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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC

CENTRO SÓCIO ECONÔMICO - CSE


DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS - CNM
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS

Eduardo Coelho Lopes

Pequenas Empresas e Grandes Negócios: a relação entre informalidade e


empreendedorismo no Brasil

Florianópolis
2021
Eduardo Coelho Lopes

Pequenas Empresas e Grandes Negócios: a relação entre informalidade e


empreendedorismo no Brasil

Monografia apresentada ao Departamento de


Economia e Relações Internacionais da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito obrigatório para a obtenção do título
de Bacharel em Ciências Econômicas.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Lara

Florianópolis
2021
Lopes, Eduardo Coelho
Pequenas Empresas e Grandes Negócios: : a relação entre
informalidade e empreendedorismo no Brasil / Eduardo
Coelho Lopes ; orientador, Ricardo Lara, 2021.
72 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -


Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Sócio
Econômico, Graduação em Ciências Econômicas, Florianópolis,
2021.

Inclui referências.

1. Ciências Econômicas. 2. Padrão de Reprodução de


Capital. 3. Informalidade. 4. Empreendedorismo . I. Lara,
Ricardo. II. Universidade Federal de Santa Catarina.
Graduação em Ciências Econômicas. III. Título.
Eduardo Coelho Lopes

Pequenas Empresas e Grandes Negócios: a relação entre empreendedorismo e


informalidade no Brasil

Florianópolis, 16 de Setembro de 2021.

O presente Trabalho de Conclusão de Curso foi avaliado e aprovado pela banca examinadora
composta pelos seguintes membros:

Prof.(a) Ricardo Lara, Dr.(a)


Universidade Federal de Santa Catarina

Prof.(a) Lauro Francisco Mattei, Dr.(a)


Universidade Federal de Santa Catarina

Prof.(a) Adriana D’Agostini, Dr.(a)


Universidade Federal de Santa Catarina

Certifico que esta é a versão original e final do Trabalho de Conclusão de Curso que foi
julgado adequado para obtenção do título de Bacharel em Economia por mim e pelos demais
membros da banca examinadora.

____________________________
Prof.(a) Ricardo Lara, Dr.(a)
Orientador(a)

Florianópolis, 2021
Face ao atraso e à penúria, ser capaz de diagnosticar suas causas,
denunciar os danos que acarretam e, ainda, prever as possibilidades de
progresso contidas em cada situação. Dentro desta postura analítica,
critica e prospectiva passam a ter igual peso dois tipos de preocupação:
a explicativa, que deve alcançar maior rigor científico ao
intencionalizar·se para servir à ação transformadora; e a valorativa, que
precisa tornar·se persuasória para aliciar as forças potencialmente
renovadoras. Na verdade, ambas têm limites precisos. Nem a
explicativa pode ser um discurso inconsistente e desinteressado sobre
questões irrelevantes; nem a valorativa pode entrar em contradição com
a explicativa.

Darcy Ribeiro

Saio do trabalho
E volto para casa
E não lembro de canseira maior
Em tudo é o mesmo suor

Milton Nascimento
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Selma e José, e à minha irmã Elaine; por todo o esforço que permitiu
a minha entrada e permanência na universidade, e pelo apoio e respeito incondicional por todas
as minhas escolhas até aqui. Este trabalho é também fruto do trabalho de vocês.

Aos amigos, colegas, professores e camaradas que sempre se mantiveram firmes na luta pela
universidade popular e por um ensino de economia menos dogmático e manualesco, e
verdadeiramente comprometido com os problemas cotidianos que assolam nosso povo; a vocês
devo a minha formação, minha indignação e minha convicção de que outro mundo é possível!

À Nathalia; por me compreender como mais ninguém, e por me permitir compartilhar toda uma
vida ao seu lado.

À tantos amigos que me acompanharam ao longo desta caminhada, e que são profundamente
responsáveis por eu ser quem sou. À Cinthia, por ser uma grande referência desde o início da
graduação. À Adriana, Eduardo, Giuliano, Victoria, Samuel, Leonardo, Mariana, Isadora, e
tantos outros, por tudo que vivemos. À Laryssa, César, Thays e Rafael, por serem uma
verdadeira família para mim.

À Elisa, Gregório e Mariah; pela sorte de tê-los por perto nos divãs da Ponto de Vista em que
compartilhamos as angústias, incertezas e alegrias que o isolamento nos provocou.

Ao meu orientador, Prof. Ricardo Lara; por toda a liberdade e apoio ao longo do
desenvolvimento desta pesquisa, e por ser uma grande referência teórica.

A todos vocês, muito obrigado!


RESUMO

O desemprego e a informalidade são elementos essenciais à funcionalidade da economia


dependente, e se expressam em maior ou menor grau de acordo com as exigências de cada
momento histórico. A derrocada do padrão industrial brasileiro implode nos anos 1980 com a
crise de hiperinflação e tem em seu marco o Plano Real, que promove uma reestruturação
produtiva que irá impactar diretamente o mercado de trabalho no Brasil. Com a transição para
o novo padrão de especialização produtiva, as políticas de emprego passam a promover o
autoemprego através do fomento às micro e pequenas empresas e ao fortalecimento da ideologia
do empreendedorismo. Desta forma, os pequenos negócios cumprem uma função vital à
reprodução de capital no país, na medida em que alocam parcela significativa da
superpopulação relativa que não é incorporada pelo novo eixo produtivo.

Palavras-chave: Informalidade; Empreendedorismo; Dependência; Padrão de Reprodução de


Capital
RESUMEN
El desempleo y la informalidad son elementos esenciales para la funcionalidad de la
economía dependiente, y se expresan en mayor o menor grado según las demandas de cada
momento histórico. El colapso del estándar industrial brasileño implosionó en la década de
1980 con la crisis de la hiperinflación y tiene en su marco el Plano Real, que promueve una
reestructuración productiva que impactará directamente el mercado laboral en Brasil. Con la
transición al nuevo patrón de especialización productiva, las políticas de empleo comenzaron a
promover el autoempleo a través de la promoción de la micro y pequeña empresa y el
fortalecimiento de la ideología empresarial. De esta forma, las pequeñas empresas juegan un
papel vital en la reproducción del capital en el país, ya que destinan una porción significativa
de la sobrepoblación relativa que no es incorporada por el nuevo eje productivo.

Palabras clabe: informalidad; Emprendimiento; Dependencia; Patrón de


reproducción del capital
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

APL Arranjos Produtivos Locais


BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CEBRAE Centro Brasileiro de Apoio à Média e Pequena Empresa
CEPAL Comissão Econômica Para América Latina e Carive
CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas
DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
EPP Empresa de Pequeno Porte
Fampe Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas
FGV Fundação Getúlio Vargas
Geampe Grupo Executivo de Assistência Técnica à Média e Pequena Empresa
GEM Global Entrepreneurship Monitor
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INPC Índice Nacional de Preços do Consumidor
IPEA Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
ME Microempresa
MEI Microempreendedor Individual
MPE Micro e Pequena Empresa
OCDE Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
PAEG Programa de Ação Econômica do Governo
PEA População Economicamente Ativa
PIA População em Idade Ativa
PIB Produto Interno Bruto
SEBRAE Serviço Brasileira de Apoio Às Micro e Pequenas Empresas
SIMPLES Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas
e Empresas de Pequeno Porte
SUMOC Superintendência da Moeda e do Crédito
URV Unidade Real de Valor
LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Indicadores de Informalidade no Brasil (1994 – 1998) .......................................... 37


Tabela 2: Índice de Desenvolvimento do Mercado Financeiro (Fórum Econômico Mundial) 57
Tabela 3: Índice de Desenvolvimento Financeiro (Fundo Monetário Internacional) .............. 58
Tabela 4: Financiamento da Micro e Pequena Empresa no Brasil (2013-2017) ..................... 60
Tabela 5: Salário relativo em países selecionados da América Latina e da OCDE ................ 62
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Empreendedorismo por oportunidade e necessidade como proporção da taxa de


empreendedorismo inicial no Brasil 2002 - 2017 .................................................................. 46
Gráfico 2- Motivos para Empreender (Canadá, Estados Unidos e Australia)......................... 46
Gráfico 3 - Total de Empresas por Porte no Brasil 2021 ....................................................... 49
Gráfico 4– Distribuição percentual das MPE’s por setor da economia 2021 ......................... 49
Gráfico 5 - Total de Emprego por Porte de Empresa............................................................. 50
Gráfico 6 -- Saldo de Vagas de emprego geradas por porte de empresa e ano ....................... 50
Gráfico 7- Empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada (em milhares) –
2014 a 2018 ......................................................................................................................... 51
Gráfico 8- Posição por Domicílio dos Empreendedores no Brasil ......................................... 52
Gráfico 9- Posição por Domicílio dos Empreendedores no Brasil ......................................... 53
Gráfico 10 - Carga de Trabalho Semanal dos Empreendedores ............................................. 53
Gráfico 11- Concessão de crédito por instituição financeira ................................................. 59
Gráfico 12- Produtividade relativa em países selecionados da América Latina e da OCDE (Em
%) ........................................................................................................................................ 62
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO ........................................................................................ 13


1.1 TEMA E PROBLEMA DE PESQUISA .................................................................... 13
1. 2 OBJETIVOS ................................................................................................................. 14
1.2.1 Objetivo Geral............................................................................................................. 14
1.2.2 Objetivos Específicos .................................................................................................. 14
1.3. METODOLOGIA ......................................................................................................... 14
1.4. REFERENCIAL TEÓRICO .......................................................................................... 15
CAPITULO 2. A CONSTITUIÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO ASSALARIADO
NO BRASIL ....................................................................................................................... 17
2.1 A CONDIÇÃO LATINOAMERICANA ........................................................................ 17
2.2 O DESENVOLVIMENTO DO SUBDESENVOLVIMENTO ........................................ 25
2.3 A CRISE E A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ..................................................... 33
CAPITULO 3: AS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS ................................................ 40
3.1 O PAPEL DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO DESENVOLVIMENTO
CAPITALISTA.................................................................................................................... 40
3.2 A CRISE DO CAPITAL E AS PEQUENAS EMPRESAS ............................................. 42
3.3 PANORAMA DAS MICRO E PEQUENO EMPRESAS NO BRASIL .......................... 48
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 64
13

CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO

1.1 TEMA E PROBLEMA DE PESQUISA

O esforço da análise de pensar o Brasil prescinde da compreensão das determinações


socioeconômicas que implicam a realidade. A economia como matriz de reprodução da
vida social possui específica importância nesse quesito, na medida em que se desdobram
de sua estrutura problemas crônicos como a desigualdade social, o desemprego e a
informalidade. Ao contrário das explicações fenomênicas atribuídas a estes elementos, a
que se sugerem serem derivados de políticas econômicas relativas à cada momento
histórico em que se tornam explícitas as contradições capitalistas, uma compreensão mais
próxima à complexa realidade brasileira só é passível de ocorrer se compreendendo a
natureza do modo de produção brasileiro, seu padrão de reprodução e suas implicações
no mundo do trabalho. No atual padrão de reprodução de capital, as micro e pequenas
empresas cumprem papel fundamental na sustentação econômica, política e ideológica
deste modo de produção (MALAGUTI, 2000), alocando a superpopulação relativa não
absorvida pela indústria e instituindo ideologicamente a superação individual como
resposta às grandes questões nacionais.
A implementação do Plano Real em 1994, decorrente do descontrole inflacionário e
da crise do modelo de industrialização brasileiro, reformulou o padrão de reprodução de
capital no país, instituindo a abertura comercial, o superávit primário e o sistema de metas
de inflação como política nacional e ainda, promovendo a chamada reestruturação
produtiva, que transformou profundamente o mundo do trabalho e implicou em um
aumento drástico dos índices de desemprego e informalidade. Neste contexto, o
empreendedorismo se consolidou como a resposta ideológica dominante aos problemas
reais dos trabalhadores (MALAGUTI, 2000) que viram sua condição de vida se deteriorar
drasticamente, aumentando expressivamente os micro e pequenos negócios – que
crescem anualmente no Brasil.
Dessa forma, este trabalho se propõe a analisar as micro e pequenas empresas e
responder as seguintes questões: Qual a função que cumprem as micro e pequenas
empresas no processo de reprodução de capital no Brasil? Qual a relação entre pequenos
negócios e informalidade no Brasil? Como o Estado brasileiro incentiva as micro e
pequenas empresas?
14

1. 2 OBJETIVOS

1.2.1 Objetivo Geral

Investigar as determinações econômicas, políticas e ideológicas das micro e


pequenas empresas no Brasil.

1.2.2 Objetivos Específicos

i. Descrever o processo de formação e consolidação do mercado de trabalho


assalariado brasileiro até os anos 1980.
ii. Discutir o processo de auge e declínio do padrão industrial brasileiro e a
emergência do atual padrão de reprodução pautado pela especialização
produtiva.
iii. Analisar o papel das micro e pequenas empresas no processo de reprodução de
capital no Brasil.

1.3. METODOLOGIA

A pesquisa será conduzida a partir da análise teórico-bibliográfica e documental


de caráter qualitativo e quantitativo, numa perspectiva de investigação que compreende a
relação entre o objeto e a realidade socioeconômica através da produção teórica que o
fundamente e dos documentos disponíveis do período em questão que permitam analisá-
lo com o devido rigor. A pesquisa bibliográfica busca referenciar a discussão proposta na
problematização, através da revisão de textos, artigos e teses produzidas por autores
relevantes do tema. A pesquisa documental se debruçará através de fontes como tabelas
estatísticas, relatórios, projetos de lei, discursos, informativos, depoimentos orais e
escritos (SANTOS, 2000) e demais documentos que possuam relevância para o tema.
Para tanto, o presente estudo está sistematizado em três eixos centrais:
i) Análise das determinações da economia capitalista e a especificidade da
economia brasileira
ii) Análise da formação e constituição do mercado de trabalho brasileiro na
década de 1980 e suas transformações após o Plano Real
iii) Análise das especificidades das micro e pequenas empresas brasileiras e a sua
relação com a informalidade
15

A análise das determinações da economia global e da especificidade da economia


brasileira ocorrerá através da revisão de bibliografia de autores que utilizam categorias
da crítica da economia política (modo de produção, trabalho, transferência de valor,
acumulação de capital, reprodução de capital, superpopulação relativa) e permitirá uma
contextualização socioeconômica do objeto a ser estudado.
Para analisar a constituição do mercado de trabalho no período de 1980 e as
transformações ocorridas a partir da década de 1990, nos debruçaremos sobre bibliografia
crítica do campo da Economia e Sociologia do Trabalho, bem como a análise estatística
de dados do período referente à ocupação da força de trabalho no mercado brasileiro,
fornecida pelas séries históricas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
disponível em diversos estudos sobre o tema.
Para discutir as especificidades das micro e pequenas empresas brasileiras, será
analisada sua categorização em diferentes campos, através da análise de bibliografia de
autores do campo da crítica da economia política e análise de discursos veiculados em
instituições midiáticas, governamentais e não governamentais. A análise documental se
concentrará em documentos de instituições como o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE) e demais estudos que utilizem as bases do IBGE, que permitam
distinguir a participação destes empreendimentos na economia brasileira setorialmente,
bem como mensurar seus respectivos graus de produtividade, remuneração e quantidade
de horas trabalhadas.

1.4. REFERENCIAL TEÓRICO

Conforme a sistematização apresentada na Metodologia, a presente pesquisa se


estrutura a partir de três eixos centrais. A análise das determinações da economia
capitalista e a especificidade da economia brasileira utilizará como referencial teórico,
obras do campo da crítica da economia política, a começar por Marx (2013) onde se
apresentarão algumas categorias de análise para concepção do modo de funcionamento
da economia capitalista, tais como modo de produção, trabalho, acumulação de capital,
reprodução ampliada e simplificada de capital, superpopulação relativa. Para a
contextualizar o modo de produção brasileiro, se utilizará Marini (1991), que insere novas
categorias de análise que demarcam as especificidades nacionais, como o intercâmbio
desigual, a superexploração da força de trabalho e a limitação do mercado interno, e por
fim, através da obra de Osório (2012) será possível distinguir o novo padrão de
reprodução de capital brasileiro em vigor a partir dos anos 1990.
16

Para a análise da formação e constituição do mercado de trabalho brasileiro se


utilizará Kowarick (1994), que realiza uma leitura histórica da transição do modo
escravista para o assalariamento livre no Brasil e aponta as determinações dessa estrutura
na informalidade como constituinte do mercado de trabalho brasileiro, e Barbosa (2016),
que também realiza uma leitura histórica do processo de industrialização, crise e
constituição do mercado de trabalho na década de 80. Para analisar a crise dos anos 80,
Marini (1992) apresenta uma leitura crítica da crise de endividamento externo e contribui
para a leitura das transformações na estrutura produtiva que viriam a desembocar no Plano
Real. Antunes (2008) analisa com especial atenção essas transformações, discorrendo
sobre modelos de produção fordista e taylorista, a flexibilização do trabalho e a sua
centralidade para o capital.
Para compreender as especificidades das micro e pequenas empresas brasileiras e a
sua relação com a informalidade, essa pesquisa se utilizará de obras como Malagutti
(2000), que defende que as MPE’s são saídas individuais para a crise social; Fernandes
(2019) demonstra como a ideologia do empreendedorismo emerge necessariamente no
bojo das reformas neoliberais da década de 90 como resposta à crise. Para expandir o
panorama das MPE’s no Brasil e sua relação com a estrutura econômica nacional, se
utilizará a análise de diversos relatórios e compilação de dados do SEBRE, Banco Central
do Brasil e IBGE. Por fim, Osório (2012) aprofunda a categoria de padrão de reprodução
de capital, contribuindo para as reflexões desta pesquisa em compreender qual o papel
que cumprem as micro e pequenas empresas para a economia brasileira.
17

CAPITULO 2. A CONSTITUIÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO


ASSALARIADO NO BRASIL

2.1 A CONDIÇÃO LATINOAMERICANA

O desemprego, o subemprego e a informalidade são problemas crônicos na economia


capitalista, que se evidenciam em maior ou menor grau a partir dos movimentos de
expansão e crise do capital. Segundo Meszaros (2011), a crise estrutural decorrente do
impulso de autoexpansão do capital implica em consequências devastadoras para os
trabalhadores. O desemprego fundamenta-se na contradição antagônica da busca de lucro
e acumulação do capital, que não condiz com os princípios de satisfação racional e
humana.
Não muitos anos atrás era confiantemente previsto que todos os males sociais
conhecidos, mesmo nas mais "subdesenvolvidas" partes do mundo, seriam
ultrapassados pela "modernização" universal, em conformidade com o modelo
americano. Caracteristicamente, contudo, somos agora confrontados por algo
diametralmente oposto àquele quadro róseo. Pois as condições outrora
confinadas, nos contos da "teoria do desenvolvimento" e da sabedoria
governamental, às supostamente temporárias dificuldades do
"subdesenvolvimento" estão agora a tornar-se claramente visíveis mesmo nos
mais desenvolvidos países capitalistas. (Meszaros, 2005, p. 05)

Segundo Marx (2013) o emprego e o desemprego da força de trabalho


acompanham os processos de acumulação de capital emdois movimentos que formam a
lei geral da acumulação capitalista: 1) O aumento do preço da força de trabalho e
multiplicação do proletariado, decorrente do aumento de capital e de sua necessidade de
valorização 2) A diminuição relativa do capital variável na composição orgânica de
capital, e a consequente queda dos salários dado o aumento do contingente da força de
trabalho. Através dessa alteração na composição orgânica do capital, surge como
necessidade de valorização um exército industrial de reserva, isto é, força de trabalho
disponível ao capital, mas não empregada no setor produtivo que cumprem a função de
rebaixar os salários desta economia.
Nas nações subdesenvolvidas, estes elementos combinam-se de forma
indissociável à dinâmica de reprodução de capital, que essencialmente nega o trabalho e
o consumo à classe trabalhadora. Nestes países, a superpopulação que não é absorvida
pelas frágeis estruturas produtivas submete-se à postos de ocupação precários na
indústria, no comércio e nos serviços, mal remunerados e com poucas garantias
trabalhistas.
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No Brasil, a forma e estrutura do mercado de trabalho é a síntese de um passado


escravista e colonial, de uma frágil e tardia industrialização e de uma reestruturação
produtiva regressiva pautada pela reprimarização da economia. Em suma, o mercado de
trabalho brasileiro é fruto de sua imbricação dependente à economia global, cujo
desenvolvimento esteve sempre atrelado aos centros capitalistas e profundamente
marcada pela existência de uma superpopulação relativa, uma massa de desempregados
que cumpre a vital função de rebaixar salários e aumentar as margens de lucro das classes
dominantes locais.

A concepção marxista concebe o capital como uma relação social que pressupõe
uma reprodução ampliada de suas condições de existência, a saber, um modo de produção
sustentado pela propriedade privada dos meios de produção, e da venda da força de
trabalho por uma massa de trabalhadores aos detentores destes meios de produção. A
produção de valor ocorrerá por meio do trabalho vivo – o capital variável, que juntamente
ao capital constante (máquinas e equipamentos) produzirá os bens de consumo e de
capital a que todos temos acesso. O lucro dos capitalistas se desdobrará da apropriação
do excedente produzido pelos trabalhadores, ou seja, pela exploração de sua força de
trabalho e apropriação privada desta produção essencialmente social.

Marx (2013) descreve a lei de acumulação de capital em três pontos. No momento


inicial de acumulação há uma demanda crescente por força de trabalho que será
integralmente incorporada ao sistema de produção até o nível em que o aumento de capital
torna insuficiente a força de trabalho explorável, ocasionando na diminuição relativa da
parte variável que produzirá uma superpopulação relativa, um exército industrial de
reserva que servirá como excedente em relação a necessidade média de valorização de
capital.

Na primeira etapa, o crescimento de capital implica necessariamente em uma


maior demanda por capital variável, produtor de valor, aumentando proporcionalmente a
força de trabalho e o nível dos salários. Seguido deste aumento no preço da força de
trabalho, tem-se sua diminuição na medida em que esta deve acompanhar a necessidade
de valorização de capital, que vê seu valor relativo diminuído dado o aumento de
produtividade que decorre do avanço das forças produtivas. Tem-se então a criação de
uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva que cumpre a função de
equilibrar a relação da composição orgânica de capital.
19

O limite para o emprego de trabalhadores é o mesmo, a saber, a possibilidade


de o proprietário obter um lucro. Se a taxa de salário sobe tanto que o lucro cai
abaixo do lucro médio, ele deixa de ocupá-las ou rebaixa o salário. (...) A
acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua energia
e volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, e,
portanto, supérflua. (MARX, 2013, p.462)

Essa superpopulação existirá de diferentes formas de acordo com os momentos


históricos e o desenvolvimento produtivo de cada formação social. A superpopulação
latente se formará com a industrialização do campo, decrescendo em termos absolutos na
medida em que se acumula o capital, e produzindo um intenso deslocamento de
trabalhadores do campo para a cidade. Na indústria moderna o incremento da
produtividade terá como consequência a queda da parcela variável da composição
orgânica do capital, promovendo uma massa de desempregados, decrescente de acordo
com a faixa etária que irá compor uma superpopulação flutuante à indústria, que será
incorporada ao desenvolvimento industrial de acordo com seus ciclos de expansão. Por
fim, os indigentes, os órfãos e filhos dos indigentes, os degradados e incapacitados para
o trabalho irão compor a superpopulação relativa estagnada, aquela que se submete ao
máximo de tempo de trabalho e o mínimo de salário, composta pelos trabalhadores
supranumerários da indústria e do campo, reproduzindo e perpetuando a si mesmas na
medida em que sua condição de vida está completamente controlada pelo nível de
produção e distribuição da riqueza social. Para Marx (2013), “quanto maior forem as
camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, maior será o
pauperismo oficial. ”

Respeitando as particularidades de cada formação econômica, a compreensão do


processo de acumulação de capital ganha mediações históricas que vão além de uma
transposição mecânica dos conceitos utilizados por Marx. No Brasil, os mecanismos
fundantes dessa superpopulação relativa têm em suas raízes o período colonial, mas é
somente ao longo da constituição do mercado de trabalho assalariado que ela se
concretiza.

Segundo Kowarick (1994) a transição para o regime de assalariamento ocorreu


por meio do impedimento do acesso à terra aos trabalhadores, conformando o
impedimento objetivo ao trabalho e submetendo uma massa de força de trabalho
inteiramente aos interesses do capital. Através de marcos institucionais como a lei de
terras de 1850 e os contratos de parceria, em que os imigrantes submetiam as dívidas
20

advindas de sua migração ao trabalho não remunerado, o capital ao longo de seu


desenvolvimento na economia dependente garantiu a destruição das formas autônomas
de subsistência da classe trabalhadora brasileira, atando os trabalhadores às terras dos
senhores e mantendo o latifúndio como estrutura agrária hegemônica.

Para Barbosa (2016) em uma perspectiva de longa duração, são três os momentos
históricos determinantes do mercado de trabalho brasileiro: 1) o não mercado de trabalho
esterilizava o capital sob a forma do escravo. Sem haver uma economia formal, os
serviços e comércio urbano passaram a ser ocupados de forma autônoma pelos livres
brancos, mulatos e negros libertos; 2) a lenta transição demarcou uma nova configuração
espacial das relações de trabalho entre 1850 e 1930, de intensa regulação estatal de
condições trabalhistas e; 3) nacionalização e consolidação do mercado de trabalho,
quando a realização de capital passa a se dar no mercado interno.

Kowarick (1994) enxerga que a formação escravista brasileira estava subjugada


ao desenvolvimento do capital, de forma que o trabalho em cativeiro surgia como uma
necessidade à acumulação primitiva de capital através da não repartição da terra (própria
ao regime de assalariamento). O autor insere que “por definição, o sistema colonial
impedia o surgimento de circuitos econômicos internos, na medida em que eles entravam
em conflito com os interesses da burguesia mercantil metropolitana”. Enquanto a
tendência ao monopólio internacional guinado pelos industriais europeus se concretizava
no plano global, a estrutura colonial latino-americana aprofundava-se na concentração
fundiária e monocultura da produção. Para Gorender (1990) o regime que o autor
denominou de capitalismo primitivo e agroexportador, definia um tipo de capitalista que
ao contrário dos seus pares dos países centrais, não se definia pelo capital como meio de
produção, mas sim pela terra, e cuja acumulação ocorria através da capitalização da renda
da terra até sua transformação definitiva em capital.

As determinações dos países periféricos configuram uma estrutura produtiva


monopolista no campo e, segundo Kowarick (1994), a formação de um mercado de
trabalho assalariado pautada pelo impedimento objetivo e subjetivo de acesso ao trabalho.
Para o autor “o processo de produção capitalista cria o excedente mediante uma
modalidade especifica de subjugar o trabalhador: este deve ser livre e expropriado”.
21

Sem um mercado interno consolidado por um regime de assalariamento, os


homens livres foram condicionados às economias de subsistência (brancos, índios, negros
libertos, mulatos, cafuzos e mamelucos). Para Kowarick(1964), numa sociedade
escravocrata, aqueles que não eram senhores perdiam sua razão de ser e “dessa forma, só
restaria o trabalho ocasional, a atividade de subsistência ou o perambular pelos campos e
cidades”. Na segunda metade do século XIX, na medida em que a mão de obra
escravizada era liberada e a mão de obra livre negava-se ao trabalho por referencia-lo ao
trabalho escravo, a forte imigração europeia constituiu um outro fator para o mercado de
trabalho em constituição e, na medida em que se desenvolvia o empreendimento cafeeiro
no centro sul do país, promovia-se uma economia assalariada utilizando-se do elemento
nacional na figura dos homens livres e ex escravos e do elemento estrangeiro advindo dos
fluxos de migração europeus.

Estas conformações sócio históricas estão inseridas num amplo contexto de


desenvolvimento capitalista global, em que o Brasil se integra ao sistema de produção
como nação periférica. Como propõe Gunder Frank (1965), deve-se adotar um modelo
de análise entre satélite-metrópole a nível regional e global que enxergue as tendências
de polarização sistêmica mundial/nacional/provençal/local/setorial de um sistema que o
autor caracteriza como “marcado por flutuações e transformações na estrutura produtiva
que altera a forma de dominação entre satélite e metrópole”. Assim, o período escravista
do não mercado de trabalho assalariado, a lenta transição e a nacionalização do mercado
de trabalho obedecem, em última instância, ao movimento global de acumulação de
capital, a partir dos laços entre as (ex) colônias e suas metrópoles num processo de
produção integrado.

Segundo Marini (2017), a América Latina se forma em meio a expansão


mercantilista de um sistema global capitalista em formação. A integração do
subcontinente ao mercado global acontece por uma dupla necessidade: o fornecimento de
matérias-primas e o consumo de bens leves de produção. Neste período, as exportações
latino-americanas concentram-se em alimentos (cereais, açúcar, café, carnes) e matérias-
primas (cobre, couro, lã), e possibilitam tanto o rebaixamento do salário real pela redução
do preço dos alimentos, como também o rebaixamento dos custos de produção e o
estimulo à especialização produtiva através das matérias primas necessárias para o
processo produtivo. Através do crédito público e privado inglês, desenvolveu-se uma
estrutura colonial que possibilitou uma infraestrutura básica e condições políticas estáveis
22

para manter um sistema de escoamento da produção e importação de bens, que desde o


início imbricou o desenvolvimento latino-americano ao desenvolvimento dos países
centrais e em especial a economia britânica.

Para o autor, deve-se diferenciar a condição colonial da condição dependência,


pois ainda que uma seja continuidade da outra, há uma mudança de caráter qualitativo
entre as duas. A condição plenamente dependente das economias latino-americanas
ocorre por meio de sua oferta mundial de alimentos para a nascente indústria moderna,
que permitirá aos centros uma especialização produtiva e aumento de produtividade, que,
por sua vez, formará também o mercado de matérias-primas latino-americano.

Marini (1991) destaca ainda que a industrialização nos países centrais pressupõe
um aumento na composição orgânica de seu capital, que através da absorção de máquinas
e equipamentos – e, portanto, de trabalho morto – diminuirá a extração de mais valor da
força de trabalho, levando a uma queda na taxa de lucro. A oferta de alimentos e matérias-
primas a preços baixos surge como necessidade parar superar esse obstáculo da
industrialização, na medida em que diminuindo o preço dos bens básicos de subsistência,
aumenta-se seu salário real, equilibrando novamente a taxa de lucro dos capitalistas.

Assim sendo, o que é apropriado pelo capitalista não é diretamente a mais-


valia produzida, mas a parte desta que lhe corresponde sob a forma de lucro.
Como a taxa de lucro não pode ser fixada apenas em relação ao capital variável,
mas sobre o total do capital adiantado no processo de produção, isto é, salários,
instalações, maquinário, matérias-primas etc, o resultado do aumento da mais-
valia tende a ser — sempre que implique, ainda que seja em termos relativos,
uma elevação simultânea do valor do capital constante empregado para
produzi-la — uma queda da taxa de lucro. Essa contradição, crucial para a
acumulação capitalista, é contraposta por diversos procedimentos que, desde
um ponto de vista estritamente produtivo, se orientam tanto no sentido de
incrementar ainda mais a mais-valia, no intuito de compensar a queda da taxa
de lucro, quanto no sentido de induzir uma baixa paralela no valor do capital
constante, com o propósito de impedir que o declínio se apresente. Na segunda
classe de procedimentos, interessa aqui o que se refere à oferta mundial de
matérias-primas industriais, a qual aparece como contrapartida — desde o
ponto de vista da composição-valor do capital — da oferta mundial de
alimentos. Tal como se dá com esta última, é mediante o aumento de uma
massa de produtos cada vez mais baratos no mercado internacional, que a
América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da produção
capitalista nos países industriais, mas também contribui para que sejam
superados os obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital
cria para essa expansão. (MARINI, 1991)

Dessa forma, o intercâmbio desigual aparecerá como o fenômeno central que


estrutura a relação de dependência. A deterioração dos termos de troca fundamenta-se
como uma transgressão à lei do valor, na medida em que o valor das mercadorias expresso
23

nos preços comercializados no mercado mundial não corresponde ao valor trabalho


incrementado em sua produção. As economias industriais que monopolizam a produção
de bens manufaturados fixam um preço acima do seu valor na medida em que alcançam
um grau de produtividade que lhe permite essa possibilidade, e as economias periféricas
submetem-se a esta condição ao optarem por um mecanismo de compensação interno
pautado pela superexploração da força de trabalho.

Segundo o autor, a perda de renda ocasionada no comércio internacional é


sustentada, na economia dependente, pela intensificação da exploração do trabalhador ao
invés do aumento da capacidade produtiva do trabalho. Este mecanismo de compensação
é chamado pelo autor de superexploração da força de trabalho e se caracteriza pela junção
de três componentes centrais: um aumento da intensidade do trabalho, o prolongamento
da jornada de trabalho e a remuneração abaixo do valor, reduzindo o consumo do
trabalhador para além do seu limite normal.

Para Marx a dimensão do valor da força de trabalho se desdobra no valor diário e


no valor total, sendo “o valor diário da força de trabalho calculado pelo tempo médio de
vida dos trabalhadores, de acordo com as condições dominantes na época” (OSÓRIO,
2012, p. 50). Segundo o autor, os processos de sobredesgaste que “encurtem o tempo de
vida útil e de vida total, constituem casos em que o capital está se apropriando hoje dos
anos futuros de trabalho e de vida”, pois neste caso, o trabalhador não pode dispor de
mecanismos necessários para repor seu desgaste físico e psicológico, conformando assim
uma violação do valor da força de trabalho. Este mecanismo operante nas economias
dependentes não deve ser entendido apenas como a remuneração da força de trabalhos
com baixos salários, mas a partir do conjunto de itens básicos para a reprodução de vida
dos trabalhadores no mundo contemporâneo, devendo abarcar suas necessidades
referentes a alimentação, moradia, saúde e educação.

É sobretudo no processo de valorização dos valores de uso que se definirá as


particularidades de cada formação capitalista, pois “os processos produtivos de um ou
outro valor de uso são diferentes, e diferentes são os consumidores e os mercados de tais
produções, assim como as políticas estatais que daí se originam” (OSÓRIO, 2012, p. 46).
Sobre essa determinação, o autor sugere a análise do capital, historicizando sua
reprodução em duas dimensões históricas i) os tipos de valores de uso assumidos em cada
24

formação e período histórico e ii) os processos de emergência, auge e declínio de


determinado padrão de reprodução de capital e destaca que

[...] em todos esses processos há razões econômicas que também são políticas.
São projetos de classe de determinados setores do capital aqueles que se
convertem em eixos de acumulação em cada caso, e são projetos de classe de
outros setores aqueles que ocupam lugares subordinados ou perdem. Tudo isso,
por sua vez tem consequências nas classes dominadas e em suas formas de
existência. (OSÓRIO, 2012, p. 46)

Para categorizar sua análise do padrão de reprodução, Osório (2012) parte da


perspectiva do ciclo do capital-monetário para analisar, nas fases de produção e
circulação, as tarefas a serem empreendidas pelo capital em seu processo metabólico de
reprodução. No ciclo descrito pelo autor, há a presença de duas fases que se desenvolvem
na circulação, e que são intermediadas pela produção.
Ft
D–M ........... P ........... M’ – D’
Mp
1º fase Fase 2º fase
circulação produção circulação

Onde:
D: dinheiro
M: mercadoria
Mp: meios de produção
Ft: força de trabalho
P: produção
M’: capital mercadoria
D’: dinheiro valorizado

Na primeira fase da circulação, o capital-monetário divide-se em força de


trabalho e meios de produção (D - (Ft - Mp), e sobre este movimento levantam-se
questões universais a respeito de quem investe, quanto investe e em que investe, sendo o
capital privado nacional e estrangeiro e o capital público estatal as principais formas de
investimento. Ao transformar-se em meios de produção, o capital-dinheiro (D-Mp)
delimita a capacidade produtiva de uma empresa, que se determinará em última instância
pelo seu grau de avanço em relação à média social. Osório destaca que neste estágio, é de
fundamental importância considerar onde são adquiridos os equipamentos e tecnologias
consumidos nos meios de produção, uma vez que a endogeneização de tecnologias e a
produção de bens de capital está relacionada também com o grau de dependência dos
países periféricos em relação aos centros capitalistas. Por fim, na primeira fase da
25

circulação, o capital monetário se desdobra no que há de mais essencial ao modo de


produção do capital: a força de trabalho, e deverá se corresponder à lei do valor.

Dessa forma, o capital adentrará a fase produtiva (....P....) e se ocupará em


desenvolver as mais avançadas formas de extração de mais-valor, seja através do
prolongamento da jornada, do incremento da produtividade ou da intensificação do
trabalho nas distintas formas de organização laboral. Assim, após o processo de produção
em que o mais valor é produzido, as mercadorias já introduzidas com o mais-valor passam
a circular na segunda fase da circulação (M’ – D’) em que as mercadorias transformam-
se novamente em capital-monetário, dessa vez também acrescido de mais-valor. Nesta
fase, os mercados se constituem como categoria social e delimitam a estrutura econômica
que se apresenta às nossas percepções. Para Osório (2012),

[...] esse é o momento em que se comprova se as decisões de investimento e


produção de determinados bens foram corretas, ou se, pelo contrário, o tempo
de trabalho social destinado foi maior do que o necessário. A lei do valor
adquire aqui toda sua força (OSÓRIO, 2012, p. 61)

A ênfase na concepção do padrão de reprodução do capital como um ciclo


econômico pertinente à reprodução de uma determinada forma de organização econômica
é de fundamental importância para a análise da estrutura econômica brasileira e as
implicações diretas que os padrões específicos de (re)produção determinam à vida dos
trabalhadores. Além disso, nos permite analisar as inflexões políticas e sociais sob o ponto
de vista da unidade da produção capitalista no plano global, cabendo aos diferentes
padrões de reprodução do capital no Brasil, diferentes papéis de acordo com o eixo de
acumulação no plano global. Por fim, a partir desta categoria podemos compreender que
as políticas econômicas, a organização laboral, as formas que assumem as condições
trabalhistas, de consumo e distribuição das mercadorias não determinam um padrão de
reprodução, mas são determinadas por ele na medida em que espelham opções políticas
pertinentes às classes dominantes.

2.2 O DESENVOLVIMENTO DO SUBDESENVOLVIMENTO

Se ao longo do século XIX e início do século XX o Brasil estruturou as bases de


sustentação de sua economia a partir da concentração fundiária, de sua posição no
mercado global como produtor agroexportador, da negação do acesso à terra aos
trabalhadores e da superexploração da força de trabalho, a partir da década de 1930
haveria uma reorientação de seu desenvolvimento econômico pautada pela crise externa.
26

Esta reorientação, viria a modificar também o mercado de trabalho na medida em que há


um deslocamento do eixo de trabalho do campo para a cidade e o desenvolvimento de
uma planta industrial. Marini (2013) destaca que há uma desorganização do mercado
mundial no início do século com a guerra da partilha colonial de 1914, o crash da bolsa
de Nova York em 1929 e a guerra mundial pela hegemonia de 1939. Este processo finca
os Estados Unidos como nova potência mundial e impõe tendências contraditórias aos
países latino-americanos a partir da janela que surge para a industrialização destas nações.
No entanto, este desenvolvimento inicial expressa tão somente uma autonomia relativa
das burguesias locais condicionada à crise que enfrentavam as classes dominantes locais,
e cujo cerne estava o capital estrangeiro.

A inflexão política e econômica promovida pela industrialização conformaria a


relação de dependência da América Latina com os centros de forma qualitativamente
nova e mais intensificada. Não apenas através dos preços internacionais, mas sobretudo
pela ação do capital estrangeiro, tendo como consequência uma limitação muito objetiva
em seu desenvolvimento tecnológico, na produtividade de seus empreendimentos, na
ideologia hegemônica e na condição de vida de seus trabalhadores. Segundo Gunder
Frank (1965), o desenvolvimento periférico obedece a leis globais e reorienta seu
desenvolvimento através de uma involução ativa ou passiva a partir do grau de
distanciamento local ou setorial que estabelece com a metrópole. No caso brasileiro, os
momentos de involução, ora ativa, ora passiva, marcaram especialmente as décadas de
1930, 1960 e 1990.

Para Marini (2013), tem-se a partir de 1930 um pacto pela industrialização


formalizado por Getúlio Vargas e os industriais, e que viria a drenar o capital da
agricultura para a indústria através do setor bancário. O conflito entre estas duas frações
burguesas (industrial e latifundiária) é conciliado pelo Estado através da sustentação do
preço do café e assim garantindo receitas para os latifundiários, que, por sua vez, garantia
o consumo dos bens industriais nacionais.

Barbosa (2016) identifica neste período o processo de nacionalização e consolidação


do mercado de trabalho (1930 – 1980). A reorientação dos investimentos para a indústria
com a chegada de Vargas na presidência, provocou uma ação estatal em prol da regulação
do fator trabalho cuja expressão máxima se deu com a Consolidação das Leis do Trabalho
em 1943, que assegurou direitos aos trabalhadores como o salário mínimo, previdência
27

social, regulamentação da jornada, além do acesso à organização de classe através dos


sindicatos.

Decorrente das transformações produtivas em curso, uma massa de camponeses, cuja


força de trabalho era empregada exclusivamente para a produção agrícola para
exportação, vê-se desempregada. Esta superpopulação latente ao campo migra para as
cidades e passa a ocupar postos de trabalho no setor privado, que dinamiza e se coloca
como principal segmento da economia num momento crucial de acumulação de capital
nacional. O fluxo migratório neste período foi fundamental para consolidar o capitalismo
dependente em desenvolvimento, com uma forte migração do campo para a cidade, e do
norte para o sul. Como demonstra Barbosa (2016), esta nova configuração espacial das
relações de trabalho encadeia novas setores de produção e de serviços que os
complementam. Há um crescimento substancial dos setores de transporte, logística
telecomunicações e administração pública. E na medida em que o mercado não absorve
toda a força de trabalho disponível, desenvolve-se uma dinâmica de um setor informal
que presta serviços ao setor formal.

Neste plano, para Barbosa (2016), quatro características são fundamentais para
compreendermos a consolidação do mercado de trabalho. A primeira refere-se à grandeza
da força de trabalho ocupado no setor privado, que em 1940 possuía 37% da População
Economicamente Ativa (PEA) já assalariadas no mercado formal e 51% da PEA
constituída por autônomos. Há ainda, uma estagnação entre 1940 a 1980 da PEA rural de
12,5 milhões de pessoas ante um crescimento de 5 milhões para 30 milhões da PEA não
agrícola no mesmo período, evidenciando a absorção da superpopulação latente do campo
que era absorvida pelos centros urbanos em expansão.

A segunda característica refere-se à regulação seletiva do trabalho no campo e na


cidade. Enquanto na cidade a porcentagem dos trabalhadores assalariados alcançou a
marca de 65% em 1980 ante 45% em 1940, no campo somente 1/3 dos trabalhadores eram
assalariados em 1976 (BARBOSA, 2016). Mesmo nos centros urbanos, o autor destaca,
35% dos assalariados não possuíam carteira assinada e 20% do total ocupado não era
assalariado. Dessa forma, desenvolviam-se nas cidades uma classe trabalhadora e
operária profundamente desigual entre si, na medida em que em alguns setores se
constituía uma classe média, em outros a classe trabalhadora ocupava-se em formas
precárias de trabalho, acentuado ainda pelos demais preços para sua subsistência como
28

transporte e moradia, que condiciona a terceira característica observada pelo autor: a


criação de um subproletariado como consequência das diferenças entre ocupações e
rendimentos, com uma profunda distinção entre os salários dos operários industriais e dos
trabalhadores do campo, cerca de três vezes maior, assim como as diferenças de
remuneração de autônomos que prestavam serviços para a classe trabalhadora
(manicures, pedreiros, costureiros, mecânicos) e autônomos que prestavam serviços para
a indústria. Por fim, o autor identifica que:

[...] o desigual acesso às políticas sociais aprofundava a segmentação espacial


e setorial do mercado de trabalho. Isso fica evidente no acesso à previdência
social, onde apenas algumas ocupações assalariadas são contempladas,
comprometendo severamente o acesso à saúde dos assalariados sem carteira e
autônomos. (BARBOSA, 2016, p. 23)

Tal conformação do mercado de trabalho acompanhava o tipo de desenvolvimento


encabeçado pela burguesia nacional. Para Gunder Frank (1965) este período é marcado
por uma involução ativa em nossa economia, onde passou-se a utilizar a capacidade
produtiva ociosa, a partir de investimentos estrangeiros. O papel que cumpre o capital
estrangeiro será decisivo para tonalizar o grau e tipo de industrialização brasileira, e
derrubará as ilusões nacionalistas de desenvolvimento autônomo no país, e ainda que haja
uma complexa diversificação da planta produtiva e relativa dinamização do mercado
interno, as determinações ultimas da economia será a expropriação do lucro pelos países
centrais.

Marini (2013) reforça que o grau de complexificação industrial nacional esteve


sempre atrelado ao grau de desenvolvimento tecnológico e reposição de capital dos países
centrais. Com o prazo de renovação do capital fixo cada vez maior naqueles países, cujos
investimentos em ciência e tecnologia são endógenos ao seu processo de reprodução,
crescia também a depreciação e amortização de máquinas e equipamentos e surgia a
necessidade destes países de exportar suas tecnologias obsoletas à periferia em forma de
investimento externo direto e dessa forma, engendrava uma dependência tecnológica sem
precedentes.

Sendo esta tecnologia produzida nos países centrais ao invés de desenvolvidas


organicamente nas instituições de pesquisa e desenvolvimento nacional, o desemprego
por falta de mão de obra qualificada passou a vigorar na indústria brasileira de forma
paradoxal, uma vez que a extensa superpopulação latente já não podia ser absorvida por
essa indústria. Para Marini (2013), este fato representa a irracionalidade da lei geral de
29

acumulação nas economias dependentes, uma vez que sua própria estrutura, ao não
produzir ciência e tecnologia, não era capaz de qualificar sua força de trabalho para
orientá-la para a produção que se utilizava de ciência e tecnologia estrangeira. A
dependência tecnológica seria um entrave para a geração de empregos não apenas no
senso mais restrito ao desenvolvimento científico, mas impactaria também o grau de
produtividade das empresas e negócios locais.

A irracionalidade do desenvolvimento capitalista no Brasil deriva, por um


lado, precisamente da impossibilidade de controlar seu processo tecnológico,
uma vez que a tecnologia aqui é um produto de importação, estando sua
incorporação condicionada por fatores aleatórios como a posição da balança
comercial e os movimentos externos de capital; e, por outro, das circunstâncias
particulares que o país tem de enfrentar para, repetindo o que fizeram os
sistemas mais antigos, buscar no exterior a solução para o problema do
mercado. (MARINI, 2013, p. 156)

Com a proletarização das cidades, o aumento do desemprego, aumento dos preços e


marginalização da superpopulação relativa, apareciam já em 1950 as fissuras entre as
frações burguesas locais, revelando as contradições que determinaram a industrialização
nacional: os conflitos entre industriais e latifundiários, e a oposição entre mercado externo
e mercado interno. No entanto, neste período, os industriais brasileiros já haviam
alcançado relativo poder político e econômico, e tendo em vista o afastamento das
decisões da metrópole em decorrência do pós-guerra, inicia-se uma política voltada ao
fortalecimento do parque industrial brasileiro e da burguesia industrial nacional. “Na
volta ao poder em 1951, Vargas institui o monopólio estatal sobre o petróleo e na
proposição de plano semelhante para a energia elétrica – mais tarde consolidado na
Eletrobrás” (MARINI, 2013, p.145). Além disso, o governo também discutia a
possibilidade de uma reforma agrária que buscasse dinamizar o mercado interno a partir
de uma aliança entre a burguesia industrial e os operários.

O latifúndio, ao priorizar a monocultura para a exportação, ignorava a produção


de alimentos para o mercado interno, aumentando o preço dos produtos e rebaixando o
salário real da indústria. Sem salário para consumir, a classe trabalhadora se inseria no
processo de reprodução de capital sem assumir sua posição de consumidora e, portanto,
sem garantir a realização de capital.

Trata-se de uma agudização da lei geral da acumulação capitalista, isto é, da


absolutização da tendência ao pauperismo, que leva ao estrangulamento da
própria capacidade produtiva do sistema, já evidenciada pelos altos índices de
“capacidade ociosa” verificados na indústria brasileira mesmo em sua fase de
maior expansão. O andamento dessa contradição fundamental do capitalismo
30

brasileiro o leva à mais completa irracionalidade, isto é, à expansão da


produção restringindo cada vez mais a possibilidade de criar, para ela, um
mercado nacional, comprimindo os níveis internos de consumo e aumentando
constantemente o exército industrial de reserva. (MARINI, 2013 p. 156)

Além deste fator, a crise cambial surgia como entrave direto entre latifundiários e
industriais, de um lado os capitalistas do campo buscavam um câmbio apreciado para
aumentar seus rendimentos com exportações, do outro lado, buscava-se a depreciação do
câmbio para baratear as importações de máquinas e equipamentos para as indústrias.
Segundo Gunder Frank (1965), em 1945 houve um aumento de 83% na importação, sendo
338% o aumento de maquinarias.

A tentativa de Vargas fracassa, e em meio à crise o presidente se suicida em 1954. O


impasse foi solucionado com a instituição da Instrução 113 da Superintendência da
Moeda e do Crédito (SUMOC) , que instituiu em 1955 o livre fluxo no mercado de
capitais da economia brasileira, integrando-a definitivamente ao imperialismo. A
normativa da SUMOC estabelecia a aquisição de bens de capital sem cobertura cambial
através de investimentos diretos externos, o que intensificou o grau de internacionalização
da economia brasileira e resolvia o conflito cambial que havia se estabelecido entre os
industriais e os latifundiários.

Segundo Caputo e Melo (2009), a entrada de investimentos diretos externos alcançou


a grandeza de 500 milhões de dólares, com concentração em maior grau no início da
década de 1960, tendo uma queda substancial a partir deste período devido às
instabilidades políticas da época. Parte destes investimentos foram direcionados para a
indústria de transformação e extração.

Entre 1955 e 1963, o valor dos investimentos diretos estrangeiros totalizou


US$ 497,7 milhões. A sua maior concentração ocorreu entre 1957 e 1960, com
73,0% do total do período (US$ 363,1 milhões), explicado essencialmente pelo
investimento direto no setor automobilístico, no contexto da implantação desta
indústria no Brasil, uma das metas do plano governamental. No início dos anos
de 1960, ocorreu uma queda bastante acentuada dos investimentos, que
passaram de US$ 107,2 milhões em 1960 para US$ 39,2 milhões em 1961,
US$ 20,1 milhões em 1962 e US$ 4,5 milhões em 1963, o último
representando menos de 1% do valor total investido no período. [...] A quase
totalidade dos investimentos diretos estrangeiros sem cobertura cambial que
entraram no País entre 1955 e 1963 foi para o setor de Indústrias de
Transformação. [...] este setor recebeu 97,69% do total dos investimentos. Foi
seguido pelo setor de Indústrias Extrativas, com 1,87%. Os demais setores:
Atividades Imobiliárias; Aluguéis e Serviços Prestados às Empresas;
Transporte, Armazenagem e Comunicações, e Agricultura, Silvicultura e
Exploração Florestal ficaram cada um abaixo de 0,2% da participação total.
(CAPUTO; MELO, 2009)
31

Para Marini (2013), a partir de 1960 os conflitos pela terra, as disputas pela
reforma agrária, assim como as reivindicações pelo aumento do salário real, passam a
ditar a luta social no Brasil e levam à queda no volume de investimentos estrangeiros.
Dessa forma, com o aumento inflacionário, a burguesia capitaneada por Jango promoveu
uma política de contenção dos níveis salariais através do liberalismo, e buscou promover
algumas reformas de base. A recém instituída burguesia nacional, mesmo que buscando
num primeiro momento promover um desenvolvimento autônomo, logo se deparou pelos
limites do mercado externo e de sua própria condição de submissão ao capital estrangeiro,
e em um cenário de conflito interno com as antigas oligarquias e de um descontrole
inflacionário que aumentava o custo da produção e via o investimento público e privado
decaindo, não teve outra opção que não apoiar o golpe civil militar que recuperaria o
compromisso de 1937.

Para a grande burguesia nacional, a completa integração imperialista não era, a


priori um problema, pois poderia aliar-se ao capital estrangeiro e usufruir da tecnologia e
do crédito que este dispunha. Por outro lado, a pequena burguesia, originalmente formado
por pequenas empresas do setor têxtil, viu suas possibilidades de desenvolvimento
sufocadas pela concentração de capital que via originar-se em sua frente, e que logo a
excluiria definitivamente do cenário nacional através da disputa pelos preços. Com o
desemprego crescente que decorria desta industrialização integrada ao imperialismo,
formava-se também uma superpopulação flutuante à indústria, uma massa de
desempregados que passaram a ocupar os postos de autônomos que ofereciam serviços
aos trabalhadores, nos mais variáveis e precários empregos. Dada a magnitude dessa
população e as baixas remunerações associadas à essas modalidades de trabalho, a lei
geral de acumulação no Brasil, assume um aspecto irracional, pois ao negar trabalho e
renda aos trabalhadores, impede o seu consumo e impele a realização de capital no
mercado interno.

O compromisso do golpe militar de 1964 sustentava-se na expansão


subimperialista do Brasil para seus vizinhos latino-americanas, como forma de expandir
também o espaço de realização de valor e também medidas institucionais que entre 1964
a 1967, através do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), promoveu ainda
mais a integração imperialista no país, e que segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV)
, concentrava-se nos seguintes objetivos:
32

a) concessão de estímulos tributários à reinversão dos lucros das


empresas e à formação de economias pessoais, e forte tributação do
consumo supérfluo; b) fortalecimento das poupanças privadas,
através do combate à inflação e da criação de instrumentos
mobiliários atrativos às pequenas e médias economias; c) implantação
de uma política de incentivo ao ingresso de capitais estrangeiros,
objetivando o financiamento, por poupanças oriundas do exterior, de
cerca de 20% da formação de capital no país; d) implantação de
esquemas de capitalização compulsória pelos usuários dos serviços
de utilidade pública; e) reforço da receita tributária da União e
compressão da percentagem de suas despesas de custeio e
transferência no PIB; f) compressão do déficit de custeio de
autarquias e sociedades de economia mista, através de uma política
de realismo de tarifas e custos, e da racionalização de seus serviços;
g) adoção de uma política salarial ajustada aos objetivos do programa
desinflacionário e consentânea ao esforço de poupança necessário
para acelerar o crescimento do produto; e h) eliminação dos subsídios
cambiais ao consumo de produtos importados. (FGV)

Para Arend e Fonseca (2012), “o ingresso de capital estrangeiro influiu no


desempenho da economia brasileira de forma positiva” na medida em que contribuiu para
a internalização tecnológica de diversos setores da economia, possibilitando assim seu
“catching up” na chamada quarta revolução industrial, com alto grau de integração
intersetorial e diversificação da produção. Dessa forma, o complexo químico e
metalomecânico “constituintes dos setores de bens de capital, bens de consumo duráveis
e do setor automobilístico), que representavam 47,5% da produção industrial total em
1970, foram, em 1980, responsáveis por 58,8% do produto total da indústria”, de forma
similar às plantas industriais de países como Estados Unidos, Japão e Alemanha
Ocidental. Segundo os autores, este processo de internalização tecnológica ocorreu
devido a maturação do desenvolvimento tecnológico dos países centrais, que viam suas
taxas de investimento decaindo na medida em que a tendência monopolista presente
nestes países acumulava ociosidade produtiva e alto poder de geração de riquezas, tendo
como necessidade a exportação dessas tecnologias para a periferia. Os autores destacam
que neste movimento de migração do capital produtivo do centro para a periferia, o capital
financeiro teve vital importância na concessão de crédito e investimentos nas economias
periféricas, “provocando internamente mudança industrial para estágios mais avançados,
mas, ao mesmo tempo, diminuindo a necessidade por esforços nacionais para a
internalização de um núcleo endógeno de desenvolvimento tecnológico”.

No caso brasileiro, o processo de industrialização associado aos capitais


estrangeiros e submetido a eles reproduzia em si a condição dependente do país, em
especial a sua impossibilidade em garantia de desenvolvimento tecnológico soberano e
33

autônomo e por manter a superexploração da força de trabalho como característica geral.


A complexificação de sua planta industrial não deve ser considerada genericamente como
um indicador de superação do subdesenvolvimento, mas sim uma particularidade do
desenvolvimento capitalista na periferia do sistema. Para Marini (2013):

(...) a subscrição de um acordo de garantias aos investimentos estadunidenses,


tratou-se de atrair esses capitais para o país. Simultaneamente, restringindo o
crédito à produção (o que leva as empresas a buscarem o sustento do capital
estrangeiro ou a quebrarem, ocasião na qual são compradas a baixos preços
pelos grupos internacionais), estimulando a assim chamada “democratização
do capital” (o que implica, na fase de estancamento, facilitar o acesso a pelo
menos parte do controle das empresas ao único setor forte da economia, o
estrangeiro), criando fundos estatais ou privados de financiamento baseados
em empréstimos externos, ou tributando fortemente a folha de pagamento das
empresas (o que as obriga a renovar sua tecnologia a fim de reduzir a
participação do trabalho e buscar a associação a capitais estrangeiros), o
governo militar promove a integração acelerada da indústria nacional à
estadunidense. (MARINI, 2013, p.155)

Há ainda que se observar que a dependência e fragilidade da economia brasileira


no mercado mundial implodiria na crise internacional dos anos 1970, cujos aumentos
substanciais do preço do petróleo e das taxas de juros internacionais viriam a estabelecer
um quadro de endividamento externo crítico, de hiperinflação, de perda do salário real,
além do aumento do desemprego e da precarização do trabalho. Em suma, a fragilidade
da industrialização dependente se mostraria com a desindustrialização e reestruturação
produtiva das décadas seguintes.

2.3 A CRISE E A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Após um longo ciclo de expansão, em meados da década de 1970, a economia


global enfrenta um esgotamento de seu padrão de reprodução de capital e vê desacelerada
sua produção a partir de um aumento substancial do preço do petróleo e das taxas de juros.
Para Carneiro (2002) há neste período a ampliação de um circuito financeiro internacional
denominado em dólar fora dos Estados Unidos, reorganizando o sistema financeiro e
promovendo um aumento substancial da liquidez internacional a partir deste euromercado
de crédito, que financiava expressivamente as contas deficitárias dos países periféricos.
Esse fluxo de capitais viria a sofrer fortes impactos com o choque do Petróleo de 1971,
que elevaria o custo de produção e promoveria a inflação dos países que produziam a
partir dessa matriz energética, além de intensificar a tendência a deterioração dos termos
de troca entre países centrais e periféricos. Com o aumento da inflação, as taxas de juros
também aumentaram, representando um componente real no endividamento externo dos
34

países latino-americanos cujo modelo de desenvolvimento estava associado ao capital


estrangeiro.

Para Tavares (2010), a resposta brasileira à conjuntura internacional foi a escolha


pela promoção da oferta e do crescimento a “marcha forçada” as custas de investimentos
públicos e externos em megaprojetos, ao passo que Carneiro (2002) descreve que foi a
opção pela expansão da demanda doméstica as custas de um endividamento maior, uma
forma de legitimar o regime militar que se sustentava a partir dos interesses domésticos
industriais, mas que não foi capaz de renovar o eixo de crescimento da economia ao
transferi-lo para a indústria de bens de capital a partir de uma vulnerabilidade externa
explicitada pelos altos níveis dos déficits comerciais, ampliados após o segundo choque
do petróleo em 1979.

A consequência econômica da resposta brasileira foi a insustentabilidade de seu


modelo de industrialização. Segundo Marini (1992), através da liquidação das reservas
de capital, o Estado brasileiro se submeteu integralmente aos interesses do Fundo
Monetário Internacional definindo como centralidade de sua política econômica a
obtenção de saldos comerciais para financiar a dívida. Dessa forma, o governo passa a
controlar o nível de importação ao volume de exportação, passando a controlar, portanto,
o crescimento industrial através da diminuição da demanda interna e dos custos de
produção, além da contenção salarial, desvalorização da moeda e uma série de incentivos
fiscais e subsidiários aos empresários.

A estatização da dívida privada intensificou a crise do endividamento. Para


Campos (1999) este processo ocorreu em duas etapas e implicou na onda de privatizações
ao longo da década de 1990. Segundo destaca a autora, a primeira etapa decorre do peso
do endividamento externo do setor público na economia, que cresce de 35% em 1974
para 60% em 1978. Este cenário é resultado da utilização das empresas estatais para a
promoção da política macroeconômica a partir de dois fatores: 1) a utilização de seus
preços e tarifas para controle de inflação, ao repassá-las ao setor privado a um
determinado preço e; 2) a exclusividade do financiamento público para o setor privado.
A segunda etapa refere-se às medidas de proteção cambial adotadas pelo Banco Central
ao setor privado sob a forma de depósito em moeda estrangeira e posteriormente na sua
transformação em tomador último de empréstimo junto aos bancos internacionais.
35

Na prática, a estatização da dívida privada e o aumento substancial dos juros


contraídos no exterior representaram uma transferência de valor mediante mecanismo da
dívida pública, explicitando uma relação de dependência financeira entre as economias
periféricas e centrais. Este aprofundamento da dependência financeira iniciará um novo
padrão de acumulação de capital pautado pela valorização dos ganhos financeiros ante a
produção propriamente dita e pautará a política econômica que entrará em vigor na década
seguinte, sustentada por uma política fiscal austera que privilegia o estímulo aos setores
agroindustriais ao invés da ampliação da capacidade produtiva industrial do país.
Segundo Luce (2018):

A dependência financeira se observa em um conjunto de determinações, como


a condição de moedas frágeis que possuem as economias dependentes; os
mecanismos de sucção nos circuitos internacionais da circulação do capital-
dinheiro, especialmente sob a forma do capital fictício; a condição de
soberanias frágeis das formações econômico sociais do capitalismo
dependente vis-a-vis a relação de poder que a lógica da dívida e o poder dos
Estados imperialistas engendram (LUCE, 2018, p. 63)

Para Osório (2012), o fim dos projetos de industrialização dos países latino-
americanos complementa o início de um novo padrão de reprodução de capital pautado
pela exportação de bens agroindustriais. Na grande maioria desses países, o novo padrão
implicou a destruição de indústrias, seu reposicionamento no projeto geral e a
centralidade de um novo eixo exportador que passou a constituir “segmentos de grandes
cadeias produtivas globais sob a direção de empresas transnacionais”. Este processo
inicializa através de uma série de reformas e privatizações, que permitem a entrada do
capital estrangeiro nas economias latino-americanas de 14,9% em 1990 para 37,8% em
1996. No Brasil, estes valores (em milhões de dólares) saltam de 989 em 1990 para 31.913
em 1998. Ainda segundo Osório (2012), com base no relatório “Panorama de la inserción
internacional de América Latina y el Caribe 2009-2010” elaborado pela Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 1999 41% das duzentas
maiores empresas exportadoras da região eram constituídas por capital estrangeiro,
dominando estrategicamente cadeias comerciais através do setor de serviços que
fornecem energia e telecomunicações, além da agroindústria, nas indústrias alimentícias
e com certa expressividade a mineração.

A crise do modelo de industrialização brasileiro implode nos anos 1990 com uma
reorientação da política econômica, centrada pela abertura comercial e desnacionalização
da empresa. Para Carneiro (2002), havia uma substituição das políticas de demanda e de
36

garantia de mercado por uma política de oferta sistematizada por uma ampliação de
concorrência. Ao se atentar para o processo de abertura econômica, analisando o
coeficiente de penetração (importações/produção) e abertura (exportações/produção) da
indústria brasileira na década em questão, o autor identifica que há uma perda de
densidade dos setores que utilizam mais intensamente tecnologia e capital em detrimento
de um menor impacto nos setores dependentes de mão de obra, obedecendo,
respectivamente, uma variação absoluta de 34,3%, 14% e 9,7%. Ao analisar a taxa de
comércio e saldo por intensidade de fator, em 1998, o autor destaca que o saldo comercial
percentual da produção por setor foi negativo nos setores de tecnologia (-20,9), capital (-
12,8) e positivo nos setores intensivos em mão de obra (1,6) e de recursos naturais (10,7).
Estes dados acompanham o processo de desnacionalização das empresas brasileiras
através de privatizações e processos de fusões e aquisições. Ao observar a distribuição
das 100 maiores empresas por tipo de propriedade entre 1990 e 1998, Carneiro (2002)
destaca uma desnacionalização expressiva da economia brasileira, com um crescimento
da propriedade estrangeira de 27 em 1990 para 34 em 1998, crescimento de propriedade
compartilhada de 5 em 1990 par 23 em 1998 e uma redução da propriedade estatal de 38
em 1990 para 12 em 1998. Segundo o autor, a desnacionalização deste processo tem como
especificidade o fato de que a economia brasileira possui um desequilíbrio entre compra
e venda de operações transfronteiriças em comparação aos países centrais. Segundo
Marini (2013):

A função que assume agora o capital estrangeiro na América Latina é subtrair


abertamente uma parte da mais valia criada dentro de cada economia nacional,
que aumenta a concentração de capital nas economias centrais e alimenta o
processo de expansão imperialista. (MARINI, 2013)

No mundo do trabalho, o impacto gerado pela reestruturação produtiva foi


devastador. Segundo dados compilados por Mercadante (1997), conforme destaca a
Tabela 1, o desemprego no período de 1994 – 1998 aparece como destino provável de
grande parte da população, com um aumento de 38% no período, ao passo que a
informalidade cresce em torno de 5,2%.
37

Tabela 1: Indicadores de Informalidade no Brasil (1994 – 1998)

Fonte: Uma Economia de Justiça e Solidariedade 1999


(2) Fonte: IPEA – Mercado de Trabalho/Conjuntura e Análise, com base em dados do IBGE – Pesquisa
Mensal de Emprego (PME) – incluindo RJ/SP/PA/H/RE/SAL. No cálculo dos coeficientes de precarização
se exclui a categoria “empregadores”
(3) Fonte: IPEA – Mercado de Trabalho/Conjuntura e Análise, com base em dados do IBGE – PME e da
Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED do DIEESE
(4) Fonte: Malaguti (2000)

A tendência a um aumento generalizado do desemprego e da marginalização


causada por ele, na criação de postos de trabalho precarizados e invisíveis corresponde a
um problema teórico e estatístico de grande importância para a compreensão da dinâmica
do mercado de trabalho brasileiro. Para Malagutti (2000) o problema consiste em:

[...] encontrar novos instrumentos teóricos que permitam detectar e


compreender esta nova padronização do mercado e da legislação do trabalho,
em toda sua complexidade, desvendando sua lógica, suas formas de
reprodução, as redes de sociabilidade que engendra, suas ligações com a
pequena marginalidade e com o crime. Além, é claro, sua colaboração com o
grande capital e seu papel na crise estrutural do capitalismo mundial.
(MALAGUTTI, 2000, p.81)

Em todo caso, os indicativos dos efeitos da reestruturação produtiva em vigor no


mundo trabalho tendem a explicitar uma deterioração cada vez maior dos tipos de
empregos gerados por essa economia. Segundo relatório do Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas (IPEA) (2000), houve uma queda substancial do emprego na
indústria em 10 pontos percentuais, ao passo que nos serviços e comércio há um aumento
de 5 pontos em média para ambos os setores. No plano institucional, as reformas
trabalhistas que aparentavam a flexibilização e modernização do mundo do trabalho
aprofundavam a exploração da classe trabalhadora na medida em que se mudava também
a estrutura produtiva com a abertura econômica e consequência falência de empresas.

Para Marconi e Oreiro (2014) ocorre no Brasil desde meados da década de 70 o


fenômeno de desindustrialização que os autores definem como perda da participação da
indústria no Produto Interno Bruto (PIB) do país. Este fenômeno acompanha uma
reprimarização da pauta exportadora, que se inicia no período de crise da industrialização
dependente e se desenvolve ao longo dos anos 2000. Os autores constatam que a
38

participação de produtos manufaturados na pauta exportadora é superada pela


participação de produtos primários em 2009. Segundo Osório (2012), a variação na
distribuição setorial das exportações no país nos biênios 2000 - 2002 e 2007 – 2009 é de
+ 9,9% em Matérias-Primas, -2% em Manufaturas baseadas em recursos naturais, -8%
em Manufaturas com tecnologia alta, média e baixa e um aumento de 0,1% em Serviços.
Para Malagutti (2000), o marco institucional do novo modelo da economia
brasileira tem como marco político-institucional o Plano Real em 1994, que através de
uma reorientação neo-ortodoxa, responde aos altos índices de inflação e de queda do PIB
registrados durante a “década perdida”.
Mercadante (1997) destaca que o Plano Real estruturou-se em três fases: a
primeira fase estabeleceu o ajuste fiscal como condição prévia para a estabilização da
economia de modo a “ajustar os gastos públicos financiados com o imposto
inflacionário”, e, através de uma política monetária sustentada por uma taxa de juros
artificialmente alta, viabilizou um fluxo de recursos externos e o aumento das reservas
cambiais, além da aprovação do chamado do Fundo Social de Emergência (Emenda
Constitucional nº10) que garantia uma maior liberdade orçamentária para o governo. A
segunda fase, estabeleceu a Unidade Real de Valor (URV) como desindexador oficial da
economia e permitiu o combate à inflação através do resgate de uma referência de valor
universalmente aceita, atualizada diariamente pelo Banco Central e composta por uma
média de três outros índices. A terceira fase, a da instituição definitiva do Real como
moeda e estabilidade monetária se deu a partir da sobrevalorização do Real, pela abertura
comercial (que através das importações pressionou o preço dos produtos) e pelo
congelamento provisório de preços e tarifas públicas além de uma excelente safra agrícola
que permitiu para a estabilização do custo de vida e redução do Índice Nacional de Preços
do Consumidor (INPC) de 48,2% em Junho para 7,75% em Julho e 1,85% em Agosto.
A estabilização monetária alcançada pelo Plano Real promoveu uma estabilidade
relativa na economia por um curto período. Tão logo passado o primeiro momento do
plano, suas inconsistências explicitavam a fragilidade da economia brasileira, cuja
submissão aos capitais monopolistas se demonstrou através da vulnerabilidade cambial
do país. Segundo Mercadante (1997) entre 1994 e 1996 as importações cresceram 27,1%
ao ano e as exportações apenas 4,7%, ao passo que o coeficiente de penetração das
importações para a indústria de transformações, que havia alcançado o mais alto grau de
complexificação tecnológica do período anterior, passou de 4,3% em 1989 para 15,6%
no mesmo período. Com uma queda de 35% do emprego industrial entre 1990 e 1997 e,
39

impactado pela redução de postos de trabalho nos serviços financeiros públicos na ordem
de 320.000 postos de trabalho, o desemprego alcançou a marca de até 14% entre 1994 e
1997, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE). Para Mercadante (1997) essa estratégia de estabilização é indissociável da
agenda proposta pelo chamado Consenso de Washington: abertura comercial completa,
desregulamentação geral da economia, reconhecimento irrestrito de patentes,
privatizações, Estado mínimo com desarticulação dos mecanismos de apoio ao
crescimento e regulação econômica e a flexibilização dos direitos trabalhistas sempre
orientados para estabelecer a primazia absoluta do mercado.

A desindustrialização e a crise do mercado de trabalho explicitam de forma clara


a impossibilidade de um desenvolvimento autônomo brasileiro dentro do marco
capitalista. Na medida em que o padrão de reprodução ampliado de capital não encontra
na periferia espaço de valorização, a reprimarização de sua pauta exportadora surgirá
como condição única de existência dentro do mercado mundial. Em última instância, este
movimento obedece tão somente aos interesses monopolistas de corporações
transnacionais e implicam para a classe trabalhadora brasileira e latino-americana como
única alternativa o auto emprego como forma de reprodução e subsistência. Osório (2012)
ressalta:

Em diversas análises e na maioria dos discursos oficiais, a elevação da


capacidade exportadora é apresentada como um símbolo de fortaleza
econômica, quando não de desenvolvimento. Só é possível sustentar essa
perspectiva isolando as cifras do comércio exterior – particularmente das
exportações de bens e serviços – do comportamento do resto da economia e,
em articular, da deterioração das condições laborais e de vida dos assalariados
e da maior parte da população, bem como da estreita relação da dessa
deterioração com o incremento da capacidade exportadora. (OSÓRIO, 2012,
p.104)

Para Malagutti (2000), este processo só foi possível através da destruição em massa
dos instrumentos de proteção do antigo modelo econômico, tais como a desativação de
órgãos reguladores e a privatização de antigas empresas estatais, a quebra do monopólio
do Estado no petróleo, a venda da Vale e a fusão do setor de telecomunicação ao capital
estrangeiro. Além disso, a flexibilização trabalhista que acompanhou este processo, deu
o tom das consequências que essa reestruturação traria para a classe trabalhadora. Além
dos índices de emprego já mencionados, houve uma queda histórica do salário mínimo
real, e institucionalização dos contratos temporários, a reforma da previdência que
buscava desvincular receitas e despesas e a lei de terceirização. A consequência deste
40

quadro calamitoso é a proliferação de pequenos negócios que reproduzem a


informalidade e dão sustentação a lógica de acumulação e reprodução ampliada brasileira,
que se pauta pela superexploração da força de trabalho através do impedimento do
consumo para além dos níveis normais e que rebaixará a condição de vida desta
população.

CAPITULO 3: AS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS

No segundo capítulo, buscou-se traçar algumas tendências gerais da economia


latino-americana a partir de seu processo de integração ao mercado global e de sua
tentativa de industrialização. Para tanto, foram resgatadas categorias marxianas e, sob a
ótica da teoria marxista da dependência, pode-se traçar determinações comuns às
economias dependentes a partir da divisão internacional do trabalho. Sem a devida
compreensão do papel da América Latina no plano global de produção, torna-se infértil
qualquer possibilidade de avançar na discussão sobre os pequenos negócios e sua função
para o atual padrão de reprodução de capital. Nesse capítulo, buscou-se situar a pequena
empresa na economia capitalista monopolista, e no marco da reorientação da acumulação
de capital e da hegemonia da ideologia do empreendedorismo, expor as especificidades
da existência da micro e pequena empresa na economia brasileira.

3.1 O PAPEL DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO DESENVOLVIMENTO


CAPITALISTA

Interessa aos objetivos deste trabalho analisar a forma da pequena empresa e como
ela se relaciona com a dinâmica de concentração de capital que caracteriza o atual modo
de produção global. Conforme destacam Guerra e Teixeira (2010), a análise marxiana do
desenvolvimento das forças produtivas identifica três etapas desse processo histórico: a
cooperação simples, a manufatura e a grande indústria. Retomando a tendência histórica
da acumulação capitalista, Marx (2013) refere-se à pré-história do capital como a
dissolução da propriedade privada fundada no próprio trabalho; este fato decorre do
próprio caráter do desenvolvimento das forças produtivas que supera a fragmentação da
produção dada pelo momento inicial de cooperação simples e, transformando a
propriedade individual de trabalho em propriedade privada capitalista, expropria os meios
autônomos de existência a partir do trabalho e proletariza os sujeitos numa relação
subordinada com o capital.
A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o
fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condição necessária para
41

o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio


trabalhador. É verdade que esse modo de produção existe também no interior
da escravidão, da servidão e de outras relações de dependência, mas ele só
floresce, só libera toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada
onde o trabalhador é livre proprietário privado de suas condições de trabalho,
manejadas por ele mesmo: o camponês, da terra que cultiva; o artesão, dos
instrumentos que manuseia como um virtuoso. Esse modo de produção
pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim
como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão
do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a
regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas
sociais. Ele só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da
produção e da sociedade. (MARX, 2013, p. 539)

O movimento seguinte do capital será o de expropriação de outros capitalistas,


através da tendência de concentração de capitais em que “Soa a hora derradeira da
propriedade privada capitalista, e os expropriadores são expropriados” (MARX, 2013,
p541). Segundo Guerra e Teixeira (2010), este movimento de monopolização é
consequente de um aumento substancial das inovações tecnológicas e do
desenvolvimento de unidades mecanizadas para a grande indústria, que obterá ganhos de
escala que lhe permitirão aumentar a produtividade, diminuir preços e eliminar outros
capitalistas através da concorrência, ao passo que “as pequenas empresas sofreriam
impactos negativos advindos da manutenção de processos tornados obsoletos.” No
entanto, não deve-se confundir o desaparecimento da propriedade individual decorrente
da acumulação de capital com a sublimação da pequena empresa na economia capitalista.
Em última instância, este fato estrutura a dinâmica concorrencial de um modo de
produção monopolista e concentrador. Como bem colocam Guerra e Teixeira (2010), para
Marx:
[...] na sua reconstituição do processo histórico de surgimento da produção
capitalista, o desaparecimento de pequenas unidades produtivas referia-se à
morte de formas pré-capitalistas. Constituída a produção capitalista, essa
eliminação é de outra ordem: vincula-se a reacomodação do pequeno capital
sob a dominação de blocos mais poderosos de capital. (GUERRA; TEIXEIRA,
2010)

Dessa forma, a função das pequenas empresas ao longo do desenvolvimento


produtivo assume sua funcionalidade e centralidade pelo próprio processo da expansão
capitalista. Conforme previamente discutida, a lei geral da acumulação pressupõe um
aumento substancial da força de trabalho no momento inicial de acumulação, seguido
pela sua desvalorização e constituição de um exército industrial de reserva, que ocupará
funções precárias, informais e mal remuneradas, tangenciais à produção em escala da
grande indústria. Para Tavares (2018), ao contrário do que se supõe, a descentralização
da produção gera centralização e concentração da riqueza na medida em que “grandes
42

grupos econômicos se fundem para reter mais-valia explorada, donde se pode deduzir que
qualquer discurso sobre a autonomia e a liberdade do trabalho não tem base real”.

A pequena empresa, como a grande, está sujeita às determinações do mercado,


só que com bem menor capacidade de escapar às sanções impostas. Ao
transformar trabalhadores em empresa, teórica e praticamente quem se
beneficia é o capital. A pequena empresa é a forma encontrada pelo capital
para se apropriar de todo o tempo do sujeito, pela via do convencimento. Sem
que disso tenha consciência, ao criar, ele mesmo, a condição de
empregabilidade, o trabalhador troca a proteção social por uma ideia de
liberdade que, em última instância, retira de si a possibilidade de obter
qualquer conquista/concessão do capital, pela sua relação direta com o
mercado. (TAVARES, 2018, p. 169)

Na prática, as pequenas empresas inserem-se no sistema produtivo de forma


deficitária, seja na esfera de produção, circulação ou distribuição, submetendo-se aos
preços do mercado e às consequências últimas deste, sendo fundamentais ao processo de
acumulação na medida em que promovem o emprego para a superpopulação relativa
renegada pela indústria, e abaixam custos em serviços adjacentes ao grande capital.

3.2 A CRISE DO CAPITAL E AS PEQUENAS EMPRESAS

Ao debruçar-se sobre as transformações recentes no capitalismo contemporâneo,


Antunes (2008) enxerga que a crise dos anos 1970, desencadeada pelo choque do
petróleo, é expressão da crise estrutural de superprodução. Ao mergulhar em uma
recessão global, o capital implementou uma reestruturação produtiva através de novas
formas de acumulação flexível, gestão organizacional, novas tecnologias e a substituição
do binômio fordista/taylorista pelo modelo japonês toyotista. Para Antunes (2008), essas
mudanças permitiram a “eliminação, transferência, terceirização e enxugamento de
unidades produtivas” e citando Harvey, enxerga como mutações em relação ao antigo
modelo de acumulação “ a divisão dos mercados, desemprego estrutural, divisão global
do trabalho, o capital volátil e o encerramento de plantas industriais”. A saída encontrada
através do toyotismo foi o “disciplinamento da força de trabalho impulsionada pela
necessidade de implantar formas de capital e trabalho intensivo”, com uma racionalização
produtiva que possibilitou a demissão de trabalhadores e a diminuição de custos.
(...) se fundamenta numa organização sócio-técnica do trabalho, resultado da
introdução de técnicas de gestão da força de trabalho próprias da fase
informacional, bem como da introdução ampliada dos computadores no
processo produtivo e de serviços. Desenvolve-se em uma estrutura produtiva
mais flexível, recorrendo freqüentemente à deslocalização produtiva, à
terceirização, dentro e fora das empresas, etc. Utiliza-se de novas técnicas de
gestão da força de trabalho, do trabalho em equipe, das “células de produção"
43

dos “times de trabalho”, dos grupos “semi-autônomos”, além de requerer, ao


menos no plano discursivo, o “envolvimento participativo” dos trabalhadores,
em verdade uma participação manipulatória e que preserva, na essência, as
condições do trabalho alienado e estranhado. O “trabalho polivalente”,
“multifuncional’, “qualificado”, combinado com uma estrutura mais
horizontalizada e integrada entre diversas empresas, inclusive nas empresas
terceirizadas, tem como finalidade a redução do tempo de trabalho.
(ANTUNES, 2008)

Tais mudanças de nível técnico e gerencial viriam a promover o que Antunes


(2008) denominou de uma múltipla processualidade do mercado de trabalho. Ao mesmo
tempo em que havia uma desproletarização do trabalho industrial, houve também um
aumento do assalariamento no setor de serviços, intensificando a subproletarização com
a expansão do trabalho parcial, temporário, subcontratado, precário e mal remunerado.
Para Osório, a compreensão das formas de organização do processo de trabalho é
útil para o entendimento dos procedimentos de incremento da mais-valia e da organização
laboral, e “o predomínio de certa organização do trabalho não supõe necessariamente a
extinção das formas prévias, mas sim, com frequência, sua combinação” (OSÓRIO, 2012,
p. 59), e na medida que a grande indústria se desenvolve, desenvolve-se junto a ela
pequenas unidades produtivas que se relacionam a partir de modalidades de
subcontratação.
A forma como o capital organiza a produção tem variado desde o trabalho
domiciliar, as primeiras manufaturas, as grandes indústrias, o fordismo e seu
trabalho em cadeia, o pós fordismo (ou “toyotismo” e a conformação de grupos
flexíveis a produção just in time e o retorno a empresas de tamanho médio (...)
Com a grande ou média indústria de ponta se desenvolvem, por exemplo,
múltiplas oficinas de trabalho organizadas como na etapa de manufatura e,
inclusive, empregando trabalho domiciliar, mediante subcontratação realizadas
pelas primeiras com relação às segundas. (OSÓRIO, 2012, p.59)

Este movimento foi acompanhado pela retomada da centralidade nas políticas


públicas de fomento às micro e pequenas empresas para promoção do emprego e na
diminuição dos custos na escala ampliada de acumulação. Sarfati (2013) ao analisar
comparativamente as políticas de diferentes países com base no relatório Global
Enterneuship Monitor identifica que a partir da década de 1970, mas sobretudo após 1980,
essas políticas tendem a generalizar nos diferentes países como forma de redesenhar sua
estrutura produtiva em meio às transformações globais do mercado de trabalho. No
entanto, conforme as informações descritas, há uma considerável diferença na forma
como essas políticas são desenhadas de acordo com as estratégias de desenvolvimento
adotadas pelos países.
Segundo Sarfati (2013), enquanto no Chile a estratégia de fomento de pequenos
negócios foi impulsionada pelas entidades privadas com foco na terceirização de serviços
44

públicos, sem uma centralização estatal de segurança e fomento às pequenas empresas,


no Brasil há dois eixos de tratamento das políticas públicas em torno das MPE’s que
perpassa o surgimento do atual Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas Empresas na
década de 1970, e posteriormente a regulamentação em torno da Lei do Simples Nacional
(Lei 9.317/96)(BRASIL, 1996) e durante a década de 2000 a tentativa de instituição de
clusters regionais denominados Arranjos Produtivos Locais.
Também os países desenvolvidos fomentam políticas voltadas às pequenas
empresas com foco na instituição de clusters regionais. Sarfati (2013) destaca que o
Canadá possuiu diferentes estratégias industriais ao longo do tempo, centrando-se ao
longo da década de 1960 no desenvolvimento de Pesquisa e Desenvolvimento Industrial;
na década de 1970 na assistência às grandes empresas do país e a partir de 1982 a criação
do chamado Escritório de Empreendedorismo e Pequenos Negócios, que se desenvolveria
posteriormente no principal órgão de fomento aos pequenos negócios no país, dando
suporte estatal no estímulo à pesquisa e desenvolvimento de produtos, na comercialização
e na criação de clusters regionais de alta tecnologia.
A Irlanda adotou política bastante similar. Sendo um país dependente de
exportações agroindustriais e com uma frágil indústria nacional, o país se integra
economicamente à união europeia atraindo empresas multinacionais a partir da década de
1960, porém em 1980 a taxa de crescimento encontrava-se abaixo de 1% e a taxa de
desemprego alcançava 18% da população, de forma que o país passou a promover o
desenvolvimento de micro e pequenas empresas além do estímulo à produção
agroindustrial novamente. Em 1992, ao reconhecer que as políticas em vigor não
desenvolviam as pequenas empresas, o país reorienta sua estratégia também em direção
à empresas com alto potencial de desenvolvimento tecnológico, promovendo a chamada
smart economy, que ligava a indústria à ciência por meio de políticas institucionais e o
posterior escoamento dessa produção através da exportação. De forma similar, a Itália
desenvolve a partir de 1970 diversos programas regionais de apoio à formação de um
distrito industrial formado por pequenas empresas, que se especializariam em uma cadeia
produtiva nacional.
A múltipla processualidade identificada por Antunes (2008) está presente no
contexto da reestruturação produtiva nos diferentes países do globo. No entanto, é de
fundamental importância destacar que o caráter estratégico que cada nação adotou para
sustentar a crise em seus mapas produtivos internos, tendo assumido um papel distinto de
acordo com seu grau de internalização tecnológica. Isto é, enquanto os países
45

subdesenvolvidos associam suas políticas meramente à necessidade de suprimir a crise,


os países desenvolvidos ou inseridos em regiões desenvolvidas do globo, tenderam a
estimular uma política de apoio às micro e pequenas empresas associada necessariamente
à complexificação de sua produção através do incremento técnico e tecnológico
fomentado pelo Estado. Ainda assim, a gestão capitalista necessariamente incorre na
tendência de centralização e concentração de capital, e mesmo o fomento às pequenas
empresas é estrategicamente formulado refletindo seu posterior desenvolvimento de
mercado. Segundo Tavares (2018):

O empresário individual e a microempresa são, na maioria das vezes,


assalariados por peça. As pequenas empresas, por sua vez, podem funcionar
como departamentos da grande empresa. Esta deixa a cargo daquelas o
constrangimento da relação direta com trabalhadores explorados e
precarizados, pelo que se permite obscurecer o momento da produção, muito
embora usufrua em condições vantajosas da distribuição da mais-valia extraída
pelas primeiras. Enfim, o comando da produção permanece sob o capital.
(TAVARES, 2018, p. 119)

A materialidade desta reestruturação produtiva necessitou uma sustentação no


plano ideológico, que Antunes (2008) destaca como o “culto de um subjetivismo e de um
ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de
solidariedade e de atuação coletiva e social”. Este ideário corresponde tão somente aos
interesses do capital, que passa a instituir o empreendedorismo como ideia hegemônica,
sinônimo de desenvolvimento econômico através do trabalho individual e sua integração
às chamadas cadeias de produção. Isso reflete de forma clara através da pesquisa Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) (2017), que mensura o chamado empreendedorismo
por oportunidade e por necessidade. Conforme Gráfico 1, a tendência a empreender por
necessidade no Brasil declinou entre 2008 e 2014 e, após esse período retoma a faixa de
40% da população entrevistada em 2017.
46

Gráfico 1 - Empreendedorismo por oportunidade e necessidade como proporção da taxa


de empreendedorismo inicial no Brasil 2002 - 2017

No mesmo ano, como demonstra o Gráfico 2 os números disponibilizados pelo mesmo


relatório sobre o Canadá, Estados Unidos e Austrália informam que o percentual da
população que empreendeu por oportunidade se manteve acima dos 80%.

Gráfico 2- Motivos para Empreender (Canadá, Estados Unidos e Australia)

Fonte: GEM Canada, Ontario Report 2017.

Para Fernandes (2019), a hegemonização ideológica do empreendedor ocorre nos


marcos da hegemonia do neoliberalismo, em que “o empreendedor é um deus ex-
machina, um espírito que move a economia”. A visão mainstream de empreendedorismo
parte da perspectiva de que a obtenção de lucros ocorre pela capacidade individual do
agente em assumir riscos que provocarão a inovação e o desenvolvimento, e se alia à
teoria de Joseph Schumpeter, que defende o desenvolvimento econômico como uma
“mudança espontânea e descontínua nos canais de fluxo, perturbação do equilíbrio, que
altera e desloca para sempre o estado de equilíbrio previamente estabelecido”, que ocorre
através de inovações como novos bens ou qualidades de um bem, novos métodos de
47

produção, novas mercadorias, novas fontes de matéria prima, novos mercados, etc. Na
prática, o empreendedor contemporâneo está longe do processo inovativo, e se estabelece,
isso sim, como um indivíduo produtor sem tecnologia e baixíssima produtividade.
Na perspectiva de Tavares (2018):
O empreendedorismo é uma estratégia pela qual é transferida ao trabalhador a
atribuição de gerar postos de trabalho, de modo a garantir “ordem e progresso”
capitalistas; é um ardil engendrado pelo capital e viabilizado pelo Estado, para
confundir a oposição das classes sociais; é uma tentativa de obscurecer a figura
do trabalhador proletário e, desse modo, pôr fim ao sujeito revolucionário; é,
enfim, uma forma pela qual se quer combater o desemprego, sem possibilitar
a relação de emprego, na acepção de um contrato pelo qual o trabalhador vende
força de trabalho e em troca recebe um salário e a proteção social que, por lei,
ainda é garantida aos trabalhadores percebidos como assalariados.
(TAVARES, 2018, p. 110)

Sendo o fenômeno das micro e pequenas empresas caracterizado como unidades


produtivas que concentram baixos rendimentos e absorvem parte do exército industrial
de reserva, compreendemos que o empreendedorismo é uma resposta, sobretudo
ideológica, à crise dos anos 1970. Para Fernandes (2019), não há relação comprovada que
o empreendedorismo como individualização da produção promova de fato o
desenvolvimento econômico. Ao contrário, segundo pesquisa GEM (2016) os países que
lideram o grau de empreendedorismo apresentam os maiores níveis de desigualdades
sociais. O autor associa que esta ideia se desenvolve no seio dos países que adotaram
políticas neoliberais, sobretudo os Estados Unidos de Reagen e o Reino Unido de
Thatcher.
Assim como apoio ideológico para a expropriação de pessoas comuns,
Armstrong (2005) mostra que dificilmente o discurso do empreendedorismo
vai ser abandonado, pois ele serve de justificativa ou cortina de fumaça para
todo um conjunto de políticas que favorecem classes específicas com a
desregulação, enfraquecimento dos sindicatos e reduções tributarias.
(FERNANDES, 2019, p. 24)

Observamos que o fenômeno das micro e pequenas representa uma necessidade


à acumulação de capital, ao empregarem parte de uma superpopulação latente e
submeterem-se a expropriação do valor excedente através do sistema concorrencial que
sempre as manterá em desvantagem em relação às grandes empresas. Dentro do marco
da acumulação flexível, o autoemprego caracteriza o subproletariado e surge como
condicionante ideológica de sustentação da crise do capital, complementando os
pequenos negócios no aprofundamento da acumulação capitalista que, em última
instância, necessita da apropriação de trabalho vivo e da constituição de uma esfera de
realização de capital. Estes elementos combinados, intensificam a exploração da força de
trabalho e reproduzem uma condição de vida cada vez mais precária para a classe
48

trabalhadora. Ainda que seja global e opere a lei geral da acumulação capitalista, este
fenômeno deve ser analisado a partir das especificidades de cada conformação social a
partir da divisão internacional do trabalho, cujas leis capitalistas operam de formas
diferentes para garantir a reprodução do capital.

3.3 PANORAMA DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL

Não há um consenso conceitual das micro e pequenas empresas, seja no plano


internacional ou nacional. No Brasil, diferentes instituições categorizam de formas
diferentes a estratificação por porte das empresas, sendo os critérios mais utilizados o
faturamento anual destas empresas e a quantidade de pessoal ocupado. Segundo a Lei
Geral das Micro e Pequenas Empresas – Lei Complementar (LC) no 123, de 14 de
dezembro de 2006, atualizada pela LC no 155, de 27 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016)
–, são consideradas Micro Empresas (MEs) aquelas que auferiram receita bruta inferior
ou igual a R$ 360 mil, e são consideradas Empresas de Pequeno Porte (EPP) as que
obtiveram receita de venda no mercado interno superior a R$ 360 mil e inferior ou igual
a R$ 4,8 milhões. Para o Sebrae são classificadas como MEs aquelas com até nove
pessoas ocupadas nas atividades de serviços e comércio, e como pequenas empresas as
que têm entre dez e 49 pessoas ocupadas. Na indústria da transformação e da construção,
são consideradas MEs aquelas com até 19 pessoas ocupadas, e pequenas empresas, entre
20 e 99 pessoas ocupadas.
Ainda que as características gerais dos pequenos negócios no Brasil se
assemelhem a seus pares nas economias centrais, suas particularidades são antes
determinadas pela forma como se inserem na produção, e nas relações deficitárias que
estabelecem no acesso ao crédito, a tecnologia e à formação profissional. Tais condições
determinam uma dinâmica de baixa produtividade, empregos sem garantias de seguridade
social e baixíssimo valor agregado ao produto total da economia.
No Brasil, as micro e pequenas empresas representam 91% de todas as empresas
no país em 2021 (SEBRAE, 2021). Conforme pode-se observar no Gráfico 3, a
composição por porte na estrutura econômica nacional é composta por 53% de
microempreendedores individuais (MEI), 33% microempresas (ME), 5% empresas de
pequeno porte e 9% de Grandes e Médias Empresas (Demais). Mesmo com tamanha
representatividade nos negócios do país, as MPE’s agregaram ao Produto Interno Bruto
do país 9,7% em 2017, e semelhantes proporções nos demais anos (SEBRAE, 2021), e
49

ao observar o valor agregado que as MPE’s adicionam por atividade econômica, observa-
se que estão concentradas em Atividades Imobiliarias, Comércio e Construção Civil.

Gráfico 3 - Total de Empresas por Porte no Brasil 2021

Total de Empresas por Porte no Brasil - 2021


91%

53%

33%

9% 5%

MEI ME Demais EPP MPE's


Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)
Elaboração própria

Essas pequenas unidades produtivas estão presentes em todos os setores


econômicos do país, como indica o Gráfico 4, concentram-se majoritariamente no setor
de serviços com participação total de 46%, no comércio com 36%, seguido em menor
peso a indústria (10%), construção civil (8%) e agropecuaria (0,45%).

Gráfico 4– Distribuição percentual das MPE’s por setor da economia 2021

Construção Agropecuaria
8% 0.45%
Industria
10%
Comercio
36%

Serviço
46%

Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)


Elaboração própria

Sua distribuição por porte infere também no total e no tipo de empregos gerados
na economia. Desconsiderando os dados referentes à parcela da população cujos vinculos
50

trabalhistas são informais, os dados do Gráfico 5 mostram que 45,8% de todos os


empregos formais estão alocados em Grandes e Médias Empresas (Demais) ao passo a
maioria de 54,2% dos empregos são gerados em Micro e Pequenas Empresas.

Gráfico 5 - Total de Emprego por Porte de Empresa

Total de Emprego por Porte


32.0% 32.5% 32.8% 32.8% 32.7% 32.5% 31.7% 31.1% 31.3% 31.8%
28.2% 28.2% 28.2% 28.1% 28.2% 28.2% 28.6% 28.7% 28.7% 28.6%
25.6% 26.3% 26.1% 25.6%
24.6% 23.9% 24.0% 24.1% 24.3% 24.6%

15.2% 15.4% 15.1% 14.9% 14.9% 14.6% 14.1% 13.9% 13.9% 14.0%

2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Media ME EPP Grande

Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)


Elaboração própria

Para o Sebrae (2020), as micro e pequenas empresas são estratégicas ao diminuir


o efeito de crises econômicas “por operarem com contingente baixo, possuem pouco
espaço para demissões”. De fato, conforme destaca o Gráfico 6, ao observar o saldo de
vagas de emprego geradas por ano, é possível observar que as MPE’s geram mais
emprego e demitem menos pessoas, em especial durante o período de crise econômica.

Gráfico 6 - Saldo de Vagas de emprego geradas por porte de empresa e ano

Fonte: SEBRAE, 2020


51

A partir de 2008, observa-se um crescimento contínuo no grau de formalização


destes empreendimentos segundo Sebrae (2020). Este fato acompanha as medidas
regulatórias institucionalizadas no âmbito do Estado, como o simples nacional e a lei do
microempreendedor individual, que buscam formalizar uma economia altamente
informal. Como destaca o Gráfico 7, a quantidade de trabalhadores ocupados sem carteira
assinada gira em torno de 10 milhões ao ano, e alcançou a marca de 11,5 milhões no
terceiro trimestre de 2018, indicando que a informalidade é um problema crônico da
economia brasileira.

Gráfico 7- Empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada (em


milhares) – 2014 a 2018

Fonte: IBGE (Pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência como
Empregado no setor privado sem carteira assinada

Ainda assim, a chamada formalização promovida pela lei do MEI, em pouco se


assemelha ao emprego formal alocado nos setores intensivos em capital da economia e
permite uma vantagem muito mais tributário à uma mudança qualitativa no emprego
dessa população. A ideologia do empreendedora intensificada desde 2008 reforça
condições precárias de reprodução social dos trabalhadores que não encontraram emprego
formal na economia e tampouco promove desenvolvimento econômico, não ampliando a
oferta de trabalho, mas sim instituindo o autoemprego. Segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra e Domicilio (PNAD Contínua) de 2019, 84% dos chamados empreendedores
não empregam nenhuma mão de obra.
52

A posição predominante desses empreendedores, conforme destaca o Gráfico 8 é


de 60% como chefe de domicílio e cerca de 25% como Cônjuge, representando
objetivamente uma necessidade de auferir ou complementar a renda de uma família.

Gráfico 8- Posição por Domicílio dos Empreendedores no Brasil


70.00%
60.00%
50.00%
40.00%
30.00%
20.00%
10.00%
0.00%

Chefe de Domicílio Cônjuge Filho(a) Outros

Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)


Elaboração própria

No entanto, a renda que o empreendedorismo proporciona para mais de 60% do


total desses trabalhadores, conforme Gráfico 9, no 4º trimestre de 2019 não ultrapassa 2
salários mínimos, remuneração muito aquém da necessária para auferir uma qualidade de
vida básica; conforme DIEESE (2021), o salário necessário em Abril de 2021 manteve-
se cerca de 60% acima do salário mínimo no mesmo ano. Em contraponto à sua
baixíssima remuneração, a jornada de trabalho dos empreendedores alcança o patamar de
45h a 49h por semana ou mais de 49h por semana para 30% dos empreendedores,
conforme o Gráfico 10.
53

Gráfico 9- Posição por Domicílio dos Empreendedores no Brasil

Rendimento Mensal dos Empreendedores


80.00%
60.00%
40.00%
20.00%
0.00%

De 0 até 2 SM De 2 até 5 SM De 5 a mais SM

Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)


Elaboração própria

Gráfico 10 - Carga de Trabalho Semanal dos Empreendedores

00 a 14 horas 15 a 39 horas 40 a 44 horas 45 a 48 horas 49 horas ou mais


45.0%
40.0%
35.0%
30.0%
25.0%
20.0%
15.0%
10.0%
5.0%
0.0%

Fonte: ifdata (SEBRAE, 2021)


Elaboração própria

Para Malagutti (2000), a pequena empresa aparece como centralidade no debate


político e econômico e se transforma na resposta que o Estado dá para a classe
trabalhadora para sustentar seu novo modelo de acumulação, cujo marco centraliza-se no
Plano Real em 1994, que institui a abertura de mercados e desregulações do mundo do
trabalho, aprofundando o quadro de desigualdade social existente no país e intensificando
a informalidade e o desemprego.

O modelo econômico brasileiro – concentrador de rendas e discriminador-


parece ter encontrado ali uma alternativa econômica e social para a
sobrevivência dos marginalizados do sistema, dos excluídos dos benefícios das
54

novas tecnologias, da sociedade de consumo, do bem-estar, das conquistas


sociais e da relativa estabilidade do emprego vigente nas grandes corporações
públicas e privadas. (MALAGUTTI, 2000, p.87)

Segundo Malagutti (2000) “a grande maioria sub-remunerada da população


ocupada é (...) absorvida sobretudo em pequenos empreendimentos”, cujos salários e
remunerações são em média 60% inferiores ao dos outros estabelecimentos. Dessa forma,
o autor aponta para a necessária problematização do papel do pequeno empregador e de
sua relevância social na medida em que as pequenas empresas legitimam a política em
vigor no Brasil, e concentram “remunerações, salários e condições de trabalho
degradantes”, reproduzindo a lógica da informalidade através da sonegação de impostos,
e desprezando condições de segurança e desrespeito à legislação. Na prática, concentram-
se nestes setores práticas de subcontratação, terceirização, baixas remunerações e parcos
direitos trabalhistas.
Compreende-se que a crítica a estes pequenos negócios, ainda que de fundamental
relevância devido sua magnitude na condição de vida dos trabalhadores brasileiros, não
pode ser dissociada do entendimento de seu papel natural no processo de acumulação
capitalista no plano global, cuja condição de existência demarca sua subordinação aos
grandes conglomerados nacionais e internacionais a partir das desvantagens que possuem
através da concorrência. Tavares (2018), citando Gorz destaca que:
A desigualdade fomentada pela concorrência entre capitais não se reduz às
empresas, mas se estende ao mercado de trabalho e, finalmente, configura-se
numa relação (des)humana, em que há, “para cada ganhador, uma multidão de
perdedores, e que os vencedores não devem nada àqueles ou àquelas que
esmagam (GORZ, 1998, p. 50).

Além disso, os mecanismos que operam os pequenos negócios no Brasil o fazem


sob as leis da dependência, integrando-os ao mercado interno a partir das determinações
de renda e salários que decorrem da superexploração, e reproduzindo-a de forma ampliada
através de um padrão de reprodução institucionalizado pelo Estado brasileiro.
Fernandes (2019) observou três inflexões na atuação do Estado em relação às
MPES: entre 1990 e 1994 políticas de apoio às Micro e Pequenas Empresas dadas as suas
desvantagens competitivas; entre 1995 e 2008 o fomento ao empreendedorismo e de 2008
em diante a empreendedorização do autônomo. Como colocado por Osório (2012), o novo
padrão de reprodução de capital na América Latina caracteriza-se pela especialização
produtiva, que orienta a produção agrícola e de commodities aos mercados globais. No
Brasil, observa-se que este novo padrão, cujo marco centraliza-se no Plano Real, na
medida em que promove a especialização produtiva através da maior participação da
55

produção agroindustrial, promove também o autoemprego como resposta à reestruturação


produtiva que encabeça.
Compreendendo o empreendedorismo como política de autoemprego, que
aprofunda o fenômeno da pequena empresa com a reestruturação produtiva iniciada nos
anos 1980, cabe retomar a forma com a qual o Estado brasileiro agiu ao longo da história
em relação à essa parcela tão significativa da nossa economia. Através da análise das
políticas econômicas ao longo do tempo, é possível enxergar a inflexão dessa política
historicamente.
Fernandes (2019) destaca a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico – BNDE em 1952, como o embrião das políticas e apoio às micro e pequenas
empresas. Foi do então BNDE que foi lançado o documento Problemas da Pequena e
Média Empresa, conhecido como Documento 33, que elencava problemas e dificuldades
que viviam os pequenos negócios e que deu as bases para a criação do Grupo Executivo
de Assistência à Média e Pequena Empresa (Geampe), subordinado ao BNDE e criado
por meio do Decreto nº 48.738, de 4 de agosto de 1960. Em 1964, com a criação de linhas
de crédito específicas às micro e pequenas empresas, estrutura-se um aparato institucional
que viria a desenvolver em 1972 o Centro Brasileiro de Assistência Gerencial à Pequena
Empresa (Cebrae). Em 1990, através do decreto nº 99.570, o Cebrae separa-se da
administração pública e transforma-se no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas (Sebrae), uma instituição privada sem fins lucrativos. O autor destaca
ainda o marco regulatório de 1984 que cria o Estatuto da Microempresa:
Este Estatuto estabeleceu que empresas com faturamento de até o equivalente
a aproximadamente 40 mil dólares americanos em moeda nacional deveriam
ter tratamento simplificado e favorecido em questões administrativas,
tributárias, previdenciárias, trabalhistas, de crédito e de desenvolvimento
empresarial (Gonçalves & Koprowsky, 1995). Isto fica consolidado, ainda na
década de 1980, no Artigo 179 da Constituição da República Federativa do
Brasil (1988). (FERNANDES, 2019, p.78)

Nos anos 1990, o autor destaca uma série de regulamentações importantes. Em


1994 é criada a Lei nº 8.864 que estabelece normas para as “microempresas - ME, e
Empresas de Pequeno Porte - EPP, relativas ao tratamento diferenciado e simplificado”
além da criação de um Fundo de Aval ou Fiança, que promovia a garantia de crédito para
micro e pequenas empresas. Em 1995 o Sebrae cria o o Fundo de Aval às Micro e
Pequenas Empresas [Fampe] para auxiliar as MPE’s no financiamento bancário. É datado
desta década a criação do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições
das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte [Simples], que unificaria os tributos
56

pagos pelas empresas de acordo com seu faturamento. Em relação ao financiamento para
as MPE’s, em 1996 o BNDES cria o Programa de Crédito Produtivo Popular e em 1998
desenvolvem-se iniciativas de microcrédito ligadas à governos estaduais e municipais.
Além disso, A Lei no 9.841 (1999) que estabeleceria referencias regulatórias para as
MPES daria as bases para futuramente a Lei Geral da Micro e Pequenas Empresa
(BRASIL, 2006).
Junto com a Lei no 9.841 (1999), de 5 de outubro de 1999, que estabelece o
Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, ficam dadas as
bases do que em 2006 se consolidaria na Lei Complementar no. 123 (2006),
de 14 de Dezembro de 2006. A Lei no 9.841 (1999) regula relações de trabalho,
linhas de crédito e cria o Fórum Permanente da Micro e Pequenas Empresas,
na estrutura do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
[MDIC] (Sarfati, 2013). A Lei Complementar no. 123 (2006) institui o Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, também conhecido
como a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, revogando as leis no. 9.317
(1996) e 9.841 (1999), reunindo em uma única peça de legislação os diversos
aspectos que compunham os textos anteriores. A lei de 2006 inclui ainda
benefícios para participar em licitações públicas, simplificação para comércio
exterior, entre outros benefícios trabalhistas, jurídicos, de acesso a crédito, etc.
(Fernandes, 2019, p. 81)

Ainda segundo o autor, nos anos 2000 se estabelecem em definitivo mecanismos


que caracterizam uma política de micro e pequenas empresas através da ideia de Arranjos
Produtivos Locais, definida por Fernandes (2019) citando Sarfati (2013) como
conglomerados de empresas, localizadas em um mesmo espaço, que apresentam
especialização produtiva e que mantém vínculos entre si e com outras instituições como
o governo, associações empresariais, instituições de crédito, ensino e pesquisa. Segundo
o Sebrae (2014), a concepção dos APL’s é o aumento de competitividade através de
cooperação. Sob os anos 2000, encontra-se ainda a Lei do Microempreendedor Individual
(MEI).
Além dos benefícios que já contavam os microempreendedores com o Simples,
o MEI aumenta as desonerações e facilidades para pessoas que trabalham por
conta própria e que se legalizam como pequeno empresário, possuindo até um
empregado e o faturamento máximo de R$ 36 mil anuais para os anos iniciais
do regime e que foi elevado posteriormente. O MEI fica isento de alguns
tributos federais de responsabilidade da empresa, tem facilidade nas
declarações referentes ao registro e funcionamento e permite a contribuição do
microempreendedor para a previdência, garantindo a possibilidade de
benefício futuro. (FERNANDES, 2019, p. 81)

Ao observar as medidas adotadas pelo Estado brasileiro em prol dos pequenos


negócios, é possível inferir que a problemática identificada pelas instituições constata o
acesso ao crédito e a tributação deste setor como elementos preponderantes na baixa
competitividade e produtividade destas empresas. A associação desta concepção aos
57

Arranjos Produtivos Locais e à lei do microempreendedor individual nos leva a crer que
a institucionalização do acesso ao crédito, o suporte à formalização tributária simplificada
e a cooperação dos agentes de mercado são suficientes para a superação da problemática.
Embora sejam elementos reais, não são eles causa da problemática das micro e
pequenas empresas, mas consequência de uma estrutura econômica cujo mapa produtivo
privilegia uma produção agroindustrial e se associa à instituições financeiras que
potencializam seus lucros através dessa mesma estrutura. Quando se trata do
financiamento dos pequenos negócios, a concentração bancária e os altos níveis de spread
que decorrem desta condição são os principais impedimentos para as empresas do
segmento. Embora seja característica fundamental de uma economia capitalista o acesso
ao crédito para a dinamização da produção e circulação, seu acesso dificultoso expresso
em última instância pelo “apetite a risco” das grandes instituições, não considera os
pequenos produtores como motores do desenvolvimento.
Segundo o Sebrae (2017), considerando o relatório do Fórum Econômico
Mundial, o Brasil ocupa a posição 93º do índice de desenvolvimento do sistema financeiro
nacional. Conforme a Tabela 2, a acessibilidade aos serviços financeiros é o índice pior
avaliado, ocupando a posição 131º, ao passo que o índice de solidez das instituições
financeiras demarca a posição 38º, demonstrando que a robustez do sistema financeiro
nacional em termos de confiabilidade e capacidade de financiamento não reflete no acesso
aos serviços de financiamento que em tese, deveria ser facilitado.

Tabela 2: Índice de Desenvolvimento do Mercado Financeiro (Fórum Econômico


Mundial)
58

O Sebrae (2017) destaca ainda um outro estudo, do Fundo Monetário


Internacional, que classifica o Brasil em 2º lugar no índice de acessibilidade à essas
mesmas instituições, considerando os canais de acesso aos bancos como agências, pontos
de atendimento, internet banking, entre outros. No entanto, a facilidade destes canais de
acesso em pouco interfere no grau de “eficiência” destas instituições, que ocupam a
posição 143º quando comparadas aos demais países do globo, como destaca a Tabela 3.

Tabela 3: Índice de Desenvolvimento Financeiro (Fundo Monetário Internacional)

Em termos concretos, o reconhecimento da ineficiência do sistema financeiro


nacional tanto pelas representações internacionais de mercado, tanto pelo serviço de apoio
às micro e pequenas empresas, representa um desequilíbrio entre a alocação de capital a
nível nacional e global e expressa de forma explícita os conflitos intra-burgueses entre as
frações financeira, agroindustrial e pequeno burguesa no Brasil.
Ainda, segundo o Banco Central, entre 2010 e 2015, o número de operações
bancárias passou de 31,2 bilhões de operações/ano para 55,3 bilhões de operações/ano
(aumento de 12% a.a. ou 77% no acumulado do período). No Brasil, o processo de
valorização de capital durante a primeira década esteve sobretudo associado à valorização
das commodities comercializadas pela fração agroindustrial. Devido à esta condição, o
aumento das balanças de pagamento nacionais propiciou um estimulo à através do
aumento da oferta de crédito, ampliando a esfera de consumo da economia e criando um
novo momento de bonança econômica. Segundo o IPEA (2015) o volume de crédito em
relação ao PIB teve um aumento de 33,8 em 1995 e chegou a 45,2 e dezembro de 2010.
Estes valores alcançaram volumes ainda maiores a partir de então, alcançando
54% do PIB em 2015 e posteriormente retornando ao patamar de 50%. A expansão do
59

crédito mais que dobrou neste último período, reverberando a política expansionista em
vigor no período. No entanto, quando observamos o segmento de pessoas jurídicas, e em
especial a participação das micro e pequenas empresas, a sua participação é
consideravelmente inferior aos demais portes, especialmente nos momentos de contração.
Quando analisamos a concessão de crédito por tipo de instituição bancária,
observamos uma concentração nesse tipo de empréstimo em seis bancos. Essa
centralização de recursos pode ser separada entre bancos públicos, privados e estrangeiros
Conforme Gráfico 11, em relação aos bancos públicos, o BNDES, como já esperado,
ocupa a primeira posição, sendo responsável por 38% do financiamento desses negócios,
seguido por Banco do Estado do Espírito Santo e Banco do Nordeste do Brasil. Vale
ressaltar, que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal representam somente 0,3 e
0,1% respectivamente do fomento às MPE’s com recursos próprios. Ao observarmos os
dados dos bancos privados e estrangeiros a concentração ocorre pelo Bradesco, Itaú,
Santander e Citibank, respectivamente.

Gráfico 11- Concessão de crédito por instituição financeira

Fonte: SEBRAE, 2017

O panorama citado revela um contraído mercado de crédito voltado ao segmento


das MPE’s. Conforme o estudo do Sebrae (2017), na prática, as micro e pequenas
empresas utilizam de fontes alternativas de financiamento que não necessariamente
60

advém de instituições financeiras. Nesse quesito, conforme Tabela 4, o crédito comercial


revela-se como principal fator utilizado pelas empresas do segmento, sendo as 5 fontes
de financiamento mais citadas: o pagamento de fornecedores a prazo (citado por 53% dos
entrevistados), o uso de cheque pré-datado (28%), cheque especial (19%), o cartão de
crédito empresarial (18%) e o dinheiro de amigos e parentes (17%).
Em relação ao financiamento estritamente para fins de reprodução de capital
dessas unidades produtivas, a pesquisa demonstrou que 73% dos recursos para capital de
giro advém de capital próprio, 27% do uso de cartão de crédito, 23% através da
negociação de prazos maiores com os fornecedores e somente 18% através de empréstimo
bancário. Entre as principais razões para não tomarem novos empréstimos em bancos o
relatório destaca que “não necessita” (39%), seguido por “não gosta” (16%), “não confia
na política econômica” (15%), “não conseguiria pagar” (11%), não gosta de pagar
juros/juros altos (6%) e a burocracia (3%) foram as causas mais citadas pelos
entrevistados.

Tabela 4: Financiamento da Micro e Pequena Empresa no Brasil (2013-2017)

Além das condições de financiamento e acesso ao sistema financeiro nacional, a


produtividade desses pequenos negócios é tema primordial para compreender sua
dinâmica e suas determinações dependentes. No entanto, a mensuração destes dados
esbarra em algumas dificuldades de cunho metodológico, no que se refere à compilação
de microdados disponibilizada pelas instituições nacionais de pesquisa. Nogueira (2016)
61

discorre que as mudanças na conceituação dos estratos amostrais utilizados pelas


pesquisas podem incorrer em distorções quando observados em trajetória.

Dependendo da pesquisa, o estrato amostral é formado pelas empresas com até


29 pessoas ocupadas (PIA e PAIC) ou dezenove pessoas ocupadas (PAS e
PAC), exatamente as faixas em que estão inseridas as empresas de pequeno
porte. Além disso, em diversas unidades da federação, na composição setorial
da amostra é utilizada apenas a Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (Cnae) a dois dígitos, o que implica um grau de agregação muito
elevado para muitos estudos. Somente a partir de 2007 a PIA e a PAIC
passaram a incluir as empresas com menos de cinco pessoas ocupadas (as
microempresas). Como muitas técnicas econométricas exigem que os registros
se repitam em todos os períodos das séries consideradas (painel) – o que não
ocorre, necessariamente, no estrato amostral – há dificuldades para o emprego
de tais técnicas para o estudo das MPMEs. (NOGUEIRA, 2016, p. 20).

Para além disso, as amostras disponibilizadas pelo segmento não consideram uma
característica central das pequenas empresas no Brasil: seu caráter informal. Dessa forma,
o autor destaca que há uma forte expectativa de subnotificação destas pesquisas, tanto no
que se refere aos valores financeiros quanto nos valores de pessoal ocupado.

A par disso, as pesquisas setoriais têm como universo apenas as empresas


formalmente registradas. Quando se trata de estudos cujo objeto são as MPEs,
esse fato é um importante limitador do campo de análise, uma vez que a
informalidade, formada principalmente por firmas de pequeno porte, é
expressiva na economia brasileira. (NOGUEIRA, 2016, p. 21)

Ainda assim, Nogueira (2016) desenha algumas generalizações da produtividade


do trabalho deste segmento no Brasil e indica importantes considerações, seja para
analisar o hiato de produtividade entre os diferentes portes no país, seja para comparar
estes dados no plano internacional. Comparativamente, a produtividade entre os
segmentos micro, pequeno e médio em economias subdesenvolvidas mostra-se inferior
aos mesmos segmentos observados em economias centrais, como mostra o Gráfico 12.
Segundo Nogueira (2016), é de fundamental importância destacar o hiato de
produtividade entre as empresas nos diferentes países, especialmente devido ao fato de
que:

Segundo o estudo da OCDE e da Cepal (2012), nos países da OCDE, a


participação no PIB das MPEs atinge algo em torno de 60%, ao passo que,
pelas estimativas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas – Sebrae (2014a), no caso brasileiro, a participação das empresas de
médio e pequeno porte foi, em 2011, de cerca de apenas 27% no produto
interno bruto (PIB) nacional. Ou seja, no conjunto da OCDE, as MPEs
respondem por uma parcela do PIB que é mais que o dobro da registrada no
Brasil. (NOGUEIRA, 2016, p.25)
62

Gráfico 12- Produtividade relativa em países selecionados da América Latina e da


OCDE (Em %)

Para Nogueira (2016), o hiato de produtividade entre os diferentes segmentos é


uma condição real da economia capitalista, porém a dimensão que esta diferença assume
no Brasil movimenta a dinâmica geral da produtividade no país pendenciando para baixo
e gerando um ciclo de desenvolvimento desigual para a estrutura produtiva do país, cujos
impactos para os trabalhadores revelam-se também de acordo com suas remunerações,
que acompanham o nível de produtividade dos portes de cada firma como destaca a
Tabela 5. Em um país cuja maioria de empregos formais encontra-se nas empresas de
pequeno porte, sua remuneração baixa expressa concretamente a negação do consumo à
classe trabalhadora e com isso, a limitação da realização de capital no mercado interno.

Tabela 5: Salário relativo em países selecionados da América Latina e da OCDE


63

O fenômeno das micro e pequenas empresas no Brasil se expressa como um eixo


determinante para a estrutura produtiva. Mesmo tendo baixo valor agregado ao produto
total dessa economia, sua presença expressiva no país promove a geração de emprego e
renda para milhares de famílias brasileiras. Na prática, as micro e pequenas empresas
explicitam a pulsão e limitação de mercado interno, cuja baixa remuneração permite a
realização de capital somente até determinado patamar, mas que possibilita o acesso à
serviços e consumo a uma parcela expressiva da classe trabalhadora.
Ao contrário do que indicam os discursos oficiais que associam essas unidades
produtivas como motor do desenvolvimento através do empreendedorismo e inovação, a
dificuldade no acesso ao crédito, a baixa qualificação dessa força de trabalho e o
declinante nível de produtividade dessas empresas, nos leva a crer que o fomento à
atividade empreendedora é mais ideológico e midiático do que real.
64

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao contrário do que sugerem as propagandas institucionalizadas pelo Estado em


associações a entidades de classe, universidades e empresas, o empreendedorismo na
economia brasileira não é sinônimo de avanço e inovação, mas expressão do
subdesenvolvimento e da precarização generalizada no mundo do trabalho. Este
fenômeno é a manifestação ideológica da multiplicação de micro e pequenas empresas,
que assumem grande relevância na agenda global como resposta à crise do capital que
decorre dos choques do petróleo ao longo dos anos 1970. Ainda que assuma um mesmo
lugar na contenção da crise, não podemos igualar a dimensão que este fenômeno assume
nos países centrais e periféricos, uma vez que a crise nos países dependentes é
particularmente específica, na medida em que ela é a própria condição de existência da
dependência, e a dependência é a condição de sustentação do capital nos países centrais.

Desta forma, este trabalho buscou compreender o fenômeno do


empreendedorismo e o papel que as micro e pequenas cumprem no atual padrão de
reprodução de capital no Brasil, a partir de uma análise do declínio do antigo padrão de
reprodução industrial, e as implicações no mundo do trabalho decorrentes da transição
para o atual padrão agroexportador. Naturalmente, dado o seu nível de abstração e à
magnitude do tema, esta pesquisa possui inúmeras limitações e não conseguiu se
aprofundar em algumas dinâmicas essencialmente relevantes. Há ainda muito o que se
avançar na compreensão da particularidade do Estado na economia dependente, nas novas
formas de organização do trabalho através da uberização, no papel da ideologia na
funcionalidade da economia capitalista, nas formas particulares de financiamento e
reprodução de empresas conhecidas como startups, e na composição de classe da pequena
burguesia brasileira.

Todavia, esta pesquisa nos permitiu compreender as micro e pequenas empresas


como um eixo fundamental à acumulação de capital na economia dependente, não pelo
valor adicionado à essa economia, mas por centralizar os empregos, possibilitando uma
fonte de remuneração à mais da metade da força de trabalho no país e dessa forma
promovendo em escala ampliada a reprodução social desses sujeitos. Nos permitiu
identificar também, que a agudização das precárias condições de vida dos trabalhadores
ao longo das últimas décadas não representa uma ruptura, mas uma continuidade com a
65

acumulação de capital no país, cuja dinâmica se determina pela existência de uma


superpopulação relativa originada por um modo de produção escravista e colonial.

Embora o Brasil tenha passado por inúmeras transformações em sua matriz


produtiva, transitando de uma estrutura essencialmente agrária no início do século XX
para um modelo industrial e relativamente diversificado nos anos 1930, 1950 e 1960,
essas transformações não deram conta de eliminar a determinação última da economia
brasileira: sua imbricação indissociável ao desenvolvimento dos países centrais. Essa
imbricação define-se pela transferência de mais-valor através do comércio internacional
e pela superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação para as
classes dominantes locais. Em suma, a superexploração associa a mais valia absoluta e
relativa à uma remuneração abaixo do valor necessário para a reprodução da vida classe
trabalhadora, determinando uma dinâmica de acumulação dessas economias que limita o
consumo e o trabalho aos trabalhadores, redirecionando o produto nacional aos mercados
externos.

Ainda que o padrão industrial tenha modificado a forma do mercado de trabalho,


não alterou sua essência, mantendo a lógica da dependência pela existência de uma
superpopulação relativa que se manifesta nos índices de desemprego, subemprego,
informalidade e empreendedorismo no país. Neste sentido, a derrocada do processo de
industrialização implode no Brasil no final dos anos 1980 em meios à crise de
endividamento externo que associou o desenvolvimento industrial brasileiro ao crédito
internacional e à própria internacionalização da economia brasileira, e define um novo
padrão de reprodução de capital no Brasil que vigora desde os anos 1990, centrado na
reprimarização da pauta exportadora com forte apelo ao agronegócio.
A complexidade econômica da planta produtiva brasileira permitiu uma relativa
sobrevivência de alguns setores industriais e o desenvolvimento de alguns outros, mas a
massa de desempregados desta economia ao longo do tempo refere que o pleno emprego
nunca foi uma possibilidade. Em termos de política econômica, o Plano Real inaugurado
em 1994 teve sucesso no combate à crônica inflação, mas foi também o marco dessa
reorientação produtiva na medida em que instaurou o tripé macroeconômico cuja meta de
superávit primário e controle de metas de inflação instituiu uma estratégia declarada dos
setores financeiro e do agronegócio em prol de uma acumulação pautada na exportação
de commodities e na instituição de altas taxas de juros.
66

Do outro lado, a perspectiva de desindustrialização carrega consigo o fim de


inúmeros postos de trabalho que estão diretamente associados ao setor produtivo, e cujas
fontes de remuneração e seguridade social representam alguma garantia real aos
trabalhadores. O seu fim representou uma necessidade de realocação desta população em
termos socioeconômicos e políticos, na medida em que os trabalhadores representam não
apenas a produção real do valor numa economia, mas são eles também fonte de realização
deste capital. Neste contexto de crise, as micro e pequenas empresas surgem, segundo
Malagutti (2000), como uma “válvula de escape” da extensiva crise do mercado de
trabalho. Os pequenos negócios são um fenômeno natural do desenvolvimento capitalista,
ocupam uma função necessária aos conglomerados capitalistas associando-se às cadeias
produtivas como prestadoras de serviços que reduzem os custos das grandes empresas e
viabilizam o emprego para a superpopulação relativa não incorporada pelas grandes
corporações.
No Brasil, estes empreendimentos representam a totalidade quase absoluta de
empresas no país, e as desvantagens que estão submetidas na concorrência capitalista
demarcam a realidade de uma parcela significativa de empreendimentos que reproduzem
padrões de baixa remuneração e parcas garantias trabalhistas. As MPE’s empregam mais
da metade da força de trabalho formal e assumem um protagonismo no ideário nacional
ao mesmo tempo em que as grandes transformações na estrutura produtiva dizimam
empregos e direitos trabalhistas. Este protagonismo é mascarado ideologicamente como
motor do desenvolvimento e propulsor da inovação, e intensificado e individualizado ao
longo das últimas décadas como resposta última para uma parcela da população que opta
pelo empreendedorismo por não enxergar perspectiva de trabalho formal no país.
A ideologia do empreendedorismo e o fomento às micro e pequenas empresas é,
antes de tudo, uma articulação realizada pelo Estado em parceria com as instituições de
mercado. Osório (2012) reforça que o Estado tem uma vital importância para a instituição
de um determinado padrão de reprodução, na medida em que domina as ferramentas de
realização da política econômica, seja ela monetária, fiscal, produtiva ou trabalhista. É
sobretudo pela repetição dessas políticas que se hegemoniza uma determina forma de
funcionamento da economia. Paiva (2018) define que as políticas sociais idealizadas pelo
Estado capitalista caracterizam-se como “ações que operacionalizam formas públicas de
enfrentamento aos impactos sociais decorrentes dos processos de produção e reprodução
material da vida dos trabalhadores, com objetivo de garantir as condições políticas e
econômicas para acumulação de capital”. Dessa forma, na transição para o atual padrão
67

agroexportador, as inúmeras regulamentações realizadas a nível estatal para o fomento


das MPE’s serviram para conter a crise do mercado de trabalho. Destacam-se a criação
do CEBRAE em 1972, que viria a consolidar-se em 1990 como uma instituição “não-
governamental” e principal associação representativa do segmento de micro e pequenas
empresas; a criação do Estatuto da Micro e Pequena Empresa em 1984; a simplificação
do regime tributário para micro e pequenas empresas de 1996, a Lei Geral da Micro e
Pequena Empresa em 2006 e a criação da Lei do Microempreendedor Individual em 2008.
Em termos das políticas de crédito destinadas ao segmento, as principais linhas de
financiamento decorrem do BNDES, mas em proporções insignificantes quando
comparadas às parcelas destinadas as grandes e médias empresas. Ao passo que o crédito
privado é ainda mais irrisório, dado o risco que os bancos enxergam nesse tipo de
operação, as taxas de juros praticadas tornam-se completamente inviáveis. Dessa forma,
a articulação Estado-Mercado para a promoção do empreendedorismo, não pode ser
confundida como um estímulo ao desenvolvimento dos pequenos negócios, uma vez que
estes padecem de apoio concreto para financiamento, capacitação, etc.
Esta máxima torna-se explicita sobretudo quando se analisa a tentativa de
composição de uma cadeia produtiva de pequenos negócios em Arranjos Produtivos
Locais. Ao contrário das soluções encontradas pelos países centrais que desenvolveram
clusters tecnológicos de ponta, no Brasil as APL’s foram formuladas de forma
condescendente à estrutura econômica vigente, que embora tenha um nível considerável
de diversificação, se mantém com pouco avanço tecnológico refletindo em baixos níveis
de produtividade e remuneração. Como bem pontua Breda (2011), o acesso à tecnologia
não se trata da “ausência por parte do empresariado dos elementos culturais necessários
à inventividade, mas de sua posição objetiva na Divisão Internacional do Trabalho”. Isto
posto, é importante destacar que a diferença de produtividade entre as pequenas empresas
quando comparadas às médias e grandes, reflete a inexistência de um sistema nacional de
inovação que possibilite a disseminação do conhecimento técnico-tecnológico entre os
pequenos, restringido estes avanços às empresas de maior potencial de escala. Ainda,
deve-se destacar que esse acesso desigual é reflexo da falta de soberania que o Estado
dependente se submete na economia global. Como destaca o autor (2011):
Em primeiro lugar, a ciência e suas aplicações, ao contrário do que afirmam os
neoclássicos, não estão livremente disponíveis no mercado. São, ao contrário,
propriedade do capital que, em sua fase mais avançada monopoliza-as para
assegurar a acumulação ampliada e a superioridade frente a seus concorrentes
a nível mundial. Os complexos sistemas de ciência e tecnologia – articulados
entre Estado, multinacionais e universidade – dos países centrais são a
68

expressão mais desenvolvida desta nova fase do capitalismo, onde a empresa,


de maneira individual, é incapaz de levar a cabo todas as etapas do
desenvolvimento tecnológico. Em outras palavras, o eixo da estruturação do
desenvolvimento científico na era da RCT não está na capacidade individual
de inovação ao nível da firma, seja ela pequena, média ou grande, mas nos
sistemas nacionais de ciência e tecnologia existentes nos países centrais e em
suas estratégias de monopolização do conhecimento a nível mundial por meio
de uma série de mecanismos tais como os banco de dados de revistas científicas
“internacionais”, “fuga de cérebros” (brain drain), pirataria tecnológica, entre
outros. (BREDA, 2011, p. 76)

É necessário ainda pontuar que excluindo os postos formais, e desconsiderando a


modalidade de microempreendedor individual, os pequenos negócios se caracterizam
como lócus de reprodução de uma estrutura informal, sem vínculos pré-estabelecidos e
cujas estatísticas não são computadas nos dados oficiais. Ao contrário do que dizem as
explicações que atribuem a informalidade um caráter de fenômeno, ela é uma condição
essencial na forma de acumulação social no país, que necessariamente equipara a massa
salarial ao contingente de trabalhadores sem trabalho. Cabe destacar que a tentativa de
formalização destes postos informais através da Lei do Microempreendedor Individual,
ainda que permita o acesso (limitado) deste contingente à direitos como a previdência
social, em pouco muda a condição concreta de reprodução destes trabalhadores. Trata-se
do estágio mais avançado da ideologia, que inverte a real problemática por trás das
condições precárias de trabalho e emprego no país, e responsabiliza inteiramente o
indivíduo pelo seu sucesso ou fracasso.
O empreendedorismo é uma resposta global à crise do capital. A particularidade
de sua existência em economias subdesenvolvidas é de reproduzir em escala ampliada a
condição de dependência através de um controle relativo do preço da força de trabalho
no país que está associada em micro e pequenas empresas. É essa própria condição que
permite uma configuração ligeiramente diferente nos países centrais, cuja produtividade
mais próxima às médias e grandes empresas indicam um acesso menos desigual à
tecnologias e uma equiparação das condições de vida dos trabalhadores de empresas de
diferentes portes.
Isto posto, duas conclusões são possíveis. A primeira conclusão é que as micro e
pequenas empresas cumprem uma função vital à acumulação global do capital ao rebaixar
custos de produção e alocar parcela da força de trabalho não incorporada pelas grandes
empresas. No Brasil, as transformações na economia ao longo dos anos 1990 de cunho
neoliberal representou a derrocada do padrão industrial que desaba através do movimento
de desindustrialização em vigor desde então, reformulando a estrutura produtiva nacional
e impondo novamente uma evolução passiva ao desenvolvimento dos países centrais.
69

Nesse contexto, com os índices de desemprego e informalidade cada vez maiores,


principalmente nos centros urbanos, o fomento às micro e pequenas empresas é
fortalecido pela agenda política e econômica como solução para a crise do mercado de
trabalho, consolidando-se materialmente através de uma série de regulamentações que o
Estado realiza para facilitar a existência desses negócios. A segunda conclusão é que o
empreendedorismo surge como expressão ideológica deste processo, manipulando a
percepção dos trabalhadores de sua própria condição de classe ao mascarar o processo
histórico em vigor desde os anos 1990 que é fruto tão somente da imbricação dependente
do Brasil aos países centrais. Dessa forma, ao individualizar a crise do capital e
responsabilizar o sujeito pelo seu sucesso ou fracasso, o empreendedorismo faz ignorar
que as precárias condições de vida dos trabalhadores submetidos ao autoemprego são,
antes de tudo, um projeto de classe, e a única funcionalidade possível deste modo de
produção e da economia dependente!
Com isso, é necessário ressaltar que a presente pesquisa não se trata de um
manifesto contrário à existência dos pequenos negócios ou ao livre desejo de empreender.
Deve-se reconhecer que estes negócios podem oferecer uma possibilidade real de
progresso econômico e distribuição de renda, e para a imensa maioria da classe
trabalhadora brasileira representam uma fonte de renda, além de perspectivas de
desenvolvimento profissional autônomo e uma vida digna sem submeter-se a exploração
do outro. Pelo contrário, buscamos evidenciar que, no Brasil, a negação do trabalho aos
trabalhadores é o próprio modus operandi desta economia, e que as políticas de apoio às
micro e pequenas empresas e fomento ao empreendedorismo possuem limitações muito
concretas na economia dependente, intensificando e legitimando a exploração do
trabalho.
70

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