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UMA CRIANÇA

ESPERTA
Uma Criança Esperta
Copyright © 2006, Licyomar Hugo Ulrich

O conteúdo desta obra, inclusive revisão ortográfica, é


de responsabilidade exclusiva do autor.
L. H. Ulrich

UMA CRIANÇA
ESPERTA

1ª Edição

Curitiba
Licyomar Hugo Ulrich
2014
Para minha amada esposa
Carla Fink Ulrich
Inspirado na música A Smart Kid, da banda Porcupine
Tree, do álbum Stupid Dream.
Prólogo

A história que vou contar não aconteceu


comigo. Pode-se dizer que fui simplesmente
uma testemunha privilegiada. Eu vi aquele
soldado que sofria de lapsos de memória
aproximar-se de União da Vitória. Ou eu
deveria dizer: "eu verei aquele soldado". Ou
quem sabe: "eu vejo aquele soldado". Para
mim, de fato, o conceito de tempo é
completamente inútil. Em relação a mim essa
história transcende o tempo. Na verdade o
que transcende o tempo sou eu e não a
história.
Em relação a você essa história
acontece no futuro, ou seja, eu deveria
começá-la da seguinte forma: "Ele caminhará
sobre aquele chão seco e cheio de
rachaduras...". Mas como eu estou fora do
tempo, me sinto mais a vontade em contá-la

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no passado, como uma boa história deve ser
contada, mesmo que essa não seja lá uma
história assim tão boa.

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1 - ELE CAMINHAVA

Ele caminhava sobre aquele chão seco


e cheio de rachaduras, desértico, sobre o
qual caíam flocos de uma fuligem branca
gelada e seca, que provinham de um céu
profundamente cinza. Ele estava
absolutamente sozinho e já caminhava há
algum tempo, mas naquele exato momento
não tinha a menor ideia de quanto tempo
estava caminhando, nem para onde estava
indo e nem de onde vinha. De fato, ele sofria
de terríveis lapsos de memória. Fazia cinco
anos que sua memória era totalmente
fragmentada e etérea. Ele não conseguia
conectar um evento a outro na sua cabeça.
De qualquer forma ele percebeu que vestia
um uniforme militar bastante pesado, que o
protegia do frio e carregava um fuzil leve e

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cromado. Ele parou por alguns segundos e
abraçou o fuzil com devoção, intuindo que era
o único objeto que ainda lhe restava. Ele
estava certo.

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2 - CAMINHOU POR HORAS

Caminhou por horas, sempre sobre um


chão seco e árido, com aquela fuligem branca
o acompanhando o tempo todo, até
aproximar-se de uma cidade que tinha quase
todas as suas construções destruídas. Entrou
na cidade, que na verdade eram duas
cidades unidas, União da Vitória e Porto
União. Mas ele não sabia disso.
Passou por alguns barracões
destruídos, depois por um longo trecho de
casas, algumas simplesmente abandonadas,
outras completamente destruídas. Chegou a
uma construção grande, em formato
retangular, como uma caixa gigante de
concreto, em frente a uma praça. Metade dela
estava destruída. Ele foi até a construção e
caminhou pelos destroços de concreto e ferro

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retorcido. Encontrou entre os destroços
muitos livros espalhados, em meio aos
pedaços de concreto e placas de metal
retorcidas cobertas de fuligem branca. Alguns
livros estavam parcialmente destruídos, mas
muitos estavam inteiros. Ele entreteve-se por
horas com alguns livros, até perder o
interesse e seguir em frente.

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3 - ATRAVESSOU A PRAÇA

Atravessou a praça. Do outro lado dela


havia outra construção grande, com uma torre
alta no centro e duas torres laterais menores.
Aparentemente a construção original se
prolongava para a parte posterior das torres,
mas naquele momento esta parte estava
destruída. Aproximou-se das torres e
contemplou-as de baixo para cima, tendo
aquele céu profundamente cinza como fundo.
Os flocos daquela fuligem branca
gelada caíam sobre sua testa, olhos e boca
enquanto olhava para cima. Alguns
fragmentos de memória tentavam conectar-se
em sua mente enquanto ele olhava a cruz no
alto da torre central. Ele percebeu que aquela
forma, a cruz, tinha alguma relação consigo,

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mas não conseguiu formar nenhuma ideia
objetiva sobre aquilo.
Baixou a cabeça, abraçou o fuzil com
devoção e seguiu em frente. Tudo destruído,
desértico e gélido. Não cruzou com nenhum
vestígio de ser humano ou qualquer coisa
viva.

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4 - CRUZOU UMA PONTE

Cruzou uma ponte semidestruída, mas


que ainda permitia passagem por cima de
uma vala gigantesca, de fundo seco e
desértico, coberto de fuligem branca.
Em outros tempos essa vala era um rio.
Mas ele não sabia disso.
No final da ponte, contemplou por entre
os finos flocos daquela fuligem que caía, no
alto de um morro, a grandiosa estátua de um
homem de cabelos compridos e barba que
apontava com o dedo indicador da mão
esquerda o centro do seu próprio peito. A
metade direita da face, bem como o braço
direito até pouco abaixo da cintura da estátua
estavam destruídos.

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5 - ELE QUIS MUITO
APROXIMAR-SE

Ele quis muito aproximar-se daquela


estátua. De alguma forma ele sabia que
quanto mais próximo estivesse do homem
que ela representava, melhor compreenderia
aquela situação. Melhor compreenderia a si
mesmo. De fato, o movimento interior foi
externado, sacramentado, por aquela marcha
morro acima.
Lá em cima, permaneceu vários minutos
contemplando a estátua que era umas
quinzes vezes mais alta que ele e estava
sobre um pedestal de umas três vezes a sua
altura. Sob os pés da estátua havia um
abrigo, mas ele não entrou lá. Subiu nos
destroços da parte destruída da estátua, que

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se espalhavam pelo chão, às costas do
monumento.

6 - DE LÁ CONTEMPLOU A
PAISAGEM ABAIXO

De lá contemplou a paisagem abaixo.


Um imenso deserto gelado, sem nenhum
sinal de presença de vida. Foi para a parte da
frente da estátua e contemplou abaixo a
cidade destruída, serpenteada por uma
imensa vala em forma de “u”. O mesmo
sentimento provinha dela. Logo surgiu uma
constatação em sua mente, auxiliada por
alguns fragmentos de memória:
“O planeta todo está assim. Eu estou
encalhado aqui. Não é muita coisa que me
resta, mas poderia ser pior. Agora tudo está
livre.”*
Ele havia perdido completamente a
noção de espaço e tempo, mas, por alguma

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razão, ele sabia que aquele inverno já
perdurava por cinco longos anos.
Contemplando o céu cinza, um temor de que
o sol não aparecesse nunca mais passou
pela sua mente.

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7 - ELE SENTOU-SE À BEIRA
DO PENHASCO

Ele sentou-se à beira do penhasco e


passou a fazer um desenho com o dedo, na
pequena camada de fuligem branca que se
acumulava abaixo de si. As linhas e curvas
acabaram por formar o rosto de uma mulher.
Mais uma vez, como sempre acontecia desde
que o inverno havia começado, um fragmento
de memória lhe trouxe à mente a mulher que
ele amava. Toda aquela solidão e desolação
duplicaram ao saber que não tinha aquela
mulher por perto. Contemplando o desenho,
como que conversando com aquela figura, ele
disse:
- Eu vou esperar por você. Até o céu
ficar novamente azul.*

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8 - ELE PERCEBEU QUE
NÃO SABIA

Ele percebeu que não sabia quanto


tempo levaria até o céu ficar azul novamente.
Talvez o céu nunca mais ficasse azul.
Sabendo que não iria obter resposta, mesmo
assim perguntou ao desenho:
- O que mais eu posso fazer?*
Sabendo que iria obter resposta, virou
para trás e perguntou para àquele que a
estátua representava:
- O que mais eu posso fazer?*
E no seu íntimo, ouviu a resposta:
- Larga tudo o que tem, toma a sua cruz
e me segue!

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9 - POUCOS SEGUNDOS
DEPOIS

Poucos segundos depois de fazer a


pergunta, uma forte luz rompeu o cinza do
céu e aproximou-se dele, até que fosse
possível distinguir um imenso objeto voador
de forma hexagonal que pairava sobre sua
cabeça.
Duas criaturas caminharam pelo ar,
vindas da luz que provinha da nave,
aproximando-se dele. As criaturas possuíam
forma semelhante à de um ser humano,
porém, espectral e gelatinosa, de uma cor
azul claro levemente metalizado, com duas
asas de luz provenientes de suas costas.
Dirigindo-se a ele, as criaturas perguntaram
simultaneamente:

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- Onde estão todos os seres humanos?*
Ele percebeu que não estava apto a
responder àquela pergunta. Os pensamentos
em sua mente, perturbada pelos cinco anos
de inverno solitário, rodavam e rodavam, mas
não paravam em nenhuma resposta.

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10 - MAS HOUVE UM
MOMENTO

Mas houve um momento que sua mente


finalmente parou em uma pergunta simples,
mas muito profunda: “O que eu vou dizer a
eles?”*
Esse auto questionamento trouxe mais
alguns fragmentos de memória a sua mente,
que, conectando-se de forma coerente, o
possibilitaram responder à pergunta:
- Eu sou o único aqui!*
A expressão interrogativa das criaturas,
não importando como ele percebeu que era
interrogativa aquela expressão, trouxe luz a
toda a sua memória. Ele havia sido uma
criança esperta, e por um instante, ele se
lembrou de tudo. Ele se lembrou exatamente

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que havia sido uma criança esperta, e isso
permitiu que ele respondesse dessa vez de
forma objetiva. Com grande satisfação,
orgulho e um sorriso nos lábios ele
respondeu:
- Houve uma guerra. Uma grande
guerra. A maior de todas... E eu venci essa
guerra...*

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11 - ANTES DE TER SUA
MEMÓRIA DISPERSA

Antes de ter sua memória dispersa por


pensamentos insólitos, no estágio máximo de
sanidade que havia atingido nos últimos sete
anos, ele abraçou o fuzil com devoção, caiu
de joelhos e suplicou as criaturas:
- Por favor, me leve com vocês!*
As criaturas processaram a primeira
resposta para obter uma conclusão sobre o
lugar onde estavam e os seres que o
dominavam. Quanto à súplica, simplesmente
ignoraram, pois o processamento da primeira
resposta já havia sido concluído.
As criaturas voltaram até a nave e esta
desapareceu da mesma forma que havia
surgido no céu cinza.

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12 - DEPOIS DESSA
REJEIÇÃO

Depois dessa rejeição, com o orgulho


profundamente ferido, a solidez de suas
memórias se perdeu novamente. Ele sentou-
se mais uma vez à beira do penhasco e
passou a fazer um desenho com o dedo, na
pequena camada de fuligem branca que se
acumulava abaixo de si. As linhas e curvas
acabaram por formar o rosto de uma mulher.
Mais uma vez, como sempre acontecia desde
que o inverno havia começado, um fragmento
de memória lhe trouxe à mente a mulher que
ele amava. Toda aquela solidão e desolação
triplicaram ao saber que não tinha aquela
mulher por perto. Contemplando o desenho,

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como que conversando com aquela figura, ele
disse:
- Eu vou esperar por você. Até o céu
ficar novamente azul...*
E abraçou o fuzil com devoção.

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EPÍLOGO

Essas horas que eu testemunhei da vida


desse homem eram uma síntese de toda a
sua existência até ali.
Ele recebia constantes insinuações,
chamados e provocações interiores.
Naquelas horas, mesmo sendo o único
homem na terra, com lapsos de memória, ele
continuava a receber essas insinuações,
chamados e provocações, em intensidades
variadas.
Ainda assim ele continuava agarrado ao
seu fuzil e a si mesmo, orgulhoso do que
havia feito.
Não sei se foi intencional, pelo fato de
ele ser o último, mas o novo céu e a nova
terra só vieram depois que ele largou o fuzil,

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se arrependeu do mal que havia feito e
admitiu sinceramente que não era ele próprio
o senhor de sua existência.
Como eu já disse, contei essa história
no tempo passado, como se já tivesse
acontecido, por uma questão de conveniência
literária. Em relação a você essa história
acontece no futuro. Em relação a mim essa
história transcende o tempo. Na verdade o
que transcende o tempo sou eu e não a
história.

*Extraído da letra da música A Smart


Kid

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