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Processos generativos no diálogo:


complexidade, emergência e auto-
organização
Dora Fried Schnitman

Aprendizado colaborativo: ensino de


professores por meio de relacionamentos e
conversas
Harlene Anderson, Sylvia London

“Se não perguntar, ele não vai falar”:


reflexões sobre conversas colaborativas em
um atendimento de família com crianças
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
de Lima, Adriana Bellodi Costa César

A construção de um programa de assistência


familiar em um hospital-dia psiquiátrico: 43
desafios e potencialidades
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus Vinicius Santos,
Fabiana S. Brunini, Sérgio Ishara, Sandra M.C. AGOSTO DE 2012. ANO XXI

Tofoli, Eliana M. Real

Três saberes a serviço das famílias: uma


discussão sobre a supervisão das equipes dos
Centros de Referência de Assistência Social
Cristiana P.G. Pereira, Rodrigo P.S. Coelho,
Regina Maria Hirata

O mapa de rede social significativa como


instrumento de investigação no contexto da
pesquisa qualitativa
Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré, Maria
Aparecida Crepaldi

Aprendizagem organizacional e poder:


hierarquia, heterarquia, holarquias e redes
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
Maria Verónica Lopez Romorini, María del
Rosario de la Riestra

Capa_NPS43.indd 1 8/20/12 4:15 PM


AGOSTO 2012 ANO XXI NÚMERO 43
g g
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Adriano Beiras (Instituto Noos)

EDITORES ASSOCIADOS
Helena Maffei Cruz (Instituto Familiae)
Marilene Grandesso (Interfaci/NUFAC-PUC-SP)

EDITORAS ANTERIORES
Gladis Brun (1991/1996)
Rosana Rapizo (1997/2005)

SUPERVISÃO EDITORIAL
Instituto Noos

PRODUTOR EXECUTIVO
Carlos Eduardo Zuma

PRODUÇÃO EDITORIAL
Anna Carla Ferreira

REVISÃO
Luara França

PROJETO GRÁFICO E CAPA


Amanda Simões

DIAGRAMAÇÃO
Ilustrarte Design e Produção Editorial

CONSELHO EDITORIAL
Azair Vicente/Instituto Familiae/Ribeirão Preto As opiniões emitidas nos artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores.
Carla Guanaes Lorenzi/USP/SP
Eloisa Vidal Rosas/RJ NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA é uma publicação quadrimestral do Instituto Noos, do
Emerson F. Rasera/UFU/MG Instituto Familiae e do Interfaci com distribuição dirigida. Registro: INPI 816634556
Harlene Anderson/Taos Institute/EUA
Jorge Bergallo/Instituto Noos/RJ Acesse o nosso site: www.revistanps.com.br
Marcelo Pakman/EUA
Rosa Maria S. Macedo/PUC/SP A revista Nova Perspectiva Sistêmica está indexada pelo Latindex e tem conceito B3
Sallyann Roth/Family Institute of Cambridge/EUA na Qualis.
Saul Fuks/Fundación Moïru/Argentina

PARECERISTAS AD HOC Leonora Corsini/UFRJ/RJ Rafael Diehl/UFRGS/RS


Adriana Bellodi Costa César/Familiae/SP Liana Fortunato Costa/UnB Mariana Gon- Regina Jardim/PUC-Rio/RJ
Aimorá Losso Laus Veras çalves Boeckel/Faccat/RS Renata Orlandi/UFFS
Azair Vicente/Familiae/SP Marianne Ramos Feijó/PUC-SP/Cogeae/ Rita Flores Müller/Margens/UFSC
Carla Guanaes Lorenzi/USP/SP FAMERP/FTSA Roberta de Alencar Rodrigues
Cecília Cruz Villares/UNIFESP/SP Maristela Moraes/Instituto Papai Rosa Maria S. Macedo/PUC-SP/S
Celia Passos/ISA-ADRS/RJ Miriam Schenker/Uerj/RJ Roseli Righetti/Instituto Familiae/SP
Cibele Motta/UFSC Mônica Corrêa Meyer/ATF/RJ Solange Diuana/ATF/RJ
Emerson F. Rasera/UFU/MG Neyde Bittencourt de Araújo/Familiae/SP

Instituto Noos Instituto Familiae Interfaci


Rua Álvares Borgerth, 27 • Botafogo Rua Agisse, 56 • Parque das Bandeiras Avenida Rouxinol, 55 • conjunto 1111
Rio de Janeiro • RJ • Tel.: (21) 2197-1500 São Paulo • SP • Tel./Fax: (11) 3037-7652 Moema • São Paulo • SP
www.noos.org.br • editora@noos.org.br www.familiae.com.br • familiae@familiae.com.br www.interfaci.com.br
SUMÁRIO

5 EDITORIAL
Adriano Beiras

9 PROCESSOS GENERATIVOS NO DIÁLOGO: COMPLEXIDADE, EMERGÊNCIA


E AUTO-ORGANIZAÇÃO
GENERATIVE PROCESS TO DIALOGUE: COMPLEXITY, EMERGENCE AND SELF-ORGANIZATION
Dora Fried Schnitman

22 APRENDIZADO COLABORATIVO: ENSINO DE PROFESSORES POR MEIO DE


RELACIONAMENTOS E CONVERSAS
COLLABORATIVE LEARNING: TEACHERS LEARNING THROUGH RELATIONSHIPS AND
CONVERSATIONS
Harlene Anderson, Sylvia London

38 “SE NÃO PERGUNTAR, ELE NÃO VAI FALAR”: REFLEXÕES SOBRE


CONVERSAS COLABORATIVAS EM UM ATENDIMENTO DE FAMÍLIA
COM CRIANÇAS
“IF YOU DON’T ASK, HE WON’T TALK”: REFLECTIONS ABOUT COLLABORATIVE CONVERSATIONS IN
FAMILY THERAPY WITH CHILDREN
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida de Lima, Adriana Bellodi
Costa César

54 A CONSTRUÇÃO DE UM PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA FAMILIAR EM UM


HOSPITAL-DIA PSIQUIÁTRICO: DESAFIOS E POTENCIALIDADES
THE CONSTRUCTION OF A FAMILY ASSISTANCE PROGRAM IN A DAY CARE PSYCHIATRIC
HOSPITAL: CHALLENGES AND POTENTIALITIES
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini, Sérgio
Ishara, Sandra M.C. Tofoli, Eliana M. Real

73 TRÊS SABERES A SERVIÇO DAS FAMÍLIAS: UMA DISCUSSÃO SOBRE


A SUPERVISÃO DAS EQUIPES DOS CENTROS DE REFERÊNCIA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL
THREE KNOWLEDGES AT FAMILIES SERVICE: A DISCOURSE ON
SUPERVISION OF TEAM OF SOCIAL ASSISTANCE REFERENCE CENTRE
Cristiana P. G. Pereira, Rodrigo P. S. Coelho, Regina Maria Hirata

84 O MAPA DE REDE SOCIAL SIGNIFICATIVA COMO INSTRUMENTO DE


INVESTIGAÇÃO NO CONTEXTO DA PESQUISA QUALITATIVA
THE MAP OF SOCIAL NETWORK AS A RESEARCH TOOL IN THE CONTEXT OF QUALITATIVE
RESEARCH
Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré, Maria Aparecida Crepaldi

99 APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL E PODER: HIERARQUIA,


HETERARQUIA, HOLARQUIAS E REDES
ORGANIZATIONAL LEARNING AND POWER: HIERARCHY, HETERARCHY, HOLARCHY AND NETWORKS
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa, Maria Verónica Lopez
Romorini, María del Rosario de la Riestra

113 Ecos • VIOLÊNCIA E INVISIBILIDADE: DIÁLOGOS COM O ARTIGO


“INTERVENÇÃO COM HOMENS QUE PRATICAM VIOLÊNCIA CONTRA SEUS
CÔNJUGES”
Luciana Moretti Fernández
118 Família e Comunidade em Foco • CONVERSANDO SOBRE PRÁTICAS EM
SAÚDE MENTAL PARA ATENÇÃO ÀS PESSOAS QUE USAM DROGAS
SUMÁRIO Maristela Moraes, Alexandre Franca Barreto

127 Conversando com a mídia • GENTE EXTRAORDINÁRIA


Adriana Mattos Fráguas

129 Estante de Livros • ÉTICA E ESCUTA DE CRIANÇAS NO SISTEMA DE


SISTEMA DE JUSTIÇA
Fernando Luiz Salgado da Silva, Louise Lhullier
EDITORIAL 5

I
niciamos o editorial da edição 43 da Nova Perspectiva Sistêmica com uma no-
tícia muito positiva vinda do âmbito acadêmico. Nossa revista recebeu nova
avaliação do Qualis acadêmico 2012 – sistema que avalia a qualidade de revis-
tas de diversas áreas de conhecimento, a partir de determinados critérios. Ob-
tivemos a classificação B3, equiparando-nos a outras revistas da área, graduação
que melhor nos posiciona no âmbito acadêmico, ampliando nossa inserção nesse
campo, além de nossa já reconhecida trajetória no âmbito profissional. Esta nova
nota é fruto de um árduo trabalho de adaptação a determinados requisitos aca-
dêmicos. No entanto, continuamos sempre atentos para não perder nosso obje-
tivo de divulgar práticas e trabalhos de profissionais, como fazemos já há duas
décadas, pois acreditamos no diálogo entre saberes produzidos na academia e a
partir da prática. Seguimos com a meta de promover mais indexações de nossa
revista e continuar ampliando nossa inserção acadêmica. Temos novos desafios
pela frente!
Diversos temas constroem a edição 43 da revista Nova Perspectiva Sistêmica,
que traz textos teóricos, muitas experiências práticas com significativas reflexões
e também textos de pesquisas.
Iniciamos com o artigo de Dora Fried Schnitman intitulado Processos genera-
tivos no diálogo: complexidade, emergência e auto-organização. Seu texto trabalha
o diálogo e suas articulações com múltiplas vozes, construtoras de uma rede de
diálogos e círculos e conhecimento. Convida-nos a uma consciência reflexiva e
novos paradigmas, em um processo de coconstruir realidades.
O texto seguinte, Aprendizado colaborativo: ensino de professores por meio de
relacionamentos e conversas, de Harlene Anderson e Sylvia London desenvolve
o tema da educação colaborativa a partir dos pressupostos pós-modernos e do
construcionismo social. Busca orientar a formação e o treinamento de profes-
sores para que se tornem parceiros de conversação uns com os outros e com os
estudantes.
Falando em conversas e colaboração, conectamos com o seguinte texto de Li-
lian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida de Lima e Adriana Bellodi Costa
César intitulado “Se não perguntar, ele não vai falar”: reflexões sobre conversas
colaborativas em um atendimento de família com crianças. As autoras apresen-
tam reflexões teórico-clínicas sobre o atendimento de família com crianças. Bus-
cam compreender o processo conversacional que se estabelece nesse contexto,
pontuando as produções de sentido e novas narrativas derivadas da conversação
terapêutica com uso criativo de equipe reflexiva. Essa experiência foi realizada
6 NPS 43 | Agosto 2012
em um instituto de formação de terapeutas de São Paulo.
Seguindo com experiências práticas, temos o artigo A construção de um pro-
grama de assistência familiar em um hospital-dia psiquiátrico: desafios e potencia-
lidades, de Carla Guanaes Lorenzi, Marcus Vinicius Santos, Fabiana S. Bruni-
ni, Sérgio Ishara, Sandra M.C. Tofoli e Eliana M. Real. Esse texto apresenta,
no âmbito da saúde mental, os desafios e potencialidades de um programa de
assist���������������������������������������������������������������������������
�������������������������������������������������������������������������
ncia familiar voltado para o cuidado e a inclus���������������������������
�������������������������
o de fam������������������
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lias no tratamen-
to de portadores de doença mental. O contexto da experiência é um hospital-dia
psiquiátrico. As reflexões tomam por base o construcionismo social, atentas ao
uso de discursos sobre a doença mental.
Ainda no âmbito prático, mas centrando-se no tema de práticas de supervisão,
trazemos a experiência de Cristiana P.G. Pereira, Rodrigo P.S. Coelho e Regina
Maria Hirata, materializada no artigo Três saberes a serviço das famílias: uma
discussão sobre a supervisão das equipes dos Centros de Referência de Assistência
Social. Os autores e as autoras discutem a prática de supervisão de equipes mul-
tidisciplinares que realizam trabalhos sociais com famílias, em Centros de Re-
ferência e Assistência Social de Jundiaí. Essa experiência propõe-se a construir
uma metodologia de trabalho e o encontro da terapia familiar, do serviço social
e da economia, como olhares que se complementam.
Finalizadas as experiências práticas, trazemos ao leitor dois artigos de pesqui-
sa acadêmica. O primeiro refere-se ao uso do Mapa de Rede Social de Carlos E.
Sluzki como instrumento de coleta de dados em contextos de pesquisa qualitati-
va. O texto intitulado O mapa de rede social significativa como instrumento de in-
vestigação no contexto da pesquisa qualitativa é de autoria de Carmen L. Ocampo
Moré e Maria Aparecida Crepaldi, da Universidade Federal de Santa Catarina. As
autoras, professoras dessa universidade, apresentam o potencial gráfico, descri-
tivo e de conteúdo do mapa e possibilidade de triangulação dos dados com os
conceitos teóricos e narrativas dos participantes. O segundo texto derivado de
pesquisa vem de nossas vizinhas argentinas, da cidade de Rosário, Claudia Lilia-
na Perlo, Leticia del Carmen Costa, María Verónica Lopez Romorini e María del
Rosario de la Riestra. O artigo Aprendizagem organizacional e poder: hierarquia,
heterarquia, holarquias e redes apresenta o resultado de uma pesquisa realizada
em organizações, relacionada às concepções de poder, hierarquia, heteraquia e
rede. Trata-se de parte de uma pesquisa qualitativa, um recorte de um estudo
maior realizado pelo IRICE-CONICET da Argentina. As autoras propõem um
olhar eco-holárquico para pensar as estruturas organizacionais, no qual as di-
ferenças são entendidas como complementaridade, colaboração e comunidade.
Finalizada a apresentação dos artigos, iniciamos as seções deste número. Na
seção Ecos, Luciana Moretti Fernández revisita o artigo de Álvaro Ponce Ante-
zana, sobre a intervenção com autores de violência contra mulheres. Luciana
nos mostra como a leitura desse artigo teórico reverberou em suas práticas, pro-
duzindo importantes reflexões. Ilustra apresentando-nos um caso clínico, onde
dialoga com as reflexões do autor, levando-nos a novas leituras, construções e
possibilidades.
Na seção Conversando com a Mídia, Adriana Mattos Fráguas faz um diálogo
com A separação, ganhador do Oscar 2012 como melhor filme estrangeiro. A au-
tora relata que a película permite a reflexão sobre como as pessoas se posicionam

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 5-7, ago. 2012.


diante de situações estremas, limites e impasses. Na seção Estante de Livros, Fer-
EDITORIAL 7
nando Luiz Salgado da Silva e Louise Lhullier nos mostram suas impressões e refle-
xões sobre a leitura do livro recentemente lançado no Rio de Janeiro e organizado
pela profa. dra. Leila Torraca de Brito, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), intitulado Escuta de crianças e de adolescentes: reflexões, sentidos e práticas.
O livro aborda um tema de significativa import�����������������������������������
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ncia no âmbito profissional, rela-
cionado à psicologia jurídica, com importantes reflexões críticas que não devem
passar desapercebidas nas práticas e discussões relacionadas a este tema.
Na seção Família e comunidade em foco, Maristela Moraes e Alexandre Fran-
ca Barreto nos apresentam o texto Conversando sobre práticas em saúde mental
para atenção às pessoas que usam drogas. Trata-se de um diálogo crítico a partir de
uma perspectiva biopsicossocial e de clínica ampliada, com o objetivo de fornecer
ferramentas para pensar e exercer uma clínica ampliada no âmbito de interven-
ção, formação social e políticas direcionadas ao tema álcool, drogas e saúde men-
tal. Buscam uma escuta ética e política, dialogando com temas como a reforma
psiquiátrica e o paradigma da Redução de Danos.
Fechamos a edição com a certeza de estar cumprindo nosso objetivo de trazer
novas experiências, relatos, pesquisas e práticas em diálogo com teoria, criativi-
dade e inovação, proporcionando ao leitor reflexões críticas, atualização teórica e
ampliação de conhecimentos. A partir dessas considerações, só nos falta desejar
boa leitura e agradecer a todos que colaboraram e colaboram com a revista Nova
Perspectiva Sistêmica!

Adriano Beiras

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 5-7, ago. 2012.


ARTIGO

PROCESSOS GENERATIVOS NO DIÁLOGO:


COMPLEXIDADE, EMERGÊNCIA E
AUTO-ORGANIZAÇÃO *

GENERATIVE PROCESS TO DIALOGUE: COMPLEXITY, EMERGENCE AND


SELF-ORGANIZATION
DORA FRIED
SCHNITMAN
Ph.D. Diretora da Fundación
Interfas. Professora de
Pós-graduação, Universidad
RESUMO: Os novos paradigmas favorecem ABSTRACT: The new paradigms favor a plural, de Buenos Aires. Professora
uma concepção plural, polivocal e emergente da poly-vocal and emerging conception of scien- convidada, Universidad
ciência, da cultura e das relações interpessoais, ce, culture and inter-pessoal relationships, a Adolfo Ibáñez, Chile. Faculty,
coconstituída mediante nossas ações comuni- conception that is co-constructed by means of Programa de Doutorado,
cativas. Nesta perspectiva ganham importância communicative actions. From this perspective, The Taos Institute-Tilburg
os processos generativos, o diálogo, a ética e a generative processes, dialogue, ethics and so- University. Professora,
ecologia social. O artigo propõe o diálogo como cial ecology become meaningful. This article Maestría Latinoamericana
metateoria que se centra na exploração ativa das proposes dialogue as a meta-theory focused Europea en Mediación, Institut
zonas de contato e os enlaces como novos terri- on the active exploration of areas of contact and Universitaire Kurt Bösch,
tórios do diálogo, na criação de possibilidades e links as new territories of dialogue in the crea- Suíça-Argentina. Codiretora,
Red de Trabajo para
na sua circulação. O diálogo se interessa e busca tion of possibilities and their circulation. Dialo-
Diálogos Productivos,
articulações entre as múltiplas vozes envolvidas gue is concerned with linking the multiple voices
www.dialogosproductivos.net.
configurando redes de diálogos, que s���������
�������
o compo- engaged in a process in order to build networks
nentes significativos do círculo de conhecimento of dialogue, important components of the cir- E-mail: dschnitman@fibertel.
e da construção social que o acompanha. Boa cle of knowledge and its attendant social cons- com.ar, interfas@fibertel.
com.ar
parte de nossa habilidade para permanecer re- truction. Much of our ability to be receptive and
ceptivos e abertos com relação a outros – este open to others – whether that other is a physical
outro pode ser uma realidade�����������������
física, u�������
ma pes- reality, a research project, information yielded
quisa, dados produzidos por um experimento, by an experiment, other persons, an organiza-
outra/s pessoa/s, uma organização ou uma tion or a community – depends on our reflexive
comunidade – emerge da nossa consciência awareness, on the multiplicity of the dialogues
reflexiva, da multiplicidade de diálogos em que in which we engage, and on our participation Tradução de:
estamos envolvidos e de nossa participação nos in processes by which these realities are “co-
processos em que estas realidades se “cocons- -constructed” in lived experience. ANDRÉ PEREIRA DA
troem” em nossa experiência. COSTA
KEYWORDS: New paradigms, dialogue as meta-
PALAVRAS-CHAVE: Novos paradigmas, diálogo -theory, generative processes, relational realities,
como metateoria, processos generativos, reali- complexity, practical knowledge, dialogue ne-
dades relacionais, complexidade, conhecimento twork, circle of knowledge, dialogical creation
prático, rede de di�����������������������������
álogo, cí��������������������
rculo de conhecimen-
to, criação dialógica

A expressão “novos paradigmas” constitui uma forma sintética e conveniente de


nos referirmos às mudanças pelas quais a teoria e a prática científicas passaram nos
últimos quarenta anos. Durante esse período, a ciência e a cultura contemporâneas
presenciaram a formação de novas perspectivas em ciências, cujos componentes
tendem a se amalgamar e não são mais configurações isoladas. * Publicado na revista
Segundo a visão do paradigma da modernidade, a ciência podia levar à certeza, Pensando la Complejidad,
ao prognóstico. Este paradigma fazia-se acompanhar de uma busca de marcos uni- VIII, janeiro-junho de 2010.
versais que unificavam as explicações que detecta enlaces, conexões, pontos
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e nossa visão da realidade; buscavam de articulação e dimensões diversas,
regularidades, explicações inclusivas, a construção ativa realizada pelos su-
sem espaço para o inesperado ou para jeitos envolvidos no desenvolvimento
os desenvolvimentos espontâneos. Na de um trabalho científico e os con-
imagem do mundo que emergia, tudo textos onde ele ocorre, a perspectiva
o que ocorria devia ser, pelo menos em do conhecimento como um processo
princípio, explicável em termos de leis generativo s�������������������������
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o recursos dos novos pa-
gerais e imutáveis. radigmas que permitem que nos reo-
No quadro desta visão, éramos es- rientemos de visões associadas a um
pectadores de uma narrativa já dada, mundo ordenado e previsível a outras,
uma linha de argumentação com um nas quais as turbulências, as oscilações
final conhecido por alguém que não e a criatividade fazem parte tanto do
éramos nós. A lógica desse tipo de trabalho científico e dos contextos em
representação – segundo Fox Keller que têm lugar, como da cultura e da
(1994) – é�����������������������������
a���������������������������
história de um progressi- vida cotidiana. A perspectiva na qual o
vo desaparecimento do autor-observa- futuro está previsto por sistemas polí-
dor [cientista]. Este desaparecimento ticos, científicos, psicossociais, econ��
ô-
tornou-se tão completo que permitiu micos alheios à participação social dá
uma representação do mundo pro- lugar a outras em que o futuro ainda
gressiva e sem sujeito. Nesta visão, o precisa ser construído, e as pessoas e
curso dos acontecimentos nada tem a suas relações ganham importância.
ver com a nossa participação neles. Nesta inteligibilidade, o mundo
Assim como a noção de paradigma é um evento emergente que implica
nos remete a Kuhn (1970), a noção de uma abertura ao novo, ao inesperado.
novos paradigmas nos remete a pro- Os eventos singulares, não só as leis,
cessos de auto-organização, caos e ir- necessitam ser reconhecidos e com-
reversibilidade temporal; ao reconhe- preendidos. A criatividade está sempre
cimento da complexidade, à inclusão presente em resposta às circunstâncias,
do observador e à construção social aos eventos particulares em momentos
das ciências, à passagem de formas particulares. A ciência se torna um diá-
monológicas a dialógicas na constru- logo com a natureza – e com outros –,
ção científica e cultural, à fertilização n��������������������������������
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o um monólogo que podemos pros-
recíproca entre disciplinas, à hetero-
������� seguir segundo nosso arb���������������
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trio (Prigogi-
glosia (diversidade de discursos) e à ne, 1994; Prigogine & Stengers, 1979).
inclusão de dimens��������������������
ões estéticas e�����
éti- A monologiza�����������������������
ção é uma �������������
forma de pen-
cas em processos criativos e científicos, sar que transforma o diálogo numa in-
entre outras transformações (Foerster, teração descarnada, vazia e sem vida. As
1984; Fox Keller, 1994; Gergen, 1994; formas de conhecimento que silenciam
Guattari, 1990, 1994; Latour, 1987; La- as vozes sintetizam o conteúdo mas
tour & Woolgar, 1979; Morin, 1994; desvirtuam sua natureza socialmente
Pearce, 1994; Prigogine, 1994; Prigogi- constru����������������������������
��������������������������
da e sua incompletude. Mui-
ne & Stengers, 1979). to embora a forma monológica tenha
A perspectiva inovadora e criativa alimentado por séculos um hábito de
do tempo, o caos como fonte de pro- pensar sem autoria, a inclusão da cons-
cessos de inovação, a complexidade trução social e dos processos generati-
como um mundo aberto de possibili- vos emergentes nos reorienta ao diálo-
dades que se aborda com um método go e a uma ecologia da criação.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


Em suma, a mudança crucial é uma cimento onisciente, necessitamos de Processos generativos no
diálogo: complexidade, 11
passagem de perspectivas baseadas em um conhecimento generativo e local, emergência e auto-organização
narrativas totalizadoras, monológicas, enraizado ecologicamente, uma con- Dora Fried Schnitman

sem autor, e espaços de interação não junção de saberes que incluem como
ideológicos que nossas mentes podem fazer e saber como ser. Há uma virada
apreender sem dificuldade se equipa- em direção a uma perspectiva
��������������������
que pro-
das com o método correto, ���������
à �������
concep- p������������������������������������
õ�����������������������������������
e que o mais promissor está defini-
ção de um universo multidimensional, do pelo exercício da curiosidade, pela
plural, polivocal, a que podemos nos criação, por um conhecimento gene-
integrar como parte de sua ecologia rativo (Fried Schnitman, 1996, 2002)
e que está coconstituído, mais do que e por “teóricos/praticantes” que ope-
representado, por nossas ações comu- rem como observadores participantes
nicativas; nessa perspectiva, o diálogo em mundos sociais conceitualizados
e a ética ganham importância. como pluralistas (Pearce, 1994). Não
O que mais os novos paradigmas se trata de um programa esboçado por
tornam possível? Eles nos conduzem um especialista, mas sim de coorde-
a uma tentativa de nos envolvermos nações distribuídas socialmente entre
com destreza e conhecimento nos diversos atores num jogo finamente
eventos únicos que não podem ser elaborado.
completamente previsíveis, nos quais Os novos paradigmas emergem
é preciso elucidar como prosseguir. Os de nosso contexto cultural, nos con-
novos paradigmas tamb�������������
�����������
m nos permi- vidam a repensar a ciência, a cultura
tem considerar e conceitualizar pro- e a nós mesmos, nosso lugar e nossa
jetos ou pautas orientadas a avançar responsabilidade, mas não como re-
na tarefa de construir um futuro, que ceptores de uma realidade separada de
não podemos prever, mas no qual po- nossa observação. Somos convidados
demos, sim, influir (Prigogine, 1994a, a um posicionamento ético baseado
1994b). Já não se trata de um plano e enraizado na responsabilidade por
estrategicamente implementado por nossas construções e pelas ações que
algum operador externo ao sistema, as acompanham. Dificilmente sere-
mas sim – como propõe Morin (1994) mos capazes de determinar ou aceitar
– de ideias-farol, para encontrar o ca- nossa visão do mundo e nossos pro-
minho adequado em circunstâncias gramas de ação baseados somente na
mutantes, ideias que alertam sobre perspectiva de uma realidade objetiva,
riscos e possibilidades, indicam um que reflete uma verdade evidente. A
curso e nos permitem navegar atentos, partir de uma perspectiva dialógica,
no timão, ����������������������������
às �������������������������
conting������������������
����������������
ncias das coorde- constru����������������������������
��������������������������
mos de maneira local, cole-
nações que surgem ou são necessárias tivamente, aquilo que consideramos
entre múltiplos atores, contextos e di- verdadeiro e adequado no processo de
mensões dos temas tratados. levar adiante diálogos e ações conjun-
Os programas esboçados funcio- tas: o recorte de uma visão da realida-
nam quando as condições externas de, das relações, dos valores, dos signi-
alteram-se lentamente, quando não ficados. A noção de verdade dialógica é
há perturbações. Estas circunstâncias um processo, uma metanarrativa, não
dificilmente refletem nossa situação um conteúdo. Este tempo exige que
presente. A estratégia, agora, é a arte encontremos maneiras de institucio-
de trabalhar no contexto da incerte- nalizar o diálogo como a forma, “não
za (Morin, 1994). Mais que conhe- o conteúdo” de uma metanarrativa

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


para nosso trabalho, as comunidades de relação e vínculos sociais. No nível
12 NPS 43 | Agosto 2012
e sociedades em que vivemos (Gergen, metateórico, convidam a uma diversi-
1994; Pearce, 1993; Shotter, 1993a). dade de perspectivas sobre a realidade
A forma pela qual levaremos adian- ao mesmo tempo em que reconhecem
te esta tarefa não se assemelha a um a contingência e a posição material,
plano monológico a ser implemen- histórica e cultural de cada uma (Ger-
tado estrategicamente ou aquilo que gen, 2002, 2009).
o paradigma da modernidade reco-
nheceria como uma resposta. Nossas
tradições intelectuais monológicas, DIMENSÕES PRAGMÁTICAS DA
descorporizadas, frequentemente nos COMPLEXIDADE, DOS PROCESSOS
fazem perder o sentido da qualidade EMERGENTES E DA AUTO-
dialógica da ciência, da cultura e da ORGANIZAÇÃO. ALGUMAS DISTINÇÕES
subjetividade. Na busca de regulari- A RESPEITO DO DIÁLOGO E DO
dades, leis gerais para caracterizar este CONHECIMENTO PRÁTICO
empreendimento, o meio vital em que
transcorre se desvitaliza. A atividade se A ação social conjunta n�����������
���������
o faz sen-
transforma em quietude, a pluralidade tido numa perspectiva monológica
se reduz a uma visão única, a irrever- que favorece a adesão monádica a um
sibilidade se percebe como reversibili- ponto de vista ou a uma ideia. No mo-
dade, a abertura se torna um sistema nologismo, os participantes escutam
fechado e as potencialidades tendem a para refutar os argumentos dos demais
ser deixadas de lado. e provar as falhas na lógica que utili-
A tradição modernista da ciência zam; as perguntas são formuladas com
vem se dedicando a elucidar essências base na certeza. No diálogo, por sua
– seja da personalidade, das condutas, vez, dá-se uma expressão plural, di-
do aparelho psíquico, dos átomos, dos versificada; os participantes expressam
gens ou dos mercados – com o obje- dúvidas, incertezas, bem como crenças
tivo primário de estabelecer corpus de muito arraigadas, e o questionamento
conhecimento objetivo e sistemático. se torna um instrumento para a cria-
Desenvolvimentos mais recentes, in- ção contínua de novas possibilidades.
cluindo as perspectivas coconstruti- Uma característica central do diálo-
vistas e construcionistas, enfatizam a go* ���������������������������������
é �������������������������������
que se trata de um processo ge-
pluralidade das narrativas científicas e nerativo emergente sempre recíproco
seus efeitos ilocucionários na medida entre interlocutores que elaboram,
em que atuam para criar, sustentar ou criam, constroem, sintetizam, dife-
modificar mundos sociais. O cocons- rem, diluem significados**, à medida
trutivismo e o construcionismo for- que esse processo se desenrola. Num
necem novas formas de compreensão diálogo, os participantes se dirigem
que questionam os modos de entender a outros e escutam ativamente com
o conhecimento e introduzem novas o propósito de compreender e obter
* Estamos utilizando a noção
de diálogo proposta por Bakhtin
perspectivas e práticas. Ambas con- uma visão mais complexa e rica sobre
(1981, 1982, 1986). cordam em não aderir ao dualismo as perspectivas, dados, pesquisas e pre-
** Para ele, o significado tem sujeito-objeto e à premissa segundo a ocupações dos outros; são formuladas
valor semântico-social cujo qual o conhecimento é����������������
apenas uma ���
re- perguntas, emerge nova informação, e
depositário é a forma das
palavras, e neste aspecto são presentação do mundo. A construção um bom resultado requer a exploração
acima de tudo portadoras de do mundo e o conhecimento científico das complexidades
��������������������������������
dos temas conside-
valoração social
(Bubnova, 2006).
e cultural têm lugar dentro de formas rados. Diferentes perspectivas enri-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


quecem a vers������������������������
ão e��������������������
visão de um proble- derão aos nossos questionamentos, Processos generativos no
diálogo: complexidade, 13
ma e lhe conferem profundidade. No mas o farão no marco dos termos com emergência e auto-organização
diálogo, as diferen������������������
����������������
as entre partici- que formulamos nossas perguntas Dora Fried Schnitman

pantes e aquelas próprias de cada um (Prigogine, 1994a, 1994b). A pergunta


se revelam no processo de explorar a científica recria o espaço de produção:
base individual e pessoal das crenças e com quem se está em diálogo? As equi-
valores, e criam uma perspectiva mais pes, as redes, os grupos de referência
profunda sobre as circunst�����������
���������
ncias, re- e a interdisciplinaridade conquistam
correndo à metáfora batesoniana da novos lugares.
visão binocular da qual depende a vi- Nossos interesses e pressupostos
são de profundidade (Bateson, 1979). d���������������������������������
ão ������������������������������
forma aos nossos questionamen-
A qualidade emergente de uma re- tos e interpretações dos dados; nossa
lação dialógica é poder se apoiar nos compreensão se relaciona ativamente
recursos da linguagem e da lógica, mas com uma multiplicidade de diálogos,
também os ultrapassa. Os participan- incluindo os que sustentamos com os
tes criam em conjunto um diálogo temas e as realidades que estudamos*.
num espaço virtual que se desenrola Toda vez que produzimos algo respon-
com uma compreensão em ação e um demos a algo que foi feito antes e nos
posicionamento recíproco que vai se posicionamos em relação a estudos
transformando. prévios ou futuros, e àqueles com os
A perspectiva objetivista do mundo quais se vinculam. Numa rede de diá-
não dá vez aos processos generativos logos falamos a partir de uma tradição,
nem aos dialógicos. A incompletude nos posicionamos com relação a ou-
do diálogo e uma perspectiva aberta tros estudos possíveis, às maneiras pe-
a singularidades, diferenças e diver- las quais outros – as múltiplas plateias
sidades pessoais, culturais e de tra- e interlocutores que são parte do meio
dições científicas operam como uma social interconectado – poderiam con-
oportunidade que conclama a novas siderá-lo. Que respostas e avaliações
aberturas e questionamentos. Surpre- poderia suscitar?
sa, incerteza, descoberta, interesse e Deixando de lado os contextos mais
curiosidade, mais que poder, consti- óbvios sempre presentes como parte
tuem as emoções e relações associadas de todo empreendimento científico,
ao diálogo e aos processos generativos estas redes de diálogos revelam-se com-
emergentes. ponentes significativos do círculo de co-
O diálogo, como um modo privile- nhecimento e da construção social que
giado de comunicação, nesta visão de o acompanha (Schnitman, 1998). Boa
um mundo pluralista, polivocal, se in- parte da nossa habilidade para perma-
teressa e busca as articulações entre as necer receptivos e abertos em relação a
múltiplas vozes envolvidas. Neste tipo outros – este outro pode ser uma reali-
de mundo, toda forma de ação social, dade física, dados produzidos por um
incluindo a pesquisa, o uso sustenta- experimento ou questionário, outra(s)
do de todo grupo de procedimentos pessoa(s), uma organização ou uma
ou formas de participação, marca suas comunidade – emerge de nossa cons-
pr������������������������������������
ópri��������������������������������
as perspectivas e desvios em re- ciência reflexiva, da multiplicidade de
* Tal como afirma Bakhtin:
lação ao conhecimento que criamos. A diálogos em que estamos envolvidos “Chamo de sentidos as
pesquisa científica n���������������
�������������
o ������������
é um �������
monólo- e de nossa participação nos processos respostas às perguntas. O
go e sim um diálogo por meio do qual em que estas realidades se “constroem” que não responde nenhuma
pergunta, para nós, carece de
as realidades que estudamos respon- na nossa experiência (Pearce, 1993). sentido” (Bajtín, 1982, p. 350).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


As implica�����������������������
çõ���������������������
es dessas transforma- em si mesmos, reposicionando-nos
14 NPS 43 | Agosto 2012
çõ������������������������������������
es sugerem novos crit���������������
�������������
rios para ava- como sujeitos generativos em univer-
liar toda forma de conhecimento, pes- sos emergentes e diversificados (Fried
quisa ou prática que tenhamos criado. Schnitman, 1994).
Assim sendo, um critério para avaliar Descobertas inesperadas têm lugar
todo método de pesquisa ou outra for- no processo de explorar novas práticas
ma de participação e seus resultados é e perspectivas, porém os participantes
constituído pela habilidade reflexiva as registram quando podem constru�� í-
que nos permite discernir tanto nossos -las����������������������������������
, reconhecê-las e descrevê-las du-
próprios horizontes como as vozes que rante o próprio processo. Depois que
falam linguagens diferentes. se consegue isso, as decisões tomadas e
A ênfase na heteroglosia (pluralida- os itiner����������������������������
��������������������������
rios percorridos ganham vi-
de de discursos), na polifonia (plura- sibilidade, e tornam-se marcadores de
lidade de vozes), na singularidade, na transformação.
coordenação e nas quebras de consen- Nas humanidades existe uma tradi-
so visa a perguntar e a desarticular os ção de
�����������������������������������
práticas construtivas e descons-
pontos fixados pelas subjetividades, trutivas que operam entre o existente
visões hegemônicas e dogmatismos e o emergente como plataforma para
predominantes que limitam os centros expandir possibilidades. Mediante a
de criatividade. A criatividade exige desconstrução de premissas, projetos e
linhas de fuga, contradições, colapsos temas implícitos no existente é possível
naquilo que ainda não tem sentido, gerar uma nova rede de descrições
que só pode ocorrer quando existem e práticas. Os enlaces de descrições e
aberturas às mais diversas dimensões práticas, novas e pr�������������������
�����������������
vias, abrem possi-
do reconhecimento do outro (Guatta- bilidades e alternativas para conside-
ri, 1990, 1994). rar uma multiplicidade de perspecti-
Nesta perspectiva, é importante nos vas criando um tipo de compreensão
mantermos reflexivamente abertos não disponível no início do processo.
à �����������������������������������
diversidade, ao inesperado, �������
às ����
sin- Do emaranhado das relações surgem
gularidades que não pertencem aos novas possibilidades que respondem
códigos dominantes para discernir os e contribuem para necessidades e
registros – que n�����������������
���������������
o necessariamen- oportunidades locais, e, no processo,
te correspondem à teoria ou visão de semeiam a criatividade futura (Fried
mundo a que aderimos, nós ou outros Schnitman, 1995, 1996).
– e permitir que surja a disparidade Os espaços científicos, culturais e re-
entre os sistemas explicativos e as ex- lacionais expandiram o conhecimento
peri����������������������������������
��������������������������������
ncias, porque só nesta diversida- para abarcar dimens������������������
õ�����������������
es estético-cria-
de, só a partir de um posicionamento tivas da experiência para além de um
com relação a outros pontos de vista foco territorializado nas artes, questio-
ou perspectivas, podemos começar nando as distinções tradicionais entre
a desenvolver uma formulação, uma a arte e as ciências. A possibilidade de
representação suficientemente rica de gerar qualidades de exist������������
����������
ncia origi-
nossa experi������������������������
����������������������
ncia para ter consciên- nais não consideradas, conhecimentos
cia dessa complexidade. A habilidade ou crenças, de transformar potenciali-
para desenvolver múltiplas narrativas dades em possibilidades e novas rea-
e reunir componentes variados exer- lidades existenciais, aproxima nossa
ce uma pressão extraordinária sobre experi��������������������������������
������������������������������
ncia de metáforas abertas e in-
corpos de conhecimento fechados completas de criatividade e aprendiza-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


gem (Fried Schnitman, 1994; Guattari, mento apropriado para processos ge- Processos generativos no
diálogo: complexidade, 15
1990, 1994). nerativos. emergência e auto-organização
De uma perspectiva construtivista Podemos denominar criação dia- Dora Fried Schnitman

(Foerster, 1984), derivam as noções de lógica a construção gradual no tem-


auto-organização, reflexividade e uni- po de algo novo por meio do diálogo
dade entre o processo de observação, reflexivo e da aprendizagem conver-
a própria observação e construção do sacional. No processo generativo que
observador, as quais permitem consi- se desenrola, as pessoas ou grupos
derar tanto a inclusão do observador compreendem, experimentam, des-
naquilo que estuda ou constrói como crevem, desenvolvem uma perspecti-
a emergência do “si mesmo”, enquanto va, e posicionam-se de modo distinto.
parte e produto dos processos de que Esta abordagem entende a criação de
participa e que, por sua vez, o cons- significado, experiência e conheci-
troem recursivamente. O construcio- mento como um processo construtivo
nismo enfatiza a maneira pela qual no qual os eventos específicos, ações
coletivamente – como interlocutores e e epis�������������������������������
����������������������������
dios t������������������������
êm o potencial
�������������������
de trans-
em nossas relações – participamos da formar as pautas de relação social e o
construção de nossos mundos sociais conhecimento desde o seu interior. Os
e de nós mesmos (Gergen, 1994). episódios com potencial de expandir,
Ambas as perspectivas propõem uma transferir ou criar novos significados
alternativa ao objetivismo. Em contras- e práticas viram núcleos alternativos
te com a perspectiva que afirma que as que podem se desenvolver em contex-
palavras t����������������������������
êm significado
�������������������������
porque repre- tos privilegiados para a interpretação
sentam objetos existentes num mundo e �������������������������������������
a prática. Nesta perspectiva, o ques-
objetivo ou na mente dos usuários, as tionamento foca em como se gera este
perspectivas construtivista e constru- tipo de episódios, em como algo novo
cionista enfatizam o caráter formativo emerge e se consolida transformando-
e a referência relacional do diálogo, da -se num contexto para a nova perspec-
linguagem, e sua inseparabilidade de tiva, a prática ou o significado. Algu-
ações humanas generativas. mas perguntas que nos guiam nesta
De que modelos e práticas neces- busca são: que coordena������������
çõ����������
es discur-
sitamos para atender aos processos sivas e sociais favorecem esses desen-
generativos? Os modelos e as práticas volvimentos?; quais são os contextos
que prop����������������������������
õem ������������������������
focos de experi���������
�������
ncia es- ou as condições que facilitam a emer-
boçados precisam ser complementa- g������������������������������������
����������������������������������
ncia e a manutenção de novas possi-
dos com modelos que permitam que bilidades de significado e ação (Fried
os participantes reconstruam seus Schnitman & Schnitman, 2000)?
centros de experiência. Pesquisadores A construção de futuros como parte
e realidades, grupos e contextos, tera- da mudança implica a exploração dos
peutas e clientes convertem-se em au- procedimentos para ter acesso a es-
tores de cada processo singular através ses futuros enquanto se atua sobre as
de um foco nas atividades específicas, circunst������������������������������
����������������������������
ncias atuais. As possibilida-
locais e situadas de construção social des criadas na conversa generativa se
da realidade. As micropráticas e os mi- tornam realidades virtuais que, uma
crodiálogos se mostram de significati- vez criadas, podem ser atualizadas se
va importância não só como dados ou sustentadas por ações que conduzam a
ilustrações de temas mais gerais mas alternativas existenciais e a realidades
também como objeto de questiona- diversas (heterogênese ontológica).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


O diálogo e a polifonia consideram Participar de um diálogo implica
16 NPS 43 | Agosto 2012
a possibilidade de uma troca signifi- poder escutar e se expressar, apreciar,
cativa entre pessoas e grupos tanto na identificar recursos, promover ino-
produção científica como no desen- vações, reconhecer momentos sutis
volvimento de práticas. As diferentes e originais, aprender reflexivamente;
linguagens, experiências e culturas estar atento à complexidade com um
nos aproximam da coexistência de foco no propósito e no fluxo da con-
uma pluralidade de realidades sociais, versa; aprender a observar e participar
criando alternativas complexas a visões em interações dialógicas.
monológicas excludentes. Essas apro- Todo diálogo tem um domínio – de
ximações facilitam a construção de no- que trata –, um propósito – que obje-
vas maneiras de nos relacionarmos na tivo o anima –, um contexto – em que
diversidade, com maior consciência da situação –, participantes – quem está
multiplicidade de vozes e perspectivas envolvido –, é específico – ocorre em
envolvidas, e da necessidade do diálo- condições singulares. Os diálogos tra-
go com o outro. Os diálogos com foco balham com uma “lógica” da possibi-
nos processos emergentes registram lidade, do emergente, que expande a
o diferente e utilizam modelos não criação de valor a limites insuspeitados.
lineares de mudança que favorecem Pode promover processos n�������
�����
o pre-
vis����������������������������������
õ���������������������������������
es complexas e processos de auto- visíveis ou necessariamente conheci-
-organização original para avançar até dos, as possibilidades e interações que
formas de relação e conhecimento que emergem no diálogo podem iniciar ou
deem respostas úteis às questões pos- favorecer processos de auto-organiza-
tas. Esses diálogos trabalham com os ção, e transformar-se progressivamente
princípios sustentados pelos novos pa- em novas perspectivas e práticas poss��í-
radigmas e pelas possibilidades emer- veis. A interação dos participantes pode
gentes. Neste processo, os próprios produzir inovações ou levar a mudan-
participantes, suas perspectivas e suas ças que vão mais além do seu próprio
relações vão se transformando. conhecimento. O di����������������
��������������
logo como meta-
teoria tem uma dimensão ética e uma
refer���������������������������������
�������������������������������
ncia relacional: a responsabili-
PROCESSOS EMERGENTES: dade se expressa no reconhecimento
O DIÁLOGO COMO METATEORIA dos limites que nossas participações e
descrições promovem, e uma reflexão
Resumindo: o diálogo como meta- acerca de até onde e como avançar. A
teoria promove a troca entre diversas emergência, a auto-organização e a
pessoas, difere da linguagem e con- complexidade se dão no espaço social
tém uma multiplicidade de vozes que do diálogo e da produção do conheci-
lhe conferem profundidade e sentido. mento entre pessoas e entre diversos
Atende às condições do contexto e ao campos de conhecimento.
momento (cronotopo) em que sucede, As dimensões criativas e reflexivas
é resultado de uma relação recíproca que o diálogo, como metateoria, em-
entre os participantes que se envolvem presta – em diferentes disciplinas – ao
– tornam-se coautores – e estabelecem conhecimento nos permitem repen-
uma compreensão ativa. Todo diálogo sar premissas, perspectivas, formas
tem sempre um projeto, uma qualidade de prática e discursos institucionais
antecipatória e é sempre incompleto, como processos interrelacionados e
permanecendo aberto (Bajtín, 1982). abertos. A polifonia do diálogo nos

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


convida a exercitar a curiosidade e o em relação ao problema que os ocu- Processos generativos no
diálogo: complexidade, 17
interesse pela relevância dos vínculos pa, isto é, a especificar até onde que- emergência e auto-organização
como centro para tornar o mundo efe- rem ir, como transformar a situação Dora Fried Schnitman

tivamente habitado; também requer o atual, como gostariam que fosse o fu-
nosso compromisso como participan- turo caso tivessem a oportunidade de
tes e construtores ativos de um mundo construí-lo e como começar a fazê-lo.
forçosamente social, com responsabi- O olhar para o futuro torna relevantes
lidade por nossas ações e relações. as perguntas sobre o que pesquisar, o
que cada um poderia fazer de maneira
diferente, o que funcionou, o que pode
O DIÁLOGO COMO METATEORIA ser reciclado. Também assumem rele-
E OS PROCESSOS GENERATIVOS v����������������������������������
��������������������������������
ncia as questões sobre como nota-
riam que mudaram e o que impediria
Este processo se centra naquilo que imaginar um futuro, o que escolhe-
os participantes são capazes de cons- riam se pudessem propor alternativas.
truir criando possibilidades na explo- A reflex�������������������������
ão a respeito do conheci-
��������
ração ativa das zonas de contato e dos mento e das possibilidades resultantes
enlaces como novos territ�������������
����������
rios do diá- torna vis����������������������������
íveis ����������������������
op��������������������
çõ������������������
es e escolhas ori-
logo, e pondo em circulação as novas ginais que podem, por seu turno, ser
possibilidades. motivo de novas reflexões, configu-
A habilidade para promover sínte- rando uma espiral generativa.
ses, recuperar recursos e possibilida- Por esta perspectiva, o processo se
des, permite criar condições para ino- transforma num empreendimento
var e avançar. Trata-se de uma criação criativo no qual não só se descobrem
dialógica com estruturas cognitivas e as inovações como estas podem ser
construtivas aptas a organizar novos constru����������������������������
ídas �����������������������
ativamente, reconhecen-
significados, relações e práticas. do e valorizando diferen������������
����������
as, oportu-
Os “espaços sociais” podem ser de- nidades e possibilidades, explorando
finidos como uma instância dialógica aquilo que funciona bem e como in-
de ação social coordenada. Nesses es- crement�������������������������������
á-l����������������������������
o, incluindo as possibilida-
paços, os participantes interpretam, des existentes em novas combinações
constroem sentido e ações conjun- adaptadas a maneiras diferentes de ver
tamente, e se reconhecem reciproca- a realidade, até que se possam imagi-
mente como copartícipes. nar outras relações.
Este tipo de procedimentos incorpo- Assim, em todo processo há um
ra os participantes como pesquisadores campo generativo especificado por
da própria situação que se propõem dois eixos que ligam, de um lado, os
estudar ou transformar, como pessoas objetivos específicos da situação a se
em condições de produzir possibilida- conhecer ou resolver e uma visão de
des inéditas no diálogo. Ou seja: su- futuro e, de outro lado, uma solu-
jeitos-agentes proativos que utilizam ção criativa de problemas, recursos e
as próprias reflexões para melhorar a oportunidades a expandir.
compreensão e a ação enquanto têm Quem participa de um processo de
lugar. Tais processos incrementam a re- diálogo generativo está atento a outras
cuperação de poder (empowerment) e o vozes latentes ou esboçadas no dito –
reconhecimento dos participantes. como torná-las aud������������������
ívei��������������
s, transform��
á-
Esta virada convida os participantes -las ou ligá-las –, registra o sutil ou
a focar na construção de um futuro fugaz, as variações – mesmo as quase

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


impercept�������������������������
ívei���������������������
s –, e mantém consis- Apreender(-se) no ato de construir
18 NPS 43 | Agosto 2012
tentemente uma ótica voltada para esses saberes e ações originais, e os
registrar a novidade, as flutuações, saberes que deles emergem, impli-
as variações nos possíveis enlaces no ca aprender a trabalhar com os pro-
diálogo e entre diálogos. Deste modo, cessos formativos de novos mundos
configuram-se no diálogo plataformas sociais, de contextos/relações/pes-
para a criação de possibilidades. soas e de problemas/possibilidades.
As possibilidades emergentes são Utilizá-los configura um sistema que
estruturas de compreensão humana, aprende; incorporá-los como conhe-
imaginativas e transversais, que in- cimento acerca da comunicação e
fluem na construção das significações, dos processos sociais para construir
na sua natureza, nas aberturas e restri- a possibilidade de trabalhar com pro-
ções impostas pelas inferências que se cessos emergentes transforma-os em
elaboram. Encarnadas nos diálogos e um sistema generativo.
nas comunidades discursivas de onde Quando os participantes conse-
emergem, essas possibilidades po- guem promover resolu��������������
ções com �����
sabe-
dem se constituir em nós generativos doria e coragem, reapropriando-se do
e adquirir – via enlaces e processos de próprio poder e reconhecendo o outro
auto-organização, através de seu uso – pessoa, tema, produção, teoria etc.
– um espaço expandido no conhe- – com que está em diálogo, toda reso-
cimento, nas práticas e nas relações lu�����������������������������������
ção se mostra um processo
������������������
transfor-
sociais. Quando operam como novos macional. Esses processos não podem
n�������������������������������������
����������������������������������
s e enlaces, as possibilidades emer- ser avaliados exclusivamente por seu
gentes expandem os espaços do dado, resultado final; também devem ser
vinculando descri�������������������
çõ�����������������
es de formas nun- consideradas as oportunidades que se
ca antes consideradas, que permitem abrem no desenvolvimento mesmo do
captar relações originais. Se estas pos- processo, e sua capacidade para se sus-
sibilidades emergentes se consolidam tentar como plataformas para a ação.
como óticas privilegiadas, oferecem
uma nova visão da situação e cursos CONSTRUÇÃO DE REALIDADES
de ação inéditos. RELACIONAIS E GENERATIVAS COM
Esta visão pressupõe que trabalhar BASE NOS NOVOS PARADIGMAS
na transformação das possibilidades
existentes em um sistema social, as- Neste ponto nos propomos a dis-
sim como com sua capacidade para tinguir um “conhecimento acerca dos
desenvolver novas alternativas frente fenômenos, perspectivas, pesquisas,
a situações mutantes, requer atenção processos e metodologias considera-
para aquilo que funciona bem, para a dos pelos novos paradigmas” de um
diversidade, a possibilidade e a criação “conhecimento como metateoria no
de oportunidades (Fried Schnitman, contexto dos novos paradigmas”, o
1995). qual se pergunta sobre o caráter de
A transformação de possibilidades nossas experi������������������������
����������������������
ncias em diferentes si-
em ações efetivas constrói-se de modo tuações de ação conjunta – equipes de
gradual, área por área, mas não linear- trabalho, pesquisa, docência, relações
mente. Refletir em ação sobre esta pro- entre equipes, conferências científicas,
gressão permite identificar um con- vida cotidiana.
junto de saberes originais e de saberes Como exemplo de trabalho com
sobre saberes. uma pragmática relacional vincula-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


da aos novos paradigmas gostaria de sejava expressar, quais eram os temas Processos generativos no
diálogo: complexidade, 19
mencionar a organização do Encontro ou agenda significativa, quais eram as emergência e auto-organização
“Novos Paradigmas, Cultura e Subje- fronteiras do conhecimento, como nos Dora Fried Schnitman

tividade”*, para o qual desenvolvemos aproximarmos, com que temáticas e


diferentes experiências baseadas nos com que projeto. Tivemos que criar um
processos de diálogo como metateo- procedimento novo: tomar o diálogo e
ria. Nesse encontro participaram Ilya a construção social do Encontro como
Prigogine, Edgar Morin, Heinz von os articuladores da participação e das
Foerster, Ernst von Glasersfeld, Evelyn contribuições. Dividimos todas as pro-
Fox Keller, Félix Guattari, José Jimé- duções e respostas, e dessa troca surgiu
nez, Mark Wigley, W. Barnett Pearce, a agenda de temas e o desenho; e esta
Harold Goolishian, Mony Elkaïm, forma de trabalho se manteve durante
Gianfranco Cecchin y Carlos Sluzki, o Encontro. Foi uma tarefa laboriosa
entre outros. Todos tinham contri- abandonar a forma monológica carac-
buições teóricas, de pesquisa e práti- terística dos congressos e da produção
cas amplamente difundidas. Criamos científica e cultural em que as pessoas
um espaço social que permitiu que os se referem ao que já sabem, já disseram,
convidados avançassem mais além dos seguindo-se um momento de diálogo
seus materiais previamente publica- geralmente pautado por perguntas e
dos. Na concepção, tomamos o diálo- respostas, mas sem uma reflex�������
ão con-
����
go como metateoria, tanto na maneira junta nem abertura para o inesperado.
de abordar os temas como na relação Depois que concordamos em tra-
entre os participantes e o Encontro. balhar juntos e sobre os temas que
A primeira tarefa foi a elaboração de nos ocupariam, o desafio consistiu em
uma proposta que foi enviada a todos planejar uma reuni�������������������
ão aberta
����������������
a proces-
os convidados; a partir dessa proposta sos emergentes que, ao mesmo tempo,
mantivemos diferentes diálogos en- preservasse seu foco. Para isso combi-
tre grupos de possíveis participantes namos, num processo anterior ao En-
que culminaram com uma reunião contro, que os oradores se deslocassem
da maioria dos convidados; os temas de seus temas específicos – o já conhe-
das trocas giraram em torno de como cido – para se concentrar em formular
organizar um encontro científico-cul- as questões relevantes para cada um.
tural com um formato dialógico, dife- Também combinamos que anterior-
rente dos congressos habituais. Como mente ao Encontro cada um faria sua
descrever cada uma dessas conversas proposta, questões e reflex�����������
õ����������
es na pri-
mostra-se quase impossível, nos limi- meira pessoa, assim como o que deseja-
taremos a algumas características do ria ouvir nas apresentações dos outros,
processo. A transição para o diálogo e e que esta informação circularia entre
um projeto generativo desde a adesão todos os convidados. Deste processo
dos convidados exigiu coordenações, de trabalho prévio surgiu o temário do
negociações e a participação de todos; Encontro, durante o qual cada pales-
cada um contribuiu para dar forma ao trante teve um espaço para apresentar
que procurávamos alcançar: a criação seu tema e inquietudes; em seguida a * Buenos Aires, 21 a
de um espaço polivocal, polidiscursi- essa apresenta�������������������������
ção, teve ���������������
lugar um diálo- 28 de outubro de 1991,
vo, onde cada um expressasse o sig- go do orador central com outros ora- organizado pela Fundación
Interfas. É um exemplo do
nificativo, o relevante, o que esperava, dores. Assim, cada um deles participou nosso desenvolvimento de
desejava perguntar ou o que lhe inte- no diálogo posterior à sua apresentação metodologias dialógicas, nesse
caso aplicadas à difusão do
ressava dos demais, o que podia e de- e em outros diálogos que se seguiram às conhecimento.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


apresentações de outros oradores. Um 1989-1991. O livro de mesmo título foi
20 NPS 43 | Agosto 2012
terceiro espaço permitiu aos oradores publicado em 1994. Nos últimos vinte
dialogar acerca dos diálogos – anterio- a����������������������������������
nos, em diferentes campos – econo-
res ou próximos –, um quarto espaço mia, desenvolvimento organizacional,
consistiu em diálogos com os assisten- urbano e comunitário, cooperação
tes, que se fez acompanhar por uma re- internacional, educa���������������
ção������������
, psicotera-
flexão estética sobre os temas tratados. pia, docência etc. – desenvolveram-se
Criar coletivamente um consen- metodologias de trabalho que operam
so sobre este modelo foi trabalhoso e com o di��������������������������
������������������������
logo e com os novos para-
enriquecedor. Os resultados da reali- digmas como metateoria. Este foi ape-
zação deste Encontro expandiram-se nas um começo, resta muito a fazer.
à maneira do efeito borboleta: uma
transformação muito importante no
n����������������������������������
��������������������������������
vel científico-cultural em diver- REFERÊNCIAS
sos países e em diferentes disciplinas
que abriu diálogos transformadores Bakhtin, M.M. (1981). The Dialogic
e promoveu reformula��������������
çõ������������
es; a viv���
�
n- Imagination. Four Essays by M.M.
cia expressada de estar participando Bakhtin. Austin: University of Texas
num evento único e histórico, e um Press.
incremento exponencial da produção Bajtín, M. (1982). Estética de la creaci-
e publicações em múltiplas disciplinas. ón verbal. México: Siglo XX.
“O melhor congresso da minha vida” Bakhtin, M.M. (1986). Speech Genres
e “o Encontro foi transformador” são and Other Late Essays. Austin: Uni-
alguns comentários de assistentes que versity of Texas Press.
ainda hoje continuo recebendo, vin- Bateson, G. (1979). Mind and Nature.
te anos passados. O Encontro explo- Toronto, New York, London: Ban-
rou não só a complexidade dos temas tam Books.
como também os processos emergen- Bubnova, T. (2006). Voz, sentido y diá-
tes no diálogo e na construção de rea- logo en Bajtín. Acta Poética, 27 (1),
lidades conversacionais: pela primeira 97-114.
vez fizemos novos paradigmas. Isso foi Foerster, H. von. (1984). Observing
possível porque trabalhamos em uma Systems. ������������������������
USA: Intersystems Publi-
rede dialógica generativa que manteve cations.
uma comunicação ativa e focalizada Fox Keller, E. (1994). La paradoja de la
nas coordenações significativas e nos subjetividad científica. In: D. Fried
processos que necessitávamos promo- Schnitman. Nuevos paradigmas, cul-
ver em diferentes momentos; traba- tura y subjetividad. (pp. 143-173)
lhamos desde dentro a complexidade, Buenos Aires: Paidós.
a emergência, a auto-organização e a Fried Schnitman, D. (1994). Nuevos
construção social. Exigiu coragem e paradigmas, cultura y subjetividad.
sabedoria de todos a decisão de avan- Buenos Aires: Paidós.
çar mais além dos nossos limites. Uma Fried Schnitman, D. (1995). Hacia una
equipe trabalhou em Buenos Aires, terap�����������������������������
���������������������������
a de lo emergente: construc-
uma na Europa e uma na América La- ción, complejidad, novedad. In: S.
tina (isso antes da instalação de redes McNamee & K.J. Gergen (Comps.).
de computador). La terapía como construcción social.
Situemos este processo no momen- Barcelona-Buenos Aires-México:
to histórico em que se deu: no período Paidós.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


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Nuevos paradigmas, cultura y subje-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 9-21, ago. 2012.


ARTIGO

APRENDIZADO COLABORATIVO: ENSINO DE


PROFESSORES POR MEIO DE RELACIONAMENTOS
E CONVERSAS*

COLLABORATIVE LEARNING: TEACHERS LEARNING THROUGH


RELATIONSHIPS AND CONVERSATIONS

HARLENE ANDERSON
Doutora
RESUMO: A educação colaborativa baseada nos ABSTRACT: The collaborative education based
Houston Galveston Institute pressupostos pós-modernos e da construção on the assumptions of the postmodern social
Taos Institute social fornece uma orientação para a formação construction and provides guidance for the edu-
e treinamento em que os estudantes estão envol- cation and training where students are actively
vidos ativa e intimamente em seu aprendizado e and intimately involved in their learning and have
SYLVIA LONDON tem voz para determinar e avaliar o que e como a voice in determining and evaluating what and
aprender. Neste artigo apresentamos os pressu- how to learn. This article presents the basic as-
Mestre
postos básicos da nossa abordagem de educa- sumptions of our approach to collaborative edu-
Houston Galveston Institute ção colaborativa. Ilustramos, então, a abordagem cation. Illustrated, then approach with a story
Taos Institute com uma história sobre o desenvolvimento de about the development of a collaborative lear-
uma comunidade de aprendizado colaborativo – ning community – a training project for teachers
um projeto de treinamento para professores em in which they become conversation partners
que eles se tornam parceiros de conversação uns with each other and their students. The story
com os outros e com seus estudantes. A histó- also illustrates the conversational processes and
ria também ilustra os processos conversacionais generative relationships in which knowledge is
e de relações generativas nos quais o conheci- exchanged and generated much more creative
mento é trocado e gerado muito mais criativa e and abundantly and more specifically to the ne-
abundantemente e de modo mais específico às eds of members than could have been achieved
necessidades dos membros do que poderia ter without the collaboration.
sido alcançado sem a colaboração.
KEYWORDS: collaborative education, social
PALAVRAS-CHAVE: educação colaborativa, construction.
construção social.

Nossa abordagem colaborativa da educação é baseada em uma colcha de retalhos


de pressupostos filosóficos práticos (Anderson, 1997, 2007). Essa colcha de reta-
lhos inclui pedaços de tecidos das filosofias hermenêuticas pós-modernas e con-
temporâneas e da construção social, bem como teorias dialógicas. Estes pressu-
postos proporcionam uma linguagem alternativa que, por sua vez, fornecem uma
orientação particular às práticas educacionais nas quais os estudantes estão envol-
vidos ativa e intimamente em seu aprendizado e tem voz para determinar e avaliar
o que e como aprender. Em trabalhos anteriores, referimo-nos a esta orientação
* Uma versão anterior deste
artigo foi publicada em
como aprendizado colaborativo e comunidades de aprendizado colaborativo (An-
Anderson, H. & London, S. derson, 1998, 2000; Anderson & London, 2011; Anderson & Swim, 1993; Fernan-
(2011) “Undervisning som dez, London & Rodriguez, 2006). Discutimos primeiramente esses pressupostos
kollaborativ læring – Lærere,
der lærer gennem relationer e depois ilustramos seu transporte para a educação por meio da história sobre o
og samtaler”. Kognition og desenvolvimento de uma comunidade de aprendizado colaborativo: um projeto
pedagogik nr. 81, AKT og
inklusion. Dansk Psykologisk
de treinamento para professores em que eles se tornam parceiros conversacio-
Forlag. arn nais uns com os outros e com seus alunos. Por sua vez, os alunos tornaram-se
parceiros conversacionais uns com os A colaboração é um meio fértil para Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 23
outros. Por meio dessa relação e ati- fins criativos. A emergência da noção relacionamentos e conversas
vidade – aprendizado colaborativo –, de aprendizado colaborativo – com a Harlene Anderson; Sylvia London

professores e alunos e alunos e alunos utilização de denominações variadas


se dedicam a criar novos tipos e quali- como aprendizado colaborativo, co-
dades de conexões uns com os outros letivo, cooperativo, de ação, de pares,
– comunidade de aprendizado colabo- de parceiros, de grupo e de equipe –
rativo – que melhoram os relaciona- tem sido documentada por mais de
mentos, a cidadania e, claro, o apren- três décadas (Anderson, 1998, 2000;
dizado. Esses parceiros colaborativos, Anderson & Swim, 1993, 1994; Astin,
por meio de suas trocas dinâmicas, 1985; Bonwell & Eison, 1991; Boswor-
geram conhecimento* e outras inova- th & Hamilton, 1994; Bruffee, 1983;
ções muito mais criativas, abundantes Freire, 1970; McNamee, 2007; Shotter,
e específicas ao contexto e necessida- Golub, 1988; Goodsell, Maher, Tinto,
des locais do que qualquer membro da Smith & MacGregor, 1992; Johnson
parceria poderia alcançar sozinho. & Holubec, 1990; John-Steiner, 2000;
Kuh, 1990; Mezirow, 1978; Mezirow &
Associates, 2000; Peters & Armstrong,
CARACTERÍSTICAS DAS COMUNIDADES 1998; Sir Ken Robinson, 2001; Slavin,
DE APRENDIZADO COLABORATIVO 1990; Weiner, 1986). O aprendizado
colaborativo é definido aqui como
O aprendizado colaborativo requer uma abordagem relacional e conver-
um ambiente e atividade de apren- sacional, na qual cada membro da co-
dizagem em que sabedoria, conheci- munidade de aprendizado, educadores
mento e costumes dos membros de e alunos, contribui para a produção de
um contexto educacional local (por um novo aprendizado (conhecimento,
exemplo, uma classe de alunos ou um habilidades, competência), incluindo
grupo de professores) são reconheci- a sua integração e aplicação, dividindo
dos, acessados e utilizados. Esse tipo as responsabilidades de tudo isso. Ba-
de ambiente e atividade de aprendiza- seia-se na suposição de que a constru-
do requer valores e atitudes particula- ção do conhecimento é uma atividade
res do educador em relação a: a) a na- em comunidade, criada no intercâm-
tureza transformadora do diálogo e da bio social e não na interação instrucio-
colaboração, b) confiança e segurança nal e que a experiência de aprendizado
nas competências e no julgamento de coletivo é transformativa. Além disso,
cada membro quanto à sua vida diária o que está sendo aprendido é trans-
e futura, e quanto ao que é crucial para formado no processo de aprendizado.
elas; c) o conhecimento e as experiên- Do mesmo modo, o aprendizado e o
cias que os alunos trazem considera- processo de produção de conhecimen-
dos como valiosos e necessários como to é transformado durante a produção
os que os professores trazem e d) au- e as pessoas envolvidas no processo
torreflexão e abertura das perspectivas de aprendizado também são transfor-
dos educadores sendo examinadas, madas. Os termos “transformador” e
confrontadas e mudadas. Isto requer, “transformativo” referem-se ao pro-
antes de tudo, que o educador, aquele cesso generativo no qual as pessoas se
* Usamos a palavra
designado como “professor”, expresse envolvem umas com as outras e com conhecimento como um
esses valores e atitudes em suas pala- elas próprias no compartilhar e ques- termo amplo que pode incluir
habilidade, verdade, perspectiva
vras, ações e atitudes. tionar sobre a questão do sujeito e suas etc.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


experiências, considerando e refletin- notar que o aprendizado colaborativo
24 NPS 43 | Agosto 2012
do de forma crítica sobre as premissas é uma cultura de aprendizado basea-
e quadros de referência familiares e da na crença e no valor de bondade e
novos. O processo transformativo não nos motivos positivos dos professores
é um aprendizado informacional ou e alunos com relação ao aprendizado.
instrutivo. Como o biólogo e filósofo
chileno Humberto Maturana (1978)
sustenta, não existe interação instru- O DESENVOLVIMENTO DA ABORDAGEM
tiva. Não é possível colocar conheci- DE APRENDIZADO COLABORATIVO
mento na cabeça de outra pessoa. Em
outras palavras, não é possível contro- Nosso interesse na colaboração na
lar o que se espera ou se pensa que o educação de crianças e adultos evoluiu
outro está aprendendo. Cada pessoa através da nossa experiência em focar
traz sua história particular e assim na colaboração em nossas práticas
por diante para o encontro educacio- como psicoterapeutas, como consul-
nal. Isto, entre outras coisas, influen- toras e ministrando treinamento em
cia como cada pessoa (por exemplo, o diversos contextos de treinamento clí-
aluno) irá “ouvir”, “ler” ou vivenciar o nico, universitário e de pós-graduação
material educacional e, logo, cada um (Anderson, 1997; Anderson & Gehart,
terá sua própria interpretação e com- 2007; Anderson & Goolishian, 1988;
preensão. A partir desta perspectiva, Anderson & Swim, 1993; Fernández,
o aprendizado é um processo ativo e London & Rodriguez, 2006). Nossa
generativo no qual o que é aprendi- filosofia de educação é baseada em
do é particular a um aprendiz. Como uma colcha de retalhos de pressupos-
educador e psicólogo da Universidade tos abstratos que formam uma visão
de Harvard, Robert Kegan, sugere “...o global de compreensão dos seres hu-
aprendizado genuinamente transfor- manos como participantes singula-
macional é sempre, em alguma ex- res, ativos e engajados na construção
tensão, uma mudança epistemológica de conhecimento, que tem relevância
e não meramente uma mudança no local e fluidez e que suporta a noção
repertório comportamental ou um de colaboração na educação. Manter
aumento na quantidade ou no estoque a congruência entre nossa filosofia de
de conhecimento” (2000, p. 48). De psicoterapia e nossa filosofia de educa-
forma semelhante à noção de mudan- ção e ser capaz de desempenhá-las de
ça epistemológica proposta por Kegan, forma consistente tem sido de primor-
o educador Jack Mezirow (2000) suge- dial importância para nós. Isto exige
re que é a mudança de hábitos mentais que se seja aquilo que o teórico de sis-
que leva à mudança de referência ou temas de aprendizado Donald Schön
de perspectiva. O aprendizado trans- (1983, 1987) descreve como um pro-
formacional tem implicações que vão fissional reflexivo ou reflexão na ação:
além do próprio contexto educacional. refletir, parar e questionar tanto a teo-
É uma oportunidade de pensar de for- ria quanto a prática para entender os
ma diferente sobre nós mesmos e so- aspectos teóricos subjacentes e descre-
bre os outros e de viver de modo dife- ver a própria prática enquanto ela se
rente em nossos mundos educacional realiza. Fazendo isso, a teoria e a práti-
e pessoal e de propagar as sementes da ca são reciprocamente influenciadas à
oportunidade para mudar nosso mun- medida que o profissional retira disso
do para algo melhor. É importante novos sentidos, e assim torna-se mais

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


ponderado e responsável em relação a mútua/compartilhada, a criação rela- Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 25
seu trabalho. Por sua vez, a teoria e a cional de competência/conhecimen- relacionamentos e conversas
prática continuam se desenvolvendo. to, não saber, ser público, confiar na Harlene Anderson; Sylvia London

Baseado em sua pesquisa sobre como incerteza, transformar mutuamente e


os profissionais aprendem, Schön su- terapia/educação parecidas com a vida
gere que a incorporação da prática re- cotidiana (Consulte Anderson [2007]
flexiva na educação leva a um aprendi- para uma discussão sobre as caracte-
zado mais profundo. Ele ainda sugere rísticas.). Central a esta estância filo-
que o aprendizado autodescoberto e sófica é a noção de relacionamento
autoapropriado ou o aprendizado que colaborativo e conversação generativa
pertence àquele que aprende é o único que envolve intercâmbios dinâmicos
aprendizado que influencia o compor- de duas vias, compartilhamento, en-
tamento de forma significativa.* trelaçamento e tecelagem de ideias,
Os pressupostos filosóficos acima pensamentos, opiniões e sentimen-
mencionados e os desafios que fluem tos através dos quais o novo emerge.
a partir deles contribuem para uma O modo de ser de um educador, por
maneira diferente de pensar sobre exemplo, estabelece o estágio para e
nosso mundo e nossas experiências de convida esses tipos de relacionamen-
mundo e, logo, como conceituamos e tos e conversações.
organizamos nossas práticas educacio-
nais. Tais pressupostos informam uma Relacionamento colaborativo.
filosofia da educação e uma instância
filosófica do educador: uma maneira St. George e Wulff (2011) da Uni-
de ser, referindo-se a uma maneira de versidade de Calgary sugerem que a
se orientar – como abordamos as pes- colaboração implica em uma maneira
soas e as circunstâncias que encontra- de interagir com os outros tal que to-
mos em nossas práticas educacionais dos contribuem de sua(s) forma(s)
e o que fazer com nossas práticas. Isso preferida(s) e uma nova compreensão,
inclui uma forma de pensar em con- ideia ou processo desenvolve-se, o que
junto, estar em relação em conjunto, seria improvável com um ator indivi-
conversar em conjunto, agir em con- dual. O diálogo é tramado, o que sig-
junto e responder em conjunto. A ex- nifica que os comentários e ações es-
pressão em conjunto enfatiza o envol- tão conectados a outros comentários
vimento compartilhado que põe um e ações. A beleza de se colaborar é que
professor e um aluno em uma parceria não há papéis estabelecidos; há uma
conversacional na qual os membros flexibilidade e fluidez que permitem
se conectam, colaboram e criam uns que tanto o líder quanto o seguidor es-
com os outros. A noção de conjunto é tejam em movimento. Na colaboração,
similar à de Hoffman (2007), influen- todos os participantes apreciam a varie-
ciada pelo teórico da crítica russa Mi- dade de ideias e empenham-se em ser
khail Bakhtin, com foco na noção de inclusivos (St. George & Wulff, 2011).
“conjunção”. A estância filosófica e a Para que a colaboração ocorra, deve
noção de conjunto e conjunção su- haver espaço para cada pessoa e suas
gere uma parceria, uma parceria con- vozes; cada uma deve ser bem recebida
versacional. A educação é um tipo de e autorizada a estar presente de forma
* Embora digamos “auto”,
atividade conversacional de parceria. incondicional e a participar integral- temos em mente que as
As características da estância filosófi- mente. A contribuição de cada um deve pessoas são seres relacionais
(Gergen, selves únicos não
ca incluem: engajar-se na investigação ser igualmente reconhecida, apreciada encapsulados).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


e valorizada. Ter uma sensação plena expressos em palavras ou sem palavras.
26 NPS 43 | Agosto 2012
de ser valorizado leva a uma sensação Em outros termos, os participantes não
de pertencimento (por exemplo, à co- presumem que sabem o que o outro
munidade educacional). Uma sensação pretende, não tentam preencher as la-
de pertencimento à comunidade leva a cunas de significados. Por meio desses
uma sensação de participação que, por intercâmbios dialógicos e da investi-
sua vez, leva à contribuição com o pro- gação partilhada, os participantes en-
duto de aprendizado e assim a uma sen- volvem-se em um processo de tentar
sação propriedade e de responsabilidade compreender uns aos outros, por meio
partilhada. Tudo isso se combina para dos quais novos significados, pontos de
promover um aprendizado sustentável. vista e perspectivas (como o aprendiza-
Apenas uma observação: sustentável do) são criados. Novamente, o modo de
não significa que o que é recentemente ser de um educador estabelece o estágio
aprendido permanece estático, mas que para, convida e continuamente supor-
o processo de aprendizado é sustentado ta os relacionamentos colaborativos e
e, portanto, o novo aprendizado conti- conversações dialógicas.
nua a se desenvolver e depois um novo Na educação, a meta do aprendizado
aprendizado pode ocorrer. Esse foco na colaborativo e da conversa generativa é
participação e reconhecimento é visto um aprendizado transformador*. Por
como particularmente fundamental exemplo, o desenvolvimento de novos
para o desenvolvimento das crianças conhecimentos, competências, habili-
– começando com recém-nascidos no dades etc. tem relevância e utilidade para
aprendizado social, de conhecimento além da sala de aula. O processo para al-
e de habilidades (consulte Trevarthen, cançar essa meta tem várias caracterís-
2005 para uma discussão estimulante). ticas. Antes de tudo, aquele designado
como professor deve acreditar e confiar
Conversa dialógica no processo dialógico colaborativo e
deve acreditar e confiar nos seus alunos.
Os termos diálogo ou conversação Se sim, eles agirão de maneira natural
dialógica referem-se a uma forma dinâ- e conversarão de forma coerente com
mica de conversa na qual os participan- a abordagem filosófica do aprendizado
tes envolvem-se uns com os outros (em colaborativo. Em outras palavras, deve-
voz alta) – com ou sem palavras, em rão vivê-lo, ser genuína e naturalmente
uma investigação mútua ou partilhada colaborativos. Isso inclui respeitar, esti-
– conjuntamente examinando, questio- mular e valorizar cada voz a partir do
* Todos os educadores
nando, imaginando, refletindo e assim momento em que se encontram e ao
diriam que sua meta é o por diante sobre o assunto ou a tarefa longo de toda a duração do programa
novo aprendizado. Estamos (como um discurso, conteúdo progra- de aprendizado (por exemplo, um cur-
enfatizando a diferença entre
pensar que um aluno aprende mático, opiniões). O que é apresenta- so, workshop). Isto requer flexibilidade,
o que é dito ou lido da maneira do no diálogo fica sujeito à interação e sensibilidade e capacidade de resposta, e
que é e o pensamento de
que os alunos criam o novo interpretação conjunta, o que implica criatividade para fazer aquilo que a oca-
aprendizado, único para cada um intercâmbio de duas vias e entrela- sião exigir em cada momento. Relacio-
um, a partir de suas interações namentos e aprendizado mais horizon-
e do que escutam e leem.
çamento de ideias, pensamentos, opini-
** É importante, no entanto, ões e sentimentos. Os participantes são tais começam a ser criados,** ao invés
que a diferença não seja tão envolvidos em uma investigação parti- dos relacionamentos professor-aluno e
grande a ponto de abalar
os alunos e estimular o que lhada na qual tentam entender um ao processos de aprendizado hierárquicos
pode ser mal interpretado outro, tentam aprender a singularida- e dualistas, que são geralmente mais fa-
como “comportamentos de
resistência”.
de de sua linguagem, seus significados miliares a educadores e alunos.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


Alunos e professor e alunos e alu- colaborativos em que as necessidades e Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 27
nos desenvolvem conexões nas quais os desejos tanto das instituições como relacionamentos e conversas
o que é aprendido – por exemplo, co- dos aprendizes foram reconhecidos e Harlene Anderson; Sylvia London

nhecimento, habilidades, destrezas – é respondidos e em que os objetivos de


selecionado em conjunto e criado em aprendizado e o modelo de aprendiza-
contraste com a situação de haver um do foram mutuamente construídos (ver
assim chamado conhecedor (por exem- London, St. George, & Wulff, 2009 para
plo, professor) que oferece um conheci- diretrizes para colaboração). A história
mento previamente determinado (por foca no processo de treinamento e não
exemplo, por um professor, instituição em seu conteúdo.
de aprendizado ou por um contexto
maior de aprendizado) àquele (como
o aluno) que não sabe. Isso contrasta PREPARANDO O PALCO PARA AS
com o ensinar e aprender enquanto in- RELAÇÕES COLABORATIVAS E AS
teração instrutiva (já mencionado), em CONVERSAÇÕES DIALÓGICAS: A
que se assume que o conhecimento de HISTÓRIA DE SYLVIA
uma pessoa pode ser transferido para
outra. É importante notar aqui que o Nasci na Cidade do México e cres-
aprendizado em sala de aula sempre ci em comunidade mexicana judaica.
ocorre em múltiplos contextos e gru- Frequentei escolas da Rede de Educa-
pos de interessados, e cada um com sua ção Judaica, fui para a faculdade na Ci-
própria agenda. São respeitados, mas dade do México, completei os estudos
não se tornam camisas de força para a de pós-graduação no exterior, morei
criatividade do professor e do aluno. nos Estados Unidos por oito anos e
O educador colaborativo deseja criar então voltei para o México (20 anos
e facilitar as relações e processos de atrás) para morar e trabalhar. Atual-
aprendizado nas quais os participantes mente dou aulas em universidades
possam identificar, acessar, elaborar e públicas e privadas e em um institu-
produzir suas próprias competências to de formação de pós-graduação que
singulares, cultivando sementes de ino- fundei com colegas. Dou consultas e
vação em suas vidas pessoais e profis- supervisiono terapeutas e psicólogos
sionais, fora do contexto de aprendiza- em escolas, incluindo a Rede de Edu-
do. Querem falar e agir para estimular cação Judaica. A Rede tem 10 escolas,
e encorajar os participantes a se res- variando de Montessori a religiosas.
ponsabilizarem por seu aprendizado e Ela conta com um Conselho de Edu-
serem seus arquitetos. cação composto de representantes do
A seguinte história ilustra a instân- conselho principal de cada escola. O
cia colaborativa de Sylvia quando ela Conselho estabelece políticas e apon-
atenciosamente responde ao convite do ta problemas com relação à qualidade
presidente de uma universidade para da educação, finanças, bolsas de estu-
providenciar um programa de treina- dos, segurança, continuidade da tradi-
mento para professores nas escolas de ção judaica, relações com Israel etc. O
suas redes. O objetivo do presidente era Conselho é uma rede de apoio para as
melhorar as relações entre os profes- escolas e oferece acesso a recursos para
sores e entre eles e a universidade. Ela que possam suprir as necessidades das
ilustra a importância de “preparar o escolas e da comunidade em geral.
palco” para a possibilidade e o estímu- Mas não toma decisões pelas escolas;
lo de relações generativas e processos cada uma é independente.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


UM CONVITE dos professores dentro e fora da sala
28 NPS 43 | Agosto 2012
de aula. Concluímos o encontro com a
Recebi uma ligação da presidente ideia de um projeto piloto de 10 sema-
da Universidade Hebraica solicitando nas para professores de escola secun-
uma consultoria. Ela queria fortalecer dária que apresentaríamos ao Con-
as relações entre a universidade e as selho de Educação da Rede para sua
escolas dentro da Rede e pensou que consideração. Decidimos, provisoria-
oferecer treinamento para os professo- mente, chamar o programa de Habi-
res poderia ser uma boa forma de fazê- lidades Tutoriais para Professores. Este
-lo. A missão da universidade é formar nome nos permitiu abordar o assunto
professores para fornecer educação das habilidades tutoriais, não apenas
de qualidade nas escolas da Rede. A para tutores, mas para qualquer pro-
universidade oferece diplomas de ba- fessor interessado em melhorar suas
charelado e mestrado em educação e habilidades de relação e conversação.
estudos judaicos e fornece educação Era importante usar a palavra “tutor”
continuada para professores por meio para torná-lo coerente com a exigência
de uma variedade de estágios e treina- do Conselho de Educação mexicano.
mentos em diferentes assuntos. Pensamos que a melhor faixa etária
Encontrei-me com a presidente e para dar prosseguimento ao projeto es-
descobri que, além do que ela havia tava na escola secundária, visto que pro-
dito por telefone, ela queria oferecer fessores de escola secundária pareciam
um programa para as escolas da Rede ter a grande necessidade de desenvolver
para capacitar professores a se torna- habilidades de relação e conversação,
rem diretores (chamados tutores no dada à faixa etária com que trabalhavam.
sistema de educação nacional mexica-
no) para atender às exigências de uma
nova iniciativa do Conselho de Educa- RELAÇÕES, RELAÇÕES E RELAÇÕES:
ção mexicano que exige que toda esco- OU UMA CONVERSA LEVA À OUTRA E...
la tenha diretores. O papel do diretor
deve incluir monitorar o desenvolvi- De acordo com a filosofia colabo-
mento das crianças na escola, assim rativa, seria importante apresentar o
como apontar problemas acadêmicos projeto ao conselho como uma pro-
e sociais. A presidente via esta inicia- posta para consideração e simultanea-
tiva como parte da missão da univer- mente receber sugestões com relação
sidade: “Para melhorar a qualidade da às suas necessidades definidas e como
educação dentro da Rede, ajudando os abordá-las melhor. A presidente da
professores a desenvolverem habilida- universidade pensou que o próximo
des de ensino e de relacionamento me- passo deveria ser marcar uma reunião
lhores uns com os outros e com seus com o presidente do conselho e con-
alunos” e para oferecer uma oportuni- versar com ele sobre o projeto, receber
dade de trocar ideias entre professores suas sugestões e decidir a melhor ma-
de escolas diferentes. Depois de saber neira de apresentar a ideia do projeto
um pouco mais sobre seus objetivos, ao conselho e depois aos diretores das
propus um modelo de programa de escolas. Eu conhecia bem o presiden-
treinamento que introduziria a filo- te, já que crescemos juntos e nossos
sofia das práticas colaborativas nas filhos frequentaram a mesma escola.
escolas e que ajudaria a desenvolver as Ele ficou feliz em se encontrar com a
habilidades da conversação e relação presidente da universidade e comigo e

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entusiasmado com a ideia do projeto. filosófica. Por sua vez, eles oferece- Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 29
Agendamos uma reunião na mesma ram o conhecimento, a linguagem e a relacionamentos e conversas
semana e descrevi os detalhes do pro- cultura interna para traduzir as ideias Harlene Anderson; Sylvia London

jeto piloto, cujo objetivo era desenvol- em um projeto adequado às suas or-
ver uma atmosfera amigável e dialógi- ganizações. Estava curiosa e respondi
ca dentro do sistema escolar que iria também com o objetivo de saber mais
apontar a questão: “Como os profis- sobre eles e suas situações. E assim,
sionais podem criar tipos de conversa- eles articularam mais e expandiram o
ções e relações que permitam a todos que estavam me contando. Juntos, nós
os participantes acessar sua força, re- três ajustamos os detalhes da propos-
cursos e criatividade para desenvolver ta e, uma vez em acordo, era chegada
possibilidades que pareciam não exis- a hora de encontrar a linguagem e a
tir antes (Anderson, 1997).” descrição apropriadas para apresentar
A comunidade judaica na Cidade a ideia do projeto piloto aos diretores
do México é unida. Conheci o presi- da Rede, tendo em mente que havia si-
dente do conselho por meio das mi- milaridades e diferenças entre as esco-
nhas atividades comunitárias e de ou- las, suas culturas e necessidades e que
tros trabalhos de consultoria em várias a participação no projeto seria volun-
escolas. Quando nos encontramos tária. Decidimos apresentar o projeto
com o presidente, ele foi bastante re- e usamos o título “Projeto Mensch”, do
ceptivo e ficou imediatamente curioso iídiche, que significa “pessoa íntegra,
sobre a abordagem colaborativa e quis decente”. A ideia de usar uma pala-
saber mais detalhes a respeito, minha vra em iídiche e sua ênfase em ser um
história pessoal com essas ideias e de bom ser humano e aprender boas ma-
que maneira trabalhei com elas no neiras poderia ajudar a deixar de lado
ambiente educacional e em outros as diferenças entre as escolas e enfati-
ambientes. Passamos algum tempo zar seus objetivos comuns em educar
trocando ideias em uma vívida con- cidadãos bons e responsáveis dentro
versa, na qual compartilhei a estância da tradição judaica. O presidente do
filosófica e minha experiência com a conselho sugeriu que eu apresentas-
aplicação de práticas colaborativas na se a proposta do projeto no próximo
terapia e na educação. Ele fez muitas Conselho da Rede que estava marcado
perguntas a respeito da aplicação des- para a semana seguinte. A agenda da
sas ideias no desenvolvimento de ha- reunião estava cheia, mas o presidente
bilidades de relação e de conversação pôde ceder 15 minutos para apresen-
para a equipe escolar e as mudanças tar o projeto.
que eu previa na qualidade da educa-
ção, no ambiente de sala da aula e na
administração. A proposta fez sentido AS PERSONAGENS:
para ele e ele queria apresentar o pro- RELAÇÕES NOVAMENTE
jeto logo que possível para o Conselho
de Educação da Rede. Dado o tempo reduzido, o fato
Nossa conversa foi muito colabo- de que a apresentação do projeto foi
rativa, com cada pessoa contribuindo adicionada à agenda no último mi-
com ela de sua perspectiva e área de nuto, e mantendo minha crença na
habilidade. Meu papel na conversa foi importância das conversações e das
apresentar o conteúdo do programa, relações para desenvolver confiança e
incluindo a metodologia e a estância intimidade, decidi chegar mais cedo à

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reunião, esperando ter a oportunida- e-mail e, inclusive, perguntas e comen-
30 NPS 43 | Agosto 2012
de de conversar com os membros do tários adicionais. Eles queriam mais
Conselho quando eles chegassem. Eu detalhes sobre o programa, incluindo a
não era uma estranha para a maioria filosofia, metodologia de ensino e con-
das pessoas que iria encontrar, já havia teúdo. Eles também queriam orienta-
tido contato com alguns dos diretores, ção sobre como escolher professores
com os quais havia estudado e traba- candidatos adequados para o progra-
lhado na comunidade, alguns conhe- ma. Fiz uma visita às escolas que me
ciam meu trabalho porque eu tinha solicitaram e conversei com o diretor
sido consultora em algumas escolas, e e alguns dos professores de cada uma.
outros eu não conhecia. Os diretores Pedi sugestões e atendi às perguntas e
que eu conhecia estavam muito curio- preocupações. Estar disponível para
sos sobre minha presença na reunião. reuniões nas escolas e conversar com
Começamos conversas informais sobre eles foi um elemento importante na
mudanças em nossas vidas pessoais construção de relações com confiança,
e pessoas que tínhamos em comum, respeito e segurança.
ou seja, agimos da forma como se age Começamos o programa de treina-
com pessoas que conhecemos, ou seja, mento um mês depois; incluía 18 pro-
falamos sobre amenidades. Esse bate- fessores de oito escolas que decidiram
-papo informal criou um ambiente participar. O grupo estava agendado
relaxado e amigável, e lentamente o para se encontrar em sessões de duas
restante dos membros se juntou e as horas por dez semanas na universidade.
pessoas que eu conhecia me apresen-
taram aos membros do Conselho que
eu não conhecia. Na hora de apresen- A CRIAÇÃO DA NOSSA COMUNIDADE
tar a proposta, senti-me confortável e DE APRENDIZADO COLABORATIVO
o grupo estava curioso e aberto a ou-
vir as ideias. O presidente do conselho De acordo com meus anos de expe-
me apresentou, falou sobre o projeto e riências lecionando em universidades,
seu interesse nele, então mostrou uma era importante para mim começar a
breve apresentação deixando alguns primeira sessão de treinamento forne-
minutos para perguntas e comentá- cendo o horário e o local para encon-
rios. Os diretores gostaram da ideia trar cada participante, como um ser
do projeto e acharam que suas escolas humano único, e para que eles se co-
precisavam disso. No fim da reunião, nhecessem, criando uma comunidade
ofereci-me para encontrar cada dire- de aprendizado colaborativo (Ander-
tor e sua equipe (em suas escolas) para son, 1997). Tomar algum tempo para o
conversar sobre o programa, ouvir suas que chamamos de introduções conver-
necessidades e incorporar suas habili- sacionais ou narrativas faz com que se
dades únicas e valiosas de anos de ex- reconheça a importância de cada par-
periência trabalhando com professores ticipante e não se toma por certo que
no conteúdo e modelo do programa. os membros, apesar de suas histórias
conjuntas, “conhecem” um ao outro.
Cada membro está se apresentando em
A RESPOSTA um novo contexto, cheio de oportuni-
dades de ser conhecido de um modo
Suas respostas ao meu convite che- diferente e conhecer os outros de um
garam no dia seguinte por telefone e modo diferente. Criando o contexto

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em que é possível vivenciar a possibi- incluir sua voz, expressar suas ideias, Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 31
lidade de “conhecer o familiar de outra conhecimento e habilidades bem como relacionamentos e conversas
maneira”. Eu usava um exercício que agendas pessoais, objetivos de aprendi- Harlene Anderson; Sylvia London

começava com três perguntas: Qual o zado e estilos.


seu nome, qual a história do seu nome A partir da perspectiva da prática
e como você quer ser chamado neste colaborativa, o aprendizado acontece
grupo? Esse exercício convidava os par- dentro e fora da sala de aula. Em outras
ticipantes a se apresentarem por meio palavras, o aprendizado em sala de aula
de histórias pessoais que os conectavam é um trampolim ou um convite para
a suas famílias e experiências. No final, continuar o processo de aprendizado,
eles tinham compartilhado e discutido tornando-se um aprendiz reflexivo
suas experiências e eu compartilhado fora da sala de aula, assim como é im-
minhas razões para começar o grupo portante para aquele designado como
com isso. Mais tarde no treinamento, treinador ou professor ajudar a facilitar
discutiríamos as maneiras de eles le- a continuação do aprendizado fora da
varem o conceito do exercício para as sala de aula. Os participantes e eu dis-
salas de aula. Eu segui com um segundo cutimos esse conceito e desenvolvemos
exercício que focava nos objetivos dos a ideia de escrever uma crônica sema-
participantes e estilos de aprendizado e nal no fim de cada sessão. A cada ses-
incluía o seguinte: O que você acha que são um professor designado criaria um
precisa acontecer na formação durante documento escrito resumindo o apren-
nossos dez encontros que faria seu in- dizado juntamente com as reflexões
vestimento em tempo, dinheiro e esfor- deles sobre suas experiências da sessão
ço valer a pena? e ele ou ela compartilhariam isso com
A segunda pergunta era sobre seus o restante do grupo entre as sessões via
estilos de aprendizado e preferências e-mail. Os membros do grupo eram
por formatos de aprendizado. Eles dis- encorajados a responder com comentá-
cutiram essas duas perguntas em três rios, perguntas etc. sobre os documen-
pequenos grupos e, então, cada um tos e reflexões do outro. Essas reflexões
contou os pontos principais de sua con- convidariam os professores a refletir
versa e resumiu seus objetivos e estilos sobre seu aprendizado e a criar inte-
de aprendizado. Depois formamos um rações e conexões uns com os outros.
grupo de discussão sobre os objetivos Eu me ofereci para escrever a primeira
compartilhados e as implicações das crônica para começar o processo e tam-
diferenças a respeito de preferências e bém como um exemplo de uma descri-
estilos de aprendizado. Também com- ção e reflexão que eu esperava que fosse
paramos as experiências nos dois exer- encorajar respostas do grupo. Houve
cícios, de conversar em grupos grandes muito entusiasmo e participação neste
e pequenos e a dificuldade de reportar primeiro encontro: nossa comunida-
e reproduzir o conteúdo das conversas de de aprendizado tinha começado e o
em grupos pequenos. No fim do pri- palco e o tom foram definidos para o
meiro encontro tínhamos desenvolvido restante do treinamento.
o início de uma comunidade de apren-
dizado e contextos de aprendizado e
havíamos começado a conversar sobre A EXPERIÊNCIA
possíveis maneiras de levar os concei-
tos e exercícios para suas salas de aula. Os professores começaram o pro-
Cada professor teve a oportunidade de grama com hesitação, reunindo-se às

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16 horas depois de um dia cheio de Eu queria usar uma ferramenta de
32 NPS 43 | Agosto 2012
avaliação que ajudasse os professores
aulas com nenhum intervalo e pouco
tempo para o almoço. Não eram as a terem consciência de suas forças e
melhores condições para o aprendiza- talentos e que os ajudasse a encon-
do. Depois da primeira reunião, todos trar meios de usá-los em seu trabalho
pareciam empenhados e dispostos a como professores e aprendizes, bem
participar do programa. Eles acharam como criar uma cultura de apreciação
o conteúdo desafiador, mas potencial- e possibilidades. O questionário VIA
mente útil para resolver seus dilemas Signature Strength desenvolvido por
diários. Fazer parte de uma comuni- Seligman e Peterson e disponível on-
dade de aprendizado ativo, ser capaz line (www.authentichappiness.com)
de falar sobre seus dilemas e escutar atendia aos critérios. Eles preenche-
ram o questionário de pesquisa entre
os outros proporcionou um ambiente
a primeira e a segunda sessões e iriam
seguro para compartilhar e perguntar.
retomá-lo entre a nona e a décima.
Exercícios experimentais, entrevistas
Os professores trouxeram os resulta-
e processos reflexivos forneceram um
dos da pesquisa na segunda sessão. As
laboratório interessante para avaliar e
informações foram usadas para falar
praticar sua maneira de ensinar e ha-
sobre os pontos fortes e possibilidades
bilidades de relação. individuais e em grupo. Também criei
exercícios por meio dos quais eles pu-
deram praticar a melhoria de seus pon-
AVALIAÇÃO E APRECIAÇÃO tos fortes em sala de aula. A experiência
do questionário e os exercício nos aju-
Como mencionado antes, o pro- daram a criar uma cultura e uma lin-
grama foi planejado como um projeto guagem baseada nos pontos fortes. Os
piloto e precisávamos avaliar sua apli- professores foram encorajados a levar
cabilidade em outras escolas da Rede. a cultura dos pontos fortes para o seu
A questão básica que direcionou nos- ambiente de ensino e a olhar para os
so trabalho e os objetivos do curso foi seus alunos por meio dessas lentes. No
adaptada a partir da fala de Anderson final de nossas dez semanas de treina-
(1997): mento as informações produzidas no
pós-questionário nos permitiu avaliar
Como os profissionais podem criar tipos as possibilidades de mudança, já que
de conversações e relações que permitam estavam relacionadas às perguntas bási-
a todos os participantes da comunidade cas que direcionaram nossa experiência
escolar acessar sua criatividade, forças e de aprendizado. A seguir encontra-se a
recursos para desenvolver possibilidades comparação dos resultados médios do
onde pareciam não existir antes? grupo, listados em ordem decrescente
de frequência de pontos fortes:
Resultados do questionário:

Pré-questionário Pós-questionário
Curiosidade Criatividade
Valorização da beleza e excelência Curiosidade e senso de humor
Justiça e equidade Trabalho em equipe
Persistência Otimismo e esperança
Gratidão e senso de humor Gratidão

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Podemos apreciar algumas dife- para casa nos seus relacionamentos Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 33
renças ao comparar os resultados dos com os membros da família e então relacionamentos e conversas
pontos fortes do grupo entre os mo- experimentá-los em sala de aula. Dis- Harlene Anderson; Sylvia London

mentos anteriores e posteriores à pes- seram que este não era um programa
quisa. Na pós-pesquisa, vemos que o para aprender habilidades tutoriais,
primeiro ponto forte é a criatividade, mas um programa que os treinava a
e também encontramos trabalho em mudar suas vidas, especialmente as
equipe e esperança, três pontos fortes maneiras de pensar sobre si mesmos,
que não estão presentes na pré-pesqui- seus papéis como professores e seus
sa. Podemos presumir que as mudan- alunos. Eles disseram que recomen-
ças que encontramos no grupo podem dariam este programa para qualquer
ser um resultado do programa de trei- pessoa interessada em melhorar suas
namento, já que parecem representar o relações e fazer um mundo melhor.
conteúdo e o espírito da estância filo- Por outro lado, eles sentiram que o
sófica conforme expressa na pergunta programa era curto demais e não ofe-
básica, embora os próprios professores recia tempo suficiente para praticar a
fossem responsáveis por “explicar” as aplicação das ideias e habilidades. Eles
diferenças. ainda não se sentiam prontos e con-
fiantes para levar as ideias para sala de
aula e compartilhá-las com os colegas.
COMENTÁRIOS DOS PARTICIPANTES Valorizaram a oportunidade de traba-
lhar com professores de outras escolas
• Questionário exigido pela Uni- e perceberam que compartilhavam de-
versidade. Além da avaliação dos safios e dilemas similares. Apreciaram
pontos fortes, a universidade a riqueza dos processos reflexivos e as
também tinha um questionário possibilidades de olhar de várias ma-
padrão que usava para avaliar to- neiras para resolver problemas e valo-
dos os seus programas. Incluía as rizar diversas perspectivas.
seguintes perguntas: O que você Em resposta ao questionário da
valoriza na nossa formação? universidade, os professores decidiram
• O que você aprendeu? escrever uma carta conjunta endereça-
• Como você planeja implementar o da às suas instituições, na qual fizeram
aprendizado em sua vida pessoal e comentários e sugestões em relação a
profissional? o que precisava haver na escola para
• O que você aplicou até agora? que fossem capazes de colocar os
• Para quem você recomendou esta processos de relações colaborativas e
formação e o que você diria ao aprendizado generativo em ação na
recomendá-la? escola em geral e, em particular, com
• Que recomendações você tem para suas relações com seus alunos. Duas
a instituição onde você trabalha? escolas entraram em contato comigo
• O que você sugere para melhorar depois de concluído o treinamento
este programa? e pediram-me para oferecer este tipo
de formação para toda a equipe edu-
Resumo das respostas do questio- cacional deles. Os membros do grupo
nário da Universidade. Os professo- também me contataram no início do
res comentaram que era mais fácil ano letivo seguinte pedindo por um
primeiro levar o aprendizado para curso de reciclagem. Encontramo-nos
suas vidas pessoais, principalmente e revisitamos as ideias apresentadas no

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


curso, discutimos como os membros visíveis ou importantes, mas, ao longo
34 NPS 43 | Agosto 2012
estavam colocando o aprendizado prazo, elas têm a possibilidade de in-
em ação e desenvolvemos ideias para fluenciar a cultura da escola. Tenho a
aplicar ainda mais seu aprendizado no satisfação de informar que nos quatro
novo ano letivo. anos, desde o projeto piloto, imple-
Como resposta à avaliação e ao su- mentei o treinamento aqui descrito,
cesso do primeiro grupo, a universi- ou similar, em 17 escolas e organiza-
dade decidiu organizar um segundo ções. Trabalhei com aproximadamente
grupo com o mesmo formato e con- 1.500 professores nos setores público e
teúdo para o semestre seguinte. Desta privado no México. O programa con-
vez o grupo estava composto por uma tinua sendo muito importante para
mistura de professores de escolas se- mim e continuo explorando maneiras
cundárias e primárias. Começamos o de melhorar a qualidade das conversas
programa de treinamento com o mes- e relações dentro e fora das salas de
mo conteúdo e os mesmos exercícios. aula.
A natureza do grupo e as característi-
cas individuais dos participantes cria-
ram um ambiente e uma comunidade REFLEXÕES DE HARLENE SOBRE
de aprendizado diferentes. Este grupo A HISTÓRIA DE SYLVIA
estava bastante interessado em apren-
der e praticar processos reflexivos Eu já ouvi Sylvia contar essa história
e no modelo de equipes de reflexão. antes, mas toda vez, como nesta leitu-
Seguindo suas iniciativas, no fim das ra, ouço como se fosse a primeira vez.
dez semanas, a universidade organi- Toda história contada apresenta dife-
zou um grupo de consultoria duas renças sutis ao ser narrada, e o con-
vezes por semana para oferecer um texto e os ouvintes da narração da his-
espaço de consulta para professores tória são geralmente diferentes. Esta
interessados. habilidade de ouvir e ver como se fosse
a primeira vez é fundamental para as
práticas colaborativas: a habilidade de
OBSERVAÇÕES REFLEXIVAS não saber antes do tempo e ser capaz
de ver e ouvir o familiar com novos
Eu estava muito empolgada com a olhos e ouvidos requer o mesmo inte-
possibilidade de levar ideias e práticas resse genuíno na nova narração como
colaborativas para o sistema escolar se fosse a primeira. Na história de Syl-
e para trabalhar com os professores. via, embora fosse familiarizada com
O treinamento com os dois grupos a Rede, suas escolas e seus membros,
proporcionou-me a experiência e a ela abordou a situação de modo novo.
compreensão de que é possível fazer Claro, a experiência anterior com os
mudanças significativas no ambiente sistemas e seus membros a influen-
escolar ajudando os professores a con- ciou, mas seu conhecimento prévio
siderar e mudar o valor que eles con- (que já está lá) não determinou suas
ferem a si mesmos e a maneira que se palavras e ações. Assim como eu ouvia
relacionam uns com os outros e com sua história como se fosse a primeira
os alunos em sala de aula. As mudan- vez, ela foi capaz de encontrá-los e fi-
ças acontecem nos tipos de relações e car curiosa e saber as necessidades e
conversas que eles promovem em inte- expectativas dos membros como na
rações diárias e não parecem ser muito primeira vez.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


Embora um título da história seja Anderson, H., & Gehart, D. (2007). Aprendizado colaborativo: ensino
de professores por meio de 35
“preparando o palco”, preparando não Collaborative therapy: Relationships relacionamentos e conversas
se refere a planejar como em planejar and conversations that make a diffe- Harlene Anderson; Sylvia London

uma estrutura ou etapas antes do tem- rence. New York: Routledge/Taylor


po. Preparando refere-se a estar pronto and Francis Group.
para ver toda e qualquer situação como Anderson, H., & Goolishian, H. (1991).
algo novo, com o qual você nunca se de- Supervision as collaborative con-
parou ou vivenciou antes e estar pronto versation: questions and reflections.
para responder a ele de modo espontâ- In: H. Brandau (Ed.). Von der super-
neo. Estar pronto também é ser capaz de vision zurystemischen vision. Salz-
estar aberto a, estimulado a, apreciador burg: Otto Muller Verlag.
de e ser capaz de trabalhar com o co- Anderson, H., & London, S. (2011)
nhecimento local da outra pessoa – sua “Undervisning som kollaborativ
sabedoria, costumes, linguagem etc. A læring – Lærere, der lærergennem
história de Sylvia ilustra a natureza fun- relationer og samtaler”. Kognition
damental do conhecimento local e sua og pedagogik nr. 81, AKT og inklu-
importância para estimular um sentido sion. Dansk Psykologisk Forlag.
de pertencimento, participação, cria- Anderson, H., & Swim, S. (1993). Lear-
ção e propriedade do que é produzido ning as collaborative conversation:
e como é produzido. Como sempre, ela Combining the student’s and the
tinha em mente, como nesse caso, que o teacher’s expertise. Human systems:
conhecimento local não é estático. Evo- The journal of systemic consultation
lui continuamente. and management, 4, 145-160.
Quando ela começou a consultoria/ Anderson, H. (1998). Collaborative le-
formação, não fazia ideia de para onde arning communities. In: S. McNa-
isso iria. Ela estava aberta a aceitar o mee, & K. J. Gergen (Eds.). Relatio-
lugar para onde as relações e conversas nal responsibility. Sage Publications:
levariam ela e o participante, confian- Newbury Park, CA.
do na inerente incerteza do processo Anderson, H. (2000). Supervision as a
colaborativo. Assim como eu comecei collaborative learning community.
a digitar em Houston e Sylvia come- American Association for Marria-
çou a digitar no México quando co- ge and Family Therapy Supervision
meçamos a escrever este artigo sobre Bulletin, 2000, 7-10.
nosso trabalho com escolas, não tí- Anderson, H. (2009). Collaborative
nhamos nenhuma ideia de para onde practice: Relationships and conver-
nossa jornada colaborativa nos levaria. sations that make a difference. In: J.
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ning: Theory, research and practice. Gulness, Trans.).London: Routledge
Needham Heights: Allyn and Bacon. and Kegan Paul. (Trabalho original
Smith, B. L., & MacGregor, J. T. (1992) publicado em 1922.)
What is collaborative learning?”

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 22-37, ago. 2012.


ARTIGO

“SE NÃO PERGUNTAR, ELE NÃO VAI FALAR”:


REFLEXÕES SOBRE CONVERSAS COLABORATIVAS
EM UM ATENDIMENTO DE FAMÍLIA COM CRIANÇAS
“IF YOU DON’T ASK, HE WON’T TALK”: REFLECTIONS ABOUT
COLLABORATIVE CONVERSATIONS IN FAMILY THERAPY WITH CHILDREN
LILIAN DE ALMEIDA
GUIMARÃES
Psicóloga clínica, terapeuta RESUMO: Este artigo apresenta as reflexões ABSTRACT: This article presents the theoretical
individual, de casal e família. teórico-clínicas de um atendimento de família clinical reflections about a family with child at-
Mestre em Psicologia pela USP com criança, realizado no curso de formação de tendance, held at the training course for Family
– Ribeirão Preto. Terapia de Casal e Família de um instituto situa- and Couple Therapy Institute located in the Sta-
Docente da Universidade de do no interior do estado de São Paulo. Baseadas te of São Paulo in Brazil. Based on theoretical
Ribeirão Preto – UNAERP. nos aportes teóricos do construcionismo social, contributions of social constructionism, the au-
E-mail: as autoras têm como objetivo estudar um único thors aim to study a single meeting which was
liliandealmeidaguimaraes@ encontro no qual participaram mãe e filho para: a) attended by mother and child to: a) understand
yahoo.com.br compreender o processo conversacional que se the conversational process which has been es-
estabeleceu e possibilitou a construção de novas tablished and enabled the construction of new
descrições de si e do problema, entre os partici- descriptions of themselves and of the problem,
SANDRA APARECIDA pantes e b) dar visibilidade a como este processo among participants and b) give visibility to what
DE LIMA aconteceu, pontuando a produção de sentidos e happened, punctuating the production of senses
novas narrativas no decorrer das conversações and new narratives in the course of the conver-
Psicóloga clínica, terapeuta
individual, de casal e família.
terapêuticas. A equipe reflexiva será também fo- sational process. The Reflecting Team will also
Especialista em Psicologia cada como recurso útil e criativo para a mudança be focused as useful and creative resource for
Escolar/Educacional. Psicóloga nas conversações terapêuticas que envolvem the change in therapeutic conversations that in-
Infantil na Prefeitura Municipal crianças. volve children.
de Ribeirão Preto.
E-mail: sanlima2001 PALAVRAS-CHAVE: construcionismo social, KEYWORDS: social constructionism, conversa-
@hotmail.com processo conversacional, equipe reflexiva, tera- tional process, reflecting team, family therapy.
pia de família.

ADRIANA BELLODI COSTA


CÉSAR
Psicóloga clínica, terapeuta Durante um curso de formação em terapia de casal e família, fomos convidadas a
individual, de casal e família;
sócia efetiva do Instituto compreender a psicoterapia como um processo conversacional entre pessoas que
Familiae e docente do Instituto estão envolvidas na busca conjunta de mudanças. Tendo a relação terapeuta/clien-
Familiae – unidade de Ribeirão tes como foco, passamos a revisitar e refletir sobre nossos discursos a respeito do
Preto.
processo terapêutico informado por uma concepção tradicional de ciência, o que
E-mail: adrianabellodi@
unimedjaboticabal.com.br muito contribuiu para a construção de uma nova maneira de pensar a clínica em
Psicologia: o terapeuta como coconstrutor da mudança e o cliente como especia-
lista de sua própria história.
Recebido em 14/03/2012.
Durante o curso*, fomos apresentadas ao construcionismo social, um movi-
Aprovado em 23/04/2012.
mento surgido em meados do século XX, que marcou uma mudança no campo
das ciências humanas (especificamente na psicologia social), o qual enfoca as prá-
ticas sociais como práticas discursivas.
* Trata-se do curso de O construcionismo social, ao afirmar que o significado é gerado nas relações,
formação em Terapia de Casal aponta para a impossibilidade de responder à questão realista sobre os mundos
e Família do Instituto Familiae /
unidade de Ribeirão Preto.
interno e externo, ocorrendo um deslocamento da compreensão de um mundo
interior, individual, para uma com- 4. A valorização de uma postura “Se não perguntar, ele
não vai falar” 39
preensão das produções discursivas crítica e reflexiva sobre nossas
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
(Rasera & Japur, 2007). Disso decorre formas de descrever o mundo: o de Lima e Adriana Bellodi Costa César

que as palavras não têm um significa- conhecimento dependente das


do intrínseco, mas um que emerge de condições sócio-históricas em que
consensos negociados dentro de uma surge. Sobre este aspecto, Gergen e
comunidade linguística em momentos Gergen (2010) dizem que o Cons-
e contextos específicos. Rasera e Japur trucionismo Social “nos exime
(2007) buscam delinear um conjunto da tarefa de decidir qual tradi-
de ideias que entendem como consen- ção, conjunto de valores, religião,
suais entre teóricos do Construcionis- quais ideologias políticas ou qual
mo Social, quais sejam: ética é a derradeira, transcenden-
1. A especificidade cultural e histó- temente Verdadeira ou Correta”
rica das formas de conhecermos (p. 31). Desde esta posição, somos
o mundo. Afirmam que “para os convidados a adotar uma postura
construcionistas, as descrições do de curiosidade e de respeito para
mundo não guardam correspon- com tradições que são diferentes
dência com a realidade situada das nossas.
para além da forma de dizê-la,
mas são elas próprias maneiras de Tais ideias têm uma implicação fun-
construção da realidade. Assim, a damental na forma como passamos a
linguagem não reflete o mundo, compreender o conceito de lingua-
mas o constrói a todo momento” gem. De um papel representacional da
(p. 22). realidade (como é entendida no para-
Sob esse enfoque, a linguagem digma tradicional da ciência) desloca-
deixa de ser entendida como um -se para um lugar de centralidade na
meio para representar a realidade e produção de sentidos: as descrições
passa a ser considerada um instru- que produzimos sobre nós e sobre o
mento “para fazer coisas” (Ibañez- mundo são linguisticamente constru-
-Gracia, 2004). Para esse autor: “A ídas nas relações, historicamente data-
linguagem não só “faz pensamen- das e contextualmente situadas. As pes-
to” como também “faz realidades” soas estão a todo instante, dialogando
(p. 33). com um “outro” presencialmente e/
2. A primazia dos relacionamentos ou com “vozes” que representam ou-
humanos na produção e sustenta- tras construções linguísticas de outros
ção do conhecimento. Dessa for- momentos. As histórias são criadas
ma, o significado das palavras é e compartilhadas por indivíduos em
decorrente de seu uso social e de diálogo com o(s) outro(s) e consigo
como são utilizadas nos relaciona- mesmos (Anderson, 2001).�������Em ou-
mentos existentes. tras palavras, a compreensão de si e
3. A ligação entre conhecimento e de mundo está sempre permeada por
ação. Diferentes formas de des- conversas construídas e reconstruídas,
crever o mundo implicam em ou sendo transformada através de in-
diferentes formas de ação social. terações contínuas em relacionamen-
Segundo Gergen e Gergen (2010) tos (Anderson, 2001). E é desta forma
as palavras “não são imagens no também que aceitamos compreender
mundo, mas ações práticas no o contexto terapêutico: um espaço
mundo” (p. 25). dialógico de conversa, que possibilita

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


o desenvolvimento de novos signifi- Enquanto os primeiros conversam
40 NPS 43 | Agosto 2012
cados, a construção compartilhada de diretamente com os clientes, os ou-
outras descrições para os sofrimentos tros terapeutas da equipe participam
trazidos pelos clientes, assim como a do atendimento silenciosamente, o
coconstrução da mudança. que permite a reflexão sobre aquilo
que está sendo dialogado. A determi-
1. TERAPIA: UMA CONSTRUÇÃO QUE nada altura da sessão, à equipe refle-
ENVOLVE MUITOS INTERLOCUTORES xiva será dada a oportunidade (pelos
TEÓRICO-CLÍNICOS terapeutas de campo) de expressar o
que pensou, refletiu e sentiu enquanto
Ao pensarmos o processo terapêuti- escutava numa postura respeitosa e de
co como um processo conversacional não julgamento. Terapeutas de cam-
que oferece mudança, estamos con- po e família ouvem então – também
siderando as ideias construcionistas silenciosamente – essas falas e depois
sumarizadas anteriormente. Gergen e poderão conversar sobre o que ouvi-
Gergen (2010) propõem que pense- ram. Esse círculo virtuoso de escuta
mos o construcionismo social “como e reflexão contribui substancialmente
sendo ‘um guarda-chuva sob o qual se para a ampliação de significados sobre
encontram abrigadas todas as tradi- o problema e sobre as pessoas que dele
ções de significado e de ação”. participam.
Aprendemos em nossa formação Além do uso da Equipe Reflexiva,
teórico-prática que esse guarda-chu- experimentamos, não só nos atendi-
va, entendido como metáfora, nos mentos mas durante todo o processo
possibilitou ampliar o entendimento de formação, uma maneira de estar-
dos conceitos de verdade e realidade mos nas relações, fundada na aceita-
como discursos produzidos por de- ção incondicional, na legitimação do
terminadas comunidades linguísticas outro em sua singularidade, e na es-
que geram significados locais duráveis cuta curiosa e despida de julgamentos
no tempo (Rasera & Japur, 2007). Aos sobre aquilo que nossos interlocutores
poucos desenvolvíamos novas postu- desejam nos comunicar. Entendemos
ras de curiosidade e reflexividade, uti- esses princípios em seu conjunto,
lizando os próprios recursos enquanto como um “tom” que pretende comu-
terapeutas, porém mais atentas aos nicar ao outro a possibilidade de ser
contextos e às conversações que pa- único, reconhecido em seus próprios
recessem úteis para o momento. Isto termos, e o que diz merece ser legiti-
parecia-nos desafiador para engajar- mado. De acordo com Harlene Ander-
mo-nos no processo terapêutico para son (2003), este posicionamento nas
o qual estávamos sendo preparadas. conversações assemelha-se mais a uma
Nosso formato de atendimento postura filosófica de estar nas relações,
clínico é baseado nos processos re- do que propriamente a uma técnica de
flexivos de Tom Andersen (2002). A atendimento. Segundo a autora, esta
Equipe Reflexiva é uma ferramenta postura produz uma forma autêntica
conversacional, oferecida por esse au- e natural de colaboração e construção
tor, bastante valiosa para os contextos com o outro; uma forma genuína de
de conversações terapêuticas. Assim, a conexão.
família é atendida por uma equipe de Outra ferramenta teórico-prática
terapeutas que se compõe entre tera- adotada pela docência e experimenta-
peutas de campo e a equipe reflexiva. da por nós é a “posição do não saber”

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


(Anderson & Goolishian, 2007), onde tores citados, convida a uma relação “Se não perguntar, ele
não vai falar” 41
o cliente é considerado “o especialis- terapêutica mais participativa e cola-
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
ta”. Essa posição se apoia na impos- borativa, e menos hierárquica e dua- de Lima e Adriana Bellodi Costa César

sibilidade de o terapeuta dirigir ou lista, de acordo com o que entende-


decidir sobre os resultados do atendi- mos por conversações colaborativas,
mento, ancorado em uma postura que como proposto por Anderson (2009).
leve em conta a aceitação incondicio- Foi esse mesmo formato que nos fas-
nal e uma escuta curiosa daquilo que cinou enquanto aprendíamos a olhar
ouve. A mudança, portanto, é cons- para o processo terapêutico como um
truída e negociada entre terapeuta e processo conversacional que propicia
cliente. mudança.
Os aportes teórico-práticos de A partir das ideias desenvolvidas até
White e Epston (1993), ainda que não este momento, pretendemos, no pre-
guardem necessariamente um com- sente artigo, estudar uma única sessão
promisso com os pressupostos centrais do atendimento de uma família na
do Construcionismo Social (Vicente et qual participaram mãe e filho para: a)
al, 2008), são outra importante fonte compreender o processo conversacio-
de inspiração para as práticas de aten- nal que se estabeleceu e possibilitou a
dimento no instituto. construção de novas descrições de si e
Fomos convidadas a dar especial do problema, entre os participantes e
atenção para a construção de nar- b) dar visibilidade a como este proces-
rativas, como opção discursiva para so aconteceu e o que fez a diferença.
a compreensão da história dos so-
frimentos apresentados por nossos
clientes. Ampliando diálogos com per- 2. O CONTEXTO DE ESTUDO
guntas que desafiam a narrativa domi-
nante sobre o problema, aprendemos Como parte do programa para a
que o surgimento de novas narrativas e conclusão de nossa formação, fomos
novos significados que geram a disso- levadas a escolher um atendimento do
lução do problema (Anderson & Go- qual havíamos participado e que nos
olishian, 1991) é possível por meio da mobilizasse uma reflexão teórico-clíni-
identificação ou geração de histórias ca, como pretendemos relatar a seguir.
alternativas. E, para isso, perguntas são Ao finalizarmos a primeira sessão
feitas para “gerar experiência ao invés com a família, na qual participaram
de obter informações” (Grandesso, uma jovem mãe e seu filho de seis
2000). Assim, fomos apresentadas às anos, ficamos insatisfeitas, enquanto
ferramentas conversacionais desenvol- terapeutas de campo, com aquilo que
vidas por White e Epston (1993), para desejávamos produzir nesse primeiro
quem o enfoque narrativo privilegia encontro, a saber: conversar com a
um estilo particular de conversação, criança e dar-lhe voz, escutar a mãe em
conforme diz Grandesso (2000): “Ex- suas múltiplas preocupações com o fi-
ternalizadora (conforme objetiva o lho e gerar conversas que ampliassem
problema, separando-o da pessoa) e os sentidos sobre problema. Contudo,
desconstrutiva (uma vez que favorece nos surpreendemos na segunda ses-
o questionamento das narrativas tidas são, com uma narrativa de mudança
como certas) (p. 107).” principalmente sobre a criança e isto
Esta forma de facilitar conversa- nos fez perguntar: o que havia sido
ções, permeada pelas ideias dos au- produzido naquele primeiro encon-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


tro? Seria possível alguma mudança Na primeira sessão, compareceram
42 NPS 43 | Agosto 2012
ter sido construída desde o primeiro e a mãe (Kelly, 23 anos) e o filho (Pau-
único atendimento até então? lo, 6 anos). Fomos informadas nessa
Para tentarmos responder a essas sessão que o pai (Ricardo, 26 anos)
indagações, inicialmente assistimos à estava internado em uma clínica de
primeira sessão gravada em áudio e reabilitação de drogadição e prestes
vídeo de uma perspectiva crítica co- a receber alta do tratamento; a filha
nosco, como se não tivéssemos “acer- (Luana, 2 anos) havia ficado com os
tado”. Naquele momento, nosso olhar avós maternos.
estava preso às noções de “verdade A família foi encaminhada devido
única” e do terapeuta como “o espe- a certos comportamentos de Paulo,
cialista e responsável pela mudança”, causadores de grandes desconfortos:
isto é, guardávamos ainda uma com- encoprese, enurese noturna e agressi-
preensão dentro da tradição individu- vidade, principalmente dirigida a ou-
alista de produção de conhecimento. tras crianças.
Partimos, então, para a transcrição A equipe de atendimento era com-
desse primeiro atendimento e fomos, posta por duas das autoras, como
aos poucos, deixando de olhar para Equipe de Campo; a Equipe Reflexiva
nossas ações enquanto terapeutas e comportava duas outras alunas e a do-
passamos a olhar para a produção do cente/supervisora. A família interrom-
processo conversacional. peu a terapia após a segunda sessão.
Assim, aceitamos o desafio de estu- Por telefone, soubemos que haviam
dar esse atendimento inicial do caso, se mudado para uma área rural dis-
buscando tomá-lo por si só, cientes de tante, o que impedia a continuidade
seus limites e atentas para suas possi- dos atendimentos pela dificuldade de
bilidades, como um processo terapêu- transporte.
tico produtor de mudança.

4. RECORTES QUE PRETENDEM CONTAR


3. O SISTEMA TERAPÊUTICO: A HISTÓRIA DE UM ATENDIMENTO
FALANDO DO ATENDIMENTO
Os fragmentos da transcrição do
Os atendimentos realizados no insti- primeiro encontro presentes nesta
tuto são mensais, com duração de uma parte do texto foram escolhidos para
hora e quinze minutos e acompanham o dar visibilidade à construção de sen-
calendário de aulas do curso, no qual são tidos nas conversações terapêuticas.
oferecidas oito sessões para cada família. Buscaremos compreender a produção
A família apresentada neste traba- de sentidos à luz das ideias de nossos
lho foi encaminhada por uma profis- interlocutores teóricos. Por último,
sional que atua numa clínica de rea- julgamos útil considerar, tanto quanto
bilitação de dependentes químicos. É possível, os diálogos internos que in-
constituída por casal e dois filhos de formavam as ações das terapeutas, no
seis e dois anos. Os nomes dos clien- desenvolvimento das conversações.
tes constantes neste artigo foram mo- Por diálogo interno nos remetemos ao
dificados, assim como foi assinado o que Tom Andersen (2002) diz:
Termo de Consentimento Livre e Es-
clarecido, respeitando-se os princípios Os processos reflexivos são de modo geral,
éticos na coleta de dados. mudanças de retrocesso e avanço entre

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


as falas internas e externas. As falas ex- menino “é” assim: aquele que suja, “Se não perguntar, ele
não vai falar” 43
ternas são as realizadas com os outros e que agride, que não obedece. Pergun-
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
as internas são aquelas que a pessoa tem távamo-nos como conhecer Paulo de Lima e Adriana Bellodi Costa César
consigo mesma (p. 157). além do problema?

4.1- Buscando compreender a procura L: Tô curiosa pra entender quanto tem-


por ajuda po, só pra ter uma noção, que você foi
percebendo...
Inicialmente fizemos perguntas de K: Que ele tá assim? Faz 1 ano. Não, faz
exploração e esclarecimento sobre o 1 ano não, faz uns 8 meses...
motivo pelo qual buscavam ajuda, L: Então até 8 meses atrás... Como é que
conforme o fragmento da transcrição era antes?
abaixo:* K: Ah, era normal, era uma criança nor-
mal. Fazia as artes dele como todas as
L: Como você chegou aqui, né... como foi crianças, mas não do jeito que tá agora
falado para vocês daqui... do instituto... e nem cocô e xixi. Ele fazia de vez em
do atendimento? quando. Ele largou de fazer xixi e só se
K: Ah, ela (profissional que os encami- tivesse com uma diarreia, uma coisa as-
nhou) falou para mim... porque ele já sim...
passa num psicólogo lá (cidade onde mo- L: Então ele ia ao banheiro... Você via?
ram) (..) Mas aí eu vim né, sabendo que Você percebia?
é para ajudar, né... do jeito que tá, né... K: Ia. Agora ele não faz direito.
L: Pra ajudar no que, né, Kelly? L: De uns 8 meses pra cá...
K: Ele faz cocô. Ele faz tudo na calça, e ele K: Depois que o pai dele foi internado...
tá demais mesmo. É uma coisa anormal, L: Hum... tá internado o pai dele?
não é uma criança arteira normal; por- K: (sim com a cabeça)
que toda criança é arteira, mas é anor- L: Como é que foi?
mal, passa da conta. K: Ah, ele quis ir sozinho, se internar...
L: Conta um pouquinho pra gente então Aí a gente morava num sítio, aí a gente
como é que é... foi pra casa da minha mãe. Aí começou
K: Ah, ele é assim, oh, ele só quer fazer tudo...
coisa que não pode: subir em cima das S: Então você percebeu que tinha relação
coisas, tudo ele sobe. Tudo ele resolve na com a internação dele o começo destas coi-
porrada, ele xinga, ele já chegou a dar sas que estão acontecendo com o Paulo?
um tapa na cara do primo. Ele tem uma K: Não só isso. Eu acho que não pela
irmã de 2 anos e ele dá chute, dá soco, internação só... Mas por tudo o que já
puxa cabelo e ele tá assim... Faz tudo na vinha acontecendo... Porque o Paulo
calça. Eu dou banho, ponho no colo, mas vem fazendo já faz uns 8-9 meses. Foi
ele faz o dia inteiro... dá risada. A gente antes do pai internar. Só que quando
vai limpar, ����������������������������
o dia
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inteiro e a noite in- internou começou com mais frequên-
teira... Faz xixi na cama... Isso é o pior, cia. Eu acho que de ver a discussão que
porque também tem a escola que a pro- a gente tinha; as brigas, eu nunca falei
fessora chamou. Falou “o Paulo tá feio; o que o pai fazia... A gente brigava, dis-
assim não pode”... cutia bastante. Acho que foi depois dis- * As terapeutas serão referidas
to, porque uns dois meses antes do pai nos recortes dos diálogos que
se seguem pelas iniciais de
O relato da mãe descrevia a identi- internar, ele tava bem afundado, então seus nomes, a saber: L (Lilian)
dade de Paulo a partir do problema. ele ficava vendo tudo e começou a sofrer. S (Sandra) e A (Adriana). O
mesmo será adotado para os
Entendemos que, para a cliente, esse Foi depois disso. clientes: Kelly (K) e P (Paulo).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


As descrições do problema, amplia- relação aos contextos de nossa existência
44 NPS 43 | Agosto 2012
das e contextualizadas no espaço e no e de percebermos os outros e de nos com-
tempo, possibilitaram um entre mui- portarmos em relação a eles (p.104).
tos outros caminhos de conversação
que poderiam ser tomados, ou como No seguimento do diálogo relatado
nos sugere Tom Andersen (2002), no fragmento anterior, a mãe seguiu
qualquer que seja a resposta a cada discorrendo sobre as dificuldades do
pergunta feita constitui a limitação do filho, como: “ele não faz (xixi e cocô)
possível. só se a gente prometer as coisas”; “ele faz
A curiosidade em saber o “desde de pirraça pra mim... é só em casa...”.
quando Paulo estava assim” foi útil Preocupava-nos a participação silen-
para a compreensão e construção lin- ciosa, porém atenta, da criança e nos
guística de um cenário familiar que perguntávamos: como Paulo estaria
constitui e é constituído por aquela ouvindo a história contada sobre ele?
“criança arteira mas anormal que pas- A participação da criança na terapia
sa da conta”. Além disso, ao perguntar familiar requer do terapeuta o cuida-
como Paulo era antes do problema, a do para que esta possa compreender
terapeuta L buscava as exceções ou re- o que é falado sobre ela. Neste frag-
latos únicos que poderiam estar sub- mento, entendemos que as descrições
jugados pela história dominante sobre sobre a criança estão organizadas em
o problema para, assim, identificar ou uma narrativa saturada pelo proble-
gerar narrativas alternativas (White, ma (White, 1994), sem perspectiva de
1994). mudança, sem possibilidades futuras.
A noção de narrativa tem a vanta- O que Paulo estaria “aprendendo” so-
gem de incorporar a dimensão tempo- bre si mesmo a partir daquelas descri-
ral aos relatos, cujo aspecto foi desta- ções apresentadas sobre ele? Instigada
cado por Michael White (1994). Sobre por essas perguntas, a terapeuta L con-
isso, Helena Maffei Cruz (2008) afir- vida Paulo para uma conversa:
ma que:
L: ... E aí Paulo... tá ouvindo a mamãe
Não existem dados brutos e narrativas que contar as coisas, a gente perguntar...
deem conta deles (fatos vivenciados), mas (silêncio)
uma maneira de pensar com narrativas L: Como é, hein, o que você tá pensando...
que têm começo, meio e fim, que balizam O que tá��������������������������������
com vontade de falar... De con-
e permitem interpretar nosso presente. E tar pra gente...?
são essas narrativas que estabelecem quais P: (esconde o rosto no braço da mãe)
os dados que contam (p. 81). S: Pode ser desse assunto, de outro assun-
to...
As ações de Paulo, agora associadas L: É o que dá vontade de falar... Agora é a
pela mãe a conflitos conjugais e ques- sua vez de falar...
tões de saúde/internação do marido, P: (acena que não com a cabeça escon-
nos remetem à constituição de um dendo o rosto no braço da mãe)
novo significado para o sistema proble- (risos)
ma, como explica Grandesso (2000):
Nesse momento, a terapeuta L de-
A forma como atribuímos significado aos cidiu fazer perguntas abertas que dei-
eventos afeta a maneira de nos construir- xassem a criança livre para escolher o
mos como pessoa, de nos conduzirmos em que falar, com o intuito de proporcio-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


nar a Paulo a posição de “não poten- Este diálogo nos remete à questão “Se não perguntar, ele
não vai falar” 45
cializar o discurso sobre o problema” da coconstrução da conversa tera-
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
que até agora norteava a conversação pêutica, onde a mãe pôde ocupar um de Lima e Adriana Bellodi Costa César

terapêutica. lugar de “conselheira” desta conversa,


Aqui cabe comentarmos sobre a aquela que sabia como se conectar
importância de se criar um lugar de ao filho: “Se não perguntar, ele não
conforto e confiança para a criança vai falar.” Assim, voltando aos nossos
no atendimento familiar, o que requer interlocutores teóricos, o cliente é o
um esforço para que os problemas especialista. Nesse atendimento, ele (
possam ser apresentados sem, no en- no caso, a mãe) incluiu e conduziu a
tanto, transformá-los em definições terapeuta.
identitárias da mesma. Nesse sentido, concordamos com
A opção de não nomear o problema Cruz e Righetti (2009) quando afir-
como a mãe o fazia vem ao encontro do mam que:
que Cruz (2008) elegeu como um dos
inúmeros legados de Michael White: Incluir crianças em conversas terapêuti-
“Sua recusa em aceitar como verdadei- cas passa por aprendermos quais são suas
ros os discursos sobre crianças proble- formas de expressão e, nesses idiomas,
máticas.” Já que estamos buscando a informá-las sobre que espaço é aquele,
desconstrução das histórias dominan- quem é o terapeuta, o que se vai fazer ali
tes e a construção de uma nova narrati- e, principalmente, ajud��������������
������������
-la na formu-
va na qual o problema esteja destituído lação de seu pedido para a terapia, tão
de sua força, é desejável que a criança legítimo quanto os pedidos dos adultos
seja a autora, a voz que descreve a si presentes (p. 250).
própria. Assim, continuamos a buscar
formas de manter o diálogo com Paulo,
quando fomos incentivadas pela mãe, 4.2 – Outra forma de conversar
com a seguinte fala: “Se não perguntar,
ele não vai falar.” Diante da negativa da criança quan-
Aceitando este conselho, as terapeu- do convidada a falar, a terapeuta L in-
tas continuaram o difícil caminho de troduziu a caixa de brinquedos. Estes
acesso à criança com perguntas como: poderiam ser ferramentas facilitado-
“Conta como foi vir aqui hoje”; “Você já ras de conversas que impulsionassem
conhecia essa cidade?”, “Demorou para a colaboração de Paulo.
chegar?”.
As respostas de Paulo eram gestuais; L: Deixa eu te mostrar uma coisinha...
a mãe parecia ser solidária com as tera- Você viu o que tem ali? (aponta para a
peutas: “Não tá lembrando de nada pra caixa de brinquedos)
falar agora?” e a resposta mantinha-se
gestual e negativa. Estávamos às voltas Brinquedos, embora comumen-
com nossa dificuldade em gerar uma te entendidos como úteis às crian-
conversa que ultrapassasse os limites ças, são utilizados como uma opção
de um inquérito. discursiva para os terapeutas, como
Inspirada pela mãe, a terapeuta S auxiliares no seguimento de uma
procurou um caminho que ajudasse conversa que inclua esses jovens
Paulo a “chegar à conversa”, contex- clientes. Entendemos a linguagem lú-
tualizando sua vinda para este atendi- dica como facilitadora da produção
mento. de significados alternativos sobre si

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


(da criança) e sobre o problema, am- enquanto compartilhávamos o desejo
46 NPS 43 | Agosto 2012
pliando as possibilidades das terapeu- de ouvir Paulo:
tas de aprenderem com ela.
S: Bom, mas mesmo assim a gente pode-
S: A gente tem aqui... uma caixa de brin- ria te apresentar à caixa de brinquedos,
quedos. Paulo?
L: Justamente para as crianças que vem P: (sim com a cabeça)
aqui, sabia? P: (aponta com o dedo) Tem um carri-
S: Você gosta de brincar, Paulo? nho.
P: (acena com a cabeça positivamente, L: Pode vir...
sorrindo) P: (sai da cadeira e senta-se no tapete)
S: Gosta né... Do que você gosta de brincar? K: Vai lá...
L: Vamos dar uma olhadinha aqui... o P: Vem, mãe!
que tem na caixa, juntos... S: Cabemos todos nós aqui no tapete (to-
P: Eu não gosto de brincar, eu gosto de dos – mãe, criança e terapeutas de campo
jogar videogame. – sentam-se no tapete).
S: Ah, é?
L: Ah... Agora a gente já sabe alguma coi- Como terapeutas, buscávamos
sa, né, Sandra... É videogame então? construir um contexto facilitador de
S: Que videogame você joga? conversas, com o firme propósito – e
P: Do Mário. ao nosso ver nada fácil – de encami-
S: Do Mário Bros, hein...? nhar diálogos dentro da perspectiva da
L: E é sozinho ou com alguém? criança.
P: Com meu irmão. Inicialmente, de terapeutas-ques-
K: Primo. tionadoras passamos a terapeutas-ob-
L: Então você tem um primo que você servadoras do brincar. Esta nos pare-
joga videogame do Mário... ceu a forma possível de interação no
P: Hum, hum. momento. Depois, fizemos convites:
conversar sobre a história do Bambi;
Neste recorte, num processo de co- contar uma história com fantoches;
autoria, uma nova narrativa de self brincar com animais, carros, jipes,
começa a ser desenhada. Conhecemos posto de gasolina. Surpreendeu-nos
mais da criança, além do problema, ao sua fala, que nos pareceu repentina:
conversarmos sobre suas formas pre- “Quero fazer fazendinha.”
feridas de brincar. Nesse momento, es- Entendemos naquele momento o
távamos sendo coerentes com a opção pedido “quero fazer fazendinha”, como
de não sermos coparticipantes de con- uma outra possibilidade de construir-
versas que produzissem a retomada mos uma conversa conjunta. Porém,
dos aspectos problemáticos de Paulo logo o vimos silenciar novamente,
e vislumbrando uma possibilidade de imerso no próprio brincar, alinhando
seguirmos juntos numa relação mais repetida e silenciosamente os animais
colaborativa e espontânea. da fazendinha dentro de um cercado.
Pensamos também que o atendi-
mento em dupla, proposto pelo ins-
tituto, mostrou-se um recurso po- 4.3 – Buscando a superação dos limites
deroso de aprendizagem e conexão:
vivenciávamos um trabalho colabora- Ao olharmos novamente para o ma-
tivo que nos incluía como terapeutas terial produzido nesse atendimento,

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


pensamos que o envolvimento (silen- tentativa de pontuar e enfatizar as di- “Se não perguntar, ele
não vai falar” 47
cioso) de Paulo com a organização do ficuldades relatadas pela mãe. Buscou
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
cercado e seus bichos meticulosamen- também atribuir possíveis significados de Lima e Adriana Bellodi Costa César

te dispostos lado a lado havia gerado ao sofrimento como: desamparo da


um posicionamento das terapeutas família com a ausência do pai e fragi-
que estamos nomeando aqui de par- lidade da mãe em ver-se solitária nas
ticipantes silenciosas/ observadoras. responsabilidades como cuidadora.
Foi nesse momento que a terapeuta Simultaneamente a esta fala, Paulo foi
(A), participante da Equipe Reflexiva, em outra direção encontrando uma
trouxe uma contribuição fazendo per- miniatura que nomeou de “um filhi-
guntas ao menino. Essa possibilidade nho”.
de um membro da equipe reflexiva Construiram-se duas famílias de
falar direto ao campo é diferente do animais, com a participação das tera-
que propõe Tom Andersen (2002), já peutas, mãe e criança, como se nota na
que, para o autor, o lugar desse tera- fala da terapeuta S:
peuta é ouvir e refletir, sem interferir
nas conversações desenvolvidas pelos S: Pelo que eu vejo tem duas famílias aí
terapeutas de campo. No entanto, este né, a família do leão e a família do ca-
formato foi combinado na interlocu- valo. Agora você está montando outra
ção entre docente/supervisora e alu- família? (Os bichinhos são sistemática e
nos/terapeutas, por se tratar de um silenciosamente colocados dentro de cer-
atendimento que acontece inserido cas, com as cabeças apoiadas para fora,
num curso de formação. A seguir, po- por Paulo).
demos perceber como isso ocorreu: A: É uma família que está triste? Olhan-
do para fora?
A: Posso fazer uma pergunta pro Paulo?
Paulo, você poderia, se você não quiser Com a palavra triste, a terapeuta A
você não precisa... Você poderia colocar procurava convidar o sistema terapêu-
aí dentro do cercado todos os bichinhos tico a refletir sobre as possíveis emo-
que têm papai, mamãe e filhinho...? ções que acompanhavam a família em
P: Não tem... suas múltiplas dificuldades. Atribuir o
A: Não tem? sentimento de tristeza aos brinquedos
P: Ah, tem, tem... parecia um caminho útil para que mãe
P: Não tem outro cavalinho... (pega o ca- e filho pudessem refletir sobre si, sem
valinho e o coloca olhando para fora do necessariamente falarem de si. As tera-
cercado) peutas seguem questionando a criança
L: Essa é a mamãe? neste eixo conversacional como:
P: (sim com a cabeça)
A: Toda mamãe tem um papai pra cui- P: Aqui não tá (aponta os cavalos).
dar dela... L: Não tá triste?
P: Nem vi.
Esta fala (terapeuta A) – “toda S: O que aconteceu para não ficar?
mamãe” – sugere uma descrição uni- L: Para não ficar mais triste?
versal ou normatizadora sobre como L: Você tinha falado que tava faltando o
deveriam ser as mães. Não sendo esta papai para cuidar da mamãe do cavalo...
a intenção da terapeuta (trazer um S: Ainda está faltando o papai?
julgamento de valor), tal expressão S: Só tá a mamãe com os filhinhos?
emergiu nesse contexto como uma S: Agora este está olhando para fora tam-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


bém, né, Paulo? (...) L: Olha, pronto; agora o Scooby Doo foi
48 NPS 43 | Agosto 2012
A: Então... Ele tá olhando pra fora, está pra lá. Pronto!
esperando alguém chegar?
Neste fragmento, pensamos estar
Esta pergunta surgiu a partir das bastante visível o quanto Paulo trans-
reflexões que a terapeuta A se fazia: formou sua participação na sessão;
quais as expectativas, quais os receios busca ativamente construir um lugar
e/ou entusiasmos de cada um com a de conforto, fazendo valer suas esco-
aproximação da volta do pai para casa? lhas, aceitando ouvir o que lhe pedem.
Estão esperando-o? O que esperam?
4.4 – A Equipe Reflexiva: construindo
P: Não... (começa a tirar os bichos do cer- sentidos
cado, silenciosamente).
Seguindo a solicitação das terapeu-
A mãe neste momento está atenta tas de campo, houve uma troca de lu-
à brincadeira do filho; aproxima-se gares entre os dois grupos do sistema
calmamente, faz um movimento no terapêutico:
sentido de ajudá-lo com os bichinhos:
“Pode colocar esse aqui também.” D: Eu fiquei observando o Paulo, a orga-
A essa altura do atendimento, per- nização dele, do cuidado dele em manu-
cebíamos uma sensível mudança na sear os bichinhos, tão cuidadoso...
relação mãe/filho: num contexto con- A: Caprichoso?
versacional lúdico, a mãe deslocava- D: Muito caprichoso. E ele foi trazen-
-se de uma posição discursiva sobre o do um pouquinho desse mundo dele da
problema de Paulo para uma atitude fazenda, dessas vivências que ele teve, os
colaborativa e cuidadora, incentivan- carros, o jipe; ele separou o que ele acha-
do o filho a avançar na sua comunica- va interessante, o resto ele guardou. Eu
ção conosco, terapeutas. Como cola- achei muito caprichoso, inteligente.
boradora do processo, ajudou o filho a D: Muito afetivo com a mãe, me pareceu
entender a troca de lugares, diante do muito afetuoso, quando viu o Scooby,
chamado da equipe reflexiva*: cachorrão, sorriu, fez o mesmo com o
rato, acolheu, trouxe para perto dele... É
L: Vamos fazer o seguinte, Paulo, aquelas isso.
outras pessoas vão vir aqui para conver- Z: �������������������������������������
É,�����������������������������������
como é afetuoso, educado... Eu fi-
sar, para a gente ouvir o que elas ficaram quei pensando o quanto ele deve amar
pensando enquanto nos ouviam. esta família, sabe? O quanto que ele
P: Quero brincar! quer proteger mesmo a família, para
K: Vamos conversar. Vamos sentar aqui essa família não desmanchar, sabe?
(...). Z: Eu acho que ele tá querendo todo
L: A gente troca de lugar com elas; elas mundo juntinho, tudo dentro do cerca-
* O instituto adota o formato
de equipe reflexiva nos
vem pra cá e nós vamos pra lá. A gente dinho (...) Me deu essa impressão de pro-
atendimentos à famílias e vai ficar ouvindo agora teger a família, dele não gostar de ouvir
casais, conforme sugere Tom P.: Depois eu brinco (antes de ir sentar-se brigas, dele não gostar de ouvir discus-
Andersen (2002). Equipe
reflexiva e equipe de campo, com a mãe no lugar apropriado, a crian- sões, né?
juntamente com a família, ça deixa um outro brinquedo – cachorro A: É que o papai não está em casa, não
permanecem na mesma sala de
atendimento; quando é chamada de pelúcia grande – no cercado, no lugar é verdade? Então, às vezes o Paulo fica
a equipe reflexiva, há uma dos animais da fazendinha). como o homem da casa. Vê que a mamãe
troca de lugares entre esta e o
P: Olha, ele ficou sozinho... tá triste...
sistema terapêutico do campo.

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A: Você falava desse lado do Paulo cui- vezes o cocô do Paulo tá dizendo que fi- “Se não perguntar, ele
não vai falar” 49
dador, né? Eu queria falar do cocô do cou muito triste estes 8 meses e... sabe a
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
Paulo, da Kelly e do papai. Já que o tristeza que a gente não tem como man- de Lima e Adriana Bellodi Costa César
Paulo usou todos aqueles brinquedos, eu dar embora, ela fica...
vou também usar brinquedos. A: (convida-o a pensar em conversar)
A: (sai do sofá e vai sentar- se no tape- Quem sabe se a gente pudesse ajudar o
te) Deixa eu pegar o cercadinho e pegar Paulo a perceber... que ele não precisa fa-
a última cena do Paulo, que foi quando zer cocô nem xixi para dizer que tá triste?
o Scooby ficou lá dentro do cercado. E aí Ele pode contar pra nós isso. O Paulo
ele falou “olha, ele ficou sozinho”. Então, pode aprender a conversar, né? Pronto,
o que poderia ser o Paulo aqui? Vamos vamos deixar aqui (deixa os alces re-
fazer de conta que estes são o Paulo e a presentando mãe e filho em pé, voltados
mãe dele (pega dois alces, coloca um ao para o cercado). Eles vão contar para nós
lado do outro, perto, mas fora do cerca- o que eles ouviram, tá bom?
do). E aí eu fiquei pensando que o Paulo e
a Kelly têm uma pessoa muito importan- A busca de outros sentidos para a
te na vida deles que tá sozinho, fechado história contada pela família ampliou
no lugar onde está internado e parece que o problema individual do Paulo para
eles estão esperando voltar, esperando o uma narrativa relacional, contextuali-
pai voltar (coloca os alces virados para o zada no cenário familiar; a encoprese e
Scooby que está no cercado). enurese foram descritas como expres-
A: (continua colocando agora o foco nas são de um sofrimento que pudesse ser
dificuldades familiares refletindo sobre os de todos, como forma de enfrentamen-
efeitos destas sobre Paulo) O pai deve ter to da dificuldade.
feito coisas por causa do problema dele De volta ao setting terapêutico de
que podem ter assustado muito o Paulo, campo, Paulo imediatamente pegou o
podem ter deixado ele nervoso, podem Scooby Doo de pelúcia que estava no
ter deixado o Paulo com medo. cercado e o arremessou para longe, em
A: (reflete sobre a mãe)... E eu fiquei pen- direção à mãe, dizendo: “Vou tirar o
sando que a Kelly, tão novinha... então, Scooby Doo”, sob o olhar atento desta.
a Kelly também deve ter sofrido muito, Nossa reflexão atual sobre a produção
de ter que deixar o marido , sair do sítio, de sentidos neste fragmento nos reme-
deve estar esperando muito que ele volte e te a outras perguntas, muito mais do
volte bem. Fico pensando no quanto que que compreensões/afirmações: quando
eles já sofreram. Até mesmo a irmãzinha Paulo arremessa o brinquedo, a nosso
menor, a avó... ver, numa ação complementar à fala da
A: (construindo uma narrativa que in- equipe reflexiva, estaria legitimando a
clua o cocô como expressão de sofrimen- mãe como cuidadora do pai? Pedindo-
to). E aí, sabe o que eu acho do cocô? Que -lhe algum tipo de ajuda? Agredindo-
o Paulo, como ele é um menino esperto, -a pela situação em que se encontram?
inteligente, arteiro, eu não sei se chora Sente-se sozinho na ausência do pai?
de tristeza e de saudade do pai. Então, Não pudemos, naquele momento,
às vezes o cocô do Paulo que fica saindo compartilhar significados linguísticos,
toda hora, é que nem quando a gen- afetadas que estávamos
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pela apropria-
te tá triste, que a lágrima fica saindo ção do cenário lúdico no qual Paulo
toda hora (faz o gesto com as mãos da ativamente voltava a se envolver.
lágrima escorrendo dos olhos). Nem sei Entendemos, em nossa formação,
se o Paulo vai concordar comigo, mas às que o sentido não está dado nem por

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


nós terapeutas, nem pelo outro, mas Ele é carinhoso, muito carinhoso, só
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na relação. Gergen (2009) propõe que que não é organizado, não é de arru-
as palavras só ganham sentido a par- mar nada... E acho que tudo que elas
tir de sua inserção no intercâmbio falaram, eu acho que deve ser tudo,
entre as pessoas. Para ele, esse poten- eu acho que é tudo, porque o que elas
cial de significação das palavras se dá falaram tá acontecendo com a gente,
por uma ação suplementar, ou seja, os não está sendo exagero, é tudo que
enunciados só começam a ter signifi- aconteceu... Eu sinto falta do sítio, eles
cado quando outros adicionam-lhes também, sabe, porque gostavam muito.
alguma forma de ação, linguística Antes que ele (pai) teve (sic) o problema
ou não. Este processo age tanto para com droga, a gente vivia bem, sabe, aí
ampliar como restringir significados. aconteceu tudo isso, dele usar droga, aí
Por um lado, a suplementação garan- ferrou tudo. Além da questão dele ser in-
te um potencial de significação para o ternado, roubaram minha casa do sítio,
que foi dito de uma forma singular, por isso que eu precisei ir embora e morar
o que convida a ações também espe- na casa da minha mãe, de três cômodos.
cíficas. Ao significar de uma maneira Então, esta semana tá mais difícil do que
dentre um leque infinito de possibili- a semana passada, tanto eu como o Pau-
dades, estamos também delimitando o lo. Ele é esperto, ele sabe das coisas, ele
potencial de sentidos sobre quem so- fica assim: “Ah meu pai vai voltar...” Ele
mos nós e o que o mundo é. Entende- tá com medo que o pai vai fazer tudo de
mos, portanto, que qualquer uma das novo, sabe?
perguntas que nos fazemos hoje sobre Eu tô ansiosa, faz 3 ou 4 dias que eu
a ação de Paulo, teria conduzido o sis- não como, não tô conseguindo dormir
tema terapêutico em direção à amplia- e o Paulo tá do mesmo jeito, sabe? Ele
ção de determinadas “realidades”, em fica “ah, meu pai, ah, meu pai vai voltar,
detrimento de outras. onde nós vai morar?”
S: E você, Paulo? (Paulo, que está sentado
4.5 – Construindo versões alternativas no tapete, brincando com a fazendinha,
sobre o problema: o pós-equipe reflexiva olha para a mãe e não responde)
K: É, de vez em quando ele chora sim,
Destacaremos os fragmentos que é difícil, difícil... “ai, mãe, eu quero meu
julgamos dar visibilidade às mudanças pai, eu quero meu pai”
de narrativas que nos pareceram sig- L: E o Paulo? Quer falar alguma coisa?
nificativas: Quer contar alguma coisa? Você ouviu o
que elas falaram?
P: (fica olhando para a mãe e ouvindo o S: O que achou da historinha que a A
que ela fala) (terapeuta) contou sobre o Scooby Doo, o
K: Eu pensei assim... de ele querer as- Paulo, a mãe e o pai? Quer falar alguma
sumir tudo, como ela falou... porque coisa, Paulo?
quando o pai foi internado, ele falou (o P: (estava de costas para nós, brincando
pai) “você vai ser o homem da casa”. Aí e continuou assim, balançando a cabeça
ele fica assim, sabe: “É, mas eu que olho, é em negativo) Hum, hum.
eu que sou o homem.” Ele sempre foi de
defender eu e a irmã. Eu morro de medo A oferta de sentidos feita pela equipe
de rato, lá no sítio aparecia rato, morce- reflexiva, como uma criança carinhosa
go, né, Paulo? E ele fala “deixa que eu e compromissada com a proteção e
cuido”, pega a vassoura, não tem medo.. união da família, preocupada com o

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


futuro “meu pai vai voltar, onde nós vai mento que haviam recebido?: “Apren- “Se não perguntar, ele
não vai falar” 51
morar?”; parecem ter sido aceitas pela deu a conversar mais, eu e o Paulo, ele
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
mãe. Convidamos assim, os ouvintes está mais organizado com as lições do de Lima e Adriana Bellodi Costa César

à construção linguística de distinções primeiro ano da escola e o comporta-


úteis para descrições preferíveis e mento muito melhor.”
encorajadoras de si e sobre o outro. Nesse contato, uma outra informa-
A equipe reflexiva, adotando uma ção que consideramos importante, foi
linguagem que privilegiou as poten- a mãe ter se incluído como parte da
cialidades da família em oposição às mudança. Sobre aprender a conver-
falhas ou déficits, assim como legiti- sar, disse: “Eu e o Paulo.” Nesse sen-
mou os discursos de perda, separação tido, foi prazeroso compreender que
e dor ofereceu um novo campo de in- havíamos participado ativamente da
teligibilidade, onde o problema deixou construção de um contexto de mu-
de ser entendido dentro de uma pers- dança, onde, conversas colaborativas
pectiva individualista, para dar lugar produziram formas diferentes de es-
ao sentido de sermos-em-relação. tarmos juntos. Conforme Anderson e
Nessa perspectiva relacional-cons- Goolishian (2007) afirmam, o sistema
trucionista, que efeitos para a relação terapêutico é um sistema organizador
mãe/filho essas novas maneiras de e dissolvedor do problema em que, a
dizê-lo estariam em construção? Pen- partir da ação conjunta de todos os
samos estar na direção do que Michael envolvidos se dá a construção de no-
White (1994) nomeia de “histórias vas narrativas de self.
preferíveis”, construídas nas relações,
entre pessoas que compartilham signi-
ficados. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No segundo encontro, a família
compareceu acompanhada do pai, O Construcionismo Social como
que encontrava-se num processo de conjunto de ideias que informa a prá-
desligamento da clínica onde estivera tica clínica de terapeutas requer, con-
internado. “Ele melhorou já, o xixi e o forme os autores citados, uma crítica à
cocô ele não fez mais”, essas foram as noção de verdades universais e pré-es-
palavras iniciais do casal. tabelecidas. Na prática que sustentou
Sentado ao lado dos pais, mais riso- a produção teórico-clínica do presente
nho, contou que a mãe brincou com texto, pudemos experimentar não só a
ele, dizendo: “Hoje, eles que têm que fa- mudança de narrativas sobre a família,
lar.” O tema da sessão se desenvolveu mas também a mudança de descrição
em torno do relacionamento do casal sobre nós, terapeutas.
e dos desafios relacionados à recupera- Ao estudarmos esse atendimento,
ção do marido. Paulo deixara de ser o levando em conta a centralidade da
foco da conversa. linguagem como produtora de co-
Dado que a família interrompeu nhecimento historicamente datado e
o atendimento, telefonamos para a localmente situado, pudemos viven-
mãe com a expectativa de compreen- ciar a impossibilidade de definições, a
dermos a utilidade dos dois e únicos priori, sobre qual deve ser o papel do
encontros, ao que ela respondeu: “Ele terapeuta. Da constatação dessa im-
está mais organizado, melhorou; o xixi e possibilidade, também pudemos expe-
o cocô ele não fez mais nada nas calças.” rimentar, na prática, o entendimento
E o que considerava útil do atendi- de terapia como um processo conver-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 38-53, ago. 2012.


sacional em que os sentidos estão a Tom Andersen nos deixou um gran-
52 NPS 43 | Agosto 2012
todo momento sendo negociados, fa- de legado ao desenvolver essa ferra-
cilitando a colaboração e o desejo das menta e, ao mesmo tempo, um vasto
pessoas envolvidas de seguirem juntas campo de possibilidades, se nos tor-
na construção de alternativas ou na narmos curiosos em como otimizá-la
dissolução do problema. Dessa forma, quando temos crianças na sala de tera-
o lugar do terapeuta nos remete a uma pia. O terapeuta, de seu lugar de equipe
ação de construção e reconstrução de reflexiva, pode contribuir eficazmente
si nas interações contínuas com as pes- na produção de novos sentidos para
soas que nos pedem ajuda. as descrições do sistema-problema, ao
Gergen (1997) nos auxilia a pen- apropriar-se dos recursos lúdicos em
sar nesse processo contínuo de trans- uso no campo. Com os brinquedos e
formação com o conceito de rede de os sentidos produzidos no “brincar”
identidades recíprocas onde o desen- entre a família e os terapeutas de cam-
volvimento de uma narrativa de self po, poderá tecer uma trama sobre o
é um processo de coautoria, produto que refletiu, numa espécie de teatro,
do intercâmbio social entre as pessoas. cujo desfecho permanece em aberto à
Com Kelly e Paulo, fomos produtoras espera de um final, como procuramos
e também o produto da construção de demonstrar neste artigo.
recursos que instrumentou a todos o Esse interesse em dar voz às crian-
próprio saber fazer, naquele contexto ças coincide com outro legado, agora
terapêutico. deixado por Michel White, cuja escuta
Até aqui apontamos para a questão extraordinária opunha-se às imposi-
da mudança em terapia, ampliando ções identitárias que as narrativas so-
essa reflexão para quem muda (in- bre as crianças adquirem. O uso cria-
cluindo o terapeuta), além do como se tivo dos processos reflexivos adaptado
dá a mudança (construção comparti- a contextos terapêuticos que incluem
lhada de novas descrições, novas nar- esses pequenos clientes nos parece um
rativas sobre o problema). campo de estudos bastante promissor.
Um outro aspecto que julgamos útil Acreditamos que este texto seja uma
como reflexão teórico-prática sobre a contribuição para a prática clínica que
terapia familiar com crianças é o uso da envolve crianças pequenas, apontando
equipe reflexiva como ferramenta fa- a equipe reflexiva como um recurso
cilitadora de conversações e produtora valioso para o exercício da criativida-
de mudanças. Não é incomum, entre os de do terapeuta. Pretendemos por fim,
terapeutas familiares, a ocorrência de somarmos nossas vozes ao que Cruz
certa dificuldade em adequar uma lin- e Righetti (2009) nomeiam de “au-
guagem que contemple adultos e crian- ditórios e bibliotecas internos” para
ças durante o atendimento. Os recursos aqueles terapeutas que, como nós, se
lúdicos são indicados para a comuni- comprometem com a construção de
cação com crianças, mas e os adultos? mundos preenchidos de esperança.
Os terapeutas serão descritos de que
forma (pelos adultos cuidadores) se
brincarem com as crianças? E brincar REFERÊNCIAS
para quê? Muitas são as inquietações e,
não raro, os constrangimentos tanto de Andersen, T. (2002). Processos reflexi-
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ARTIGO

A CONSTRUÇÃO DE UM PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA


CARLA GUANAES LORENZI FAMILIAR EM UM HOSPITAL-DIA PSIQUIÁTRICO:
Psicóloga, Professora do
Departamento de Psicologia da DESAFIOS E POTENCIALIDADES*
USP, Ribeirão Preto.

MARCUS VINICIUS SANTOS THE CONSTRUCTION OF A FAMILY ASSISTANCE PROGRAM IN A DAY CARE
Psicólogo do Hospital Dia do PSYCHIATRIC HOSPITAL: CHALLENGES AND POTENTIALITIES
Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto –
USP. RESUMO: Esse artigo tem por objetivo discutir ABSTRACT: The aim of this article is to discuss
desafios e potencialidades da construção de um challenges and potentialities of the construction
FABIANA S. BRUNINI programa de assistência familiar em um Hospital- of a family assistance program in a Day Care
Assistente social do Hospital -Dia Psiquiátrico. Para tanto, apresentamos algu- Psychiatric Hospital. Thus, we present some
Dia do Hospital das Clínicas da mas práticas voltadas ao cuidado e a inclusão practices that have been developed in this context
Faculdade de Medicina de Ribeirão da família no tratamento ao portador de doença in order to take care and to include the family of
Preto – USP mental que vêm sendo desenvolvidas nesse the mental health patient in his treatment. These
contexto, tendo como base as contribuições do practices are based on the contributions of the
SÉRGIO ISHARA movimento construcionista social em Psicologia. social constructionist movement in Psychology.
Psiquiatra do Hospital Dia do A partir disso, discutimos como a adoção de Based on this, we discuss that the adoption of
Hospital das Clínicas da Faculdade posturas construcionistas têm permitido à equipe a social constructionist stance allows the heal-
de Medicina de Ribeirão Preto – a revisão de conceitos e posicionamentos, favo- th team to review its concepts and positionings,
USP recendo reflexões acerca das implicações do uso thus bringing reflections on the implications of the
dos discursos da doença mental e do profissional mental health discourse and of the professional
SANDRA M.C. TOFOLI como especialista no cuidado à família. as an expert for the family health assistance.
Enfermeira do Hospital Dia do
Hospital das Clínicas da Faculdade PALAVRAS-CHAVES: Terapia de família, grupos, KEYWORDS: Family therapy, groups, mental
de Medicina de Ribeirão Preto saúde mental, construcionismo social. health, social constructionism.
-USP e mestranda do programa de
pós-graduação em Saúde Mental
da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto – USP.
O campo da saúde mental tem se constituído, historicamente, como palco de gran-
ELIANA M. REAL
des debates teóricos, éticos e políticos. Tais debates refletem a dificuldade de con-
Terapeuta ocupacional do Hospital
Dia do Hospital das Clínicas da senso em relação à definição de doença mental e seu tratamento, e dão visibilidade
Faculdade de Medicina de Ribeirão à tensão que se faz presente entre alguns discursos sociais comuns nesse campo,
Preto – USP como o discurso médico, psicológico e religioso. Nesse contexto, a necessidade de
inclusão da família no tratamento também caracteriza um debate importante. Por
Recebido em 30/03/2012. que, quando e como incluir a família no tratamento do portador de uma doença
Aprovado em 02/05/2012.
mental são questões nem sempre fáceis de serem respondidas pela própria família
* Agradecemos a toda equipe ou pela equipe profissional. Neste artigo, buscamos apresentar um Programa de
profissional e técnica do HD por Atendimento a Famílias desenvolvido em um serviço de semi-internação em saú-
acolher essa proposta em seu
cotidiano, e à profa. dra. Sônia
de mental, assim discutindo desafios e potencialidades da inclusão da família no
Regina Loureiro e ao prof. dr. tratamento. Para tanto, traçamos uma breve contextualização acerca da reforma
Mário Francisco Juruena pelo
apoio à realização dessa prática.
psiquiátrica e das atuais orientações para a assistência em saúde mental e, em se-
Em especial, agradecemos aos guida, apresentamos o trabalho que estamos desenvolvendo em um Hospital-Dia
familiares e pacientes atendidos psiquiátrico, especialmente no que tange à inclusão da família no tratamento. A
no HD, que com sua coragem
e sabedoria nos momentos partir disso, refletimos sobre desafios e potencialidades desse trabalho, considera-
mais difíceis nos inspiram e nos dos em função da nossa opção por fundamentar nossa prática nas contribuições do
ensinam a ter um novo olhar
sobre a saúde mental. movimento construcionista social em ciência.
REFORMA PSIQUIÁTRICA E sofrimento mental e da humanização A construção de um programa
de assistência familiar... 55
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL do seu tratamento (IFBH).
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
É importante ressaltar que, apesar Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

A Reforma Psiquiátrica pode ser en- de ser um movimento com caracterís-


tendida como um processo político e ticas e percursos próprios, a Reforma
social complexo, composto de atores, Psiquiátrica é contemporânea e foi
instituições e forças de diferentes ori- bastante influenciada pela Reforma
gens, e que incide em territórios diver- Sanitária. Esta última foi ancorada em
sos, nos governos federal, estadual e novas concepções do processo de saú-
municipal, nas universidades, no mer- de e doença, cuja ênfase passa a ser nos
cado dos serviços de saúde, nos con- aspectos biopsicossociais deste proces-
selhos profissionais, nas associações so. No Brasil, o processo da Reforma
de pessoas com transtornos mentais Sanitária teve como marco a criação,
e de seus familiares, nos movimentos pela Constituição Federal de 1988, do
sociais, nos territórios do imaginário Sistema Único de Saúde (SUS). Num
social e da opinião pública. Compre- contexto de rediscussão do papel do
endida como um conjunto de trans- Estado na saúde, de redemocratização
formações de práticas, saberes, valores e desenvolvimento dos ideais da Re-
culturais e sociais, é no cotidiano da forma Sanitária, o SUS tem como seus
vida das instituições, dos serviços e princípios norteadores a universaliza-
das relações interpessoais que o pro- ção, integralidade, descentralização e
cesso da Reforma Psiquiátrica avança, participação popular.
marcada por impasses, tensões, confli- Influenciado por esses princípios,
tos e desafios (Ministério da Saúde do no ano de 1989 entra no Congresso
Brasil, 2005). Nacional o Projeto de Lei do depu-
Podemos entender a Reforma Psi- tado Paulo Delgado, que propõe a
quiátrica como indo muito além da regulamentação dos direitos das pes-
reformulação do modelo de assistên- soas com transtornos mentais e a ex-
cia em saúde mental. Trata-se de um tinção progressiva dos hospícios no
movimento de questionamento e mu- país. Essa Lei, em consonância com
dança dos paradigmas da psiquiatria os princípios do SUS, redireciona o
clássica e, de maneira mais ampla, uma amparo ����������������������������
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saúde mental, privilegian-
revisão dos discursos sobre a loucura do o oferecimento de tratamento
predominantes em nossa sociedade. em serviços de base comunitária e
Como marco do início de tal movi- a progressiva extinção dos manicô-
mento temos o ano de 1961, quando o mios. Mesmo só tendo sido apro-
médico italiano Franco Baságlia assu- vada em 2001, desde 1992, diversos
miu a direção do Hospital Psiquiátrico movimentos sociais – entre os quais
de Gorizia, na Itália. Ele adotou uma o movimento da Luta Antimanico-
postura crítica para com a psiquiatria mial – conseguiram aprovar em vá-
clássica e hospitalar, centrada no isola- rios estados brasileiros a substituição
mento da loucura. Ao contrário, Basá- progressiva dos leitos psiquiátricos
glia defendia que o doente mental de- por uma rede integrada de atenção à
veria ser reinserido no convívio social saúde mental. A partir desse período
e familiar. Esse pensamento influen- passam a entrar em vigor no país as
ciou diversos países, entre eles o Brasil, primeiras normas federais regula-
provocando discussões a respeito da mentando a implantação de serviços
desinstitucionalização do portador de de atenção diária, fundados nas expe-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


riências dos primeiros Centros e Nú- COMUNIDADES TERAPÊUTICAS E
56 NPS 43 | Agosto 2012
HOSPITAIS-DIA
cleos de Atenção Psicossocial (NAPS
e CAPS) e Hospitais-Dia (Ministério
da Saúde do Brasil, 2005). A comunidade terapêutica teve
Segundo Delgado (1992), “embora como pioneiro Maxwell Jones e ou-
trazendo exigências políticas, admi- tros, na Inglaterra na década de 1950,
nistrativas, técnicas e também teóri- sendo vista como parte de uma revolu-
cas bastante novas, a reforma insiste ção na psiquiatria com a passagem de
num argumento originário: os direi- uma abordagem individual para uma
tos do doente mental, sua cidadania”. abordagem psiquiátrica social que
No entanto, como ressalta Bezerra acentua o envolvimento multipessoal,
(2007), a consolidação da Reforma o uso de métodos grupais, a terapia de
Psiquiátrica traz à tona uma quanti- ambiente e a psiquiatria administrati-
dade crescente de desafios, sendo as va. A designação comunidade terapêu-
mudanças lentas e graduais. Sendo tica se desenvolveu nesses ambientes
a reforma mais do que uma propos- hospitalares para descrever um lugar
ta de um novo modelo assistencial, organizado como comunidade no
mas também de uma profunda mu- qual se espera que todos contribuam
dança de paradigmas, ela representa para a criação de uma organização so-
um convite à superação do discurso cial dotada de propriedades de cura.
clássico da psiquiatria e da doença A motivação geral da comunidade te-
mental. rapêutica de Jones era a da natureza
Portanto, convivem na atualidade terapêutica do ambiente total, e esta
diferentes paradigmas, que levam a permaneceu como modelo viável para
práticas contraditórias e desintegradas o tratamento de pacientes psiquiátri-
em saúde mental. Nas palavras de Be- cos em ambientes hospitalares na In-
zerra (2007, pp. 244-245): glaterra, em outras partes da Europa,
e em menor grau nos Estados Unidos
A resistência às propostas reformistas (De Leon, 2003).
aparece, de forma indireta, na defesa No Brasil, a experiência das comu-
da hegemonia absoluta dos médicos no nidades terapêuticas foi amplamente
campo da atenção à saúde, na ênfase utilizada na virada da década de 1960
nos tratamentos biológicos como única para 1970, se aproximando do movi-
forma efetiva de tratamento, na���� im- mento da Reforma Psiquiátrica pelo
portação acrítica, para a Psiquiatria, fato de também ter sido uma reação às
do modelo da medicina baseada em estruturas tradicionais de aparato asilar
evidências, no abuso na utilização da psiquiátrico (Teixeira, 1993). Apesar do
nosografia descritiva dos DSMs, em modelo das comunidades terapêuticas
detrimento da atenção às dimensões atualmente ser pouco utilizado, ele in-
psicodinâmica, fenomenológica e psi- fluenciou os modelos atuais de servi-
cossocial das psicopatologias, e assim ços substitutivos em assistência a saúde
por diante. Deste modo, o embate que mental, entre eles o modelo de alguns
nos primeiros anos se centrava na busca Hospitais-Dia, como a instituição des-
de espaços dentro do sistema político- crita neste trabalho.
-assistencial hoje tende a girar em tor- O modelo dos Hospitais-Dia se in-
no de debates fortemente marcados por sere na rede de serviços substitutivos
questões de natureza epistemológica, de assistência em saúde mental, fun-
teórica e ética. cionando de acordo com os preceitos

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


da Reforma Psiquiátrica e do proces- paciente adoecido. Do mesmo modo, A construção de um programa
de assistência familiar... 57
so de desinstitucionalização e substi- por muito tempo, a ausência de po-
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
tuição do modelo asilar por serviços líticas alternativas de tratamento da Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

alternativos pautados num modelo doença mental levaram à reificação do


biopsicossocial e interdisciplinar de modelo hospitalocêntrico de assistên-
cuidado ao doente mental. Baseados cia, o que trouxe como consequência a
nos ideais do movimento da Comu- segregação do doente e seu afastamen-
nidade Terapêutica acima citados, nos to da família e da comunidade em que
Hospitais-Dia valoriza-se o convívio estava inserido. Nesse sentido, o dis-
cotidiano em grupos compostos por curso médico/psiquiátrico levou a res-
pacientes, profissionais, familiares e ponsabilidade do cuidado do doente
comunidade, dando-se especial ênfase aos centros especializados, afastando a
ao vínculo e ao aprendizado com o ou- família do processo de cuidado.
tro enquanto fatores terapêuticos. São Com a reforma psiquiátrica, a res-
promovidas práticas de atendimento ponsabilidade pelo cuidado do doen-
que têm como enfoque a reabilitação te mental foi novamente colocada na
e reinserção psicossocial do individuo família, gerando debates tensos entre
atendido, visando o resgate das suas família e equipes de saúde – estaria a
potencialidades e recursos de modo a família preparada para cuidar? Não
possibilitar que o mesmo assuma uma ficaria a família sobrecarregada com
posição de sujeito ativo na construção essa função, também sofrendo as con-
e significação de sua própria história. sequências desse cuidado? Diferentes
Tais práticas são pautadas dentro de estudos foram desenvolvidos nessa di-
uma ética de cuidado e respeito ao in- reção, apontando a importância de se
dividuo em sua singularidade e especi- cuidar também do cuidador (Pereira
ficidade, e na busca de uma assistência & Pereira, 2003; Pegoraro & Caldana,
que ocorra interligada ao contexto de 2006; Rosa, 2011).
vida no qual o mesmo está inserido. Considerando os muitos significados
que atravessam a relação entre família
e doença mental, a inclusão da família
A PARTICIPAÇÃO DA FAMÍLIA NO no tratamento nem sempre é um pro-
TRATAMENTO cesso simples, e nem sempre a equipe
de saúde sabe ao certo como trabalhar
Se lançarmos um breve olhar sobre essa inclusão. Como e quando a família
a história de compreensão da doença deveria participar do tratamento? Qual
mental, veremos que a necessidade de o seu lugar? Como esse convite pode
participação da família no tratamen- ser feito? Como a família se beneficia de
to nem sempre foi valorizada. Muitas uma assistência familiar?
vezes a família foi descrita como pal- Estando estas questões também
co de conflitos intensos, assim sendo presentes no cotidiano do nosso ser-
também responsabilizada pelo adoe- viço, buscamos alguns recursos teó-
cimento de um dos seus membros. As ricos e técnicos alternativos, que nos
descrições sobre famílias desestrutu- permitissem trabalhar a participação
radas ou disfuncionais, de certa for- da família numa perspectiva de es-
ma, corroboraram essa compreensão, cuta e acolhimento. Nesse sentido,
levando os profissionais, em muitos passamos a refletir sobre esse campo
momentos, a considerarem a família discursivo tenso que ora constrói a
como uma obstrução à melhora do família como responsável ora como

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


culpada do adoecimento, buscando, dos acerca de si mesmas e do mundo
58 NPS 43 | Agosto 2012
em nossa prática cotidiana, promover em que vivem em seus relacionamen-
diálogos em que a família do porta- tos. Estes sentidos são construídos
dor de uma doença mental pudesse numa ação-conjunta (Shotter, 2000)
se sentir menos julgada, e mais aco- de uso da linguagem. A linguagem,
lhida, compreendida e cuidada (Sei- portanto, não apenas representa o
kulla, Alakare & Aaltonen 2007). Na mundo externo e objetivo, como o
construção dessa prática de inclusão constrói de determinadas maneiras.
e acolhimento, têm-nos sido parti- Tais construções trazem consequên-
cularmente úteis as contribuições do cias para os modos como as pessoas
movimento construcionista social vivem e se relacionam.
(Gergen, 1985, 1997) e, mais especi- Essa compreensão traz uma mudan-
ficamente, os desenvolvimentos des- ça radical em relação às perspectivas
sa perspectiva no campo da terapia modernas em ciência. Ao invés da afir-
familiar (Andersen, 1999; Anderson, mação da realidade, a investigação cons-
2009; White & Epston, 1990). trucionista social nos convida a pensar
sobre as diferentes realidades que são
construídas pelas pessoas em seus re-
A INVESTIGAÇÃO CONSTRUCIONISTA lacionamentos situados. Ao invés da
SOCIAL E A PRÁTICA EM SAÚDE neutralidade de um observador em re-
MENTAL lação ao mundo externo, a investigação
construcionista sugere um sujeito ativo,
O construcionismo social pode ser que constrói e é construído pelo mun-
compreendido como um movimento do ao seu redor, numa relação dialética
que surge a partir da problematiza- (Vygotsky, 2005) e dialógica (Shotter,
ção das formas mais empiricistas de se 2000). Ao invés de uma linguagem que
compreender a ciência e o processo de representa o mundo exterior, a inves-
produção de conhecimento. Em Psico- tigação construcionista chama a nossa
logia, a emergência desse movimento atenção para os efeitos do uso da lin-
tem sido associada à publicação do tex- guagem e seu papel performático (Wit-
to “O movimento construcionista social tgenstein, 1999) – uma linguagem-ação,
em Psicologia”, de autoria de Kenneth que constrói diferentes versões de reali-
Gergen (1985). Neste texto, o autor re- dade e verdade. Ao invés da busca por
úne algumas críticas que vinham sendo essências, regularidades e princípios, a
apontadas por outros autores acerca da investigação construcionista convida à
ciência moderna e, a partir disso, apre- apreciação da diversidade, das irregula-
senta os principais pressupostos de uma ridades e da especificidade das verdades
investigação construcionista social, locais (Gergen, 1997).
com destaque: à afirmação do entrela- Especificamente no campo da Psi-
çamento entre realidade e discurso; ao cologia, o movimento construcionista
foco nos processos de interação social; social estimula uma mudança impor-
e à ênfase ao contexto sócio-histórico tante em relação às perspectivas repre-
como circunscritor das possibilidades sentacionistas ou cognitivistas, priori-
de significação. zando a investigação do modo como as
De acordo com Gergen (1985), a pessoas, através de sua participação em
investigação construcionista social se práticas discursivas, constroem senti-
preocupa em compreender o modo dos sobre o mundo e sobre si mesmas.
pelo qual as pessoas constroem senti- Ou seja, a perspectiva construcionista

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


social nos convida a investigar os jogos cação emerge como uma verdade A construção de um programa
de assistência familiar... 59
de linguagem (Wittgenstein, 1999) em situada. Ao descrever o problema
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
que tais sentidos se fazem presentes e de uma pessoa da família como Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

que tipo de realidades eles constroem doença mental, as pessoas o fazem


à medida que são usados, sustentados conjuntamente, respondendo a
e legitimados nas interações. demandas da própria interação,
De modo sintético, podemos desta- e recorrendo a outras vozes e dis-
car, tal como apresentado por Guana- cursos sociais que se presentificam
es (2006, p. 41), alguns aspectos como naquele momento interativo. As-
comuns à investigação construcionista sim, geralmente estes diálogos são
social: marcados pela polissemia das prá-
a) a noção de linguagem em uso, ticas discursivas (Spink & Medra-
isto é, da linguagem como prática do, 1999), com a convivência tensa
social, construtora de mundo, de de discursos até mesmo contradi-
relações e de formas de vida. Por tórios sobre o mesmo tema.
exemplo, podemos extrair dessa c) o foco no momento interativo, no
noção a compreensão de que em qual as possibilidades de entendi-
suas práticas discursivas as pes- mento se constroem nos momen-
soas constroem a doença mental tos ativos de uso corporificado da
de diferentes maneiras, relacio- linguagem. Essa noção nos leva
nando-se com “ela” de diferentes a valorizar o caráter local e situ-
formas (Guanaes, 2006). Assim, ado das conversas desenvolvidas
ao invés de ser tomada como uma no contexto do tratamento. Di-
única “realidade”, afirmada por ferentes cenários e interlocutores
seus supostos aspectos essenciais criam oportunidades para carac-
e universais, buscamos compreen- terizações únicas e particulares,
der como a doença mental aparece não havendo uma conversa mais
nas práticas discursivas das pesso- verdadeira do que outra acerca da
as de uma família, analisando suas doença mental e seus modos de
implicações tanto para a abertura tratamento, por exemplo.
como para restrição de determi- d) a importância do contexto social,
nadas formas de vida e relaciona- histórico e cultural, que delimita
mento. as possibilidades de emergência
b) o foco relacional e não indivi- de qualquer significação. Esta no-
dual na análise da produção de ção implica em se compreender a
sentidos, em que se destacam a saúde e doença mental como uma
noção de ação-conjunta, e a re- construção social. Diferentes sen-
lação dos enunciados entre si, e tidos sobre doença mental foram
deles com outras vozes e discursos construídos ao longo da história e
sociais, presentes em uma conver- são usados de modo intercambiá-
sa. Entendemos que a produção vel pelas pessoas em suas práticas
de sentidos sobre saúde e doença discursivas. Qualquer processo
mental envolve um processo de de significação está marcado pelo
interanimação dialógica (Bakhtin, contexto social, histórico e cultu-
1997) – isto é, as relações constru- ral que legitima algumas explica-
ídas entre interlocutores e entre ções enquanto exclui outras. No
outros discursos sociais, a partir contexto de um hospital-dia, por
do qual uma determinada signifi- exemplo, frequentemente são mais

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


valorizadas as práticas discursivas Como discute McNamee (1998), uma
60 NPS 43 | Agosto 2012
em que os determinantes bioló- das grandes potencialidades do movi-
gicos e psicológicos/emocionais mento construcionista está justamente
da doença são descritos, em detri- em chamar a nossa atenção para o pro-
mento, por exemplo, de um dis- cesso interativo, uma vez que este cria
curso religioso. oportunidades para que surjam carac-
terizações particulares e a emergência
Estas proposições trazem conse- de significados diversos.
quências também para a compreen-
são dos processos de construção de si.
Ao invés de focalizar a investigação JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS
de aspectos essenciais da constituição
humana (valorizando-se discursos Entendemos que as ênfases cons-
sobre personalidade, traços, caráter), trucionistas na linguagem, no contex-
os autores construcionistas focalizam to sócio-histórico e no processo inte-
de que modo o self emerge como uma rativo permitem o reconhecimento e
possibilidade conversacional e retóri- valorização de múltiplas descrições
ca. Assim, a pergunta “o que uma pes- de si, que variam de acordo com o
soa é” não tem uma resposta única, contexto e com as particularidades
correta ou verdadeira. Ao se descreve- de cada interação. Para os autores
rem, e serem descritas por outros de construcionistas, os processos
determinadas maneiras em uma con- de construção de si constituem,
versa, as pessoas emergem como sen- em última instância, processos
do pessoas de um determinado tipo, conversacionais, por meio dos quais
com um conjunto de características determinadas versões de si são trazidas
pessoais (Shotter, 1989). para a coordenação, sendo ativamente
No contexto da saúde mental, tais negociadas e transformadas na relação
posturas convidam à ampliação de nar- colaborativa entre as pessoas.
rativas possíveis sobre aquilo que é des- Com base nesta compreensão, te-
crito pela família como problema. Além mos buscado construir um programa
do discurso da doença mental – que de atendimento familiar que supere a
geralmente apresenta uma visão estáti- lógica biomédica (centrada no discur-
ca do doente, num tipo de construção so médico e na doença), fomentando a
identitária marcada pelo discurso do revisão constante por parte da equipe
déficit (Gergen & McNamee, 2010) –, de seus conceitos e posicionamentos
quais outras descrições de si podem ser com vistas à construção de uma práti-
úteis para uma família? Como pode- ca centrada no diálogo e na maior ho-
mos aproximar as visões, muitas vezes rizontalização das relações. Assim, em
distintas, apresentadas pelo paciente, nossa prática, o construcionismo social
pela família e pela equipe profissional passa a integrar o setting terapêutico
em relação ao problema apresentado? como uma opção discursiva (McNamee,
Quais as implicações (positivas ou ne- 2004a), que pode favorecer a investiga-
gativas) do uso do discurso da doença ção sobre que tipos de vida social são
mental em determinadas situações e, possibilitadas quando um modo de fa-
especialmente, no cotidiano de uma lar é empregado ao invés de outro.
família? Quais as limitações e potencia- Esse artigo tem como objetivo dis-
lidades dos significados que atribuímos cutir desafios e potencialidades da
aos acontecimentos ao nosso redor? construção de um programa de as-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


sistência familiar em um Hospital- tal instituição, sendo esta composta A construção de um programa
de assistência familiar... 61
-Dia Psiquiátrico, a partir das con- por pacientes acometidos por graves
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
tribuições construcionistas sociais. sofrimentos psíquicos, em sua maio- Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

Especificamente, este artigo busca: a) ria com diagnósticos de transtornos


apresentar o Programa de Assistência psiquiátricos graves. Vale ressaltar que
Familiar (PROAF) que vem sendo de- uma das peculiaridades de tal clientela
senvolvido no Hospital-Dia Psiquiá- é a forma como a doença mental, tan-
trico do Hospital das Clínicas da Fa- to pelo seu quadro sintomático quanto
culdade de Medicina de Ribeirão Pre- pelo discurso atrelado à mesma, que é
to; e b) refletir sobre como a adoção caracterizado pela estigmatização e
de algumas posturas construcionistas pela ênfase no déficit, favorece um
sociais tem favorecido o trabalho nes- marcado prejuízo na rede social e na
se programa. inserção de tais indivíduos na socieda-
de (Gergen & Gergen, 2010, Gergen &
McNamee, 2010).
O HOSPITAL-DIA PSIQUIÁTRICO (HD) Dentro dessa perspectiva, o HD tem
como um de seus norteadores a inclu-
O Hospital-Dia Psiquiátrico aqui são do familiar no tratamento, bus-
referido se caracteriza como uma ins- cando a construção de um vínculo te-
tituição pública vinculada a um hospi- rapêutico que potencialize o processo
tal universitário, que é o Hospital das de mudança. O processo de inclusão
Clínicas da Faculdade de Medicina de dos familiares e atendimento dos mes-
Ribeirão Preto – USP. O Hospital-Dia mos vem ocorrendo desde a criação do
(HD) se insere na rede pública de aten- HD, há aproximadamente cinquenta
dimento a saúde mental do município anos. No entanto, mais recentemente,
de Ribeirão Preto - SP, que compõem o trabalho com as famílias vem sendo
junto a outros 26 municípios da região construído dentro de novos modelos
a DRS-XIII (Diretório Regional de e formas de se pensar e refletir sobre
Saúde), numa rede que abarca aproxi- o atendimento e inclusão do familiar,
madamente um milhão de habitantes. marcando a origem do PROAF (Pro-
O HD possui 16 vagas para pacientes grama de Assistência Familiar). Esses
psiquiátricos em regime de semi-in- novos modelos coincidem com a bus-
ternação, sendo que o paciente aten- ca pela equipe profissional de outros
dido permanece no hospital durante recursos para o trabalho colaborativo
um período de aproximadamente oito junto às famílias e com a consequen-
horas diárias, de segunda a sexta-feira, te aproximação das contribuições do
retornando ao ambiente familiar nos movimento construcionista social em
horários restantes. Psicologia.
Deste modo é oferecida uma mo-
dalidade de atendimento alternativo O Programa de Assistência Familiar do
ao modelo asilar caracterizado pela Hospital-Dia (HD)
internação integral e afastamento
do paciente de seu contexto de vida. No HD o trabalho de inclusão da
Este modelo de atendimento, que se família no tratamento do portador
caracteriza por atendimento intensi- de doença mental tem se dado em
vo e multidisciplinar com ênfase nos diferentes espaços, onde são ofereci-
aspectos psicossociais, é um dos mais das variadas modalidades de atendi-
indicados para a clientela atendida por mento que compõem um programa

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


amplo, com a participação de todas cimento de seu cotidiano através
62 NPS 43 | Agosto 2012
as especialidades que constituem a da observação de aspectos que são
equipe interdisciplinar desse serviço particulares ao mesmo. Além dis-
– constituída por médico psiquiatra, so, as visitas também favorecem a
psicólogo, assistente social, terapeuta construção de vínculos com o pa-
ocupacional, enfermeiro, auxiliares ciente e a comunidade no qual o
de enfermagem, educadora física e mesmo se insere, bem como a in-
por estudantes, aprimorandos e resi- vestigação e possíveis intervenções
dentes destas especialidades. Tais mo- junto à sua rede social e ao seu co-
dalidades são: tidiano de vida;
a) grupo multifamiliar: Realizado d) reuniões familiares: São espaços
mensalmente, este grupo conta conversacionais constituídos por
com a participação dos pacientes, uma dupla de terapeutas, geral-
tanto os que estão em regime de mente de especialidades distintas,
semi-internação no HD quanto o paciente em semi-internação
àqueles que são acompanhados no HD e as pessoas que ele des-
em pós-alta, e seus familiares, cui- creve como sua família (pessoas
dadores ou pessoas que são eleitas para ele mais significativas e que
pelo paciente como significativas se relacionam diretamente com
em sua vida. Tal grupo tem como o problema apresentado). Nesses
objetivo promover um espaço de espaços, buscamos pensar sobre
diálogos e trocas, favorecendo o os modos de comunicação dessa
surgimento de novas descrições família, estimulando as diferen-
sobre a dinâmica familiar, que tes possibilidades de descrição do
possam contribuir com novos po- processo de adoecimento mental.
sicionamentos e formas de se re- Os atendimentos são oferecidos
lacionar; utilizando o recurso da Equipe
b) grupo de cuidadores: Esse grupo Reflexiva, tal como proposto por
ocorre semanalmente e tem como Andersen (1999), e adaptado às
participantes apenas os familia- possibilidades físicas e de recur-
res e cuidadores dos pacientes em sos humanos dessa instituição.
semi-internação no HD ou em se- Originalmente, a aproximação
guimento pós-alta. Visa oferecer com as propostas construcionis-
suporte, orientação e apoio aos fa- tas sociais aconteceu nesse ce-
miliares e cuidadores, favorecendo nário de prática, promovendo
o fortalecimento da rede social de reflexões que agora têm sido, gra-
apoio. Além disso, o grupo tenta dativamente, também transpos-
promover um ambiente acolhedor tas para as outras modalidades de
em que a troca de experiências fa- intervenção.
voreça a expressão de angústias e
sofrimentos, legitimando a expe- Vale ressaltar que uma das peculia-
riência de cada um em relação ao ridades do HD é que este se caracte-
sofrimento emocional; riza como um Hospital Universitário,
c) visitas domiciliares: Têm como vinculado a uma universidade pública.
objetivo a aproximação com o Portanto, o mesmo tem um compro-
contexto social dos pacientes de misso com a capacitação de futuros
modo mais abrangente, potencia- profissionais em saúde mental. Dessa
lizando as condições de conhe- forma, uma das atividades fundamen-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


tais de nosso trabalho é a instrumen- DESAFIOS E POTENCIALIDADES DO A construção de um programa
de assistência familiar... 63
talização dos profissionais, residentes, TRABALHO COM FAMÍLIAS EM SAÚDE
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
aprimorandos e estagiários no modelo MENTAL Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

de atendimento proposto, num pro-


cesso de educação continuada que se O trabalho que estamos desenvol-
dá concomitantemente à prática clí- vendo com famílias no HD tem dado
nica (treinamento em serviço). Isso oportunidade para muitas aprendiza-
tem sido feito com a inserção, no co- gens e reflexões. Trata-se de um tra-
tidiano, de alguns espaços de aprendi- balho desenvolvido a muitas mãos,
zagem e reflexão sobre a prática com incluindo diferentes disciplinas, espe-
famílias. As atividades desenvolvidas cialidades, histórias, desejos e projetos
para aprimoramento teórico e técnico pessoais. Esse forte investimento da
da equipe e dos estudantes são: equipe nesse trabalho já faz desta uma
a) curso breve de Introdução à Tera- prática dife���������������������������
renciada, tecida cotidiana-
pia Familiar: Ministrado por pro- mente por seus participantes e cuida-
fissionais com experiência em tera- da carinhosamente em cada gesto de
pia familiar, especialmente com as respeito e valorização de nossas dife-
práticas descritas como construcio- renças nos espaços institucionais.
nistas sociais nesse campo, este cur- Nesse momento de nosso texto, com-
so foi oferecido para toda a equipe partilhamos com os leitores alguns as-
de profissionais do HD, quinzenal- pectos que significamos como poten-
mente, por um ano (2011). As ati- cialidades e desafios de nosso trabalho.
vidades desse curso foram divididas A distinção entre desafios e potenciali-
em discussões teóricas e interlo- dades não se faz, felizmente, de modo
cuções clínicas (quando a equipe simples e objetivo. Na maior parte das
apresentava seu trabalho com famí- vezes, fazem parte de nossos desafios as
lias e podia refletir sobre as práticas maiores potencialidades de nosso traba-
desenvolvidas); lho, o que torna este um fazer complexo
b) reuniões de discussão de famí- e plural. Via de regra, entendemos que
lias: Estas reuniões acontecem a grande potencialidade e, ao mesmo
em dois momentos semanais com tempo, o maior desafio de nosso traba-
a participação de toda a equipe, lho, se dá justamente pela incorporação
sendo que um desses momentos do discurso construcionista como uma
conta com a presença de uma do- opção discursiva em nosso trabalho com
cente do Departamento de Psi- famílias – aspecto que desenvolveremos
cologia da USP - Ribeirão Preto, detalhadamente a seguir.
especialista em terapia familiar
e primeira autora deste artigo. A revisão do lugar hierárquico do
Nessas reuniões, são discutidos os profissional de saúde mental
casos atendidos pela equipe nas
reuniões familiares; O discurso construcionista social
c) discussões de textos: São reu- convida o profissional de saúde mental
niões abertas para toda a equipe, a assumir novas posturas em relação
em que são discutidos textos sobre ao paciente, posturas estas marcadas
temas pertinentes a proposta de pela escuta e busca da compreensão
atendimento, como Construcio- de como os significados sobre o mun-
nismo Social, Terapia Familiar e do e as pessoas são construídos nas
Processos Reflexivos. relações – das quais o profissional de

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


saúde mental também participa. Es- as pessoas e seus problemas. Convida-
64 NPS 43 | Agosto 2012
sas posturas são um tanto estranhas à mos as pessoas a adotarem uma postu-
formação tradicional do profissional ra de curiosidade (Cecchin, 1998) para
de saúde, fortemente inspirada pelo investigar outros modos de explicação
modelo biomédico e pela lógica da possíveis, ao invés de apresentarem
ciência moderna (Barros, 2002). Nesse muito rapidamente o discurso psiquiá-
modelo, o profissional é visto como o trico ou psicológico tradicional como
especialista, dono de um saber teórico única alternativa. Valorizamos estes
e técnico especializado, colocando-se discursos como uma possibilidade,
numa posição de distanciamento em ao invés de desprezar sua importância
relação ao doente para melhor com- como campo de conhecimento, mas
preender seu problema/doença. No ao mesmo tempo convidamos os pro-
modelo médico/clínico tradicional, a fissionais de saúde a analisarem a sua
distância entre profissional de saúde utilidade situada. Assim, profissionais
e paciente é considerada um recurso e familiares podem se perceber como
importante para se garantir a neutrali- parceiros de diálogo, envolvidos num
dade e uma visão mais realista e obje- mesmo processo de produção de sen-
tiva do problema investigado, e a ocu- tidos de problema e mudança.
pação de um lugar hierarquicamente Nesse sentido, destacamos a im-
superior é legitimada socialmente pelo portância dos espaços de reunião da
domínio do conhecimento teórico e equipe para discussão dos casos aten-
técnico especializado. didos, espaços esses que promovem a
No discurso construcionista social, troca de diferentes experiências e pers-
ao contrário, essa neutralidade do pectivas, favorecendo a construção de
profissional de saúde é questionada um diálogo aberto e produtor de no-
pela própria compreensão de como vas descrições e narrativas possíveis,
se dá o processo de produção de sen- permitindo novos posicionamentos e
tidos. O sentido é visto como uma ações na prática cotidiana da equipe.
ação-conjunta, da qual participam Este aspecto da revisão do papel
igualmente as pessoas envolvidas em hierárquico do profissional pode ser
uma interação social. Reconhecemos entendido como um convite ao esta-
que, em nossa cultura, determinados belecimento de relações colaborati-
discursos sociais conferem ao profis- vas e marcadas pela horizontalidade.
sional de saúde um poder maior do Podemos ilustrar esse aspecto pelo
que aos pacientes, aspecto este que atendimento familiar realizado com
muito frequentemente se repete em um paciente em semi-internação com
nosso cotidiano nos gêneros de fala e diagnóstico de esquizofrenia, e sua
repertórios trazidos por essa interação. mãe, que era voluntária numa asso-
Ainda assim, admitimos que cada mo- ciação sem fins lucrativos de apoio
mento interativo é único e permite a ao paciente psicótico. Essa mãe tinha
abertura a diversos significados e po- um grande conhecimento a respeito
sicionamentos. dos aspectos psiquiátricos da doença
Ao problematizarmos o lugar hie- de seu filho, e, durante os atendimen-
rárquico do profissional de saúde em tos, buscava assumir uma postura de
relação à família atendida, intencio- profissional especialista da saúde, com
namos promover novas posições para indicações e orientações a respeito do
esse relacionamento, bem como mo- tratamento do seu filho e do funcio-
dos de explicação alternativos sobre namento da instituição, parecendo se

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afastar do papel de familiar acompa- com a própria família e também com A construção de um programa
de assistência familiar... 65
nhante de um paciente em sofrimento o serviço de saúde.
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
mental. Tal postura gerava um grande Exemplificamos essa noção com o Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

incômodo nos terapeutas e no restante relato breve de um dos atendimentos


da equipe, já que, em muitos momen- realizados em nosso serviço. Uma pa-
tos, a postura dessa mãe era descrita ciente que estava fazendo acompanha-
como uma forma de desafiar e ques- mento em semi-internação devido a
tionar o conhecimento técnico dos uma depressão comentou em diversos
profissionais que ali estavam atuando. contextos do tratamento sobre seu
Após refletir em diversas discussões de desejo e intenção de morrer. Consi-
equipe a respeito desse atendimento, derando a chegada do fim de semana,
a equipe começou a se questionar so- a médica residente entendeu que a
bre como deveria ser difícil para essa paciente vivenciava uma situação im-
mãe assumir tantas responsabilidades portante de risco de vida, e pediu sua
no tratamento de seu filho, assumin- internação integral. Assim, a paciente
do o papel de mãe e profissional ao foi internada no setor de psiquiatria de
mesmo tempo. Após essa reflexão, em um Hospital Geral. No entanto, nesse
uma reunião familiar, foi perguntado a setor, havia outros pacientes internados,
essa mãe se ela não se sentia sobrecar- que foram considerados pela paciente
regada em tomar conta de tanta coisa e por sua família como “mais graves” e,
a respeito do tratamento do seu filho, por isso, colocariam a paciente em risco.
e se ela não gostaria de dividir parte Uma semana após esse acontecimen-
dessa responsabilidade com a equipe. to, a paciente recebeu alta e continuou
De maneira emocionada, essa mãe pa- seu tratamento em semi-internação
receu entender essa fala dos terapeutas no HD. Sua família compareceu para
como um convite a uma prática de co- uma reunião familiar, mas havia, nes-
laboração e apoio mútuos, e, nos aten- se momento, um forte ressentimento
dimentos seguintes, a relação entre os da família e da paciente com a equipe
profissionais e essa mãe foi sendo am- profissional. A paciente, principalmen-
pliada de forma a buscar sair de uma te, assumia uma postura bastante agres-
postura de “disputa” pela prerrogativa siva com a médica residente, julgando
de quem direcionaria o tratamento, que esta a havia internado desnecessa-
para uma postura de humildade e es- riamente. A intervenção da equipe re-
cuta aberta de ambos os lados. flexiva trouxe novas direções para esse
diálogo, questionando, entre outros
A valorização e o respeito pelo discurso aspectos, o que significava risco para
do paciente e de sua família cada pessoa presente naquela conversa.
Esta parecia uma palavra importante,
Abandonar o discurso do profis- que vinha sendo usada de diferentes
sional especialista (Anderson, 2009) modos nesse diálogo. Em resposta ao
implica também reconhecer as muitas questionamento da equipe, o irmão
formas de se compreender as pessoas, da paciente disse que, ao encontrar a
seus dilemas e o mundo que as cercam. irmã internada em uma unidade mis-
Assim, torna-se central nesse processo ta (pacientes de ambos os sexos), ima-
valorizar o discurso apresentado pelo ginou que a irmã estava em risco por
paciente e por sua família, reconhe- conviver com pacientes de outro sexo.
cendo suas nuances e suas implicações Descreveu-se como membro de uma
para os relacionamentos construídos família oriental e reservada, revelando

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


ter se sentido incomodado por ver a vez mais utilizado em nossa sociedade
66 NPS 43 | Agosto 2012
irmã sendo exposta àquela situação. A como forma de explicar comporta-
mãe da paciente respondeu que risco mentos humanos considerados des-
remetia às inúmeras situações em que viantes da normalidade. São muitas as
tentava se aproximar da filha, revelan- críticas a esse modelo (Gergen & Mc-
do se sentir insegura de como seria por Namee, 2010) e a problemas de diag-
ela recebida. Assim, revelou seu temor nósticos específicos (ver, por exemplo,
de estar em risco pela agressividade discussão feita por Caliman [2009]
que a filha demonstrava em determi- acerca do diagnóstico de TDAH). No
nados momentos. Já a paciente disse entanto, não objetivamos entrar nessa
que se percebia muito diferente dos arena de discussão. Com base nas con-
demais pacientes internados, e assim, tribuições do construcionismo social,
ao ser internada, se viu exposta a uma entendemos que o discurso sobre a
situação de risco. Por fim, a médica doença mental é uma produção cultu-
residente pôde dizer o quanto se viu ral, tendo, portanto, uma validade si-
preocupada com a paciente, temendo tuada que, assim como qualquer outro
que ela colocasse em risco sua pró- discurso em ciência, traz implicações
pria vida. Nesse caso, a conversa sobre para o modo como as pessoas coorde-
as diferentes maneiras de se entender nam suas vidas e seus relacionamentos.
“risco” permitiu a ampliação dos diá- Consideramos que o discurso da
logos desenvolvidos, potencializando doença mental se sustenta, epistemo-
reflexões acerca das diferentes manei- logicamente, numa tradição indivi-
ras de cuidar do outro e favorecendo a dualista, comprometida com a bus-
manifestação dos muitos sentimentos ca por um discurso único de verdade
envolvidos na situação. e por uma descrição objetiva da rea-
Em nosso cotidiano, assumir uma lidade. Em função dessa tradição, as
postura de valorização e respeito pelo formulações diagnósticas em doença
discurso dos pacientes e seus familia- mental buscam explicar o fenômeno da
res têm nos levado a considerar cada doença mental em função de sua etio-
histórica como única, a reconhecer as logia (geralmente apontada como plu-
especificidades culturais da vida em ral, em função de seus determinantes
família e a investir na construção de biológicos, psicológicos e sociais), de
uma prática colaborativa e correspon- seus principais sinais e sintomas, seus
sável. Valorizamos, assim, o diálogo modos de tratamento e prognóstico.
como a forma de encontrarmos as so- Concordamos com outros autores que,
luções para os desafios que o convívio por sustentar uma análise ancorada
com o sofrimento emocional traz para numa tradição cultural de avaliação
o paciente, para sua família e para nós individual, o uso desse discurso pode
como profissionais de saúde. reforçar a valorização do déficit, ge-
rando práticas de estereotipação, jul-
Reflexões sobre o discurso da doença gamento, culpabilidade e responsabili-
mental e suas implicações zação individual (Gergen & McNamee,
2010), aspecto que pode ser fortemente
A “loucura” já apareceu descrita de limitante em processos psicoterápicos.
diferentes modos ao longo das épocas Por outro lado, entendemos que esse
(Pessotti, 1994). Com o advento do discurso também pode ser avaliado po-
modelo médico psiquiátrico, o dis- sitivamente se considerado de dentro
curso da doença mental tem sido cada da tradição em que é construído, visto

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em função dos avanços técnicos e tec- incomum, em nossos grupos, os pa- A construção de um programa
de assistência familiar... 67
nológicos que pode possibilitar. cientes referirem o quanto foi impor-
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
Assumindo as contribuições do tante conhecerem o diagnóstico dado Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

construcionismo social, entendemos por um médico – aspecto que lhes per-


que participamos de um contexto que mitiu atribuir um significado para um
favorece práticas discursivas especial- sofrimento que antes não podia ter um
mente organizadas em torno do dis- nome. Dar um nome ao que vivencia-
curso da doença mental. Participamos vam e vislumbrar um tratamento, para
de um contexto de tratamento, numa alguns, restitui a esperança de ter mais
instituição tradicional, reconhecida saúde, resgatando perdas associadas à
pelo saber médico e psicológico espe- vivência da doença. Para outras pes-
cializado acerca desses termos. Portan- soas, o diagnóstico psiquiátrico é visto
to, é esperado que o sentido da doença como uma “camisa
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de força”, prenden-
mental como fato médico atravesse os do a pessoa numa visão estática de si
diálogos que travamos com os pacien- mesma, permitindo poucas possibili-
tes, orientando nossa trajetória em dades para que novas narrativas de si,
muitos momentos. Assim, não deseja- mais ricas em potencialidades, sejam
mos negar a centralidade desse discur- fomentadas no diálogo. A pessoa passa
so na organização do programa de as- a ser vista apenas em função da doença
sistência à família que desenvolvemos. e suas decorrentes limitações. Ou ain-
Porém, não assumimos que o discurso da, a doença passa a ser usada como
da doença mental é a única possibili- explicação para todas as dificuldades
dade discursiva que se apresenta para vividas pela pessoa em seu cotidiano,
uma família e para um paciente na tornando também a família e os pro-
tentativa de significar os seus proble- fissionais de saúde fortemente impo-
mas, o que nos permite, em nossa prá- tentes frente a ela.
tica, refletir junto a nossa equipe e aos Em uma instituição de semi-inter-
pacientes sobre os efeitos do uso desse nação psiquiátrica reconhecida e valo-
discurso nas interações de que parti- rizada como o HD, não assumir o dis-
cipamos. curso da doença mental como Verdade
Um recurso importante que nos é (Gergen & Gergen, 2010) e manter-se
oferecido pelo discurso construcionis- aberto às construções de sentido feitas
ta social é a compreensão da lingua- conjuntamente com a família têm sido
gem em seu caráter performático. Ao um caminho que se mostra, ao mesmo
descrevermos o mundo e as pessoas tempo, potente e desafiador.
de determinados modos, construímos Para ilustrar esse ponto, nos reme-
determinadas realidades. Percebemos temos ao caso de uma paciente e seu
que as palavras não têm um sentido marido, atendidos no HD em terapia
em si mesmas. É seu contexto de uso de casal. A paciente em semi-interna-
que garante o seu significado. Assim, ção tinha recebido o diagnóstico de
observamos, em nossa prática cotidia- um Transtorno Depressivo comórbi-
na, que o discurso da doença mental do a um Transtorno de Personalidade
pode ser usado de diferentes modos Emocionalmente Instável. O pedido
pelos profissionais, pela família e pe- inicial da paciente para o atendimento
los pacientes. Muitas vezes, o uso do em casal foi para que a dupla de tera-
discurso da doença mental permite ao peutas explicasse ao seu marido que a
paciente e a sua família uma experiên- doença tinha como um de seus sinto-
cia de libertação. Por exemplo, não é mas a diminuição da libido, e tal sin-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


toma estava correlacionado à principal Particularmente útil para esse tra-
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queixa de seu marido, que era a falta de balho é a compreensão proposta por
relações sexuais entre o casal. Durante McNamee (2004b) das diferentes teo-
o atendimento, os terapeutas buscaram rias como opções discursivas. Ao invés
adotar uma postura de curiosidade de adentrarmos a arena de disputas
e abertura a novas possibilidades entre as teorias psicológicas, na busca
narrativas, evitando assumir o papel por encontrar um purismo teórico-
de especialistas e detentores de um -técnico supostamente possível no
saber “superior” (discurso médico/ campo das contribuições construcio-
psiquiátrico), papel esse que os tera- nistas no contexto clínico, buscamos
peutas eram “convidados” a assumir acolher as diferentes formas de com-
principalmente pelos pedidos e quei- preensão que os profissionais de saú-
xas da paciente, que tinha um discurso de trazem para o diálogo, refletindo
marcado pela descrição da doença e de sobre as hipóteses que as sustentam e
seus sintomas. Esse posicionamento aberturas que estas trazem para a con-
permitiu que durante os atendimentos versação. Geralmente, incentivamos
a paciente e seu marido concluíssem a transformação destas hipóteses em
que as questões do casal iam além da questionamentos, buscando garantir
doença e que a falta de relações sexuais maior coerência com a manutenção
entre o casal parecia estar muito mais de uma postura mais horizontal com
vinculada a histórias passadas do mes- as famílias que atendemos e a valori-
mo (por exemplo, história de traição), zação da participação da família na le-
e como as mesmas eram significadas gitimação dos recursos que nós, como
no presente por ambos, do que a um equipe, trazemos para o atendimento.
sintoma da doença (diminuição da Um exemplo pode ilustrar o modo
libido). Nesse sentido o discurso da como acolhemos as diferentes teo-
doença, para esse casal, parecia manter rias explicativas em nosso cotidiano.
a distância entre ambos e evitar a re- Atendemos por cerca de quatro me-
flexão sobre aspectos delicados de seu ses um casal nas reuniões familiares.
histórico como casal. A mulher estava em semi-internação
e seu marido a acompanhava com
O convívio com múltiplas teorias e assiduidade e frequência nos aten-
disciplinas dimentos. Nas reuniões familiares, a
equipe era especialmente tocada pela
Como referimos anteriormente, cumplicidade entre os dois. A despei-
nossa prática é marcada pela inte- to disso, não era incomum questio-
ração de profissionais de diversas namentos quanto a essa relação – ao
especialidades, familiarizados com lado do marido, a paciente aparecia
diferentes teorias em psicologia. Em especialmente infantilizada, regredi-
nossa prática, buscamos valorizar es- da, o que fazia aparecer muitas dúvi-
sas diferenças, aprendendo a conviver das quanto à sua satisfação com esse
com a tensão discursiva (Steward & relacionamento. Certa vez, um médi-
Zediger, 2002), que surge da convi- co residente comentou sobre seu des-
vência de diferentes modos de com- conforto com a situação – segundo
preender a realidade, e, no caso espe- ele, o marido usava demasiadamente
cífico do trabalho desenvolvido, de o mecanismo defensivo da racionali-
diferentes modos de se pensar famí- zação (teoria psicanalítica) para lidar
lia, saúde e doença mental. com o sofrimento da esposa. Essa era

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uma percepção apoiada por diferen- blemas no trabalho e das maneiras A construção de um programa
de assistência familiar... 69
tes pessoas da equipe. Ao invés de como ele lidava com sua ansiedade.
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
abandonarmos essa explicação por Ao perceber as dificuldades do ma- Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

entendermos que esta não fazia par- rido, a esposa também pôde encon-
te de nosso vocabulário explicativo, trar para si novas posições, e a equipe
buscamos refletir sobre vantagens pôde conhecer muitos dos recursos
e desvantagens de se assumir essa usados por este casal em seu cotidia-
descrição em nossa interação com no para construção de uma relação
esse casal. Percebemos que, de certo sólida e companheira.
modo, nomear como racionalização
o comportamento desse marido pa- A atuação em equipe reflexiva
recia desvalorizar todo o esforço que
ele parecia fazer, no momento, para O trabalho com a equipe reflexiva
participar do tratamento da esposa de tem se constituído, em nossa prática,
maneira colaborativa. Como ele era o um recurso formidável, permitindo
único cuidador, o que nomeávamos uma exploração mais sensível e plural
como racionalização, para ele, parecia acerca das vivências da família, bem
um recurso importante para assumir como dos próprios recursos da equi-
uma postura de apoio e encorajamen- pe para o trabalho em saúde mental.
to, da esposa e de si mesmo para dar Ao mesmo tempo, temos nos depara-
conta da situação que vivenciavam. do constantemente com um desafio,
Ao mesmo tempo, esta descrição nos que diz respeito à superação das ex-
convidava a pensar aspectos que até pectativas, socialmente construídas,
então não haviam sido explorados no acerca do lugar de “observação”. Mes-
atendimento. Estaria esse marido so- mo após explicarmos e discutirmos
brecarregado? Poderia ele confiar no os pressupostos construcionistas so-
espaço de reunião familiar para tam- ciais (Gergen, 1997) e os norteadores
bém compartilhar de suas dores? Esta do trabalho com processos reflexivos
era uma questão frequentemente tra- (Andersen, 1999), colocando-os como
zida pela esposa, que se queixava de uma perspectiva que busca abandonar
que o marido não conversara sobre a retórica da verdade em prol da valo-
seu cotidiano com ela. Ele, por sua rização e apreciação da diversidade, o
vez, dizia que não falava de seus pro- receio de uma avaliação e julgamento
blemas porque era ela quem precisava ainda se faz presente, tanto por parte
de cuidado no momento. No percur- dos profissionais (sobretudo médicos
so que trilhamos com este casal, pu- residentes, aprimorandos e estagiá-
demos usar o sentido de “racionali- rios) como dos pacientes.
zação” não como uma interpretação Este receio aparece de muitas for-
da realidade daquele casal, mas como mas em nosso cotidiano. No caso dos
um recurso para explorarmos ou- profissionais é comum que, ao expe-
tros modos de incluir esse marido no rimentarem o trabalho da equipe pela
atendimento. Assim, caminhamos no primeira vez, demonstrem esse estra-
sentido de mostrar o quanto parecia nhamento, mostrando-se mais tímidos
importante para a esposa conhecer do e receosos de serem avaliados por sua
seu cotidiano, aspecto que também a atuação como terapeutas. Em alguns
fortalecia para buscar sua melhora. casos, acontecem pedidos ou mesmo
Em muitos de nossos atendimentos, o negociações prévias com a família para
marido pôde contar sobre seus pro- que não haja o trabalho da equipe.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


Geralmente, acolhemos esses senti- CONSIDERAÇÕES
70 NPS 43 | Agosto 2012
mentos, respeitamos a vontade desses
profissionais, mas reforçamos a impor- Apresentar o modo como vimos
tância de abandonarmos essa tradição desenvolvendo nosso trabalho no HD,
que nos faz sentir avaliados e julgados dividindo com nossos leitores aqui-
por nosso desempenho individual. Na lo que significamos como desafios e
maior parte das vezes, essa impressão potencialidades de nossa prática, nos
acaba sendo alcançada ao longo do oferece também a oportunidade de
processo, quando todos compreendem refletir sobre o processo de construção
esse modo de trabalhar e passam a ver desse fazer, valorizando o caminho
a equipe não como uma ameaça, mas percorrido e vislumbrando desdobra-
como um recurso que contribui tan- mentos possíveis.
to com a família atendida como com Entendemos que nossa possibili-
a própria equipe. Com alguns grupos, dade de trabalho no HD só foi possí-
passa a haver até mesmo um forte en- vel pela adoção do construcionismo
tusiasmo com o uso desse recurso, ha- social como uma opção discursiva
vendo pedidos explícitos por terem a (McNamee, 2004a, 2004b), assim nos
equipe como parte dos atendimentos. permitindo entrar em diálogo com
Podemos entender esse processo de outras perspectivas teóricas e modos
aceitação da equipe reflexiva como um de compreender o processo de saúde
convite a um olhar para o processo psi- e adoecimento mental. Não assumi-
coterápico voltado para as possibilida- mos em nenhum momento uma pers-
des da construção coletiva do mesmo, e pectiva persuasiva, que nos levaria a
não focado no desempenho individual afirmar nossa postura como melhor
de cada participante. do que qualquer outra defendida no
Da parte dos pacientes, observamos serviço. Ao contrário, buscamos somar
que, a despeito do caráter investiga- esforços para a construção de um fazer
tivo, apreciativo, alusivo e valorativo conjunto e colaborativo, valorizando
dos comentários da equipe reflexiva, diferenças e reconhecendo recursos.
eles também trazem uma compreen- Entendemos também que investir
são que, de certo modo, retrata o dis- num processo de transformação pela
curso individualista e a visão médica prática – ou seja, num processo de en-
tradicional. Nesse sentido, sentem-se sinar construcionismo fazendo cons-
também observados, mas de uma ma- trucionismo e de ensinar o trabalho
neira diferente e especial. Não raro, com famílias trabalhando com famí-
fazem referências à “junta médica” ali lias – tem demonstrado grande po-
presente e sentem-se agradecidos por tencial, pois os estudantes (residentes,
serem cuidados por tantas pessoas, in- estagiários e aprimorandos) exercem a
teressadas em explicar e compreender prática concomitantemente (e às vezes
o problema que os levaram ao HD. até mesmo antes) a aprenderem seus
Em ambas as situações, percebemos pressupostos. Isso desperta a curiosi-
o quanto nossa prática é perpassada dade pela diferença antes de convidar
pelo ideário moderno, que faz com às críticas teóricas comuns a esse cam-
que, ainda quando pensada com base po (Gergen, 1997).
em pressupostos construcionista ou Por fim, entendemos que o tra-
pós-modernos, seja ainda avaliada balho em saúde mental é complexo,
com base em um discurso individua- marcado pela tensionalidade comum
lista (Grandesso, 2000). ao diálogo nesse campo – tanto entre

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


profissionais, como com os pacientes De Leon, G. (2003). A Comunidade Te- A construção de um programa
rapêutica: teoria, modelo e método. de assistência familiar... 71
e suas famílias. Assim, levamos como
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus
postura para o trabalho em equipe e (C. A. Bárbaro, Trad.). São Paulo: Vinicius Santos, Fabiana S. Brunini...

para o nosso trabalho com famílias a Edições Loyola.


intenção de marcar nossas posições, Delgado, P.G. (1992). As razões da tu-
ao mesmo tempo em que deixamos os tela: psiquiatria, justiça e cidadania
outros acontecerem para nós (Steward do louco no Brasil. Rio de Janeiro: Te
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um fazer que busca o diálogo e a co- Gergen, K.J. (1985). The social con-
laboração, reconhecendo que, nesse structionist movement in modern
campo marcado por desafios e com- psychology. American Psychologist,
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a nossa capacidade de ajudar a pessoa Gergen, K. J. (1997). Realities and re-
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Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 54-72, ago. 2012.


ARTIGO

TRÊS SABERES A SERVIÇO DAS FAMÍLIAS: UMA


DISCUSSÃO SOBRE A SUPERVISÃO DAS EQUIPES DOS
CENTROS DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
THREE KNOWLEDGES AT FAMILIES SERVICE: A DISCOURSE ON
SUPERVISION OF TEAM OF SOCIAL ASSISTANCE REFERENCE CENTRE

RESUMO: Este texto pretende discutir a prática ABSTRACT: This paper discusses the practice CRISTIANA P. G.
de supervisão de equipes multidisciplinares que, of supervision of multidisciplinary teams that, PEREIRA
entre outros serviços, realizam trabalho social among other services, carry out social work Psicóloga formada pela
com famílias. A discussão terá por base o traba- with families. The discussion will be based USP, Terapeuta de casal,
lho desenvolvido junto às equipes dos Centros on the activities conducted with the crew of família e comunidade
de Referência de Assistência Social do município the Reference Centers of Social Welfare of the formada pela PUC-SP,
de Jundiaí. Esta supervisão vem sendo realizada city of Jundiaí. A supervision activity is being membro da equipe de
desde 2009 e, em nossa opinião, já acumula conducted since 2009 and, in our opinion, has Coordenação do Instituto
certa experiência que pode ser útil para o debate already accumulated some experience that may de Terapia Familiar de São
e a prática deste tipo de atividade. Essa prática be useful to the debate and execution of this Paulo- ITFSP.
traz duas novidades: O encontro de três saberes type of activity. This practice brings two news: e-mail: crispgp@uol.com.br
ou disciplinas, a saber, Terapia Familiar, Serviço The combination of three knowledge, namely
Social e Economia — em olhares complementa- Family Therapy, Social Work and the Economy
res. A segunda novidade tem sido a construção - in complementary views. The second innova- RODRIGO P. S. COELHO
coletiva de uma metodologia de trabalho a partir tion has been the collective construction of a Economista formado pela
de uma política publica no contexto do Sistema working methodology from a public policy in the UERJ, mestre e doutorando
Único de Assistência Social (SUAS). context of the SUAS. em Economia Social do
Trabalho pela UNICAMP,
PALAVRAS-CHAVE: supervisão, família, políti- KEYWORDS: supervision, family, public policy, Pesquisador do NEPP/
ca pública, acompanhamento de trabalhadores accompaniment of social workers. UNICAMP.
sociais.

REGINA MARIA HIRATA


Assistente social formada
pela PUC-Campinas,
Mestre em Economia
Este texto pretende discutir a prática de supervisão de equipes multidisciplinares Social e do Trabalho pela
que trabalham nos Centros de Referência de Assistência Social do município de UNICAMP, Pesquisadora do
NEPP/UNICAMP.
Jundiaí, que, entre outros serviços, realizam trabalho social com famílias. Essa su-
pervisão vem sendo realizada desde 2009 e, em nossa opinião, já acumula certa
experiência que pode ser útil para o debate e a prática desse tipo de atividade.
O texto está estruturado em seis seções. Na primeira seção discutimos o con- Recebido em 17/04/2012.
texto mais amplo onde se dá este serviço: um contexto de mudança na forma Aprovado em 10/05/2012.
como a política de assistência social se organiza no nível nacional. Em seguida
conceituamos os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), definidos
como a “porta de entrada” para a política de assistência social e o lócus de atuação
das equipes que são supervisionadas nesta experiência. Na terceira seção apresen-
tamos rapidamente os CRAS de Jundiaí e suas equipes. Em seguida discutimos
diretrizes e as formas idealizadas de atuação da supervisão. Na penúltima seção
apresentamos alguns exemplos para dar maior visibilidade aos aspectos discutidos
até aqui. Algumas considerações sobre contínuas e muitas vezes insuficien-
74 NPS 43 | Agosto 2012
o trabalho de supervisão de equipes tes. Não havia clareza sobre qual seria
fecham este texto. a forma mais adequada de atuação da
assistência social. Pereira (1996) che-
ga a afirmar que a situação da assis-
1. O CONTEXTO AMPLO: UMA NOVA tência social era distinta das demais
POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL políticas sociais por ser “genérica na
atenção e específica nos destinatários,
Uma nova fase da política de assis- ao contrário das demais políticas so-
tência social começou a ser desenhada cioeconômicas setoriais, que são gené-
em dezembro de 2003, quando houve ricas nos destinatários e especializadas
a IV Conferência Nacional de Assistên- na atenção”. Em outras palavras, a
cia Social. O tema principal foi “Assis- professora Pereira afirma que a polí-
tência Social como Política de Inclusão: tica anterior ao SUAS era vinculada a
uma Nova Agenda para a Cidadania”. uma população específica (pobres) e
Além do tema principal, a Conferência não a uma problemática, um serviço
comemorava os 10 anos da promul- ou uma proposta.
gação da Lei Orgânica da Assistência Essas características facilitaram o
Social (LOAS). uso clientelista da política. Assistência
O resultado mais concreto da Con- Social e Assistencialismo eram vistos
ferência foi a elaboração de uma nova quase como sinônimos. Também a as-
Política Nacional de Assistência Social sociação entre a Política de Assistência
(PNAS, 2004) e a edição de uma Nor- Social e ações de caridade foi muito
ma Operacional Básica que instituiu forte à época.
o Sistema Único de Assistência Social A partir da implantação do Sistema
(NOB/SUAS, 2005). Essas normas es- Único de Assistência Social (SUAS)
tabelecem um novo perfil de atuação essa situação começa a se modificar.
para uma política radicalmente dife- Um conjunto de normatizações (leis,
rente do que vinha sendo historica- portarias, normas operacionais) co-
mente praticado. meça a estruturar, de forma inédita, a
Desde os anos 30 do século XX, a área. O combate à pobreza e a garantia
assistência social configurou-se como de direitos são estabelecidos como os
uma área de intervenção estatal. A focos da política.
criação do Conselho Nacional de Ser- As ações de assistência social fo-
viço Social (CNSS), em 1938, e da Le- ram classificadas como de proteção
gião Brasileira de Assistência (LBA), social básica (de caráter preventivo)
em 1942, são os marcos iniciais de e de proteção social especial (quan-
política social. Até essa data existiam do já há que remediar uma viola-
ações de assistência social, porém não ção de direitos), cada qual com um
como uma política pública de respon- equipamento público de entrada – o
sabilidade do Estado. As ações carita- Centro de Referência de Assistência
tivas eram comandadas pela Igreja ou Social (CRAS) para a proteção so-
por senhoras da sociedade, mesmo cial básica; e o Centro de Referência
que eventualmente contassem com re- Especializado de Assistência Social
cursos e subvenções estatais. (CREAS) para a especial. Uma Tipi-
Entre os anos 1930 e 2003, a as- ficação Nacional de Serviços Socio-
sistência social caracterizou-se por assistenciais descreveu quais serviços
ações emergenciais, pontuais, des- básicos devem ser obrigatoriamen-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


te oferecidos, com quais objetivos e sociais, psicólogos, técnicos de nível
Três saberes a serviço das 75
com quais estruturas e resultados es- médio, entre outros. famílias: uma discussão...
perados. Uma outra norma operacio- Esta equipe deve fazer a “Gestão do Cristiana Pereira, Rodrigo Coelho...

nal estabeleceu padrões mínimos de Território”, ou seja, realizar um diag-


equipes técnicas para a execução dos nóstico territorial, conhecendo os de-
serviços (NOB-RH/SUAS, 2006). mais serviços governamentais e não
Os avanços observados nos últi- governamentais que atuem na área,
mos seis anos levam à necessidade de buscando articular as ações da rede so-
repensar a associação automática de cioassistencial; trabalhar por uma ação
assistência social com assistencialis- integrada com outras áreas da política
mo, clientelismo ou caridade. Trata- social, como saúde e educação; promo-
-se, agora, de uma política pública ver a “busca ativa” – atividade que con-
com objetivos estabelecidos e formas siste em ir conhecer e atrair pessoas que
de atuação acordadas por um grande poderiam participar das atividades de
número de atores sociais*. Porém, o assistência social, mas que não o fazem
pouco tempo percorrido desde o iní- por desconhecimento, dificuldade de
cio desta mudança aponta para um locomoção ou falta de estímulo.
processo ainda em construção. E é Também cabe à equipe técnica
neste contexto de construção que vem dos CRAS ofertar o Serviço de Prote-
se dando o trabalho de supervisão das ção e Atendimento Integral à Família
equipes multidisciplinares dos CRAS (PAIF) e outros serviços de proteção
do município de Jundiaí. social básica no território. Segundo es-
tabelecido pelo Conselho Nacional de
Assistência Social, o PAIF
2. OS CENTROS DE REFERÊNCIA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL (CRAS) (...) consiste no trabalho social com fa-
mílias, de caráter continuado, com a fi-
O CRAS é definido como nalidade de fortalecer a função protetiva
das famílias, prevenir a ruptura dos seus
(...) uma unidade pública estatal descen- vínculos, promover seu acesso e usufruto
tralizada da política de assistência social, de direitos e contribuir na melhoria de
responsável pela organização e oferta de sua qualidade de vida (MDS, 2009, p. 6).
serviços da proteção social básica do Sis-
tema Único de Assistência Social (SUAS) Além do PAIF, os CRAS podem
nas áreas de vulnerabilidade e risco social oferecer, se contarem com estrutura
nos municípios e DF (Ministério do De- adequada, Serviços de Convivência e
senvolvimento Social e Combate à Fome Fortalecimento de Vínculos, o ProJo-
[MDS], 2009, p. 9). vem Adolescente Federal, projetos de
inclusão produtiva e outros serviços
Trata-se de um equipamento que de âmbito estadual ou municipal. * As regras que regem a
nova política de assistência
deve ter uma base territorial definida, social foram discutidas em
a partir de um diagnóstico de vulnera- Conferências Nacionais,
Estaduais e Municipais, por um
bilidade do município. O CRAS deve 3. OS CRAS NO MUNICÍPIO DE grande número de Conselhos
contar com uma equipe multidiscipli- JUNDIAÍ/SP de Assistência Social (também
nas três esferas de governo) e
nar que pode variar entre 4 e 8 pro- por instâncias de negociações
fissionais, de acordo com o volume de O município paulista de Jundiaí bipartites (com representantes
famílias referenciadas e famílias aten- conta, em agosto de 2011, com três dos estados e dos municípios) e
tripartites (unindo representantes
didas. A equipe deve incluir assistentes CRAS em operação, a saber, o CRAS de municípios, estados e União).

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Jardim São Camilo, o CRAS Tamoios foi demandada pela Secretaria Muni-
76 NPS 43 | Agosto 2012
e o CRAS Jardim Novo Horizonte. To- cipal de Inclusão Social (SEMIS)* do
dos esses territórios apresentam gran- município de Jundiaí, que pretendia
de vulnerabilidade social, com uma oferecer a seus técnicos um espaço
população empobrecida, sofrendo de troca de experiências, de formação
com a presença do tráfico de drogas permanente e de discussão de casos.
(maior em um território, menor em Especialmente, o CRAS mereceu
outro) e diversas outras vulnerabili- uma atenção especial, devido ao fato
dades. Pelo planejamento da Prefei- de ser um equipamento recente. Ha-
tura, o município ainda carece de um via interesse em apoiar as equipes
CRAS, que deve ser implantado assim nesse momento de consolidação da
que houver recursos para tal. ação desses equipamentos – e as ati-
Nestes Centros de Referência tra- vidades de supervisão se iniciaram
balham três equipes que somam cin- em março de 2009. Foram, portanto,
co assistentes sociais, três psicólogos quase três anos de trabalho até o mo-
e três técnicos de nível médio. As mento em que este texto foi redigido
equipes realizam atividades de aten- (dezembro de 2011).
dimento pontual; orientações psi- A equipe de supervisão é formada
cossociais; entrevistas diagnósticas; por três integrantes: uma assisten-
acompanhamento individualizado de te social, uma psicóloga e um eco-
famílias; visitas domiciliares; grupos nomista. Dentro de cada formação,
socioeducativos; encaminhamentos “planejou-se” que cada profissional
para serviços e orientações gerais; contribuísse com um olhar específico.
inscrição de famílias no Pró-Social Assim, a psicóloga, especialista em te-
(sistema de cadastro de beneficiários rapia familiar, teria uma intervenção
do Governo Estadual); reuniões de voltada para as relações, os vínculos,
micro-rede (com função de discutir buscando enfatizar os conceitos de
o encaminhamento de casos especí- realidade coconstruída e de diálogos
ficos); reuniões de macro-rede (com transformadores; já a assistente social
vistas a fortalecer a ação interseto- deveria discutir o processo de mudan-
rial); e oficinas com instituições par- ça paradigmática pelo qual o serviço
ceiras (Pinto et al., 2009). social vem passando; e o economista,
É com a equipe de técnicos de nível especialista em políticas públicas, te-
superior dos CRAS que a supervisão ria a preocupação com a gestão, com a
é realizada, sempre por meio de uma realização cotidiana da política públi-
reunião mensal. ca: seguir as normas, alcançar as me-
tas, medir resultados.
Na prática, essa separação tão es-
4. QUAL SUPERVISÃO? treita não é possível. Com o desen-
volvimento do trabalho conjunto,
No início de 2009, começou o pro- as intervenções de um determinado
cesso de supervisão da equipe dos supervisor nas “áreas de especialida-
CRAS de Jundiaí realizado pelo Nú- des” dos demais ficam cada vez mais
cleo de Estudos em Políticas Públicas comuns. Para a equipe de supervisão
* Em 2010, a Secretaria (NEPP), ligado à Universidade Es- este é um ganho não planejado inicial-
mudou de nome para
Secretaria Municipal tadual de Campinas (UNICAMP), e mente, mas muito expressivo.
de Assistência e pelo Instituto de Terapia Familiar de De forma resumida, a supervisão
Desenvolvimento Social
(SEMADS).
São Paulo (ITF-SP). Essa supervisão procura:

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• cuidar dos membros da equipe e das. Ou seja, criar espaços de reflexão
Três saberes a serviço das 77
das relações entre eles – “Cuidar e crescimento, especialmente quando famílias: uma discussão...
do Cuidador”; esta escuta busca fortalecer as compe- Cristiana Pereira, Rodrigo Coelho...

• ajudar na criação de uma metodo- tências e enfatizar os seus pontos po-


logia de trabalho com família; sitivos.
As famílias devem contar com apoio
• sistematizar as ações executadas
para expandir as relações entre gera-
pelas equipes;
ções, fortalecendo-as como um grupo
• estimular o trabalho em conjunto onde possam mostrar sua incrível di-
com a rede socioassistencial e de versidade e mobilidade. Assim, surgem
outras políticas sociais do território. os seguintes desafios para as equipes
que realizam esse trabalho: elas devem
Cada atividade específica citada superar preconceitos, conscientizando-
acima se insere em um contexto mais -se de que contextos de dor devem ser
amplo ligado às mudanças observadas tratados com delicadeza e atenção e dar
na política nacional de assistência so- importância à circulação das informa-
cial desde 2004. Ao cuidar dos mem- ções e histórias familiares. Também é
bros da equipe, procuramos iluminar fundamental o conhecimento da traje-
e ampliar seus recursos e ferramentas tória de vida da população alvo, ficando
de trabalho, oferecendo um espaço sempre atentas ao risco de descontextua-
para compartilharem as dificuldades lizar as famílias de sua história e tendo
encontradas e os impactos vividos no cuidado para não tornar as famílias po-
intenso contato com a vulnerabilidade bres um “Outro” problemático em re-
das famílias no território. lação a modelos socialmente construí-
Também se percebe que há muitas dos e naturalizados como “o modelo”
dúvidas quanto à operacionalização (Sarti, 2003).
do Sistema Único de Assistência Social. Se para as próprias equipes da polí-
Devido ao passado de ações genéricas tica de assistência social existe o desafio
e inespecíficas da Assistência Social, de se trabalhar uma visão do Outro
torna-se importante consolidar as prá- que supere práticas assistencialistas
ticas e ações executadas dentro do novo e caritativas, podemos imaginar que
paradigma proposto. Somente assim o para os técnicos das demais políticas
trabalho técnico conseguirá superar os sociais – educação, saúde, habitação,
antigos limites dessa política. Dentro entre outros –, esta confusão é ainda
desta perspectiva se inserem as ações de mais acentuada. Surge, então, o desafio
“Ajudar na criação de uma metodologia de conseguir estabelecer um novo lu-
de trabalho com família” e “Sistemati- gar para a política de assistência social
zar as ações executadas pelas equipes”. no município. Isto implica estimular a
Com a nossa experiência obser- intersetorialidade, sabendo diferenciar
vamos que há ações que fazem bem as funções e responsabilidades especí-
às famílias e mostram-se úteis no ficas de cada área social, e promover a
desenvolvimento da resiliência e do ação articulada em prol de resultados
protagonismo no enfrentamento das mais efetivos para os cidadãos. É nes-
dificuldades cotidianas. A supervisão se sentido que age a supervisão, sem-
procura refletir com as equipes dos pre buscando estimular o trabalho em
CRAS sobre como criar contextos em conjunto com a rede socioassistencial e
que as famílias possam trocar expe- de outras políticas sociais do território
riências junto a outras e serem ouvi- frente à necessidade de enfrentar casos

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


complexos onde vários atores estão pode ser incorporada (e esperamos
78 NPS 43 | Agosto 2012
presentes fazendo parte do problema e que efetivamente seja) ao trabalho
das possíveis soluções. delas com as famílias atendidas nos
A equipe multidisciplinar de super- territórios. Isso porque as equipes
visão busca uma postura pós-moderna executam um conjunto de ativida-
para alcançar os objetivos propostos. des (Entrevistas, Plantões de Escuta,
Por “postura pós-moderna”, seguimos Atendimentos Familiares, Grupos de
a definição de Harlene Anderson, para Mães, Grupos de Jovens) que podem
quem o termo não se refere a um mo- ser, a partir do espaço da supervisão,
delo ou técnica específica, mas sim a descritas como conversas dialógicas
uma crítica à possibilidade de apreen- transformadoras.
der a realidade em-si, “do jeito que ela
é” (1997). Trata-se de uma crítica ao As conversações dialógicas transformado-
pressuposto de que a realidade é sepa- ras dizem respeito a conversas em que os
rada do observador. O conhecimento participantes se envolvem uns com os ou-
está construído socialmente a partir de tros (em voz alta) e com eles mesmos (em
uma linguagem constitutiva acordada silêncio) – em palavras, sinais, símbolos,
por um grupo. “Do ponto de vista gestos, etc. – em uma indagação mútua ou
pós-moderno, a realidade – mesmo a compartilhada: reagindo conjuntamente
chamada realidade científica – é tecida (isto é, comentando, examinando, questio-
e re-tecida em teares linguísticos com- nando, considerando, refletindo, concor-
partilhados (Anderson, 1997).” dando, etc.) à medida que falam das ques-
Assim, por meio do diálogo cola- tões colocadas (Anderson, 2009, p. 42).
borativo entre todos os envolvidos,
vamos expandindo ideias, ampliando Por fim, dentro da própria equi-
e coconstruindo novos significados pe de supervisão vemos nossas dife-
para os casos trazidos para a discus- renças de enfoque, o que possibilita
são pela equipe técnica dos CRAS. ainda mais a multiplicidade de vozes.
Conseguimos, assim, valorizar a mul- Além de trazer novos pontos de vista
tiplicidade de vozes e perspectivas para o debate, esta ausência de visão
que as equipes, em sua diversidade, única da supervisão ajuda a diminuir
podem oferecer. o problema da relação saber/poder
A consciência da própria participa- da equipe de supervisão. Nesse pon-
ção na coconstrução de uma realidade to, concordamos com Joel Birman,
compartilhada em qualquer relação é quando afirma que os enunciados
muito útil em qualquer contexto. Nos- científicos se apresentam como de-
sa prática mostra que os trabalhadores tentores da Verdade em-si, pois se-
sociais saem de um construto inicial riam baseados em processos que de-
mais rígido e, à medida que vão se veriam pairar acima das “diferenças de
somando outras visões e outras pers- perspectivas e de interesses dos diversos
pectivas, ganham opções novas e cria- grupos sociais em confronto numa
tivas. Vemos, também, que as equipes sociedade complexa” (Birman, 1997,
que participam da supervisão tendem p. 8). Com base nesse pressuposto, os
a reter melhor aquelas ideias de cujo detentores do saber assumem uma
desenvolvimento participaram. posição de poder frente aos não de-
Além de propor uma construção tentores. Estas verdades científicas,
coletiva dos significados das ativi- ainda mais se somadas à chancela das
dades das equipes, essa perspectiva “marcas” NEPP/UNICAMP e ITF-SP,

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poderiam fazer do discurso da super- elaboração das angústias e vivências da
Três saberes a serviço das 79
visão um parâmetro absoluto. equipe, gerar aprendizado através de famílias: uma discussão...
Mas a multiplicidade de vozes e os novos significados surgidos no dialogo. Cristiana Pereira, Rodrigo Coelho...

diferentes olhares que, pelo diálogo, Na noite do dia 05/01/2011, fortes


vão se transformando de díspares a chuvas causaram deslizamentos em al-
complementares, ajudam a relativi- guns bairros de Jundiaí, especialmen-
zar o lugar da verdade e do certo que, te em dois territórios de atuação dos
muitas vezes, é colocado na equipe de CRAS – o Jardim Tamoio e o Jardim
supervisão. São Camilo. Embora não fosse a pri-
meira enchente do município, foi a
primeira vez, desde a implantação dos
5. A SUPERVISÃO NA PRÁTICA CRAS, em que consequências do fato
atingiram um grande número de pes-
Esta seção tem por objetivo apre- soas, ocasionando mortes. Pelo menos
sentar algumas situações ocorridas nos 3 meses seguintes, as equipes dos
durante as atividades de supervisão três CRAS tiveram como ação priori-
que ajudam a entender a forma como tária o apoio às famílias desabrigadas
trabalhamos com as diretrizes acima nestas áreas.
discutidas. O objetivo é ilustrar, por Apesar da ampla experiência dos
meio de três momentos diferentes, os técnicos envolvidos (alguns com mais
desafios envolvidos na supervisão de de 15 anos de trabalho na área), a in-
equipes que trabalham com famílias. tensidade da tragédia marcou muito
Antes, contudo, convém descrever este trabalho. Num primeiro momen-
os formatos e ferramentas que a su- to, as demais ações dos CRAS foram
pervisão se propõe: suspensas, incluindo as atividades de
• encontros abertos: rodada inicial supervisão. Em março, a supervisão
dos participantes e discussão de foi retomada e, por iniciativa dos téc-
casos; nicos dos CRAS, o tema foi largamen-
te discutido. Nesses encontros, atra-
• espaço reflexivo: novos significa-
vés dos vários relatos, das perguntas
dos são construídos mediante o
e comentários procuramos construir
diálogo e a soma das diversas vo-
coletivamente uma nova dimensão da
zes e pontos de vista;
tragédia e da importância das ações
• contexto facilitador de acolhimen- desenvolvidas por eles.
to dos participantes com afetivi- Conversamos muito sobre a reação
dade, respeito e humor; das famílias frente ao desabrigamen-
• troca de informações e sistemati- to. Em diversas situações as famílias
zação de textos. foram aliadas dos técnicos, mas tam-
bém houve outras situações nas quais
I.CRAS em situação de emergência direcionaram a eles a insatisfação com
“a ausência da Prefeitura”; houve casos
Uma situação particularmente difí- de solidariedade entre vizinhos, assim
cil, ocorrida no início de 2011, exem- como práticas abertas de violência fí-
plifica o espaço da supervisão sendo sica e sexual; além disso, havia grande
usado para alcançar muitos dos ob- angústia da equipe técnica dos CRAS
jetivos propostos, bem como: cuidar com o que consideravam como “jeiti-
dos membros da equipe, sistematizar nho” brasileiro na hora de se conseguir
as ações executadas, dar espaço para vantagens individuais e “acomodação”

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


das famílias que se “conformavam” vitórias e pontos positivos alcan-
80 NPS 43 | Agosto 2012
com a situação. çados?;
A equipe de supervisão contextuali- • questionar a avaliação de certas
zou o momento difícil vivido pelas fa- situações: Por exemplo, algumas
mílias desabrigadas, os sentimentos, as equipes da própria Secretaria de
perdas, medos e angústias pelos quais Assistência e Desenvolvimento So-
estariam passando. Refletimos que em cial que ajudaram no trabalho não
circunstancias tão drásticas, de total foram, inicialmente, creditadas;
fragilidade, podem emergir aspec- • desenvolver um discurso menos
tos menos colaborativos e amorosos fragmentado na medida em que
nas pessoas envolvidas. Esse processo todos colaboraram com as discus-
conversacional ajudou os técnicos a sões e com a elaboração do texto:
ampliarem algumas ideias sobre a po- O discurso menos fragmentado,
pulação que, num primeiro momento, porém, não deve ser entendido
foi descrita como anárquica, sem soli- como único, pois as diferenças fi-
dariedade e caótica. caram por vezes expressas no texto
Também procuramos refletir sobre – mas foi construída uma clareza
a ação do Poder Público, pois havia sobre quais situações permitiriam
uma alternância de interpretações: descrições distintas.
num momento se dizia que o mesmo
não se fez presente e, quase em segui- Nesse processo, a elaboração do tex-
da, se afirmava que a ação da Prefei- to escrito ficou totalmente por conta
tura foi muito importante. Indagar das equipes dos CRAS. A equipe de
sobre os apoios recebidos e as ausên- supervisão recebia uma versão do tex-
cias sentidas durante o período, fo- to antes da reunião e apresentava as
ram importantes reflexões, inclusive, questões citadas nos tópicos acima,
para que as equipes assumissem seu que levavam a equipe a refletir e, pos-
papel como representantes do Poder teriormente, mexer no texto, aperfei-
Municipal. çoando-o.
Para tratar destes temas, além de pe- Apesar de todos terem a ideia da
dir que cada técnico falasse sobre como seriedade do ocorrido, muitos afir-
viveu pessoalmente a experiência (o maram, ao final da supervisão, que a
que marcou? como viu a situação? pior partir das conversações construídas
momento? aprendizagens?), foi suge- e da ampliação dos temas trabalha-
rido que a equipe escrevesse um texto dos conseguiram ter uma visão mais
que sistematizasse o trabalho. Por meio abrangente da experiência vivida e
do texto, foi possível à equipe: do trabalho executado por cada um
• materializar, na forma de um tex- deles.
to, uma experiência coletiva tão
marcante: ao fazer um balanço II. Construindo relações colaborativas
sistematizado, foi necessário ava- entre CRAS e CREAS
liar os prós e contras dessa vivên-
cia, tanto no nível pessoal quanto Outra situação marcante vivida na
profissional; supervisão ocorreu em 2010, ano em-
• levantar algumas ausências: por que a Secretaria Municipal de Assistên-
que não se mencionou a dificulda- cia e Desenvolvimento Social de Jundiaí
de em lidar com a violência? Por montou um equipamento novo: o Cen-
que não se deu destaque para as tro de Referência Especializado de As-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


sistência Social (CREAS). Ao CREAS, A equipe de supervisores passa, en-
Três saberes a serviço das 81
segundo a normatização do SUAS, cabe tão, a refletir e discutir a importância famílias: uma discussão...
o atendimento de casos nos quais a de reconhecer os pré-conceitos que Cristiana Pereira, Rodrigo Coelho...

violação dos direitos já aconteceu. É o atravessam as atividades profissio-


caso de famílias onde, por exemplo, há nais no cotidiano para evitar mal en-
trabalho infantil, abuso sexual ou cum- tendidos que atrapalhem o fluxo das
primento de medidas socioeducativas atividades.
de liberdade assistida. O grupo também teve a oportuni-
Em Jundiaí, a criação desse equipa- dade de refletir sobre o trabalho em
mento sinalizou para as demais equi- conjunto com outros serviços da mes-
pes que haveria, finalmente, um servi- ma secretaria e se a prática de reuniões
ço para onde encaminhar os casos mais conjuntas entre as equipes dos diver-
graves – o que permitiria um desafogo sos serviços pode se consolidar como
no volume de trabalho. Porém, isso um procedimento a ser recorrente-
não se concretizou da maneira ideali- mente adotado em casos semelhantes.
zada, pois havia um limite de atendi-
mento dado pelo tamanho da equipe III. Diferentes olhares - desafio de
do CREAS*. Durante uma reunião integrar diferentes cuidados
de supervisão, a equipe de um CRAS
apontou que uma reunião para discus- Por fim, vale discutir um caso trazi-
são de um caso específico junto com do à tona por uma equipe de CRAS no
o CREAS tinha fracassado, já que este mês de agosto de 2011. Em um dado
teria “se negado a assumir o caso”. A contexto de violação de direitos, a
equipe de supervisão começou, então, equipe do CRAS sugeriu o acolhimen-
a se informar sobre a reunião, sobre as to institucional de parte das crianças
alternativas possíveis, sobre os motivos de uma família, enquanto o bebê fi-
da recusa, entre outras questões. caria ainda sob os cuidados da mãe. A
Desse diálogo surge uma outra vi- justificativa para tal diferença de trata-
são por parte de uma técnica recém- mento é que o bebê parecia ser extre-
-contratada que estava presente na mamente importante para o equilíbrio
reunião em questão. Segundo ela, o da mãe e, também aparentemente, não
CREAS teria proposto que sua função sofria as consequências das violências
fosse de retaguarda à equipe do CRAS
a que os irmãos mais velhos estavam
num primeiro momento. O argumen-
submetidos. A equipe do CRAS trouxe
to era que a equipe do CRAS já tinha
esta questão porque, de alguma forma,
criado importantes vínculos com a
a decisão não tinha sido completa-
família atendida. Nesse primeiro mo-
mente aceita por eles.
mento, o CRAS seria o protagonista
Num primeiro momento, foi pedi-
enquanto o CREAS começaria a esta-
da às equipes uma avaliação sobre a
belecer estes vínculos para, em segui-
situação, pensando em quais seriam
da, assumir o caso. É, portanto, a visão
os prós e contras do desfecho momen-
de um outro ponto de vista, na qual
tâneo da história e quais seriam as al-
a equipe do CREAS reconhece uma
ternativas. Sempre deixando claro que * Esta situação ficou tão
competência do CRAS (que já estabe-
não se tratava de julgar a decisão, mas evidente que já em 2011 a
leceu vínculos com a família), oferece SEMADS passou a articular a
um trabalho de apoio e, principalmen- sim de aumentar as perspectivas so-
criação de mais dois CREAS
te, planeja como assumir o caso. Esta bre a questão. Diversos esclarecimen- no município – um voltado
tos foram solicitados, para se tentar especificamente para o
descrição traz mais possibilidades do atendimento da população em
que aquela apresentada inicialmente. entender o percurso da equipe até a situação de rua.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


decisão, e muitas considerações foram lia apresentou motivos para que a equi-
82 NPS 43 | Agosto 2012
feitas. Porém, este caso se destaca pelas pe do CRAS a considerasse, naquele
intervenções da equipe de supervisão. momento, impossibilitada de garantir
Talvez em nenhum outro caso recente os direitos de seus filhos, o que garante
cada integrante da equipe de super- que com o filho menor seria diferente?
visão tenha assumido sua área de es- É certo que o bebê não consegue recla-
pecialização com tanto vigor e, assim, mar nem apresentar comportamentos
se tenha produzido um mosaico que que demonstrem alguma insatisfação.
trouxe olhares díspares, mas comple- Mas isso não significaria, de forma al-
mentares, para a questão. guma, que esta criança estaria protegi-
A psicóloga achou a alternativa da neste contexto.
proposta pela equipe do CRAS muito Por fim, o economista focou no
positiva. Para ela é importante man- processo de tomada da decisão. Como
ter o foco na família como um todo, um serviço de proteção social básica
entendendo que a mãe necessitava de chegou a assumir a responsabilidade
tanto acolhimento quanto as crianças. pelo afastamento das crianças da famí-
A psicóloga concordou que o afasta- lia? Esta ação somente pode ser execu-
mento do bebê poderia aprofundar tada pela Vara da Infância e Juventude,
as dificuldades da mãe; como a rela- segundo a Lei 12.010/2009. Em casos
ção dessa mãe com o bebê era muito excepcionais, o Conselho Tutelar pode
importante para ambos, ela poderia e realizar o acolhimento das crianças,
deveria ser mantida. Inclusive por uma mas rapidamente submetendo o caso
crença nas possibilidades de mudança ao Poder Judiciário. A questão colo-
das atitudes da família a partir do em- cada foi: qual o papel destes outros
poderamento da mãe. atores no processo? E os serviços de
A assistente social, por sua vez, deu proteção social especial existentes no
ênfase à defesa dos direitos da criança. município? Como participaram des-
Para ela o bebê deveria ter a mesma te processo o CREAS, as instituições
medida de proteção aplicada para os de acolhimento, o serviço de Famílias
irmãos, pois a situação da suposta vio- Acolhedoras? Houve conversação con-
lação de direitos era a mesma, inclusi- junta para embasar esta sugestão ou
ve com o agravante do bebê ter menor esses serviços estiveram ausentes?
condição de defesa. Desse modo, a pro- Enfim, tivemos na supervisão dife-
teção às crianças prevaleceria à necessi- rentes pontos de vista enfocando dife-
dade de proteger os interesses da mãe rentes aspectos que ajudaram a ilumi-
(adulta). Mais ainda, deveria se evitar nar outros ângulos da problemática,
ao máximo a separação de grupos de tentando lidar com a complexidade da
irmãos, ou seja, ou se acolhe a todos situação e que apontam para os desa-
ou se mantém todos na família. São fios a serem enfrentados pelas equipes
duas as justificativas para esta diretriz: que trabalham com famílias em terri-
Primeiro, como ficam as crianças que tórios de vulnerabilidade social.
foram afastadas do convívio familiar?
Será que elas não internalizarão que os
problemas vividos pela família são de 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
responsabilidade exclusiva delas? Será
que entenderão por que o filho menor Como já citado, entendemos a su-
(o irmão) ficou com a mãe enquanto pervisão como um espaço de reflexão,
elas se afastaram? Além disso, se a famí- atentos a construir um contexto facili-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


tador de acolhimento dos participan- Anderson, H. (2009). ���������������
Terapia Colabo-
Três saberes a serviço das 83
tes com afetividade, respeito e humor. rativa: relacionamentos e conversa- famílias: uma discussão...
Esse processo participativo e colabo- ções. Nova Perspectiva Sistêmica, 33, Cristiana Pereira, Rodrigo Coelho...

rativo propõe gerar um diálogo entre 37-52.


as diversas vozes, incluindo cada pon- Birman, J. (1997). A clínica entre saber
to de vista, de forma a utilizar todos os e poder. Physis, 7(1), 7-11.
recursos disponíveis para ampliação de Fagundes, N. et al. ������������������
(2010). Trabalhan-
novos significados que são reconheci- do com familias em um contexto
dos como produto da relação das pes- de vulnerabilidade social. In: M.
soas envolvidas. Todos são distinguidos Andolfi, & L.C. De La Barca (eds.).
como autores das conversações. O livro de Oaxaca: trabalhando
A prática desse formato de super- com famílias e comunidades mar-
visão contribui efetivamente para que ginalizadas. São Paulo: Instituto
cada participante – trabalhador social de Terapia Familiar de São Paulo
– nos seus encontros conversacionais – ITFSP.
possa desenvolver relações dialógicas Lago, K.C. (2008). Fadiga por compai-
de modo a incluir as vozes, respeitar e xão: quando ajudar dói. [Disserta-
valorizar os múltiplos pontos de vista ção de Mestrado]. Brasília: Instituto
presentes. de Psicologia/UnB.
Finalizamos, dividindo com o leitor Ministério do Desenvolvimento Social e
o privilégio que sentimos ao realizar Combate à Fome. (2009). Orientações
esse trabalho. Ao entrelaçar nossas Técnicas para o Centro de Referência
formações, olhares e vozes, assumindo de Assistência Social. Brasília: MDS.
a posição de ouvintes respeitosos das Pereira, P. (1996). A assistência social
equipes, preocupados em validar e am- na perspectiva dos direitos: crítica
pliar possibilidades, escolhendo uma aos padrões dominantes de proteção
linguagem cooperativa, exercitamos aos pobres no Brasil. Brasília: The-
os diálogos transformadores, sintoni- saurus.
zados com a mudança paradigmática Pinto, A.C. et al. (2009). Sistematização
do serviço social e com a coconstrução de tarefas executadas pelas equipes do
coletiva de uma política pública. CRAS. Mimeo. Jundiaí: SEMADS.
Sarti, C.A. (2003). A família como es-
pelho: um estudo sobre a moral dos
REFERÊNCIAS pobres. São Paulo: Cortez.

Anderson, H. (1997). Conversation, lan-


guage and possibilities. Nova York:
Basic Books.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 73-83, ago. 2012.


ARTIGO

O MAPA DE REDE SOCIAL SIGNIFICATIVA COMO


INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO NO CONTEXTO
DA PESQUISA QUALITATIVA
THE MAP OF SOCIAL NETWORK AS A RESEARCH TOOL IN THE CONTEXT
OF QUALITATIVE RESEARCH

CARMEN LEONTINA RESUMO: As redes sociais influenciam direta- ABSTRACT: Social networks affect decisively
OJEDA OCAMPO MORÉ mente o sentimento de autoestima, identidade e the self-esteem, identity and competence of an
competência de um indivíduo, sendo centrais em individual, being central in crisis situations. In this
Doutora em Psicologia
Clínica - Departamento de situações de crises. Nessa perspectiva, o obje- framework the objective of this study is to present
Psicologia - Programa de tivo desse artigo é a apresentação do mapa de the map of social network proposed by Carlos E.
Pós-Graduação em Psicologia rede social pessoal proposto por Carlos E. Sluzki, Sluzki, as an instrument of data collection in the
- Laboratório de Psicologia da como instrumento de coleta de dados no contexto context of qualitative research. Grounded in the
Saúde, Família e Comunidade. da pesquisa qualitativa. Ancorados na experiência experience of research developed, it becomes
Universidade Federal de Santa de investigações desenvolvidas, evidencia-se sua clear its construction with reference to its four
Catarina. construção, tendo como referência quatro qua- quadrants on: family, friends, community and la-
E-mail: carmen.more@ufsc.br drantes de registro: família, amizades, comuni- bor, and its three different levels of intimacy and/
dade e trabalho, e seus três diferentes níveis de or relational commitment. It points out its potential
MARIA APARECIDA intimidade e compromisso relacional. Aponta-se graphic, descriptive content and the possibilities
seu potencial gráfico, descritivo e de conteúdo e for building and naming of categories resulting
CREPALDI
as possibilidades de construção e nomeação de from analysis of the triangulation is of theoretical
Doutora em Saúde Mental - categorias de análises resultantes da triangula- concepts, is the instrument itself and/or narrative
Departamento de Psicologia ção, seja de conceitos teóricos, seja do próprio of the participants.
- Programa de Pós-Graduação instrumento ou da narrativa dos participantes.
em Psicologia - Laboratório
de Psicologia da Saúde, KEYWORDS: social network, qualitative method,
PALAVRAS-CHAVES: rede social, metodologia
Família e Comunidade. qualitative tool
Universidade Federal de Santa qualitativa, instrumento qualitativo
Catarina.

A temática das redes sociais e seu efetivo reconhecimento no campo da produção


científica sustenta-se a partir da emergência de uma nova posição epistemológica
de se pensar e fazer ciência. Essa posição caracteriza-se eminentemente pela proble-
Recebido em 20/03/2012. matização de crenças básicas que sustentam o saber produzido pelas diferentes dis-
Aprovado em 07/05/2012. ciplinas científicas, presentes no paradigma tradicional. Por sua vez, caracteriza-se
também pela incorporação dos pressupostos que sustentam o pensamento sistêmi-
co, tais como: o da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade, enquanto
perspectivas que tentam responder ao reconhecimento de uma realidade multiface-
tada, multidimensional, contextual e coconstruída pelos seus protagonistas.
Nesse sentido, tendo como referências o pensamento sistêmico e o olhar do
construcionismo social, considera-se que aprofundar os estudos das redes sociais
implica o desafio de reconhecer as pessoas, tanto como produtoras de sentido,
como produzidas pelas construções da trama social. Assim, o sujeito pode ser
considerado uma unidade heterogênea, aberta ao intercâmbio produzido por sua
participação nos jogos sociais e pela linguagem enquanto construtora de sentidos
e significados atribuídos à realidade (Vasconcellos, 2003; Morin, 2007; Dabas &
Najmanovich, 2002; Grandesso, 2000; pesquisa qualitativa nas áreas da saú-
O mapa de rede social 85
Gergen & Gergen, 2006). de, família e comunidade, como um significativa como instrumento...
No marco das colocações anterio- instrumento de coleta de dados, evi- Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

res, considera-se que as redes sociais, denciando seu procedimento de cons-


seja de ordem individual, familiar, trução com o participante e a análise
seja de ordem institucional ou co- dos dados emergentes.
munitária, podem ser consideradas
um dos principais recursos de que
dispõe um indivíduo, principalmente REDES SOCIAIS: SUA CONCEITUAÇÃO E
no que diz respeito ao apoio recebi- CARACTERÍSTICAS
do e percebido. Dos diferentes cam-
pos das ciências humanas e da saúde, A possibilidade do sujeito se sentir
estudos e pesquisas em torno dessa “reconhecido pelo outro” numa de-
temática são unânimes em afirmar a terminada situação vital, por meio da
estreita relação entre a qualidade do compreensão e aceitação de suas emo-
desenvolvimento humano e a quali- ções, dificuldades e opiniões, ou por
dade das redes sociais com as quais o comportamentos e ações, seja de ajuda
indivíduo interage (Sluzki, 1997; Da- material, ou conselhos, evidencia a im-
bas, 1993; Demaray & Malecki, 2002; portância do papel e das funções que
Pakman, 2002; Moré, 2005; Ornellas, as redes sociais desempenham junto
2007; Custódio, 2010). ao sujeito, sua família ou grupos so-
Essa relação traz à tona, por sua ciais aos quais pertence.
vez, a importância dos fatores poten- Nas práticas de intervenção tera-
cialmente de risco e de proteção aos pêutica desenvolvidas pelos profissio-
quais os indivíduos estão expostos. nais de saúde mental, a presença e o
Nesse sentido, as investigações cientí- acionamento das redes sociais têm de-
ficas que tratam das redes põem em mandado especial atenção nas últimas
evidência que a pobreza das redes décadas. Primeiro no que se refere a um
sociais afeta negativamente a quali- processo de ampliação da intervenção
dade de vida dos sujeitos e, de modo terapêutica direcionado ao indivíduo
inverso, que as redes sociais estáveis e e à família pela necessária inclusão dos
variadas favorecem positivamente a sistemas de redes nas ações terapêuti-
autoestima, gerando a capacidade de cas. Em segundo lugar, pela intervenção
enfrentamento adequado das situa- nas redes de suporte social, organizadas
ções vitais difíceis, sejam elas crônicas no âmbito comunitário, em ONGs e
ou temporárias (Sluzki, 1997; Dabas, institucionalmente constituídas, tendo
1993; Sluzki, 2002; Garcia & Herrero, essas últimas um papel de destaque no
2006; Moré, 2005; Ornellas, 2007; Ga- contexto de programas de reabilitação,
barra, 2010). prevenção e promoção da saúde dos
Tendo como referência a centra- indivíduos (Sluzki, 1997; Dabas, 1993;
lidade dos estudos sobre a configu- Pakman, 2001; Moré & Macedo, 2006;
ração, dinâmica e impacto das redes Ornellas, 2007).
sociais, para o indivíduo e sua família, No que diz respeito à constituição
destaca-se a relevância das redes para das redes sociais, observa-se que estas
o desenvolvimento dos sujeitos ao podem ser relacionadas: (a) aos fe-
longo do ciclo vital. Nesse contexto, o nômenos dos processos de desenvol-
objetivo deste artigo é evidenciar a uti- vimento do ciclo vital individual ou
lização do mapa de rede no campo da familiar, (b) aos grupos e interações

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


espontâneas, que se podem constituir sua vez que “suporte social designa
86 NPS 43 | Agosto 2012
num dado momento e num certo con- formas de relacionamento interpes-
texto, centrando-se em torno de de- soal, grupal ou comunitário que dão
terminadas ações e/ou situações mais ao indivíduo um sentimento de pro-
ou menos formalizadas, e (c) serem teção e apoio capaz de propiciar re-
constituídas de maneira formal/insti- dução do estresse e bem-estar psico-
tucional, com fronteiras e limites bem lógico” (p. 30). Nessa mesma direção,
definidos, seja no que se refere ao seu Dabas (1993) define rede social como
alcance, como na sua função. um processo que:
Nesse processo de constituição,
observa-se que, na produção de co- ...implica um processo de construção
nhecimento em torno da temática de permanente tanto individual como co-
redes sociais, há uma diversidade de letivo. Nessa perspectiva diríamos que é
conceituações, que, em certa medida, um sistema aberto, que, através de outros
tenta nomear o fenômeno estuda- grupos sociais, possibilita a potenciali-
do segundo a perspectiva de investi- zação dos recursos que possuem. Cada
gação. Sem o intuito de redução do membro de uma família, de um grupo ou
campo de conceituações em torno de uma instituição se enriquece através
do termo composto “redes sociais”, das múltiplas relações que cada um de-
pode-se afirmar que o mesmo passa senvolve (p. 21).
por dois âmbitos estreitamente cor-
relacionados e bem definidos: um de- Por sua vez, no âmbito das redes
les, enquanto seu significado, e outro, sociais pessoais, Sluzki (1997) afirma
enquanto impacto de suporte para que a rede social de apoio de um su-
o indivíduo e ou família. Assim, por jeito é composta por todas aquelas re-
um lado, encontram-se as redes que lações consideradas significativas para
se constituem ao longo do processo ele e que o influenciam no seu próprio
vital do indivíduo e sua família, e que reconhecimento como sujeito assim
se caracterizam eminentemente pela como na sua autoimagem. Ainda de
proximidade e intimidade na cons- acordo com o autor, a rede social pes-
trução histórica de vínculos; e, por soal de qualquer indivíduo constitui
outro lado, tem-se o âmbito das redes “uma das chaves centrais da experi-
sociais propriamente ditas, que po- ência individual de identidade, bem-
dem ser formais ou informais e que -estar, competência e agenciamento
se caracterizam pelas diferentes for- ou autoria, incluindo os hábitos de
mas de suporte efetivo que oferecem cuidado da saúde e a capacidade de
ao sujeito. adaptação em uma crise” (p. 42).
Segundo Lin e Ensel (1989), as re- Da perspectiva da antropologia so-
des de suporte social podem ser de- cial, Speck (1989) afirma que a rede
finidas como um conjunto de provi- social “é um grupo de pessoas, mem-
sões expressivas e/ou instrumentais bros da família, vizinhos, amigos e ou-
presentes na comunidade e no meio tras pessoas, capazes de proporcionar
social à disposição do indivíduo, uma ajuda e um apoio tão reais como
tanto em situações cotidianas como duradouros a um indivíduo ou uma
em situações inesperadas, desempe- família. É, em síntese, um casulo ao re-
nhando funções emocionais e ma- dor de uma unidade familiar que serve
teriais. Complementando os autores de amortecedor entre esta unidade e a
citados, Campos (2005) afirma por sociedade” (p. 24).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


Estas conceituações mostram que as vel. Isto porque a construção do Mapa
O mapa de rede social 87
redes pessoais significativas, sejam elas tem como objetivo a busca do mapea- significativa como instrumento...
do indivíduo ou da família, têm um mento da qualidade do compromisso Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

alcance em diferentes níveis da estru- relacional da rede com o indivíduo,


tura social. Com relação a esse alcance em diferentes âmbitos. Assim, as pes-
e desde uma perspectiva ecossistêmica, soas que possam vir a conformar uma
Sluzki (1997) afirma: rede são “significativas” para o indiví-
duo pela sua percepção da qualidade
Esse nível intermediário de estrutura do vínculo construído com os envol-
social se revela crítico para uma com- vidos na mesma, seja numa determi-
preensão mais inteira dos processos de nada situação ou num determinado
integração psicossocial, de promoção tempo histórico.
do bem-estar, de desenvolvimento de
identidade e de consolidação dos po-
tenciais de mudança, e por consequên- A REDE SOCIAL NO CONTEXTO DA
cia ilumina os processos sociais de INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA
desintegração, de mal-estar e de adoe-
cer (p. 37). Na linha desses questionamentos,
observa-se no campo da investigação
Nesse universo da interação entre instrumentos de coleta de dados que
as redes sociais e o indivíduo e sua tentam aproximar-se das respostas,
matriz familiar, surgem uma série tanto no nível de significado pessoal,
de questionamentos provocativos, como de funcionamento das redes.
colocados por Sluzki (2002), que de- A título de exemplo, pode-se citar o
safiam os processos de produção de trabalho de Fernandez Millan, Diez
conhecimento: “Quais são os me- de la Cortina, Malpica Buitrago e
canismos ou processos mediante os Hamido Mohamed (2010). Trata-
quais a rede afeta a saúde e a saúde -se de uma pesquisa quantitativa,
afeta a rede?; como e por que acon- que utilizou uma Escala de Satisfa-
tece a deterioração da rede quando ção com a Vida (Diener, Emmons,
se faz presente uma doença crônica?” Larsen & Griffin, 1985), adaptada ao
Seguindo essa linha de indagações espanhol por Atienza et al. (2000).
pode-se interrogar também sobre O trabalho citado estudou menores
como se configuram a dinâmica das acolhidos em Centros de Proteção, e
redes pessoais e a qualidade de vida apresentou uma relação entre as va-
de um indivíduo?; como se compor- riáveis percepção do apoio social, sa-
tam as redes diante dos processos de tisfação com a vida e expectativas de
vida e morte de um sujeito? futuro, todas com grande relevância
Cabe aqui chamar atenção para para a adaptação social e pessoal de
a terminologia utilizada pelo autor menores abrigados. O trabalho cita-
quando se refere ao Mapa e a deno- do evidenciou a correlação negativa
minação que é utilizada neste artigo entre a situação de institucionaliza-
para se referir ao mesmo. Sem perder ção e a percepção de apoio familiar,
a referência das ideias apresentadas assim como correlações positivas en-
por Sluzki (1997), coaduna-se com tre esta percepção e a satisfação com
usar a denominação Mapa da Rede a vida e as expectativas de futuro,
Social Significativa ou Rede Pessoal concluindo-se sobre a importância
Significativa de forma intercambiá- de desenvolver redes de apoio social

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


para melhorar a satisfação com a vida mapa permitiu compreender, em certa
88 NPS 43 | Agosto 2012
e as expectativas de futuro dessa po- medida, o desconhecimento a respei-
pulação. to da origem e do tipo de fissuras por
Especificamente no campo da pes- parte dessas famílias e, por sua vez, sua
quisa qualitativa, encontram-se tra- relação com a queixa constante dos
balhos que utilizaram o mapa de rede profissionais sobre a falta de cuidados
proposto por Sluzki (1997) como ins- necessários para com os filhos por parte
trumento de coleta de dados para ana- da família, como, por exemplo, a falta
lisar situações de crises no desenvolvi- de higiene bucal, tão importante nes-
mento vital de um sujeito ou família. se tipo de acometimento. Estes dados
O mapa de rede é um instrumento deixaram em tela a comunicação entre
utilizado na intervenção da clínica equipe e família, no que diz respeito às
psicoterapêutica que foi adaptado ressonâncias dos diálogos dos profis-
para a pesquisa científica, com o obje- sionais envolvidos com as famílias. A
tivo de evidenciar o grau de intimida- posterior apresentação do mapa geral,
de e compromisso das redes pessoais onde se congregavam os dados de to-
sociais constituídas em torno de situ- das as famílias para a equipe envolvida,
ações específicas, permitindo a possi- gerou uma reavaliação por parte dos
bilidade de analisar qualitativamente mesmos, no sentido de buscar estraté-
seu impacto nos processos vitais de gias que melhorassem a comunicação
desenvolvimento. com as famílias.
Santos (2008) caracterizou o fun- Também na linha dos estudos com
cionamento das redes pessoais so- família e especificamente com casais,
ciais significativas na perspectiva Sousa de Costa e Silva, Ramos Ponte
de mulheres que sofreram violência e Bucher Maluchke (2010), utilizando
e evidenciou, por meio do mapea- o mapa de rede para analisar a relação
mento destas, a influência decisiva entre as redes sociais e as relações de
que tiveram as patroas para as quais gênero, mostraram que as relações
trabalhavam no contexto doméstico, constituídas pelos casais foram mar-
no reconhecimento de seus direitos cadas por padrões de gênero que de-
e na decisão de denunciar os agres- limitaram os ambientes das atividades
sores. A autora citada conclui que a cotidianas, definiram o status ocupado
qualidade do vínculo estabelecido na família e condicionaram a forma-
pelas mulheres com a sua rede foi o ção de vínculos na rede social.
fator determinante para a tomada de No campo da migração, pode-se ci-
posição quanto à denúncia, trazendo tar o trabalho de Hering (2008), que
pistas importantes, portanto, para os estudou o processo de adaptação de
programas de prevenção que tratam famílias migrantes com filhos peque-
da violência contra mulher. nos ao novo lugar de moradia, por
Caminha (2008), por sua vez, pes- meio da investigação da configuração
quisando famílias com crianças entre e das funções das redes pessoais so-
6-9 anos com fissura labiopalatal, evi- ciais significativas. No estudo referido,
denciou, pela construção do mapa de o mapa de rede mostrou que as ativi-
rede com as famílias, a ausência dos dades escolares dos filhos eram uma
representantes das equipes de saúde porta efetiva de construção do acesso
que haviam acompanhado as crianças a outras redes na nova cidade, e que as
e suas famílias desde seu nascimento. redes virtuais (internet) que a família
Esta ausência significativa da equipe no mantinha com a sua própria na cidade

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


de origem afetaram o processo de in- Nessa mesma linha de investiga-
O mapa de rede social 89
tegração com o novo local de moradia, ção, a pesquisa realizada por Gabarra significativa como instrumento...
influenciando na decisão de permane- (2010) com pacientes internados para Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

cer na cidade. amputação de membros mostrou que,


Como exemplo do trabalho co- após a internação, a rede pessoal social,
munitário, evidencia-se a pesquisa em especial a rede familiar, ofereceu
de Farias (2010), que estudou as re- apoio emocional e espiritual durante o
des sociais significativ as de adoles- período de hospitalização. Após a alta,
centes que engravidaram entre os 11 o apoio oferecido foi instrumental e
e 14 anos, mostrando as suas confi- financeiro, e os pacientes receberam
gurações antes, durante e depois da apoio emocional e informacional nas
gravidez. A referida autora constatou relações com os serviços de saúde.
a presença do suporte efetivo de pre-
venção e cuidado somente no período
da gravidez, observando-se uma au- O MAPA DE REDE: CARACTERÍSTICAS E
FUNÇÕES DAS REDES
sência significativa de interlocutores
privilegiados enquanto guias cogniti-
Segundo Sluzki (1997), a “rede
vos e de informação no período an-
social pode ser registrada em forma
terior à gravidez e posterior ao nasci-
de mapa mínimo que inclui todos
mento dos filhos, colocando em tela
os indivíduos com os quais interage
o foco dos programas de acolhimento
uma determinada pessoa” (p. 41). O
dos adolescentes e os programas de
mapa mínimo pode ser sistematizado
saúde reprodutiva da mulher.
por um diagrama formado por três
No âmbito hospitalar, a investiga-
círculos concêntricos (interno, in-
ção desenvolvida por Menezes (2010),
termediário, externo), divididos em
que se utilizou do mapa de rede como quatro quadrantes: (a) Família, (b)
um instrumento complementar, estu- Amizades, (c) Relações de trabalho
dou os significados da hospitalização ou escolares, (companheiros de tra-
infantil para crianças e suas famílias. balho e ou de estudos) e (d) Relações
Este trabalho mostrou que a comu- comunitárias, de serviços (exemplo,
nicação de informações para a com- serviços de saúde) ou de credos (fi-
preensão da dinâmica hospitalar e de gura 1). Com relação à disposição
aspectos do diagnóstico ou interven- dos círculos, o interno representa as
ção cirúrgica eram sustentados e de- relações mais íntimas consideradas
codificados, na maioria das vezes, pelo pelo indivíduo, seja da família ou
pessoal responsável pela alimentação, de amizades. O círculo intermedi-
higiene, vigilância da instituição hos- ário registra as relações com menos
pitalar, mais do que pela equipe de grau de compromisso relacional, tais
saúde responsável pela internação e como as relações sociais ou profissio-
do procedimento cirúrgico. Também nais ou familiares, e o círculo externo
constatou, a necessidade de constru- registra as relações ocasionais (tais
ção de uma comunicação mais efetiva como conhecidos de escola ou tra-
entre criança e família com a equipe de balho, familiares mais distantes, vi-
saúde, no que diz respeito a propostas zinhos). Sluzki (1997) aponta que “o
da instituição hospitalar que susten- conjunto de habitantes desse mapa
tem acolhimento mais qualificado da mínimo, constitui a rede social pes-
demanda. soal do informante” (p. 42).

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Figura 1. Mapa de rede
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Amizades Família

Relações Relações de
comunitárias trabalho ou estudo
Relações com sistemas de
saúde e agências sociais

O registro do mapa é estático e des- bros em termos de influência que


critivo de um determinado momento podem exercer no indivíduo;
ou situação vivenciada pela pessoa (c) composição ou distribuição: atri-
informante, e seu registro pode ser buto que indica a posição que cada
enriquecido e analisado em profun- membro ocupa nos quadrantes;
didade por meio da exploração das (d) dispersão: refere-se à distância
diferentes características, funções e geográfica entre a pessoa e os
atributos da rede. membros de sua rede;
Nesse sentido, a rede pessoal signifi- (e) homogeneidade/heterogeneidade:
cativa pode ser avaliada em termos de dizem respeito a variáveis como
características estruturais, observan- idade, sexo, cultura e nível socio-
econômico, que podem favorecer
do-se os seguintes aspectos:
trocas ou evidenciar tensões.
(a) tamanho: que se relaciona à quan-
No que diz respeito às funções dos
tidade de pessoas que constituem
vínculos estabelecidos na rede pessoal
a rede. As redes de maior efetivi-
significativa, Sluzki (1997) destaca a:
dade são as de tamanho médio.
(a) de companhia social: que indica a
Segundo Sluzki (1997), as redes realização de atividades em con-
muito pequenas são menos efeti- junto ou o estar juntos;
vas em situações de sobrecarga ou (b) de apoio emocional: que envolve
tensão de longa duração, pois os trocas que incluem empatia, estí-
membros tendem a evitar os con- mulo e compreensão;
tatos com a finalidade de poupar- (c) de guia cognitivo e de conselhos:
-se, enquanto aquelas muito nu- que proporciona informações e
merosas podem não ser efetivas modelos de referência;
em função do pressuposto de que (d) de regulação social: que evoca
o “outro” está cuidando do pro- responsabilidades, neutralizando
blema; supostos desvios de comporta-
(b) densidade: relaciona-se com a qua- mento e favorecendo a resolução
lidade da relação entre seus mem- de conflitos;

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(e) de ajuda material e de serviços: investigação qualitativa, tais como o ge-
O mapa de rede social 91
a que trata do fornecimento de nograma (Wendt & Crepaldi, 2008), au- significativa como instrumento...
auxílio financeiro ou de serviços xiliando o pesquisador na busca de uma Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

especializados, como é o caso do expressão mais aprofundada em torno


Setor Saúde; de eventos vitais de um indivíduo e fa-
(f) de acesso a novos contatos: o que mília. Nesse contexto, evidencia-se em
possibilita uma abertura para o continuação aspectos a serem conside-
estabelecimento de relações com rados tanto na entrevista que subsidia a
novas pessoas ou redes. construção do mapa com o participan-
O autor também aponta a possibi- te, como nos passos do procedimento.
lidade de se analisar os atributos de Cabe destacar num primeiro mo-
cada vínculo, avaliando-se a função mento que a utilização do mapa de rede
predominante de cada relação. Assim como instrumento principal ou coadju-
encontra-se:
vante de outros exige a priori a defini-
(a) a multidimensionalidade, que se
ção dos objetivos da pesquisa, tal qual
caracteriza pelo número de fun-
o procedimento de toda a investigação.
ções desempenhadas na rede;
Essa definição é importante para deter-
(b) a reciprocidade, que avalia se uma
pessoa desempenha funções que minar qual o papel do mapa no univer-
recebe de outros; so da coleta de dados e também visuali-
(c) a intensidade, que sinaliza o grau zar quem serão os informantes. Pode ser
de compromisso com a relação; construído com uma pessoa ou com a
(d) a frequência dos contatos, desta- presença de pessoas da família por meio
cando-se aqui o fato de que quanto da coleta de respostas dos responsáveis
maior a distância, maior a necessi- como, por exemplo, o casal.
dade de manutenção ativa do con- Num segundo momento, é neces-
tato para manter a intensidade; sário apontar a preparação do pesqui-
(e) história da relação, que aborda a sador para o processo de construção
forma pela qual as pessoas se co- conjunta do mapa, pois a qualidade
nheceram e outras informações que dos dados coletados em torno do ob-
estimulam a manutenção desta. jetivo de uma pesquisa tem uma rela-
A partir das características estru- ção direta com o processo de interação
turais, funções e atributos das redes é entre pesquisado-pesquisador. Nessa
possível observar um conjunto de vari- perspectiva é importante resgatar que
áveis passíveis de serem estudadas, seja a pesquisa qualitativa lida com a busca
através de um registro gráfico, tal qual de dados que tragam à tona sentidos
uma “radiografia” das redes, como tam- e significados sobre eventos vitais, an-
bém fazendo análises em profundidade corados em histórias de vida. O aces-
da dinâmica das relações intrarredes. so a tal conteúdo exige uma postura
Nesse sentido, estar-se-ia evidenciando baseada na ética da pesquisa com se-
a dinâmica entre as parte e o todo das
res humanos, devido ao processo de
redes (Moré, 2010).
mobilização que o mesmo pode gerar
nos respondentes. Considera-se que
o treinamento prévio ou experiência
O PROCEDIMENTO DE CONSTRUÇÃO DO
MAPA E COLETA DE DADOS
na realização de entrevista na pesqui-
sa qualitativa constitui-se um aspecto
O mapa de rede, enquanto instru- importante para contemplar.
mento de coleta de dados, soma-se a Nesse sentido, chama-se a atenção
outros já reconhecidos no campo da às características da entrevista de cons-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


trução do mapa, cujo roteiro é análogo construção, a possibilidade de aprofun-
92 NPS 43 | Agosto 2012
ao de uma entrevista semiestruturada. dar temas já abordados na entrevista.
Assim, deve-se ter previamente prepa- A experiência de utilização do mapa
rados os itens norteadores que darão de rede, no conjunto das investigações
acesso ao fenômeno central da pes- realizadas, evidenciou que, quando
quisa. Cabe ao(a) pesquisador(a), no esse é o instrumento principal, a du-
momento da entrevista, fazer outras ração do processo de construção é de
indagações, caso as considere necessá- aproximadamente duas horas e meia.
rias, para ter melhor esclarecimento e Pode-se fazer uma pausa entre a en-
favorecer a compreensão seja de ideias, trevista e a confecção do mapa para
motivos, eventos, crenças, comporta- evitar o cansaço do(a) participante.
mentos, enfim, elementos que cons- Isso deverá ser acordado previamente.
tituem as narrativas e que decorrem O tempo de duração da entrevista está
dos diálogos presentes na interação relacionado ao envolvimento dos par-
pesquisador(a)-pesquisado. ticipantes na confecção, o que depen-
Entende-se que o(a) pesquisador(a), de do número de pessoas envolvidas
além de ter uma postura flexível no de- ao mesmo tempo.
senvolvimento da entrevista, deve estar Se for utilizado como instrumento
atento tanto à narrativa dos sujeitos, coadjuvante, isso pode ser construído
como também deixar que eles sejam os num segundo encontro. Se escolher
verdadeiros protagonistas da entrevis- esta medida, o(a) pesquisador(a) de-
tas, cabendo a ele um papel de coadju- verá fazer uma pequena síntese da en-
vante atento à emergência de dados em trevista anteriormente aplicada para
torno dos objetivos propostos. facilitar o processo de recuperação
tanto das lembranças anteriores, como
Etapas da construção do mapa de rede: dos objetivos da pesquisa.

Sugerem-se as seguintes: 2. Etapa de conhecimento do desenho do


mapa e dos símbolos a serem utilizados
1. Etapa de aquecimento para construção Para esta etapa, sugere-se que se
Após definição sobre a utilização faça, previamente, o desenho da es-
do mapa como instrumento principal trutura inicial do mapa, com seus
ou coadjuvante, o processo de aque- respectivos círculos e quadrantes, em
cimento e aplicação inicia-se com a uma folha de 30 x 30 cm. Isto permite
apresentação dos objetivos da pesqui- que pesquisado e pesquisador tenham
sa e identificação do(a) participante um espaço cômodo para dialogar em
informante, dando-se sequência ao torno do modelo do mapa, e possam
encontro, com a introdução da entre- fazer anotações auxiliares nele. É pos-
vista semiestruturada, que terá como sível também ter lápis de cores diversas
referência itens pré-estabelecidos, para escrever os conteúdos nos quatro
que sirvam de guias em torno da te- quadrantes de modo diferente.
mática focal. Por sua vez, é importante apontar
Esta etapa constitui-se num aqueci- que a denominação dos quadrantes
mento para o(a) participante no que inferiores referidos à “comunidade”
diz respeito à memória sobre pessoas, e a “trabalho” pode ser adaptada pelo
relações e eventos/situações, que faci- pesquisador, previamente à constru-
litará a construção posterior do mapa, ção do mapa, de acordo com o foco
permitindo também, durante a sua de estudos. Por exemplo, no quadran-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


te trabalho, sua nomeação pode ser e assim sucessivamente. Essa mesma
O mapa de rede social 93
substituída por estudos, assim como o linha de símbolos pode ser usada nos significativa como instrumento...
quadrante comunidade pode ser iden- outros quadrantes. Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

tificado com nomes específicos às ins- É importante destacar que cada


tituições sociais/comunitárias envolvi- pessoa significativa identificada terá
das, se for o caso, tais como: equipes somente um registro em cada qua-
de saúde, delegacia de polícia, igreja e drante. Deve-se sempre estimular o
assim por diante, subdividindo o qua- informante a fazer a escolha dessa pes-
drante conforme o modelo original, soa, assim como da sua posição nos
visando uma adaptação contextualiza- diferentes círculos. Esse esclarecimen-
da ao que se deseja evidenciar. to se faz necessário, pois pode ser que
Pode-se também utilizar símbolos o informante identifique uma pessoa
para registrar as pessoas significati- significativa no quadrante trabalho/
vas de acordo com gênero, profissão, estudo e também considere colocá-la
vínculo familiar, vínculo comuni- no quadrante amizades.
tário/social ou optar pela utilização
de nomes específicos. No caso do(a) 3. Etapa da construção
pesquisador(a) ter sugestões prede- Destaca-se a importância de escla-
terminadas de símbolos que costuma recer bem o significado e a posição
utilizar, o significado deles deve ser dos círculos: interno, intermediário e
compartilhado com o participan- externo do mapa no que se refere ao
te, solicitando-lhe que faça a escolha grau de intimidade e compromisso
daqueles que lhe convierem. Assim, das relações, assim como a posição dos
a subdivisão dos quadrantes e a con- integrantes da rede nos diferentes qua-
figuração ou escolha de símbolos que drantes. Utilizando os dados da entre-
representem o que se deseja eviden- vista, pode-se perguntar sobre pecu-
ciar dependerão da criatividade do(a) liaridades dos integrantes da rede, seja
pesquisador(a) na busca sempre da com relação à sua posição nos círculos,
melhor representação e posterior lei- função, atributos ou características es-
tura do mapa, de acordo com o fe- pecíficas. Esta etapa desencadeia uma
nômeno central da pesquisa. Como série de outras lembranças, comentá-
exemplos possíveis disso, pode-se uti- rios novos sobre as relações, e até cor-
lizar letras nos diferentes quadrantes reções de informações anteriormente
para identificar as pessoas assinaladas fornecidas, cabendo ao pesquisador
pelo informante, assim, no quadran- atentar para as mesmas.
te família pode-se utilizar P (pai), M
(mãe) I (irmãos) e do lado anotar sua 4. Etapa de conclusão da construção do
função. De acordo com Sluzki (1997), mapa de rede
há seis funções conforme apontado no Após a conclusão da construção do
texto. Assim, o registro no quadrante mapa, os(as) participante(s) é(são)
família e nos seus respectivos círculos convidado(s) a observá-lo pronto e a
poderia ser: M-F1, o qual significaria verbalizarem suas impressões e refle-
que a mãe é identificada como figura xões sobre o mesmo e sobre o traba-
significativa e tem como função ser a lho realizado. Essa etapa é importante,
companhia social. No quadrante ami- pois permite melhor integralização
zades, podem ser utilizados os símbo- dos dados presentes no mapa, seja
los de masculino e feminino respecti- através de comentários ou como com-
vamente, colocando a função ao lado plemento de informações. É comum

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


haver reações de surpresa e curiosi- ção do mapa, para contornar situações
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dade ao ver o mapa concluído e em que possam exacerbar emoções nos
várias situações, advindas de nossa participantes para além do trabalho
prática de pesquisa com esse instru- proposto.
mento, foi solicitada uma cópia dele.
Diante desse fato, é aconselhável que 5. Etapa de adequação do mapa de rede ao
se ofereça essa possibilidade aos par- contexto da pesquisa
ticipantes, e, para aqueles que desejem Esta etapa tem como objetivo
tê-lo, deve-se entregar uma cópia em facilitar, no contexto do trabalho
tamanho original. científico, uma melhor descrição e
Cabe sempre informar que o mapa compreensão do material coletado.
será passado a limpo, tal qual foi con- Para isso, é importante a criação de
feccionado, retirando-se dele apenas símbolos específicos para que cada
registros ou anotações feitas eventual- participante tenha uma representa-
mente pelo pesquisador durante a ção diferente dos demais. Nesse sen-
construção do mapa original, para fa- tido, tem-se realizado uma avaliação
cilitar a compreensão dos registros. da fidedignidade da correspondência
Tanto a entrevista como a constru- entre os símbolos e os dados dos par-
ção do mapa são gravadas em áudio ticipantes, com a ajuda de profissio-
para melhor fidedignidade dos regis- nais experientes no uso da técnica.
tros e, após o término do trabalho e Uma vez realizada essa adequação
sem a presença do informante, o pes- é possível fazer uma análise quantita-
quisador deve gravar ou registrar em tiva de todos os integrantes da rede,
diário de campo suas impressões e de- por quadrantes e círculos correspon-
mais intercorrências sobre o processo, dentes, dados estes que podem ser in-
que considere relevantes para a inte- tegrados às categorias decorrentes da
gralização dos dados. análise qualitativa.
Cabe lembrar que a aplicação de
instrumentos como a entrevista e o 6. Etapa de confecção do mapa de rede de
mapa de rede, por suscitarem lem- todos os participantes
branças de eventos vitais, podem ge- Esta etapa refere-se à reunião das
rar mobilização emocional nos(as) informações advindas de todos os
pesquisados(as), por isso cabe recor- mapas de cada participante colocadas
dar as disposições da Código de Éti- num mapa único ou geral. Neste, cada
ca em Pesquisa com Seres Humanos. participante poderá ser representado
Em caso de mobilização de conteúdos por um símbolo, letra ou cor especí-
emocionais que podem ser estimula- fica. Isso serve para evidenciar tanto
dos, a aplicação deve ser interrompi- as características estruturais das re-
da e transferida para outro momento des como as suas funções e seus atri-
se for possível. Por isso recomenda-se butos. Nos trabalhos de investigação
um preparo prévio para a realização realizados com o mapa de redes, este
da entrevista semiestruturada, que mapa geral foi muito importante para
subsidiará a construção do mapa com avaliar as tendências da rede em cada
vistas a ter parâmetros de adequação quadrante, permitindo uma visão do
dos itens da entrevista semiestrutura- conjunto de todos os entrevistados,
da ao fenômeno central de pesquisa e, seja em suas semelhanças ou diferen-
por sua vez, refletir sobre a postura do ças. A presença de mapas gerais é ob-
pesquisador no processo de constru- servada em trabalhos de pesquisa de

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Santos (2009), Caminha (2008), Fa- tegorias: família, amizades, trabalho e
O mapa de rede social 95
rias (2010), Menezes (2010) e Gabarra comunidade, nomes correspondentes significativa como instrumento...
(2011). aos quatro quadrantes, sendo que os Carmen Moré e Maria Aparecida Crepaldi

elementos de análise dessas últimas


Construção de categorias de análise no poderiam estar relacionados com as
campo da pesquisa qualitativa características, funções e/ou atribu-
tos dos integrantes da rede, de acordo
O trabalho de construção das cate- com o nível de importância relacional
gorias de análise tem como referência percebido pelo sujeito respondente.
a proposta de Corbin e Strauss (2008), Nesse caso, essa categoria principal
que se inicia com um processo de codi- poderia fazer parte de um conjunto
ficação aberta, na busca da construção de outras categorias principais que
das categorias principais e continua estariam respondendo ao objetivo
com a codificação axial, para o surgi- central da pesquisa.
mento de subcategorias e elementos Quando o mapa de rede é o instru-
de análise. Estes últimos evidenciam, mento principal, ou seja, quando se
em conjunto, as propriedades ou di- analisa a dinâmica das redes sociais
mensões sobre as quais se sustentarão pessoais, pode-se determinar que cada
as análises e a compreensão da catego- quadrante do mapa dê as bases para
ria central. a construção de categorias principais,
Por sua vez, cabe destacar que a no- assim se teria, por exemplo, quatro
meação das categorias, subcategorias e grandes categorias nomeadas respec-
elementos de análise pode ser sustenta- tivamente como: (a) Relações fami-
da por: (a) a narrativa dos participantes liares, (b) Relações de trabalho, (c)
presentes na entrevista semiestrutura- Relações de amizade, e (d) Relações
da, (b) a partir da nomeação presen- comunitárias, tendo como subcate-
te nos quadrantes do mapa de redes, gorias as funções e atributos e, como
enquanto instrumento e (c) a partir elementos de análise, as características
de conceitos teóricos que sustentam a das redes. Cabe lembrar que a análi-
teoria proposta por Sluzki (1997) e pela se dessas categorias contempla uma
literatura especializada, sempre tendo análise horizontal, ou seja, evidencia a
como referência o objetivo principal relação entre elas e, de modo vertical,
de pesquisa. Em termos de análise e busca a profundidade de cada catego-
discussão, essa triangulação dos dados, ria em si mesma.
na perspectiva de Flick (2008), é con- A organização apresentada das ca-
siderada uma estratégia para ampliar e tegorias é uma proposta de análise
aprofundar os dados e a interpretação, no que se refere à construção de cate-
uma vez que a pergunta de pesquisa é gorias a partir do mapa de redes. No
considerada a partir de pelo menos dois entanto, somando-se a isso podem
pontos e complementada pela literatu- surgir outras possibilidades de cate-
ra especializada, para se proceder a aná- gorias decorrentes das narrativas e dos
lise e discussão dos dados. aspectos diferenciais das mesmas; da
Assim, no estabelecimento de ca- análise da confecção do mapa geral,
tegorias de análise, quando o mapa conforme apontado anteriormente, e
é um instrumento coadjuvante de das possibilidades de análises quanti-
outros, a rede social pessoal signifi- tativas. Estas trazem dados enriquece-
cativa seria uma categoria principal, dores retirados do conjunto, os quais
que, por sua vez, teria quatro subca- podem evidenciar lacunas, densidade,

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tamanho, distribuição e características peamento das redes sociais significati-
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da estruturação da rede social de uma vas em diferentes momentos do pro-
pessoa ou família. cesso de desenvolvimento humano ou
do ciclo vital da família.
No que diz respeito a suas limita-
CONSIDERAÇÕES FINAIS ções, aponta-se a dificuldade para uti-
lizá-lo com grupos, quando se busca
Acredita-se que a incorporação da aprofundar a dinâmica das funções e
dimensão da rede social na atividade de atributos dados aos vínculos nas redes,
pesquisa no campo das metodologias exigindo este último uma entrevista
qualitativas permite: (a) potencializar mais direcionada em nível individual.
as análises descritivas presentes nas nar- Por fim, reitera-se, aspecto ante-
rativas, (b) aumentar as possibilidades riormente mencionado, a importância
explicativas dos fenômenos humanos de estar sempre atentos aos aspectos
estudados, visibilizando de forma mais éticos da pesquisa, a partir do reco-
concreta o impacto das transformações nhecimento da mobilização subjeti-
que uma rede social significativa pode va/emocional que a utilização de um
ter para o desenvolvimento do sujeito, instrumento de coleta de dados possa
e (c) contextualizar os dados às realida- ocasionar nos participantes, princi-
des estudadas, por meio da observação palmente no contexto da investigação
dos diferentes sistemas envolvidos, per- qualitativa.
mitindo uma efetiva ampliação de um
foco, uma situação ou um problema a
ser investigado. REFERÊNCIAS
Considera-se que a busca de instru-
mentos sensíveis a mostrar e possibi- Atienza, F.l., Pons, D., Balaguer, I., &
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mapa de redes é uma possibilidade re- famílias com crianças com fissura
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A exemplo desse aspecto tem-se o ma- vida. (Tese de Doutorado). Progra-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 84-98, ago. 2012.


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ARTIGO

APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL E PODER:


HIERARQUIA, HETERARQUIA, HOLARQUIAS E REDES
CLAUDIA LILIANA PERLO
Instituto Rosario de
ORGANIZATIONAL LEARNING AND POWER: HIERARCHY, Investigación em Ciencias
HETERARCHY, HOLARCHY AND NETWORKS de la Educación (Irice) –
Conicet (Consejo Nacional de
Investigaciones Cientifícas y
Técnicas) Rosario, Argentina.
RESUMO: Apresentamos o resultado de uma in- ABSTRACT: We present outcomes of an inves- E-mail: perlo@irice-conicet.
vestigação em torno das concepções de poder, tigation in relation with the power, hierarchy, gov.ar.
hierarquia, heterarquia e rede que as pessoas heterarchy and web conceptions that people
mantêm nas organizações de trabalho. A mesma hold in labor organizations. This investigation LETÍCIA DEL CARMEN
é parte das investigações que desenvolvemos em is part of the research we are developing in
COSTA
IRICE-CONICET, Argentina. Indagamos o que é IRICE-CONICET, Argentina. The question that
preciso aprender para produzir mudanças reais e leads our observations is what is necessary UADER Facultad de Ciencias
efetivas nas organizações. Procuramos a ligação de la Gestión. Paraná Entre
to learn to produce real and effective changes
Rios - Argentina
entre as possibilidades e limitações para aprender in the organizations? We are seeking about the
com os conceitos que as pessoas usam em sua link between the possibilities and limitations to
atuação. Apresentamos um caso sobre uma co- learn and change with those conceptions that MARIA VERÓNICA LOPEZ
operativa que oferece serviços sociais aos seus people have in their practice. We refer a case ROMORINI
profissionais. Nossa abordagem metodológica se which is about a mutual that offers social servi- Instituto Rosario de
baseia na perspectiva qualitativa por meio do en- ces to their professionals. Our methodological Investigación em Ciencias
quadramento da pesquisa-ação. Os instrumentos approach is base on the qualitative perspective de la Educación (Irice) –
usados para o levantamento de dados que aqui through the action-research design. The tools Conicet (Consejo Nacional
apresentaremos são sequências gráficas, entre- used for gathering were graphics series, in- de Investigaciones Científicas
vistas e discussões em grupo. As conclusões do terviews and discussion groups. The work’s y Técnicas) – UNR, Rosario,
trabalho sugerem o abandono dos modelos anti- conclusions are that it’s require to abandon Argentina.
gos baseados na fragmentação das partes e que the old models tie to the fragmentation of the E-mail: lopezromorini@irice-
configuram uma estrutura organizacional vertical. parts, that configured a vertical organizatio- conicet.gov.ar.
A partir de uma concepção da realidade complexa nal structure. From a complex and reticulated
e em redes, propomos um olhar eco-holárquico conception of reality, we propuse an eco-holo- MARÍA DEL ROSARIO DE
para pensar as estruturas organizacionais. Des- archy view to think the organizational structu- LA RIESTRA
te ponto de vista, as diferenças são entendidas res. From this point of view, the differences are Instituto Rosario de
como subtotalidades na rede, não implicando em understood as sub-totalities in the web. This Investigación em Ciencias
relações de hierarquia de superioridade, mas sim doesn’t simply superior hierarchy relations. It’s de la Educación (Irice)-
como um meio de complementação, colaboração mean a complementation, collaboration and Conicet (Consejo Nacional
e sentido comunitário. community sense. de Investigaciones Científicas
y Técnicas) – UNR, Rosario,
PALAVRAS-CHAVE: Poder, hierarquia, redes KEYWORDS: Power, hierarchy, networks Argentina.

Tradução de
ANNA PINHEIRO DE
VASCONCELLOS
Neste artigo apresentamos conceitos que comprovam o marco teórico de nossa in-
vestigação atual em torno das concepções de poder e hierarquia que as pessoas sus- Recebido em 28/02/2012.
tentam como teorias em uso nas organizações de trabalho (Argyris & Schön, 1978). Aprovado em 17/04/2012.
A abordagem teórico-metodológica se baseia na hermenêutica (Gadamer,
1977), integrando a perspectiva sistêmica e os enfoques complexos (Morín, 1995), * Projeto: aprendizagem e
desenvolvimento organizacional:
a partir da perspectiva qualitativa por meio do estudo de casos. as concepções de poder e sua
Nos estudos anteriores (Perlo, 2008)* observamos que as pessoas geralmente incidência nos processos de
mudança coletiva (2007-2009)
concebem o poder como um objeto/substância proveniente da autoridade do posto, IRICE-Conicet- UNR.
movendo-se verticalmente através de tendida como a existência de níveis de
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uma estrutura piramidal, impedindo os superioridade de uns sobre outros.
processos de participação e fluidez de A partir de uma perspectiva sistêmica
mudança no contexto organizacional. e hologrâmica (Wilber, Böhn, Pribram
Isto provoca um enfraquecimento et al., 2008), é indispensável revisar esta
da rede organizacional que leva ao tra- concepção que responde a um modelo
balho solitário e isolado, diminuindo mecânico da realidade. A administra-
a autonomia reflexiva dos indivíduos ção científica se enraizou neste modelo,
(Dávila & Maturana, 2007), a capaci- configurando relações hierárquicas evi-
dade criativa e a responsabilidade ética dentes nas cadeias de comando.
e social para tomar conta de si mesmos Etimologicamente, hierarquia nos
e do coletivo a que pertencem. conduz ao sentido de graduação das
Indagamos em que medida as pos- pessoas, valores ou dignidade.
sibilidades ou limitações para apren-
der e mudar se encontram fortemente
Um dos aspectos que se destaca em toda
ligadas às concepções de poder e hie-
manifestação de vida é a tendência a
rarquia que apoiam as pessoas na sua
construir estruturas multiniveladas de
atuação. Nesse sentido, nos interessa
sistemas dentro de sistemas (...) desde os
aprofundar o conceito de heterarquia
(McCulloch, 1965). primórdios da biologia organicista estas
Apresentaremos os achados teóricos, estruturas foram denominadas de hie-
produtos da exploração e aprofunda- rarquias. Entretanto, este termo pode ser
mento em torno dos conceitos de hie- equivocado ao tratar-se de hierarquias
rarquia, heterarquia e holarquia vincu- humanas, estruturas rígidas, de domínio
lados à noção de rede, como também o e controle e muito diferentes das encontra-
trabalho de campo realizado em torno das na Natureza. É conveniente observar
destes conceitos. A conclusão propõe o que o importante conceito de rede – trama
conceito de eco-holarquia para confi- da vida – dá uma nova perspectiva sobre
gurar uma nova ordem organizacional as denominadas hierarquias da Natureza
que sustente a convivência democrática (Capra, 2006, p. 47-48).
em nossas instituições.
Consideramos que a perspecti-
va hierárquica não é adequada para
DA PERSPECTIVA TEÓRICA o aprendizado coletivo. É necessário
ampliar o campo de percepção no qual
“O poder é uma forma de autoridade nos encontramos aprisionados siste-
‘superior’ que várias pessoas podem ter. micamente.
Exercem sua autoridade sobre aqueles que Neste sentido é que indagamos sobre
estão em uma camada inferior a sua.” o conceito de heterarquia. Este é apre-
(Entrevistado)
sentado pela primeira vez por Warren
Ou
McCulloch em 1965, num trabalho so-
“Vejo-me em todo o povo, e ninguém é
bre redes neuronais, “McCulloch tirou
nem mais nem menos do que um grão de
o conceito de heterarquia de um prin-
cevada.”
cípio que ele apreciava muito: o prin-
Walt Whitman
cípio do mando potencial, por meio
De hierarquias e heterarquias do qual a informação constitui a au-
toridade (Von Foerster, 1997, p. 141)”.
A indagação parte do questiona- Von Foerster ilustra este princípio
mento da concepção de hierarquia en- com a história da batalha das Ilhas

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Midway, quando a frota japonesa es- Morales (2010), sustentam que as Aprendizagem organizacional
heterarquias são sistemas debilmente e poder 101
teve a ponto de destruir a americana:
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
acoplados porque têm uma interação Maria Verónica Lopez Romorini e María del...
A capitânia dos americanos foi atingida descentralizada, impulsionada por di-
nos primeiros minutos e a sua frota ficou ferentes interesses individuais que po-
sem comando, passando da hierarquia dem até mesmo ser contraditórios.
para a heterarquia. Então, o comandante Este último ponto nos leva a indagar
de cada navio, grande ou pequeno, assu- em que medida os sistemas guardam
miu o comando de toda a frota quando simultaneamente as duas formas de
se deu conta de que, devido à sua posição organização: hierárquica e heterárqui-
neste momento, tinha melhor conheci- ca? Por que Iannacci e Mitleton-Kelly
mento de como agir. Como todos sabem, caracterizam os sistemas heterárqui-
o resultado foi a destruição de toda a fro- cos como “debilmente acoplados”?
ta japonesa e a virada decisiva da guerra Os sistemas heterárqui-
do Pacífico (Von Foerster, 1997, p. 141). cos são abertos, flexíveis e
multidimensionais, características
Von Foerster (1997) analisa este hoje reconhecidas, a partir dos
tipo de organização por meio do sistemas complexos, como essenciais
conceito “heterarquia”, o qual define para a estabilidade, conservação e
como governo de outros ou governo transcendência. Da mesma forma,
dos outros. Contrariamente, segundo voltamos a nos perguntar por que
sua etimologia, conceitualiza a hierar-
nos sistemas hierárquicos, nos quais a
quia como arquien (governo) e hieros
determinação do macro para o micro
(sagrado). Estes conceitos aparecem
não é garantida, a���������������������
debilidade estrutu-
como opostos. A heterarquia se carac-
ral não é notada?
teriza pela distribuição do poder em
Von Foerster ilumina nossas per-
subsistemas de governo (Kontopoulos,
guntas ao assinalar que a estabilidade
1993), enquanto que, na hierarquia, o
dos sistemas e, além disso, a partir de
poder se concentra na camada supe-
rior, no alto da estrutura piramidal. nossa perspectiva, a força dos mes-
As relações heterárquicas se evi- mos não contra atua em oposição às
denciam na natureza das redes de que forças perturbadoras, existe somen-
fazemos parte, como afirma Barragán te como fonte de criatividade. Estes
Morales (2010), formando um novelo conceitos no complexo organizacional
de interdependências. Este autor con- nos permitem transcender o espaço
sidera que hierarquia e heterarquia di- de luta entre os de cima e os de baixo
zem respeito a um mundo organizado na cadeia hierárquica de comando até
em níveis ou subsistemas. O conceito um espaço de encontro criativo entre
de heterarquia se torna necessário as pessoas. Entendidas estas últimas
para compreender que a determinação como subtotalidades, diversas, únicas
dos processos macro e micro nunca e complementares da trama coletiva
é completa. Os sistemas evidenciam (nós), concebida aqui como totalidade
uma multideterminação de nature- (Böhm, 2008).
za aberta em contínua reorganização,
multidimensional e contraditória, que Da metáfora da pirâmide à metáfora da
requerem uma observação mais ampla rede
e complexa do que a dos níveis exclu-
sivamente hierárquicos. Como se configura a ordem na rede?
Por outro lado, Iannacci e Mitleton- Concebemos uma sociedade em rede
-Kelly (2005), citados por Barragán (Castells, 2006) altamente interconec-

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tada, flexível e cada vez mais indepen- A partir dessa perspectiva, a estru-
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dente. Entender de maneira mecânica tura das redes caracterizada pela flexi-
os fenômenos sociais cria empecilhos bilidade, adaptabilidade e descentrali-
para a compreensão do fluxo dos pro- zação do controle se institui na forma
cessos nos quais estamos imersos. São de uma ordem forte, saudável, inclusi-
eles que constituem a rede dinâmica na va, de sustentação das pessoas dentro
dos sistemas auto-eco-organizados em
qual são reconhecidos os vínculos (fios)
que tramam as organizações como um evolução (Morin, 1996).
produto, uma ordem, uma “comuni- As redes reestruturam o poder e o
dade de prática” (Wenger, 2001). Por fluxo de comunicação, apresentando
sua vez, as organizações são produto- cruzamentos múltiplos; são meios que
ras dessa rede, produzindo o coletivo ampliam as possibilidades do proces-
ou organização, o tecido relacional no samento da informação e de aprendi-
qual as pessoas estão inseridas. As co-zagem, abrindo-se, desse modo, para o
munidades de prática se constituem a aprendizado em colaboração.
partir da presença e da participação. É Entendemos que uma concepção
uma ��������������������������������
rede que está em constante movi- de poder que busque gerar mudanças
mento e transformação. por meio do aprendizado no contex-
Segundo Capra (1995): to organizacional deverá separar-se da
concepção tradicional de hierarquia
(...) a teia da vida consiste em re- associada com a superioridade estabe-
des dentro de redes. Em cada  lecida pelas diferenças.
escala, sob estreito e minucioso exa-
me, os nós da rede se revelam como
redes menores. Tendemos a arranjar A APRESENTAÇÃO DE CASO E
esses sistemas, todos eles aninhados ABORDAGEM METODOLÓGICA
dentro de sistemas maiores, em um sis-
tema hierárquico, colocando os maio- Será apresentado um caso relacio-
res acima dos menores, à maneira  nado com o contexto do tema estuda-
de uma pirâmide invertida. Mas isso é do e sobre o qual as empresas também
uma projeção humana. Na natureza, terão interesse em se informar. Trata-
não há “acima” ou “abaixo”, e não há -se de uma sociedade cuja finalidade é
hierarquias. Há somente redes aninha- oferecer a todos os profissionais afilia-
das dentro de outras redes. dos serviços, subsídios, ajuda econô-
mica, planos de saúde, assessoria jurí-
A partir de uma perspectiva con- dica e cursos. A instituição conta com
vergente, Maturana (2010) assinala diretoria, presidente, chefes de setores
que não existe hierarquia na nature- e o operacional. Tem 60 empregados
za, existe uma ordem que se confunde distribuídos entre a sede e quatro su-
com esse tipo de organização. A ordem cursais em localizações próximas.
vem da disposição das coordenações Os instrumentos utilizados para o
de coordenações das tarefas realizadas. levantamento de dados foram: sequên-
Como mostra Friedrich Von Hayek, cias gráficas, entrevistas e grupos de
citado por Von Foerster, “a única pos- discussão. Aqui nos referimos aos re-
sibilidade de transcender as mentes in- sultados obtidos a partir das sequên-
dividuais é confiar nas forças auto-or- cias gráficas. Formadas por desenhos e
ganizacionais suprapessoais que criam esquemas produzidos a pedido do pes-
uma ordem espontânea (1997, p.133)”. quisador, elas nos dão informações va-

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liosas sobre pressupostos subjacentes e de uma imagem como representante Aprendizagem organizacional
e poder 103
teorias em uso (Argyris & Schön, 1978) da categoria a ser descrita e explicada.
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
e que dificilmente seriam verbalizados. As imagens protótipos a seguir per- Maria Verónica Lopez Romorini e María del...

O pedido foi: “Desenhe uma organi- tencem a três gerentes. A imagem A


zação.” A partir destas representações corresponde ao exemplo 1 do proces-
começou-se a fazer indagações sobre a so e a imagem B ao exemplo 2, após
percepção do poder e a configuração do a facilitação. Construímos tr����������
��������
s catego-
espaço organizacional. Este método tra- rias: imagens piramidais, circulares e de
ta dos mapas da organização que cada rede. Em cada figura, analisaremos três
pessoa configura a partir de sua própria indicadores: conceito de poder, tipo de
percepção do território organizacional, ordem e configuração espacial.
indo ao encontro do sentido que Mor-
gan (1998) deu em seu livro Imágenes de Da análise das imagens
la organización às diferentes metáforas
que as pessoas constroem e por meio Imagens piramidais:
das quais atuam nas organizações.
Foram preparadas sequências em Dos 12 desenhos separados, 6 cor-
dois momentos da investigação, no respondem a imagens piramidais.
início e no fim do processo. Entre estes
dois momentos foi desenvolvido um Figura I: Imagem piramidal A

processo de facilitação para produzir


mudanças reais e efetivas na organi-
zação. Os seguintes temas aparecem:
liderança, participação, poder, comu-
nicação, redes, construção de relações
colaborativas e diálogo. Eles também
foram abordados a partir de uma
perspectiva complexa, sistêmica e em
rede da organização. Em síntese, as
sequências foram administradas com
dois objetivos: primeiro, levantar os
pressupostos subjacentes prévios para
a facilitação, segundo, examinar os
processos de mudança que facilitam a
intervenção na organização.
Serão apresentados aqui os resul-
tados da análise de 12 desenhos* que Nesta figura, pode ser observado
correspondem a pessoas que ocupam um organograma composto por re-
cargos de gerência desta organização. tângulos que interpretamos como os
Para este artigo, selecionamos 6 lugares ou postos de trabalho. Por sua
imagens que consideramos protótipos vez, estes se encontram emoldurados,
da amostra. Na pesquisa qualitativa, ou melhor, atravessados por uma figu-
entendemos como protótipos os da- ra piramidal. Os retângulos ultrapas-
dos trazidos pelas pessoas que definem sam a moldura. As setas que unem os * A base de dados da equipe
de modo claro e preciso uma catego- postos apresentam diferenças entre a conta com 348 sequências
gráficas, correspondentes
ria ou classe. Assim são utilizadas pelo parte superior e a parte inferior. Na a outras amostras de casos
pesquisador a descrição textual de parte superior, a linha é contínua en- organizacionais que se
encontram em processamento
uma palavra, uma frase ou a utilização quanto que na inferior é descontínua. e análise.

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A estrutura piramidal parece consti- definindo o que está em cima e o que
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tuir-se em um forte “corpete” que deli- está abaixo. Da mesma forma, um
mita e fragmenta o posto de trabalho, dentro e um fora são desenhados de
uma vez que aparecem dois níveis di- forma fragmentada. O entorno não é
ferenciados por uma linha pontilhada. percebido. Esta geografia se constitui
Abaixo e fora da pirâmide emerge ou- “a partir do olhar dicotômico onde o
tra interação, menos visível na arqui- limite separa drasticamente um inte-
tetura piramidal. Nesta cartografia, a rior e um exterior... (Najmanovich,
pirâmide se coloca como um teto por 2008)”.
cima de outros tipos de relações que Neste desenho se observa uma
não estão dentro do corpete. mudança significativa, o posto de
De acordo com nossa perspectiva, trabalho se transformou em pessoa
o poder é percebido como um objeto (figura humana masculina e femini-
neste mapa, algo que vem do lugar/ na). Esta mudança mostra um salto
posto que se ocupa na estrutura pira- qualitativo neste mapa que, embo-
midal. Trata-se de uma ordem hierár- ra piramidal, humaniza o posto de
quica que concebe uma configuração trabalho. Embora a pirâmide vol-
espacial entre um acima e um abaixo, te a aparecer dentro do “corpete”,

Figura II: Imagem Piramidal B

o jogo de relações não está acima se apresenta na figura anterior, evi-


delas, fragmentando-as. Assim mes- denciando uma mudança relevante
mo, neste desenho, os níveis hierár- que vai da organização objeto até
quicos dentro do corpete piramidal a organização pessoa (Schvartein,
aparecem claramente diferenciados. 2002). Nesta configuração espacial se
Aqui existe uma concepção de po- observa uma relação entre o dentro
der e hierarquia similar àquela que e o fora diferentes daquela do pri-

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meiro desenho. As pessoas que estão exteriores estão sustentando tanto Aprendizagem organizacional
e poder 105
fora da organização mantêm relação o círculo como a cadeia que o mes-
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
com esta última, o que é simbolizado mo contém. A configuração espacial Maria Verónica Lopez Romorini e María del...
pelas linhas pontilhadas. Estas linhas estabelece um fluxo nos términos de
marcam uma diferença com as rela- circulação que denota maior flexibi-
ções estabelecidas entre as pessoas lidade. Este mapa poderia girar como
que se encontram dentro do marco uma roda de engrenagem. A imagem
piramidal. Nestas cartografias (figu- mostra uma concepção de poder di-
ra I e figura II), o que está no ponto ferente da pirâmide onde este já não
mais alto da pirâmide é aquilo que
sobe e abaixa, mas sim, circula.
vai perdendo maior quantidade, va-
riedade e qualidade de vínculos.
Figura IV: Imagem circular B

Imagens Circulares:

Dos 12 desenhos separados, 4 cor-


respondem a imagens circulares.

Figura III: Imagem circular A

Neste mapa circular, a mudança en-


tre as imagens circulares A e B é muito
mais importante do que as encontradas
nos mapas piramidais. A gestalt aqui se
transforma de círculo para rede. A con-
cepção de poder, embora centralizada,
aumenta a interatividade.
Na figura circular A, não existe vin-
culação com a cadeia que, agora sim,
aparece e se inclui na figura B. As co-
nexões que aparecem na figura B evi-
Neste mapa prevalecem as figuras denciam maior inclusão e associação.
circulares. Na configuração espacial A imagem pura do círculo já não é a
fica claro um centro como também mesma. Surge aqui a possibilidade de
um dentro e um fora, sem um acima transitar do círculo para a rede. Esta
ou um abaixo. Nesta configuração não imagem se afasta da engrenagem de
se mostram níveis, status ou hierar- maquinaria, com maiores possibilida-
quias. As relações de poder aparecem des de circularidade e rodagem. Esta
no centro em forma de cadeia que está figura deixa de lado a ideia de lide-
fortemente diferenciada. A presença rança e se inicia a gestação, a gerência
do outro é permanente de um lado a coinspirativa.
outro e em frente.
As relações que se estabelecem já Imagens reticulares:
não se mostram como submissão,
tampouco fica clara a direção do vín- Dos 12 desenhos separados, 2 cor-
culo. Pode-se pensar que as figuras respondem a imagens reticulares.

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Figura V: Imagem reticular A
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Este desenho mostra o dentro e o imagem, indicam uma direção no mes-


fora. Há círculos que podem se co- mo sentido, sugerindo a ideia de aliena-
nectar com outros círculos. As setas se ção até um objetivo comum.
orientam em todas as direções, o que Quanto a ordem, não se trata de
mostra um vínculo multidirecional. Há uma ordem disciplinada e hierárquica,
quantidade e variedade de conexões. mas sim de uma ordem caótica. Isto é
Os círculos e setas são mais assinala- bifurcação, imprevisibilidade e diver-
dos que outros, o que denota diferentes sidade na intensidade do fluxo. Conse-
intensidades dos vínculos, diferentes quentemente o conceito de poder é de
fluxos. Assim mesmo, as três setas com biopoder que se encontra distribuído
volume, que aparecem nos três lados da aleatoriamente entre as relações.

Figura VI: Imagem reticular B

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O mais significativo nesta imagem ganização. Ao mesmo tempo temos Aprendizagem organizacional
ampliada e aprofundada a diversidade e poder 107
é a sinergia que aparece com a orga-
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
nização de múltiplas interconexões. Se de imagens que mostram diferentes Maria Verónica Lopez Romorini e María del...
organizam num conteúdo em forma configurações em torno da circulari-
de seta que se dirige claramente até a dade e na rede. Observamos um pre-
meta comum. Vê-se um fluxo central domínio das configurações piramidais
(marca do traçado) e esta intensidade sobre as circulares e de rede, já que das
também se repete na ponta da seta. 12 figuras analisadas, 6 das mesmas
Surge a ideia de força e energia que respondem a esta categoria.
embora se destaque neste fluxo mais
intenso pelo traçado, está presente A partir da análise dos três tipos de
na totalidade das interações em jogo. categorias, observamos que, na pirâ-
Os círculos mais marcantes no centro mide, os movimentos se encontram
mostram movimento através de vérti- fortemente controlados, no círculo os
ces e atratores. Existe a ideia de tecido movimentos são previsíveis, enquanto
junto com direção, sendo uma intera- que na imagem da rede o movimento
ção caótica com esta. As concepções de não só é mais intenso como também
ordem e poder são semelhantes a da denota maior interação, fluxo e, ainda,
figura 5, mas, neste caso, o fluxo está mais imprevisibilidade e caos.
potencializado por uma ação coletiva Tanto na pirâmide quanto no círcu-
sinergética, ajustada à meta da orga- lo o padrão é o controle e na configu-
nização. Esta imagem traz a percepção ração da rede o padrão é o caos.
de inclusão do “todo no todo”. Das 6 figuras selecionadas, tanto
nas piramidais, nas circulares e nas de
A síntese da análise rede, observamos modificações signi-
ficativas em duas partes das sequências
Antes da realização da síntese sobre gráficas A e B, de onde surgiu uma fa-
o tema principal desta investigação, cilitação (aprendizagem) que permitiu
consideramos necessário realizar uma ampliar as percepções sobre a organi-
breve precisão metodológica da análi- zação. Nestas modificações, se obser-
se. Explicaremos nossa visão em torno vou uma evolução no movimento que
da relação existente entre os pressu- modificou de alguma forma a confi-
postos ou antecipações de sentido do guração, desde nossa interpretação da
que conta o investigador e os resulta- pirâmide até a rede.
dos encontrados. Em relação ao conceito de poder, o
Os pressupostos são inevitáveis e objeto vai se desenhando ao passar da
guardam estreita relação com o olhar pirâmide para a rede. Na pirâmide, o
mesmo do investigador, aquele que poder se detém, na roda circula de um
determina o observado. Estes conhe- lado ao outro, e na rede flui de manei-
cimentos não buscam simplesmente ra imprescindível e multidimensional.
sua constatação, mas têm a pretensão
de ser modificados e ampliados pelo
processo de investigação, com o pro- CONCLUSÕES
pósito de melhorar a compreensão do
fenômeno. Sobre a hierarquia e a sua ineficácia para
No caso desta investigação em es- compreender a ordem na rede
pecial, foi confirmada a presença de
configurações piramidais nos mapas A partir deste estudo observou-se
mentais das pessoas que atuam na or- que:

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(a) a concepção de poder se associa à Uma concepção de poder que bus-
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hierarquia, superioridade, domina- que gerar mudanças no contexto or-
ção e imposição; ganizacional deverá transformar o
(b) a organização como uma estrutura conceito tradicional de hierarquia,
piramidal ignora a trama organi- associado à superioridade estabeleci-
zacional composta pela intercone- da pelas diferenças. Sustentamos que
xão das condutas individuais; uma visão hierárquica das relações
(c) esta concepção de poder produz humanas plasmadas nas construções
solidão e isolamento quanto mais organizacionais não é a adequada para
alta for a posição das pessoas na compreender o que ocorre na rede na
pirâmide. qual nos encontramos sistemicamente
enredados (Capra, 2006).
A concepção mecânica da realidade Maturana e Dávila (2010, p. 20) di-
social conduz nosso olhar observador zem:
a capturar o espaço organizacional
configurado entre o “acima e o abai- A competência não é o mecanismo de
xo”, nos impedindo de ver a fluidez dos sobrevida diferencial, como assinala Da-
processos em que estamos envolvidos. rwin. Nós dizemos, como uma afirmação
Deste modo, nas organizações escu- biológica e não teórica, que o fenômeno é
tamos de forma mais frequente entre os o desvio natural. Os organismos deslizam
empregados de “hierarquia mais baixa”, pela circunstância do viver sobre a tan-
um discurso que se resume em “nós e gente na qual se conserva a vida. Os que
vocês”. Esta visão fragmentária impede não estão aptos, por exemplo, desapare-
“pensar junto”, diminui nossa partici- cem, mas não por uma relação competiti-
pação na rede, produzindo mal-estar e va. Isto também se aplica às organizações.
doença. Isto nos conduz à reflexão em
torno das limitações que condicionam Perguntamos-nos se estas concep-
nossa coabitação no contexto organi- ções de hierarquias e heterarquia não
zacional. Vimos que o mapa piramidal provêm de uma visão fragmentada
define uma dimensão emocional-rela- e reduzida, pois ambas se referem ao
cional na qual o medo e a raiva cons- poder exercido por um ou pelo outro,
tituem as emoções básicas. Atestamos iludindo o nós.
que esta ordem não é biológica, mas No mesmo sentido, até que pon-
sim cultural e que obedece ao nosso ego to o conceito de heterarquia não se
envaidecido e à necessidade do homem refere a um sentimento nostálgico de
de controlar e dominar. abandono do conceito de hierarquia?
“Positivamente e com uma aprecia- Consideramos a �������������������
heterarquia um con-
ção reducionista desenhamos soluções ceito que nos permite transitar até
para os problemas da nossa sociedade uma ordem não hierárquica, uma
ordem de multiníveis. Existe sempre
organizada, dedicados com empenho
uma ordem configurada por nossa
à construção de cenários que favore-
própria observação. Esta ordem se
cem a frustração e o mal-estar coletivo,
encontra em permanente entropia,
avivando a chama da dor (Perlo, Costa,
desvio natural que flui permanente-
& De la Riestra, 2010).” Tal dimensão
mente da ordem ao caos e do caos a
nos leva a evocar uma concepção so-
nova ordem, num caminho de evolu-
cial expressa no Leviatan de Hobbes,
ção auto-eco-organizado.
“Homo Homini lupus” que significa
É preciso fortalecer a noção de sub-
“O homem é o lobo do homem”.
sistemas e multiníveis que caracterizam

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 99-112, ago. 2012.


o universo auto-eco-organizado de (b) uma concepção autopoiética da Aprendizagem organizacional
e poder 109
Morín (1996) do qual fazemos parte. autoridade que possibilite a emer-
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
É importante voltar a ressaltar que gência do poder gerador e criativo; Maria Verónica Lopez Romorini e María del...

a Natureza se organiza em torno da (c) um enfoque do poder baseado na


coordenação de produções. Ou seja, não holarquia que comporte a apro-
existe hierarquia na Natureza (�������
Matura- priação da ação coletiva através do
na, 2010), a abelha rainha, o líder da ma- reconhecimento ético dos atores da
nada, o rei Lear são categorias humanas, sua inevitável participação na rede;
sociais, que extrapolamos para a condu- Nesse sentido, a percepção em rede
ta animal que desconhece pirâmides e da organização que se conecta com
sistemas de governo tanto monárquicos uma configuração diferente do espaço-
como totalitários ou militares. -tempo-alteridade nos leva à transfor-
Até que ponto o que observamos mação coletiva que reconhece que “a
como competência/mutualismo, pre- trama da vida está constituída por redes
dação/simbiose não são movimentos dentro de redes” (Capra, 2006, p. 82).
diferentes homeostáticos em busca de Aqui cabe uma constatação: desde
equilíbrio dinâmico que a Natureza o interior da equipe de investigação,
requer no seu permanente e inevitável na análise das imagens não existiu di-
movimento para fluir com a mudança? ficuldade para analisar as cartografias
A partir de uma concepção sistêmi- piramidais. Ela apareceu enquanto
ca e em rede dos processos coletivos, fazíamos o estudo das imagens circu-
consideramos que as diferenças não lares e em rede. Neste momento, re-
deveriam estabelecer um sistema de conhecemos de que modo e até que
superioridade, e sim buscar comple- ponto a metáfora piramidal está inte-
mentaridade, colaboração e sentido riorizada por nós. Percebemos que os
compartilhado que possam dar uma recursos racionais de que dispomos
perspectiva hologrâmica da rede. nos guiaram significativamente em
O aprendizado a partir de uma torno da análise piramidal, enquanto
concepção de rede do poder facili- que, para analisar círculos e redes, ne-
ta os processos de mudança coletiva, cessitamos apelar para outros recursos
possibilitando um desenvolvimento que não provêm do racional. À medi-
coevolutivo (Jansch, 1981), produto da que avançamos no processo surgiu
do reconhecimento da natureza não a incerteza que nos mostrou a neces-
hierárquica das relações humanas. “A sidade de novas linguagens para ana-
estrutura ideal para o exercício do po- lisar novos territórios. A possibilidade
der exige modificar profundamente as de configurar mostra que consegui-
presunções básicas (Schein, 1988) de mos diferentes perspectivas, incluindo
autoridade e hierarquia que os atores cortes transversais e movimentos de
sociais assumem na ação coletiva.” varredura, escolha de escala e modo de
Na análise cartográfica das imagens, interação.
chamamos a atenção para as possibi- Em suma, trata-se de um dispositivo
lidades de aprendizagem e transfor- que nos dá a possibilidade de construir
mação organizacional que surgem e se um estilo de indagação caracterizado
potencializam a partir de: pela exploração (Najmanovich, 2008).
(a) uma perspectiva em rede da ação Desta forma, advertimos que todas
coletiva que permita compreen- as cartografias estudadas – a pirâmide,
der o poder como fluxo de inte- o círculo e a rede – estão ali no terri-
rações; tório da potencialidade. As mesmas

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 99-112, ago. 2012.


aparecem a partir de diferentes regis- mente que sente com um coração que
110 NPS 43 | Agosto 2012
tros perceptivos e são legitimadas por pensa relacionalmente.
lógicas e éticas muito diversas e daí Nesse estudo investigamos as dife-
diferentes facilitações suscitarem dife- rentes dimensões da ordem: hierar-
rentes cartografias. quias, heterarquias e holarquias. De
Insistimos que todos estes mapas são acordo com Capra (1999), entende-
factíveis em todo o território organiza- mos que, como toda metáfora, o holo-
cional e sabemos que uns estão mais fa- grama é limitado para poder se pensar
cilitados e legitimados que outros pela a configuração da ordem nas orga-
ordem social estabelecida. Podemos nizações. O holograma é uma figura
ressaltar que se existe uma legitimação estática, uma foto; enquanto a ordem
positiva em torno da arquitetura visível que buscamos implica fluxo e movi-
da pirâmide, esta vem perdendo a eficá- mento. Capra (1999) diz:
cia diante das vicissitudes institucionais
que denunciam o padecimento cotidia- A ecologia é realmente a estrutura que
no para sustentá-la em detrimento da melhor abarca a nova visão da realidade.
nossa qualidade de vida. A ecologia apresenta múltiplas manifesta-
ções que vão desde a ciência dos ecos siste-
A eco-holarquia como nova dimensão da mas aos estilos de vida ecológicos, sistemas
ordem na rede de valores, estratégias econômicas, política
e finalmente a filosofia.
Consideramos que seja propício
aclarar, evidenciar, habilitar, reconhe- Para concluir este trabalho propo-
cer a arquitetura do invisível que nos mos considerar um novo conceito: a
conecta com uma visão holográfica do noção de eco-holarquia como nova di-
poder para transformá-lo. Isto implica mensão de ordem. Como a democra-
uma decisão ética e epistêmica, aquela cia não supõe hierarquias, o conceito
de incluir na cena cotidiana o registro de eco-holarquia nos leva a pensar uma
perceptivo, conceitual e significativo nova configuração da ordem na rede.
da holarquia. No espaço organizacional, necessi-
A holarquia coloca ordem no pla- tamos aprender esta nova configura-
no físico onde nenhuma partícula ção para construir uma sociedade hu-
elementar é mais fundamental que mana democrática sustentável; nela, o
outra. Cada elemento de um sistema é exercício de rede do poder é entendido
mais ou menos equivalente em status como uma estrutura configurada pelas
e mutuamente interdependente. To- posições relativas (fluxo permanente)
dos em um e cada um em todos. Para dos sujeitos que participam do siste-
viver e conviver presos na rede, a se- ma. Sistema (holón) no qual nenhuma
nha está em voltar ao “holón” matriz partícula é fundamental.
(totalidade), isto é, voltar à vivência Por meio desse artigo, buscamos
da tribo. “Uma comunidade saudável contribuir com os processos de sus-
compõe um ciclo ou um cesto, que tentação da qualidade de vida junto à
se mant����������������������������
��������������������������
m entrelaçado pela confian- construção da participação na cidada-
ça mútua, respeito e interdependên- nia como desafio democrático de nosso
cia (Brigg & Peats, 1999, p. 29).” Esta povo. Esperamos que o impacto tenha
profunda observação requer o desen- caráter qualitativo e transformador.
volvimento da “percepção sensível”, A percepção da organização como pi-
aquela que nos permite articular uma râmide rígida e estática nos condena ao

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 99-112, ago. 2012.


desencontro com o outro, à impossibili- Gardner, H. (2002). Mentes líderes: un Aprendizagem organizacional
e poder 111
dade de dialogar e apreciar a totalidade anatomia del liderazgo. Barcelona:
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
na sua multidimensão. A partir de uma Paidos. Maria Verónica Lopez Romorini e María del...

perspectiva divergente, a percepção em Hobbes, T. (1998). Leviatán: o la mate-


rede da organização nos conecta com ria, forma y poder de una república
uma configuração saudável do espaço e eclesiástica y civil. México: Fondo de
nos leva à transformação coletiva. Nos Cultura Económica.
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Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 99-112, ago. 2012.


ECOS
VIOLÊNCIA E INVISIBILIDADE: DIÁLOGOS COM O
ARTIGO “INTERVENÇÃO COM HOMENS QUE PRATICAM
VIOLÊNCIA CONTRA SEUS CÔNJUGES”

A
ssuntos complexos podem se mostrar instigantes. Isso provavelmente se deve em LUCIANA MORETTI
grande parte à multiplicidade de caminhos que abrem para discussão, principal- FERNÁNDEZ
mente quando levam a questionamentos éticos e morais, que não nos deixam Mestre em Ciências
da Comunicação
seguir com indiferença. A partir da leitura do artigo de Ponce Antezana, me pergunto
(USP), graduanda em
sobre o sentido de se adotar posturas primariamente punitivas diante da violência, tan- Psicologia pela UNED,
to no âmbito legal quanto social. Ponce Antezana escreve sobre o problema da violência Espanha, e aluna do
curso de formação de
de gênero na Espanha, onde o assunto ganhou visibilidade pública nos últimos anos.
terapeutas de família do
No Brasil, entre outras expressões da violência, testemunhamos o recrudescimento das Instituto Familiae
formas urbanas, perdemos crianças para o narcotráfico e observamos o avanço insu-
ficiente e ineficaz da construção de presídios. Mas não é esta a dimensão do problema
que pretendo discutir aqui, embora mencioná-la me ajude a situar minhas reflexões
num contínuo que inclui a expressão emocional, local e social, assim como as contin-
gências* e possibilidades de redescrição não somente de quem é diretamente vitimado
e daquele que recorre à violência, mas de todos os que de alguma forma são afetados.
A violência física está tipificada criminalmente. Isso facilita a adoção, muitas vezes
imediata, de atitudes e posturas principalmente punitivas, não apenas na dimensão
legal, mas também social. Na família, e principalmente quando a violência é recor-
rente, seja física ou psicológica, é fácil que se instaurem formas de relacionamento
nas quais perde-se o reconhecimento das partes como parceiros dotados dos mesmos
direitos morais**, criando-se assim um abismo de graves consequências para pais,
filhos, cônjuges, enfim, para todos os que se veem intimamente envolvidos no pro-
blema. Entre as incontáveis consequências possíveis, além das físicas e psicológicas,
estão o estranhamento, o afastamento cada vez maior e as redescrições não comparti-
lhadas que se refugiam em mundos distantes nos quais muitas histórias não são mais
contadas.
O isolamento e o castigo daquele que viola as normas de convivência aceitáveis
numa determinada comunidade, seja no âmbito das relações afetivas ou no âmbito
legal, talvez fosse viável e suficiente se fosse possível encapsular o problema e remo- * O termo contingência
é utilizado aqui como o
vê-lo do ambiente assepticamente, sem deixar marcas, feridas, histórias por contar. estado de possibilidades
Mas, mesmo que isso fosse de alguma maneira possível, não seria solução para nossa indeterminadas do
natureza relacional. Ocorre que homens e mulheres são também esposos e esposas, sujeito, historicamente
datadas (Costa, 1996).
filhos e filhas, irmãos e irmãs, amigos e amigas, alunos e alunas de escolas, colegas de ** Este conceito
trabalho, vizinhos, enfim, membros de comunidades que constituem e nas quais, ao em Honneth (2007)
refere-se ao estatuto de
mesmo tempo, se constituem como sujeitos. parceiro de interação
É possível imaginar que, em ocasiões, resulte incômodo apoiar uma postura que inteiramente capaz de
advogue pelo acolhimento terapêutico ou inclusão daquele que viola as normas de autodeterminação e de
realizar julgamentos (de
convivência pacífica ou recorre à violência, principalmente quando se está diante das existir moralmente) da
vítimas.Como ressalta Ponce Antezana, procurar pelo sentido de cuidar daquele que mesma forma que seus
semelhantes. Para mais
exerce violência “pressupõe um exercício de equilíbrio entre os âmbitos judiciais, detalhes, ver Marques,
ético-morais, psicossociais, relacionais e emocionais” (Ponce Antezana, 2012). Entre- 2011.
tanto, o mero isolamento punitivo seria contrário às posturas teóricas que concebem
114 NPS 43 | Agosto 2012 o homem como ser relacional, principalmente se pensarmos, como destaca o autor,
que a pessoa vitimada também se redescreve continuamente em relação às suas con-
tingências e pode desenvolver recursos que permitam não apenas transformar sua
própria história, mas também contribuir com a transformação do processo de subje-
tivação daquele que recorre à violência.
Ao propor que a perspectiva de gênero seja levada em consideração como fator
que atravessa a subjetividade de homens e mulheres, Ponce Antezana procura in-
tegrar ao modelo terapêutico uma perspectiva que busca compreender a subjetivi-
dade em relação aos diversos aspectos sociais e políticos de gênero, entendendo o
sujeito em contínua interação com seu meio, inserido num dispositivo de poder que
ao mesmo tempo limita e constitui, propondo a consideração da condição social e
política da violência. Com base nessas premissas, defende o estabelecimento de um
“marco de respeito e colaboração que permita estabelecer diálogo com os homens no
que diz respeito às suas próprias experiências, vivências, sentimentos, significados e
intenções” (Ponce Antezana, 2012, p. 15). Sugere ainda que o entendimento do que
é violência se faça desde as perspectivas das ciências humanas e sociais, com atenção
ao texto, ao contexto e ao próprio setting da violência. A história de Aurora, a seguir,
é um exemplo, no âmbito familiar, de muitas das implicações que discute Ponce An-
tezana. Não é somente a história do atendimento de um homem maltratador – é uma
história de violência de gênero em uma família que se constitui num contexto de
violência sociocultural amplo, redescrita num setting terapêutico acolhedor e cola-
borativo que, mesmo na ausência, buscou o reconhecimento e a inclusão do pai para
que Aurora pudesse se redescrever como filha.

A HISTÓRIA DE AURORA

Aurora e Maria* chegaram para atendimento familiar à clínica do Instituto Fami-


liae com uma história dolorosa atravessada por episódios de violência em diferentes
âmbitos e momentos de suas vidas. Filhas de José e Severina, tinham ainda mais
*Esta história é
contada aqui a partir
quatro irmãos, dois homens e duas mulheres. Maria tinha também um filho que
dos atendimentos vivia com sua mãe na pequena localidade do sertão nordestino onde nasceram e
realizados na clínica cresceram as duas irmãs. Maria partiu para São Paulo oito anos antes de nos encon-
do Instituto Familiae
como parte do
trarmos, depois de ser expulsa de casa pelo pai e passar por Sergipe. Aurora havia
curso de formação chegado à capital paulista três anos antes de Maria, acompanhando o pai que teve
para terapeutas de que abandonar sua cidade e propriedades ameaçado de morte por conflitos de terras
família.Todos os
nomes de pessoas
nos quais dois tios de Aurora haviam sido mortos. Aurora viu sua a mãe pela última
e lugares que fazem vez há nove anos.
parte desta história Esta história, semelhante à história de muitos homens e mulheres brasileiros, era
foram substituídos
por nomes fictícios
carregada como um fardo por Aurora enquanto Maria se esforçava por deixá-la no
para proteger sua passado. Durante o tempo em que duraram os atendimentos, tecemos muitas con-
intimidade. Apesar versas nas quais Aurora entrou em contato com sua dor. Aurora tinha um desejo:
de Aurora e Maria
terem compartilhado
queria estabelecer “laços de confiança” com a família. Queria que sua família não
conosco suas histórias estivesse “quebrada”, mas não suportava o desprezo que o pai demonstrava por ela,
em atendimento por sua mãe e suas irmãs. Não aceitava a aliança que havia entre o pai e o irmão, que
familiar, menciono
aqui a história que foi
morava com a mulher e os filhos na casa do pai, e que também as desprezava. Não se
tecida com Aurora. conformava com o fato de que as mulheres da família tivessem de ser as provedoras

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 113-117, ago. 2012.


do pai e dos irmãos que as maltratavam. Desconfiava do afastamento de um de seus
irmãos e da vinda do outro para São Paulo. Pensava que poderia estar envolvido na ECOS 115
morte de um cunhado. Não perdoava a mãe por permitir as “demandas” do pai. Não
compreendia o código de honra que fazia com que o pai, apesar de ter amantes e não
participar da vida da mãe de Aurora, ainda se anunciasse como o marido que devia
ser respeitado e cuidado por ela. Também não compreendia como a mãe podia acei-
tar essa situação e dizer que esse era seu marido.
Aurora contava que nos anos que transcorreram desde que partira para acom-
panhar o pai para São Paulo jamais se sentira reconhecida como filha e nem como
alguém capaz de tomar seu próprio caminho. Sua utilidade, como a de todas as
mulheres da família, dizia, era a de provedora dos homens. E não era esse o valor
que Aurora queria que sua família reconhecesse nela. Para Maria, servir de prove-
dora era aceitável se isso lhe permitia sentir por alguns momentos que fazia parte
do pedaço da família que vivia em São Paulo. Para Aurora não só não era suficiente,
como era humilhante e intensamente doloroso. Era como se ela não fosse vista.
Aurora havia construído em torno de si uma fortaleza com muros altos e espessos
nos quais abria uma pequena porta somente quando e para quem julgasse que
poderia entrar. A senha para o convidado era não demonstrar em momento algum
nenhum movimento em falso que pudesse fazer Aurora sentir que poderia perder
o controle.
A história de Aurora é a história da filha que havia vivido, entre tantos outros tipos
de violência, a violência de gênero. Não como depositária imediata (esse era o lugar
de sua mãe), mas irradiada, talvez até herdada. É também a história do potencial de
herança de pai para filho do rol de gênero, que Ponce Antezana menciona entre seus
argumentos, e do conflito entre comunidades de valores. Aurora nasceu numa cul-
tura e migrou para outra muito diferente quando era adolescente. Seus valores não
eram os de sua mãe, de seus irmãos, de suas irmãs. E é, acima de tudo, uma história
na qual condenar o pai não era suficiente. A história de sua família é um exemplo
de subjetividades inseridas num contexto de violências que são subgêneros em um
contexto sociocultural mais abrangente, condições de produção discursiva das sub-
jetividades. Algo tão usual no Brasil. Eram muitas as violências e discursos que com-
punham as contingências dos homens e mulheres dessa família.
Ponce Antezana escreve sobre o acolhimento de homens que praticam violência
contra seus cônjuges. Não tivemos a oportunidade de reunir fisicamente na sala de
terapia a família “quebrada” de Aurora e nem de ter conosco seu pai. Apesar de relatar
a dor pelo desprezo e maus-tratos do irmão, a indignação de Aurora era mais forte
com os pais. Com o pai, por exercer violência contra todas as mulheres da família.
Com a mãe, por aceitar essas formas de ser homem e de ser mulher. São muitos os
caminhos de entrelaçamento possíveis entre a história de Aurora e os argumentos
que Ponce Antezana propõe para justificar a dedicação de recursos e esforços a essas
intervenções e com as reformulações conceituais que sugere para que esse trabalho
seja possível e útil.
Se aceitarmos a ideia de que a subjetividade se constitui na relação com o outro, se
nos subscrevermos a posturas antiessencialistas que rejeitem a ideia do self uno pos-
suidor, em seu íntimo, de características que são patrimônio privado, é preciso que
façamos, como propõe Ponce Antezana, um afrouxamento dos limites conceituais do
que é violência e incluir, nas histórias, as possibilidades e limitações históricas e cul-
turalmente datadas de cada um. Para incluir as vozes que fazem esses relatos locais,

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 113-117, ago. 2012.


singulares, é preciso compreender cada sujeito como moralmente capaz de tomar
116 NPS 43 | Agosto 2012 decisões, de se agenciar de seus atos. Aceito a ideia de que é através do reconheci-
mento moral do outro como parceiro dialógico capaz que sua voz passa a fazer parte
de histórias abertas, vivas, que se transformam a cada dia. A negação ao outro desse
reconhecimento gesta em si um ato de prepotência que, em última instância, conde-
na à invisibilidade. Negar ao outro a possibilidade de dizer sobre suas intenções, suas
contingências, é um ato de poder que pode constituir um ato de violência. Pensemos
nos mecanismos que a sociedade em que vivemos tem para tornar invisíveis e desti-
tuídos de voz os cidadãos, talvez, como eu e você.
Creio que este é um dos pontos importantes da discussão lançada por Ponce An-
tezana em seu artigo, o ponto no qual, para mim, suas reflexões são especialmente
relevantes. Os homens que praticam violência contra seus cônjuges, mesmo quando
se separam de suas mulheres, continuam sendo pais, cunhados, membros da comu-
nidade. A condenação e o isolamento de quem infringe as regras pacíficas de convi-
vência podem ser viáveis para quem julga aprioristicamente ou para que a sociedade
oculte suas mazelas. Para quem convive com a violência doméstica, especialmente os
filhos, que não escolhem os pais, isso não é suficiente. Por isso creio que a história
de Aurora serve como contraponto, como materialização dos argumentos que Ponce
Antezana apresenta para justificar a utilidade de acolher e ouvir esses homens. E isso,
creio, serve para que pensemos também em outras condenações a outros infratores.
Do lugar de terapeutas que ocupávamos no contexto que construímos juntamente
com Aurora, partíamos de crenças que dialogam com as reformulações conceituais
propostas por Ponce Antezana. Julgar e condenar seu pai e seus irmãos, ou pactuar
com a indignação de Aurora não teriam sido úteis. Provavelmente teria ajudado a
empurrá-la ainda mais para longe deles e a aumentar sua dor. Seria ainda um ato de
prepotência que contribuiria para perpetuar, como adverte Ponce Antezana (2012),
“as mesmas forças relacionais que se pretende modificar”. Isentá-los de suas respon-
sabilidades também não teria sido útil. Para acolher Aurora e incluir seu pai e seus
irmãos mesmo na ausência, como fizemos, era necessário que nos subscrevêssemos
a formulações antiessencialistas e vigiássemos qualquer movimento que constituísse
julgamento moral a priori. Compartilhamos com Aurora nossa visão relacional da
subjetividade, que norteava nossos atendimentos, uma concepção que pressupõe que
é na relação com os outros que nos constituímos como sujeitos singulares, histórica
e culturalmente datados. Através das transformações e redescrições de Aurora de si
mesma foi possível que ela redescrevesse não apenas sua relação com o pai, mas o
próprio pai. Aurora pôde incluir em suas histórias o que ela entendia como as con-
tingências, possibilidades e limitações de seus pais.
Não sabemos se em algum momento o pai e os irmãos de Aurora poderão se agen-
ciar de seus atos e se responsabilizar por suas ações reconhecendo suas contingências.
Mas sabemos que, ao se redescrever como filha, Aurora carrega consigo o potencial
para produzir transformações na subjetividade de seu pai. Aurora continuava tendo
uma “família quebrada” e um pai e irmãos que poderiam feri-la a qualquer momen-
to, mas agora ela os descrevia de outra forma. Agora ela frequentava a casa do pai
e “fazia papel de filha” com alguns “mimos” que oferecia e que, para o pai, eram
sinais de reconhecimento. Esse processo de redescrição sem que o pai participasse
das sessões de terapia, acredito, foi possível no momento em que Aurora, ao tentar
compreender suas possibilidades e limitações, pôde reconhecer o pai como parceiro
dialógico e como sujeito moral de sua própria história.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 113-117, ago. 2012.


Esta é apenas uma das conversas possíveis sobre o assunto tão complexo abordado
por Ponce Antezana, uma conversa sobre a pouca utilidade que pode ter, na família, ECOS 117
a condenação à invisibilidade moral.

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seus cônjuges: reformulações teórico-conceituais para uma proposta de interven-
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Para mais detalhes sobre as ideias de Honneth discutidas neste texto, ver:
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Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 113-117, ago. 2012.


FAMÍLIA E COMUNIDADE
EM FOCO CONVERSANDO SOBRE PRÁTICAS EM SAÚDE MENTAL
PARA ATENÇÃO ÀS PESSOAS QUE USAM DROGAS

MARISTELA MORAES PARA INÍCIO DE CONVERSA


Psicóloga e arteterapeuta,

P
sanitarista, mestre ara iniciar o diálogo que aqui nos propomos, é interessante dizer de onde fala-
em Saúde Coletiva e
doutoranda em Psicologia
mos e como nos encontramos, autor e autora, no cenário das produções sobre
Social pela Universidad o tema das drogas.
Autónoma de Barcelona Viemos de uma trajetória profissional diversa, com encontros produtivos, envolvi-
(Espanha). Integrante
da coordenação da ONG
da no contexto da saúde mental. Nossas experiências são atravessadas pela formação
Instituto PAPAI acadêmica em Psicologia Social e Clínica, Antropologia e Saúde Coletiva, com práti-
cas de pesquisa-ação em serviços públicos de assistência social e saúde e movimentos
ALEXANDRE FRANCA sociais. Durante 2 anos convivemos em uma organização não-governamental cha-
BARRETO mada Instituto PAPAI: lá desenvolvemos trabalhos de saúde com homens, especial-
Psicólogo, especialista
mente jovens. Nosso encontro foi banhado por uma empatia que fez com que nosso
em psicologia clínica
com ênfase em Análise diálogo fluísse de forma complementar e aditiva no âmbito de nossas referências
bioenergética, mestre em epistemológicas e posturas práticas no cotidiano de trabalho. Com isso, desenvolve-
antropologia. Docente da
mos respeito um pelo outro, reconhecendo as contribuições singulares das trajetórias
Universidade Federal do
Vale do São Francisco profissionais de cada um.
Dentre os diversos espaços nos quais transitamos, consideramos significativos para
a construção deste texto: os movimentos sociais pioneiros do trabalho com Redução
de Danos e Gênero/Masculinidades no Brasil; a formação acadêmica e de pesquisa
nos diversos campos das ciências sociais e da saúde citados acima; a vivência pessoal
e formação profissional de psicologia clínica com fortes influências de Reich, Lowen,
Winnicott e Grof; os diálogos da psicologia com as políticas públicas de saúde e as-
sistência social.
É desse emaranhado de ideias e experiências que partimos e vamos propor nosso
diálogo, esperando gerar inquietações positivas e perguntas, muito mais que respos-
tas prontas para temas tão complexos como os que rondam o campo dos usos de
drogas.
Nós, profissionais que atuamos e refletimos sobre a atenção em saúde mental, co-
tidianamente nos deparamos com as inúmeras questões sobre como atuar nos cená-
rios atuais de uso de drogas, especialmente depois do pânico coletivo que vem sendo
gerado pelo aumento do consumo de crack no Brasil.
Sabemos que para os(as) terapeutas familiares e psicoterapeutas sistêmicos esse
também tem sido um tema recorrente em seus vários espaços de intervenção e refle-
xão, sobretudo porque geralmente os problemas relacionados aos usos de drogas são
associados com as ditas “estruturas” e processos familiares malsucedidos, atribuindo
às famílias quase toda a responsabilidade sobre o envolvimento das pessoas com dro-
gas. Sendo assim, precisamos problematizar esse tipo de compreensão, não só por
ser limitadora e extremamente simplista no que se refere ao papel das famílias para
a formação de pessoas, mas também por não dar conta da complexidade que os usos
de drogas impõem à nossa capacidade de entendimento do mundo e das relações
humanas.
Não vamos nos propor a adentrar aqui as questões familiares que então envolvidas
FAMÍLIA E 119
nas construções dos usos de drogas como um problema, mas sim fornecer algumas COMUNIDADE EM FOCO
ferramentas para pensar e exercer uma clínica ampliada biopsicossocial, a partir do
reconhecimento da necessidade de fortalecer os processos de formação de trabalha-
dores/as da área de álcool e outras drogas, em expansão em todo o país, que atuam
tanto nos serviços públicos quanto privados.
Partimos de uma perspectiva biopsicossocial crítica, atenta às condições de vida
das pessoas em seus contextos (e aqui incluo as relações de poder pautadas em gê-
nero, idade, etnia, classe etc.), bem como os fatores físicos envolvidos nesse processo.
Uma clínica ampliada, do encontro produtor de sentidos, que compreenda a “escuta”
como uma postura ética e política, definida não pelo local em que se realiza (Fi-
gueiredo, 1996), mas pela posição do/a profissional e pelos objetivos de libertação
e potencialização dos sujeitos que são postos em ação (Moreira et al., 2007). Sendo
assim, a clínica ampliada pode ser desenvolvida não só na saúde mental pública, mas
também em organizações/consultórios privados, nos quais atuam os(as) terapeutas
familiares e psicoterapeutas sistêmicos.
Nessa direção, consideramos a emergência de um novo paradigma da psiquiatria
disparado com as reformas da década de 70 do século XX e com inovações que emer-
giram a partir daí. Essa psiquiatria procura reconhecer a necessidade de cuidar de
fatores biológicos como o sistema nervoso central e periférico, a bioquímica do corpo
que atua simultaneamente com as sensações e os estados emocionais dos sujeitos. Po-
rém, não pretende anular o sintoma nem isolar o sujeito, mas sim acolhê-lo de forma
cuidadosa e amparadora, estimulando a vitalidade natural dos corpos, pessoas e gru-
pos para suportar e evoluir diante das experiências de profundo sofrimento na vida.
Nessa perspectiva, a psiquiatria aproxima-se de um paradigma da integralidade,
da perspectiva sistêmica e de saúde integral, fazendo com que a saúde mental não
seja isolada do corpo como um todo, nem das relações sociais e ambientais (Barreto,
2011a; Pelizzoli, 2011).
No contexto da Reforma Psiquiátrica, a Atenção Psicossocial tem como proposta
compreender a determinação biopsíquica e sociocultural do processo saúde-doença-
-saúde, uma desinstitucionalização do paradigma psiquiátrico hegemônico e subs-
tituição pelo biopsicossocial. Trabalha para a desconstrução da ideia de instituição
como clausura e tem como princípio a execução de ações éticas e terapêuticas, basea-
das na recuperação dos direitos de cidadania e do poder de contratualidade social
(Costa-Rosa, 2003).
Um grande desafio nesse cenário é tratar de forma equivalente os determi-
nantes do processo de saúde-doença-cuidado em saúde mental, sem negligenciar
aspectos biológicos nem psicossociais, pois há uma imanência destes fatores no
olhar integral.
Ao trabalhar com os fatores biológicos do processo de adoecimento na saúde men-
tal, seja do ponto de vista da bioquímica ou dos processos neurológicos, podemos atuar
potencializando a capacidade dos sujeitos de reconhecimento e manejo do próprio
corpo ou alienando-os da capacidade de cuidado dos mesmos, atribuindo apenas a
possibilidade a fatores externos. Nesse sentido, o uso abusivo de fármacos pode ser
tão nocivo quanto o abuso de substâncias psicoativas não prescritas por profissionais
de saúde, porque o que está em jogo é a ausência de potência do sujeito diante de
seus dilemas, bem como a manutenção de uma posição passiva diante de uma relação
prejudicial.

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A ATENÇÃO BIOPSICOSSOCIAL AOS PROBLEMAS DO USO DE DROGAS
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Um avanço significativo no sentido da adoção de uma lógica mais adequada à


complexidade da questão do uso de drogas tem sido a abordagem da Redução de Da-
nos, inicialmente conhecida por propor estratégias de autocuidado imprescindíveis
para diminuição da vulnerabilidade frente à exposição a situações de risco (Moraes,
2005).
Na medida em que vai ocupando espaço na saúde mental e sendo construída como
um paradigma que ajuda a intervir clinicamente nos problemas relacionados ao uso
de drogas, a Redução de Danos passa também a ser um dispositivo político de luta em
defesa do direito à saúde, por coletivos de protagonistas anteriormente silenciados
nos movimentos de reforma psiquiátrica (Moraes, 2008).
O chamado Método da Redução de Danos inventa também uma forma de produ-
ção de conhecimento e crítica dos lugares instituídos de poder. Parte da lógica de que
é necessário conhecer para intervir, ao mesmo tempo em que é necessário intervir
para conhecer, propondo uma forma coletiva de construção de práticas de cuidado
em um contexto de valorização da própria experiência na tomada de decisão sobre a
atitude cuidadora (De Paula Souza, 2007).
A redução de danos é o eixo central da política atual do Ministério da Saúde para
Atenção Integral à Saúde de Usuários de Álcool e outras Drogas, porém ainda pouco
estudada e exercida por profissionais da saúde.
Um dos raros estudos acadêmicos que aborda a clínica da Redução de Danos des-
creve-a como um método clínico-político pautado em um novo paradigma para o
campo das drogas, um novo modo de fazer clínica e política na perspectiva de Clínica
Ampliada (De Paula Souza, 2007).
A Redução de Danos (RD) é considerada um exemplo de uma clínica audaciosa
que se diferencia da clínica convencional por desenvolver uma “escuta radical”, como
dizem Denis Petuco e Rafael Gil Medeiros (2009), que vai além da ética neutraliza-
dora ainda perpetuada em muitos serviços pós Reforma Sanitária. Sendo assim, a RD
configura-se como um dispositivo da Reforma, responsável por levar seus compro-
missos éticos e estéticos para as pessoas que usam drogas (Petuco & Medeiros, 2009).
Outro aspecto importante para se destacar é que o posicionamento da clínica de
redução de danos rompe com a perspectiva moralista e repressora com relação ao
uso de drogas. A percepção que o problema está nas drogas ilegais e que elas são mais
perigosas é ilusória. Relatórios de saúde destacam que o álcool mais do que qual-
quer outra substância psicoativa ilegal produz mais prejuízos financeiros e de morbi-
-mortalidade, seja por seu próprio efeito ou por estar associado a crimes violentos,
acidentes de trânsito e adoecimentos cardíacos e do aparelho circulatório (Andrade
et al., 2010).
Além disso, atualmente vivemos em um mundo ocidental, farmacodependente;
cada vez mais aumenta o quantitativo de pessoas portadoras de doenças intituladas
crônicas que fazem uso diário de medicamentos para preservar funções básicas do
seu organismo até sua morte, vivendo décadas de fidelidade ao uso diário do medica-
mento como recurso único e sagrado para preservação de sua vida.
Relatórios de organismos internacionais (Organização Panamericana de Saúde e
Organização Mundial de Saúde), bem como gastos da assistência farmacêutica de
órgãos públicos municipais, estaduais e federais, mostram a magnitude das cifras dos
recursos financeiros públicos destinados à aquisição de toneladas de medicamentos.

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Esse cálculo agrava-se quando incluímos a redução da vida produtiva de parte sig-
FAMÍLIA E 121
nificativa de nossa população. Essas drogas (fármacos) inúmeras vezes são utilizadas COMUNIDADE EM FOCO
nas clínicas de forma abusiva, retirando a autonomia do sujeito no cuidado sobre si,
conferindo ao outro (seja profissional de saúde ou o medicamento) um poder sobre
si, contribuindo para um modelo de sociedade fragmentada e impotente.
Somos contrários ao uso abusivo dos psicoativos, sejam eles prescritos de forma
abusiva, porém legitimada socialmente, seja pelo uso nocivo em ambientes despro-
tegidos, gerando ônus ao sujeito e a toda rede social envolvida. O uso racional de
fármacos é um imperativo em nossa cultura. Afinal é insustentável esse modelo que
vivemos; não se pode tratar a saúde de forma utilitária (Martins, 2003).
Nesse sentido, estudos no campo da psiquiatria e neurologia realizados pelo MAPS
(Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies)* mostram como substâncias
psicoativas, inclusive de drogas consideradas ilegais, podem ser um recurso terapêu-
tico efetivo para o tratamento de inúmeras doenças em saúde mental, incluindo a
dependência química, quando utilizadas racionalmente e em ambiente protegido e
terapêutico.
O uso desses psicoativos tem uma lógica completamente diferente da psiquiatria
convencional porque, nesse contexto, eles servem como catalizadores do sintoma,
estimulando sua emergência ao invés de conter. A ampliação do sintoma, quando
feita em ambiente seguro e com profissionais qualificados que possam apoiar os su-
jeitos, reverte-se em uma autoexploração responsável, conduzindo o sujeito a estados
de ampliação da consciência, ofertando a travessia necessária para a cura emocional
e psicossomática e à transformação positiva da personalidade e das relações (Grof,
2000).
Acreditamos que o que está em jogo na clínica de redução de danos é a valorização
da prática radical do conceito de autonomia e autogestão no âmbito das práticas
sociais (Baremblitt, 2002), a autorregulação (Reich, 2004) no âmbito da consciência
corporal e dos processos biológicos naturais do nosso organismo, e do potencial heu-
rístico de cura do sujeito (Grof, 2000), presente em cada ser que se empodera de si, de
seu sofrimento, de sua história e de sua potência de vida.

USOS ABUSIVOS DE DROGAS NA ATUALIDADE: SINTOMA INTERPRETADO COMO RISCO


E POTÊNCIA

Vivemos em um tempo de normalização do sofrimento, onde é recorrente a re-


petição de práticas culturais de discriminação, exclusão e várias formas de violência
que rompem a dimensão física, incidindo nas esferas simbólicas/psíquicas e atingin-
do profundamente a alma humana, fragilizando aspectos íntimos da integridade e
manutenção de laço social, baseados em respeito e compartilhamento de sentimento
humano de comungar de uma mesma morada (o planeta), um mesmo tempo (hoje)
e um mesmo desafio civilizacional (a sustentabilidade).
Diante desse cenário, pode ser sinal de saúde a busca pela expansão da consciência
e transcendência, não como uma busca mística de isolamento, mas como uma estra-
da para o autoconhecimento e a sabedoria. Podemos compreender a corrida para as
drogas como uma demanda subjetiva e coletiva, pela busca dessa expansão diante de * Para mais informações
uma vida de sofrimento, desencontro, frustração e com pouquíssimos ambientes e sobre o MAPS e seus
estudos, acesse o site:
relações que sirvam como núcleos de resistência existencial. http://www.maps.org

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 118-126, ago. 2012.


Entendemos ser importante que a prática clínica esteja atenta a essa demanda,
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favorecendo dispositivos de transcendência a essa condição atual, acreditando no
potencial autorregulador e heurístico do sujeito, ofertando acolhimento e ambiente
seguro, livre de julgamentos morais, políticos e técnicos, para resgatar e experienciar
as qualidades humanas contidas pelo processo de socialização sofrido de nossa civili-
zação e na trajetória biográfica de cada um de nós (Grof, 1987, 2000, 2011).
Essa compreensão expandida da busca pelas drogas não nega os riscos e danos
que podem ser gerados pelo abuso, pelo uso de risco e pela opção por algumas subs-
tâncias psicoativas mais potentes, seja nos sujeitos ou nas relações sociais. Contudo,
não podemos nos limitar a essa percepção, sem ver na demanda por substâncias que
alteram a consciência a necessidade (mesmo que de uma maneira desprotegida e vul-
nerável) de ampliar suas percepções sobre si, sobre a realidade e sobre as relações que
partilha, servindo também como um movimento de vida e potência para a mudança
de estados e situações desagradáveis.
Pensamos ser necessário aos profissionais de saúde compreender este aspecto, bus-
cando tornarem-se terapeutas que estimulem essa busca de forma íntegra, favore-
cendo caminhos seguros de encontro pessoal que não o distanciem de sua história
biográfica e social. A dita “fuga” por meio dos usos de drogas também pode ser
compreendida como potência para transformação. Nesse sentido, a pessoa que cuida
pode aprender a usar dispositivos terapêuticos, corporais, instrumentais, que favore-
çam a potência do sujeito, dando amparo ético e humano ao seu sofrimento.
Não basta respeitar ou ser permissivo com o sofrimento humano inscrito pelo
uso abusivo de substâncias psicoativas: o importante é vincular-se a esse sofrimento.
Como nos ensina Fréchette (1993), todos nós fomos machucados em nossas relações
sociais, e é justamente desse lugar de ferido que podemos compreender intuitiva-
mente a dor e angústia de outra pessoa e o tipo de amparo apropriado que deve ser
dado a pessoa, para que seu processo de cuidado ocorra.
Assim, entendemos que a angústia, a ansiedade, a dor e a violência que servem de
combustão para o uso nocivo das drogas também podem se transformar em alimen-
to que exprima a dimensão inventiva e criadora das relações.

FINALIZANDO O DIÁLOGO, SUGERINDO CAMINHOS

Com base no que acabamos de explicitar, imaginamos ser extremamente neces-


sário o desenvolvimento de noções de clínica ampliada e política. É fundamental
formar profissionais autocríticos, capazes de considerar os desafios e a complexidade
da atuação na saúde mental.
Tais profissionais precisam ser capazes de mudar o setting, ampliar a noção de clí-
nica para além da “clínica tradicional”, na qual as atividades básicas são o diagnóstico,
o uso de fármacos, a psicoterapia individual, o aconselhamento e o exame psicotécni-
co, ampliando o recebimento das demandas no contexto das relações sociais (Branco,
1998; Onocko-Campos, 2001).
Nesse sentido, tornam-se indispensáveis as discussões sobre os princípios e diretri-
zes que orientam o paradigma da Redução de Danos e a prática da clínica ampliada
pautada nele, considerando o mesmo como um dispositivo que atualiza novas fun-
ções clínico-políticas (Moraes, 2005, 2008a, 2008b; De Paula Souza, 2007).
Como bem ressaltam Petuco e Medeiros (2009), a clínica da Redução de Danos
não é uma clínica do caos, para a qual não há necessidade de formação específica.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 118-126, ago. 2012.


Sua contribuição está justamente na possibilidade de fornecer respostas para as quais
FAMÍLIA E 123
geralmente os(as) trabalhadores(as) da saúde não estão preparados, sendo indispen- COMUNIDADE EM FOCO
sável um adequado preparo para atuar a partir dos seus princípios, de forma mini-
mamente coerente.
Neste contexto, entendemos ser necessário que a prática clínica se integre de forma
criativa nas relações institucionais de trabalho em pilares indissociáveis do processo
cotidiano de trabalho. Servindo de recurso para qualificar e fortalecer a fragilidade
histórica de vínculos trabalhistas no contexto do SUS e de outras políticas públicas,
o amparo e a maturidade das relações no grupo de trabalho, bem como a oferta de
cuidado à população (Barreto, 2011b).
No caso específico da prática da Redução de Danos, um desafio a mais está posto
em um exercício de realizar uma “clínica essencialmente política”, que exige supe-
rar barreiras e imperativos legais e morais antidrogas (Petuco & Medeiros, 2009),
que configuram a cultura dominante e constroem todo um modo de compreender e
posicionar-se diante da questão das drogas na atualidade.
Por outra parte, muito já tem se debatido sobre a importância transdisciplinar das
tecnologias no campo da saúde pautadas na capacidade do profissional de vincular-
-se, acolher e ser empático às demandas que chegam no serviço, capacidade esta que
produz verdadeiramente uma relação dialógica e serve de catalisador para autonomia
dos sujeitos que demandam cuidado.
Ainda assim, são poucos os dispositivos na formação de profissionais que esti-
mulam o contato dos estudantes e profissionais visando ampliar sua capacidade, e,
apesar de se trabalhar teoricamente estes conceitos, todos os teóricos desse campo
são enfáticos em reforçar que só desenvolvemos essas habilidades por meio da expe-
riência prática cotidiana (Merhy & Franco, 2005).
As salas de aula, assim como outros ambientes de formação, podem ser percebidas
intimamente (por cada um dos envolvidos) como espaços seguros para experimentar
e aprender princípios de convivência social como o respeito e cooperação, indispen-
sáveis à preservação de nossa civilização no planeta.
Os processos de aprendizagem, portanto, podem ser encenados através da livre
expressão dos sentimentos de tristeza, raiva, alegria, medo, frustração, dentre outras
emoções, encontrando acolhimento no grupo, onde o choro e o riso, como expressão
autêntica da intensidade do envolvimento humano, possa ser o guia de nossa impli-
cação e disponibilidade. Neste cenário, “aprender a ser” emerge como um caminho
indispensável à postura consciente do profissional, para não reproduzir a máxima
secular do “faça o que eu digo, mas não faça o que faço”.
Nos contextos dos cuidados em saúde, carecemos de referências íntegras que nos au-
xiliem no caminho do desabrochar das potências de nosso corpo. Mas do que ensinar
e fazer nas instituições de formação, recomendamos simplesmente cuidar aprendendo
pela atitude natural cotidiana do ato, para que em futuro próximo nossos profissionais
também possam oferecer primeiramente o cuidado e sua condição humana, antes de
recursos técnicos que tornam mecânicas as relações e limitam o espaço para acolher o
sofrimento (que reside no âmago da intimidade humana), bem como o reconhecimen-
to da potência de cada ser (que emerge a partir de relações amorosas).
Por fim, sabemos que muitos(as) profissionais que nunca atuaram em contextos
de usos de drogas estão iniciando suas práticas nessa área. Em uma rápida busca
por formação e leitura sobre drogas, os(as) profissionais que se inserem na área vão
perceber que grande parte do conhecimento “estruturado” e difundido sobre a cha-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 118-126, ago. 2012.


mada “clínica da dependência química” está fundamentado na meta da abstinência,
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na utopia de que é possível um mundo totalmente livre de drogas. Tal modelo de
compreensão e intervenção se mostrou limitado diante da complexidade das formas
de estar no mundo e das relações das pessoas com drogas. Os resultados dessas limi-
tações têm sido espelhados, entre outras coisas, na baixa adesão aos “tratamentos” e
reincidência de uso de drogas, quando a meta do tratamento é estar abstinente. O
referido modelo de compreensão e intervenção tem gerado frustrações nas equipes
e profissionais, que se vêm desmotivadas com o suposto insucesso das intervenções.
Esse e outros argumentos já citados nos levam à necessidade de encontrar outros
modos de ver e intervir nesse campo a partir das perspectivas de clínica ampliada,
e de alinhamento entre produção de conhecimento e prática cotidiana de profissio-
nais que se dedicam à saúde mental. Entre outras coisas, entendemos ser necessário
desenvolver projetos e ações de pesquisa e extensão relacionados à prática clínica da
redução de danos; a construção de redes de cuidado em Saúde Mental; à integração
da ótica de saúde mental às equipes de Atenção Básica no contexto do SUS para
uma atenção integral à população; à experiência do cotidiano de trabalho de equipes
multiprofissionais em saúde coletiva; a construção de novos dispositivos clínicos e
metodologias de pesquisa-ação em Saúde Mental.
Nesse sentido, o processo de Reforma Psiquiátrica e todas as ferramentas legais ge-
radas por ele não são suficientes para as transformações na Saúde se não atingirem as
práticas e os saberes dos(das) profissionais que trabalham no cotidiano dos serviços,
se não estiver em um vivo e constante movimento de atualização.
Na formação de profissionais de saúde, terapeutas familiares e psicoterapeutas sis-
têmicos comprometidos com a construção de uma atenção integral em Saúde Mental
digna e politizada, tais conhecimentos e experiência precisam ser produzidos, provo-
cados e vivenciados.

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CONVERSANDO
GENTE EXTRAORDINÁRIA COM A MÍDIA

A Separação – Oscar 2012 de Melhor Filme Estrangeiro.

É a primeira vez que um filme iraniano����������������������������������������


recebe o prêmio de melhor filme estran-
geiro da Academia. As palavras do diretor Asghar Farhadi ao receber a estatueta
revelam seu mérito: “Neste momento, pessoas de todo mundo estão nos vendo e estão
ADRIANA MATTOS
FRÁGUAS
Psicóloga, terapeuta
individual, de casais
contentes não só pelo prêmio, mas porque, em um tempo como este, no qual se fala de e famílias, sócia
guerra, meu país, o Irã, está aqui por sua cultura.” fundadora e formadora
Isto reforça a crença de que se pode criar e criar com arte em um contexto de so- no Sistemas Humanos
frimento, opressão e censura. Minha torcida era grande para que esta produção fosse
reconhecida por sua singular visão de humanidade. Lembro-me de um comentário de
Charles Waldegrave, quando veio ao Brasil em 2001, sobre a admiração que sentiu ao
ver a capacidade de o brasileiro ser feliz e fazer arte vivendo em contextos tão extremos.
O filme é contextualizado em um Irã contemporâneo, conturbado, em momento
de tensões políticas, econômicas e sociais, que oferece perspectivas pouco favoráveis
aos jovens e suas famílias. Apresenta em nuances as diferenças entre as classes sociais,
as distintas religiões, e as possíveis tensões existentes.
A Separação é um filme sensível, delicado, simples e ao mesmo tempo complexo,
que nos dá oportunidade de refletir sobre como as pessoas se posicionam e que ati-
tudes tomam em situações extremas, de dor e sofrimento, num contexto de tensão e
pressão. Como terapeuta, fiquei muito sensibilizada com as situações de desespero e
limite que os personagens se encontram, as dificuldades em negociar as verdades de
cada um, e as saídas encontradas para os impasses apresentados. Tocou-me especial-
mente a situação vivida pelo casal protagonista, Simi e Naader e sua filha de 11 anos,
Termeh, ao observar a dificuldade em negociar a verdade de cada um, num momento
de decisão que envolve lealdades.
Este casal precisa decidir se aceita ou não o visto americano, antigo projeto de am-
bos, para partir em busca de novas perspectivas para a família.
A dificuldade da negociação entre o desejo de Simi em partir e Naader em ficar �����
���
ex-
plicitada logo na primeira cena, na frente do juiz, quando Naader decide não mais sair
do Irã para cuidar de seu pai e a esposa argumenta: “Ele tem Alzheimer e não sabe que
você é filho dele.” Ao que o personagem responde: “Eu sei que ele é meu pai.”
Neste momento, é revelado o sentimento único de Naader que o liga à sua família
de origem e não pode ser compartilhado pela esposa.
Para Simi, adiar a viagem é impossível, pois o visto expira em 40 dias. Ela propõe
que seu marido a acompanhe, ou conceda o divórcio e a guarda da filha. A possibili-
dade de utilizar o visto americano poderia representar uma oportunidade de cresci-
mento para a família. Entretanto, embora parceiros e voltados para o cuidado de sua
única filha, os dois encontravam-se naquele momento um tanto distantes enquanto
casal. Naader não quer abandonar o Irã neste momento, em função de seu pai, que
requer cuidados especiais e definha em seu processo de degeneração. Decide ficar,
mesmo que isto signifique separar-se de sua esposa. No entanto, não cede a guarda
de sua filha, impedindo que o impasse se resolva.
Para Naader, o sentimento em relação ao pai, mesmo com Alzheimer, fez com que
128 NPS 43 | Agosto 2012 ele rompesse a lealdade com o projeto em comum com a esposa. O que impacta em
especial é a dor da solidão de cada um, onde a saída possível atende um, mas não o
outro. O contexto emocional já era forte e contundente por tocar em uma situação
delicada, que envolve a possível separação do casal, que, neste momento, abre mão
de sua conjugalidade para dar voz a suas escolhas. Entretanto, o enredo caminha em
um crescente clima de tensão. Situações nas quais a mentira, a omissão ou a negação
que inicialmente poderiam ser vistas como possíveis para facilitar o vínculo, com os
desdobramentos levam a desfechos trágicos, e dificilmente reparáveis, em um clima
de dor, mágoa, conflito e hostilidade.
O roteiro segue e Naader, frente ao desafio de dar conta da rotina da casa e acom-
panhar o declínio de seu pai, contrata uma empregada para auxiliá-lo.
Razieh aceita o emprego, contrariando seus princípios religiosos e escondida do
marido, que jamais consentiria que ela trabalhasse em casa sem a esposa presente.
Apesar de as questões religiosas a proibirem de tocar num homem que não seja seu
marido, ela se dispõe a continuar para dar conta das despesas de sua casa e ajudar
seu companheiro, que está desempregado e ameaçado de prisão por seus credores.
Ela não podia tocar por princípios religiosos, mas toca por humanidade; não podia
trabalhar por estar grávida, mas trabalha por necessidade...
A relação dela com Naader é singular, e pautada no desespero da situação de am-
bos, cada um no seu limite, transgredindo as fronteiras entre o certo/errado, a verda-
de e a mentira. O encontro desses personagens chama a atenção sobre uma questão
que perpassou todo o filme, ou seja, em um clima de opressão, todos mentem para
todos e o rompimento com os princípios de lealdade e ética fica evidente.
O lugar de Termeh, filha de Simi e Naader, me sensibilizou muito. Ela não mede es-
forços para que seus pais não se separem e voltem a viver como casal. Coloca-se como
responsável pela comunicação entre ambos, funcionando como mensageira e guardiã
da relação. Em algumas cenas, podemos assistir Termeh observando silenciosamente
e acompanhando com o olhar os movimentos de seus pais e de outros personagens.
Percebe e sofre com a fragilidade de seu avô, em rápido processo degenerativo; sente
o sofrimento de sua mãe ao se dar conta do fim do casamento; acompanha a dor do
pai, frente à doença do avô, compreende as dificuldades dele para dar conta de tudo o
que está à sua volta, mas sofre com a falta de atitude frente ao relacionamento com sua
mãe. Percebe também o desespero da empregada, que aceita a função para conseguir
recursos para sua família, que vive em condições de necessidades extremas. À medida
que a trama vai se desenvolvendo e os conflitos vão se tornando cada vez mais sérios e
a situação vai “escapando” do controle, Termeh vai se posicionando e fazendo algumas
pontuações e perguntas, como se buscasse suas referências e fronteiras entre o certo
e o errado. Como se ela também estivesse considerando suas escolhas e precisasse de
algumas confirmações que pudessem auxiliá-la. Destaco uma cena em que ela está com
o pai e pede para que ele confirme sua percepção, ou seja, que ele assuma que mentiu.
O final �������������������������������������������������������������������������
marcad������������������������������������������������������������������
o pela menina frente ao juiz, diante da separação dos pais já con-
sumada. Caberá a ela decidir com quem ficar. Momento difícil e dolorido para Ter-
meh, e imagino que para toda criança, quando é esperado que se pronuncie com
relação à sua escolha, isto é, se fica com seu pai ou sua mãe, uma vez que já decidiram
pela separação...
Filme inesquecível, com verdadeiras lições de humanidade. Recomendo...

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 127-128, ago. 2012.


ESTANTE DE LIVROS
ÉTICA E ESCUTA DE CRIANÇAS NO SISTEMA DE JUSTIÇA
Não, não será com métrica nem com rima.
Uma coisa sem nome violentou uma menina.
Ação barata sem a prata do pensamento, o ouro do sentimento, o dia da empatia.
Noite. Uma coisa. Não era o lobo nem o ogro nem a bruxa,
era a fúria do real sem o carinho do símbolo.
Stop, a poesia parou.
Ou foi a humanidade?
Stop nada, a menina sente e segue com métrica, rima, graça, vida.
Onde está tua vitória, ignomínia?
FERNANDO LUIZ
Uma prosa continua poética como era saltitante o bastante para não perder a poesia. SALGADO DA SILVA
A coisa (homem?) é punida como um lobo no conto de verdade. Mestrando do Programa
E imprime-se um nome na ignomínia. de Pós-Graduação
A menina liberta expressa ri e chora, volta a ser qualquer (única) menina. em Psicologia da
Pronta para a métrica Universidade Federal de
pronta para a rima Santa Catarina; integrante
(UFSC) do Núcleo
pronta para a vida (canto de cicatriz),
Margens – Modos de
pronta para o amor a dois, à espera, suave, escolhido.
Vida, Família e Relações
de Gênero; NEP –
(Canção para a menina maltratada - Celso Gutfreind) Núcleo de Estudos em
Psicanálise.

Resenha do livro: BRITO, L. M. T. (2012) Escuta de crianças e de adolescentes: reflexões, LOUISE LHULLIER
sentidos e práticas. Rio de Janeiro: EDUERJ. Professora Colaboradora
do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia
A coletânea de artigos organizada pela professora Leila Torraca de Brito discute o da UFSC e Pesquisadora
tema da escuta de crianças e adolescentes no contexto jurídico e clínico. A partir do do NEP.

tema do Depoimento Sem Dano, que pertence ao direito penal por envolver crimes
sexuais, desliza-se para o cenário do direito civil: separação conjugal; divórcio; dis-
puta de guarda; regulamentação de visitas e recasamentos. O livro é importante ins-
trumento de atualização profissional, pois, ao transitar entre referenciais de pesquisa
e práticas clínicas, contém discussões interessantes da interface da psicologia com a
justiça. Para aqueles psicólogos(as) que realizam perícias ou de alguma forma são
convidados a atuar na interface com o Direito, é uma leitura recomendada.
Com estilo questionador, os autores e autoras percorrem pistas dessa escuta, que
não passa pela busca de uma verdade real, nem por equiparar o dito por crianças e
adolescentes às palavras, às frases e aos vocábulos que verbalizam. Tomam-na, isso
sim, também a partir de seus silêncios, gestos, atitudes ou, ainda, com seus mais va-
riados não ditos, que urge respeitar, a despeito das demandas jurídicas.
Os primeiros três artigos abordam a polêmica do Depoimento sem Dano (DSD)
tanto pelas dimensões processuais e técnicas do olhar de um advogado, quanto pela
interlocução com uma professora de Psicologia Forense da Argentina e, também,
pela pesquisa da organizadora do livro, intitulada Inquirição de crianças no sistema
de justiça.
Mas o que vem a ser um “Depoimento sem Dano”?
É uma técnica de inquirição de crianças e adolescentes desenvolvida na 2ª Vara da
Infância e Juventude de Porto Alegre (RS) pelo juiz de direito José Antônio Daltoé
Cezar em 2003. Nela, a inquirição é feita por um técnico entrevistador, assistente
social ou psicólogo, que as formula de maneira “adequada” ao depoente, evitando-se,
130 NPS 43 | Agosto 2012 assim, “perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do
objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente” (Nas-
cimento, 2012, p. 12). Durante 15 a 30 minutos, o depoimento da criança é gravado
em vídeo para posterior transcrição e anexação aos autos do processo. Em regime
de produção antecipada de prova, a criança é inquirida uma só vez, evitando relatos
para várias instituições que compõem a rede de proteção à infância, numa tentativa
de não revitimizá-la.
O psicólogo, nessa situação de inquiridor, teria a função de extrair revelações ati-
nentes à suspeita de abuso sexual, para que elas possam ser gravadas e examinadas
pelo juiz. Ele seria supostamente portador de um saber sobre um método especial de
interrogar a criança, dada sua formação profissional, o qual, na crença dos magistra-
dos, humanizaria a inquirição. A partir dessa cena, o livro traz à luz uma série de in-
terrogações éticas sobre o lugar do psicólogo e sobre a garantia de direitos da criança.
O primeiro artigo é do advogado e mestre em Ciências Penais, André Nascimento.
Intitulado “Depoimento sem dano: considerações jurídico-processuais”. Ele coloca em
análise algumas críticas em relação a aspectos processuais e técnicos da legitimação
do DSD, desenvolvendo algumas delas, tais como:
• o DSD, enquanto matéria de regulamentação de inquirição de depoimento, de-
veria constar no Código de Processo Penal (CPP) e não no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA);
• a priorização da busca de uma condenação por parte dos atores jurídicos coloca
a criança num lugar de objeto;
• o DSD é mais uma medida que dá fôlego ao poder punitivo;
• a busca da verdade fatual real*, contida em toda a técnica do DSD, viola o prin-
cípio do contraditório, que é um direito do acusado de constituir-se como uma
voz considerada no processo no qual ele ou ela está envolvido.

Ainda segundo esse autor, a inquirição de crianças tem sido causa dos maiores
erros do judiciário, pois falta-lhes “compreensão das coisas”, as crianças creem nas
fabulações que inventam e produzem muitas deformações na “história dos fatos”. Ele
interroga, do ponto de vista técnico, se a inquirição direta seria adequada para esta
população. Por fim, argumenta que tal procedimento viola a presunção de inocência
garantida pela lei, pois deve-se aceitar antecipadamente a ocorrência do crime, afir-
mação esta que só deveria ser feita pós-sentença.
O segundo artigo é de Liliana Edith Alvarez, intitulado “La escucha de los niños
víctimas y los dispositivos psi jurídicos (entre el Panteón y la Prefectura de Polícia”). Esta
autora nos oferece dados históricos da Psicologia e de seus dispositivos de escuta no
campo jurídico, como também nos oferece um panorama da realidade argentina. As
suas questões recorrem ao campo da ética profissional, nas quais as articulações entre
lei, sujeito e verdade impõem pensar sobre os limites das intervenções do psicólogo.
A avaliação psicológica, na perspectiva desta autora, é contrária à psicologia expe-
rimental, que visava ser uma ciência natural e objetiva, marcada por um caráter de
reforma moral preventiva e higienista. Ao situar as principais discussões, correntes e
* O sentido da palavra entendimentos éticos da avaliação psicológica, Alvarez entende que existem diferen-
real durante esse texto
parece corresponder tes registros de verdade, sendo que, em alguns pontos, a verdade histórica e viven-
ao termo fatual, a uma cial toca a verdade material, respeitando assim as “verdades subjetivas” no processo
suposta “verdade dos
fatos”.
avaliativo. Logo, um processo de avaliação visa muito mais orientar as necessidades

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 129-133, ago. 2012.


específicas no que se refere ao cuidado e proteção da criança que estabelecer e utili-
zar-se de vínculos de confiança e da confidencialidade para fins de obtenção de uma ESTANTE DE LIVROS 131
suposta “verdade dos fatos”*. Também lembra um texto de Freud “El diagnóstico de
los hechos y el psiconálisis”, que assinala as primeiras reflexões sobre uma verdade não
unívoca, e que trilha caminhos diferentes em cada situação psíquica.
Neste texto, Alvarez pensa numa clínica que se coloque ao lado daquele que sofre,
a despeito das demandas jurídicas que servem apenas aos fins institucionais e que,
por isso, nem sempre servem às pessoas que estão em situação de violência. A crítica
sobre os limites das atuações dos psicólogos é atualizada também quanto à relação
entre saber e completude: a autora questiona se teríamos um saber e/ou um vídeo
gravado que desse acesso completo à verdade, afirmando, então, que dizer e saber
toda a verdade não é possível, seja se tratando do DSD ou dos limites do discurso
psicológico.
Dessa maneira, afirma Alvarez, repensar o sujeito nesse contexto é fundamental,
para que possamos colocar em análise esse furor positivista que atravessa as práticas
psicológicas, levando o inquiridor psicólogo a assumir o papel de galvanômetro e
detector de mentiras, alienando-se, inclusive, de sua própria identidade profissional.
Ela finaliza sua contribuição com a crítica do “discurso do bem”, que acaba por situar
a criança na condição de objeto, via discurso do amo.
Nesses textos, tanto Alvarez, quanto Brito, criticam a falta de profundidade na dis-
cussão sobre o testemunho, considerando de extrema relevância uma formação de
psicólogos e/ou inquiridores em criminologia e vitimologia. Para que, assim, o DSD
não se reduza a uma mera capacitação técnica e execução de protocolos administra-
tivos dos profissionais do judiciário, negando a existência de complexidades éticas.
Leila Maria Torraca de Brito, no artigo intitulado “Das avaliações técnicas aos de-
poimentos infanto-juvenis: novos rumos dos casos de suspeita de abuso sexual”, expõe os
resultados e as metodologias utilizados na pesquisa Inquirição de crianças no sistema
de justiça, no qual analisa a aplicação da técnica de DSD pelo Brasil. Ela desenvol-
ve também um panorama das discussões do Conselho Federal de Psicologia (CFP)
sobre o tema, acompanhando as polêmicas em torno da questão**. Ao investigar o
* Durante o artigo, fica
modo como as crianças estão sendo inquiridas no Brasil, observou algumas dife- claro que a autora não
renças entre capitais. Em Porto Alegre, por exemplo, em algumas salas não há mais defende a possibilidade
brinquedos, e a justificativa é que, muitas vezes, as crianças preferiam brincar a serem de um acesso à verdade
dos fatos pela avaliação
inquiridas. Outro ponto comentado é que no Centro de Referência de Atendimento a psicológica.
Criança e Adolescente (CRAI), na mesma cidade, há duas gravações. Um depoimento ** Para aprofundar
este debate, o CFP
será colhido na fase de inquérito e o outro, na audiência. lançou, em 2009, o
Brito relata ainda que, em Curitiba, existe uma técnica chamada Audiência Sem livro Falando Sério
Trauma, na qual a criança seria acolhida inicialmente por um psicólogo ou assistente sobre a escuta de
criança e adolescentes
social visando a preparação para audiência. Posteriormente, a criança é encaminhada envolvidos em situação
à presença do juiz, que realiza as perguntas. Apesar dos assistentes acompanharem a de violência e a rede
de proteção, como
inquirição, não serão eles a formular as perguntas. também a matéria “CFP
Já no Distrito Federal, informa a autora, existe a Audiência Interprofissional Proteti- é contra o depoimento
sem dano”, publicada
va à Vítima. Nessa abordagem, são realizados estudos psicossociais anteriores à audiên- em 2008, no Jornal
cia, e, caso seja constatado que a criança está em condições de fazê-lo, ela é���������
encami-
������� do Conselho Federal
nhada à audiência. Quem preside a inquirição é o mesmo profissional que conduziu o de Psicologia. Sem
esquecer da Resolução
estudo psicossocial, o qual recebe as perguntas do juiz por meio de um fone de ouvido. n. 010/2010, sobre as
Brito traz também o caso de algumas cidades de São Paulo, que adotaram o Aten- diretrizes da atuação do
psicólogo na situação
dimento não Revitimizante de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência. Há de violência.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 129-133, ago. 2012.


também uma avaliação inicial, na qual há uma aproximação gradual do assunto, e se
132 NPS 43 | Agosto 2012 for constatado que a criança está em condições, ocorre a segunda parte do Atendi-
mento. Pede-se um relato livre para a criança atendida numa sala especial, e caso seja
realmente necessário, acrescenta-se alguma pergunta formulada por um profissional
da psicologia.
Assim, a análise dessa autora sobre pequenas mudanças procedimentais do DSD,
advindas da Resolução n.10/2010, evidencia que uma série de questionamentos so-
bre as implicações éticas e políticas dessa escuta permanece. Um dos seus grandes
questionamento, que, segundo ela, ainda não está presente para os profissionais da
área jurídica, diz respeito aos efeitos dessas práticas sobre a subjetividade de crianças
e adolescentes inquiridas no sistema de justiça.
Analicia Martins de Sousa e Marcia Ferreira Amendola, no artigo “Falsas denúncias
de abuso sexual infantil e Síndrome da Alienação Parental (SAP): distinções e reflexões
desnecessárias”, deslocam a discussão do livro para o campo do direito civil, colocan-
do em debate as falsas alegações de abuso sexual que ocorrem nos contextos litigiosos,
como também o tema da SAP. As mesmas observam que é muito comum encontrar
mulheres que fazem falsas denúncias de abuso sexual, implicando o ex-companheiro
contra seu(sua) filho(a); enquanto os homens acusam as ex-companheiras de mentir
para atacá-los.
Tal���������������������������������������������������������������������������
síndrome �����������������������������������������������������������������
foi definida, segunda essas autoras, por Richard Gardner, em mea-
dos dos anos 1980. Refere-se a certos comportamentos do possuidor da guarda para
induzir a criança a uma visão depreciada do outro genitor. Como consequência, ha-
veria uma série de prejuízos na relação da criança com o genitor que não tem a guar-
da. As autoras apontam movimentos de patologização – com o risco da SAP entrar
no próximo Diagnóstico de Saúde Mental (DSM-IV) – e criminalização, visto que
protagonizar SAP tornou-se crime recentemente. Embora existam muitas dúvidas a
respeito de sua cientificidade, as autoras observam a ocorrência de uma forte adesão
a esse diagnóstico nas Varas de Família do Brasil.
No que se refere à discussão sobre escuta de alegação de abuso sexual, este artigo
traz uma discussão sobre a pluralidade de reações das vítimas, ficando difícil traba-
lhar com teorias checklist, que operam com modelos de comportamentos a serem
conferidos nas entrevistas de revelação do abuso. Mesmo abusadas, algumas crianças
não apresentam alteração de comportamento, ou encontram-se apáticas e tristes pela
própria situação de divórcio de seus genitores. Por conseguinte, qualquer generali-
zação torna-se imprudente, e pode ser prejudicial a muitos laços de afeto da criança,
caso haja diagnóstico equivocado ou precipitados.
A psicóloga Rosana Rapizo, no texto intitulado “Construindo espaços de diálogo
com pais, mães e adolescentes nos contextos de divórcio”, traz um relato de experiên-
cia clínica com essa população. Ao criticar o individualismo e a patologização de
comportamentos individuais, contidos em alguns rituais clínicos e jurídicos, a autora
aposta na importância do diálogo coletivo na construção de espaços para novas sig-
nificações. Desse modo, haveria deslocamentos de posições atuais e novas perspecti-
vas de relação com o outro.
Essa autora relata como conseguiu promover grupos exclusivos e mistos com mães,
pais e filhos nos contextos de divórcio, com o objetivo de construir espaços de com-
partilhamento de questões, dúvidas e alternativas ante as dificuldades no contexto
litigioso. Os grupos, ao serem marcados pelo conforto da pertinência dentro de um
coletivo, produziram a desmistificação de sentimentos de culpa e vergonha, ou do

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 129-133, ago. 2012.


indizível em relação a esse contexto. A partir dessa experiência, a autora desenvolve
uma discussão sobre a escuta de adolescentes em contexto de divórcio: uma voz que ESTANTE DE LIVROS 133
participa do processo, não como uma testemunha de acusação ou defesa, mas que
pretende se colocar, sem se tornar um peso para aqueles a quem ama.
Por último, Laura Cristina Soares, em “No fogo cruzado: pais e mães recasados entre
seus filhos e seu atual cônjuge”, discute os dados de sua pesquisa com famílias reca-
sadas, nas quais pais e mães trazem os filhos de outro casamento para coabitarem
com seus novos(as) companheiros(as). Em síntese, ela encontrou a força do ideal da
família nuclear muito presente na concepção de famílias dos entrevistados via sen-
timento de culpa advindo dessas novas alianças conjugais. Além de muitos conflitos
nas relações de madrastas e padrastos com os filhos de seus companheiros, os quais,
segundo a pesquisa, não foram apresentados de forma cuidadosa. Se muitas vezes, o
possível a ser construído nessas famílias é a aprendizagem da tolerância e da civilida-
de, assinala-se uma falta de diálogo e escuta das inquietudes dos filhos.
Para além de quaisquer radicalismos, o livro desfila qualidade e diversidade argu-
mentativa nas discussões, quando profissionais de diversas áreas – advogado, profes-
sores universitários, mestres em psicologia social, psicóloga e pesquisadora com base
psicanalítica – compõem uma discussão transversal com pontos fundamentais que
atravessam todos nós, sensibilizados com as reflexões das posturas éticas na escuta de
crianças no sistema de justiça.
A ferramenta analítica, oferecida pela perspectiva crítica, e relembrada por Alva-
rez (2012), del qué, cómo, para qué y por qué de la intervención, oferece condições de
análise das práticas sociais dos psicólogos intervindo no mundo. O poema que inicia
esta resenha versa sobre o simbólico que nomeia à ignomínia, a partir do qual ela se
liberta do real. O vitimismo, que pode ser produzido pelos trâmites jurídicos gravan-
do a fala da menina maltratada numa posição cristalizada para sempre – a de vítima
–, em nome do bem e da justiça, vai na direção contrária às reflexões dos profissionais
do livro em questão.

REFERÊNCIAS

Alvarez, L.E. (2012). La escucha de los niños víctimas y los dispositivos psi jurídicos
(entre el Panteón y la Prefectura de Polícia. In: BRITO, L.M.T. Escuta de Crianças
e de Adolescentes: reflexões, sentidos e práticas. (pp. 31-50) Rio de Janeiro: EDUERJ.
Brito, L.M.T. Das avaliações técnicas aos depoimentos infanto-juvenis: novos rumos
dos casos de suspeita de abuso sexual. In: ____ . Escuta de Crianças e de Adolescen-
tes: reflexões, sentidos e práticas. (pp. 51-86) Rio de Janeiro: EDUERJ.
Freud, S. (1906). “El diagnóstico de los hechos y el psicoanálisis” Obras Completas de
Sigmund Freud.Buenos Aires: Amorrortu Editores.
Nascimento, A. (2012). Depoimento sem dano: considerações jurídico-processuais.
In: BRITO, L.M.T. Escuta de Crianças e de Adolescentes: reflexões, sentidos e práticas.
(pp. 11-30) Rio de Janeiro: EDUERJ.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 43, p. 129-133, ago. 2012.


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EXEMPLO DE REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Livro:
Toffler, A. (1994). O choque do futuro (5a ed.). Rio de Janeiro: Record.

Parte de livro:
Tanguy, L. (1997). Competências e integração social na empresa. In: F. Ropé & L.
Tanguy (Orgs.). Saberes e competências: o uso de tais noções na escola e na empresa.
Campinas, SP: Papirus.

Parte de publicação periódica:


Watson, M. W. (1994). Vector autoregressions and cointegration. In: R. F. Engle & D.
L. McFadden (Ed.). Handbook of Econometrics (Vol. 4, Chap. 47, pp. 2843-2915).
Amsterdam: Elsevier.

Monografia, dissertação ou tese:


Nogueira, E. E. S. (2000). Identidade organizacional – um estudo de caso do siste-
ma aduaneiro brasileiro. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, PR, Brasil.

Informações retiradas da internet:


Famá, R., & Melher, S. (1999). Estrutura de capital na América Latina: existiria uma
correlação com o lucro das empresas? Recuperado em 15 abril, 2004, de http://www.
fia.com.br/labfin/ pesquisa/artigos/arquivos/1.pdf

Anais:
Ayres, K. (2000, setembro). Tecno-stress: um estudo em operadores de caixa de su-
permercado. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Administração, Florianópolis, SC, Brasil, 24.
MISSÃO DA REVISTA NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA

Divulgar informações e conhecimentos sobre as teorias e práticas


sociais sistêmicas, narrativas e relacionais e as inovações dialógicas de-
correntes dessas raízes, contribuindo para a formação de profissionais
das ciências humanas, sociais e da saúde e o aperfeiçoamento de suas
práxis, colaborando para um aumento do bem-estar da população bra-
sileira por eles assistida.

A Nova Perspectiva Sistêmica foi a primeira revista especializada em


Terapia de Família a ser publicada em português. Desde 1991, convivem
na revista mestres brasileiros e estrangeiros que influenciaram nossa
forma de pensar e trabalhar, além de autores menos conhecidos que pu-
deram, a partir da publicação de seus trabalhos, iniciar sua participação
na comunidade de terapeutas de família.
A revista é produzida por uma parceria entre o Instituto Noos, do Rio
de Janeiro, o Instituto Familiae e o Interfaci – ambos de São Paulo.
Essas três instituições de referência buscam ampliar a linha editorial
para incluir cada vez mais ações ligadas a comunidades, grupos e redes
sociais.

Desde 2011, a revista NPS está indexada pelo Sistema Latindex. Desde
2012, está classificada no extrato B3 da Qualis.
43 43

Processos generativos no diálogo:


complexidade, emergência e auto-
organização
Dora Fried Schnitman

Aprendizado colaborativo: ensino de


professores por meio de relacionamentos e
conversas
Harlene Anderson, Sylvia London

“Se não perguntar, ele não vai falar”:


reflexões sobre conversas colaborativas em
um atendimento de família com crianças
Lilian de Almeida Guimarães, Sandra Aparecida
de Lima, Adriana Bellodi Costa César

A construção de um programa de assistência


familiar em um hospital-dia psiquiátrico: 43
desafios e potencialidades
Carla Guanaes Lorenzi, Marcus Vinicius Santos,
Fabiana S. Brunini, Sérgio Ishara, Sandra M.C. AGOSTO DE 2012. ANO XXI

Tofoli, Eliana M. Real

Três saberes a serviço das famílias: uma


discussão sobre a supervisão das equipes dos
Centros de Referência de Assistência Social
Cristiana P.G. Pereira, Rodrigo P.S. Coelho,
Regina Maria Hirata

O mapa de rede social significativa como


instrumento de investigação no contexto da
pesquisa qualitativa
Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré, Maria
Aparecida Crepaldi

Aprendizagem organizacional e poder:


hierarquia, heterarquia, holarquias e redes
Claudia Liliana Perlo, Letícia del Carmen Costa,
Maria Verónica Lopez Romorini, María del
Rosario de la Riestra

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