade': uma obras ideologicamente conotadas com o regime, como acontece
impossibilidade”. IN
no livro de António Ferronha, Consciência da Luso-Tropicali-
Estudos Lusófonos:
múltiplos olhares, Colccção dade, editado em 1969, no qual o autor discorre sobre a temática
Lusofonia, Vol. 111, Editora da portugalidade em termos de luso-tropicalidade, argumen­
Terracota. 2016. pp 31-63.
tando em prol do que diz serem princípios humanistas do colo­
nialismo português.56
Vítor de Sousa ajuda-nos a compreender como “este ideá­
rio é justificado pelo alegado desleixo dos portugueses em fixar, de
forma consistente e estável, a noção de 'portugalidade', construída
sobre a revisitação histórica das ‘descobertas ultramarinas’ e do

41
57. Vítor de Sousa, processo de criação do império colonial (...)n.57 O autor associa a
Op. CiL, pp. 287-312.
“portugalidade" ao Império, salientando que o conceito é ideoló­
58. Vítor de Sousa. Op. gico e promove a construção da sua unidade política e cultural:
Cit., p. 293; António Luís “Portugal é moralmente um Império, constituído de diversíssimos
berronha. Consciência da
territórios e etnias variadas e portador de uma ideologia que é a
luso-portugalidade: seus
princípios humanistas, portugalidade, construtora da unidade política e cultural daquele."58
sua visão da África Da construção de visões artificiais de Portugal ocupou-se,
pré-portuguesa, sua
constituição, seu futuro
também, o design gráfico, como já introduzimos nas referências às
c responsabilidade, primeiras representações cartográficas de Portugal.
Porto, Tipografia
Um dos exemplos mais conhecidos é o mapa desenhado por
Marca, 1969, p. 256.
Emerico Nunes, feito para uma publicação de Henrique Galvão edi­
59- Martin Dodgc c tada por altura da Exposição Colonial do Porto de 1934.
Rob Kitschin, Atlas of Fora do plano da cartografia, vários outros exemplos, mais
Cyberspace, Londres,
subtis, podem ser identificados em relação à forma como a geo­
Pearson Educai ion,
2001, p.3. grafia é objecto de significações ideológicas.
A título de exemplo, pensemos no título de duas importan­
tes revistas de cultura publicadas durante o Estado Novo: Atlântico
e Litoral. A direcção gráfica da primeira pertenceu a Manuel Lapa
e a da segunda a Bernardo Marques, ambos nomes influentes da
ilustração e do design gráfico português da segunda metade do
século XX. Os dois títulos inscrevem as suas localizações identitá-
rias, valorizando a costa litoral portuguesa, a relação com a fronteira
oceânica e, implicitamente, a ideia de um Portugal ultramarítimo.
Citando, de novo, as palavras de Alfred Korzybski, convém
enfatizar que “o mapa não é o território”, “a palavra não é a coisa".
O design gráfico opera com representações, ele pode representar
coisas e territórios, não os é. Mas na sua tangibilidade, o design é,
simultaneamente, operação e operado, representação e represen­
tado, discurso e coisa.
Martin Dodge e Rob Kitschin diziam-nos que “através do pro­
cesso de criação de mapas tomam-se um grande número de deci­
sões subjectivas sobre o que incluir e o que excluir, como o mapa
deverá parecer e o que o mapa procurará comunicar. Por outras
palavras, um mapa está imbuído dos valores e julgamentos da pes­
soa que o constrói. Além disso, são inegavelmente um reflexo da
cultura e dos amplos contextos histórico e político em que os seus
criadores vivem. Como tal, os mapas não são artefactos objectivos
e neutros, antes são construídos para provocar determinadas
impressões nos leitores. Os mapas são, pois, representações situa­
das, consubstanciadas e selectivas. Em geral, as mensagens são as
dos poderosos que pagam para os mapas serem desenhados e a
mensagem ideológica é da sua escolha".59

42
60. José Bartolo, O que Dodge e Kitschin notam relativamente à cartografia,
“A revolução, um projccto
deve ser estendido para outras dimensões de representação grá­
inacabado?", IN Maria
Milano (Org), Paolo fica. Como recordava Katherine McCoy, “o design não é um pro­
Dcganello: as razões do cesso neutro e ausente de valor". Pelo contrário, o que o design é
meu projccto radical,
e o que design faz está sempre no centro de uma prática política e
ESAD, 2009, pp. 547-558.
eticamente comprometida.
61. Audre Ixrrde, Num texto anterior,60 afirmámos que o design é a política
Sifter Outsider Etsays
continuada por outros meios. Nestas perspectivas críticas que o
ind Spccches, Crossing
Press. Bcrkeley, 1984. leitor vai encontrando ao longo desta colecção, vamos procurar
evidenciar e esclarecer esta ideia. Fá-lo-emos com humildade, não
nos ocorre outra palavra, com a consciência, também, como apren­
demos de Audre Lorde que “as ferramentas do mestre nunca irão
desmantelar a casa do mestre".61

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0
" PORTUGAL
NÃO É
UM PAÍS
PEQUENO"

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fig u Portugal Nâo É Cm Pais Pequeno. Mapa organizado por I lenriquc Gabão c concebido
graficamcnu- por Emcrico Nunes, publicado entre as páginas 23 c 23 do livro Nb Rumo
do Império, impresso na Litografia Nacional do Pono no âmbito da 1* Exposição Colonial
Portuguesa que se realizou no Palácio de < ristal, na cidade do Porto, entre 16 de junho c
30 de setembro de 1934. A exploração deste registo de representações cartográficas havia
sido iniciado em 1931 no contexto da participação portuguesa na Exposition Colonialc dc
Paris, tendo para o cíeito sido criada uma Comissão de Cartografia constituída por Diogo
dc Macedo, Durdio Gomes, Emcrico Nunes e Ered Kradolfer Colccçio de José Bânolo.
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O alfabeto latino

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•A* '3 5 iniciais da letra “D” decoradas Manuscrito iluminado contendo cópia das Decretais de
Grcgório IX. Produzido cm França entre o séc. XIII c início do século XIV. British Library.
Cota: ff. 4-314.0 Arquivo Nacional da Torre do Tombo possui uma cópia das Decretais, igual­
mente datável do séc. XIII copiada no scriptorium do Mosteiro de Santa Maria de Belém.

•Cg 14 Folha de livro litúrgico com alfabeto latino e textos de iniciaçio á leitura. Escrito em letra
gótica. Produzido na Holanda cm 1445. British Library.
62. Salikoko S. Mufwene, O linguística Salikoko S. Mufwene propõe-nos que pensemos a lin­
The Ecology of Language
guagem como uma tecnologia natural colectiva cuja evolução vai
Evolution, Cambridge
Univcrsity Press, 2009. acompanhando, para tornar a comunicação mais eficiente, o
desenvolvimento de comunidades à medida que as suas estrutu­
63. Volumcn é a
ras sociais se vão tornando mais complexas.62
designação através da
qual a cultura latina Esta noção pode servir para pensarmos a comunicação lin­
define o rolo de papiro guística no contexto de comunidades humanas e não humanas e,
em que está escrita uma
em relação às primeiras, para reflectir sobre elas em diferentes
obra; a palavra assume,
igualmentc, o significado geografias e tempos históricos.
de volume, livro e obra. Se a linguagem é uma tecnologia natural colectiva, as lín­
guas são, essencialmente, tecnologias artificiais colectivas, cons­
64 O termo latino
codex designa tabuinhas truções igualmente complexas e determinantes na forma como
de escrever, geralmente comunicamos e estruturamos modelos sociais, com as suas orga­
enceradas c. a partir da
nizações e valores específicos.
Alta Idade Média, o livro
encadernado. Optamos Neste sentido, a produção de alfabetos pode ser entendida
nesta publicação por usar como uma das primeiras e mais decisivas tecnologias das civiliza­
o termo português códice
(c o plural códices) pelo seu ções humanas.
amplo uso na Codicologia As palavras escritas, desde os tempos das placas de argila
c na Paleografia. sumérias e ao longo dessa grande massa de tempo onde vemos

65, Alberto Manguei, surgirem os volumina6' de papiro e, mais tarde, os códices64 de per­
Uma história da leitura, gaminho ou papel, destinavam-se a serem pronunciadas em voz
Lisboa, Editorial alta. Na verdade, a cultura escrita não cindia uma ligação primor­
Presença,1998, p. 23.
dial com a cultura oral, antes prolongava-a e fixava-a.
66. Henri Jean Martin. O adágio latino scripta manent, verba volant — o que está
"Pour une histoire escrito permanece, o que é dito voa — usava-se em louvor da pala­
de la Iccturc", Rcvue
vra dita em voz alta, que tem asas e pode voar, em comparação com
françaisc d’histoire du
livre, 46. Paris, 1977. a palavra silenciosa, imóvel, inscrita na pedra ou na página.
Manguei recorda-nos que, “deparando-se com um texto
escrito, o leitor tinha o dever de dar voz às letras silenciosas
(scripta)", e assim permitir-lhes que se tornassem verba, palavras
faladas, animadas de uma vida própria.65
Como sabemos, as línguas primordiais da Bíblia — o ara-
maico e o hebreu — não diferenciam o acto de ler do acto de falar,
designando ambos pela mesma palavra.66
A maior parte dos alfabetos actualmente usados corres­
ponde a uma grafia fonográfica, na qual cada letra (grafema) se
associa a um som (fonema), porém, quando há milhares de anos
a escrita surgiu no Médio Oriente Antigo era pictográfica, corres­
pondendo a uma representação através do desenho de coisas —
signos que representavam 0 mundo e a vida.
Lima de Freitas dizia que “quando falamos de Artes Gráficas
vemos, antes de mais nada, a raiz grega de graphos que denota,

47
67. AAW, Falindo do imediatamente, a vocação de escrita, ligada a tais artes. Escrita no
Oficio, Lisboa, Sociedade sentido de traço, risco, de sinal, de caracter (...). Por outro lado, não
Tipográfica, 1989, p.5.
só o texto escrito provém do pictograma e do sinal gráfico, como a
ele se associam muitas manifestações da mais requintada quali­
dade artística (...) onde a letra, a decoração da página, como hoje
se diria, a imagem, santa ou profana, a cor, eram imagens falantes,
verdadeira linguagem tecida de imagens, que constituía um todo
de significações consonantes".67
A escrita é ordenadora, impõe as suas regras, as suas téc­
nicas, numa palavra diríamos que toda a escrita é política. É a par­
tir dela que se estabelecem regras e se activam poderes formais e
informais. É, também, a partir e através dela que se instaura uma
ordem de poder e saber definidora de valores, em grande medida
associados ao valor da palavra — a palavra sagrada ou palavra
como lei, a palavra que declara, proíbe, liberta, questiona ou con-
tratualiza — e às diferentes formas de relação entre palavra, ima­
gem e vida.
Desde a origem das primeiras civilizações, o desenvolvi­
mento da escrita é indissociável da possibilidade de se instaurar
um regime de lei e ordem: pesos e medidas foram padronizados
e inscritos; códigos legais estabelecem a ordem social e a justiça;
a escrita fornece bases de contratualização, registo e regulação
comercial; assume relevância ritual, cerimonial e religiosa. A par­
tir da tecnologia da escrita instaura-se, também, uma tecnologia
de arquivo, uma base material onde a palavra escrita e inscrita será
guardada, preservada, tornada acessível ou restrita.
Como representação gráfica, linguagem de tradução visual,
a escrita reflecte, estende e modifica a própria linguagem oral,
introduzindo uma gramática simbólica figurativa através da qual
o próprio modo como se fala é reaprendido. E a escrita gera, tam­
bém, um sentido de história, agregado à materialidade do docu­
mento e ao corpus documental do arquivo.
Porém, pelo menos até à Idade Média e durante este período,
os livros — esses objectos que tanto seduzem o olhar do historia­
dor de design — eram maioritariamente lidos em voz alta A escrita
antiga, em rolos de pergaminho, não separava as palavras, não
fazia a distinção entre maiúsculas e minúsculas, nem empregava
pontuação. Adequava-se, naturalmente, à educação para a leitura
de alguém que contaria com o ouvido para distinguir aquilo que aos
olhos parecia uma linha contínua de signos.
Ancoradas na oralidade, das quais partem e para as quais
regressam, as letras, as palavras e as frases desenhadas, não

48
68. Durante o período precisavam de ser separadas em unidades fonéticas, podendo
medieval, desenvolvem-se aparecer num encadeamento contínuo. A direcçào que o olhar
gradualmentc Importantes
alterações na m< rfologú do segue para percorrer estas cadeias de letras varia de lugar para
texto, nas formas de leitura lugar e de época para época. A nossa técnica de leitura, actual e
e no valor e função dos
ocidental, está longe de ser universal ou transversal aos diversos
manuscritos. Uma alteração
centra-se na organização tempos históricos.68 Também as modalidades da leitura se alteram,
do texto, evoluindo-se em diferentes momentos, geografias e contextos, da leitura em voz
de uma escrita continua,
alta, para a leitura em silêncio, da leitura comunitária para a leitura
que caracterizava a escrita
antiga, para a introdução solitária, até ao presente, para o áudio-livro e o podeast nos devol­
de espaços separando as ver. numa mediação tecnológica digital, uma reaproximação entre
palavras Uma segunda
alteração resulta da gradual
oralidade e escrita.
utilização de elementos Indissociável das formas de ler e das suas técnicas, estão as
de pontuação c da criação formas de escrever e os modos como o livro ou o documento se
de um sistema para o seu
uso A pontuação introduz produz, se reproduz, se comercializa, se guarda, se defende ou
elementos de estrutura persegue.69
ligadas á compreensão
Por fim, indissociável das formas de escrita e das suas téc­
do manuscrito como um
documento entendido nicas, há todo um complexo emaranhado de valores, uma cul­
como pertencente a cultura tura. as suas regras de poder-saber. que contextualiza a prática
escrita c não à tradição
do design. Por ser sempre uma prática política, que legitima ou
oral Durante o período
carolíngio, cuja influência resiste a valores vigentes, a história do design não deve interpretar
perdura largamcntc esta disciplina como neutra, pelo contrário, deve perscrutar e pôr
para alem da vigência
do Império Carolíngio
em evidência o seu activismo, as formas particulares como atra­
(800-888). desenvolve-se vés do design se desenvolvem processos activos de representação
uma cultura de cópia de e modificação cultural. Num sentido idêntico, a história do design
textos da Antiguidade
clássica assegurando a sua deve pôr em lugar de problema a própria história, assumindo que
preservação, mas, igualmentc, toda a história (ou melhor, toda a historiografia) é localizada, feita
a sua interpretação e
e desfeita por forças para as quais deve estar atenta, a atravessam
comentário. A letra carolina
minúscula tende a impor-se e em relação às quais só muito parcialmente o historiador é plena­
como tipo de letra dominante mente consciente das suas actuações.
na l-uropa < kidental e
(entrai, associada a um
Uma estória antiga conta-nos que. no século V a. C., a Sicí­
cânone gráfico de desenho lia foi governada por dois tiranos que confiscaram as terras aos
do livro manuscrito cuja seus legítimos proprietários. Quando no ano de 467 a. C. o regime
influência será determinante
despótico foi derrubado, os proprietários reclamaram a posse
íx; A par das investigações das suas terras, originando um processo judicial longo e exaus­
da história contemporânea tivo. Teria sido nesse contexto, para testemunhar diante do tribu­
centradas na evolução do
livro, duas outras disciplinas nal. que os filósofos Córax e Tísias compuseram o primeiro tratado
desenvolveram-se, de argumentação.
produzindo estudos
A retórica estaria, deste modo, ligada a um “processo de
fundamentais para a
história do design gráfico: a propriedade’, como se a linguagem, enquanto mecanismo de
Paleografia c a Codicologií, transformação e meio de uma prática, se tivesse determinado
particularmcntc centrada
a partir da forma de sociabilidade mais mundana, a da luta pela
no estudo da produção
material do manuscrito. posse da terra.

49
70. Christiin Phnttn. Esta narrativa fundadora da retórica é paralela à narrativa
A Argumentação, Coleção fundadora da geometria. Heródoto, no século V a. C.. atribui a sua
Teoria da Argumentaçio,
Grácio Editor. 1010. invenção aos egípcios que regularmente se viam obrigados a traba­
lhos de reconstrução na sequência das cheias causadas pelo rio
Nilo. Tratar-se-ia, em ambos os casos, da linguagem se relacionar
com limites desfeitos, num caso pela natureza, noutro pelo exercí­
cio de um poder tirano. A geometria é dada como resposta para as
catástrofes naturais; a retórica como resposta para as catástrofes
políticas. Christian Plantin, que estabelece esteparalelismo.sugere-
-nos que aquilo que é feito pelas palavras só por elas pode ser
desfeito.70
Estas duas narrativas interessam-nos pelo modo como evi­
denciam a relação entre linguagem e sistemas de poder e é neste
sentido que importa não perder de vista o alcance da nossa suges­
tão de compreendermos a linguagem como uma tecnologia natu­
ral colectiva e a língua e, em particular, o alfabeto como construção
artificial colectiva.
Por uma economia do estudo no qual a presente obra se
foca, dos diversos alfabetos antigos — como o aramaico, o grego ou
o coreano -, vamos considerar, apenas, o alfabeto latino Fá-lo-e­
mos, pelo menos, no esforço possível de historiografar um alfabeto,
sabendo que a sua história é bem distinta da história de um arte­
facto. Enquanto história da linguagem, corpo vivo que se transforma
ao longo dos processos humanos que dele se apropriam, a história
do alfabeto latino ramifica-se com a história de outros alfabetos dos
quais surgiu, evoluiu ou se entrecruzou em sucessivas actuahzações.
Também importa sublinhar que a história da evolução da
escrita está directamente relacionada com a evolução e a modifi­
cação da sua materialidade, dos seus suportes e dos instrumentos
usados para gravar, desenhar ou imprimir A tecnologia associada à
escrita alfabética é. por sua vez, um meio instrumental regulado ou
condicionado por valores de um determinado espaço e tempo histó­
ricos, com a política e a religião — na verdade tão interligadas entre
si — a procurarem impor as suas regras. Não surpreende, por isso,
que. por exemplo, os signos cuneiformes assírios sejam muito dis­
tintos dos signos cuneiformes sumérios, enquanto a escrita hieroglí-
fica egípcia, com um agenciamento político e cultural mais estável,
se tenha mantido menos mutável ao longo de mais de três mil anos.
A arqueologia conservou milhares de inscrições da antigui­
dade romana, preservando-as até aos nossos dias. Esse acervo, em
sucessivas actualizações, corresponde, certamente, a uma amos­
tragem ínfima da produção epigráfica original — praticada no


71. Douglas G McMurtrie. mundo romano entre o primeiro milénio a. C. e meados do primeiro
O Livro, Lisboa, Fundação milénio d. C. —, recorrendo maioritariamente ao Latim como lín­
Caloustc GulbenkUn.
3' edição. 1997, P-6O. gua e a um alfabeto possivelmente originado da evolução do alfa­
beto linear dos fenícios, apropriado e alterado pelos gregos, com
pequena influência do alfabeto etrusco, e depois pelos romanos,
estabilizando-se próximo daquele que utilizamos nas línguas oci­
dentais como linguagem de escrita.
Escrever-se da esquerda para a direita ou da direita para a
esquerda é, fundamentalmente, uma convenção, fixada pelo uso
de longo tempo. Os fenícios escreviam da direita para a esquerda
e na antiguidade grega existiu a prática da escrita de linhas alter­
nadas em direcções opostas. Os gregos chamaram a este método
de escrita, para a frente e para trás, de bustrofedon que, em tradu­
ção literal, significava “como os bois avançando de um sulco para o
outro", abandonando-o gradualmente para estabilizarem, há cerca
de 25 séculos, a convenção de escrever da esquerda para a direita.
Foi. em particular, o alfabeto grego ocidental que. ao entrar
em Itália e progressivamente ao ser usado sobretudo como escrita
comercial, se tornou o precursor do alfabeto latino
Uma tradição latina muito antiga fixou o ano 753 a. C. como
data da fundação da principal cidade, Roma. Eventualmente essa
data celebraria a independência latina do domínio etrusco ou teria
outro valor ou simbolismo que a opacidade dos tempos longos da
história não deixa revelar.
Não obstante o conflito entre latinos e etruscos, os antigos
romanos herdam uma cultura imensa dos vizinhos etruscos, que
lhes deixaram uma vasta herança cultural, a nível religioso, legal,
arquitectónico, artístico e alfabético.
Como realça Douglas McMurtrie, “não sabemos, porém, ao
certo como e quando a comunicação intelectual da escrita se
difundiu primeiro entre os Latinos"7’ Sem ser consensual, tem-se,
frequentemente, datado um dos artefactos mais antigos contendo
escrita em alfabeto latino de aproximadamente 600 a. C.: trata-se
de uma fíbula de ouro, mencionada na historiografia como Fíbula
Pranestina. na qual está inscrita, à maneira arcaica, da direita para
a esquerda, MANIOS MED VHEVHAKED NUMASIOI ("Manius fez-
-me para Numasius").
Terão passado cerca de dois séculos após a produção da
fíbula de Preneste até os romanos estabilizarem o alfabeto numa
forma próxima da que, actualmente, reconhecemos nas nossas
letras maiusculas Mais um tempo longo passaria até ao alfabeto
latino reunir vinte e três letras, só faltando os nossos J,Ue W.

5i
72. Identificaremos, Com a expansão romana, alargam-se, não só as frontei­
maioritariamente, como ras imperiais e da dominação dos seus valores, mas, igualmente,
scriptor aquele que se ocupa
do desenho das letras. as fronteiras da língua, falada e escrita. Este processo de difusão,
senão mesmo de imposição, do latim como língua dominante vai
73. Identificaremos como acompanhando a sua progressiva circulação como principal língua
laplcida aquele que inscreve
escrita. Antecipa um processo, politicamente pensado, de alfabe­
as letras num suporte rigido,
nomeadamente a pedra. tização e introduz formas, bastante complexas, de gramatização
Rex Wallacc usa o termo social através da linguagem.
“stonemason”. alguma
literatura portuguesa usa
Na cultura etrusca era comum a escrita nos instrumenta
termos como “pedreiro" domestica, relevando não apenas o seu uso oficial e político, mas,
ou, apropriado do
igualmente, a prática da escrita privada. O alfabeto, tal como os
inglês, “lapidador".
antigos romanos dele fizeram uso nas inscrições dos monumentos
74. Rex E. Wallacc, An e noutros fins documentais, bem como na feitura de livros, tinha
Introduction to Wall apenas uma forma para cada letra, o que se mantém predominante
Inscriprions from Pompeii
and Hcrculaneum, até muito depois da era cristã. Eram as formas que hoje identifica­
Bolchazny-Carducci mos com as letras maiusculas.
Publishers, 2005.
Como refere Rex Wallace, “o estilo de escrita e o desenho
das letras nos documentos latinos dependiam de vários factores: o
meio usado para levar a mensagem, a técnica através da qual ela
era inscrita, a ocasião para escrever, e a habilidade do escriba'2 ou
lapicida.73 As letras alteram a sua forma ao longo do tempo, reflec-
tindo as diferenças entre uma escrita mais ou menos formal, esti­
los de escrita, influências externas e as preferências pessoais por
parte dos escribas e lapidadores".74
Não dispomos de informação suficiente ou precisa sobre
a forma como este ofício gráfico, ligado à escrita e inscrição, se
desenvolvia, à formação dos seus autores, ao volume de enco­
menda ou ao valor associado a esta prática. Mas é razoável colo­
car a hipótese de nela residir o contexto central da cultura gráfica
da antiguidade e uma parte, crescentemente relevante, da cul­
tura visual urbana.
As letras, palavras ou frases, escritas em alfabeto latino,
encontram-se profusamente inscritas nos fora das cidades roma­
nas; as suas leis gravadas sobre tábulas; as palavras escritas ins­
creviam-se. como epígrafes, nas estátuas de figuras notáveis;
escreviam votos consagrados aos deuses nos templos; assinalavam
um território, inscritas nos marcos de pedra colocados nas vias que
ligavam as cidades; eram gravadas nas ânforas que transportavam
o vinho ou o azeite; marcavam peças cerâmicas; autenticavam car­
tas, documentos, medalhas, moedas; convidavam à escrita, numa
cultura de raízes orais, nas tabulae ceratae. que celebravam con­
tratos ou transportavam mensagens.

52
75- José Cardim Ribeiro, Não é redundante voltar a chamar a atenção para a intrínseca ora­
"Sons desenhados - leiras lidade da mensagem escrita, para a sensibilidade de que a palavra escrita
sonantes: escrita e oralidade
na época romana". IN devia ser activada através da leitura, seja em voz alta, seja oralizada.
Luis Manuel de Araújo José Cardim Ribeiro menciona que “a onomástica pessoal
(Coord.), A escrita das
assume, durante a Romanidade, várias formas, consoante o esta­
escritas, Lisboa. Museu
das Comunicações, tuto político-social do indivíduo, o seu sexo e a ainda a época con­
aooi, pp. 87-96. creta em que viveu",75 em qualquer dos casos, um nome pessoal,
por exemplo, exarado numa epígrafe, nomeadamente funerária,
76. Em território
português sâo exemplos os não servia apenas para identificar a pessoa, destinava-se a ser lido
vestígios dos séculos I ou II por quem passava, a ser ritualizado socialmente, funcionando a
d. C-, como os descobertos
escrita como base estável para a evocatória oral da pessoa ausente.
cm Lamas dc Moledo
(Castro Paire), Cabeço Enquanto signo ou conjunto de signos, a letra, a palavra ou a
dc fráguas (Sabugal) frase, são aliquid stat pro aliquo — aquilo que está no lugar de uma
onde a inscrição rupestre
conjuga o alfabeto latino
outra coisa -, ou seja, evocação, tradução, representação gráfica
e a língua lusitana, falada que tem de ser significada.
na época pré romana cm Mais do que os textos literários, que pertencem, por assim
quase todo o território
do ocidente hispânico. dizer, a uma outra ordem de valor, as inscrições a que aludimos
dão-nos nota das especificações linguísticas de cada comunidade
e. frequentemente, das especificações que hierarquizam a comu­
nidade. Com alguma segurança, podemos admitir que quase todas
as províncias ocidentais do Império Romano eram trilingues: ali se
falava o latim, como língua oficial; o grego, como língua de cultura
e língua comercial; e, em cada território, a língua pré-latina indí­
gena, com as suas diferentes pronúncias e construções gramati­
cais que, só muito raramente, é passada para documentos escritos.
A imposição de uma língua e de um alfabeto comum, domi­
nante ou reconhecido politicamente como “oficial" ou “civilizado",
resulta de um exercício de poder e influência, alfabetizar é uma das
formas, transversais aos tempos históricos, de colonizar.
Na Lusitânia, para além dos dispersos vestígios dialectais
patentes nas inscrições latinas, representados por tendências
ortográficas mais ou menos próximas da língua clássica ou por
declinações do latim, surgem alguns raros casos em que o alfabeto
latino é aplicado ao registo de uma língua pré-latina.76
Determinar a origem do alfabeto latino é uma tarefa pro­
blemática. Contudo, os primeiros exemplos conhecidos das letras
latinas datam de entre 650-625 a. C. No início da era cristã era já
assinalável a evolução técnica e formal no desenho das letras.
A Coluna de Trajano (no Fórum de Roma, erguida em 114 d. C.)
possui uma inscrição na sua base que inclui a maioria das letras do
alfabeto latino, com excepção das letras “K", “H", "Y", “Z" e as acrescen­
tadas ao alfabeto apenas entre os séculos X e XV. as letras “J", "U" e “W*.

53
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tig 15 Homiliário para os Domingos c Festas. Obra produzida entre 1101 c 1300.5 volumes,
com texto organizado em 2 colunas de 33 Unhas. Escrito em latim cm letra carolina
sobre pergaminho. A imagem reproduz fólio do volume 1, destacando-se a letra C
decorada. Obra prowniente da biblioteca do Convento de Santa Maria de Alcobaça
Biblioteca Nacional de Portugal. Cota: ALC 441.
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fig, 16 Lcgcndarium Cistercicnsc Obra produzida entre 1176 c 1200. Texto organizado
cm 2 colunas de 29 linhas. Escrito era latim cm letra carolina sobre pergaminho.
Obra proveniente da biblioteca do Convento de Santa Maria de Alcobaça. Biblioteca
Nacional de Portugal, Cota: AI.C. 419
77- Cf. José Cardim Fazer das palavras (verba) escrita (scripta) representava um
Ribeiro, Op. CiL. p. 91.
lugar de privilégio, o assumir de uma ordem de poder específica e,
por isso, regrada. Quem encomendava a escrita seria, em regra,
alfabetizado, conhecendo as técnicas da escrita e da leitura. Sabido
o teor da mensagem a transmitir e o texto a fixar epigraficamente,
ao redactus (o redactor, literalmente “o que é retirado de”) compe­
tia transformá-la num texto gramaticalmente coerente, ajustan­
do-o a regras epigráficas, que registava num suporte efémero
como uma tabulae ceratae, entregando-o ao scriptor que dese­
nhava as letras e paginava o texto sobre o suporte definido.’
No desenho destas letras, palavras e frases, se o suporte
fosse a pedra, o scriptor começava por desenhar a inscrição a
giz e depois pintava-a com um pincel ligeiramente largo e acha­
tado. As pinceladas davam a forma às letras e criavam as diferen­
tes espessuras do traço.
Seguindo as mesmas linhas, o lapicida trabalhava a pedra
com instrumentos cortantes, como o cinzel metálico, que, segundo
alguns autores, produzia leves detalhes rematados no final de cada
letra, denominados de patilhas ou serifas. Possivelmente, um pin­
tor coloriria e decoraria o monumento.
Num processo como o que descrevemos, as operações, não
cursivas, consistiam no desenho de cada letra, traço a traço, numa
prática normalizada por um sistema de regras formais, a já men­
cionada ductus. Por norma, as letras desenhavam-se (tal como se
gravavam) de cima para baixo, da esquerda para a direita, comple­
tando-se, por fim, a parte central do corpo da letra: primeiro 0 traço
vertical do E, de cima para baixo; depois a oblíqua, de cima para
baixo; por fim a barra horizontal, traçada da esquerda para a direita.
Esta tecnicidade da escrita e os princípios de ordenação da
ductus serão determinantes na alteração profunda da instrumen-
talidade da escrita, do seu valor documental e dos seus supor­
tes, nomeadamente na transição gradual do volumen — herdeiro
da prática egípcia de colar ou coser as folhas de papiro ou perga­
minho em rolo — para o códice, que impõe hábitos e valores da
escrita e da leitura da cultura romana, escrevendo nas duas faces
da folha, organizando-as por ordem (o que originará os cadernos),
dando lugar a um objecto com forma e função idênticas às do livro
moderno encadernado. Da descrição desta transição ocupar-nos-
-emos mais adiante.

56
fig 17 Códice lirúrgico iluminado. Produzido em França no scrípcoriuni de Préaux
no final do século XI. British Library.
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IV
Estilos de escrita
e tipos de letra

59
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•fig 18 Compromisso do Mosteiro de S. Salvador das Donas. 1396. Escrito em latim sobre
pergaminho. Obra pertencente ao Mosteiro de São Domingos das Donas de Santarém,
mosteiro feminino da Ordem dos Pregadores de São Domingos. Biblioteca Nacional
de Portugal. Cota: 11_ 150.

Antifonãrio. Copiado cm letra visigótica minúscula. Produzido cm Espanha entre


0 final do séc. XI c o início do séc. XII. British Library.
78 A ordinatio No contexto da Antiguidade romana e persistindo ao longo da
corresponde a empagina^ão.
Idade Média, o desenho de um tipo de letra e a composição do texto
O termo cinpagirur será,
gradualmcntc, substituído seguiam um sistema definido de regras que asseguravam a estru­
pelo termo paginar a partir tura morfológica do texto, as regras tipográficas e a sua adequação
do final da Idade Media.
ao suporte, ao formato, bem como à função da escrita.
A estrutura ou morfologia do texto designa-se de cursus,
que define, também, uma grelha como a entendemos actualmente
Sendo pré-determinada pelo cursus, a ductus determina a forma
perceptível da letra, definindo as suas modulações e ritmos. De
forma simplificada, dir-se-ia que o cursus sistematiza a estrutura
da letra e do texto e a ductus representa a sua forma, tom e ritmo
particulares.
O termo latino ductus continha mais do que um significado.
A palavra podia designar, por exemplo, a ideia de movimento, a
acção de conduzir, uma coisa que se estende, mas, também, as
roscas de uma serpente.
Todas estes significados são, de algum modo, traduzíveis no
movimento da mão ao desenhar uma letra ou no que resulta da sua
representação gráfica.
No contexto da Antiguidade e da Alta Idade Média, o facto
da escrita corresponder a um processo extraordinário de comu­
nicação, num contexto marcado pela cultura oral, pelo facto tam­
bém de ser executada, durante um longo período da história, em
contexto religioso, reveste-a de uma dimensão espiritual, também
por isso a beleza das letras desenhadas assume um valor, além de
comunicacional e artístico, dir-se-ia da ordem do transcendente.
Dependente da escrita ser suportada em pedra, em papiro
ou pergaminho (para mencionarmos, apenas, os suportes mais
comuns na Antiguidade e na Idade Média), o trabalho seria execu­
tado. na maioria dos casos, a várias mãos especializadas.
O ordinator tinha a responsabilidade de fazer a distribuição
do texto no espaço epigráfico (ordinatio).78 É natural que, na maior
parte das oficinas, o ordinator fosse responsável pelo cursus, mas
não fosse, necessariamente, o scriptor que colocaria o seu cunho
autoral no desenho das letras, seguindo a sua ductus; também o
lapicida, que gravaria o texto conforme o modelo apresentado, era
um artífice especializado.
A necessária formação de quem se dedica ao desenho, ins­
crição ou ornamentação das letras terá estabelecido, desde cedo,
uma relação entre mestres e aprendizes, bem como princípios
de ordenação, que pudessem também ser ensináveis, levando ao
desenvolvimento de um léxico próprio.

61
A ductus latina era pensada como algo que se estende,
remetendo, por analogia, para a forma como as letras se organi­
zam em palavras e as palavras em texto, obedecendo a um deter­
minado modelo formal ou regras de empaginação.
Em regra, a empaginação era feita segundo um eixo de
simetria ou com alinhamento da escrita à esquerda ou à direita,
quando sucedia o alinhamento simultâneo à esquerda e à direita,
obter-se-ia um quadras, isto é, uma caixa de texto, ou quadrado,
com organização alinhada do texto.
As formas escritas da maioria das línguas do mundo ociden­
tal têm origem no alfabeto de 23 letras aperfeiçoado pelos Roma­
nos. Estas letras podem ser desenhadas de maneiras diferentes, de
acordo com diferentes cursas e ductus. A essas diferenças anató­
micas, morfológicas, estilísticas e rítmicas da letra, do seu dese­
nho. das suas ligaduras, bem como da composição das palavras e
blocos de textos, designaremos, preferencialmente, como estilos
de escrita considerando, em particular, as especificidades do dese­
nho de um alfabeto como tipo de letra.
A palavra tipo tem a sua origem no termo grego thypos,
que significa molde. Embora falar em tipos de letra ganhe um sen­
tido mais evidente com o desenvolvimento da xilogravura e. mais
tarde, com a utilização de tipos de letra em metal ou madeira para
uso tipográfico, assumimos como tipo as especificidades do dese­
nho anatómico de uma letra, associados a um estilo de escrita
específico.
No desenho de um tipo de letra, o elemento constitutivo fun­
damental é o seu tractus, o traço. Diferentes ritmos de traçar, de
conduzir a mão no desenho da letra correspondem, precisamente,
à ductus e é interessante notar como na Alta Idade Média se podem
encontrar, no trabalho do scriptor monástico, relações entre as
ondulações rítmicas e melódicas do canto gregoriano e as ondula­
ções no desenho das letras.
Diversos outros aspectos caracterizam as especificidades
da ductus e a sua variação morfológica permitindo identificar dife­
rentes tipos de letra. Podemos destacar, pela sua importância, o
sombreamento (a presença de diferentes espessuras de traço); a
inclinação (o grau de variação da vertical verdadeira"); a ligadura
(linha que une dois caracteres); o dígrafo (caractere criado pela
junção de dois outros que representam um único som, por exem­
plo, ^E, o aesh) e as mordeduras: quando duas curvas adjacentes e
contrárias (um “b" seguido de um “o", por exemplo) se sobrepõem
ou partilham um mesmo traço.

62
79- D’Encamação, Nos seus crescentes usos sociais, políticos e religiosos, na
Introdução ao Estudo da
sua relação com a oralidade, por um lado, e com princípios de lei e
Epigrafia Latina, Cadernos
de Arqueologia c Arte, ordem, por outro, e ainda no valor inerente à sua expressão artís­
1. Coimbra, 2013. tica, os estilos de escrita determinados pelo cursus e pela ductus
podem assumir três registos principais distintos: a escrita formata
80. Traçamos, neste
capitulo, uma introdução (mais formal, de execução mais delicada), media (uma escrita cui­
a esta temática. Para dada e mas desenhada num traço mais rápido que a formata) ou
um aprofundamento
sugerimos a leitura das
currens (traduzindo a ideia de uma escrita corrente, menos formal
seguintes obras: Alexandcr ou rigorosa no traço).
Nesbitt, The History and
Outra diferenciação colocar-se-ia. igualmente, no modo
Tcchnique of Lcttcring,
Dover Publications, 1957;
como se utilizavam estes estilos em relação à função da escrita,
Marc Drogin, Medieval podendo, por simplificação, distinguir-se duas principais tipolo-
Calligraphy Its I listory
gias: libraria (tal como trabalhada em livros onde prevalecia o valor
and Tcchnique, Dover
Publications, 19S0; Patrícia literário e artístico) e documentaria ou cursiva (usada em docu­
Lovett, The An and mentos, onde prevalecia a sua funcionalidade pragmática de infor­
History of Calligraphy,
mar, contratualizar ou decretar).
British Library, 2020.
Naturalmente, também os suportes epigráficos, bem como
a sua função, determinariam diferenças na paginação do texto e
na opção pelos estilos de escrita e de tipos de letra trabalhados.
Na antiguidade romana, as inscrições encontram-se, gra­
dualmente, mais recorrentes e dispersas, nos templos e nas biblio­
tecas, nas pontes e em diversas placas encastradas nas paredes,
nos miliários colocados à beira da estrada, entre diversos outros
lugares.79
Não obstante a circulação de diferentes tipos de letra no
espaço geográfico da Europa Ocidental durante a Antiguidade e a
Alta Idade Média (e, naturalmente, para além deste período como
analisaremos mais adiante), é nos tipos de letra Capitalis (maius­
culas) desenhados como letras políticas e culturais do Império
Romano que encontramos a raiz dos principais tipos de letra sub­
sequentes. Também as regras do cursus e da ductus. com todas as
variações possíveis, estabelecem na antiguidade romana uma gra-
matização fundamental para a definição da escrita e do design
tipográfico.80
David Diringer chama a atenção para o facto de a “forma de
escrita usada durante o império com incomparável eficiência para
fins monumentais e apontada como exemplo de precisão e gran­
deza tenha tido uma juventude bem pouco atraente. Porque nos
primeiros seis séculos da sua existência a escrita romana foi visual­
mente ineficaz. Só no primeiro século a. C começaram a surgir
sinais de grandiosidade. Por todo esse período os caracteres hoje
denominados capitulares foram utilizados indistintamente nas

63
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ÚK 22 Tipo dc letra Capital!». Frontispício de um códice com cópia


do Evangelho de São João. Produzido em França no scriptorium
do mosteiro de l*ré«ux no final do século XI Brittsh Library.
81. David Diringer, escritas monumental e literária, ou seja, na escrita cinzelada em
A Escrita, Lisboa,
pedra e na escrita praticada em papiro ou pergaminho".8'
Verbo, 1985, p. 165.
Nas inscrições, as letras que encontramos são geralmente
81. Para uma identificação Capitalis. O tipo de letra Capitalis Monumentalis, corresponde a
de como estes tipos de um estilo de escrita monumental, essencialmente reservado para
letra foram redesenhados
e adaptados a tipos ser gravado em pedra. Quando o cursus define um alinhamento
de letra mecânicos c simultâneo à esquerda e à direita, obtendo-se um quadrus, o dese­
digitais consulte-se a
nho da letra adapta-se dando lugar a letras mais regulares, as
obra de Paulo Hcitlingcr,
Tipografia. Origens, Capitalis Quadrata. Quando as hastes horizontais se apresentam
formas e uso das letras, levemente onduladas e a sua altura é superior à largura identifica­
Lisboa, Dinalivro, 2006.
mos a Capitalis Actuaria; finalmente, as cursivas romanas consti­
83. Esta periodização é tuem a raiz das nossas letras minúsculas e correspondem à
desenvolvida por Bernardo
maneira corrente de escrever à mão.82
de Sá-Nogueira no seu
ensaio “A Escrita Latina A evolução dos principais tipos de letra romanos e as varia­
durante a Idade Média e o ções no seu uso darão origem a outras famílias tipográficas, como a
Renascimento (Séculos VI
Semi-Uncial (por vezes designada de "minúscula redonda”) e a Uncial.
a XV)”. IN Luis Manuel de
Araújo, Op. Cit., pp. 131-138. Embora de um modo lacónico e historicamente pouco con-
textualizador, Edward Johnston, na obra Writing & llluminating, &
Lettering, originalmente publicada em 1906, estabelece a principal
caracterização da evolução histórica dos modelos gráficos latinos
impondo, igualmente, uma interpretação do lettering, que se tor­
nará seminal, em termos de legibilidade, beleza e carácter.
A história medieval do alfabeto latino e da sua escrita é,
geralmente, dividida em quarto grandes subperíodos através dos
quais se dá a sua evolução, bem como a considerável alteração dos
estilos de escrita e dos tipos de letra.83
O primeiro subperíodo vai do século VI ao século VIII e os
historiadores identificam-no como um tempo das “escritas nacio­
nais" ou das "escritas dos conventos".
Sabe-se que a produção do livro muda consideravelmente
entre a Antiguidade e a Idade Média. Num longo período da Antigui­
dade, o mercado livreiro (a produção, comercialização e circulação
dos voluminá) está associada ao que, em termos contemporâneos,
reconheceríamos ser uma indústria do livro, na verdade entrela­
çada com outras áreas da economia, como o cultivo do papiro ou
a produção das folhas. Os rolos, contendo as obras, reproduzidos
por vezes em grande número eram expostos para venda, em espa­
ços que a cultura latina designava de taberna libraria.
Este modelo alterar-se-á, com uma profunda transformação
sociopolítica, administrativa, cultural e religiosa, progressivamente
a partir do século IV, apresentando no espaço da cristandade latina
ocidental uma caracterização bem distinta entre os séculos VI e VIII.

65
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34 Fio. I.

águ Pigini da obra dc Eward Johnston Wming & ílluniinating, & Lcticring. Nina Iorque/
Londres. The Amstic (Irafa Series of Teehnkal I iandbooka, The MacMillan Company/
John Hogg, 1906. p. 34-
«4- Maria |<»e Azevedo O segundo subperíodo, caracterizado pela unificação polí­
Santo». Ler e compreender
tico-administrativa das regiões centrais da Europa, sob a égide de
a escrita, p 8o.
Carlos Magno e seus sucessores, teve como estilo de escrita domi­
8$. Maria fojo Oliveira nante a carolina.
c Silva. A Escrita na
O terceiro, marcado pela intensificação do movimento
(ãucdral: a (Cancelaria
Episcopal do hwto Ja Idade agressivo das cruzadas e pela articulação da entidade político-cul­
Media. Lisboa. Centro tural conhecida como Cristandade Latina do Ocidente em torno
de Estudos de Hiwrtna
de Roma, o florescimento de cidades-comércio e das universida­
Religiosa, 2013. p. 211
des, sobretudo durante o século XII, gerou um universo variado da
86. Alguns autores, como escrita gótica.
Bernardo de Sá-Nogueira,
Finalmente, a rejeição estilística, ou por razões político-cul­
optam por identificar
c«e tipo de escrita, de turais, da gótica por parte de alguns scriptoria. sobretudo loca­
forma tnais ampla, como lizados na Itália do Norte, e a busca de modelos gráficos mais
escrita aogfo-suónJca.
•autênticos", por proximidade identitária (geográfica ou cultural)
ou por serem mais antigos, entre os quais se encontravam a pró­
pria letra carolina. fez surgir, de forma muito evidente ao longo do
século XV, as conhecidas escritas humanísticas; uncial e cursiva
Relativamente ao primeiro subperíodo, o arco temporal
entre os séculos VI e VIII corresponde a um tempo histórico ao
longo do qual a Europa Ocidental se divide em várias unidades
geopolíticas de dimensão, presença e existência variável — sendo
assinalável a força da presença dos reinos dos Vândalos. Francos.
Visigodos, Ostrogodos e Lombardos — após a gradual degrada­
ção das estruturas políticas, administrativas, militares e fiscais do
Império Romano na região ocidental.
‘A tríade, pergaminho, penas e tintas, era a base material em
que assentava o edifício da escrita na Idade Média'.** "O uso des­
tes três materiais remonta à Antiguidade clássica, altura em que
surgem as primeiras referências a membrana ou pergamenum,
penna ou penna scriptoria, atramentum ou incaustum. Mas será em
tempos medievais, acompanhando a difusão paulatina da escrita,
que esta tríade dominará em todas as escrivaninhas."85
No que, numa nomenclatura de algum modo, imprecisa, se
pode denominar, genericamente, de “escritas nacionais", podemos
identificar diferentes tipos de letra com uma utilização relativamente
circunscrita a determinados contextos geográficos e culturais a visi-
gótica na Península Ibérica; a benaventana no Sul de Itália; a merovín-
gia sobretudo em França e a hibérnica e a britannia essencialmente
na Irlanda embora circulando da Escócia até à Alemanha 86
A escrita beneventana, que encontramos em alguns docu­
mentos portugueses, certamente por influência dos códices cria­
dos nos scriptoria de Monte Cassino e de Bari. em Itália, alcança
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flg22 12S Alplubets de Style. Moyen Age. Renaissancc. Compostos por Ernest Guillot.
litografados por Henri Sescheboeuf. Paris. Librarie Renonard, c. 1910.
Colccção de José Bánolo.
JKípfaW (XU1- áíjMc )
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87. José Francisco uma elevada depuração formal, através de uma adaptação do
Meirinhos em “A cscriu desenho da escrita cassinesa, associada às famílias caligráfi-
nos códices dc Santa
Cruz, de Coimbra", cas desenhadas no scriptorium de Monte Cassino entre o final do
P0110. Biblioteca Pública século VIII e o início do século XII.
Municipal do Porto, 1995.
A letra visigótica, que alguma literatura identifica como his­

88. Maria João Oliveira


pano-cristã, pode ser entendida como uma letra nacional, de uso
e Silva, Op. Cit-, p. 232. fundamentalmente circunscrito à Península Ibérica, que começa
a surgir na cultura tardo-romana a partir do século IV, resultado
de uma evolução local das letras romanas, com parcial integração
do estilo bizantino. Estes tipos de letra passam a circular durante
o domínio suevo e visigodo e perduram, ainda em algumas obras,
até ao século XIII.
Em Portugal é este o estilo de escrita dominante até ao final
do século XII Uma das características diferenciadoras no desenho
da visigótica é o “g" uncial, com um traço alongado da cauda.37
A recorrência do uso da visigótica na Península Ibérica coin­
cide, ainda, no tempo com a reforma caligráfica do século XI, desig­
nada por escrita humanística.
A unificação política do centro da Europa, durante a dinastia
imperial carolíngia, que vigora em parte do centro europeu entre
os anos 751 e 987, leva os scriptoria italianos, franceses ou ale­
mães, onde anteriormente as obras eram executadas em tipos de
letra hibérnica ou britannia, a desenharem uma minúscula caligrá­
fica de execução e leitura mais definida e clara: a escrita carolina.
Desenvolvida no contexto do Império Carolíngio, no século
VIII, a impoisçõa da letra carolina fez parte de um extraordinário
processo de “ “recaligraficação" do alfabeto, a distinção entre
maiusculas (oriundas da capital romana e da uncial) usadas para
titulus e minúsculas para o texto. Incorporou a harmonia e a regu­
laridade da escrita uncial e o seu “a”, e as letras “n" e “g” da escrita
merovíngia. Nos finais da centúria de Undecentos inícios da de
Duzentos, este tipo de letra, executada com pena de bico direito,
começou a denotar influências de uma nova escrita, feita com
outro tipo de pena. É exactamente neste momento, de passagem
para o século XII, que surgem no reino português os primeiros tes­
temunhos de letra francesa."03
Em Portugal, o tipo de letra carolina foi utilizado mais em
expressões posteriores do que no seu desenho original. Com um
aparecimento tardio, no último terço do século XI, combinou-se
com a escrita visigótica (à qual, fundamentalmente, sucede), dando
lugar, como aconteceu frequentemente, a tipos de letra híbridos
ou de transição

70
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^126 Códice com miscelânea de texun copiado* em escrita britannia gotiunte.


Produzido em Inglaterra no final do século XII. British Librar*.
89. Idem, Ibídem, p. 232. A produção gráfica na região da Cristandade Latina do Oci­
dente entre os séculos XII e XIV, foi marcada pelo estilo Gótico e a
90. Idem, ibídem, p. 233.
prevalência do tipo de letra gótica. Surgida no século XI e utlizada
91. Idem. Ibídem, p. 234. de forma contínua até ao século XV, sobretudo no centro e norte
da Europa.
Maria João Oliveira e Silva ressalva que “a passagem da letra
carolina para a gótica não se efectuou numa só direcção e não
implicou uma ruptura total, mas antes a adopção gradual de alte­
rações mais ou menos profundas no aspecto e no ductus dos
documentos".89
“O termo “gótico", criado pelos humanistas italianos, corres­
ponde a um tipo de letra que surgiu numa época de transformação
a todos os níveis: político, social, económico, religioso, artístico e
cultural. No âmbito político despontam as reivindicações das
monarquias face às pretensões universalistas de imperadores e
papas (apoiadas nos meios académicos que também se desenvol­
viam). Ao nível social e económico reanimamse o comércio e a vida
urbana e com eles desponta um novo grupo social, os mercadores.
No espaço religioso aparecem as Ordens mendicantes que se
implantam nas cidades e tomam contacto com as universidades.
No campo artístico, assistese à passagem do românico para o
gótico, adoptandose novos temas iconográficos e uma nova expres­
são narrativa. Ao nível cultural, produzse um verdadeiro "renasci­
mento" do ponto de vista filosófico e literário com a renovação nos
estudos de Direito Romano, da Física e da Metafísica, do pensa­
mento de Aristóteles e de outros autores da Antiguidade, fruto de
contactos europeus com o Islão, aparecimento de escolas urbanas
e das universidades (resultado da intensificação da vida nas cida­
des), e de uma nova figura: a do “intelectual.”"90
A estas mudanças deve acrescentar-se uma outra, relevante
em termos gráficos: a alteração do "uso da pena de bico simétrico
para o uso de pena de bico chanfrado à esquerda. Esta ‘revolução
técnica', de alteração no instrumento de escrita, é hoje comum­
mente aceite como tendo sido determinante para a evolução grá­
fica da letra carolina para a gótica"9’
A letra gótica surge caracterizada pela angulosidade do
seu traço, desenhando caracteres, geralmente mais altos do que
largos e executados com contraste definidos entre cheios e finos,
num desenho de letra cuidado, no qual o traço constitutivo de
cada letra era executado em separado, sem ligaduras a uni-lo ao
seguinte. Naturalmente, nos usos quotidianos da gótica, algumas
das suas características diferenciadoras atenuam-se, dando lugar

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Codcx Aurcus. Códice com vario* texto* litúrgicos copiado* em e*crita uncial e
carollna minúscula Produzido na Alemanha no final do *ec IX Britith Iáheary.
92. Para um a variantes cursivas da gótica, nas quais, por exemplo, os traços
desenvolvimento leia-se a que formam cada letra aparecem ligados, conferindo-lhes o tom
obra de Maria José Azevedo
Santos, Da Visigótica de uma escrita mais contínua, corrida.
ã Carolina. A escrita Entre o desenho caligráfico solene, por exemplo usado nos
cm Portugal de 882 a
códices de uso litúrgico, e o cursivo mais contínuo dos documen­
1172, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, tos de natureza temporária, encontramos uma diversidade de tipos
1994.. pp. 32-37. de letra, adequando-se a distintas funções da escrita, por vezes
numa diferenciação entre escrita e desenho de letras, que surgem
93 Maria João Oliveira
identificados por termos como caligráfico semi-solene, caligráfico
e Silva, Op. Cit., p. 217.
comum, semi-cursivo e cursivo comum.
Se, na escrita, a pena é o prolongamento da mão, na expres­
são de Jacques Stiennon, naturalmente as penas, as tintas e os
suportes de escrita usados definem condições para a evolução ou
alteração dos estilos de escrita.92
Maria João Oliveira e Silva chama a atenção para o facto de
a “transição gráfica da letra carolina para a letra gótica" ter impli­
cado "uma mudança de corte simétrico da pena para corte chan­
frado à esquerda. À personalização cada vez mais acentuada da
escrita, principalmente durante o ciclo gótico (...) associamse direc-
tamente factores relacionados com os instrumentos escreventes,
nomeadamente, a grande variedade de bicos de pena, a flexibili­
dade, a dureza e o desgaste dos mesmos, os critérios individuali­
zados do talhe, e, o grau de pressão que os dedos exercem sobre
essas penas".93
O afastamento relativamente aos cânones gráficos da escrita
gótica coincidente com a valorização das línguas vernaculares,
sobretudo pela influência de autores como Dante Alighieri (1265-
1321) e Francesco Petrarca (1304-1374) e seguido por influentes
humanistas italianos como Giovanni Bocaccio (1313-1375) e Coluc-
cio Salutati (1331-1406).
No campo da caligrafia, os diversos tipos de letra ditos
humanistas, desenhados por autores do contexto medieval tardio
e renascentista italiano, como os tipos de letra de Poggio Braccio-
lini (1380-1459) e Niccolò Niccoli (1364-1437), marcaram o início da
formação dos modelos alfabéticos que foram aplicados nos méto­
dos para o ensino da escrita desse período.
Se a escrita humanística atinge a sua perfeição formal
durante o Renascimento italiano, no trabalho de calígrafos como
o florentino Poggio Bracciolini, que estabiliza um cânone da littera
antiqua formata, já o trabalho caligráfico de autores como Niccolò
Niccoli, baseado no redesenho da escrita carolina e da gótica cursiva
utilizada em Itália, ajuda a definir o cânone da littera antiqua corsiva.

74
A evolução histórica, o provável efeito da aceleração da
ductus, e as diversas adaptações técnicas, esta escrita adquiriu
uma inclinação mais pronunciada e configurou o seu aspecto cur­
sivo definitivo. No final do século XV, entre os vários modelos de
humanística cursiva desenvolvidos dois se destacaram: a cancel-
laresca formata, reservada para os fins literários e a cancellaresca
corsiva. destinada aos documentos de carácter diplomático, textos
administrativos e, pontualmente, bulas papais.
Esta renovação do cânone gráfico, que se reflecte no dese­
nho caligráfico e cursivo das letras e paginação de texto, coinci­
dirá. com o desenvolvimento da tipografia, em particular no norte
da Europa, momento de significativa transformação do design grá­
fico que analisaremos no próximo volume desta colecção.

fig28 Ilustração de página inteira da palma da mio direita integrando descrições


quiromànticas. Códice hebraico contendo uma miscelânea de textos liturgicos
e de carácter laico. Produzido em França entre 1177 e 1286 British I.ibrary.
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V
Origens e Fundação
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-fig, 29 Gramatica da Linguagem Portugucza da autoria de Fernando Oliveira. Esta obra é a
primeira gramatica da língua portuguesa inscrevendo-se num movimento renascentista
de descrição das línguas maternas. Impressa em Lisboa por Germão Galhardo cm 1536.
Biblioteca Nacional de Portugal

tfig, 30 Missal Segundo o Rito Cisterciense. Obra produzida entre 1201 e 1300. Escrito em
latim em letra carollna sobre pergaminho. Obra pertencente ao Mosteiro de Santa
Maria de Alcobaça. Pergaminho iluminado. Este códice é um missal pleno, reunindo
num só volume os textos e cânticos para a celebração litúrgica cristi Biblioteca
Nacional de Portugal. Cota: ALC. 255.
94 Guiamo-nos, A nossa perspectiva levou-nos a avançar no tempo e agora deve­
essencialmente, pela mos recuar. Parte do fascínio de trabalhar a história reside nesse
periodização proposta
e desenvolvida por José desafio de interpretar o passado procurando articulá-lo na sua rela­
Mattoso Cf. José .Mattoso, ção com o presente. O historiador move-se entre esses dois anda­
Op. Cir., pp 45-66.
mentos, as permanências do tempo longo — e tão frequentemente
escuro, exigindo ser iluminado, e não-inscrito, pedindo um olhar
que o reconheça e interprete — e as circunstâncias de tempos bre­
ves, que eclodem e, na sua alteridade, se revelam novos, diferentes,
até ao ponto de ferirem no maior poder transformador esse tempo
longo, lento, dilatado, essa massa da história aparentemente, mas
só aparentemente, maior para ser modificada.
Em parte, por gravitar entre o passado e o presente, em
parte por se mover entre a identidade de um tempo longo e a alte­
ridade de um tempo relativamente breve, em parte, também, pela
perspectiva da relação com a história, pela metodologia, pelo modo
de fazer história, o historiador pode perder-se na massa do tempo,
como pode saltar sobre ela, atravessá-la como se viajasse numa
máquina de tempo, cuja precisão fica sempre aquém da dimensão
extraordinária do universo percorrido.
A periodização, os marcadores temporais com que opera­
mos — tal como se enterram marcos na terra delimitando espa­
ços —, para uma historiografia do design em Portugal desde as
origens, assume como primeiro corte cronológico o ano de 1096.
Esta datação tem uma fundamentação objectiva — corresponde ao
ano em que o Condado Portucalense surge como entidade política
— e uma fundamentação simbólica, situa-nos no final do século XI
e coincide com transformações importantes no campo sociocultu-
ral, económico, religioso, militar e demográfico. Idêntica ambivalên­
cia entre o simbólico e o objectivo, será encontrada nas periodizações
em arcos de tempo que nos remetem para as origens da nacionali­
dade: 1906 a 1131; 1131 a 1190; 1190 a 1250.91
Alguns desses profundos processos de mudança podem ser
reconhecidos, em andamentos e geografias diferentes, atraves­
sando o período entre o século VIII e o século XIII, outros, como sem­
pre acontece, parecem ser específicos de um tempo novo e de uma
nova mundivisão — um particular Zeitgeist ou espírito do tempo.
No primeiro arco temporal de aproximadamente quatro
décadas que medeiam as datas simbólicas de 1096 e 1131, desen­
rola-se a estabilização de uma instância política que reúne os ante­
riores condados de Portucale e de Coimbra, desta reunião resulta
o estabelecimento de um regime de poder capaz de criar relações
de proximidade e relativa estabilidade entre a aristocracia senhorial

79
95. José Veiga Torres. e as comunidades concelhias já legalizadas, reforçando-se, numa
Introdução à História certa delimitação identitária que o poder desenha, sobre uma geo­
Económica e Social
da Europa, Coimbra, grafia física e humana, direitos senhoriais, direitos concelhios e se
Almedina, p. 53. enraíza uma noção de identidade, pertença e privilégio que a paz
interna e a guerra externa sedimentam.
Antes da formação de Portugal como Estado separado no
ocidente da Península, diversas outras unidades políticas surgiram
e permaneceram em parte do seu futuro território, deixando a sua
influência cultural, social e artística.
Da influência sueva, do século V e VI, para o futuro de Portu­
gal, destaca-se uma nova organização eclesiástica.
Ao longo do século XI as fronteiras externas e as fronteiras
internas redesenham-se dando lugar a um novo mapa que repre­
senta um território em profunda transformação. As antigas linhas
de fronteira do Império Romano perderam o seu poder político,
administrativo e fiscal, os exércitos de reinos não submissos ao
Império Romano, como os Suevos e os Visigodos, que deixaram
influência cultural e política na Península Ibérica, vão ocupar grande
parte do antigo território imperial romano, operando a génese de
uma nova geografia política e, mais tarde, de um espaço político-
-religioso de Cristandade, ligando o Oriente europeu, o território
escandinavo, as ilhas britânicas e ocupando e explorando os mares
circundantes, num processo que José Veiga Torres considerou,
numa perspectiva sedutora, mas simplificada, “unificador da Europa
e das suas Economias-Mundo".95
As fronteiras internas também se alteram. Barreiras natu­
rais, caracterizadoras de uma certa geografia e topografia, cedem
perante o empenho em desflorestar e assorear e, no espaço alterado
na natureza, constroem-se campos agrícolas ou infraestruturas que
aceleram o surgimento de novas cidades e o desenvolvimento de
outras já existentes.
Porém, a uniformização de Portugal é precária, excepto
quando resulta da expansão das principais áreas de influência urbana.
Aquém e além dessa dominação da cidade sob o campo, Portugal
apresenta-se, desde a sua formação, marcado por diferenças assi­
naláveis, entre Norte e Sul, litoral e interior, entre as velocidades de
mudança operadas por sistemas conservadores ou progressivos e as
estruturas fundamentais, constituídas por populações que permane­
cem e constituem o substrato dominante quer de uns quer de outros.
Coexistem assim, autónomas ou interactantes, em Portu­
gal, diferenças ao nível da geografia física e humana, do clima, das
estruturas sociais e económicas, dos sistemas de relacionamento,

8o
96. José Caeiro da Malta. da organização dos poderes, da linguística, tal como das técnicas e
Condiçio Ixgal das Ordens instrumentos de uso agrícola e marítimo.
c Congregações Religiosas
cm Portugal desde 1834. Com o fim do século XI, assistimos a uma fase de intensos
Coimbra, Imprensa da desbravamentos, seja para responder ao crescimento demográ­
Universidade, 1905, p. 4.
fico, aos movimentos de deslocação populacional de Norte para
Sul, seja para encontrar novas áreas de exploração agrícola, seja,
ainda, para construir infraestruturas civis ligadas ao desenvolvi­
mento das cidades.
A estas novas formas de ocupação do espaço estão associa­
das novas formas de organização da produção e novos modelos de
ordenação do poder, sobre a terra e quem a trabalha, através das
diversas modalidades que sedimentam hierarquias sociais, rela­
ções sociais, de parentesco, linhagem ou outras formas de per­
tença, e um novo modelo de relação entre as unidades locais ou
regionais (senhorios, concelhos, paróquias) e as suas fronteiras,
estabelecidas pelos circuitos do mercado e pelos poderes políti­
cos e eclesiásticos.
Estas novas formas de organização reforçam a necessidade
da escrita e generalizam o seu uso para todo o tipo de contratos.
Embora não correspondendo a um processo de evolução linear, a
função da escrita vai-se diferenciando entre a escrita libraria (tal
como trabalhada em livros onde prevalecia o valor literário e artís­
tico) e a escrita documentaria (usada em documentos, onde preva­
lecia a sua funcionalidade pragmática de informar, contratualizar
ou decretar).
Ao longo de um tempo longo, de cerca de seis séculos, antes
de se iniciar o processo de autonomia político-admnistrativa do
Estado português, no palco da geografia da Península Ibérica vão-
-se sucedendo ou coexistindo as marcas deixadas pela presença de
reinos não submissos ao antigo Império Romano, a presença forte
do poder político e da cultura muçulmana, a circulação de diversas
línguas e dialectos, bem como de diversos modelos de linguagem
verbal, paralelos aos processos de implementação de organizações
religiosas cristãs.
No século IV, durante o reinado de Constantino Magno (306-
-337), o Cristianismo é proclamado como a religião oficial do Impé­
rio Romano, transformando toda a política religiosa do espaço sob
domínio imperial.
“Da antiga constituição religiosa do mundo romano só o
involucro, o revestimento exterior permanecia: uma nova seiva
corre no tronco envelhecido do paganismo, prestes a reflorir exu­
berantemente."*6

81
fig. ~'l Detalhe das letras iniciais “VIR" cm escrita protogótica
com decoração zoomorfica. Códice litúrgico iluminado produzido
na Holanda na segunda metade doséc XII. British Librar?.
97- C»uiamo-Do» peU A expansào e implementação do Cristianismo, legitimado
indk-âçlo fornecida por José
politicamente como movimento civilizador, obrigava à constitui­
Cjclro da MatU na sua obra
Cundiçlo Legal das Ordens ção de uma hierarquia eclesiástica que irá resultar na conciliação
e Congregações Religiosas de duas forças originalmente separadas, o episcopado e o mona-
cm ftwtugal desde 1834.
quismo, sob a cúpula da Sé de Roma.
Coimbra. Imprensa da
Uniscrsidade. 190$. p.ix Se no Oriente a vida monástica pode remontar ao século II
a. C., o monaquismo ocidental vai gradualmente sendo estabele­
98. JoséMattoM,
cido a partir do século IV desenvolvendo-se em vários andamentos.
Repensar a identidade:
o mundo ibérico nai Podemos reconhecer uma significativa evolução quer na locali­
margens da crise da zação nos mosteiros, inicialmente construídos em locais isolados
consciência europeia,
e inóspitos e, progressivamente, erguidos nas cidades ou na sua
Idsboa. CHAM, J015, p.13.
proximidade, quer na sua organização e influência, quer na relação
entre os mosteiros e o episcopado.
No século VII, no território que será 0 de Portugal, são edifi­
cados conventos em Nabancia. Montilio, Dume, Antonino, Braga.
S Miguel de Refoios, Armea, S. Martinho de Torres e S Salvador; no
século seguinte em Montemor e, essa expansão, prolonga-se no
século X e XI com o aparecimento dos conventos de Grijó. S Simão
da Junqueira, S. Martinho de Soalhães, Arganil, entre outros.97
A partir do século XI, com o progressivo controlo militar
e político da Península Ibérica por parte de estruturas de poder
obedientes à cristandade sob o poder muçulmano, a relevância
do monaquismo será reforçada dentro de uma estratégia, muito
ampla, de estabilização de um modelo de lei e ordem onde os valo­
res do poder político se articulam com os valores do poder religioso.
Como já fizemos notar, numa cultura marcada por uma pro­
funda heterogeneidade, onde à prevalência da oralidade se vão
inculcando expressões gráficas diversas, o poder da escrita que
se localiza nos conventos exercerá uma influência determinante na
formação de modelos de escrita e na consolidação de princípios de
organização, bem como de valores e procedimentos que lhes estão
associados, que coincidem no tempo com os séculos nos quais
ocorre a ‘emergência-’ da fundação da nacionalidade portuguesa
José Mattoso sublinhou que, "embora a natureza diacrónica
da História imponha a preferência por comparações que privile­
giam a diferença (a diferença no espaço, no tempo ou no grupo
humano que a produz) e na qual se baseia a verificação das altera­
ções, dos conflitos e mesmo dos significados, é evidente que só é
possível quando resulta do conhecimento prévio da norma, da regra
ou do sistema"0'1
Na definição dessas regras, o monaquismo desempenhará um
papel determinante na caracterização da Alta Idade Média São Bento

83
99 José Eduardo e a regra religiosa cenobítica. conhecida por Regra de S. Bento, cuja
Franco. "Das Ordens às fundação lhe é atribuída, “é considerado o fundador do monaquismo
Congregações Religiosas:
Metamorfoses da Vida cristão organizado no Ocidente, paradigma que vai inspirar, ou pelo
Consagrada Católica (Uma menos vai ser tido em conta, a proliferação das mais diversas formas
Perspectiva Histórica)”, de vida religiosa que a História da Igreja vai registar".99
Boletim do Núcleo Cultural
da Horta, 16,2007, p.258. Embora a origem da Regra de S. Bento remonte ao século VI,
é a partir do século VIII que encontramos, verdadeiramente estabe­
100. Para uma análise lecida, a organização monástica beneditina, conhecendo o seu apo­
mais aprofundada
geu durante a primeira metade do século XII.
do desenvolvimento
dos mecanismos de Será, no entanto, num momento de relativa crise e perda
administração pública de influência do monaquismo ocidental que ocorre a fundação do
em Portugal consulte-se
mosteiro de Cluny, em França no início do século X, por iniciativa de
a obra de Bernardo de Sá
Nogueira, Tabelionado Guilherme I, duque de Aquitânia. Com a chamada reforma clunia-
e Instrumento Público cense, a partir da organização de Cluny que, no início do século XII,
em Portugal Génese e
Implementaçào (1212-1279), momento da sua maior expansão, contava cerca de 1200 mosteiros,
Lisboa, Imprensa Nacional renova-se um movimento ordenador, observante da Regra de São
- Casa da Moeda. 2008.
Bento, privilegiando a centralidade da Liturgia na vida cristã e con­
solidando uma cultura do belo transversal à arquitectura e à criação
artística, à solenidade dos rituais religiosos e às diversas activida-
des associadas, como a música sacra, com uma decisiva renova­
ção e valorização do canto gregoriano e o investimento no ensino e
na produção cultural e artística, dentro da qual as bibliotecas e os
scriptoria, espaços oficinais onde se procede à cópia, feitura e ilu­
minura de códices, assumem uma importância organizativa central.
Com a organização da administração pública, que parece
ficar implementada no reinado de Afonso II, o tabelionado ficará,
maioritariamente, responsável pela escrita documentária; nos
scriptoria eclesiásticos localizar-se-á o centro da produção libraria.
Distinguem-nas não só a sua função, mas igualmente o seu papel e
estatuto dentro de um sistema cultural. O design dos documentos,
a escolha dos estilos de letra e a qualidade artística refletirão essa
diferença.100
No domínio social, cultural e, também, artístico, o fim do
século XI representa a fase decisiva de influência francesa em Leão
e Castela, apoiada pela corte régia e pela hierarquia eclesiástica, o
que levou, por exemplo, à adopção da liturgia romana e à supressão
da liturgia hispânica ou moçárabe. A fundação do Condado Portu­
calense está intimamente ligada a esta conjuntura. Pretendia-se,
por um lado, criar um comando militar capaz de resistir às inves­
tidas almorávidas, particularmente agressivas nos anos de 1093 e
1094, mas também controlar a resistência regional à autoridade
de Afonso VI. A entrega de um condado a um francês protegido

84
101. GeorgesDuby. por Cluny e a nomeação de vários bispos franceses para as dioce­
O Tempo das Catedrais.
ses de Braga e de Coimbra implementavam uma estratégia polí­
A Arte e a Sociedade
989-1420, Lisboa, tica articulada.
Editorial Estampa, p. 28. Também a cultura — e, em particular, a cultura gráfica —
é, nesse final de século e no seguinte, marcada pela influência da
102. Fernanda Maria
Guedes de Campos, Europa de além-Pirenéus principalmente nas cidades que se come­
A Ordem das Ordens çam a desenvolver.
Religiosas. Roteiro As cidades representam o mundo moderno da Alta Idade
Identitirio de Portuga)
(Séculos Xll-XVm), Lisboa. Média. Para lá se dirigem os veios da nova economia agrária; de lá
Caleidoscópio, 2017. irradia a troca e a moeda; a circulação de pessoas e bens; a circula­
ção, também, de ideias, valores, estórias, quer trocadas oralmente,
quer em escrita gravada. As cidades são também o lugar da escrita
e o espaço radioso de circulação de documentos e livros. Mesmo
que com um certo entusiasmo poético, Georges Duby escreveu que
‘‘o homem do século XI vê o seu rei como um cavaleiro que, de
espada na mão, assegura ao povo a justiça e a paz. Mas vê-o tam­
bém como um sábio e quer que ele saiba ler nos livros".’01
É duvidoso se a leitura de Duby é ajustada ao contexto por­
tuguês. É sabido que no período do Império Romano abundavam
as bibliotecas, quer públicas quer privadas; o ensino da escrita, da
gramática e, mesmo da literatura não era raro; o uso da epigrafia
generalizou-se e a formação de scriptors — designers no sentido
actual — era valorizada.
O contexto dos séculos XI e XII em Portugal é distinto. Com a
extinção da primeira linhagem dos condes portucalenses, em 1071,
os poderes de carácter público, como 0 judicial e o militar, passa­
ram a ser desempenhados por um estrato intermédio da nobreza
portucalense, os chamados infações. Para além do soberano e dos
infações, a posse da terra repartia-se, ainda, com os mosteiros.
Ainda antes da fundação da nacionalidade, há registo da
fundação da Sé de Braga e documentos alusivos ao funcionamento
de uma escola que teve como um dos seus primeiros alunos Hono-
rigo Guilhamundes, mais tarde notário do conde D. Henrique, pai de
Afonso Henriques, e também notário da Sé de Braga.
Das primeiras ordens religiosas que edificaram mosteiros
em território português duas desempenharam um papel relevante
ao nível do ensino e, também, na criação de bibliotecas e scriptoria:
a Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e a Ordem de
Cister de São Bernardo. À primeira pertenceu o mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra e à segunda o mosteiro de Alcobaça.
Uma obra recente, A Ordem das Ordens Religiosas. Roteiro
Identitário de Portugal (Séculos XII-XVIII),'02 desenvolveu, de forma

85
íig- 3 2 Dialogi. Obrado século XIII. Escrito em latim em letra carolina sobre pergaminho.
A imagem corresponde à representação do zodíaco incluída no códice. Conhecida por
Diálogos a autoria desta obra é atribuída a Gregório Magno, papa entre 590 e 604.
A obra foi largamente copiada em diversos scriptorii ao longo do período medieval.
Biblioteca Nacional de Portugal.
103. Josó Eduardo aprofundada, a cronologia e mapeamento do poder monástico em
Eranco. Op. C.it., p. 260.
Portugal, bem como a descrição e contextualização da sua influên­
104- Para um
cia religiosa, política, económica, social e cultural.
aprofundamento desta No século XIII, os modelos de organização religiosa diversifi­
temática consulte-se:
cam-se sobretudo pela influência da fundação das ordens mendi­
AAW, História da
Universidade cm Portugal. cantes — Dominicanos e Franciscanos. “Os mendicantes não são
2 volumes. Universidade monges propriamente ditos, mas irmãos (traíres) que procuram
de Coimbra. Fundação
viver" em comunidade, procurando levar à conversão e educação
Calouste Gulbcnkían. 1997.
religiosa “pelo testemunho e pela palavra"103
A forma de vida religiosa mendicante torna-a, em grande
medida, mais contemporânea, no sentido de ser adaptável aos flu­
xos da mobilidade da sociedade medieval, em particular das cidades
em desenvolvimento, às actividades comerciais e à prática do ensino.
Neste período, os planos de estudos dividem-se em dois gru­
pos: trivium constituído por três disciplinas (Gramática, Retórica e
Dialéctica) e quadrivium constituído por quatro disciplinas (Aritmé­
tica, Música, Geometria e Astronomia).
Nas aulas de Retórica, além do ensino de princípios e regras
de oratória, ensina-se e treina-se a expressão escrita e o desenho
gráfico, ou seja, formam-se os futuros scriptors, os copistas, calí-
grafos e designers da Idade Média, que aprofundarão os seus
conhecimentos em contexto prático nos scriptoria medievais.104
O design e os designers integram-se, assim, neste sistema
de poderes, saberes e valores medievais, localizados, maioritaria­
mente, nos mosteiros onde se constituem bibliotecas, escolas e
estúdios de produção de livros; podendo ser formados, também,
para exercerem funções na administração pública, como tabeliães,
ocupando-se da produção manuscrita de documentos oficiais
De acordo com a tipologia do documento manuscrito, o dese­
nho da letra adoptaria uma certa funcionalidade, tal como aludimos
antes na análise dos tipos de letra. Isso ajuda a perceber como den­
tro das grandes famílias caligráficas deste período — a visigótica,
a carolina e a gótica — ela assumisse diversas nuances ao nível do
seu desenho, podendo filiar-se noutros estilos gráficos. A análise dos
documentos notariais, por exemplo, permite perceber o predomínio
de formas cursivas muito mais notório do que na escrita monástica.
Em capítulo anterior, que intitulámos "História — Design —
Portugal: A identidade como problema*, tivemos já oportunidade de
mencionar como durante este período encontramos códices produ­
zidos nos principais scriptoria portugueses onde se pode reconhe­
cer o recurso a diversos modelos gráficos e estilos de escrita, sendo
difícil identificar um cânone gráfico verdadeiramente dominante.
105. Trata-se de uma obra Por vezes, no mesmo códice, resultado do seu tempo longo de cópia
publicada pelo Circulo e da execução feita a várias mãos, as nuances de estilo de escrita
de Leitores em 2000.
são notórias. Numa caracterização muito geral, pode reconhecer-
-se, ao longo do tempo, uma evolução no recurso mais frequente à
escrita carolina em detrimento da visigótica, bem como a adopção
de expressões gráficas que revelam transições entre a escrita caro­
lina e a gótica cursiva e a introdução, por influência dos mosteiros
do sul de Itália, da escrita benaventana.
O estudo dos scriptoria medievais portugueses, sendo
recente, é. ainda, relativamente escasso tendo apenas na última
década ganhado uma maior profundidade. Manuel Santos Estevens
publica, em 1945, o primeiro estudo sobre o scriptorium do Mosteiro
de S. Mamede de Lorvão, registando a participação de 86 scriptors
entre os anos de 929 e 1276.
António Cruz, na sua obra Santa Cruz de Coimbra na cul­
tura portuguesa da Idade Média — Volume 1 — Observações
sobre o "scriptorium" e os estudos claustrais, publicada em 1964,
inicia uma investigação aprofundada do scriptorium de Santa Cruz
de Coimbra.
Também o scriptorium dos monges cistercienses de Alco-
baça tem merecido uma crescente atenção. Aí trabalharam alguns
dos mais notáveis calígrafos e iluminadores portugueses ou sedia­
dos em Portugal. A Biblioteca Nacional reúne, actualmente, 461
códices, que vão desde a fundação do Mosteiro, no século XII, até
ao século XVIII.
Menos estudados foram os scriptoria que funcionaram nou­
tros mosteiros, como o de São Sebastião de Lamego ou de São Sal­
vador de Grijó.
A História Religiosa de Portugal, obra publicada em três
volumes sob a direcção de Carlos Moreira Azevedo,'05 é uma obra
fundamental para uma compreensão, ampla e integrada, deste con­
texto histórico e da relevância cultural, política e artística do reli­
gioso relativamente ao social no contexto medieval português.
Também a cultura gráfica é indissociável dos processos de
produção, circulação e arquivo dos códices dentro de canais que
são, maioritariamente, religiosos.
A cópia de um manuscrito pressupunha, naturalmente, uma
circulação de códices, uma economia particular de difusão, troca,
reprodução e comercialização do livro antigo e medieval. Por este
facto, os scriptoria tinham uma actividade interdependente da
organização das bibliotecas monásticas.

88
106. Esta magnifica No âmbito da exposição Santa Cruz de Coimbra — A Cul­
cxpotkjio foi coordenada
tura Portuguesa Aberta à Europa na Idade Média,’0® realizada pela
por Jorge Costa e leve
assessoria cientifica Biblioteca Pública Municipal do Porto em 2001 (com design gráfico
de Agostinho Frias. da Gas Design e design multimédia da Drop de João Faria), foi apre­
|ose Mcirtnhos c Maria
sentada uma reconstituição de um scriptorium medieval português,
|osé Azevedo Santos.
O catalogo da capou»,áo valerá a pena recordar aqui os conteúdos dessa reconstituição
teve coordenação editorial
de Agostinho Figueiredo
Frias. Jorge Cinta c |o*e
"I — Mesa de trabalho horizontal (banca), própria para a ela­
Francisco Meirinhos. boração de documentos avulsos 1. Pergaminho - pele de
animal que, depois de preparada, proporciona uma superfí­
cie com dois lados (o do pêlo e o da carne) para nela se escre­
ver. 2. Pele de peixe — utilizada para polir os pergaminhos
na sua preparação. 3. Pedra-pomes rocha vulcânica seca,
porosa e leve. Serve para polir o pergaminho e até afiar o bico
da pena. 4 Facas — servem para cortar as peles, raspar o
pergaminho, talhar as penas, corrigir os erros dos copistas.
5. Canivetes — instrumentos usados no talhe (dar forma à
ponta da pena, geralmente fendida ao meio) das penas das
aves. 6. Cornos — chifres de animal utilizados como tinteiros.
7. Penas — penas de ave que, depois de serem talhadas nas
pontas servem para escrever. 8. Dedais — objectos para pro­
teger os dedos quando se cose o pergaminho. 9. Compassos
— servem para traçar círculos, medir, ou fazer a pautagem
no pergaminho (ponta seca). 10. Espátula — instrumento de
madeira utilizado para juntam as tintas moídas. 11. Sovelas —
instrumentos constituídos por uma espécie de agulha, direita
ou curva, com que se faziam os orifícios nas folhas de perga­
minho para, unindo-os, estabelecer o pautado.

II — Caixa destinada a guardar os instrumentos necessá­


rios para escrever 12. Pena talhada — pena de ave, talhada
Com tinta serve para escrever. 13. Régua —- instrumento de
madeira utilizado no traçado das linhas rectas. 14. Tabuinhas
enceradas com seu estilete — destinam-se a receber escri­
tos. 15. Palmatória — castiçal em barro, para colocar velas,
que serviam para iluminar. 16. Ampulheta — instrumento que
serve para calcular o tempo (o tempo que a areia gasta em
passar de um dos cones para o outro). 17. Tesouras — serviam
para cortar os pergaminhos, os fios e as penas. 18 Novelos de
fio — linha para coser rasgões no pergaminho. 19. Reprodu­
ção de iluminuras antigas — iluminura é um tipo de pintura
decorativa aplicado às letras capitulares (letras maiusculas
107. Usámos, que iniciam o capítulo). O termo também se aplica aos ele­
anteriormentc, o termo
mentos decorativos e representações que surgem nos livros
scriprorque sugerimos
como o corrccto. Desde da Idade Média. 20. Reprodução de Monge Copista, com
a antiguidade latina c terço com contas em madeira e com iluminura nas mãos.
atravessando o período
medieval, scriptoré a
designação dada a quem III — Armário destinado a guardar manuscritos e outras
se ocupa da escrita c do peças relativas à escrita 21. Almofarizes com seus pilões
desenho da letra. O termo
tem, no latim, também — serviam para machucar e macerar os bugalhos e gomas
o sentido de autor, arábicas destinadas à preparação das tintas. 22. Goma ará­
scriptor rcrum designa
bica — resina produzida por diferentes árvores do género
o historiador c scriptor
legum o legislador; o termo da Acácia. Ingrediente de receitas de tinta de escrever.
scrittori não existe no 23. Sulfato de ferro — sal metálico utilizado na prepara­
latim, apenas no italiano c
ção das tintas de escrever. Associado a um agente tanino
com um sentido distinto.
Porém, a responsabilidade (noz de galha) produz um precipitado castanho ou negro
sobre o scriptorium não (tinta). 24. Agulhas — serviam para coser os pergaminhos.
cabe ao saiptor mas ao
armarius, literalmentc
25. Tábuas — placas de madeira destinadas à encaderna­
o responsável pelo ção dos livros. Forravam-se com pele ou tecido 26. Vassou­
armariam ou biblioteca. ras. 27. Nozes de galha — elemento principal na preparação
das tintas negras de escrever, porque são ricas em tanino.

IV — Móvel fixo com superfície inclinada. Adapta-se fun­


damentalmente à cópia de livros permitindo o emprego de
folhas de formato grande 28. Reprodução de Monge Copista.
29. Iluminura. 30. Frascos com tintas de escrever — líquidos
vermelho e preto. 31. Candeia — objecto de metal com bico
por onde sai a torcida. Deita-se-lhe azeite e acende-se para
dar luz. 32. Penas de ave talhadas — compõe-se de duas par­
tes: a haste eas barbas".

Esta reconstituição permite-nos perceber a instrumentali-


dade que caracterizava o scriptorium, espaço de criação gráfica,
trabalhando frequentemente por resposta a encomendas e no qual
se reuniam diferentes perfis especializados.
Próximo de descrições encontradas em obras anteriores,
Philip B Meggs, na sua História do Design Gráfico, identifica três
perfis principais, incorrectamente designados de scrittori,'07 res­
ponsável pela organização do espaço de trabalho e frequentemente
apresentado como director de arte, o copisti, especializado em cali­
grafia e o illuminator, ilustrador responsável pela execução dos
ornamentos e do desenho de imagens de apoio visual ao texto.
Os termos usados por Meggs revelam imprecisões — scrittori
e copisti não são termos latinos que designem aquelas actividades

90
específicas mas. corrigindo os termos, podemos referir que o
trabalho de produção de um códice é frequentemente feito a várias
mãos, envolvendo mais do que um scriptor ou illuminator.
Procuraremos desenvolver, no próximo volume, algumas
descrições aqui apresentadas introdutoriamente nos capítulos
dedicados ao contexto do livro antigo e do livro medieval.
Continuaremos a viagem pelo tempo e a procurar identificar
os contextos onde o design gráfico se desenvolve, os seus proces­
sos, as suas técnicas e os diversos valores que lhe estão associados.

h€A3 Manuscrito iluminado produzido cm Inglaterra no inicio do *éc XIV Escrito em Latim
cm letra gótica. Britísh Librar»
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Stationes et Indulgentiae. Roma. 1561. Texto em latim escrito em letra humanistica. Tarjas iluminadas
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com motivos vcgctaiistas; na tarja superior, ao centro, representação do Calvário, inserido num quadrado,
de cada lado dois escudos, o das armas de Portugal e das armas papais. Biblioteca Nacional dc Portugal.
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História do Design Dedicatória do autor
Gráfico em Portugal Dedicado a
- Perspectivas críticas Afonso Bártolo
e Rute Chaves
Volume 1 ISBN
Sombra e Luz: 978-989-54515-8-6
identidade e origens 978-989-53874-0-3
da nacionalidade (ESAD — Idea, Research
Imagem de capa in Design and Art)
Dialogi. Gregório
Magno. 84 f. Pergaminho. Depósito Legal
506055/22
Iluminado. 250x158 mm.
Texto em latim escrito em www.publico.pt
letra carolina Biblioteca www.coralbooks.pt
Nacional de Portugal www.l00folhas.pt
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Copyright 2023 Mercado Municipal,
(edição revista) Espaço 13
Reservados todos os 4450-137 Matosinhos
direitos para esta edição

Edição
Ricardo Afonso
Victor Oliveira
Autoria
José Bártolo
Comissão de revisão
científica
Jorge dos Reis, Designer,
Professor Auxiliar da
Faculdade de Belas-Artes
da Universidade de
Lisboa.
José Brandão, Designer,
Professor Emérito da
Universidade de Lisboa
Maria Helena Souto.
Historiadora, Professora
Associada da
Universidade Europeia.
Revisão
José Remelhe
Direcção de arte
e design
Atelier dAlves
Paginação
André Cardoso
Daniel Dias
Tipos de Letra
Grosa e Rongel
desenhados
por Mário Feliciano/
Feliciano Type
Impressão
e acabamento
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esad—Idea FOLHOS
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A Colecção

1 Sombra e luz:
identidade e origens
da nacionalidade

2 Escala da mão:
longa antiguidade

3 Prova de impressão:
renascimento das artes gráficas

4 Ser moderno:
discursos visuais
do modernismo

5 Sistemas de poder:
da Ditadura Militar
ao fim do Estado Novo

6 Experimental e revolucionário:
design em democracia

7 Depois do modernismo:
do pós-moderno ao digital

8 Rupturas e transições:
design no novo milénio

9 Glossário

10 Cronologia
Sombra e luz: identidade e origens da nacionalidade
apresenta uma reflexão sobre o conceito de identidade
que introduz o leitor ao tom da obra. Uma atenção às
origens do design gráfico levou-nos a partir dos alfabetos,
atravessando o tempo para nos aproximarmos de um
tempo nosso, do alfabeto latino. Esse ponto de partida
permite-nos analisar estilos de escrita e tipos de letra, o
modo como o desenho se inscreve em sistemas de valores
e como eles podem dar lugar a estilos identitários. Uma
atenção particular é dada ao livro antigo, ao seu contexto,
à sua materialidade, ao seu design, o que justifica
um olhar mais atento para os scriptoria portugueses
medievais e de como a sua organização influenciará
quer as oficinas de artes gráficas posteriores quer um
certo modelo de estúdio de design, como o podemos
reconhecer actualmente.

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