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Floxnerragern ao

PapagaioVerde

Pupagoio louro
de bico ilourado

tonta lo certseio
deira üer gasosa.

Cantiga PoPular

<<Lisboa, 1928t
Era verde e velhc. Pelo menos' antigo' E ocupa
na minha memória junto com uma galeria indis-
-
tinta e confusa de gatos tigrados e <preparados> pelo
amola-tesouras-e-navalhas (mais tarde, esse primeiro
mistério da minha infância passou a ser celebrado
nâ Escola de Medicina Veterinária, i^ com os re-
quintes da assepsia), e todos chamados <<Mimosos>
tão onomastieamente como os papas são Pios - o
mais arcaico lugar reservado a uma personalidade
animal. Digo personalidade, e bem, porque ele a
tinha, e porque foi mesmo' para líL das surpresas
contraditórias das <<pessoas grandes>, áo capricho-
sas e volúveis, tão imprevisíveis, tão ilógicas, tão
hipocrita.mente cruéis, a revelação de um carâcter.
Não tinha nome: era o Papagaio, e parecia-me' por-
que falava, um ser maravilhoso. Depois, e a chegada
desse outro eu recordo, meu pai trouxe das Ãfricas
um papagaio cinzento. O papagaio por excelência pas-
sou a charnar-se o Papagaio Verde, e vivia de gaiola
pendurada numa das varandas em que' por um ta-
pn*u de madeira, estava dividida a varanda das
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0;: (; NÃO-CAPITÃ1,;S HOMENAGEM AO PAPAGAIO VT"}RI)I,}

lr iuir'n'rur rl:I rÌrinha ca',:a, cabenrlo uma l)arte à cozinha revelou apenas o que era carácter: ensinou-me tam-
rtulrrr :r s:rla de jantar. uma das reivindicações bém o que a amizade é.
;xrlllir:rr.q da minha infância foi a troca cle uma si- Que o Papagaio Verde era brasileiro, como ango-
lrr*qà, injusta que eonfinava o papagaio Verde à lano o Cinzento, foi dos primeiros axiomas de biolo-
q vrr'&rdâ da cozinha>. Na da sala de jantar, a que gia, que aprendi. Era sempre repetido, categórica
cra mais próxima da rua, vivia o papagaio Cin- e sacrarnentalmente, por meu pai ou por minha mãe,
zento. rste, menos esplendoroso e menos corpulento, quando, em jantares de família, se discutiam as gra-
menos vaidoso também das suas cores baças, morreu ças relativas dos dois bichos, e havia sempre um tio
depois do Verde, ave grande, vistosa, transbordante meu para condenar, em nome dos perigos da psita-
de presunção e dignidade; e, apesar de ter ticlo muito cose, a posse de seres tão exóticos, portadores pro-
mais do que o Verde o dom da palavra (usando-o, váveis e espontâneos de uma cloença estranha, morta-
fodavia, com menos humor involuntário), não o re- líssima, que eu, criança à espera de vez para a carne
cordo tão distintamente como a imagem do outro, à assada, imaginava como a instalação crónica, no or-
qual a sua viera sobrepor-se à maneira de um nega- ganismo dos adultos, daquela tendência manifesta
tivo, uma sombra, um apagado duplo, na imprecisão para falarem de cor e a despropósito, coisa que os
focal da memória a desfocar-se por ele. De resto, o papagaios quase não faziam. Mas o caso é que,
Cinzento era sujeito retraído e friorento, guê ficava verdes e papagaios, só no Brasil; papagaios e cin-
encolhido a resmonear o reportório variado, sem ma- zentos, só na Ãfrica, e ainda hoje não sei se isto é
nifestar por alguém qualquer preditecção afectiva; verdade ou mentira. Outro axioma era que os papa-
tinha apenas de simpático o olhar nostálgico, melan- gaios comiam milho, do que eu concluía (e creio que
cólico, e a mansidão muito dócil do resigna.do e acor- o meu subconsciente ainda guarda essa conclusão)
rentado escravo. O Verde, pelo contrário, era exube- que a ingestão de milho era um sinal dos infalíveis
rante, de amizades apaixonadas e de ódios vesgos, para distinguir as pessoas e os papagaios.
sem eontinuidade nem obstinação. Minto: essas ami- No começo das minhas memórias de infância, o
zades e ódios, não continuados nem firmes, fazíam Papagaio Verde era um animal fabuloso que me re-
parte do seu carácter expansivo e espectacular. Mas, cebia ao gritos, enquanto dava voltas no poleiro,
com o andar do tempo, começaram a refinar numa trocando os pés, e me olhava de alto com um olho
aversão colectiva, azeda e ruidosa, ou concnetizada superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei
num bico de respeito, que, traiçoeiramente, na frente a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia na <va-
de uma adejada revoada verde, se apoderava cerce randa da cozinharr, que me era proibida por causa
de um dedo, uma canela, uma madeixa de cabelo. das torneiras, como a cozinha o era por causa do
A contrapartida deste crescente pessimismo em re- lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigi-
lação ao género humano (no qual ele incluía, com lâncias, ou subornar o cordão sanitário, os dois numa
um desprezo que raiava o absurdo, o cinzento) foi contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do
um& dedicada e veemente amizade por mim. No bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o
mundo hostil dos adultos que me cercav:un de solici- uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pen-
tude e clausura, o papagaio Verde, afinal, não me durada alta, entreabrindo as asas para rlm voo um

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os (; r:Ão-cAPIT.{^&-S TIOIIII'NAGEM AO PAPAGAIO VERDE

tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando se espalhava pela casa t'oda, cujas portadas de janela
um& esp(.cie de grunhido que culminava num arrepio se semicerravam como par& conser"var, em estado
que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido cle graça e de jazigo de família, aquele ambiente de
tlo l3r:rsil, eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela silêncio e treva premonitória. Não se sabia nunca
varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, ao certo essa ehegada. Flle não escrevia senáo de
Ìrma nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara raro em raro, e minha mãe, para calcular a demora
muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longa- da viagem, ia de vez enì quando, comigo pela mão,
mente o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ven- aos portais da Companhia de Navegaçáo ver, no
tos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor quadro onde registavam o movimento dos barcos,
de andanças. Algo disso ficaria nele, e era um jeito em que porto das Ãfricas o navio de meu pai saíra
de balancear-se no poleiro sem levantar nenhuma ou entrara. Quando eu já sabia ler, mandava-me lá
das patas, sem alterná-las como o Cinzento fazia. dentro a mim, e ficava-se meia oculta na esquina da
E tambrám uma bonomia astuciosa, egoísta, irónica, rua, creio que para, aos empregados que a conhe-
subjacmte ao ímpeto altivo do seu pescoço amarelo ciam, não mostrar que não sabia mesmo onde o
e da sua poupa azul. Ficara-lhe, além disso, um repor- marido andava. Telefonar, e não tínhamos telefone,
tório bravo, truculento, metaforicamente expressivo, não lhe ocorria; apresentar-se de cabeça erguida
que era o principal motivo do confinamento discreto fosse onde fosse era contra os seus princípios. E,
à varanda da cozinha. Ele, pouco a pouco, ia esque- muito provavelmente, nem os ernpregados se lem-
cendo aqueles horrores que minha mãe não queria brariam de achar estranho que ela, ainda que muitas
que eu ouvisse, e só os recordava em catadupa, nas cartas recebesse naquele tempo sem aviões, fosse
suas horas de tédio mais sonhador, em que os dizia ver a rota do navio. Eu, a quem tantos comparti-
entrebico, ou nos rnomentos de furiosa irritação, mentos da casa eram defesos, ficava durante e após
em que, parecendo Ìrma águia (achava eu) imponen- as limpezas, e até ao dia da chegada, encurralado
tíssima, vomitava impropérios que escandalizavam de todo, e sem nada que sujasse ou me sujasse.
a vizinhança e dobravam de riso as criadas, o que o E odiava aquela expectativa, ao mesmo tempo que
iritava mais. Não foi assim, r& escola ou na rua, esperava curiosamente o que meu pai traria: caixo-
que eu aprendi os nobres palawões essenciais à vida, tes de vinho da Macleira, cachos de bananas, fmtas
embora me ficasse, para aprender depois, algum sen- várias em cestas, às vezes manipansos dos pretos, que
tido deles. Aliás, este sentido eu ia aprenderrdo adivi- me eram dados para eu brincar. IJm dia, era o movi-
nhadamente nas discussões domésticas. à porta fe- mento na escada da casa, que, chefiados pelo criado
chada, entre minha mãe e meu pai, quando ele, do de meu pai, o criado encasacado de branco e priva-
outro lado da poúa, os bradava, e muito explicados tivo do comandante, vários homens subiam ajou-
em frases elucidativas. jados, entalando na porta, resfolegantes e trôpegos,
Meu pai era uma personagem mítica que eu quase os malões enormes, os caixotes, e as cestas, que
só via à hora de jantar, durante uns quinze dias, de ficavam no corredor e atravancavarn tudo. Ao cheiro
três em três meses. A sua chegacla era prenunciad.a dos encerados e das solarinas, sobrepunha-se então
por um cheiro a encerados e a pó espanejado, que o das frutas exóticas, o da palha dos caixotes, o dq

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OS GRã O -(.'! A P I7' À I'} S HOMDNAGEM AO PAPAGAIO VI'RDE

baÍio ckr5 p1i1l5es, que tudo, al)esÍLr de sempre igual, à porta da cozinha, num arquejar de peitos excitados
cu queria abrir, tocar e vcr. Nunca me deixaram e de olhares risonhos, a que meu pai atirava um
abrir, tocar ou ver coisa nenhuma; e eu ficava en+,re- sobranceiro <,olár>, e entrávamos para à sala, com
portas, olhantlo o avolumar das palhas de que emer- o sofâ e as poltronas baixas de bolinhas que os
giam fmtos e baratas saltavam, às corrida.s logo <<Mimosos>> arrancavam uma a uma' eu ficava no
pelo corredor fora, perseguidas pelos gritos de minha meio da casa, ora num pé ora noutro, com Ìrma von-
nrãe e das criadas, atarantadarnente todas esgri- tade imensa de fazer <chichi>, e meu pai sentava-se
nrindo vassouras e clando com elas pancadas desa- na borda do sofâ, enquanto minha mãe se sentava
tinadas. Em geral, para gosto meu, as baratas esca- na borda de uma das poltronas. Trocavam então al-
pavam-se. Depois, era uma expectativa meio nervosa, gumas informações: quem desta vez aparecera em
com muitos <o papá está a chegar> e muitas esprei- Luanda ou no Lobito, recomendações acerca das
tadelas para a rua, a vermos se ele assomava ao virar fardas brancas, que tinham de ser todas lavadas e
a esquina. Até que, com o seu andar balanceado, a engomadas, enumeração de quem oferecera os cai-
estatura corpulenta aparecia atravessando a rua, *ol.r, as fmtas, os cachos de bananas' Minha mãe
chapéu de feltro de aba revirad.a e d.ebruada a seda, contava, por alíneas, sem explicações nem comen-
bengala com aplicações de prata, charuto havano tários, os acontecimentos da famíIia, as doenças que
empinado na bcca. Minha mãe, sem dizer da janela eu tivera, queixava-se de como passara desta vez'
um acleuzinho prévio, ia logo abrir do patamar a tão mal do coraçáo. Ele ouvia distraidamente, como
porta da rua, puxando e eu queria sempre puxar _ uma visita de cerimónia, mas ainda de chapéu na
a transmissão metálica- e primitiva que levantava o cabeça, e com as mãos na curva da bengala. Ãs vezes
trinco. E ficava perfilada, segurand.o-me a curiosi- uma das mãos levantava-se para cofiar e retorcer
dade indiferente com que eu queria debruçar-me do uma cÌas pontas do bigode. Minha mãe, então, levan-
corrimão, e largando-me só quando meu pai já vinha tava-se, como se fosse para despedi-lo, e tirava-lhe
no último lanço da escada. Então, subitamente inti- da cabeça o chapéu, e das mãos a bengala. A careca
midado, eu descia dois ou três degraus; meu pai dele, pontuda e luzidia, brilhava. Ele levantava-se
<Então como vai o Ììosso homem?>> -
roçava-me na também, vinham até ao corredor, e obsenravam am-
-
testa uns lábios frios e o bigode esverdinhado, farto bos as cestas e os malões. Novamente meu pai enu-
e retorcido nas pontas que ele frisa,va, e parava ao merava os obséquios que recebera, e aproveitava
pé da minha mãe, sem jeito d.e abraçá-la. Ficavam paxa informar de qualquer pedido que lhe fora feito
assim diante um do outro, a olharem-se, e eu erguen- pela parentela africana de minha mãe, uma passagem
clo os olhos por entre eles, até que meu pai a agar- gratuita, de um porto para outro, ou de como haviam
rava pela cintura, o espaço entre ambos desaparecia, ido a bordo para comer-Ihe o almoço' Demoras nas
e minha máe deixava-se pousar a cabeça no ombro falas e nos gestos de ambos prolongavam um mal-
dele. Davam-se então um beijo logo fugidio <Olha -estar que se transmitia. Mzu 1ni, agarrando minha
o pequeno>>, dizia minha mãe e entravam- para o mãe, comegava a arrastá-la para o qlrarto deles.
-
corredor, ambos muito comprometidos, sem se olha- Minha mãe esquivava-se, ele tirava-lhe das mãos o
rem nem me olharem a mim. As criadas apareciam chapéu e a bengala, que pendtrrava no bengaleiro, e

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oS CNÃO.CAPITÃT'S HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDD

iir lrrrrir o quarto pôr-se a vontade. Ela ia à" cozinha tos e não me chamava muito eu ficava mais livre,
.xtr.rrrirrrrt'rrle embaraçatla, e cada v(z maig o ficava -
entretidas as criadas num& escuta maliciosa ou no
por cle a chamar lá de dentro, com insistência. Ele <far niente> das tarefas inacabadas. Mas duravam,
rr clramar, ela a repetrr pela centóslma. vez na.quele eom .efeito, pouco, e logo, qua^se sem transição, pas-
rlia as instruções para o jantar. viriam meus tios, savarn à violência do temporal desfeito, para o que
como sempre; e os cristais e os talheres, saídos já tambtám a porta se fechava, às vezes com safanões
do guarda-prata e do aparador, apinhavarn-se no à porta e competições pela posse da chave , e lã dentro
mármore desses dois móveis, na sala de jantar; era do quarto havia gritos de ambos, frases sibiladas
outra das ritualísticas decisões que se tomavam de raivosamente, solugos e ais de minha míe, até que,
três em três meses. A voz do meu pai vinha insis- num repente, a porta abria-se para as criadas, jâ a
tente, cada vez mais berrada. Cabisbaixa, minha mãe postos, acudirem, eom a â"gua de flor de laranja, à
interrompia as observações, e ia pelo corredor fora minha mãe que, estendida na carna, muito pálida,
sn direcção ao quarto. Ã porta, meu pai em ceroulas soltava leves ais de mão no coração. Eu esgueirava-
de fitas e em fralda esperava, e tinha de puxâ-la para -me pelo meio do tumulto, sem que ninguém repa-
dentro. A chave rangia e estalava na feehadura. As rasse em mim, e era em geral minha mãe, abrindo os
criadas trocavam olhares, levavam-me para a. va- olhos, quem me enxergava, suspirava mais soluçada-
randa, onde o Papagaio Verde, na sua gaiola, subia mente, e estendia para mim mãos trérnulas e dramá-
e descia af,anosamente do poleiro, segurando-se com ticas que solicitavam a minha conivência, a minha
o bico e alçando a perna. Não estava em caÌrsa que aliança, e das quais eu recuava tonto, com repugnân-
ele desse o pé a ningriém, a náo ser a uma ponta de cia. E era meu pai quem me empurrava para elas,
pau de vassoura, eüê eu lhe apresentava. Olhando-me como uma espécie de plenipotenciário encarregado
de revés, condescendia em pousar de leve um pe tré- de negociar a paz de uma guerra cujas causas eu
mulo na ponta do pau, enquanto eu repetia: <papa- não entendia, mas de que me sentia, sem o saber,
gaio Real, quem passa?>> para ele se ügnar dizq: o campónio que vê os exércitos inimigos devastarem-
<<É o Rei... É o Rei...>, como- se não soubesse o resto. -lhe a seara, uma pequena horta, um pobre jardim.
E, de súbito, casquinava estrondosamente, sacud.ia- Aliás, por isso, a situação de plenipotenciário tinha,
-se, e cantava desaforadamente Ìrma das cantiga.s em pela jogada impotência e pela passividade disputada,
voga. Mal as criadas vinham, rindo, acompanhá-lo, muito mais de um refém que de um embaixador. Nin-
calava-se logo, quieto e sério, fitando-as de bico en- guém me perguntava ou me ensinava a perguntsr o
treaberto. que eu queria ou o que eu pensava; e ambos, como
Foi por essa altura que a nossa amizade se esta- os aliados, e os pacificadores, as terceiras forças de
beleceu. As luas-de-mel de meus pais duravam pou- <cruz vermelha>> e neutralismo, que às vezes erarn
cos dias, pelo menos com aquela atmosfera de porta invocadas (quando não eram arrastadas noÊ acon-
e janela feehada em pleno sol e de passos leves das teeimentos), afinal me iguoravarn. E, tão depressa
eriadas, durante a vigência da qual eu esquecido, quanto era empurrado para os braços trémulos, era
ou mais distantemente tratado, porque-minha mãe, retirado deles e posto de lado, fora da porta, como
quando saía lá de dentro, andava chorosa pelos ean- a bandeira branca que,, depois de brandida e de surtir

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OS CRÃ.O.CAPITÃES HOMENAGEI'T AO PAPAGAIO VENDE

efeito, fica no chão, entre os cadáveres, as cápsulas, Não as comia; com bicadas certeiras e calmas, 9ü€
o lixo das guerras mtxlestas e localizadas.
intercalava de laterais olhadelas para mim, partia
Eu ia para a varanda conversar corn o papagaio
tudo em bocadinhos que tombavam na gaiola ou no
Verde, não para lhe contar desditas que claramente
chão. Terminada a cerimónia, descia do poleiro, e
não entrevia, m&s para comungar numa idêntica so-
continuava na borda da gaiola Ìrma segunda fase que
lidão acorrentada. Eu saía muito pouco, a rua era-me
era escolher dos caídos peda4os aqueles que ainda
proibida, primos meus vinham às vezes brincar co-
podiam ser, sem muito esforço, rcduzidoe a tamanho
migo. As brincadeiras, porém, constantemente inter- menor. Contemplava, então, de olho Srave e atento,
rompidas por minha mãe, a quem era pr@iso pedir
a sr(tensão da devastação que fizqa. Então, abrindo
licença para ir buscar ao <quarto escuro> o caixote as asas e esticando o pescoço, saeudia-se de penast
dos brinquedos (o ((quarto escuro)> era, também, o erigadas, catava no alto da poupa azrul um piolhinho
misteroso reduto-alcova das criadas, cuja intimidade (para o que erguia, à cabeça baixa, um dedo cuja
constituía outro mistério estranho), não tirüam gta- unha coçeva suavemente por entre as penas), sâ-
ça nem entusiasmo, e degeneravÍun sempre em brigas cudia-se de novo, subia para o poleiro, assentava-se
sem motivo, em que se opunham o meu anseio de nele, assentava, nos ombros a cabeça, e fechava os
brincar tudo ao mesmo tem1n, ê L absorção com que olhos. Era o sinal de que eu me retirasse, de que a
meru primos se dedicavarn exclusivamente a algum minha visita acabara. Com a ponts da vas*K)ura,
instmmento de brincar, que eles não possufusem e aÉs esperar que a respiração dele fosse pau"sada e
os seduzisse mais. Quando essas brigas estalavam, funda no peito venle, eu tocava-lhe. Ele fazia de
minha mãe mandava-os embora, e eu fieava d,ias e conta que não dava por isso, era preciso tocar-lhe
dias remoendo um& autoritária cólera insatisfeita, vezes sqguidas, enfiar-lhe o cabo da vabsoura por
e esperando (de ideia fixe e numa insistência cuida- baixo das asas. Até que tudo isto se repetia como
dosa, para que minha mãe loÍfo a não contrariasse) uma cema previartente ensaiada entre nós. Fingindo-
que eles voltassem. F ui, por extensão, p,ouco a pouco,
-se ele distraído e indiferente, retraído e alheio, eu
sem cálculo nem método, conqulstando o papagaio teimava com o cabo da vassoura; e ele, subitamente,
Verde, e, ao mesmo tempo, o respeito já lendário que disparava um voo circular na ponta da corrente, pou-
ele impusera à sua volta. Sem largar o lnleiro, e sa,va de esgelha, no pau empinado, com as &sas semi-
olhando ironicamente para o meu dedo, ele dava-me abertss numa imitação de procurado equilíbrio, e
o pe; cantava comigo, aceitava da minha mão algu- cantava, gargalhando e dando estalinhos com a lín-
ma das coisas, como um talo de couve, güe ele apre- gua.
ciava. F ui descobrindo que, n& verdade, ele não apre As criadas tinham raiva daquele entend'imento
ciava muito esses talos gu€, solícito, eu lhe metia que ele não lhes concedena nunca, com uma altivez
no É. Mais por delicadua que por gosb, mais I'ara senhorial que tornava difÍcil lavar-lhe a gaiola posta
aproveitar a otrrcrtunidade de despedaçar metodica- par& isso no chão da varanda, ou deitar-lhe âgua e
mente um objecto (que a gaiola com poleiro de folha, comida nos recipientes pendurados de cada lado do
e a distância a que era posto de quanto fosse roível, poleiro. E, raivosas, faltavam-lhe ao respeito, tocan-
não lhe consentiah), é que ele aceitav& essas dâdivas. do-lhe com a vaÁtsoura na cauda, a pretexto de va:re-

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OS GRÃO.CAPITÃES IIO:q ],.'\.'1(; T")M AO T'AI'ACAIO TI HIÌI)It

rem melhor um recanto, ou despejando, numa pon- nos requebros de avançar, mal espalmados no chão
taria falsamente errada , agua por cima dele. Furioso, os dedos, a passos Ìargos, direito a mim, QU€, con-
subia a empoleirar-se no espaldar da gaiola, de onde, tagiado levemente pelo pânic<t tlaquelas galinhas,
sem dar muita confiança de perder a cabeça, lhes recuar&. E veio até aos meus pés, e fez contra um
fazia an'emessos temerosos: mas, às vezes, perdia-a meu sapato, com doçuriÌ e ternura, aquele gesto de
mesmo, e então, veloz, com o pé esticado nurna eor- afiar lateralmente o bico, que fazia às vezes na borda
rente que arrastava a gaiola, agarrava uma ponta da gaiola. Abaixei-me para lhe pegar. IJle deixou
de chinelo que, aos gritos, muito trémulo, não lar- que o agarrassc, instalou-sc lìu'm n-ìcu dcdo, t:
gava das patas e do bico. Uma vez, a fúria foi tal pcsava.
que só a jarros de água o largou, ficando semides- Que dia triunfal ! Meu pai partira já, dessa vez,
maiado, tremente de exaustão ner:vosa e de frio, no torvelinho dos malões e dos engomados, com o
a Bemer uma ladainha triste e rouca, em que havia, criado de casaco branco, muito tÍmido entreportas,
dispersos, alguns palawões adequados. Dessa vez, a dirigir a saída da bagagem. Houvera as despedidas
deixou que eu lhe acudisse, o eÌxruguìsse com um do costume, com meu pai acabando por tirar da algi-
pano, lhe penteasse as penzÌs tão indignamente riças, beira um envelope branco que pousava em cima do
tão enegrecidas do forçado barúo. Daí em diante, <toilette>> e era o dinheiro para três meses de ausên-
foi que a nossa leal camaradagem se firmou, sem cia. Houvera a contagem do dinheiro, poí minha
hesitações nem reservas. mãe, e o regateio mútuo sobre se chegavam ou não
Certa manhã,, quando me levantei, havia, na eozi- aquelas notas. Depois os beijos e abraços, a ida à
nha um movimento desusado, gritos, uma atmosfera janela da sala para dizer-se o adeus final. E eu
de pânico. Provavelmente, essa, atmosfera desper- recomeçara, aos fins cle tard.e, as idas & casa da
tara-me. Fui ver. O Papagaio Verde estava solto ! Dona Antonieta, para a lição de piano, Qüê a família
Passeando para câ" e pera láL no chão, arrastando toda, com meu pai à frente, achava uma indignidade
uma ponta de corrente, o Papagaio proibia que a mulheril, e que era a única manifestação de teimosa
porta da varanda se abrisse, e esvoaçava ameaçador independência por parte da minha mãe' Para mim'
contra a greta que nas portadas as criadas tentassem. a Dona Antoniet a" era uma pessoa que eu me espan-
Eu queria pa.ssar para fora, mirüa mãe que acudira tava de afinal não ter sido decapitada, realengamente,
ao tumulto segurava-D€, o Papagaio berrava. As na Revolução Francesa; e o piano era triplo e deli-
criadas repetiam que ele fugira, fugrra! Eu achava cioso pretexto para fazer o contrário do que queria
que, se tivesse fugido, teria voado paxa as árvores do maioria numerosa dos meus tutores honorários,
quintal subjacente. tr desmenti. E, lutando esgata-
"para penetrar na sala obscura e proibida onde o nosso
nhadamente contra todas, abri as vidraças da varan- pi""o estava aguitarrando-se na solidão húmida, e
da. Afugentando para o eorredor a minha mãe e as para ficar sonhadoramente compondo, curvado sobre
criadas, que pela porta entreaberta da eozinha obser- ãs teclas arnarelad.as, as sinfonias que me tornariam
vavam o terrÍvel incidente de que eu sairia mortal- liwe, célebre, distante de tudo e todos.
mente ferido (<<com um olho vazado>>, clamava minha Com o Papagaio no dedo, avancei pelo corredor
mãe em ânsias), o Papagaio entrou, dando ao corpo fora em direcção à sala, seguido pelo cortejo receoso

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OS GRÃO.CAPITÃ.EB HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDE

que nõo ousava deter-me, porque o bicho abria para Cinzento. Este, da sua gaiola, olhava-nos com cho-
elas run bico desmedido. Abri a porta, entrei, escan- cado pa^slno, e ensaiava Ìrma dança tonta de criatura
carei de par em par as portadas (e, para lutar com a quem acendesserr, de súbito, Ìrma, luz forte. O Pa-
os fehos, tive de trrcusar no chão o papagaio que pagaio Venle, pousado no meu ombro, arreliava-o
Iogo esvoa4ou para a porta, a coarter o avanço das com gritinhos e mordidelas carinhosas na minha ore-
tropas perseguidoras), fui fechar a porta, sentei-me lha; e o outro, escandalizado e humilhado, ving&va,-
no banco do piano que abri, dqrois de levantar a -se depenicando ostemsivaurente, mas sem epetite, os
colcha indiana que o cobria e cujas franjas sempre requintes de gastronomie pa.pagaial de que, por mão
se enguiçevam na tarnpa. concentrando-me, desferi de minha mãe e das criadas, a gaiola dele estava
acordes turnultuosos e dissonantes, com trémulos sempre cheia. Uma tarde, não precisei fazer mais
que um leve movimento de ombro. O Verde saltou
rotundos nas oitavas baixas e glissandos nas esga-
pare cima do Cinzento e, ean três tempos, deu-lhe
niçadas. o Papagaio, numa atrapalhação precipitada,
uma sova, que o pôs no canto da gaiola que de.pois
subiu pare as costas da cadeira mais próxima, e es- pilhou
panejou-se, e acompanhava, dançando e gritando
conscienciosa^mente, virando, para despejá-
-los, o bebedouro e o comedouro, e varrendo para o
Ìrma, melopeia desafinada, a minha música sem nexo.
chão da vara^nda, à força de asas, patas e bico, tudo
E, de vez em quando, para maior alegria minha, Iar_ o que se derrama.ra ou estava pousado no fundo da
gave escagarrichadamente pelo estofo da cadeira, gaiola. O outro, olhando de banda, não se atrevia a
que assim se degradava, as suas dejecções acinzen-
um gesto; e o Papagaio Verde voltou para o meu
tadas.
Não houve mais contê-lo. Eu próprio o prendia ombro, sem querer tocar, para comê-lo, num grão
e soltava da gaiola, e ele esperava com paciência as do milho fino com que o outro se regalava.
horas em que iria buscâ-lo para o trazer à sala. Minha Quando eu ia para a escola, acompanhando sub-
mãe e as cria.das não se atreviam a intervir, e eu missamente, até à última esquina de onde se via
ouvira já conspirações que assassinavam o papagaio, minha mãe de atalaia à janela, a criada que era
o exilavam para longes casas. Mas, quando eu o sor- mandada a. comboiar-me para impedir que eu me
tava, e ele andava por toda a parte atrás de mim, perdesse n&s ruas ou entre a garotada do meu bairro,
tudo ficava por nossa conta: minha mãe fechava-se e fugindo dela a correr, mal era voltada a esquina,
no quarto, as criadas fechavam-se na cozirúa. uma para escepar-me ao perigo .incalculável de os meus
das nossas diversões era um pequeno tratrÉzio que colegas perceberem que a criada me trazia (e esta
eu criara para ele, susperuro da bandeira, sem vi- convenção de fugir às respectivas criadas para negar-
draça, da porta do <quarto escuro>. O papagaio, ensi- -lhes a guarda era tácita entne muitos dos meninos,
nado por mim, saltava do trapezio balouçánte para e as criadas, à hora da saída, ficavam conversando
a vÍursoÌrra que eu atravessava na frente; e, de cada
nas esquinas distantes, a coberto das pedradas com
vez que o pouso se realizava com pr@isa elegância,
que seriam recebidas, se se aproximassem aquém dos
a sua alegria não tinha timites. Às vezes, - íamos
limites eonvencionais da sua não-existência) o papa-
ambos à varanda da sala de jantar visitar o papagaio '
gaio vinha até à porta do patam&r, a, despedir'se de

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OS GRÃO-CAPITÃgS HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDE

mim, e o mesmo fazia quando, à tarde, depois de


lJu, na calna, ouvia tudo aquilo, quando não era
lanchar, eu saía para a lição daquele pescoço em que
ttúo vilr rilrralsi dr' gtrillrt-.rtina. l,lstas despetlitlÍìs t:Ì'aÌÌÌ expressamente convocado a participar, Por minha
mãe que vinha acordar-me <para fugirmos os dois>>,
um& perfídia minha, nas vezes em que não ia, como
ou por meu pai que me sacudia para dizer-me <que
me pediam que fosse, deixá-lo preso. Divertia-me
minha mãe era doida, que o odiava, 9ü€ me ensinava
saber que se fechavam à espera que ele, caminhando
a ter-lhe ódio>. Com sono, farto de cenas sem novi'
solene pelo corredor e arrastando chiadamente no dade alguma, cujas marcações e deixas eu sabia de
oleado a corrente, voltasse honestamente à gaiola, cor, eu tinha ódio a ambos, Por sob o medo imenso
onde ficava, sem ser preso, aguardando o meu re- que ambos me metiam, a puxarem cada um por um
torno. braço meu, cada qual exigindo que eu desmentisse
Depois, meu pai regressava novamente. As luas-
o outro. Uma vez, minha mãe vestiu-me apressada'
-de-mel eram ag'ora curtas, rápidas, tumultuosas, com
mente e vestiu-se depressa tamtÉm, com meu pai,
minha mãe protestando Iá dentro, em gritos que cha-
no corred.or, de faca da cozirüa em punho, e as cria-
mavam porco e infame ao meu pai. Às vezes, a frágil
das nas sombras da porta do <quarto escuro>) esprei-
pa:, quebrava-se logo no jantar de família, nesse
tsndo. Fui infonnado de que íamos sair para nos
mesmo dia, com meu pai levantando-se pela mesa
deitarmos ao rio, nos afogarmos. Ã porta, entre gar-
fora e atirando a cadeira, ou com minha mãe cho- galha.das do mzu pai, eu recusei-me terminantemente
rando diante da travessa encalhada na mesa, entre
a sair, declarando que estava muito frio. E meu pai,
um prato cheio e outro vazio. palavras viperinas brandindo a faca que era para suicidar-se' ou para
circulavam, meus tios levantavam-se tamtÉm, com -
matar minha mãe, ou para liquidar-me a mim, con-
uma autoridade moral de que compensavam a sujei-
forme as oportunidades daquela <commedia del-
ção dos muitos auxílios e jantares que meu pai lhes I'a^rte)> avançou para minha mãe. Eu dei-lhe um
dava. Eram, aliás, parentes por parte dele, embora -
pontape no baixo-ventre, que o fez, nu:rt urro' largar
pessoas cuja interferência, nos negócios dorrnés-
a faca que apanhei. E a^s criadas e minha mãe tive-
ticos, ia aumentando eom a violência das disputas; rarn de interpor-se entre ele e mim, até que uma das
muitas vezcr, naqueles escassos qúnze dias, uma das criadas, abrindo a porta da rua, se esgueirou, comigo
criadas, de noite, levantava-se para ir chamar meu pela mão, desarmando-me, e levando-me para a ave-
tio, que não morava Ionge e vinha sonolento, com nida, ond.e o dia clareava' e os grandes carros de
umas calças enfiadas por cima do pijama e um bois, cobertos de hortaliça muito arrmmadinha, des-
sobretudo de gola levantada, conversar paciente- cialn chiando a ca,lninho do mercado. A criad.a falava
mente, ora com minha mãe que, em <<robe de cham- docemente comigo, dizendo-me que o que eu fizeta
bre>>, suspirava sentada na sala de jantar, ora com
não se fazia, era uma granCe maldade' uma grande
meu pai eue, passeando trresadamente no corredor falta de respeito. Eu, abaixando a boca, mordi-lhe a
até que os vizinhos de baixo viessem protestar contra mão. E ficamos passeando para baixo e para cima,
o barulho, proclamava que não precisava de nós para ela su{presa e dolorida atrás de mim, porque me
nada, tinha a bordo todos os confortos, que nos estimava muito, e eu, à frente, dando pontapés aos
levasse o diabo. detritos que havia no passeio, entornando caixotes
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OS GRÃO.CAPIT.ã,ES HOMENAGEM AO PAPAGAIO VEBDE

de lixo, que estavam nas portas, c trrinando contra mento em que, estando meu pai, ele batia à porta'
as árvores como faziam os cães. Tocava as mírsicas que preferia, ou ficava compondo
Daí erÌl dia'tc, tras quesLr,rcs noctur.nas, quando repetidamente melodias que se pareciam com tudo
meu tio vinha, no seu sobretudo escuro, negociar que o que an ouvira de triste, e o Papagaio não pousava
minha mãe não teimasse em dormir na minha cama, já nas cmtas da cadeira, mas na borda extrema do
de que eu er?epanhava a. roup&, ou que meu pai não teclado, de onde seguia os movimentos das mirütas
brandisse facas, acabavam sempre os três por dis- .mãos, e descia às vezes para as teclas, ensaiando uns
cutir-me acaloradamente, a, dois contra run, con- pessos que eu fazia sonoroa no calcar das tecla-s des-
forme os argumentos, como se eu, <que levantara cidas. Isto divertia-o, e ele simulava um gTande es-
a mão contra meu p&i>, fosse o criminoso, o culpado pa^nto, olhando a um lado e outro, soltando <ohs,
daquilo tudo. Eu, às vezes, sartava da cama, vinha ohs>>, e ficando com um pé no ar' um pé hesitante
encostar-me à ombreira da sala de jantar, e pela que fingia temer o som da tecla seguinte. Então, eu
frincha via-os sentados à volta da mesa, ca.d.a qual retirava-o para a borda, e tocava estudos e escalas.
argumentando com motiva,ções que eu não sonhara O Papagaio dormitava desatento. De súbito, eu feria
ter tido, com malefícios que me não lembrava de ter dois ou três acordes de algumas música,s suas pre-
praticado, ou combiuando planos de educa4ão pa,na dilectas. Imediatamente se arrepiava na expectativa,
eonterem os meus instintos. Eu ficava atemorizado de olho arregalado, e cantava e dançava atê ao fim,
e trémulo, ouvindo falar de colégios internos, de proi- abrindo as asias. Quando eu concluía numa catadupa
bições de brincadeiras, de suspensão das lições de de acordes extras, os gritos dele eram de aplauso que
piano, coisas piores. exigia bis. Eu repetia uma e duas vezes, até que uma
No dia sqguinte, pela manhã, trôpego de sono e angústia de exprimir-me me embargava os dedos, eu
inquietação, eu ia para a escola, onde não era mais pousava s, cabeça nas teclas, e esperava que ele
feliz. Afastados rispidamente da minha casa que viesse. yÉ ante pé, eatar-me na cabeça o piolhinho'
não frequentavam, como eu não frequentava a deles, Não chegara ainda à adolescência, quando o Pa'
os meus colegas detestavam a minha incapacidade pagaio Verde adoeceu, a princípio muito levemente,
de comunicar, o meu isolamento estudioso e vago de uma pequena boqueira no canto do bico, e que
que não pnocurava aliados nem confidentes. Eu ea manifestamente o incomodava. Só a minha presença'
menos rico do que a maioria deles, e vestia-me com a minha voz, os meus afagos, o alTancavam da sono-
um aprimoramento desmazelado que não mantirúa lência gemente em que se confinava ao canto do
a distância que os primores despertam, nem a cama- poleiro. Pouc.o a pouco, a boqueira alastrou em refe-
radagem a que o desmazelo convida. E, bem mais gos pare os lados do bico, avançou em direcção à
vezes que a outros mais peraltas, Dê atacavam para poupa azul e à fina pâlpebra que se mantirüa semi-
sujar-me, ripostando eu com uma raiva que não era cerrada. Mal podia abrir o bico, para comer; mal
das regras do jogo, porque eu procurava ansiosa- podia firmâ-lo, para descer ou subir. Tinha tonturas,
mente agredir, com ímpetos assassinos. vâgados gue o aterrorizavam e surllreendia^m, e aca'
à tarde, eu voltava para casa, fechava-me na baram por fazê-lo temer o lnlelro de onde quase
sala, com o piano e o Papagaio Verde, até ao mo- caÍl. Foi preciso ter sempre a gaiola no chão. Ele,

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OS GRÃO.CAPITÃ,ES TIOMENAGEM AO PAI'AGAIO v IIRDI.:

que às vezes audazmente pulava para. a grade da espelhavam. Mas era também umÍÌ confiança de que,
varanda e olhava de alto para o quintal lá em baixo, em sacões abruptos, um dos seus pezinhos se aper-
não se atrevia agora, senão de vez em quando, a tava no meu dedo, como quem se agarra à vida e
aproxima,r-se, num relance saudoao, da beira da va- transmite a um amigo a derradeira mensagem. fsto
randa. E, arrastando o pé, voltava para o canto da durou seman&s que me fizeram às vezes faltar às
gaiola. Eu, e minha mãe também, a meu pedido, aula.s, não ouvir ninguém, não notar ninguém,
tratávamos dele, lavando-lhe com um algodão embe- ocupado em escutar e receber aquela vida que se
bido em borato aquela chaga que não era bem chaga, extinguia. Eu saía a correr da escola que não me
e antes parecia um alastrar de lava pregueada e dava conta de frequentar, temendo não errcontrá-lo
ressequida. O Papagaio Verde não deixava que minha ainda vivo. Mas liL estava, agora meio deitado no
mãe lhe fizesse o curativo, se eu não estivesse ao canto da gaiola, para apertar na pata o meu dedo.
lado. Com paciência, falando-lhe carinhosamente, O sofrimento clele devia seÌ' horrível: tão grande
partindo tudo em pedacinhos, zu insistia para que que, apesar da docilidade com que deixava eu fazer-
ele comesse. Quase que para me agradar, ele aced.ia, -lhe o curativo inútil, suspendi aquelas lavagens que
num esforyo infinito, em comer alguna coisa. Dava- o torturavam mais. Não era, porém, só a ferid,a, se
-lhe de beber, e a água eseorria pelos cantos do bico. era ferida, o que }he doía. Era-lhe igualmente dolo-
Foi então que, no meu colo, ele deu em recordar rosa a perda do seu garbo, da sua altivez, da elegân-
teimosamente, com escândalo de minha mãe que cia majestosa das suas penas brilhantes. Quantas
deixou de tratá-lo, o rqtortório antigo. Murmurada- vezes, arrastando-se, ele tentava erguer-se nas per-
mente dina de enfiada coisas que eu nunca lhe ou- nas e nos músculos fracos, para, de cabeça ao alto,
vira, frases, ordens de navegapo e manobra, pala- com o olho já afogado no mal que o roía, espanejar-
wões, palavras em línguas que eu não reconhecia. -se ainda, olhar-me com amistosa sobranceria, en-
Como em sonhos, recostado nos meus braços, arre- saiar um começo de cantiga. Logo recaía na dor-
piando-se às vezes, repetia sern descanso tudo o que mência falante, em que arrepios ligeiros o percorriam
decorara na sua longa vida, e o que não decorara, e para terminarem irum aperto de pata no meu dedo.
o que ouvira no convés de navios, em 1rcrtos de todo Eu levava-o para o pé do piano, acomodava-o em
o mundo, entre a marirúagem de todas as cores. almofadas na cadeira, tocava-lhe as suas músicas.
A sua verdura, agora, tão esmaecida e pelada, tío Ele agitava-se num contentamento longínquo, de
riça, desdobrava-se em ondulações de vagas, em quem jâ não ouvia bem e se despegava do mundo,
apitos de manobra, errÌ pregões marinhos, em lin- e recostava na almofada a cabecita, no estertor rou-
guajares que tinham no seu som estalado a fúria fenho que era a sua conversa solitária, onde palavras
e o tumulto dos trópicos multicores e a amplidão mal se distinguiam.
azt:t dos mares espumejantes. Era Ìrma ardência Um dia,"quando, arquejante da rua e das escadas,
mecânica que eu escutava debruçado sobre ele, e se cheguei à varanda, o Papagaio Verde estava inerte
ilustrava, na minha imaginação, de velhas gravuras no canto da gaiola, com o bico pousado no chão.
com Índios de penas na cabeça e grandes barcos an- Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão
corados em baías de água lisa e límpida em que se auscultei-o longamente. Não moÌTera ainda. Levei-o

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OS GRÃO-CAPIT,iI.ES |IOMI:'\AGÌ-:M AO PAPAGAIO VERDE

para & s&la, deitei-o nas almofadas, prurei a cadeira sabia, pelas manchas na empena sobranceira, onde
pera junto do piano, e, enquanto com oa dedos da ela estava, e adivinhava, sob o canteiro florido, o
mão esquerda lhe apertava a pata, toquei só com meu Papagaio Verde.
a direita a música de que ele gostava mais. As lágri- A minha solid.ão tornara-se total. Meu pai ia e
mas embaeiavam-me as teclas, não me deixav&rn ver vinha, s€m que sequer a chegada das bagagens me
distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os incitasse a reconhecer-lhe e presença mítica. E, na
meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre bisonhice que eu cultivava contra tudo e todos, como
ele, e as unhas dele cravar&rn-sÈme no dedo. Mexeu na sobranceria com que me mostrava ostensivamente
a cabeça, abriu para mim um olho espantado, res- agoniado num regime doméstico que, de viagem para
moneou ciciadas algumas sílabas soltas. Dqlois, ficou viagem, se azedava, havia como que uma herança
imóvel, só com o peito alteando-se numa respiração espiritual de bicadas abmptas. Cheguei mesmo a
irregular e funda. Então abriu descaidamente as torturar o Papagaio Cinzento.
asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, ê estendzu o bico
para mim. Amparei-o pousado no bra4o da cadeira, Uma tarde, à mesa, estalou a discussão entre meu
onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis pai e minha mãe, precisamente num jantar de che
endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas gada, a que, como de costume, meus tios assistiam.
minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas, aper- Eu declarei categoricamente que os detestava a to-
tou-me com força o dedo na sua pab, e disse numa dos, e, atirando com a cadeira por imitação de vio-
voz clara e nítida, dos seus bons tempos de chamar lência, levantei-me para a varanda, perseguido por
os vendedores gue passavarn na rua: Filhos da um bofetão de meu tio. Lutei contra ele que me
puta! Eu afaguei-o suavemente, chorando,- e senti agarrava, e contra meu pai que o agaÌTava a ele,
que a-pats esmorecia no meu dedo. Foi a primeira e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra
pessoa que eü vi morrer. a minha tia que os agarrava a. todos; e vendo, num
Consegui que os vizinhos de baixo mo deixassem relance enublado, aquele cacho humano a disputar-se
entenar no extremo do quintal. &nbmlhei-o num a primazia de castigar-D€, a voz embargou-se-me em
pano, procurei desesperadamente uma caixa que lhe gritos de choro desatado: Ninguém é meu amigo,
serwisse, atravessei pé ante pe a casa dos meus ceri-
- o Papagaio Verde é meu
ninguém é meu amigo. . . Só
moniosos vizinhos, desci ao quintal com a caixa de- amigo.
baixo do braço, escavei uma cova bem funda, dqus A luta suspendeu-se numa gargaÌhada alvar, que
a caixa, tapei-a, calcando a terra, e juntei-lhe em cima escorria babada pelos guardanapos deles. Eu fiquei
Ìrm montinho de pedras, com flores disfarça.damente de costas, buscando com os olhos, lá em baixo, no
sumipiadas ao canteiro, entaladas entre elas. E, da quintal, o recanto em que jazia o Papagaio. E ouvi
varanda, €r[ dias seguidos, êü contemplava aquela distintamente a sua voz aguda e clara, dominadora
sepultura pequenina, adjacente à imensa empena do e viril, sareâstica e displicente, raivosa e cheia de
prfiio contíguo, e que a cerimónia havida com os carácter, a proclamar, num grande voo de asas ver-
vizinhos não me permitia de cuidar. Viera,m chuvas, dos, o juízo final que murmurara ao morrer. Não
veio o jardineiro, a sepultura desapareceu. Mas eu eram. Em verdade, não eram sequer isso, cujo sen-

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OS GRÃO-CAPIT.4,ES

tido eu não sabia então claramente. A vida, desde


então, não me esclareeeu muito; mas creio firme-
mente que, se há anjos-da-guarda, o meu tem asas As ftes e <l
verdes, e sabe, para consolar-me na,s horras mais
amartasr, o8 ma.is rudes palawões dos sete mares.
FÌegrrlarnerrto
Assis, 3-6-61 e Araraquara, 26-6-62.

Le guerrôer est broue et sublime


parce qu'il ne sait pas ce qu'il fait.

Vigny

<rPenafiel, 1941>

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