Você está na página 1de 2

Anotações sobre o filme da Estamira e o entrelaçamento entre a psicopatologia, a

atenção psicossocial e a psicanálise.

O caso Estamira traz importantes reflexões acerca do campo da psicose, das políticas
públicas de saúde mental e o discurso analítico naquilo que tange ao seu trabalho com
o que resta.
Estamira apresenta uma história de vida muito difícil, marcada por violências de
inúmeras ordens, pobreza, desassistências. De acordo com seus filhos, sua
desorganização irrompe a partir de um abuso sexual e, assim, a sua descrença em
Deus, que se torna assunto que a desalinha, ao mesmo tempo que a alinha em uma
organização de pensamento própria que lhe confere um chão. Chão este que será
edificado e estruturado no lixão de gramacho.
No campo da psicopatologia temos acesso a algo dos traços da esquizofrenia de
Estamira a partir das estereotipias com as mãos, do neologismo, dos delírios e
pensamentos desordenados. Tais traços produzem no outro a necessidade de acionar
a rede de saúde mental, como é trazido na fala do filho de Estamira no documentário.
Quando trazemos a questão para o território da atenção psicossocial no que tange as
consequências de tentar tratar a Estamira, temos acesso a fala dela que interroga o
circuito psiquiátrico de prescrição das medicações quando ela os nomeia de
copiadores. Além disso, Estamira fala dos efeitos da medicação psiquiátrica em seu
corpo, afirma ficar impossibilitada de falar, como se o cérebro virasse um copo de
sonrisal. No caso da Estamira percebemos que a função do delírio entra como um
organizador da esquizofrenia, levando em conta que ela tem uma produção grande e
interessante e a medicação inviabiliza essa produção. Quando fala sobre o tratamento,
a filha menciona que a partir do momento que Estamira começa a trabalhar no lixão
de gramacho ela consegue se organizar mais, trazendo o questionamento acerca das
intervenções no campo da saúde mental sustentadas a partir de um ideário sobre o
bem do paciente.
Aí entra a possibilidade da psicanálise, tanto em dimensão clínica quanto discursiva, se
fazer importante porque não caminha na direção do que entende que é o bem do
paciente, mas ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e
particularidades individuais, sustentando espaços em que a palavra pode circular e o
sujeito emergir. O discurso psiquiátrico segue pela via da descrição dos sintomas em
manuais e a sua seguinte supressão pela administração de drogas. Não há
efetivamente a pessoa, mas o corpo a ser curado. Não quer saber do furo e do resto.
Estamira trabalha no Lixão de Gramacho e faz uma importante diferenciação sobre o
que é lixo e o que é resto. Lixo como aquilo que não serve mais para nada e o resto o
que ainda pode ser extraído algo. O “Resto” é um conceito formulado por Lacan para
definir o campo irredutível ao simbólico. Se há algo a que a condição humana está
fadada é que, daquilo que é possível pela via do imaginário representar e simbolizar,
haverá sempre um ponto mínimo e mítico para o qual nos é imposto o
reconhecimento de um buraco impreenchível. Esse Resto a simbolizar, ao contrário de
ser pouco, como faz parecer a significação mais literal do termo, é mesmo o ponto do
qual advém toda a potência de onde o neurótico forja o mundo que o habita. É o
motor do dizível, já que suprimido configuraria a morte do desejo.

Você também pode gostar