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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Instituto de Educação
Departamento de Psicologia
Psicofarmacologia

Reflexões e discussões acerca do documentário ‘Estamira’ e o Capítulo I do livro “O


Erro de Descartes”

Claudio Yuri Rodrigues


Ingrid Ribeiro P Grigorovski
Leandro Rocha
Louize Braga
Mariana H. Vasconcellos
Tábata Tenório
Tatiana Lyra

Seropédica, dezembro de 2022


O documentário narra a história de Estamira Gomes de Sousa, uma mulher em intenso
sofrimento psíquico que vivia e trabalhava, há anos, no aterro sanitário de Jardim Gramacho,
no Rio de Janeiro.

Na psicose, quadro no qual se encaixava Estamira, os delírios funcionavam como uma


ferramenta para lidar com as experiências traumáticas inassimiláveis que havia vivenciado,
em suma, situações de muita dor. Isso se mostra, por exemplo, no momento em que o diretor
do documentário em questão, se aproxima da personagem e a mesma relata viver em um
"castelo enfeitado com lixo". Na trama, podemos perceber algumas mudanças que Estamira
apresenta em relação aos seus comportamentos e discursos, as quais possivelmente podem ser
justificadas pelos efeitos colaterais das medicações usadas para o seu quadro psicótico de
evolução crônica, diagnóstico este realizado na rede pública.

Observando o documentário sob uma ótica psicofarmacológica, podemos dar ênfase aos
minutos em que Estamira discursa especificamente sobre o uso dos medicamentos. Em um
primeiro momento ela se indigna com os médicos que, segundo ela, são “copiadores” que
estariam dopando todos que passam por ali, o que nos mostra sua insatisfação ao receber
sempre os mesmos medicamentos que, em muitos momentos, a fazem sentir efeitos colaterais
muito negativos. Algumas outras frases proferidas por Estamira também demonstram
profunda insatisfação, como por exemplo: “Se sou louca, com Diazepam sou ainda mais
louca!” e “esses remédios estão nos cegando, são dopantes das quadrilhas de dopantes.”
Em um segundo momento, Estamira afirma que quando os medicamentos a fazem se sentir
mal, ela volta no profissional para reclamar. Ela reitera que os remédios também a fazem
sentir a cabeça “ferver como um Sonrisal”. Isso nos mostra que, apesar de estar em intenso
sofrimento e de ter como diagnóstico psicose persistente, Estamira tem muita consciência dos
seus direitos e capacidade de perceber em si quando acredita que algo a faz mal. Além disso,
ela também se mostra insatisfeita com a demora com que ela deveria retornar ao sistema de
saúde. Em certa circunstância ela mesma se descreve como “louca, doida, maluca, mas
consciente e lúcida.”.

De acordo com o estilo de Estamira, com seu nível de consciência e engajamento sobre
assuntos relacionados aos medicamentos que toma, nos parece que a participação da mesma
em grupos GAM (Gestão Autônoma de Remédios), que tem como objetivo potencializar o
entendimento e autonomia do sujeito no que se refere a utilização de medicamentos, poderia
ter sido muito interessante, visto que ela teria a oportunidade de contribuir bastante com
outros usuários, ao mesmo tempo em que poderia aprender com as discussões em grupo e
com o manual, que também deve ser lido em conjunto.

Ao longo do que é mostrado, têm-se muitas informações sobre as violências, abusos e traumas
vivenciados por ela, o que imediatamente se relaciona com o desenvolvimento de distúrbios
mentais. O filme escolhe não tratá-la como alguém que precisa de ajuda. Pelo contrário, ela
deixa claro o tempo todo que não precisa e que, justamente, está lá para revelar que são os
outros que precisam. Quanto mais você sabe sobre Estamira, mais tudo começa a fazer
sentido. A maneira como ela vive, suas aparentes ideias desconexas e seu discurso retórico
contra o homem, deus e tudo. Isso faz você questionar o quão lúcida ela é ou mesmo se ela é
realmente "louca".

O documentário poderia facilmente ter caído no estereótipo que poderia assumir um caráter
“freak-show”, mas a protagonista vai além dele com completa coerência. A quantidade de
temas que ela aborda nessas frases cortadas, do consumo consciente ao comunismo e a
explicação de como se forma o chorume é coisa de quem não se reduz numa imagem de
catadora lunática, mas de alguém que já viu muita coisa e de fato tem contribuições
interessantes a fazer. No ponto nodal entre a extrema vulnerabilidade social e a psicose,
encontra-se Estamira.

É uma história cativante que junto de sua protagonista, visa restaurar a sua própria história
antecedente - movimento este de grande dificuldade para os psicóticos, uma vez que o humor
delirante é, por definição, fragmentário - na medida que aponta as nuances de seus delírios e
alucinações enquanto tentativas de cura subjetiva. Conjuntamente à invisibilidade social e às
condições materiais precárias de existência, Estamira encontrou o mesmo terreno inóspito em
sua vida psíquica. Diante da condição de delírio primário que causou uma mudança drástica
em sua autobiografia, Estamira tenta se reconstituir por meio de narrativas místicas. Assim,
vemos concretamente a função dos delírios psicóticos enquanto função de organização
subjetiva de teor absoluto.
Temos, por fim, um indivíduo que, em decorrência de sua angústia de castração, não têm uma
Lei simbólica que a contemple. Essa realidade mental pode ser, ainda, transposta para a vida
social da protagonista que é, a todo instante, marginalizada e invisibilizada pelo Estado. Por
fim, tem-se retratado no documentário uma dupla problemática: a denúncia das condições
precárias e subumanas vivenciadas pela protagonista e seus dilemas situados na intersecção
entre aquelas condições e seu delicado quadro de saúde mental.

Estamira e a crítica de Damásio sobre o erro de Descartes

Antes de relacionar alguns aspectos sobre as emoções de Estamira com o as reflexões que
António Damásio vai tecer em torno do dualismo e mecanicismo cartesiano é de suma
importância contextualizar e favorecer ao leitor uma compreensão mais ampla sobre algumas
questões que atravessam o pensamento filosófico de René Descartes, um dos mais
importantes filósofos da modernidade.

Segundo António Damásio, dentre tantos argumentos apresentados em seu “O erro de


Descartes”, o maior dos erros de Descartes, foi ter proposto a separação entre a mente e o
corpo. Vejamos: Descartes foi o primeiro filósofo a propor um método de investigação seguro
e confiável, entretanto, essa proposta muda para sempre o pensamento científico a partir da
modernidade, provocando uma fissura epistemológica no interior da problemática sobre as
produções sobre a verdade. Enquanto filósofo, sua teoria do conhecimento esteve preocupada
em responder a seguinte questão: qual é o estatuto filosófico que assegura a constituição da
verdade mediante a constatação de que o ser humano é composto por uma realidade material
(res extensa) e uma realidade imaterial (res cogitans)?

A partir do seu desejo de compreender o funcionamento da mente e do corpo humano –


enquanto coisas (res) distintas –, Descartes vai postular sua concepção dualista sobre o ser
humano, fundamentando seus argumentos com base nos princípios do mecanicismo. Ele vai
comparar, portanto, o ser humano com um relógio e dizer que, assim como o relógio pode
funcionar mecanicamente, o corpo humano que é considerado uma máquina, também
funciona em conformidade com as leis da física e da mecânica. Contudo, segundo Damásio, o
grande erro cartesiano – como apontado anteriormente – consiste na afirmação de que mente
(pensamento) e corpo são realidades separadas. Sua intenção é refutar, sob a luz da
neurobiologia, a ideia filosófica que proclama a separação entre o corpo e o pensamento, e
que defende uma razão pura, estritamente lógica, como único fundamento confiável para as
decisões humanas, desprezando, portanto, a importância das emoções nos processos de
tomada de decisão.

Para analisar essa proposição, Damásio vai argumentar em favor do que ele veio a chamar em
sua teoria de hipótese dos marcadores somáticos segundo a qual afirma que diante de uma
tomada de decisão, nosso organismo reduz drasticamente as opções de escolha, de maneira
inconsciente, em função dos aspectos somáticos, corporais, advindos de nossas experiências
anteriores. Defende, portanto, que a razão ou processo decisório é muito influenciado pelos
marcadores somáticos, que surgem de processos biorregulatórios, sendo que essa influência
ocorre a partir de níveis de operação conscientes e cognitivos ou implícitos e não conscientes.
A cognição depende do auxílio de processos como a atenção, memória de trabalho e emoção,
e tanto o raciocínio quanto às tomadas de decisão dependem do conhecimento sobre
situações, atores e resultados.

Em última análise, o que Damásio está sugerindo é que as emoções são indispensáveis para a
vida racional. Mais do que isso, a natureza e a extensão do repertório de respostas emocionais
não dependem exclusivamente do cérebro. Há estudos recentes que demonstram que as
respostas emocionais são fruto da interação com o corpo. É preciso, contudo, que haja a fusão
de um estudo neurobiológico com a investigação psicológica numa abordagem integrativa das
emoções e da razão.

Torna-se, portanto, crucial o estudo das emoções e dos fatores que a ela se relacionam. Do
ponto de vista das práticas psicológicas, é importante para a psicologia e ao psicólogo estudar
as emoções, uma vez que as emoções humanas são importantes para a compreensão do que
somos, pensamos e agimos.

Feito os devidos apontamentos e explicitando alguns pontos importantes das emoções, o caso
de Estamira, como descrito no documentário e amplamente citado na cadência argumentativa
do presente trabalho demonstra claramente o fato de que não se chega de forma alguma na
compreensão da vida somente a partir da lógica racional, uma vez que o ser humano não é
uma máquina pensante, mas um ser que também sente. Nesse contexto, cumpre salientar que a
formação de significados na vida está relacionada com as nossas emoções diretamente uma
vez que, é por meio das nossas emoções que obtemos informações qualitativamente
necessárias para que possamos seguir realizando escolhas, e modificando-as quando for
necessária. As emoções informam para os seres humanos o que realmente importam em suas
vidas, aquilo que gostaríamos de continuar seguindo ou indicando quais os novos rumos para
se seguir.

Muitas vezes, essas mudanças não ocorrem, pois, as crenças que possuímos podem se
apresentar como um impedimento para a efetivação dessas mudanças. Os estudos no campo
das emoções apontam sobre a dificuldade que há em mudar o conjunto de crenças que estão
arraigadas, pois a base das crenças está na experiência afetiva. Os estímulos emocionais
afetam, cognitivamente, o indivíduo. Por exemplo: a ansiedade pode deixar o indivíduo em
maior estado de alerta; já a depressão faz com que diminua tal estado. Deste modo, é difícil
modificar uma crença porque as experiências afetivas são a estrutura a partir da qual se ergue
a cognição, ou seja, as emoções fornecem a base corpórea para os sistemas de significados.

Por isso é tão importante as reflexões de Damásio quando interrelacionadas aos aspectos que
vão surgir na história de vida de Estamira. Mais do que conhecer suas emoções, torna-se
fundamental para Estamira e todo e qualquer indivíduo saber lidar com a sua regulação
afetiva, entendida como o equilíbrio ou esforço que o sujeito faz para estabilizar o seu
organismo, sobretudo, o sistema nervoso. Destaca-se aqui, sua função no que diz respeito à
interação social, porque influencia diretamente o comportamento e a expressão emocional,
funcionando como um mecanismo com a capacidade de regular nossas emoções e mantê-las
em nível “controlável” para lidar com elas.

Referências:

Damásio, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano / António R.


Damásio ; tradução Dora Vicente, Georgina Segurado. — 3a ed. — São Paulo : Companhia
das Letras, 2012.

Estamira. Direção: Marcos Prado. Produção: Marcos Prado e José Padilha. Rio de Janeiro:
RioFilme,. 2005. 7 rolos, 35 mm (115 min).

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