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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO, ATUÁRIA, CONTABILIDADE E


SECRETARIADO EXECUTIVO (FEAAC)
CURSO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

ARISTON SILVA DE AZEVEDO

OS GOVERNOS NEOLIBERAIS DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E LULA

FORTALEZA – CE

2013
ARISTON SILVA DE AZEVEDO

OS GOVERNOS NEOLIBERAIS DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E LULA

Monografia apresentada à Faculdade de


Economia, Administração, Atuária,
Contabilidade e Secretariado Executivo,
como requisito parcial para obtenção do
Título de Bacharel em Ciências
Econômicas.

Orientador: Prof. Dr. Fabio Maia Sobral

FORTALEZA – CE

2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade

A986g Azevedo, Ariston Silva de.

Os governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso e Lula / Ariston Silva de


Azevedo - 2013.

53 f.; il.; enc.; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de


Economia, Administração, Atuária e Contabilidade, Curso de Ciências Econômicas,
Fortaleza, 2013.

Orientação: Prof. Dr. Fabio Maia Sobral.

1.Neoliberalismo 2.Brasil – política e governo I. Título

CDD 330
ARISTON SILVA DE AZEVEDO

OS GOVERNOS NEOLIBERAIS DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E LULA

Monografia apresentada à Faculdade de


Economia, Administração, Atuária,
Contabilidade e Secretariado Executivo,
como requisito parcial para obtenção do
Título de Bacharel em Ciências
Econômicas.

Aprovada em ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________

Prof. Dr. Fabio Maia Sobral (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_______________________________________________________________

Prof.Dr. André Vasconcelos Ferreira

Universidade Federal do Ceará (UFC)

________________________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Américo Leite Moreira

Universidade Federal do Ceará (UFC)


Aos meus pais, José e Fátima.

À minha querida Tia Maria (in memoriam).

À Leda e ao Luis Otávio.


AGRADECIMENTOS

A meus pais, José Otaviano de Azevedo e Maria Fátima Silva de Azevedo, que
sempre me incentivaram.

Aos meus irmãos, Ana, Adriana, Ademir, Alessandra, Anderson e Adilson; os quais
contribuíram de todas as formas possíveis.

Aos meus cunhados, Rogério e Elton.

Ao Prof. Dr. Fabio Maia Sobral pela atenção e excelente orientação.

Aos professores componentes da Banca examinadora André Vasconcelos Ferreira e


Carlos Américo Leite Moreira por terem aceitado gentilmente o convite.

Ao grande amigo Alexandre pelas revisões e dicas.


RESUMO

O avanço do ideário neoliberal no Brasil marcou o início de grandes transformações


tanto econômicas como sociais. A era Collor, interrompida por conta do
impeachment, foi a primeira experiência neoliberal brasileira, e coube a Fernando
Henrique Cardoso (FHC) dar continuidade ao legado incompleto deixado por Collor.
A partir de então, os processos de integração passiva da economia brasileira, de
flexibilização, de desregulamentação e de privatizações seguiram a todo vapor. As
políticas sociais seguiram as orientações do Banco Mundial e, por isso, priorizaram a
focalização, e não a universalização. Lula herdou o modelo político e econômico de
FHC e quase nada modificou. As políticas sociais – principalmente com o Bolsa
Família – continuaram na mesma lógica, mas servindo, dessa vez, como instrumento
de controle das classes sociais mais frágeis. Este trabalho se propôs a investigar em
que medida os governos FHC e Lula aderiram ao ideário neoliberal, uma vez que o
neoliberalismo permeou ambos os governos.

Palavras-chave: Ideário. Neoliberalismo. Políticas


ABSTRACT

The advancement of neoliberal ideas in Brazil marked the beginning of major


economic and social changes. The Collor era, interrupted by the impeachment, was
the first Brazilian neoliberal experience, and it was Fernando Henrique Cardoso
(FHC) who assumed to continue the legacy left incomplete by Collor. Thereafter, the
processes of passive integration of the Brazilian economy, of flexibility, deregulation
and privatization have continued at full steam. Social policies followed the guidelines
of the World Bank and therefore prioritized focus, and not universality. Lula inherited
the political and economic model of FHC and changed almost nothing. Social policies
- especially the ‘Bolsa Família’ - continued in the same logic, but served this time as
a means to control the weaker social classes. This study aims at investigating the
extent to which the governments of FHC and Lula followed the neoliberal ideal, since
neoliberalism permeated both of them.

Keywords: Ideas. Neoliberalism. Policies


SUMÁRIO

1 Introdução ............................................................................................................... 9

2 O neoliberalismo no mundo ................................................................................ 11

2.1 No Brasil .............................................................................................................. 16

3 A eleição de Fernando Henrique Cardoso ......................................................... 22

3.1 Os custos da implantação do plano..................................................................... 24

3.2 A reforma de Estado e as famigeradas privatizações ......................................... 30

3.3 Políticas sociais ................................................................................................... 33

3.4 O mercado de trabalho ........................................................................................ 36

4 Uma “esperança” chamada Lula ........................................................................ 40

4.1 A política macroeconômica do novo governo ...................................................... 41

4.2 Dívida Pública ..................................................................................................... 46

4.3 Políticas sociais ................................................................................................... 47

4.4 Cooptação dos movimentos sociais .................................................................... 51

5 Conclusão ............................................................................................................. 53

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 55
9

1 Introdução

Ao longo de toda sua história, o capitalismo nunca esteve e nunca estará


imune a crises. E foi assim, devido ao esgotamento do fordismo, somado,
posteriormente, aos efeitos das duas crises do petróleo (1973 e 1979), que foi
desmoronando o modelo de capitalismo em voga nos Estados Unidos e na Europa
desde o fim da Segunda Guerra até o fim década de 1960. A partir dessa crise
estrutural, as ideias neoliberais, deixadas de lado por anos, retornaram com força.

As experiências neoliberais, para não dizer trágicas, sempre trazem em sua


esteira sérias consequências às economias que se rendem de maneira passiva às
suas intempéries. No âmbito das orientações transmitidas pelos teóricos neoliberais,
as medidas de austeridade recaem, em sua grande maioria, sobre a classe
produtora da riqueza da sociedade, ou seja, a trabalhadora.

Os direitos sociais, duramente conquistados ao longo do século XX, são


vistos como danosos à “livre concorrência” tão propugnada pelos neoliberais. Para
estes, é preciso acabar com as “benesses” dadas aos trabalhadores, e nada mais
oportuno, senão uma crise estrutural, para que se achem desculpas para enfatizar a
necessidade de reformas, muitas das quais acarretam desemprego e cortes dos
direitos sociais.

A história mostra que as ações de Margaret Thatcher (na Inglaterra), com sua
dilapidação econômica e sua postura reacionária no trato com os movimentos
sociais, do que provém a famosa expressão “Dama de Ferro”, são os exemplos mais
nítidos do que o neoliberalismo pode ser. Durante o governo Thatcher, os
movimentos sindicais foram duramente reprimidos, haja vista a famosa greve dos
mineiros de 1984/85. Na outra potência de capitalismo avançado, os Estados
Unidos, o ex-presidente Ronald Reagan introduziu uma espécie de neoliberalismo
“diferenciado”1, voltado para expansão militar, preocupado em fazer frente à União
Soviética.

1
Na seção referente ao neoliberalismo no mundo, o termo “diferenciado” ficará mais claro.
10

O Brasil – principal objeto de estudo deste trabalho –, há pelo menos vinte


anos, vem passando por uma série de mudanças econômicas e sociais orientadas
pela lógica neoliberal, apesar de alguns se negarem a se assumir neoliberais.
Iniciando pela era Collor (incompleta) e passando pelo interregno Itamar Franco e
seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, até chegar a Lula, é possível falar em
processo de continuidade.

Este estudo passará a investigar com ênfase o período que vai do início do
governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) ao fim do governo Lula, com o objetivo
de verificar em que medida ambos os governos aderiram ao ideário neoliberal. A
investigação cientifica foi realizada através da consulta a livros, artigos, jornais,
revistas, documentos oficiais e dados estatísticos obtidos em fontes secundárias.

A presente pesquisa foi dividida em três seções. A primeira tratará do avanço


do ideário neoliberal no mundo e no Brasil; a segunda analisará o caráter do
governo FHC; e a terceira, do governo Lula. Por fim, a conclusão trará as evidências
encontradas ao longo de toda a pesquisa.
11

2 O neoliberalismo no mundo

A concepção do neoliberalismo, se assim pode-se dizer, deu-se após a


Segunda Guerra Mundial, para fazer frente ao Estado intervencionista e de bem-
estar social. Hayek, com sua obra O caminho da servidão, incumbiu-se da tarefa de
produzir ferrenhas críticas ao modelo de Estado interventor que regulava a atividade
econômica (ANDERSON, 1995; PAULANI, 2008).

No entanto, não é imediatamente ao pós-guerra que as ideias neoliberais


tomaram força, pois o padrão de desenvolvimento capitalista surgido nos Estados
Unidos (fordismo), o qual dava sustentação ao Estado Benfeitor, apresentou um
relativo sucesso (em termos de taxa de crescimento e de proteção social) durante,
pelos menos, duas décadas e meia (FILGUEIRAS, 2006a).

A partir do final da década de 1960 e início de 1970, assiste-se ao processo


de esgotamento do modelo fordista. Antunes (1999) aponta os principais traços que
evidenciaram o inicio de um quadro crítico, foram eles: a queda da taxa de lucro,
causada pelo aumento do preço da força de trabalho, conquistado pelos
trabalhadores pós 1945 e pelas diversas lutas da década de 60, que visavam
controle social da produção2; esgotamento do modelo de acumulação de produção
dado pela retração do consumo, ocasionada pelo inicio do desemprego estrutural;
ascensão da esfera financeira frente à esfera produtiva; concentração de capitais,
ocasionada por fusões de empresas monopolistas e oligopolistas; e incremento das
privatizações.

Além dos traços acima citados, as crises do petróleo, experimentadas pelo


mundo em 1973 e em 1979, e a elevação das taxas de juros estadunidenses foram
também responsáveis pela mudança de paradigma na economia mundial. Tem-se, a
partir desse momento, um processo que levou o capitalismo a ingressar em uma
nova fase, que se caracteriza pela apologia à financeirização da economia, como
explica Paulani (2008, p. 115):

O choque do petróleo e a profundidade da crise que se seguiu contribuíram


decisivamente para a engorda geral dos capitais em busca de valorização

2
O somatório desses elementos levou a redução dos níveis produtividade do capital que, por sua
vez, reduziram a taxa de lucro.
12

financeira. Aos eurodólares já acumulados na city de Londres vieram se


juntar os petrodólares e uma nova leva de eurodólares, agora com mais
motivos para desertar da atividade produtiva, dada a recessão que atingia
quase todo mundo, particularmente o centro do sistema, ou seja, os países
desenvolvidos. Os bancos privados internacionais com operações na city
londrina se associaram para reciclar esses euros e petrodólares buscando
tomadores entre os países da periferia do sistema. Os países latino-
americanos estiveram, portanto entre as primeiras vítimas da sanha rentista
desses capitais, já que muitos deles resolveram enfrentar, com elevação de
seu grau de endividamento, a crise então experimentada.

Sendo assim, o modelo de capitalismo dos anos anteriores não era ideal para
os novos moldes em que a economia mundial se inseriu, ou seja, prevalecia agora a
lógica da acumulação financeira. Ficava inviável para os capitais voláteis uma
economia regulada, pois as principais características deles são a velocidade
frenética com a qual se movimentam e a desconexão com a esfera produtiva real.

O neoliberalismo, segundo Filgueiras (2006a, p. 49, grifo do autor):

[...] saiu do ostracismo político que o caracterizou durante os “anos de ouro”


do desenvolvimento capitalista, apresentando-se como uma doutrina atual.
Posteriormente, após a derrocada do “socialismo real” no leste da Europa,
se auto-intitulou o porta-voz dos novos tempos, da “modernidade” ou da
“pós-modernidade” e da vitória definitiva do capitalismo na sua forma mais “
pura”; período agora marcado pela absoluta hegemonia do mercado e da
competição, em oposição às “ velhas idéias (sic) intervencionistas”.

Dessa forma, o avanço das ideias neoliberais encontrou certa facilidade, uma
vez que não havia obstáculos devido à queda do modelo de acumulação anterior. A
primeira experiência neoliberal se deu na América Latina, mais precisamente, na
ditadura chilena de Augusto Pinochet. Ao que se sabe, “[...] no Chile, naturalmente,
a inspiração teórica da experiência pinochetista era mais norte-americana do que
austríaca. Friedman e não Hayek, como era de se esperar nas Américas”
(ANDERSON, 1995, p. 19). Naomi Klein, no livro A doutrina do choque: a ascensão
do capitalismo de desastre (2008), também faz considerações pertinentes acerca da
introdução do pensamento neoliberal nos países da América latina.

Neoliberalismo e ditadura aliados foram responsáveis por uma série de


transformações drásticas que o país latino-americano (Chile) sofreu. É fato que a
experiência neoliberal chilena serviu como uma espécie de projeto não só para
países latino-americanos, mas também para países avançados do Ocidente, como
explica Anderson (1995).
13

A eleição de Thatcher, em 1979, na Inglaterra, e a de Reagan, em 1980, nos


Estados Unidos, significaram as primeiras experiências neoliberais, no que diz
respeito a países de capitalismo avançado.

É lógico que havia diferenças um pouco consideráveis na maneira com que


as medidas neoliberais foram colocadas em prática nos dois países. Thatcher impôs
políticas de extrema austeridade, entre as quais se destacam: contração da emissão
de moeda, redução dos impostos sobre a renda (da faixa da população que auferia
rendas mais altas), elevação da taxa de juros, liberdade aos fluxos financeiros,
intenso combate às greves e aos movimentos sociais, além de um incisivo programa
de privatização (ANDERSON, 1995; FILGUEIRAS, 2006a).

Reagan, por sua vez, concentrou esforços no sentido de fazer frente


militarmente à União Soviética. O objetivo era desarticular a economia soviética e,
por conseguinte, impor uma derrota ao regime comunista. A análise de Anderson
(1995, p. 12, grifo nosso) corrobora o entendimento do período em questão:

Deve-se ressaltar que, na política interna, Reagan também reduziu os


impostos em favor dos ricos, elevou as taxas de juros e aplastou a
única greve séria de sua gestão. Mas decididamente, não respeitou a
disciplina orçamentária; ao contrário, lançou-se numa corrida armamentista
sem precedentes, envolvendo gastos militares enormes, que criaram um
déficit público muito maior do que qualquer outro presidente da história
norte-americana.

A partir da citação acima é reforçada a ideia de que o governo Reagan teve


caráter duplo, combinando a política militar expansionista com as políticas típicas
neoliberais, por isso é fato que “de 1980 a 1985 a aquisição de armamentos
aumentou em 100%, a pesquisa em 80% e a construção militar em mais de 90%”
(NAVARRO, 1991, p.204). Os maiores gastos militares representaram transferência
de fundos federais sociais para o militar como enfatiza Navarro (1991).

Na Europa, diversos governos de direita aderiram ao projeto – notadamente


de formas singulares –, mas sempre pautados na disciplina do orçamento e nas
reformas fiscais. Alguns países, como França e Grécia, contrariando a lógica que se
instaurava, elegeram governos de esquerda. A partir de então, esses dois países
empreenderam forças no intuito de imprimir uma forma diferente de governo
contraface às políticas praticadas pelos governos direitistas, ou seja, políticas de
redistribuição, proteção social e pleno emprego eram prioridades. Apesar das
14

tentativas, não foi possível resistir às pressões do mercado financeiro; dessa forma,
o governo francês “[...] se viu forçado a mudar seu curso drasticamente e reorientar-
se para fazer uma política muito próxima à ortodoxia neoliberal [...]” (ANDERSON,
1995, p. 13).

Chama atenção o fato de até governos ditos de esquerda terem aceitado, de


maneira subserviente, as instruções da cartilha neoliberal, uma vez que, a princípio,
somente governos direitistas o haviam feito.

Tendo como álibi o combate à inflação que marcou a década de 1970, o


neoliberalismo conseguiu ser eficiente. Segundo Anderson (1995 p.14-15):

A prioridade mais imediata do neoliberalismo era deter a grande inflação


dos anos 70. Nesse aspecto, seu êxito foi inegável. No conjunto de países
da OCDE, a taxa de inflação caiu de 8,8% para 5,2%, entre os anos 70 e
80, e a tendência de queda continua nos anos 90.

Contudo, algumas ressalvas devem ser feitas. O custo para que isso fosse
possível passava pela recuperação dos lucros via deflação. Então, foram impostas
duras derrotas aos sindicatos e, por conseguinte, redução do número de greves e
controle impiedoso dos aumentos salariais. Outro ponto que merece destaque diz
respeito à redução da tributação em cima dos salários mais altos nos países que
compunham a Organização Europeia Para o Comércio e Desenvolvimento (OCDE)
(ANDERSON, 1995).

Se, por um lado, as medidas adotadas para se conter a inflação e recuperar


os lucros foram eficazes, por outro, nos anos de 1980, não se alcançou o
crescimento econômico esperado, assim como ocorreu na década anterior. Por
conta da desregulamentação financeira empregada, houve uma migração dos
recursos financeiros da esfera produtiva para a esfera especulativa.

O processo de reestruturação produtiva também tem sua parcela de


contribuição nos rumos em que o capitalismo tomou a partir do advento neoliberal.
De acordo com Filgueiras (2006a, p 64-65):

Nesse sentido, a doutrina neoliberal serve tanto à reestruturação


produtiva quanto ao processo de globalização, na forma como eles vêm
ocorrendo. Estes dois outros fenômenos, por sua vez, se estimulam e se
realimentam reciprocamente, acelerando o desenvolvimento de um das
forças produtivas e ampliando o circuito da acumulação. Em particular
tecnológico, viabilizando a associação da informática às telecomunicações,
foi determinante para a criação de um mercado financeiro globalizado.
15

As inovações tecnológicas e as novas formas de organização do trabalho,


que são tidas como fatores positivos no que diz respeito à fase de acumulação
flexível do capitalismo, revelam sua outra face, ou seja, o aumento do desemprego
estrutural, o qual é a própria expressão fenomênica das contradições dessa nova
fase. Portanto, ainda de acordo com Filgueiras (2006a, p.65):

A natureza das inovações tecnológicas e organizacionais, juntamente como


o reduzido crescimento econômico – próprio de uma fase do capitalismo
caracterizada pela mais absoluta hegemonia do capital financeiro e, por
decorrência, de sua lógica de funcionamento – determinam a existência de
elevadas taxas de desemprego e/ou a ampla disseminação da precarização
do trabalho.

Anderson (1995) lembra que devido à recessão econômica do ano de 1991,


esperava-se uma reação contrária ao neoliberalismo. Este, no entanto, ganhou novo
fôlego com a eleição de uma leva de presidentes de direita em países como
Inglaterra, Suécia e Itália.

Para finalizar, a indagação feita por Anderson (1995, p. 22):

A pergunta que está aberta é se o neoliberalismo encontrará mais ou menos


resistência à implementação duradoura dos seus projetos aqui na América
Latina do que na Europa ocidental ou na antiga União Soviética. Seria
o populismo – ou obreirismo – latino-americano um obstáculo mais fácil ou
mais difícil para a realização dos planos neoliberais do que a social-
democracia reformista ou o comunismo?

Cabe ressaltar que o esforço do presente trabalho se concentrará em


procurar respostas para o caso brasileiro. A pergunta lançada data de 19943, e,
examinando o caso brasileiro a partir daquele ano, tivemos a eleição de Fernando
Henrique Cardoso, reeleito em 1998, e, de forma semelhante, Lula, eleito em 2002 e
reeleito em 2006. Portanto, será possível verificar em que medida os dois governos
adotaram o ideário neoliberal.

3
A pergunta faz parte do texto de Perry Anderson originado no seminário “Pós-neoliberalismo: as
políticas sociais e o Estado democrático”, realizado entre os dias 13 e 16 de 1994, pelo departamento
de Política Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
16

2.1 No Brasil

Durante a década de 1980, diversos países latino-americanos sofreram com a


crise da dívida externa e, por isso, viram-se obrigados a aderir, de maneira servil, às
imposições dos organismos financeiros internacionais. O cerne do problema havia
sido gestado na década anterior, em que a oferta internacional de crédito era
abundante e os juros encontravam-se em patamares considerados baixos, ou seja,
havia facilidade na contração de empréstimos internacionais. A elevação das taxas
de juros estadunidense, somada ao segundo choque do petróleo, em 1979, foram os
estopins de uma era de dificuldades relacionadas a pressões cambiais e ao aumento
do montante dos juros das dívidas dos países tomadores. Para complementar o
cenário caótico, não era mais possível contrair empréstimos com a facilidade
anteriormente encontrada (FILGUEIRAS 2006a).

Eram diferentes os países e diferentes os casos, mas o receituário era


sempre o mesmo. Os diversos planos de estabilização econômica, introduzidos nos
variados países da América Latina, tinham a mesma linhagem, como aponta
Filgueiras (2006a, p. 94, grifo do autor):

Em todos os lugares onde foram adotados, esses planos seguiram, sempre,


o mesmo roteiro: combate à inflação, através da dolarização da economia e
a valorização das moedas nacionais, associado a uma grande ênfase na
necessidade do “ajuste fiscal”. Acompanharam a realização de reforma do
Estado – sobretudo privatizações e mudanças na seguridade social –
desregulamentação dos mercados e liberalização (internacionalização)
comercial e financeira.

Apesar de ter fincado raízes na América Latina, durante a década de 1980, o


neoliberalismo encontrou certa resistência para ser implantado no Brasil. As lutas
populares, típicas dos movimentos organizados, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT),
tiveram papel exemplar na resistência ao avanço da onda neoliberal no Brasil4.

4
Datam dos anos de 1980 pelo menos cinco greves gerais organizadas pela mobilização da classe
trabalhadora. Após a greve geral de 1983, realizou-se, entre 26 e 28 de agosto, o 1º Congresso
Nacional da Classe Trabalhadora. No último dia de congresso, nasceu a Central Única de
Trabalhadores (CUT).
17

O quadro abaixo é um exemplo histórico retrado em uma matéria de jornal


dos anos de 1980 e mostra a proporção que as greves, principalmente do ABC
paulista, tomava.

Quadro 1: Uma das principais greves da década de 80


A greve nacional de protesto contra a política econômica do governo praticamente ficou
restrita à Grande São Paulo, onde a paralisação foi apenas parcial, mas a população viveu
ontem um dia de medo, refletido nas ruas vazias e na grande quantidade de lojas que, por
precaução não abriram suas portas na Capital, como se fosse feriado.

[...]. O maior índice de adesão à greve ocorreu em São Bernardo do Campo e Diadema,
onde 80% dos trabalhadores paralisaram suas atividades, segundo os cálculos das
lideranças sindicais. As duas cidades ficaram sem transportes e o comércio não funcionou.
Lá também ocorreram os principais incidentes: 50 ônibus foram depredados em Diadema,
enquanto em São Bernardo a Polícia Militar reprimiu um grupo de manifestantes com
violência e chegou a invadir a igreja matriz onde eles se refugiaram. [...]
Fonte: Adaptado do jornal Folha de São Paulo, 22 de julho de 1983.

É muito importante, senão clássica, a mobilização política dos trabalhadores,


a qual fez surgir um partido político de massa 5, a ponto de representar ameaça ao
poder das classes dominantes. Por conta de não conseguir tornar hegemônico seu
projeto nacional, democrático e popular, possibilitou a vitória do projeto neoliberal.
Por isso, apesar das contradições e das disputas internas, as diversas frações do
capital uniram-se em torno da candidatura de Collor (FILGUEIRAS, 2006b).

O ex-governador de Alagoas “[...] apresentou-se como outsider do


empresariado, das associações sindicais, da política e dos partidos políticos”
(FILGUEIRAS, 2006a, p.85). Collor surgiu na disputa presidencial de 1989 como
uma figura dúbia, dada a fragilidade do seu discurso, pois prometia defender os
interesses dos mais necessitados(os “descamisados” e os “pés descalços”)
enquanto recebia apoio das elites do país, principalmente da mídia que trabalhou na
construção de sua candidatura e dos ruralistas. Tavares (1998, p.32-33) explica a
relação de Collor com a mídia:

Na época a imprensa seguia todos os passos do candidato e Collor se


aproveitou do seu poder de sedução e acabou recebendo tratamento
generoso por parte da maior rede de televisão do país, a TV Globo, um
ícone da cultura nacional. [...] Fernando Collor foi, sem dúvida nenhuma, um
candidato formado pelo mais elaborado e eficiente marketing político.

5
Trata-se do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980.
18

Beneficiando-se de todos os holofotes e das bênçãos da poderosa mídia a


favor de sua campanha, Collor elegeu-se como o primeiro presidente por voto direto
após a ditadura militar.

A agenda neoliberal proposta pelo Consenso de Washington ganharia adesão


durante o governo Collor. Sob a batuta do FMI e do Banco Mundial, um conjunto de
reformas estruturais deveria ser feito. Os pontos propostos foram basicamente:
disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária e previdenciária,
liberalização financeira, câmbio flutuante, liberalização comercial, investimento direto
estrangeiro, privatização, desregulamentação das relações trabalhistas e de setores
controlados ou cartelizados e, por fim, garantia da propriedade intelectual (ao que
tudo indica, visava tão somente estabelecer um monopólio favorável aos
patenteados). Mas é possível afirmar que “[...] o colapso do governo Collor frustraria
o alinhamento total do Brasil ao Consenso de Washington. É difícil, senão
inconveniente, voltar atrás no muito que já se caminhou naquela direção” (BATISTA,
1994, p. 28). Por conta do impeachment, Collor deixou a Presidência da República
em 1992.

A trágica experiência vivida na era Collor não serviu de impulso para a ruptura
com o modelo neoliberal; pelo contrário, foi depois dela que se abriu espaço para
ascensão de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República. Com status
de progenitor do Plano Real, o então Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco
se fortaleceu na disputa presidencial respaldado pelo “sucesso” obtido sobre a
inflação.

O governo Fernando Henrique Cardoso, como aponta Antunes (2005), seguiu


outra racionalidade, mas continuou alinhado com o mesmo ideário do Consenso de
Washington. Dessa maneira, foram mantidos os processos de transformação
estrutural, ou seja, foi dada continuidade ao conjunto de reformas tipicamente
liberais iniciadas no governo anterior.

De forma mais acelerada, deu-se prosseguimento aos pontos da agenda que


não foram cumpridos durante a era Collor. Assistiu-se a um processo de
emparelhamento fiel às sugestões do FMI, do Banco Mundial e do Consenso de
Washington. Como foi mencionado, esses processos se referem ao desmonte
nacional e à integração submissa à ordem mundializada.
19

Antunes (2005, p. 131-32) analisa assim o período do governo Fernando


Henrique Cardoso:

Eleito em 1994, depois do desastre da fase Collor, FHC conseguiu


posteriormente, em 1998, a reeleição. Ficou, desse modo, governando o
país por oito anos. Nesse período, o nosso parque produtivo foi
enormemente alterado e retraído pela política intensa de privatização do
setor produtivo estatal (especialmente na siderurgia, telecomunicações e
energia elétrica), o que alterou sobremaneira o tripé que sustentava a
economia brasileira (capital nacional, capital estrangeiro e setor produtivo
nacional), elevando o binômio integração/subordinação do país ao universo
globalizado e desorganizando o padrão produtivo existente nas últimas
cinco décadas.

Do governo Lula, muitos esperavam que fosse o marco da ruptura com as


políticas econômicas notadamente liberais. No entanto, ao que tudo indica, “[...] o
governo Lula manteve a mesma política do segundo governo Cardoso – metas de
inflação, ajuste fiscal permanente e câmbio flutuante” (FILGUEIRAS; GONÇALVES,
2007, p. 101).

Paulani (2008) explica que muitos economistas acreditam haver uma só


política macroeconômica, não havendo, portanto, política econômica de direita, de
centro ou de esquerda. A política econômica certa seria tecnicamente fundamentada
e neutra; a errada, por conseguinte, seria irresponsável, ingênua, utópica e
populista.

Continuando a análise sobre o governo Lula, Filgueiras e Gonçalves (2007, p.


21) afirmam que:

No governo Lula configura-se um processo de adaptação passiva e


regressiva do país ao sistema econômico internacional, em geral, e ao
sistema mundial de comércio, em particular. A maior competitividade
internacional está centrada nos produtos intensivos em recursos naturais e
se dá, no essencial, mantendo o mesmo padrão de especialização
existente.

No campo da política social, observa-se uma relação muito próxima com a


política herdada do governo anterior. O Bolsa Família, carro-chefe da política social
do governo Lula, é o que se pode chamar de política social focalizada feita a partir,
pura e simplesmente, da transferência direta de renda.

Segundo Filgueiras e Gonçalves (2007), a política social do governo Lula é de


natureza liberal, alinhada com o modelo econômico vigente. Como falado
20

anteriormente, o eixo da atual política social é o Bolsa Família, ou seja, política


assistencialista, com grande potencial clientelista.

O tipo de política social praticado combina perfeitamente a flexibilização e


precarização do trabalho com programas focalizados e flexíveis. Lula demonstrou
habilidade quando conseguiu utilizar as políticas assistencialistas a seu favor. Elas
serviram tanto como uma espécie de escudo para que as medidas neoliberais
passassem de forma quase despercebida pela grande maioria da população como
instrumento de cooptação da faixa à qual é destinado esse tipo de política.

Quando se observam as reformas introduzidas no mercado de trabalho,


percebem-se a manutenção das desregulamentações e a diminuição dos direitos
sociais; além disso, a fiscalização não funciona de maneira eficiente – e, por isso,
não há respeito à legislação trabalhista – e falta política salarial de reposição das
perdas, no sentido contrário está a Lei de Falência6, que foi aprovada beneficiando
o sistema bancário em detrimento dos trabalhadores (BOITO JR, 2006).

A herança da privatização deixada por Fernando Henrique Cardoso a Lula


não sofreu nenhum tipo de alteração. Boito Jr (2006, p. 57) fornece uma síntese
dessa questão:

O governo Lula herdou e manteve essa privatização, inclusive os contratos


leoninos que asseguram alta lucratividade aos novos monopólios privados,
e nem sequer cogitou investigar os casos de corrupção mais rumorosos que
envolveram a política de privatização. [...] Os projetos encaminhados pelo
governo Lula de Parceria Público-Privadas para serviços públicos e infra-
estrutura (sic) e o projeto-lei de privatização do Instituto de Resseguros do
Brasil (IRB) são as suas propostas de privatização.

Para completar, a ascensão ainda maior do grande capital financeiro confirma


o traço de continuidade do governo Lula em relação ao anterior. A combinação de
uma série de benesses oferecidas ou mantidas ao capital financeiro proporcionou
um ambiente extremamente favorável.

A justificativa do governo Lula para continuidade de elementos da política do


governo anterior era que não se podia romper com o modelo anterior sem antes
fazer a travessia segura para outro, senão, a credibilidade do governo seria afetada.
Os elementos da política econômica e social dos governos Fernando Henrique

6
A partir de um determinado valor, a prioridade é dada ao pagamento de dívidas bancárias, em vez
das dívidas trabalhistas.
21

Cardoso e Lula serão vistos com maiores detalhes adiante. No primeiro instante, foi
necessário verificar em que direção caminharam as políticas de ambos os governos.
22

3 A eleição de Fernando Henrique Cardoso

A eleição presidencial de 1994 colocou frente à frente o sociólogo e


“intelectual” Fernando Henrique Cardoso e o ex-metalúrgico do ABC paulista Luiz
Inácio Lula da Silva. O primeiro trazia na bagagem a experiência como Ministro da
Fazenda e a fama de mentor intelectual do Plano Real. O segundo, por sua vez,
apresentava-se como a esperança dos movimentos sociais organizados,
mencionados anteriormente.

No início da corrida presidencial, as pesquisas de opinião indicavam


vantagem do candidato Lula em relação a Fernando Henrique Cardoso. As notícias
de jornal da época davam conta da polarização entre as duas candidaturas e das
alterações que poderiam ocorrer nos números das pesquisas posteriores, caso o
resultado do Plano Real fosse positivo no combate à inflação.

Quadro 2: A mídia nas eleições de 1994


A mais recente pesquisa Datafolha sobre a sucessão presidencial, que a Folha publica
hoje, confirma a notável estabilidade nas intenções de voto dos principais candidatos. É
pouco provável que esse quadro se altere significativamente até o fim de julho ou começo
de agosto.

(...). Caindo a inflação, como aposta a grande maioria dos economistas, a candidatura
FHC tende a mexer-se do patamar em que estacionou nos últimos dois meses.

É provável, porém, que esse fato novo só se introduza no cenário eleitoral a partir de
agosto. A própria equipe econômica arquivou o discurso triunfalista – em que recaíra o
próprio FHC, enquanto ministro de que a inflação baixaria a zero assim que o real
chegasse.

Admite-se, no governo, que os índices do primeiro mês do real estarão contaminados


pelos resíduos da inflação em cruzeiro real. Logo, esperar algo muito perto de zero em
julho fica fora de cogitações.

Se se confirmar essa hipótese, haverá dois tipos de propaganda. FHC, responsável pelo
plano, ao comparar os índices atuais (em torno de 45%) com os de julho (que ficarão,
supõe-se, abaixo de 10%). Os oposicionistas dirão que o plano fracassou porque a
inflação não caiu tanto quanto inicialmente se assegurava.

Fonte: Adaptado do jornal Folha de São Paulo de 17 de julho de 1994.


23

Fernando Henrique Cardoso, usando o discurso vitorioso do Plano Real,


ultrapassou Lula nas pesquisas de intenção de voto e, consequentemente,
aproveitando-se disso, conseguiu traduzir os resultados em forma de votos. Iniciava-
se, a partir de então, uma era que se estendeu por dois mandatos. O conjunto de
transformações drásticas que o país conheceu no inicio da década ganharia tom
mais agudo na era FHC.

Nessa perspectiva, não é possível fazer uma análise da era FHC deixando de
lado seu maior cabo eleitoral: o Plano Real. Para tanto, é necessário deixar claro
que a introdução do novo plano não se deu de maneira imediata. Dividida em três
fases, a introdução se deu da seguinte forma:

 Primeira fase (ajuste fiscal) – ocorrida entre julho de 1993 e agosto de 1994 –
Significou, sobretudo, uma manobra com o objetivo de garantir as condições
necessárias para introdução da nova moeda. Destaca-se a aprovação do
Fundo Social de Emergência (FSE), que possibilitou cortes no orçamento do
governo para o ano de 1994, além de dar flexibilidade ao uso dos recursos e
controle no fluxo de caixa. Filgueiras (2006a, p. 102-03) chama atenção para
o seguinte fato:

No discurso do governo, este fundo, aprovado através de emenda à


Constituição, deveria ter por objetivo, tal como em outros países da América
Latina que passaram por experiências de estabilização, minorar os custos
sociais decorrentes da implementação do plano. [...] Mais tarde, no entanto,
com a destinação de suas verbas para outras finalidades, como, por
exemplo, as que foram enviadas ao Ministério do Exército, às Polícias
Rodoviária e Federal e ao DNOCS -, ficaria evidente que o Fundo se
caracterizou, de fato mais como um artifício para se aumentar a liberdade
de manipulação dos gastos públicos no interior do orçamento, do que como
um instrumento social propriamente dito, servindo, sobretudo, ao objetivo de
se buscar o equilíbrio fiscal primário e ao uso eleitoral.

Vale lembrar que houve um aumento nos impostos federais e a criação do


Imposto Sobre Movimentação Financeira (IPMF); além disso, o governo efetuou
corte de “[...] 40% nas despesas correntes – correspondentes a 20% do montante
total do orçamento – com a diminuição das transferências constitucionais da União
para os estados e municípios [...].” (FILGUEIRAS, 2006a, p. 102). Ademais, houve
renegociação das dívidas dos estados e municípios junto à União e não se permitiu
a emissão de títulos públicos para gerar novos endividamentos. No entanto, foi
permitido usar a emissão de títulos para financiar as dívidas existentes.
24

 Segunda fase (introdução da Unidade de Referência de Valor - URV) – 1° de


março de 1994 a 1° de julho de 1994 – Considerada um superindexador, pois
fazia uma espécie de mixagem entre três indexadores: IGP-M da Fundação
Getúlio Vargas, IPCA do IBGE e o INPC da FIPE-USP.

 Terceira Fase (a nova moeda) – A URV se transformou em Real, na


proporção de um por um (R$ 1,00 = 1 URV); da mesma forma ocorreu com a
taxa de câmbio Real/Dólar, ou seja, foi acertado que R$ 1,00 valeria US$
1,00. Na visão de Filgueiras (2006a, p. 107-08):

Nesta última fase do plano, evidenciou-se a natureza específica da


“dolarização” proposta para economia brasileira. Apesar de amarrar a nova
moeda ao dólar, o governo não garantiu, ao contrário do que na Argentina,a
conversibilidade entre as duas moedas.

No primeiro momento, para que fique claro, houve uma combinação entre
combate à inflação, crescimento e aumento do emprego. Mas, em contrapartida,
observou-se um processo de abertura da economia e uma política de juros altos,
implicando uma maior entrada de capitais especulativos (FILGUEIRAS, 2006a).

3.1 Os custos da implantação do plano

A partir da implantação do plano real, ficaram evidentes os desequilíbrios


estruturais e a instabilidade macroeconômica da economia. Criou-se um cenário em
que o país ficou mais suscetível a impactos externos, ou seja, a economia brasileira
ficou mais vulnerável (FILGUEIRAS, 2006; PAULANI, 2008).

Contribuíram para a conformação desse cenário: a taxa de câmbio


sobrevalorizada, a abertura da economia e um dos mais importantes elementos do
plano, a famigerada âncora cambial, que, para se sustentar, demandava elevados
níveis de reservas cambiais, os quais, por sua vez, eram atraídos à custa de taxas
de juros em níveis altíssimos (FILGUEIRAS, 2006a).
Um exemplo clássico, que ajuda a entender os esforços do governo em
bancar a sustentação desse instrumento, é o episódio em que se tentou, de todas as
25

formas, afastar os efeitos da crise vivida por Argentina e México sobre a economia
brasileira. Os modelos adotados pelos países periféricos, muito similares, diga-se de
passagem, tinham a sobrevalorização cambial como remédio contra a inflação e
visavam sustentar crescimento e abertura econômica ao mesmo tempo
(FILGUEIRAS, 2006a).
Ainda com base na análise de Filgueiras (2006a, p. 126), pode-se questionar
a viabilidade da estratégia adotada no Brasil:
No Brasil, com a fuga de capitais que ocorreu a partir daí, percebeu-se que
essa estratégia era insustentável a longo prazo, uma vez que o equilíbrio no
balanço de pagamentos ficava na dependência da entrada de capitais
especulativos, atraídos, necessariamente, por taxas de juros cada vez mais
elevadas, ou na dependência da existência de reservas cambiais estáveis,
uma vez que seu montante passou a depender exatamente desses capitais
voláteis, já que o crescimento dos saldos negativos na balança comercial
potencializava o déficit da conta de transações correntes.

Tratando do caso brasileiro, o remédio utilizado a fim de neutralizar os danos


provados pelos solavancos externos e pela debandada dos capitais especulativos
trazia em sua composição uma série de medidas, as quais vão desde a elevação da
taxa de depósitos compulsórios até o controle da importação de automóveis7. As
medidas fiscais ficaram por conta dos cortes no orçamento, da mudança nos
pagamentos dos servidores públicos, da redução nas despesas de custeio das
empresas públicas e bancos federais e da medida mais impactante: a inclusão da
Companhia do Vale do Rio do Doce no programa de privatização (FILGUEIRAS,
2006a).

De todo modo, as iniciativas colocadas em prática ensejavam garantir certo


grau de confiabilidade da economia brasileira perante os especuladores
internacionais. Dessa forma, o que se pôde observar, logo em seguida, foi o retorno
dos capitais especulativos. As reservas cresceram, sendo que, no ano de 1995,
fecharam no patamar de US$ 51 bilhões (FILGUEIRAS, 2006a).

O capital especulativo busca ambientes com altas taxas de juros e com outras
condições que possibilitem sua alta reprodução. No caso de cenários econômicos
com advento de crises, a fuga ocorre em massa. É o chamado “efeito manada”.

7
Fizeram também parte da lista as seguintes medidas: redução nos prazos dos consórcios e do
número de prestações de compras, aumento da alíquota do Imposto de Importação, incentivo à
exportação, retirada ou diminuição do IOF visando atrair a entrada de capitais especulativos.
26

Gráfico 1 - Investimento em carteira – Total (líquido) – anual e Reservas


internacionais – conceito liquidez: Saldo em US$ milhões

70.000,00

60.000,00 60.110

50.000,00 50.642,20 51.840 52.173


44.556
40.000,00 38.806 37.823
36.342 35.866
30.000,00 32.211 33.011

20.000,00 21.618,90
18.125,00
12.324,60 12.615,60
10.000,00 9.216,80
6.955,10
3.801,60 77
0,00 -5.118,60
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
-10.000,00
Investimento em carteira - Total (líquido) - anual
Reservas internacionais - Conceito liquidez - Total - anual

Fonte: Banco Central.

A crise dos países asiáticos (Coreia do Sul, Tailândia, Filipinas, Malásia, Hong
Kong) em 1997, a qual teve como estopim a desestruturação do sistema financeiro
daqueles países, provocou uma nova onda de instabilidade financeira internacional.
A fim de afastar os efeitos de uma fuga de capitais sobre a economia brasileira, o
governo agiu de maneira austera. A taxa de juros, mais uma vez, foi aumentada,
passando a 43% ao ano; para garantir a entrada de capitais estrangeiros, uma série
de medidas foi tomada, e um novo pacote econômico, conhecido como Pacote 51,
chegou a ser anunciado.

As medidas ficariam por conta, por um lado, da contenção de despesas, ou


seja, envolveria a demissão de funcionários não estáveis (33 mil) e corte no reajuste
salarial, redução de 15% dos gastos em atividades e corte de 6% em projetos de
investimento; por outro lado, o das receitas, ficariam por conta do aumento no
Imposto de Renda de Pessoas Física (10%) e da redução das deduções, da
elevação das alíquotas sobre automóveis e da elevação dos preços dos derivados
de petróleo e álcool (FILGUEIRAS, 2006a).
27

Ainda segundo Filgueiras (2006a), os objetivos traçados pelo pacote não


alcançaram o tão esperado sucesso, e diversas das medidas anunciadas não
saíram do papel.

Pouco tempo depois, houve a crise da Rússia (1998). Não muito diferente das
crises anteriores, verificou-se uma leva de medidas, a fim de conter os estragos que
poderiam ser provocados na economia brasileira. O teor das medidas não sofreu
muita alteração. Portanto, houve a elevação da taxa de juros e a concessão de
benefícios ao capital estrangeiro. Além disso, um novo pacote econômico, que trazia
em seu bojo a contenção das despesas e a elevação de impostos, foi anunciado e
entrou em vigor no ano de 1999.

Mesmo assim, ainda no ano corrente (1998), realizaram-se cortes dos gastos
federais e das estatais, redução dos desembolsos de empréstimos feitos pelos
bancos federais aos estados e municípios, adoção de meta para superávit do
governo federal e, por fim, criação de uma espécie de comissão para garantir o
alcance das metas (FILGUEIRAS, 2006a).

Sob os diversos aspectos, é possível afirmar que a economia brasileira


experimentou consequências não muito agradáveis. Há que se dizer que a dívida
pública interna aumentou consideravelmente e que as receitas advindas das
privatizações não foram suficientes para compensar esse aumento; por isso o custo
foi repassado à sociedade na forma de impostos (FILGUEIRAS, 2006a;
LESBAUPIN; MINEIRO, 2002).

No caso das Transações Correntes, os somatórios dos péssimos resultados


da balança comercial com os da balança de serviços contribuíram para manutenção
dos déficits, os quais, embora já existissem, foram dilatados no período que vai de
1995 a 1998. No entanto, é possível observar uma redução desses déficits no
período que vai de 1999 a 2002, ocasionada pela redução e, posteriormente, pela
inversão nos déficits na balança comercial e em menor escala pela sensível melhora
na balança de serviços. Filgueiras (2006a, p.247) confirma e complementa hipótese
aqui levantada:

O resultado da conta de Transações Correntes, como não poderia deixar


de acontecer, expressou a evolução da balança comercial, da balança de
serviços e das transferências unilaterais. Desse modo, os impactos das
crises cambiais se fizeram sentir no seu desempenho, influenciado,
28

principalmente, pela performance da balança comercial e, menor


intensidade, da balança de serviços.

O gráfico 2 ilustra o que foi dito anteriormente em relação à redução nos


déficits em transações correntes. Percebe-se a melhora na balança comercial a
partir de 2000 e a pequena melhora na balança de serviços no fim do período
(2002). Utilizando-se da análise acima, feita Filgueiras (2006a), pode-se afirmar que
os impactos das crises cambiais (especialmente a crise do Brasil) tiveram
importância relevante, uma vez que, as importações e a viagens internacionais se
tornaram mais caras, sobretudo, a partir de 1999. Além disso, o câmbio
desvalorizado torna as exportações brasileiras mais baratas, o que as torna mais
competitivas em termos de preços.

Gráfico 2 – Transações correntes, Balança de Serviços e Balança Comercial – 1993


a 2002: Saldo em US$ milhões.

20000

10000

0
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
-10000

-20000

-30000

-40000
transações correntes Balança de Serviços Balança comercial

Fonte: IPEADATA.
O Plano Real resistiu durante os primeiros quatro anos do governo FHC, mas
após as sucessivas crises não foi mais possível sustentar o regime de câmbio fixo.
Ainda assim, de acordo com Filgueiras (2006a, p.189, grifo do autor):

A necessidade de correção do caminho que conduziu o país em direção à


crise cambial, insistentemente reivindicada por economistas de distintas
tendências, principalmente após as crises de México, da Ásia e da Rússia,
foi rechaçada sistematicamente – a partir de uma crença que “apostava” na
iminência de um salto de competitividade da economia brasileira, que iria
pôr ordem na balança comercial do país.

Todavia, apesar de todo esforço empreendido no intuito de sustentar a âncora


cambial, a qual viabilizava o regime de câmbio fixo, a dinâmica dos acontecimentos
29

tratou liquidar todas as expectativas governo. Por isso, Filgueiras (2006a, p.189,
grifo do autor) explica que:

A crise derradeira [da Rússia], que inviabilizou de vez a âncora cambial e a


sobrevalorização do real, foi quase como a “crônica de uma morte
anunciada” que testava a capacidade do Governo Cardoso em sustentar a
nova posição. As reações se fizeram sentir nas quedas dos títulos
brasileiros e das bolsas de valores em todo mundo.

A crise brasileira empurrou o país a um novo acordo com o FMI e pelo menos
três empréstimos foram tomados nos anos de 1999, 2001 e 2002, os quais, de
acordo com Filgueiras (2006a), foram utilizados para conter a crise do balanço de
pagamentos.

A explicação do governo para o aumento das contas externas e públicas dava


a entender que se gastava mais do que se arrecadava. Sendo assim, tornava-se
necessário recorrer à poupança externa, que aumenta o déficit em transações
correntes, a fim de possibilitar o aumento do investimento interno8. Nessa
perspectiva, seria necessário aumentar a taxa de juros, no intuito de atrair
poupadores que financiassem o déficit público. Por fim, o excesso de demanda do
setor público teria de ser suprido através de importações que, mais uma vez, se
realizariam à custa de capitais externos. Recorrer à estratégia de aumentar a taxa
de juros deixa o país mais vulnerável a uma crise cambial, tendo em vista que a
dependência externa se torna maior9.

Dadas todas as explicações, a solução utilizada para neutralizar todos esses


efeitos seria um ajuste fiscal (corte nas despesas e aumento da receita) que, na
teoria, garantiria, entre outras coisas: estabilidade de preços, crescimento do PIB,
melhora do desequilíbrio externo e redução da taxa de juros.

Em pelo menos um ponto, o Plano Real cumpriu seu papel. É certo que o
objetivo de reduzir a inflação foi alcançado, mas a fatura a ser paga custou muito
caro ao país. Filgueiras (2006a, p. 161) faz as seguintes considerações:

Portanto, a contrapartida da estabilização dos preços foi a vulnerabilidade


externa, com o aumento da dívida líquida do país, que foi acrescida, no
período, em mais de US$ 72 bilhões – empréstimos e financiamentos
menos amortizações -; a perda de boa parte do patrimônio público

8
Recorrer à poupança externa era a solução apontada pelo governo, ou seja, não é a opinião do
autor.
9
Na maioria das vezes, a estratégia de aumentar a taxa de juros colabora para atrair capitais
especulativos de curto prazo.
30

construído em mais de 30 anos, com privatizações questionadas até do


ponto de vista de sua operacionalização e o aprofundamento da
desnacionalização da economia brasileira, agora adentrando outros setores,
como os de telecomunicações, de energia e financeiro.

As privatizações são um dos pontos-chave da gestão Fernando Henrique


Cardoso. De fato, elas se iniciaram na era Collor, mas é a partir de FHC que esse
processo se tornou célere.

3.2 A reforma de Estado e as famigeradas privatizações

Em seu primeiro governo, Fernando Henrique Cardoso conseguiu aprovar


algumas reformas econômicas, entre as quais estava a extinção do monopólio
estatal nas seguintes áreas: petróleo (prospecção, exploração e refino),
telecomunicação e energia.

Continuando com as reformas aprovadas, na pauta também estava a reforma


administrativa, com intuito de “separar” o que era ou não função do Estado. Dessa
forma, seria possível passar diversas atividades da área social para o setor privado,
ou seja, terceirizar. Nas palavras de Filgueiras (2006a, p. 111):

Isso está associado à questão da estabilidade do funcionalismo, identificado


como o empecilho fundamental para ajustar as contas públicas, em especial
dos estados e municípios. Assim, aprovou-se a possibilidade de demissão
por excesso de quadros – quando os salários pagos ultrapassem mais de
60% das receitas e por ineficiência.

Tudo parecia estar programado desde a época em que FHC era Ministro da
Fazenda, pois, na apresentação da “Exposição de Motivos”10 da reforma de Estado,
já se viam sinais de que os servidores públicos seriam um dos principais alvos. No
mesmo caminho, as privatizações eram encaradas como prioridades do processo
que estava em curso.

Dessa maneira, pela perspectiva dos defensores das privatizações, havia


funções das quais o Estado deveria se retirar, pois não fazia mais sentido que este
fizesse papel de empresário. Há anos o Estado brasileiro vinha tomando as rédeas
de alguns setores, devido à falta de iniciativa privada. Era necessário reverter essa

10
Exposição de Motivos nº 395 de 7/12/1993.
31

situação11. Aguiar12 (1999, p. 74) é um bom exemplo de como pensavam os


governistas:

O diagnóstico era simples. Houve, em nossa economia, momento em que


faltaram capitais internos e interesse externo nos grande projetos produtivos
e de fornecimento de infra-estrutura (sic). O Estado supriu bem essa
carência, mas a fase acabou. Hoje, é evidente a inadequação do Estado
diante dos novos desafios, e até mesmo das necessidades de manutenção
da pesada estrutura por ele montada.

Também vistas como refúgio de funcionários públicos privilegiados, as


estatais eram um “fardo” a ser carregado pelo governo. Portanto, era necessário que
o Estado se desfizesse desse “ônus”, a fim de se “modernizar” e, através dos
recursos captados, reduzir a dívida pública interna, o que, na realidade, não
aconteceu. A dívida pública interna aumentou de forma assustadora, e, mesmo
somando as transferências dos títulos podres da dívida e os recursos obtidos com
as privatizações, não foi possível fazer frente a tamanha escalada.

A baixa arrecadação com a venda das estatais tem uma explicação: a


subestimação do preço de venda. Além disso, o BNDES emprestava os recursos
necessários aos compradores com juros financiados. Todo o processo, sem dúvida,
representou prejuízo aos cofres públicos. Anunciava-se a quem quisesse ouvir que o
governo tinha dificuldades em manter funcionando tamanhas estruturas, mas não se
falou nada a respeito das melhorias feitas pelo governo, como no caso das
telecomunicações, antes de repassá-las à iniciativa privada.

As informações de Biondi (2003) dão conta de que os investimentos foram de


cerca de R$ 21 bilhões no período de dois anos e meio. Não fosse somente isso, há
de se dizer que as dívidas trabalhistas dos funcionários demitidos foram assumidas
pelo governo. É notável que os compradores obtiveram muitas vantagens, mas o
mesmo não se pode dizer em relação ao governo, que vendeu as estatais e
socializou as dívidas das estatais vendidas com o povo.

Outra justificativa altamente difundida falava da melhoria dos serviços


prestados e da redução das tarifas pelas empresas dos setores de energia e
telecomunicações, visto que as empresas seriam postas à concorrência de mercado
e produziriam a satisfação esperada. Cabe fazer questionamentos se os serviços
11
Nesse trecho, a intenção é reproduzir a opinião dos entusiastas das privatizações.
12
Não é de se estranhar a opinião de Ubiratan Aguiar, dada sua estreita relação com setores
conservadores da direita política do país.
32

melhoraram realmente, ou se tudo não passou de mais uma desculpa. Para isso, é
necessário observar alguns indícios que podem ser fornecidos por dados ou até
mesmo por consumidores desses serviços.

Se analisados os números do setor de telefonia, por exemplo, verifica-se que


os serviços se ampliaram realmente, mas, em contrapartida, como explica Oswald
(2010):

A ampliação dos serviços significou receitas cada vez maiores para as


operadoras e o aumento expressivo do recolhimento de impostos. O setor,
que pagou R$8 bilhões em tributos em 1998, recolheu R$42,8 bilhões no
ano passado (435%). Para o sindicato [Sindicato Nacional das Empresas de
Telefonia e Serviço Móvel e Celular Pessoal – SindiTelebrasil] , a carga
tributária onera o cidadão em mais de 43% sobre o preço dos serviços.

O serviço custa caro e está longe de ser um dos melhores. Ainda segundo
Oswald (2010):

As operadoras de serviços de telecomunicações investiram R$ 180 bilhões


nos últimos 12 anos na expansão, modernização e melhoria da qualidade
da prestação de serviços. Até o fim do primeiro trimestre de 2010, o setor
empregava 400,9 mil pessoas. Mas, apesar do aumento da oferta de
serviços, o consumidor brasileiro paga a fatura mais cara do mundo pelo
uso do celular, segundo o índice de Paridade de Poder de Compra (PPP).
Para o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), o Brasil tem o
sistema de banda larga caro, lento e mal distribuído por seu território. O
setor também é campeão de reclamação de consumidores, segundo o
Sindec, que reúne Procons de 23 estados mais o Distrito Federal, sobretudo
em relação a cobrança indevida.

Com o setor de energia elétrica não foi tão diferente. A melhora tão esperada
do serviço não aconteceu, e as queixas também são grandes. Em uma matéria do
jornal Folha de São Paulo do dia 02 de maio de 201313, é possível encontrar os
principais motivos que geram reclamação: os desligamentos (conhecidos como
apagões) e os erros de leitura.

A causa da crise energética de 2001 era atribuída à falta de chuvas, que


poderia implicar na baixa capacidade dos reservatórios, mas, na realidade, o
problema não era a falta de chuvas e sim a falta de investimentos em melhorias da
rede (TOMASQUIM, 2001, apud LESBAUPIN; MINEIRO, 2002).

Ainda fazendo considerações acerca do setor elétrico, têm-se informações de


que, a partir do ano do racionamento, é possível notar uma série de benefícios às

13
Isso mostra que a qualidade do serviço não melhorou, mesmo tendo passado tanto tempo do
processo de privatização do setor elétrico.
33

empresas do setor. Aprovou-se uma medida provisória que possibilitou aumentar o


preço das contas residenciais e industriais por um período de seis anos. Por causa
dessa medida, foram repassados ao setor recursos titânicos para compensar as
“supostas perdas”, alugar máquinas das termelétricas e pagar combustível destas e,
por fim, para pagar energia livre comprada no mercado no ano de 2002. As
informações citadas acima tomaram por base Lesbaupin e Mineiro (2002), que
utilizaram matérias dos jornais Folha de São Paulo e Jornal do Brasil.

3.3 Políticas sociais

Condizentes com o modelo macroeconômico de ajuste fiscal, as políticas


sociais pautavam-se, continuando até hoje, na focalização e não na universalização.
Não por acaso, as políticas sociais focalizadas têm estreita relação com as reformas
de cunho liberal e visam tão somente minorar os efeitos das políticas propostas pelo
Banco Mundial. O modelo de política social focalizado trabalha com um conceito
defasado de pobreza14 e “[...] reduz o número real de pobres, suas necessidades e o
montante de recursos públicos a serem disponibilizados – adequando-os ao
permanente ajuste fiscal [...]” (FILGUEIRAS; DRUCK, 2006, p. 4).

É por esse motivo que as políticas sociais ficam passivas a cortes que
reduzem cada vez mais os investimentos. Lesbaupin e Mineiro (2002, p. 40)
apresentam os seguintes dados:

Entre 1995 e 2001, o investimento em saúde cai de 4,8% para 3,9%, a


educação desce de 3% para 2%, a parte relativa à habitação permanece
durante todo o mandato abaixo de 0,2%, e o setor de assistência e
previdência oscila de 17,15% para 14,1% até chegar em 2001 com 18,7% -
sendo que a maior parte desse orçamento é a parte da previdência (a parte
da assistência social caiu fortemente).

Sofrendo dos males do corte orçamentário, a alternativa proposta à saúde foi


a criação da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF), a fim
de obter recursos para aplicação exclusiva. Após idas e vindas, a criação da referida
contribuição foi aprovada, mas os recursos a serem obtidos não ficaram restritos à
aplicação em saúde; pelo contrário, destinaram-se ao pagamento de dívidas do
governo.

14
Aqui o conceito defasado de pobreza refere-se ao conceito do Banco Mundial.
34

Da mesma forma que se pregava a melhor eficiência dos serviços quando em


tutela do setor privado, a ideia passada pelo Banco Mundial priorizava novamente a
focalização. Dever-se-ia cobrar os serviços dos que podem pagar e estimular a
oferta privada de alguns serviços (COSTA, 1996; CARVALHO, 2002, apud
LESBAUPIN; MINEIRO, 2002).

Passando ao caso da educação, o projeto proposto pelo Banco Mundial,


como todos, era privatizar. A educação deveria ser pública somente no Ensino
Fundamental; no Médio, mista; e, no Superior, totalmente privada. Para enfatizar,
“[...] o argumento usado é que, se a universidade fosse paga, haveria mais espaço
para os estudantes pobres, que receberiam bolsas” (LESBAUPIN; MINEIRO, 2002,
p. 46).

A qualquer custo, precisava-se encontrar “provas” de que a universidade


pública era dispendiosa. Para isso, muitas medidas foram utilizadas, a fim de
promover a aceitação por parte das pessoas que compunham a academia. Como
explicam Lesbaupin e Mineiro (2002), as principais foram: congelamento de salários,
redução de verbas, corte paulatino das bolsas de estudo (mestrado e doutorado) e
ameaça à aposentadoria de professores e servidores. Agindo em outra frente, as
estruturas das instituições foram deixadas à própria sorte. Em alguns casos, faltava
água, luz e serviço de segurança. Por fim, uma das propostas mais chocantes
idealizava desvincular o ensino da pesquisa. Por causa dessa perspectiva, criar-se-
iam centros de excelência em pesquisa.

Uma contestação feita por Lesbaupin e Mineiro (2002) refere-se à desculpa


da “falta” de recursos para as universidades, pois se tem notícia de que o BNDES
financiou atividades de universidades privadas. Diante disso, torna-se falha a
alegação de falta de recursos, uma vez que o setor privado foi beneficiado mais uma
vez, em detrimento do público.

Um dos eixos mais importantes das políticas sociais, a reforma agrária, foi
tratado como um simples processo de assentamento das famílias camponesas em
lotes de terra. Para o desenvolvimento das atividades por parte dos trabalhadores
camponeses, é necessário oferecer uma série de serviços essenciais/básicos, como
água, saúde, educação e crédito, além de infraestrutura adequada. Na realidade, os
35

serviços e a infraestrutura foram oferecidos de maneira inadequada. De todo modo,


uma ressalva feita por Lesbaupin e Mineiro (2002, p. 52) indica uma pequena vitória:

Apesar destas não pequenas dificuldades, muitos assentamentos


conseguiram se organizar, estruturar cooperativas, diversificar as atividades
e ter como resultado uma alta produtividade. Nestes casos, o assentamento
é inclusive um dinamizador da economia da região.

A questão da violência no campo é outra observação a se fazer. Notou-se


uma série de conflitos violentos no campo, resultando em massacres de
trabalhadores, quase sem nenhuma punição aos responsáveis. Muito disso deve ser
creditado ao fato de o governo rotular os movimentos sociais camponeses como
criminosos. A comissão da Pastoral da Terra (CPT) é a responsável por divulgar
uma série de números que dão a exata noção do tamanho do problema. Por
exemplo, somente no ano de 2002, foram registrados 36 assassinatos e 245
ameaças de morte (CPT, 2002).

O direito à propriedade da terra para fins sociais é uma questão importante e


não deve ser tratada pela lógica de mercado, assim como foi feito no governo FHC
(LESBAUPIN; MINEIRO 2002). Faz-se necessária uma reforma agrária que, de fato,
privilegie os camponeses e rompa como a estrutura do agronegócio.

A indústria do agronegócio resume-se a um empreendimento que visa


somente o lucro, não importando a forma como a produção seja alcançada. O uso
predatório da terra, de agrotóxicos, de maneira indiscriminada, e a especialização
em apenas um tipo de cultura são suas principais características (PESSOA;
RIGOTTO, 2012). Além disso, o latifúndio, marca registrada do agronegócio, limita o
acesso à terra àqueles que realmente necessitam. Por conta dos grandes
latifúndios, a função social da terra não é respeitada, ou seja, seu uso pelo indivíduo
como moradia e para a produção de alimentos que garantam sua própria
subsistência e a de seus familiares (MARÉS, 2010).

Os discursos e as propostas de campanha tentaram passar a ideia que um


novo país seria construído. Segundo o próprio Cardoso (2008 p 4, grifo do autor):

A estabilização da economia permite agora repensar o projeto de


desenvolvimento do país. O equilíbrio macroeconômico não é um fim em si
mesmo, mas é um passo indispensável para recolocar a sociedade na rota
do progresso econômico e social. É preciso aproveitar o avanço na
estabilização para encaminhar soluções permanentes para os problemas
estruturais do país. A proposta do Governo Fernando Henrique submete à
36

discussão um projeto de transformação da sociedade brasileira. Estão


definidas diretrizes claras e viáveis que respondem às necessidades
fundamentais do povo brasileiro. Por trás da desorganização do Estado e
das dificuldades da economia que a inflação expressava, está o
esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento baseado na
industrialização protegida. É preciso definir e implementar um novo modelo
de desenvolvimento que combata a miséria, melhore a distribuição de
renda, assegure a inserção inteligente da economia brasileira no mundo e
reorganize o Estado.

No entanto, de acordo com Lesbaupin e Mineiro (2002, p.7):

Durante os últimos oito anos, este país não teve governo positivo, se
considerarmos que um governo deve se caracterizar por ter uma uma (sic)
política de saúde, de educação, de habitação, de transporte, uma política
industrial e tantas outras necessárias ao desenvolvimento da nação. Ele
teve apenas uma política, a política econômica de ajuste. E essa se
caracterizou por oferecer o Brasil como um espaço de valorização ao capital
financeiro nacional e internacional, multiplicando os lucros dos bancos e dos
aplicadores financeiros, com taxas de juros elevadas e sobreendividamento
(sic). Foram feitos acertos com os organismos financeiros internacionais
para garantir os ganhos dos investidores, comprometendo enorme
quantidade de recursos preciosos do orçamento do país transferidos como
ganhos financeiros aos credores das dívidas interna e externa

O primeiro trecho citado faz parte do livro Mãos à obra, Brasil: proposta de
governo, e, como o próprio título sugere, é apresentada a proposta do então
candidato Fernando Henrique Cardoso. O segundo trecho citado foi utilizado para
contrapor o primeiro.

No discurso apresentado antes das eleições, como já mencionado, dava-se a


entender que o país passaria por uma série de transformações tanto sociais como
econômicas, e que, a partir delas, alcançaria o progresso. O discurso não
representou a realidade, pois se observou um governo determinado a cumprir sem
questionamentos as imposições dos organismos financeiros internacionais e das
elites conservadoras do país.

3.4 O mercado de trabalho

O desempenho esdrúxulo do crescimento do PIB, característico de toda a era


FHC, enfatiza mais uma vez a face das políticas econômicas ortodoxas, como
chama atenção Filgueiras (2006a).

De acordo Pochmann e Borges (2002, p. 31):


37

[...] A dificuldade crescente com as exportações ante o avanço da


importação gerou um quadro complexo de déficit comercial [já discutido ], o
que complicou ainda mais a sustentação do crescimento econômico diante
das altas taxas de juros. A reversão da situação exigia não apenas a
mudança do regime cambial, mas a queda nas taxas de juros, com a
adoção de uma política de estímulo à produção e ao emprego nacional.
Nada disso, todavia, ocorreu.

O regime cambial brasileiro permaneceu inalterado até o ano de 1999, mas,


devido às diversas circunstâncias relacionadas às sucessivas crises internacionais,
não foi mais possível sustentar o regime de câmbio fixo. Isso ficou evidente após a
crise russa, pois a estratégia de manter a taxa de juros em níveis elevados, a qual
dava sustentação à âncora cambial, não era mais eficaz no controle dos ataques ao
Real (FILGUEIRAS, 2006a).

Devido à abertura econômica e à âncora cambial a piora nas diversas


variáveis macroeconômicas ficou visível, inclusive no crescimento do produto a taxas
pequenas (gráfico3) - o qual por sua vez, implicou no aumento das taxas de
desemprego, ocasionado pelo fechamento dos postos de trabalho - e no
crescimento insuficiente da ocupação no comércio e nos serviços. O aumento da
população economicamente ativa, que se faz pela entrada de milhões de pessoas
no mercado de trabalho, todos os anos, ensejava um crescimento do PIB a taxas
maiores do que as observadas (FILGUEIRAS, 2006a).

Gráfico 3 – Variação do PIB (%) – 1994 a 2002

6
5,33
5
4,42 4,31
4
3,38
3
2,66
2 2,15

1,31
1
0,04 0,25
0
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

Fonte: IPEADATA.

Em relação às leis trabalhistas brasileiras, Pochmann e Borges (2002)


enfatizam que o processo de desregulamentação do mercado de trabalho ocorreu
38

sob a égide de que elas estavam atrasadas e do elevado custo do trabalho, o que,
na verdade, não parece ser verdade, pois, através dessa manobra, foi possível não
só modificar a CLT, mas também estabelecer novas modalidades de contrato de
trabalho sem a parte do salário, como, por exemplo, o Sistema Simples e o contrato
por tempo determinado.

Outro ponto deve ser comentado: a questão dos rendimentos. Devido a uma
série de questões relacionadas – como, por exemplo, a ausência de crescimento
econômico sustentado somado à expansão do desemprego –, a maior escolarização
e a qualificação da oferta da mão de obra desencadearam maior concorrência no
interior das classes trabalhadoras, levando a piora da parcela salarial na renda
nacional. Nesse contexto, o efeito das políticas de desregulação do mercado de
trabalho, somado ao chamado processo de terceirização das definições salariais e
ao enfraquecimento do poder dos sindicatos, contribuiu para a queda nos
rendimentos do trabalho. (POCHMANN; BORGES, 2002).

No bojo de todas as transformações impostas à regulação do mercado de


trabalho, não poderia ser deixada de lado a reforma da Previdência. A Proposta de
Emenda Constitucional 3315, que tratava da reforma, previa uma série de mudanças
na maneira como as aposentadorias se dariam. As principais mudanças inseridas
foram: aumento da idade mínima para aposentadoria (60 anos para homens e 55
para mulheres); a substituição da aposentadoria por tempo de serviço pela
aposentadoria por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para
mulheres); e a instituição de limite de idade para a aposentadoria integral dos
servidores públicos (53 anos para homens e 48 para mulheres). No primeiro
momento, a reforma da Previdência Social prejudicou mais os trabalhadores do
setor privado.

Para toda e qualquer reforma danosa à sociedade, sempre havia algum


argumento. No caso da Previdência não foi diferente. E qual foi o argumento
utilizado?

A Previdência Social foi apontada como a causadora do déficit público,


portanto, era uma questão de ajustamento das contas do governo. Mas isso é

15
A reforma foi concluída com a promulgação da Emenda Constitucional nº20 de 15 de dezembro de 1998.
39

apenas um argumento do governo. Não se pode aceitar tudo o que é posto sem
antes fazer uma investigação. O estudo intitulado A reforma da previdência: a
verdade nua e crua, do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal
(UNAFISCO SINDICAL), desmente todos os argumentos do governo.

O estudo comprova que o governo comete um grave erro quando computa,


pelo lado das receitas, somente o que é obtido com contribuição previdenciária,
enquanto que, do lado das despesas, são somados os encargos previdenciários aos
de natureza assistencial. As receitas destinadas à seguridade social, diferentes das
de Previdência Social, são obtidas através de várias fontes, sendo o consumidor a
principal delas. Por isso, não se pode justificar a reforma da previdência criando
falsos argumentos. O principal objetivo da reforma da previdência é a criação de um
mercado privado, visando tão somente beneficiar o capital interessado nesse filão.
40

4 Uma “esperança” chamada Lula

Após oito anos da era FHC, os grupos de esquerda ensejavam uma virada
nas políticas que dilapidaram econômica e socialmente o país. Todas as
esperanças, “até certo ponto”, voltaram-se a favor da figura do candidato Luís Inácio
Lula da Silva. A história política de Lula o credenciava como representante das
classes mais organizadas da sociedade: líder sindical na década de 1980 esteve
sempre presente nas lutas por melhores condições de trabalho do operariado do
ABC paulista e redemocratização do país.

Para tornar viável sua candidatura (e, posteriormente, a vitória), Lula se


submeteu a acordos políticos que nada tinham a ver com seu passado. O mais
famoso deles foi a “Carta ao povo brasileiro”, documento endereçado aos credores
internacionais e não ao povo, como seu título queria passar. Fato não menos grave
foi a aliança com o Partido Liberal, que trazia para a chapa que compunha a
candidatura, como vice-presidente, um dos maiores empresários brasileiros,
representando, dessa forma, um acordo com os setores mais conservadores da
sociedade. A ideia de vencer as eleições parece ter virado obsessão e oportunidade,
já que o principal adversário, o PSDB de Fernando Henrique, caminhava para o final
de sua era com a imagem muito desgastada.

Por essas atitudes, sepultava-se de vez toda e qualquer esperança de um


movimento que simbolizasse a ruptura. O que se viu foi um processo de aceitação e
continuidade do modelo econômico do governo anterior.

Celebradas as alianças e os acordos, que respaldavam a candidatura perante


os poderosos setores da economia, era preciso conquistar o apoio popular,
principalmente da faixa que ainda tinha rejeição ao candidato Lula. Para tanto, foram
utilizados recursos astronômicos, em uma grande e bem sucedida campanha
publicitária.

Enfim, a vitória veio após três tentativas frustrantes, mas consolidou a virada
à direita de um partido que nasceu em meio às lutas populares. De acordo com
Boito Jr (2005, p.11-12):
41

Ao contrário do que têm afirmado ou sugerido os intelectuais progressistas


e revolucionários que têm criticado, de modo pioneiro e corajoso, o governo
Lula, a mudança de orientação do Partido dos Trabalhadores, de seus
aliados e integrantes da equipe governamental não é recente e nem pode
ser pensada como uma simples mudança de orientação desses políticos
profissionais. Essa mudança de orientação faz parte de um processo mais o
longo e mais profundo.

Dessa maneira, o processo de mudança do PT não pode ser visto


como algo novo, pois já vinha ocorrendo paulatinamente ao longo dos anos, nos
quais o partido foi emplacando vitórias nas eleições municipais e estaduais e seus
políticos foram se transformando em políticos profissionais. Filgueiras e Gonçalves
(2007, p. 186) explicam dessa forma a transformação que o partido sofreu ao longo
dos anos:

Concomitantemente, a institucionalização do PT prosseguiu, com vitórias


eleitorais em municípios e estados importantes, configurando-se uma
escalada progressiva que o transformaria em mais um partido da ordem.
Para isso, o PT teve que passar por transformações internas fundamentais,
com enorme centralização das decisões e o enquadramento das suas
tendências mais a esquerda pela tendência majoritária (Articulação). Este
processo político interno reduziu o espaço de debates, formulações e
questionamentos, cuja expressão maior foi a destruição dos núcleos de
base que formavam o partido.

Portanto, Lula era visto apenas como uma mera esperança, dadas as
transformações petistas ao longo do tempo.

4.1 A política macroeconômica do novo governo

A política macroeconômica do governo Lula foi a mesma do segundo governo


FHC e sustentava-se num tripé básico que envolve: metas de inflação, ajuste fiscal e
regime de câmbio flutuante(FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007).

A melhora observada na balança comercial, pelo menos no primeiro governo,


possibilitou, sobretudo, uma melhora no saldo de transações correntes.
Aproveitando-se desse contexto, o cenário macroeconômico brasileiro ficou menos
instável, e os elementos que tornaram possível a melhora da balança comercial
foram: “[...] a desvalorização cambial de 2002, o crescimento das economias
americana e chinesa, recuperação da Argentina e disparada dos preços das
commodities” (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007, p. 102).
42

Gráfico 4: Transações Correntes (FOB) – 2002 a 2010: Saldo em US$ milhões

20.000,00 13.984,66
13.642,60
10.000,00
4.177,29 11.679,24
0,00 1.550,73
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
-10.000,00 -7.636,63
-20.000,00
-24.302,26
-30.000,00
-28.192,02
-40.000,00
-50.000,00
-47.273,10
-60.000,00

Fonte: IPEADATA.

No entanto, a conjuntura externa, a partir de 2007 (último ano com saldo


positivo em transações correntes), não foi tão favorável, e, dado o grau de
vulnerabilidade da economia brasileira, houve uma nova inversão no saldo de
transações correntes. A inversão observada nos primeiros quatro anos do governo
deveu-se ao superávit na balança comercial superior ao déficit da balança de
serviços e rendas. Já no segundo governo, o aumento do déficit da balança de
serviços e rendas superior ao aumento do saldo da balança comercial contribuiu
para os déficits em transações correntes.

Os resultados negativos na balança de serviços e rendas podem estar


relacionados, a crise de 2008, ao envio de remessas de lucros ao exterior, feitas
pelas empresas privatizadas às suas controladoras, das filiais às matrizes (leia-se
empresas brasileiras incorporadas por empresas estrangeiras ou mesmo as filiais de
empresas multinacionais), bem como ao pagamento de juros aos credores da dívida
brasileira.

As políticas anticíclicas do governo Lula, a partir do ano de 2007, como por


exemplo, a redução de IPI em benefício, principalmente da indústria automobilística,
possibilitou que esta remetesse lucros ao exterior, o que ajuda a compreender, de
certa forma, o aumento nas remessas. Há de se considerar também que as
empresas nacionais incorporadas também tiveram papel relevante nesse quadro,
pois, a cada ano, o número de empresas que são desnacionalizadas cresce.
43

Dessa forma, era de se esperar que, em um momento de crise internacional


(crise estadunidense), as filiais brasileiras de multinacionais, as empresas
incorporadas (desnacionalizadas) e as estatais privatizadas enviassem maiores
remessas de lucros, para salvar suas controladoras no exterior.

A tabela 1 traz os saldos dos lucros e dos juros, os quais compõem a


subconta rendas de capital da balança de serviços. Ao longo de todo período
analisado (1994-2010), as despesas (remessas) sempre foram maiores que as
receitas (recebimentos), fato que explica os saldos sempre negativos dos lucros e
dos juros.

Tabela 1: Lucros e dividendos e Juros – 1994 a 2010: Saldo em US$ milhões

Ano Lucros e dividendos Juros


1994 -2.951,2250 -6.337,400
1995 -2.830,4510 -7.946,369
1996 -5.443,1280 -8.778,345
1997 -6.855,4240 -9.482,998
1998 -4.114,5580 -11.436,652
1999 -3.316,1990 -14.875,862
2000 -4.960,9810 -14.648,802
2001 -5.161,8290 -14.877,317
2002 -5.640,4470 -13.130,483
2003 -7.337,5280 -13.020,246
2004 -12.685,8380 -13.363,609
2005 -16.368,6155 -13.495,589
2006 -2.951,2250 -11.288,629
2007 -22.434,9471 -7.304,583
2008 -33.874,9040 -7.231,881
2009 -25.217,8431 -9.069,473
2010 -30.374,8385 -9.610,058

Fonte: IPEADATA.
Filgueiras e Gonçalves (2007) explicam que, no caso do Brasil, que tem
histórico de desempenhos negativos na conta de serviços e rendas, é preciso ter
44

sempre desempenhos positivos na balança comercial, a fim de equilibrar o saldo em


conta corrente.
Como já foi exposto, no primeiro governo, as condições econômicas
internacionais estavam favoráveis, mas o mesmo não se pode dizer do segundo. A
crise estadunidense talvez tenha sido um dos fatores que ajudaram a alterar a
dinâmica econômica mundial. Sendo o Brasil um país da periferia da economia
mundial e dependente de ciclos de comércio internacional, não ficou imune aos
efeitos da crise econômica internacional.

Devido, sobretudo, à elevação da demanda internacional por commodities,


tendência observada a partir do ano de 2003, as exportações brasileiras elevaram-
se. O comentário feito por Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 75) faz ressalvas quanto
ao crescimento das exportações nesse período :

O grande crescimento das exportações, associado ao baixo dinamismo


do mercado interno, principalmente do investimento, implicou maior
participação dos seus valores no PIB(grau de abertura da externa). Todavia,
[...], há um deslocamento entre crescimento das exportações e o do PIB,
especialmente nos anos mais recentes, quando ocorreu uma grande salto
nas exportações e uma inversão no saldos da balança comercial. Essa
limitação associa-se também – [...] – à qualidade da pauta de exportação,
que possui, relativamente, baixa capaciadade de articulação produtiva com
outras atividades.

Para ilustrar seus argumentos, os autores utilizaram um gráfico que traçava


um pararelo entre as variáveis: PIB – variação real anual, Exportações – bens e
serviços – variação real anual e Exportações – bens e serviços % do PIB. No
entanto, o período analisado foi de 1995 a 2006, ou seja, não contempla totalmente
o governo Lula. Diante disso, seria interessante aproveitar o gancho da análise e
expandir os dados até o fim do segundo governo Lula, a fim de observar se a
tendência continuou a mesma após 2006.

A tendência observada no gráfico abaixo aponta um declínio, nas três


variáveis, a partir de 2008. Os efeitos da crise estadunidense, já mencionada,
tiveram influência, principalmente, na variação da exportações e,
consequentemente, nos resultados do PIB. Todavia, no ano de 2010, a variação nas
exportações e a variação real do PIB voltaram a crescer.
45

Gráfico 5: Variação das exportações e PIB (%) – 1995 a 2010.

20
15
10
5
0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
-5
-10
-15
Exportações - bens e seviços % do PIB
Exportações - bens e serviços - var real anual
PIB - var real anual

Fonte: IPEADATA.

Quando se analisa o caráter das exportações, percebe-se um processo de


reprimarização, ou seja, houve um aumento nas exportações de produtos primários,
enquanto as exportações de produtos semimanufaturados e manufaturados
decresceram. Além disso, a maior parcela dos produtos industrializados exportados
caracteriza-se pela baixa intensidade tecnológica. A análise de Filgueiras e
Gonçalves (2007, p. 81) confirma a hipótese levantada:

No conjunto, evidencia-se que o padrão das exportações brasileiras


caracteriza-se pela presença dominante de produtos intensivos em recursos
naturais e pelo baixo conteúdo tecnológico dos produtos industrializados.
Esse padrão não sofreu alterações significativas no governo Lula. Na
realidade, a evidência aponta para o avanço da reprimarização das
exportações, com peso crescente das receitas de exportação. No governo
Lula verifica-se, ainda um processo de menor dinamismo tecnológico das
exportações, tendo em vista a elevação da participação dos produtos não
industrializados e a redução dos produtos de alta intensidade tecnológica.

Ademais, outra hipótese que se pode levantar é que está ocorrendo a


desindustrialização16 da economia brasileira. No entanto, há uma divisão entre os
teóricos que defendem essa hipótese e os que defendem a ideia de que a demanda
interna é suficiente para sustentar a produção industrial.

16
É definida como a perda de participação da indústria na produção total de um determinado país.
46

Segundo Filgueiras e Gonçalves (2007) a economia brasileira apresentava,


pelo menos até 2007, os seguintes problemas: ausência de progresso técnico na
estrutura produtiva, inserção retrógrada no sistema mundial de comércio e
crescimento do PIB dependente da demanda internacional que, por sua vez, deixa o
país estruturalmente vulnerável perante as oscilações conjunturais em escala
mundial.

4.2 Dívida Pública

É inegável que os fatores econômicos internacionais colaboraram de maneira


significativa para a redução da dívida pública em proporção do PIB. Pelos menos
quatro fatores, segundo Filgueiras e Gonçalves (2007), foram importantes para a
redução observada, pelo menos, a partir do ano de 2004 até 2006. São eles:

 O Tripé que envolve redução da taxa de juros, crescimento da economia e a


continuação da apreciação cambial;
 Redução da dívida externa em valores absolutos e em proporção do PIB;
 Os saldos favoráveis da balança comercial, que, como não poderiam deixar
de ser, possibilitaram o aumento das reservas cambiais em dólares e
permitiram que o governo pagasse parte do principal da dívida;e
 O último aspecto revela que a obtenção de superávits primários em níveis
maiores que os do período anterior (FHC) não foi suficiente para reduzir a
dívida pública total, apesar da redução em proporção do PIB.

Entende-se que a redução da dívida em termos relativos se deu,


principalmente, por conta da redução da dívida externa líquida do setor público. E
isso só foi possível devido aos superávits na balança comercial e,
consequentemente, ao aumento nas reservas cambiais. Dessa forma, fica
perceptível que alterações nos ciclos econômicos internacionais são perigosas para
a economia, pois podem afetar o balanço de pagamentos e, por conseguinte,
contribuir para o aumento da dívida pública tanto em termos relativos quanto
absolutos.
47

Cabe salientar que há uma estreita relação observada entre a política


econômica do governo Lula com seu sucessor. De acordo com Filgueiras e
Gonçalves (2007, p. 107):

O governo Lula não moveu um milímetro para alterar a essência do modelo


de desenvolvimento, caracterizado, sobretudo, pela dominação lógica
financeira e pela vulnerabilidade externa estrutural. O custo da política
econômica, condicionada (e articulada) fortemente pela (e com a) abertura
comercial-financeira, resulta em um dos mais pífios desempenhos em
termos de taxa de crescimento do PIB entre os países em desenvolvimento,
além da manutenção de taxas de desemprego ainda muito elevadas e do
crescimento da dívida pública interna.

Ao que se sabe, em troca da redução da dívida externa, o país aumentou sua


dívida interna. A dívida interna apresenta prazos menores de pagamento e juros
maiores. Como se pode perceber no gráfico 5, embora a dívida externa tenha se
reduzido, a dívida interna seguiu trajetória ascendente.

Gráfico 6: Dívida interna (líquida) x Dívida externa (líquida) – 2003 a 2010: Saldo em
R$ bilhões
2.000,00
1.835,50
1.655,20
1.500,00 1.500,70
1.410,10
1.147,90
1.000,00 972,10
829,30
742,40
500,00

189,70 153,20 67,90


0,00 -27,80
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
-198,30 -292,50
-332,50 -359,70
-500,00
divida interna divida externa

Fonte: IPEADATA.

4.3 Políticas sociais

As políticas sociais do governo Lula, da mesma maneira como aconteceu no


governo anterior, priorizaram a focalização, em detrimento da universalização. Por
48

isso, as ações em algumas áreas têm relação direta com o modelo herdado de FHC.
De acordo com Druck e Filgueiras (2006, p. 10):

A lógica e o discurso são de que o Estado deve dirigir suas ações para os
mais pobres e miseráveis – conforme o estabelecimento de uma linha de
pobreza minimalista, empurrando os demais para contratação de serviços
de mercado (saúde, educação e previdência principalmente). Na verdade, a
classe média (inclusive parte da chamada classe média baixa), há tempos
supre no mercado suas necessidades (em particular com escolas e planos
de saúde privados), não fazendo o uso dos serviços ofertados de forma
precária pelo estado.

A educação superior pública gratuita, por exemplo, é um eixo que suscita as


mesmas discussões, ou seja, de que os ricos estudam na universidade pública e os
pobres estudam nas universidades privadas, e que o melhor seria a cobrança de
mensalidade, a fim de destinar os recursos para o primeiro e o segundo graus. No
entanto, há um equívoco ao se afirmar que os ricos se concentram nas
universidades públicas, quando, na realidade, são os integrantes da classe média,
considerados como ricos, que se encontram, em grande maioria, tanto nas
instituições públicas como nas privadas. Nesse caso, há uma superestimação de
indivíduos e famílias pobres, quando se quer desqualificar a universidade pública;
mas, quando se trata da transferência de renda, há uma subestimação
(FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007).

O crescimento do número de instituições privadas durante o governo FHC


criou o problema da ociosidade de vagas, o qual encontrou solução no Programa
Universidade para Todos (PROUNI), do governo Lula. Funciona da seguinte
maneira: as instituições privadas com número de vagas superior à demanda
recebem desoneração fiscal e oferecem bolsas de estudo aos estudantes de menor
renda, que não têm condições de arcar com o valor das mensalidades. Trata-se,
mais uma vez, de favorecimento ao setor privado.

O “irmão” do PROUNI, o Programa de Reestruturação e Expansão das


Universidades (REUNI), lançado em 2007, faz menção à expansão da universidade
pública, como o próprio nome diz. Mas o que parece é que a expansão só se deu
no número de vagas, pois os investimentos não cresceram na mesma proporção. Os
estudantes que entraram a partir dessa expansão convivem ou conviveram com
problemas estruturais, como o número insuficiente e a improvisação de salas de
49

aula, a falta de laboratórios e de restaurantes universitários, além do mais


importante: a carência de professores.

O quadro a seguir traz o exemplo da experiência do campus de Palotina da


Universidade Federal do Paraná (UFPR):

Quadro 3: A experiência do REUNI


[...] Segundo informações apresentadas pelos docentes, atualmente faltam 13 salas de aula
para o campus suportar 2.120 estudantes até o ano de 2015. No entanto, atualmente
mesmo com o número a 1.500 alunos, sente-se a ausência de salas para dar suporte aos
cursos e aos alunos já presentes, bem como é insuficiente a existência de algumas salas de
aula, desde já utilizadas, por seu tamanho não suportar o número de alunos em algumas
disciplinas. Na tentativa de adaptar-se a estas situações, para a primeira encontra-se como
solução a união de turmas de diferentes cursos, em disciplinas básicas compartilhadas,
enquanto para a outra situação faz-se a divisão das disciplinas em pelo menos duas turmas.
Situações estas que resultam, entre outras questões, no excesso de trabalho do docente e
na dificuldade de acesso deste por parte dos estudantes.

Nota-se também a falta de estrutura e a necessidade de improvisação no campus ao voltar-


se para um prédio adquirido no decorrer da implantação do REUNI, espaço chamado de
Seminário, cuja ocupação fora necessária porque havia atraso nas obras de todo campus. A
ocupação que a princípio foi indicada como temporária permanece até hoje e passou a ser
também local de instalação de laboratórios e do restaurante universitário.

A falta dos mais diversos laboratórios imprescindíveis às atividades práticas e a carência de


ambientes ideais para o desenvolvimento das atividades acadêmicas já existentes nos
campus, fazem com que o cotidiano da pesquisa, ensino e extensão seja constantemente
interrompido. Nestas situações criam-se e se mantêm laboratórios dentro de espaços que
foram banheiros do campus [...].

Fonte: Adaptado da revista Universidade e Sociedade do Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior (ANDES – SN) nº 51, março de 2013.

A reforma agrária, por sua vez, devido ao recente desempenho da economia


brasileira como uma das maiores exportadoras do mundo, ficou esquecida mais uma
vez. Todo o apoio ao modelo agroexportador (créditos, perdão fiscal, infraestrutura)
dado pelo governo Lula restringe toda e qualquer ação mais efetiva no tratamento do
problema. Nas palavras de Gilmar Mauro, dirigente do MST, não existe Plano
Nacional de Reforma Agrária; o que existe, de fato, é uma política de
assentamentos, e a estrutura fundiária permanece a mesma. Ele ainda salienta que,
apesar das conquistas alcançadas, não é possível caracterizá-las como reforma
agrária. (MAURO, 2010).

Fernando Henrique Cardoso usou a seu favor o Plano Real e, com Lula, não
poderia ser diferente; mas, nesse caso, é o Bolsa Família que passa a ser o maior
50

aliado do Lulismo. Esse programa nada mais é do que a unificação dos programas
sociais focalizados da era FHC. Fica claro o caráter paliativo e político desse tipo de
programa, como explicam Druck e Filgueiras (2006, p. 13):

O Bolsa família se constitui, de fato, numa política assistencialista e


clientelista e, portanto manipulatória do ponto de vista político, em particular
em se tratando do seu público alvo: uma massa de miseráveis
desorganizada e sem experiência associativa de luta por seus direitos.

Outro ponto que merece ser destacado diz respeito à diferenciação entre
política de Estado17 e política de governo. A primeira está protegida juridicamente
contra cortes orçamentários, enquanto a segunda tem caráter transitório e está
sujeita às decisões de governo. Utilizando mais uma vez análise de Druck e
Filgueiras (2006, p. 13):

A renda transferida às famílias não se constitui num direito social, podendo


ser reduzida e/ou retirada a qualquer momento, ao sabor dos interesses de
cada governo – bem ao gosto da política fiscal liberal-ortodoxa, que não
concorda com nenhuma vinculação orçamentária entre receita e despesa;
com exceção, obviamente, do pagamento dos juros da dívida pública (a lei
de “Responsabilidade Fiscal” tem exatamente esse objetivo).

A lei de Responsabilidade Fiscal foi criada para conter os ânimos do FMI,


dada a crise da desvalorização do Real, em 1999. Através dessa lei, ficam
garantidos os interesses dos credores do Estado, e as políticas com fins sociais
ficam em segundo plano. Portanto, a lei de Responsabilidade Fiscal é um
instrumento perverso, que impõe aos governantes tanto no âmbito estadual como no
municipal um arrocho nos gastos sociais, mas “[...] não impõe nenhum controle ou
sanção aos que decidem a política de juros e elevam a dívida pública do país em
favor dos credores nacionais e internacionais” (PAULANI 2003, p. 58).

As análises feitas pelos estudiosos aqui citados forneceram elementos


importantes, os quais ajudam a entender em que molde se realizaram as políticas
sociais do governo Lula. O termo “focalização” é a palavra que melhor define o
caráter das políticas que são crivadas pelo ajuste fiscal permanente e pelos
desmandos do Banco Mundial. Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 174) defendem que
o governo, ao optar por esse caminho, deixa de lado as questões relativas aos
problemas estruturais da pobreza, bem como a relação entre as classes sociais.

17
Estão entres as políticas sociais de Estado o Regime Geral de Previdência (RGPS), o Sistema
Único de Saúde (SUS), o Ensino Fundamental e os Benefícios de Prestação Continuada (BPC) da
Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Para maiores detalhes sobre análise acerca das políticas
sociais do governo Lula, ver Filgueiras e Gonçalves (2007).
51

4.4 Cooptação dos movimentos sociais

A era neoliberal representou um processo de fragilização e desarticulação das


classes trabalhadoras. Fatores como a precarização do trabalho, o desemprego e as
novas formas de contratação do tipo terceirização e falsas cooperativas são vistos
como motrizes desse fenômeno.

Há ainda outros fatores que dizem respeito à queda nos rendimentos do


trabalho; os trabalhadores que auferiam maiores rendas foram alvo do programa de
reestruturação produtiva, assim como os servidores públicos, que sofreram com os
processos de reforma administrativa.

De forma semelhante, os sindicatos acusaram o golpe quando Collor venceu


as eleições e inaugurou a era neoliberal no Brasil. O que se assiste, a partir de
então, é o enfraquecimento do movimento sindical, que tinha a CUT como principal
insígnia, e a adoção de uma postura de adaptação à nova ordem (FILGUEIRAS;
GONÇALVES, 2007).

A chegada de Lula e do PT à presidência da República usou como nunca o


processo de cooptação sindical, que, na realidade, serviu como uma espécie de
“domesticação” dos movimentos sociais. No que se refere a essa lógica, as
considerações feitas por Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 188, grifo dos autores)
explicam a forma como o governo colocou a cooptação em prática:

A crise de representação é fortemente alimentada pelo governo Lula, ao


realizar a amálgama entre governo, partido e sindicato, na mais pura
tradição stalinista (“fora do lugar”) de aparelhamento do Estado e
transformação das organizações de massa em “correias de transmissão” do
governo. O comportamento subserviente da CUT ao governo e a indicação
do presidente da entidade para ocupar o cargo de ministro do Trabalho são
exemplos paradigmáticos desse fenômeno.

Nesse sentido, as relações sindicais passam a ser burocratizadas e têm o


intuito de facilitar esse movimento de cooptação. A estratégia de Lula foi muito
ambiciosa, se examinada com parcimônia, pois se entende que ela se baseia no
enfraquecimento do movimento dentro do próprio movimento. As relações
reproduzidas dentro do movimento indicam a própria direção que o sindicalismo
brasileiro toma, ou seja, “[...] reproduzem-se e renovam-se os traços fundamentais
52

característicos da relação dos setores dominantes com o Estado: o patrimonialismo,


o clientelismo e o empreguismo” (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007, p. 189).

Dada a desorganização política dos trabalhadores comuns, esperava-se que


o movimento sindical, especialmente a CUT, fizesse um trabalho de resistência ao
modelo neoliberal duramente criticado no passado. Portanto, não houve resistência
alguma, pois Lula soube usar a seu favor a máquina pública e silenciou a maior
frente sindicalista do país. Todos os eixos da política do governo analisados até
agora apontam para uma mesma direção: a continuidade do modelo neoliberal de
FHC.
53

5 Conclusão

O advento da era neoliberal no Brasil, nos anos de 1990, inaugurou o


processo de desmonte do Estado e da economia. A eleição da figura caricata de
Collor, expressa em sua postura dúbia – que dizia defender o interesse dos
descamisados e pés descalços, ao mesmo tempo em que se aliou aos diversos
segmentos conservadores da economia –, marcou o inicio da era de desertificação
neoliberal18 no Brasil.

(In)felizmente, o impeachment se pôs no meio do caminho e, por isso Collor,


não teve oportunidade de continuar com suas reformas liberalizantes, as quais
escancaram a economia e começam o desmonte do parque produtivo nacional.

O interregno de Itamar Franco serviu para que outra figura começasse a


entrar em cena: Fernando Henrique Cardoso. Este como Ministro da Fazenda
convocou uma equipe de economistas, dentre os quais estavam André Lara
Resende e Gustavo Franco, para trabalhar na elaboração de um novo plano de
estabilização econômica: o Real. O ajuste fiscal, a dolarização da economia e a
valorização cambial era o tripé básico de sustentação ao Real. Introduzido o plano
(Real) e vistos os resultados “positivos”, pelo menos no que concernia à inflação, a
candidatura de Fernando Henrique Cardoso ganhou a liderança nas pesquisas.
Apurados os resultados das urnas da eleição presidencial de 1994, Fernando
Henrique foi eleito presidente da República.

A partir desse momento, o que se teve foi um processo ainda mais profundo
de desmonte e entrega do patrimônio brasileiro a preços extremamente vantajosos
para os compradores, os quais contaram com uma série de facilidades, que vão
desde o preço subestimado das empresas até a concessão de linhas de créditos do
BNDES com juros subsidiados. Se, para os compradores, foi vantajoso, para a
população, não foi. A redução da dívida pública e a melhoria dos serviços prestados,
justificativas utilizadas, não ocorreram como se prometeu. O país se endividou ainda

18
A expressão “desertificação neoliberal” é utilizada por Ricardo Antunes para descrever o avanço
das ideias neoliberais no Brasil, as quais trouxeram consigo um conjunto de transformações
econômicas e sociais trágicas; portanto, essa expressão é uma analogia ao total desmonte do Estado
Brasileiro ocorrido a partir da década de 1990.
54

mais, e as empresas privatizadas viraram campeãs de reclamações, por conta de


serviços mal prestados. Além disso, as imposições dos organismos financeiros
mundiais foram aceitas de maneira tácita. Ao fim da era FHC, quando o modelo
adotado parecia estar desgastado, um novo fôlego lhe foi dado por Lula.

A história política de Lula, ligada aos movimentos populares e de resistência à


ditadura militar, poderia, mas não foi bem assim, sobrepujar a lógica neoliberal e
inaugurar um novo modelo de governo, de caráter democrático e popular, no Brasil.
A subserviência afogou de vez o espírito daquele antigo líder sindical. O candidato
Lula realizou diversas alianças e acordos, intensa propaganda publicitária – focada
na conquista do eleitor comum (desorganizado e desarticulado) –, silenciou parte
dos partidários que se posicionavam de maneira contrária aos rumos que o partido
tomava e assim realizou o “sonho” de se tornar presidente.

Tratando de “melhorar” o modelo neoliberal herdado, sobretudo do segundo


governo FHC, Lula introduziu características populistas, visando controlar
politicamente as classes mais frágeis. Ademais, a organização das forças que
compõem o bloco do poder sofreu poucas modificações, destacando-se o capital
financeiro, os grupos econômico-financeiros nacionais, o capital produtivo
multinacional e em uma posição mais subalterna os grupos não financeirizados.

Visto que o modelo adotado por Lula foi o mesmo do segundo mandato de
FHC, não se pôde vislumbrar nenhuma mudança do ponto de vista estrutural da
economia brasileira. É verdade que houve avanços de caráter conjuntural, devido à
melhora nas contas externas do país, sobretudo a redução da dívida externa, mas é
verdade também que, em troca disso, a dívida interna cresceu.

Encerrada a era Lula, o balanço que se pode fazer é que não houve, em
nenhum momento, sinalização de ruptura com o modelo econômico vigente, mas
apenas novas adequações, a fim de dar novo fôlego ao modelo que parecia
cambalear.
55

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