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Capítulo 1

DEUS E A CRIAÇÃO

O calendário judaico dá como certo que a contagem do tempo do mundo


começou ao pôr do sol da quinta-feira, em 7 de outubro de 3761 a.C.

Exatamente, quando Deus criou Adão.

Há controvérsias.

Citado pelo português Eça de Queiroz em seu Adão e Eva no Paraíso,


James Ussher (1581-1656), arcebispo de Armagath e primaz da Irlanda,
gastou anos e mais anos lendo, estudando, calculando e comparando as
épocas e as histórias e lendas do Oriente Médio e do Mediterrâneo com
tudo que é escritura sagrada, com o único propósito de estabelecer a data da
criação.

E ele chegou a estas conclusões, que publicou em seu The Anals of The
World (1658): pelo calendário Juliano (adotado pelo imperador romano
Júlio César em 46 a.C.), foi no início da noite, por volta das 6 horas de um
domingo, 22 de outubro de 4004 a.C.

que, conforme o Gênesis, “no princípio, criou Deus os céus e a terra”; e


Adão foi criado seis dias depois, às 2 horas da tarde da sexta-feira, 28.

Por isso, e por muitos outros cálculos sobre as datas das histórias sagradas,
James Ussher é referendado como o pai da cronologia bíblica.

Por exemplo, ele concluiu que o Dilúvio ocorreu em 2346 a.C.

Mas, como tudo nesse mundo tem um porém, dois detalhes importantes
devem ser considerados.

O primeiro é o que está dito claramente no Segundo Testamento, em 3:8 do


livro 2 Pedro: “Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer,
que, para o Senhor, um dia é como mil anos; e mil anos como um dia”; o
segundo, para a ciência, cada dia vale 1 milhão; e 1 milhão, cada dia.

E o resultado da multiplicação da conta bíblica bate com o número da


ciência.

Como se sabe, a criação do mundo se divide entre duas teorias: a


criacionista, a de que o mundo foi criado por Deus; e a evolucionista, a de
que tudo no mundo resulta da evolução das espécies, tese defendida pelo
inglês Charles Darwin.

*** Terça-feira, 27 de dezembro de 1831.

Início do inverno no Hemisfério Norte.

Como sempre, às 2 da tarde o porto de Plymouth, Inglaterra, estava em


polvorosa.

Não sem razão.

Localizada no sudoeste do país, a cidade é banhada pelos rios Plym e


Tamar, dando-lhe a condição de um dos maiores e mais espetaculares portos
naturais do mundo.

Era ponto de partida e de chegada de embarcações de todos os tipos,


carregados de cereais, especiarias, tecidos e tudo que era carga valiosa,
movimentando o comércio e a economia naquela era da ordem econômica
mundial.

Embora ainda início de inverno, não chovia, mas os raios do sol também
não conseguiam varar as nuvens densas, cinzentas, que encobriam a cidade
e seu porto.

No máximo, corria uma brisa que, de vez em quando, fustigava as


coberturas de pano das tendas, as folhas das árvores; mas fazia frio.

Albatrozes volteavam numa dança metódica e, de repente, um ou outro


mergulhava na praia, de onde logo submergia com um peixe se debatendo
na ponta de seu bico.
Na área do cais, o movimento era intenso, acalorado mesmo, embora as
esporádicas rajadas da brisa.

Era um vai-e-vem incansável de carregadores, mercadores, compradores,


vendedores, homens, mulheres e meninos, tudo que é gente que
movimentava e fazia crescer a importância daquele centro portuário.

Sobre tudo isso, o que imperava mesmo era o velho farol, uma torre
levantada em 1759 para guiar os navios mercantes e da armada britânica
por aqueles mares.

No porto de Plymouth estava ancorado o HMS Beagle, amarrado com suas


grossas cordas aos cabeços de ferro do cais.

Era um brigue, uma espécie de corveta a vela, dotado de dois mastros e


velas quadradas transversais, lançado ao mar 11 anos antes.

Foi um dos 107 navios daquele tipo construídos pela Marinha Real
Britânica para suas campanhas marítimas, garantindo o poder naval dos
ingleses na época.

Agora, porém, o HSM Beagle já não era o mesmo, não mais era uma nave
de combate; fora transformado numa espécie de barca e adaptado como
navio hidrográfico, preparado para viagens de exploração de longo curso.

Na cabine de comando, o capitão Robert FitzRoy cuidava para que todas as


providências necessárias, que ele mesmo recomendara, fossem executadas a
contento para não haver falhas na sua missão.

Era a segunda vez que aquele jovem aristocrata de 26 anos iria comandar o
brigue.

Na primeira viagem de exploração do Beagle, iniciada em 22 de maio 1826,


para fazer o levantamento hidrográfico das águas costeiras da Patagônia e
da Terra do Fogo, o navio era comandado pelo capitão Pringle Stikes.

Stikes era um fraco de mente e de espírito, tanto que, quando a expedição


contornava o Estreito de Magalhães, entrou em depressão, fechou-se em sua
cela durante 14 dias e, em agosto de 1828, meteu um tiro de pistola em sua
têmpora direita.

Morreu 11 dias depois de viver em constante delírio.

Sorte de FitzRoy, então um tenente, mas ajudante do comandante-em-chefe


da esquadra britânica na América do Sul, que o fez comandante interino do
Beagle.

Exatos três anos após, o capitão FitzRoy era, de novo, o senhor do HMS
Beagle.

Ele sabia que a sua nova missão, que na verdade iria complementar a
anterior, era de importância estratégica tanto em termos bélicos, para
garantir à Armada Britânica o domínio dos mares, como em termos
econômicos, para a exploração e expansão das rotas marítimas.

Meticuloso, o jovem capitão sugerira reparos e alterações no casco do


navio, para lhe dar maior velocidade e segurança durante a navegação.

Assim, da cabine de comando, observava o movimento de marinheiros nos


últimos preparativos para o início da viagem.

Via também que os 70 pesquisadores integrantes da expedição vagueavam


pelo convés ou estavam na área inferior do brigue, checando equipamentos
e livros necessários para as suas pesquisas.

Mas um jovem se destacava no meio daquela multidão, pela sua magreza e


inquietude: Charles Robert Darwin, um rapaz que dentro de um mês e meio
iria completar 23 anos de idade.

O capitão o olhava com desconfiança, embora considerasse que nada


poderia fazer para impedir a sua permanência a bordo.

Até porque, aquela não era uma expedição militar, mas de exploração
científica.

Por isso mesmo estavam ali, à sua frente, aquelas dezenas de estudiosos e
pesquisadores destacados para a expedição.
O capitão sabia que, anteriormente, o jovem Darwin começara a estudar
medicina; como não gostava dessa sina, e por decisão do pai, passara a
cursar teologia, mas, como naquela época havia uma grande onda em
relação ao geneticismo, naturalismo e evolucionismo, o rapaz começou a
pensar sobre aquelas novas ideias que questionavam o que lhe ensinava a
teologia.

O capitão FitzRoy sabia mesmo que o jovem Darwin embarcara no HMS


Beagle, sob seu comando, por puro prestígio e patrocínio financeiro do pai,
e sobre isso ele nada poderia fazer; era uma praxe nas expedições
comerciais e científicas da época.

De seu lado, o magro Charles Darwin conseguira a grande e única chance


de sua vida.

Sua tarefa naquela expedição era corroborar, ou até alterar, os parâmetros


de navegação, principalmente no Rio de Janeiro, uma das escalas da
expedição.

E eis que às 2 da tarde, em ponto, o apito do HSM Beagle começou a zoar


com estridência, soltando o seu longo e grave HOOOMMM de três
segundos, de forma intercalada, avisando que era hora da partida.

As grossas amarras que seguravam o navio nos cabeços de ferro plantados


no cais foram soltas e, então, enquanto o HOOOMMM do apito continuava,
lentamente o brigue começou a se afastar do cais, a ganhar o mar aberto.

Pouco mais de meia hora depois, a ponta de seu mastro mais alto sumiu no
horizonte enevoado.

*** A primeira parada da viagem foi no arquipélago de Cabo Verde, em


janeiro de 1832.

Darwin ficou fascinado com sua primeira visão de vegetação tropical e com
a geologia do lugar.

Foi aí que germinou em sua cabeça a teoria da evolução das espécies.


Dali, a expedição seguiu para Salvador, na Bahia, onde ficou horrorizada
com a escravidão, e em 29 de fevereiro de 1832 chegou ao Rio de Janeiro.

Daí em diante, toda a viagem do Beagle, que deveria ter durado dois anos,
se estendeu por longos quatro anos e nove meses até a sua volta à
Inglaterra, em 1836.

E isso aconteceu porque Darwin e seus pesquisadores passaram dois terços


desse tempo em terra firme, investigando geologia e fazendo coleções da
história natural.

Darwin publicou o resultado de todos os estudos feitos nessa longa


expedição, no livro A Origem das Espécies, em 1859, em que defende que
todos os seres vivos se desenvolveram a partir de um ancestral comum; no
entanto, segundo o jovem cientista, um elemento levou as diferentes
espécies a modificarem-se, à medida em que se adaptavam ao habitat em
que viviam ou passavam a viver.

A isso, ele denominou de ‘seleção natural’, em que os mais aptos


sobrevivem.

Em outras palavras, na concepção de Darwin, o homem é produto da


evolução biológica, e se modificou para se adaptar ao meio em que vivia.

Aliás, bem antes, o francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) criou a


teoria da herança de caracteres adquiridos.

E mesmo na época de Darwin, o austríaco Gregor Johann Mendel (1822-


1884), monge agostiniano, meteorologista e biólogo botânico, formulou em
1865 as leis da hereditariedade, da transmissão dos caracteres hereditários.

Depois de passar sete anos cruzando feijões, chicória e, sobretudo ervilhas,


Mendel concluiu que a existência de características das flores (como a cor)
é devida a um par de unidades elementares de hereditariedade, hoje
conhecidas como genes.

Por isso mesmo, ele é considerado o pai da Genética.


Agora, atente-se para isso: a bioquímica estabelece que os seres humanos
são formados por células; as células, por sua vez, contêm moléculas,
chamadas de nucleotídeos, que formam os dois ácidos nucleicos: o DNA, o
ácido dexorribonucleico, uma molécula alongada formada por duas fitas
unidas de nucleotídeos e que contêm todas as nossas informações genéticas;
e o RNA, o ácido ribonucleico, constituído de um único filamento de
nucleotídeos e responsável pela síntese das proteínas.

Pois bem, em 1979 pesquisadores do Los Alamos National Laboratory, na


California, estabeleceram uma base de dados sequenciais de nucleotídeos e
as traduções de proteínas, que, em 1982, resultou no GenBank.

Esse GenBank é um arquivo de dados públicos internacional mantido pelo


NCBI, sigla do Centro Nacional de Informações Biotecnológicas, da
Califórnia, que hoje disponibiliza, para pesquisas, 5 milhões de códigos de
barra de DNA de aproximadamente 100 mil espécies de animais de
inúmeras partes do planeta.

Por longo tempo fuçando os arquivos do GenBank, o americano Mark


Young Soeckle, do Programa para o Ambiente Humano na Universidade
Rockfeller, e o geneticista David Solomon Theler, da Universidade de
Basel, na Suíça, chegaram a esta conclusão: todos os seres humanos
descendem de um mesmo casal, que teria vivido entre 100 mil e 200 mil
anos atrás.

E eles descobriram também que 90%25 das espécies de animais conhecidas


surgiram ao mesmo tempo que os humanos.

Não bastasse tudo isso, há o Projeto Genoma Humano Internacional, um


mapeamento genético humano liderado pelo cientista americano Francis
Collins, autor de A Linguagem de Deus, publicado em 2006.

Na introdução do livro, Collins explica que “o genoma é formado pelo


DNA de nossa espécie; é o código de hereditariedade da vida”.

Collins crescenta o seguinte: “A ciência é a única forma confiável para


entender o mundo da natureza, e as ferramentas científicas, quando
utilizadas de maneira adequada, podem gerar profundos discernimentos na
existência material.

A ciência, entretanto, é incapaz de responder questões como: Por que o


universo existe? Qual o sentido da existência humana? O que acontece após
a morte? Uma das necessidades mais fortes da humanidade é encontrar
respostas para as questões mais profundas, e temos de apanhar todo o poder
de ambas as perspectivas, a científica e a religiosa, para buscar a
compreensão tanto daquilo que vemos como do que não vemos”.

*** Tudo isto posto, e já enveredando pela tese do criacionismo, mais


romanesca, diz o Gênesis que, após criar o universo, Deus viu que a terra
“estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, mas o
soberano Espírito de Deus pairava por sobre as águas”.

Água.

Junto com a terra e o ar, ela é um dos três elementos substanciais para a
existência de vida e da própria terra, mas em momento algum da Bíblia está
dito que o Divino tenha criado a água.

E no dia da criação, ela estava lá.

É fato que o mundo começou com uma explosão.

Na teoria evolucionista, foi com o Big Bang; na criacionista, pela


exclamação de Deus: - Haja luz! E a luz se fez.

E pouco importa qual tenha sido, essa explosão formou elementos os mais
variados que, reagindo entre si, produziram novas explosões e estas, por sua
vez, liberaram gazes, vapores, nuvens...

Num processo contínuo e eterno, de 1, 1 mil ou 1 milhão de dias, ou de


anos, toda essa ebulição resultou, então, na formação da atmosfera no ar; na
terra, dos rios, dos lagos e dos mares, e, muito mais importante, cada um
desses elementos interagindo entre si como condição sine qua non para a
sua própria existência.
Pela tese do criacionismo, portanto, estava criado o Éden, o Paraíso.

E Deus viu com bons olhos que a luz era boa e, então, fez a separação entre
a luz e as trevas.

À luz denominou dia; às trevas, noite.

E assim, como relata o Gênesis, “houve tarde e manhã, o primeiro dia”.

Ao segundo dia, criou o “firmamento e chamou Deus ao firmamento Céus”


e, assim, houve tarde e manhã, o segundo dia.

OS ANGÉLICOS

O Gênesis não traz qualquer menção à criação desses seres celestiais, mas
em outras partes da Bíblia há a suposição de que surgiram exatamente no
segundo dia de trabalho de Deus.

Eles foram criados aos montes, aos milhares mesmo, e passaram a viver ao
redor de Deus, todos com uma característica: eram alados.

Tinham uma hierarquia, destacada em Isaias 6:2, Ezequiel 1:5-14 e 10:7-


8;21, Efésios 1;21, Colossenses 1:16, 1 Tessalonicenses 4:16, Hebreus 9:5 e
Judas 1:9.

Os dois primeiros dessa hierarquia eram os Serafins, anjos de seis asas, os


mais próximos de Deus, a quem adoravam com louvor, e os Querubins, os
guardiões das coisas de Deus.

Quatro outras castas angelicais são pouco mencionadas na Bíblia e quem as


definiu foi São Jerônimo: Tronos, que estão sempre ao lado do trono
celestial e atentos às razões das obras divinas, e são sempre representados
com um instrumento musical por serem inspiradores dos homens para as
artes; Dominações, os anjos que participam do governo das sociedades;
Principados, os encarregados da repartição dos bens espirituais; Potestades,
os que lutam contra as forças adversas; Virtudes, os encarregados de fazer
os milagres.
As duas últimas castas têm importância nas narrativas bíblicas e nas
tradições judaicas: os Anjos, que têm a missão de ajudar os homens a
chegarem à salvação, a eles guardando e protegendo dos perigos da alma e
do corpo; os Arcanjos, que compõem a maior casta dos seres angelicais,
uma espécie de tropa de elite do Exército de Deus, sempre a Seu serviço
para o cumprimento de missões especiais.

A tradição judaica cita quatro arcanjos: Miguel, Gabriel, Uriel e Rafael.

Destes, Miguel e Gabriel são mencionados na Bíblia, enquanto Uriel consta


do livro apócrifo Enoque (livro citado em Hebreus, 2 Pedro e Judas), e
Rafael, no apócrifo Tobias.

Mas, entre todos os seres celestiais, dois se destacam no último livro da


narrativa bíblica, o Apocalipse, precisamente em todo o seu capítulo 12:
Miguel (sobre quem vamos tratar mais adiante nesta narrativa) e Lúcifer.

Na Vulgata, a tradução da Bíblia do hebreu para o latim, está citado o nome


Lúcifer em Isaías 14:12, e isso é seguido nas suas traduções para o inglês e
até na famosa Bíblia King James, feita para propósito único da Igreja
Anglicana, fundada pelo rei Henrique VIII em seu cisma particular contra a
Igreja Católica, só para assegurar o divórcio com Catarina de Médicis e o
casamento com a segunda de suas seis esposas, Ana Bolena.

Só não aparece na tradução feita por João Ferreira de Almeida (1628-1691)


para o português, que o cita como “estrela da manhã”.

Lúcifer foi o mais famoso dos querubins, os guardiões das coisas de Deus.

O livro de Ezequiel trata especificamente desses seres.

Em 1:5-14, por exemplo, define com precisão a sua aparência: “semelhança


de homem”, e a “forma de seus rostos era como de homem”, mas, à direita,
de leão; à esquerda, de boi; e, provavelmente atrás, de águia.

Como os demais angélicos, o querubim Lúcifer vivia ao redor do Divino.


E Deus mesmo notava que ele era um sujeito diferente, ativo, e até o tinha
em conta por seus questionamentos a respeito de tudo, sempre querendo
saber os detalhes de como as coisas eram, como aconteciam e quais eram as
suas consequências.

Mas não era só isso: Lúcifer também era a vaidade em pessoa, pois
considerava-se bonito, forte e elegante, e fazia-se destacar sobre os demais
angélicos pela inteligência, outro predicado de que se achava dotado.

Não sem razão: nas conversas de grupos, e mesmo nos debates entre os
angélicos e Deus, as suas palavras eram sempre apreciadas e aguardadas
com sofreguidão, tanto quanto as do Divino.

Já naquela época, o segundo dia da Criação, Deus era considerado um


taciturno, exigente e cobrador.

O que determinasse, virava lei pétrea que tinha de ser seguida à risca por
todos os angélicos, embora Ele nunca tenha decretado, até aquela época,
punições para os desobedientes.

Até porque, ali, nos domínios angelicais, não havia clima para isso, para
desobediência.

E enquanto Deus era direto, falava sobre a criação e os rígidos limites de


ação de cada uma das centenas de milhares de criaturas angelicais, Lúcifer
ia na contramão.

Não que pregasse a desobediência a Deus, ou que o desmentisse sobre uma


ou outra determinação divina.

Isso não, ele não era besta de fazer abertamente, de forma descarada, mas
atiçava o cérebro dos angélicos para o fato de que eles poderiam ser
maiores e mais poderosos do que todos os milhares e milhares de seres que
viviam no plano celestial, ao redor de Deus, beijando as barras das vestes d
´Ele.

Aliás, a maioria dos angélicos reagia àquele comportamento vaidoso de


Lúcifer como uma brincadeira sem sentido.
Ora, bolas, se dentro de cada hierarquia angelical as coisas funcionavam
sem essa de líder e seguidores, por que aquele metido a besta vinha com
essa história? Por isso mesmo, os angélicos leais a Deus não entendiam por
qual razão Ele era tão condescendente com Lúcifer.

Esperto, Lúcifer descobriu uma coisa importante: entre os milhões de


angélicos ao redor de Deus, milhares se sentiam frustrados com a rigidez
celestial, reprimidos nas suas ações, famintos no querer agir, sedentos em
transformar, mudar a rotina celestial.

No entanto, ele não deu pão e água aos insatisfeitos, mas palavras
encorajadoras de que, mesmo com fome e sede, eles poderiam reagir e lutar
por uma vida que lhes fosse justa.

Dessa forma é que terminou se tornando o mais influente não só perante a


sua casta, mas entre todas as hierarquias dos angélicos.

E mesmo já nesse ponto, Deus ainda entendia que o comportamento de


Lúcifer era aceitável, desde que aquilo não passasse de uma mera vaidade.

Ocorre que não foi assim, uma coisa tão simples, pois essa influência sobre
os demais, um dom natural, terminou virando a cabeça de Lúcifer.

Ele gostava de se exibir, mas também o dom de influenciar os angélicos o


fez tomar gosto por algo muito mais grave: o de se impor.

Já não lhe satisfazia apenas a admiração pelo seu porte, beleza e


inteligência.

Queria ser maior do que na realidade era.

Mas logo ele entendeu que, sozinho, jamais alcançaria esse objetivo.

Então, a primeira coisa que fez foi conquistar adeptos, se cercar de


angélicos como ele, mas que fossem, nessa ordem, reacionários, leais, aptos
e defensores; sobretudo, também propagadores das ideias dele.

- Pra que? - perguntou-lhe Azazyel, um anjo, fiel escudeiro de Lúcifer.


- Não sei.

Mas sinto que, se tiver seguidores, terei força.

E quanto mais seguidores e força, mais poder.

- Com que propósito, gente? – indagou de novo o anjo.

- Já disse - respondeu Lúcifer, acrescentando em seguida: - Não sei ainda,


mas certamente isso será de boa utilidade no futuro.

O que se sabe é que, com o tempo, Lúcifer conseguiu conquistar mentes e


corações de milhares de seres angelicais e, então, uma ideia começou a
fervilhar em sua cabeça: ser maior do que Deus, o seu criador.

ADÃO

Continuando no trabalho de sua criação, ao terceiro dia Deus separou a


Terra e os Mares e criou tudo que neles há; ao quarto criou os luzeiros no
firmamento, o maior para governar o dia, o menor para governar a noite, e
fez também as estrelas, tudo isso colocado no firmamento dos céus para
alumiarem a terra; ao quinto povoou de enxames de seres viventes as águas
e criou as aves que passaram a voar sob o firmamento.

Ao sexto dia, Ele produziu os seres viventes sobre a terra, de tudo que é
espécie: os animais domésticos, répteis e animais selváticos, e a terra tinha
como característica a cor vermelha.

Seis importantes e enigmáticos dias bíblicos; 6 mil, ou 6 milhões de dias


claros para Deus naquele Seu universo.

E quase ao final daquele sexto dia, olhando ao redor, Deus se comprazia


com toda a Sua criação, um trabalho que Lhe exigira tanto esforço.

Mas ao admirar aquilo tudo, toda aquela beleza, bateu-Lhe uma dúvida:
para que tudo isso, todo esse esplendor e essa maravilhosa riqueza, se não
há quem o usufrua? Até porque, pensava Ele, os seres que acabara de criar e
nadavam placidamente nas águas, voavam livres, leves e soltos sob o
firmamento, e caminhavam e rastejavam com tranquilidade sobre a terra,
tinham ação e visão limitadas.

Eram irracionais.

E eles foram feitos da terra assim mesmo, irracionais, sem nunca poderem
ter noção de nada daquilo, e até de si mesmos.

Por horas a fio Deus ficou sentado no trono celestial, silencioso, matutando,
ora coçando a cabeça com vagar, às vezes cofiando com lentidão a barba de
fios longos e brancos; de vez em quando levantava-se e, resmungando,
ficava dando voltas ao redor do trono, as mãos às costas, fuçando o cérebro
na tentativa de dirimir aquela dúvida, de encontrar uma resposta para o que
já começava a considerar toda aquela criação uma obra incompleta.
Impaciente, Ele voltou ao trono celestial, sentou-se relaxadamente e de
novo cofiou a barba branca, olhando fixamente para o nada.

Passou muito tempo assim, inerte, só cofiando a barba branca ou, às vezes,
enrolando as suíças com os dedos.

De vez em quando caia num estado letárgico, cochilando, batendo cabeça


contra a sonolência.

Era uma luta inglória contra o cansaço e Deus sabia disso.

Mas Ele, incansável, não se entregou: resistindo à sonolência, o Divino


continuava a mirar fixamente em frente, para o nada, tentando buscar no
imenso universo que acabara de criar, ao menos um ínfimo ponto de apoio
que pudesse sustentar aquele pensamento que batera em Seu cérebro.

E, de repente, algo chamou-Lhe a atenção.

A bem da verdade, Deus já vira aquilo vezes e mais vezes anteriormente,


mas só naquela hora é que se deu conta.

Ele se lembrava bem: quatro dias antes criara o firmamento no meio das
águas; depois, separou as águas do firmamento e ordenou que se juntassem
num só lugar, àquelas que estavam no solo, o que resultou no surgimento
dos mares e de uma porção seca, a que Ele chamou de terra.

Ocorre que, desde então, Deus não fizera chover sobre a terra, mas, a
despeito disso, dela uma neblina tênue subia vagarosamente e o orvalho
resultante caia e regava toda a superfície do solo.

E Deus observou mais: nada saía das entranhas daquela terra vermelha.

De fato, como deixa a entender o Gênesis, naquele sexto dia da criação o


Éden não passava de um campo aberto, cheio de planícies e planaltos,
colinas, montes e montanhas, além de depressões que mostravam o interior
da terra.

Tudo aquilo era um imenso e majestoso descampado, não havia ainda


nenhuma planta; uma erva, sequer, havia brotado.

- É isso - exclamou Deus para si mesmo, em voz alta -, a paisagem mostra a


realidade, a terra nua, povoada de seres vivos, mas nenhum capaz de
dominá-la.

Num rompante, o Divino saltou do trono celestial e, em três passadas


largas, alcançou a terra nua.

Os pés chafurdaram no barro vermelho e umedecido pelo orvalho, mas Ele


conseguiu equilibrar o corpo; agachou-se e, com as mãos, passou a
trabalhar aquela massa, sem nem se preocupar com o fato de que sua túnica
branca se sujava com o respingo daquele barro.

É que Ele tinha uma ideia fixa na cabeça: criar um ser que pudesse não só
usufruir de todo o Paraíso, mas que também tivesse domínio sobre os peixes
do mar, dos lagos e dos rios, as aves do céu e os animais domésticos e
selváticos, e sobre toda a terra.

Um ser como Ele mesmo, à sua imagem e semelhança, em tudo por tudo.

Deus passou horas a fio construindo a sua criatura a partir daquele barro
vermelho e, por fim, admirado, tinha à sua frente uma estátua, mas numa
forma diferente de todos os outros seres que Ele também criara da terra e já
habitavam o Paraíso, inclusive os angélicos.

Ou melhor, em seu conceito estrutural, todos os seres vivos até então feitos
do barro vermelho por Deus, eram iguais, formados por cabeça, tronco e
membros, e isso tinha um sentido lógico: o tronco, o ponto central do corpo,
para abrigar os órgãos vitais; a cabeça com a função de ver, ouvir, cheirar,
comer, emitir sons, e reagir por instinto; os membros, divididos em
superiores e inferiores, com funções distintas, a depender do ser e seu
habitat.

No geral, no entanto, os membros serviam para que os seres mantivessem o


seu prumo em relação à terra, se movimentassem e, sobretudo, se
defendessem.

E já que era à Sua imagem e semelhança, àquele ser, que acabara de criar,
Deus dotou de algo além do sentido lógico do corpo em relação a todos os
outros seres, aves, peixes e animais que viviam sob o firmamento: o pensar.

O pensar como Ele, Deus, mas sob o Seu controle estrito.

Como o ser estava estático à Sua frente, Deus não contou história: com o
Seu poder divino segurou os ombros daquela estátua, soprou nas duas
narinas dela e, enquanto aguardava o resultado, aquele sopro divino
percorreu um longo caminho pelo interior do corpo feito de barro vermelho:
primeiro, destravou a faringe; em seguida, abriu as comportas da laringe e,
então, desceu pela longa traqueia, no fim da qual desembocou nos
brônquios, dividindo-se em dois; a seguir entrou nos pulmões e misturou-se
com o sangue vindo da medula óssea.

Invadiu, então, o coração, ativando-o como uma bomba a irrigar a vida


através de veias, vasos e artérias, e isso passou a acionar todo o mecanismo
do corpo humano, das complexas partes e interligações do cérebro às pontas
dos dedos dos pés.

O homem feito do barro, daquele mesmo barro vermelho que pisava,


aspirou o ar com sofreguidão e, ao acordar para a vida, teve como primeira
visão a imagem de um ser de cabelos e barbas brancos, as mãos daquele ser
a lhe segurar com firmeza os ombros, os olhos fixos nos dele como a
esperar ansioso por uma reação, ao menos uma piscadela que fosse daquela
sua cria.

Não que Deus duvidasse de si, de seu poder de criação, mas é que criar um
ser à sua imagem e semelhança não foi algo tão simples assim.

Ou melhor, para Deus, fazer o universo, fazer surgir a terra e o ar com todos
os seus seres vivos, foi uma luta constante e sem descanso, a cada dia,
naqueles seis dias.

Mas criar aquele ser à sua imagem e semelhança em tudo e por tudo exigiu
esforços extras, foi bem mais diferente e cansativo do que colocar todos os
seres vivos na terra porque, a estes, Ele não deu o poder do raciocínio.

Após mirar aquele ser de barbas e cabelos brancos, o olhar fixo nos seus
olhos, logo o ser de barro, que acabara de despertar para vida, desviou o seu
olhar para a esquerda e depois para a direita, e voltou a olhar para o ser à
sua frente, que agora estava a sorrir, feliz, satisfeito.

- Eu te nomeio Adão - disse Deus, e logo soltou os ombros e se afastou para


o lado direito da cria: - Agora vai, conhece o mundo que te dou.

Adão nada disse, mas passou a olhar o mundo, para tudo aquilo que tinha
diante dos seus olhos perturbados por toda aquela intensa luminosidade
emanada por um globo suspenso lá no firmamento, naquele início de tarde,
segundo Ussher, ou ao por do sol, de acordo com o calendário judaico.

O certo é que o homem levantou a mão esquerda sobre as pestanas para


quebrar aquela intensa claridade, olhou para um lado e para outro e mirou o
descampado imenso e cheio de seres, alguns se movimentando sobre a terra,
enquanto outros, no ar, batiam asas, davam voos rasantes ou simplesmente
volteavam ao redor dos dois.

Sem emitir um único som, o homem permaneceu estático, e só observava.

E já que Deus deu a ele a capacidade do raciocínio, do pensar, logo


entendeu, por exemplo, que estava na mesma linha daqueles seres que
caminhavam ou rastejavam sobre a terra.

E, nessa categoria, notou que a grande maioria daqueles seres, do mais


ínfimo ao mais gigantesco, só se movimentava com o corpo em paralelo ao
chão, apoiado por quatro membros com que, coordenadamente, caminhava
pela terra.

Outros seres se movimentavam da mesma forma, mas podiam levantar o


corpo e apoiá-lo sobre os membros inferiores e, assim, também
caminhavam eretos.

Como, ao acordar para a vida, Adão já estava ereto, apoiado sobre os


membros inferiores - como Deus, aliás -, logo identificou-se com aqueles
tipos de animais, mas fez o contrário: arqueou o corpo e o deixou descer até
o chão, amparando-se com os braços, as mãos fechadas, as falanges
proximais contra o solo.

Tentou se movimentar, mas em pouco tempo teve de desistir: a pele e a fina


carne daquela parte das mãos estavam dilaceradas, sangrando.

O homem ergueu-se, sentiu um ardor nas feridas dos dedos e soprou sobre
elas para aliviar aquela queimação, mas não desistiu.

De novo imitou aqueles mesmos animais, agora tentando caminhar de


forma ereta, mas caiu quando deu o primeiro passo com a perna direita.

Foi aí que Adão entendeu que era completamente diferente de todos os


demais seres do universo, inclusive os angélicos, aqueles seres alados e de
poderes especiais, mas também fora criado por Deus, e com uma
característica importante: à Sua imagem e semelhança, e o Divino dissera
isso para quem quisesse ouvir.

A PELEJA NOS CÉUS

Lúcifer, como os demais angélicos, não só vivia ao redor de Deus; batendo


suas quatro asas, também ficava ziguezagueando em alta velocidade pelos
ares, guardando as coisas celestiais, mas também observando, atentando
para o que ocorria no Paraíso.
E, como os demais, naquele sexto dia da criação ele não só ouviu o Divino
declarar, mas também O viu enfiar as mãos no úmido barro vermelho do
Paraíso e construir um ser completamente diferente de todos os que ele até
então havia criado, um ser à Sua imagem e, como prometera minutos antes
o Criador, conforme a Sua própria semelhança.

Em seguida, como se recorda, Deus ergueu aquele ser feito de barro pelos
ombros e lhe soprou as ventas, dando-lhe a vida; depois, o Divino
determinou ao novo ser: “Enchei a terra e sujeita-a”.

- Oxente!? - reagiu de imediato Lúcifer.

- Oxente o que, meu líder? – perguntou Azazyel.

- Tu prestaste atenção ao que Deus fez e disse? - Ôxe! – respondeu Azazyel,


acrescentando de imediato -, claro que sim.

Deus acabou de criar um ser para ter imposição sobre tudo que há no
Paraíso.

É um direito dele.

- Direito de quem? - De quem mais? Direito de Deus, ôxe! Essa assertiva de


Azazyel desnorteou Lúcifer, e assim ele ficou por um momento, até meio
taciturno.

Ele ruminava consigo mesmo: será que esses abestalhados não percebem,
ou é só eu que vejo? - Ê, Azazyel, tens o cérebro travado? Não percebes que
Deus acabou de criar um ser capaz de procriar e sujeitar o mundo? Nós, que
temos vivido lealmente ao redor d´Ele, viveremos eternamente, mas nunca
poderemos procriar.

Nesse tempo todo de lealdade, o que ganhamos com isso? - A glória de


Deus.

- A glória de Deus! E isso é bastante para ti? - Pra mim, é.

O que é que tem o fato de Deus ter criado esse novo ser, o homem, pra
encher a terra e dominá-la? Vi que Deus deu ao homem uma função e, pelo
que entendo, nós continuamos com a nossa função, protegendo as coisas de
Deus, inclusive Adão.

- Mas tu, como os demais dos nossos, não percebes uma coisa importante:
Adão foi feito à imagem e semelhança de Deus.

- E o que tem isso, Lúcifer? Por acaso estás procurando sarna para se coçar?
- Pois eu pergunto, sua besta quadrada: por que Deus também não fez a
gente à sua imagem e semelhança? E por que só Adão pode sujeitar a terra e
tudo que nela há? Fez dele um imperador, um tirano, e isso me deixa
indignado.

- Deixa de ser invejoso, Lúcifer! - Invejoso, eu? Ai, ai, Azazyel, vou te
mostrar o que eu sou, na realidade.

A ti e a Deus.

*** Foi aí que as engrenagens do cérebro de Lúcifer, o da sua face frontal,


com imagem de humano, começaram a engendrar um plano.

Sim, porque as outras três faces de sua cabeça eram de animais, não
raciocinavam.

Lúcifer arquitetou ser maior do que Deus.

E fez um projeto: erguer um céu acima do céu de Deus, e tornar o Divino


uma insignificância sob os seus pés.

Quer dizer, sob suas patas, pois, como define Ezequiel, os querubins tinham
pernas direitas, mas plantas dos pés como as de um bezerro.

E dessa vez, a tática de Lúcifer foi falar abertamente a todos os angélicos


sobre o seu propósito, de liderar um golpe para derrubar Deus do poder dos
céus.

Entre os arcanjos criados por Deus (sete, segundo o apócrifo Livro de


Enoque), há um que é considerado anjo da justiça e da harmonia: Raguél.
O problema é que, além de regulador, Raguél (ou Rauel) sempre cumpriu
uma missão muito especial, secreta, dada diretamente por Deus: vigiar o
comportamento dos demais angélicos, enquanto o Divino prosseguia no seu
trabalho de criação do mundo.

Para isso, o arcanjo criou uma meticulosa, intricada e competente rede de


agentes secretos, e esses agentes passaram a ser os seus olhos e ouvidos
entre todos os angélicos.

Assim é que, tudo o que se falava ou se fazia nos céus, não tinha
escapatória, chegava ao seu conhecimento e, por conseguinte, de Deus.

Pois foi com base nos relatórios de seus agentes que Raguél relatou a Deus,
com minúcias, todas as bravatas, provocações e ideias de Lúcifer.

- Por acaso você está querendo dizer que Lúcifer virou um revoltoso contra
mim, contra a ordem celestial? - Não estou querendo dizer, meu Deus -
respondeu Raguél, de pronto -, eu estou afirmando com convicção.

Aqui está uma síntese dos relatórios dos meus agentes sobre tudo que eles
viram e ouviram sobre esse caso.

Cabe ao Senhor decidir o que fazer depois de ler tudo isso.

Tudo bem, Raguél, mas você confia plenamente nesses seus agentes que
veem e escutam a tudo e a todos? - Ah, Senhor, me desculpe, mas fiz uma
seleção meticulosa.

Foi como procurar agulha num palheiro: investiguei a vida de cada um


deles.

Sei como vivem, o que fazem, com quem andam, o que dizem e até o que
pensam.

- Raguél, quando eu criei vocês, os angélicos, os fiz perfeitos.

- Com muita sabedoria, Senhor, - No entanto, ao longo do tempo alguns


andaram ensaiando comportamento fora das nossas normas.
Por isso é que te encarreguei de ser um vigilante dos angélicos.

- E me sinto honrado com a Sua confiança extrema.

- Porém, te pergunto, Raguél - cortou Deus com impaciência -, entre esses


teus agentes, não há alguém que tenha espírito vingativo? - Como assim,
meu Deus? - Um anjo, um podestade, um trono...

Sei lá! Qualquer um deles, por conta de uma rixa pessoal até, não poderia
estar denunciando alguém como rebelde, só por vingança? - Ah, não, meu
Deus, isso é impossível.

- Já percebi, meu arcanjo, que nada nesse mundo é impossível.

Tudo pode acontecer.

- Não nesse caso.

Nada me escapa.

Eu tenho uma tática, meu Senhor: cada um dos meus agentes vigia o
próximo.

Isso quer dizer que cada um vigia e é vigiado.

Para isso criei prêmios para afagar o ego de cada um.

Por isso mesmo, já expulsei centenas deles.

Deus tinha resolvido não avançar nessa questão de inteligência porque, ali
mesmo nos céus, em tão pouco tempo da Criação, já experimentava
dissabores.

Mas, ante a gravidade das informações expostas com convicção por Raguél,
Ele também tomou uma decisão mais grave ainda, extrema mesmo: chamou
o arcanjo Miguel e lhe deu a ordem para cortar pela raiz aquele mal, que já
estava empestando todo o céu.
Miguel era um dos arcanjos guerreiros criados preventivamente por Deus
para combater eventuais divergências filosóficas, ideológicas, sociológicas,
teológicas, teosóficas e democráticas ali nos céus.

Para isso, tempos antes ele nomeara os colegas de casta Rafael e Gabriel
como seus oficiais imediatos, e com eles escolhera, entre os angélicos, os
mais astutos, corajosos e fortes para formar um exército celestial.

Para combater Lúcifer, o Exército de Deus estava formado e até já tinha


experiência nesse tipo ação, ao repelir, tempos antes, uma dissidência que, a
rigor, não lhe ofereceu muita resistência.

Foi um grupo liderado por Yekun, um dos primeiros anjos criados por Deus,
que resolveu se rebelar contra o Criador só por se rebelar, mas sem uma
ideia, uma ideologia.

Terminou expulso dos céus sob a espada do exército celestial.

Miguel sabia que, com Lúcifer, seria uma luta diferente.

Não de vida ou morte, porque, mesmo em batalhas ferrenhas, e já fora


comprovado com Yekun e seus sequazes, os angélicos não morrem, pelo
menos até o final dos tempos.

Seria uma luta diferente porque, sabia ele, Lúcifer era muito astuto e,
sobretudo, tinha muitos seguidores, um terço dos angélicos criados por
Deus.

Miguel tinha uma certeza: aquela seria uma guerra titânica.

Enquanto Miguel, Gabriel e Rafael gastavam dias traçando estratégias de


luta, o exército celestial era treinado sistematicamente com o propósito de
não só anular as investidas dos rebeldes, mas simplesmente derrotá-los e
expulsar cada um dos seus integrantes do Paraíso.

Os versos 3 e 4 do Apocalipse fazem uma descrição de Lúcifer, citado


como um dragão: grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas
cabeças, sete diademas.
A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu.

E então, houve uma peleja no céu, resumida nos versos 7 a 9, em que o


exército de anjos comandado por Miguel enfrentou o exército de anjos
rebeldes liderado pelo dragão.

Foi uma peleja intensa, lutada ferrenhamente pelos dois lados.

E embora não tenha tido as características das guerras humanas de tempos


depois, cheias de barbaridades, consta que esse conflito celestial foi
intensamente brutal, em que milhões de angélicos de todas as castas foram
aniquilados.

Em síntese, o dragão e seu exército não prevaleceram: “E foi expulso o


grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor
de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, como ele, os seus anjos”
(Apocalipse, 12:9).
Capítulo 2

A REBELDIA DE LILITH

Naquele sexto dia da criação do mundo, e logo após ter sido feito por Deus
a partir do barro vermelho do Éden, e de ter sido despertado para a vida
pelo sopro Divino, Adão já sabia que era um ser diferente de tudo o que
existia no Paraíso, mas ainda procurava entender o que ele mesmo era
naquela paisagem.

Ao tentar se movimentar como os demais seres terrestres, que caminhavam


sobre o solo, levou muitas quedas e até se feriu por isso mesmo, mas
aprendeu a caminhar sobre a terra.

E depois de tanto tentar e se ferir, percebeu também o homem que, ao lado


de Deus, estava outro ser a observar os seus movimentos.

Corpo igual ao seu, mas com diferenças localizadas.

Deus então explicou que aquele ser, que Ele também acabara de construir
do barro vermelho, seria a auxiliadora dele no Paraíso, a companheira que,
de resto, todos os demais seres vivos também tinham.

Adão olhou com mais atenção para o ser que, como disse Deus, seria a sua
auxiliadora, sua companheira de vida.

Aí, sim, ele chegou à seguinte conclusão: da terra, Deus fez todos os seres
vivos, os animais domésticos e selváticos que andavam e rastejavam pela
terra, as aves que voavam sob o firmamento e os peixes que nadavam sob as
águas dos mares, lagos e rios, machos e fêmeas, exatamente com a mesma
aparência; a ele e à mulher, Ele os fez à sua semelhança, mas com corpos
diferentes na sua aparência exterior.

Não sabia o homem que, na aparência interior, eles também eram


diferentes, muito diferentes...
*** Por conta de uma passagem do Gênesis, estudiosos, cabalísticos e até
os hebreus concluem que, antes de Eva, na época chamada Varoa, outra
mulher habitou o Paraíso como companheira de Adão.

É, existe essa história, como muitas outras relacionadas com personagens


bíblicos, que foram banidas do Livro Sagrado e que a Igreja classificou
como apócrifas.

Mas, ironicamente, a história dessa primeira mulher foi tirada de um curto


trecho do capítulo 2 do Gênesis, cujo título é A formação da mulher, sobre a
criação da Varoa.

No caso, Eva, a segunda.

Aquele curto texto bíblico atiçou a mente dos exegetas, para quem a
indicação mais forte da existência dessa primeira mulher está nas últimas
frases de dois versículos daquele capítulo.

O primeiro é o 18, em que Deus reconhece não ser bom que o homem esteja
só e declara: “Far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea”.

O segundo é o 20, que diz, no entanto, que para o homem, no Paraíso, “não
se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea”.

Idônea? Das duas, uma: ou o Paraíso era habitado por muitas mulheres e
nenhuma delas era idônea, ou só existiu uma, que foi inidônea.

Eis a questão.

E para corroborar essa tese, há outra palavra icônica daquele curto trecho
que narra a formação da mulher, na segunda linha do versículo 23: afinal.

Essa palavra foi dita por Adão na sua exclamação logo que Deus lhe
apresentou a Varoa, a segunda mulher.

É que aquele afinal tem um significado consistente, considerando-se as suas


variantes enfim, finalmente, até que enfim.
A partir disso, os estudiosos, cabalísticos e hebreus passaram a argumentar
que Adão quis dizer que, agora, dessa vez, teria uma companheira, a quem
poderia amar e, com ela, procriar ali, naquele imenso Paraíso.

*** Como se vê, o Gênesis deixa rastros e mais rastros para essa história da
primeira mulher de Adão, antes da Varoa.

Sem falar que, ao longo dos séculos, os textos bíblicos foram manipulados
ao sabor de soturnos teólogos e monges, que os estudaram e transcreveram
conforme as suas próprias interpretações e seus níveis de conhecimento do
latim, grego e hebraico, e da própria Igreja que, depois de definir as
‘verdades’ que lhe interessavam para a Bíblia, passou a sedimentar a fé nos
corações e mentes dos fiéis.

Na verdade, a Igreja valeu-se de um artifício que, tempos depois, em


meados do século 19, foi classificado filosoficamente com uma palavra:
distopia.

Em síntese, distopia é um conceito que define subjugação.

Pois, ao definir a Bíblia como ela é, o que a Igreja fez foi subjugar os fiéis a
uma crença baseada nas ´verdades´ que a interessavam.

As ‘inverdades’, os textos classificados como apócrifos, foram censurados,


renegados mesmo, para os cristãos não serem acometidos de dúvidas sobre
a santidade de fatos e personagens que a Igreja considera a base da fé e da
religião.

Os exemplos dessa distopia são muitos na história da Igreja, e ela até


passou a usar uma outra palavra mágica para reforçar a sua ação no jugo
dos fiéis: anátema.

Anátema, substantivo masculino, é uma palavra do grego antigo que remete


a oferenda a uma divindade.

Nos padrões da Igreja Católica, porém, anátema significava terror, o pior


dos castigos que ela, a Igreja, como jurado e juiz, condenava os fiéis a
rígidas punições por heresias, e o pior deles era o Inferno, a negação do
Céu, através da excomunhão.

Era uma punição tão dura que só acontecia em cerimônias públicas


presididas por bispos ou cardeais.

A palavra anátema só é usada seis vezes em toda a Bíblia, e apenas no


Segundo Testamento: uma vez em Romanos 9:3 e em Atos 23:21, duas
vezes em 1 Corintos 12:3 e 16:22, e em Gálatas 1:8 e 1:9.

No entanto, os seus significados são usados em todo o Livro Sagrado:


execração, maldição, excomunhão, expulsão.

A anatemização foi usada pela primeira vez como regra pela Igreja, como
forma de punição rigorosa, no Concílio de Elvira, na Espanha, a que
compareceram 19 bispos da Península Ibérica.

Sabe-se que esse concílio foi realizado no século IV, mas em data incerta,
variando de 303 a 324.

E o que se tem de certo é que ele produziu 81 cânones que passaram a


regular a vida cristã, como o celibato obrigatório para os clérigos, o
casamento e o batismo, a idolatria e a excomunhão.

Ainda no século IV, e também em data imprecisa nos anos 323, 343 ou 376,
realizou-se o Sínodo de Gangra, cidade hoje denominada Çankiri, no
centro-norte da Turquia, com a participação de 21 bispos.

Na época, a Igreja já tinha um poder imensurável e, mais importante, sem


contestações, ao ponto de ela sustentar ou derrubar reis, enquanto
legitimava a escravidão.

Pois foi por conta da escravidão que aquele Sínodo de Gangra usou um
forte sinônimo de anátema, pela primeira vez, em um texto canônico: “Se
alguém, sob pretexto de piedade religiosa, ensina o escravo a desprezar o
seu amo, a subtrair a escravidão ou a não servi-lo com boa vontade e amor,
que seja excomungado”.
E entre dezembro de 1869 e dezembro de 1870, o Concílio Vaticano I, que
reuniu 744 bispos de todo o mundo, concebeu 18 cânones em que foram
definidas as transgressões passíveis do anátema, e no final de cada um deles
decretou o castigo maior ao transgressor: “seja excomungado”.

Desses 18 cânones, cinco estão relacionados a Deus, o criador de todas as


coisas; quatro à revelação; seis à fé; três, à fé e à razão.

Mas, desde o Concílio Vaticano II, realizado em quatro sessões entre


outubro de 1962 e dezembro de 1965, a palavra anátema e seus significados
não constam mais dos cânones da Igreja.

Em síntese, a Igreja simplesmente abandonou a sua face tirânica e passou a


usar um rosto mais complacente, entendendo que, ao invés de uma punição
radical como a excomunhão, um herege tem a oportunidade da recuperação,
se ele assim quiser.

Outra questão: o Gênesis, em 1:28, enfatiza que, depois de criar o homem e


a mulher, Deus os abençoou e disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e sujeitai-a”.

Há quem induza essa sentença divina a uma dúvida, de que existiam outros
casais no Paraíso.

Até porque, não tinha como Adão e uma mulher, seres humanos sozinhos
no Paraíso, encherem a terra.

E era regra comum no Éden: fêmeas de seres grandes só geravam um


rebento a cada vez.

Com raras e inexplicáveis exceções, numa mesma gestação podiam vir, no


máximo, duas, três...

crias.

E a mulher criada por Deus também estava nessa categoria Sendo assim,
como esse único casal de humanos poderia encher a terra? Isso, certamente,
levaria anos, séculos, milênios.
Outros argumentam: a história bíblica da criação do homem e da mulher por
Deus foi num sentido figurado, pois, na verdade, naquela hora o Divino
criou a própria humanidade, distribuída por todo o seu Paraíso.

Até hoje a Igreja Católica, porém, não concorda com a teoria de que o
Paraíso foi habitado por vários casais humanos, que teriam originado toda a
humanidade.

No entanto, a encíclica Humana Generis, editada em 12 de agosto de 1950


pelo papa Pio XII, deixa aberta a discussão em favor da teoria da evolução.

E mais: considera que a forma como surgiu a matéria corpórea não faz parte
do depósito da fé, desde que o fiel creia que, em algum momento, Deus deu
ao homem uma alma, que o diferenciou dos demais animais.

Essa tese de Pio XII foi referendada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965),
evento marcado pela abertura com a ciência e pela salvaguarda dos direitos
humanos, com destaque para a liberdade de expressão.

Em 1978, o cardeal polonês Karol Wojtyla foi feito 264º papa da Igreja
Católica, numa eleição surpreendente.

Escolheu o nome João Paulo II e, como tal, afável e carismático, com suas
viagens peregrinas conquistou o mundo e assim, nos seus 27 anos de
pontificado, foi o papa mais pop de todos os tempos.

Partidário da tese que a ciência e a fé deveriam andar juntas, reunia-se


constantemente com cientistas, sobretudo os biólogos, os da sua predileção.

No entanto, João Paulo II também tinha os seus pecados, muitos deles


mortais.

Como um rei da Igreja, jamais se juntou aos pobres, aos desassistidos, às


minorias; os escândalos do Banco do Vaticano pipocaram; as denúncias de
pedofilia contra padres, bispos e arcebispos, que se alastraram pelo mundo
todo, simplesmente foram ignoradas.
Mas o mais grave de todos esses pecados foi ele, e o cardeal alemão Joseph
Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, terem não só
renegado o preceito do Concílio Vaticano II no que toca à liberdade de
expressão, mas o combateram ferrenhamente.

Para tanto, os dois promoveram uma redução drástica na liberdade de


investigação teológica e, por conta disso, centenas de teólogos foram
condenados e até proibidos de pesquisar, escrever e ensinar sobre teologia.

Com a morte de João Paulo II em 2005, Ratzinger tornou-se o papa Bento


XVI até 2013. Tudo isso explicado, sabe-se que a história da primeira
mulher do Paraíso, antes de Eva, deriva de uma tradição hebraica recente,
de pouco mais de 800 anos atrás, influenciada pelos rabinos no Talmud, o
livro que registra as palavras desses líderes religiosos: a de que ela teria
sido Lilith, criada e batizada por Deus quando da própria criação de Adão e,
como ele, também feita do mesmo barro vermelho característico daquela
parte da terra.

Também da mesma época há o The Alphabet of Bem Sira, uma coletânea


medieval de provérbios escritos em hebraico e aramaico.

É o primeiro documento a declarar que Lilith foi a primeira mulher de


Adão: “Após ter Deus criado Adão, que estava sozinho, Ele disse, Não é
bom que o homem esteja só”.

Continua o livro: “Criou Ele então uma mulher para Adão, tirada da terra,
assim como havia criado o próprio Adão, e a chamou de Lilith”.

Ocorre que a frase grifada no parágrafo anterior (Não é bom que o homem
esteja só), destacada naqueles provérbios escritos em hebraico e aramaico,
também está no Gênesis 2:18, que trata da formação da mulher, e que na
sequência diz que ela é a Varoa, a mulher que Deus criou a partir da menor
costela do lado esquerdo de Adão, para servi-lo como “uma auxiliadora
idônea”.

De qualquer forma, seja qual for a versão, elas têm em comum a assertiva
de que Deus fez Lilith surgir no mundo como uma mulher e a deu como
esposa e colaboradora a Adão, e os dois começaram a coabitar no Paraíso.
A história de Adão e Lilith é escassa, mas, pelo que se sabe hoje, passaram-
se dias, semanas, meses mesmo, em que o casal vivia numa felicidade total,
os dois usufruindo do Paraíso e se amando em tudo por tudo e em tudo que
era brecha de oportunidade, O problema é que, mesmo no Paraíso, também
já existia algo que, lenta e silenciosamente, se infiltra no cérebro de uma
pessoa, corroendo a vida em comum de um casal: a rotina.

Adão, é preciso explicar, e está provado pelo seu comportamento linear


durante toda a sua vida no Éden, nunca foi acometido disso.

Primeiro, porque ele amava, respeitava e temia a Deus sobre todas as


coisas; depois, como consequência direta do trabalho intenso de dominar a
terra, a todo instante o Paraíso lhe abria a mente para coisas novas e, na
visão dele, novas e divertidas aventuras.

Em Lilith, no entanto, o micróbio da rotina foi implacável, instalou-se no


cérebro dela.

Assim, mesmo usufruindo de tudo que havia no Paraíso, inclusive Adão,


com o tempo a mente da mulher se abriu para coisas que nunca havia
percebido antes: as mesmices do Éden.

Os dias corriam, as semanas passavam, os meses se arrastavam, os anos


seguiam na sua lentidão inexorável, mas tudo era igual, e isso a deixava
variada.

Com o passar do tempo, no pensamento da mulher a bonança no Paraíso era


tão certa e constante que não dava margem para se conhecer o contrário, e
isso cada vez mais a irritava.

Uma vez, ela questionou o marido sobre isso: - Tu não achas que a gente
leva uma vida insossa danada aqui nessa terra? - Insossa? Como assim,
insossa? - Oxente!? Tu não percebes? Sem nenhuma graça, ora! Tudo aqui
nesse Paraíso é perfeito.

Notando que Adão estava sem entender nada, e para fazer valer o seu
raciocínio, Lilith, uma observadora de tudo o que acontecia no Paraíso,
tentou explicar ao marido: - Já notaste, Adão? O sol se levanta, percorre o
arco do firmamento e se recolhe no outro lado, seguindo uma rotina diária,
constante; vem a noite.

com ou sem a lua, mas sempre cheia de estrelas, e a gente só trabalha e faz
o que Deus quer; nada existe para quebrar essa rotina.

- Oh, mulher, o que é que se pode fazer de diferente aqui, neste Paraíso? -
Sei lá!? E, sinceramente, nem quero saber.

O que eu sei é que a gente vive nesse cercado criado por Deus, e o tempo
todo observado por Ele, mas sem saber o que existe fora daqui.

- Eu não consigo atinar aonde queres chegar, Lilith.

- Deixa pra lá, Adão.

Naquela noite, os dois dormiram sob peles de urso, de costas um para o


outro.

No dia seguinte voltaram à rotina do Éden, Adão mitigando a sua vida com
o trabalho de dominar a terra e a obediência irrestrita a Deus; Lilith,
auxiliando o marido no trabalho diário no Paraíso, mas a contragosto
engolindo os dissabores de discordar de uma ou outra ordem ou palavra do
Divino, e do desejo irrealizável de aventuras fora daquela rotina entediante.

Um dia, tempos depois, bateu na cabeça de Lilith uma dúvida existencial.

Isso lhe ocorreu quando viu um pica-pau, com sua bela crista vermelha,
abanar as asas numa velocidade impressionante para se manter parado no ar
e, com seu bico robusto, espicaçar o tronco de uma árvore.

Lilith sabia muito bem, pois conhecia em detalhes as intimidades do


Paraíso, que aquele belo pássaro picava a árvore com o intuito de ali
construir um ninho macio, aconchegante, para a sua amada.

E como se aquele pica-pau de bela crista vermelha estivesse espicaçando o


quengo dela, Lilith começou a se questionar não só sobre a rotina da vida
no Paraíso, mas também sobre a própria relação com o marido.
Lilith gostava do relacionamento que tinha com Adão e até o amava com
prazer por ele ser um trabalhador responsável e amante afável.

Mas a partir do momento em que viu o esforço extremo daquele belo pica-
pau em construir o ninho em que iria abrigar e amar a sua amada, deu um
destrambelho na cabeça dela.

E com razão, porque naquele instante a mulher descobriu que, como


homem, Adão também era de uma mesmice só.

Diferente do pica-pau, ele não arrumava o ninho, pois considerava que isso
era tarefa cotidiana dela; depois, não admitia que ela se imiscuísse no trato
do Paraíso, a não ser que ela fizesse o que ele dizia.

Certo dia, depois do amanhecer, café da manhã feito e posto sobre uma
pedra retangular dentro da caverna, os dois comendo as iguarias, Lilith saiu-
se com essa: - Adão, sabes fazer um café da manhã como esse? - Oh,
mulher, tu sabes que eu não sei cozinhar.

- Mas tu gostas de comer, né? - Claro, é gostoso.

- Melhor do que só ficar comendo os frutos e as raízes cruas do Paraíso, né


não? - É, concordo.

Mas aonde queres chegar com isso? - Deixe de ser desconfiado, homem.

Só quero saber se, um dia, és capaz de fazer uma mesa dessa pra gente.

- Mas já te disse, mulher, não sei cozinhar, mas sei caçar, desossar uma caça
e assar a carne para a gente comer.

Isso não representa nada? - Claro, representa.

Mas a questão não é essa.

- E o que é então, mulher? - O cozinhar, experimentar sabores com folhas e


ervas.
Com o tempo eu tive de aprender a tirar o nosso alimento da rotina, e a
trabalhar a terra como tu fazes.

Adão olhou estupefato para Lilith, sem entender aonde ela queria chegar
com aquela conversa sem sentido.

- Oh, mulher, logo na hora em que estamos comendo em paz, tu vens com
essas perguntas doidas.

Por que? - Só por curiosidade, Adão.

- E qual o sentido disso, provar o que? - Nada demais, só pra saber se és


capaz de arrumar uma mesa de refeição.

- Eu, hein? Para Lilith, esse “Eu hein” foi a desgraça de tudo.

Ela não admitia ser destratada assim, de forma humilhante.

Mesmo porque, e Adão sabia disso, ela fora criada por Deus na mesma hora
e do mesmo barro vermelho que ele.

Então, eles eram iguais em tudo por tudo, inclusive em relação a Deus.

E ela percebia com clareza que Adão, por saber ou querer, ignorava essa
realidade.

Era isso que irritava Lilith.

Duas semanas depois, num meio de tarde, durante uma chuva torrencial
com ventos fortes, Adão e Lilith estavam na caverna que usavam como
morada.

A caverna ficava no lado sul do jardim, num dos morros que integram as
montanhas do Éden.

A entrada, pequena, era dissimulada, ficava ao pé de uma pedra enorme e


encoberta por arbustos.
Da boca da caverna partia um corredor de uns 20 metros que, depois de
duas curvas para a direita e a esquerda, desembocava no salão ovalado em
que o casal estava naquele momento da chuva torrencial e de fortes ventos.

Era um abrigo perfeito: o chão de pedra única e com poucas


irregularidades; as paredes mostrando rachaduras de tamanhos variados em
que se destacavam filetes verdes de musgos; o teto, como se fosse uma
redoma opaca, pétrea, rija, a proteger o casal.

Adão acendera uma pequena fogueira a uns três metros da parede do lado
direito da entrada, onde assava o quarto de um porco do mato que caçara no
final da manhã, bem antes da chuva, perto do Eufrates, um dos quatro rios
que integravam o Éden.

Ao fundo da caverna havia uma poça formada por água cristalina e


naturalmente morna, que brotava de uma das rachaduras da parede.

Naquela poça, Lilith se banhava, preparava-se para saborear o jantar e,


depois, enroscar o corpo dela no de Adão entre peles de urso que já havia
estendido sobre o chão de pedra.

O casal se fartou com a carne assada do porco do mato e, enquanto Adão


cumpria o dever de se banhar, a mulher juntou os ossos do quarto da caça e
foi até a boca da caverna para lançá-los fora; voltou apressada, com o corpo
respingado de chuva e tiritando de frio, e logo mergulhou entre as peles
para se aquecer.

Em pouco tempo o marido estava ao lado dela e, sem perda de tempo, os


dois se abraçaram.

Mas isso durou poucos minutos, pois o homem, já rijo, apressou-se em ir


para cima da mulher e...

Foi aí que a dúvida existencial de Lilith se tornou realidade.

Ora, pensava ela, Deus criara os dois a partir do barro vermelho que
dominava o Paraíso, naquela época ainda deserto.
Tá certo, entendia ela, primeiro Deus criou Adão e depois, ela; mas, no seu
raciocínio, a mulher se deu conta: isso não dá a Adão a primazia sobre ela e
o Paraíso.

Afinal, se fora criada por Deus da mesma essência usada para a construção
de Adão, o barro vermelho, então ela era igual ao homem.

Nesse momento, Lilith travou Adão.

Pela primeira na vida, ela reagiu àquela ação, que era costumeira na hora do
sexo entre os dois, Adão sempre por cima.

Ela resolveu dar um basta, pois entendeu que, naquela posição, estava
sendo submetida pelo homem, ela deitada de costas, as pernas abertas, ele
deitado sobre ela, dominando e invadindo o seu corpo.

Por isso, o travou.

Com o braço direito, ela tentou segurar o corpo dele sobre a pele de urso,
enquanto impulsionava o seu próprio corpo para cima de Adão, mas seu
esforço foi em vão.

É que, rindo, o homem fez prevalecer a sua força masculina e, num pulo, de
novo estava deitado sobre ela, de novo já procurando invadir o seu corpo.

Dessa vez a paciência de Lilith explodiu.

- Não! - exclamou em voz alta.

Ela conseguiu sair de baixo do marido e, arfando, sentou-se.

O marido olhou surpreso para Lilith, que o mirava fixamente, olhos


faiscando, e de cara fechada.

De novo, Adão tentou puxá-la para si, pelo braço esquerdo.

- Não, Adão! - disse ela, recolhendo o braço.


- O que há, mulher? Qual é o caso? - Por que toda vez tem de ser do teu
modo? - O que!? - Por que também não pode ser do meu jeito? - O jeito de
a gente se amar? Mas sempre a gente fez assim...

Por que isso agora, Ôxe? - Esse é o teu problema, Adão, achar que, por ser
homem, tudo tem de ser quando e como queres.

Mas, lembre-se, eu também tenho o direito de escolher quando e como esse


teu troço deve entrar em mim.

- Ih, Lilith, assim, de repente, queres mudar o rumo natural das coisas, é? -
Estás vendo só, homem, como o teu pensamento é curto e, além do mais,
tacanho? Não se trata disso, de querer mudar o rumo natural das coisas,
como dizes.

- E o que é, então? -, perguntou o homem ainda rindo, com ar de gozação,


agora deitado e com as mãos cruzadas atrás da nuca para apoiar a cabeça.

- Trata-se de fazer prevalecer o fato de que somos iguais e com os mesmos


direitos aqui no Paraíso – sentenciou ela de forma pausada.

- Somos...

o que? ...iguais...? - reagiu Adão enquanto, ainda com as mãos cruzadas na


nuca, estupefato, erguia a cabeça e direcionava os olhos arregalados para a
Lilith, mas continuou -, que besteira é essa que estás a pensar, mulher? De
onde tiraste essa ideia doida, maluca, sem sentido? Eu, hein? De novo,
aquele ‘Eu, hein?’ cheio de deboche.

Isso a deixou irada.

De um salto, Lilith levantou-se e ficou em pé, as pernas afastadas, os


punhos fechados em cada lado das ancas, o corpo levemente inclinado para
a frente e, com os olhos disparando chispas diretas para o marido, disse: -
Quem tu pensas que és? - Oxente!? Por que isso agora, minha flor? Lilith
endireitou o corpo, mas mantendo as pernas afastadas, arriou os braços,
respirou fundo e, depois, sentou-se de novo, as pernas cruzadas à sua frente,
e descansou as mãos sobre os pés, bem perto do xibiu.
A mulher estava danada da vida, pois o marido não dera o braço a torcer,
não aceitava que, durante o ato sexual, ela ficasse sobre ele, e essa história
está registrada nas versões do aramaico e hebraico do Século VII.

Mas o que aumentou a ira de Lilith foi o fato de Adão a estar tratando, e aos
seus argumentos, como coisas sem a menor importância, uma questão
desprezível de alguém que está abaixo dele mesmo.

Ela respirou fundo de novo e, quando ia responder ao marido, de imediato


ele antecipou-se: também se sentou, cruzou as pernas à frente, pôs as mãos
sobre cada coxa e, então, saiu-se com essa: - Mulher, acostume-se com este
nosso mundo.

Deus fez ele assim, não tens como mudá-lo, nem mesmo a mim, pois sou
como Ele me fez e, a ti, como minha auxiliadora.

Pronto.

Isso foi o bastante para enfurecer a mulher.

Como que, a ira transformou-se em um furacão que raivosamente devasta a


tudo e a todos por onde passa, e passou a rodopiar no cérebro dela.

Lilith arregalou os olhos, expandiu as narinas, aspirou uma quantidade


maior de ar para encher os pulmões e, então, esbravejou: - Pois fiques com
esse teu mundo pequeno e com o teu Deus opressor.

Cansei.

Isso não é para mim.

De pronto, ela levantou-se, agarrou uma pele de urso e foi para o canto
oposto do salão da caverna, onde deitou-se.

Adão, como um parvo, ficou no seu canto, ainda sentado, sem entender a
reação extemporânea da mulher.

Mesmo porque, pensava, ela nunca fora disso; porém, ele notara que, nos
últimos tempos, Lilith andava com umas esquisitices, como naquele dia
quando lhe perguntou se não achava que eles levavam uma vida insossa no
Éden.

Mas aquela explosão dela ali, sobre as peles de urso e dentro da aquecida e
aconchegante caverna que os abrigava das intempéries da vida, o deixou
desnorteado, sem saber como reagir.

O homem ainda permaneceu por um longo tempo naquele estado parvo e


letárgico, a olhar a grossa pele de urso que cobria o corpo da mulher,
deitada sobre o lado direito do corpo.

Por fim, ele deitou-se, puxou a sua pele de urso para cima de si, manteve-se
deitado sobre o seu lado direito e, como não conseguiu apaziguar o
tormento que revirava o seu cérebro, travou uma luta inglória contra o sono.

Até deu cochiladas que não sabia se foram rápidas ou longas, mas o fato é
que, naquele tormento da sonolência, em certo momento Adão vislumbrava
que as duas curvas da entrada da caverna mostravam que a claridade do dia
se esvaia, se misturava com a tênue luminosidade vinda das brasas restantes
da fogueira.

O homem olhou o canto do salão que Lilith arrumou para dormir e viu que
a pele de urso com que ela se cobrira para se proteger do frio, não mais
mostrava as curvas do corpo dela.

Adão empurrou o seu grosso cobertor para o lado direito, levantou-se de um


salto, foi até o canto em que a mulher se deitara, arrastou a pesada pele de
urso com o braço esquerdo, e comprovou: Lilith não estava ali.

Irritado e incrédulo, Adão virou o rosto para a esquerda e olhou para a boca
do salão da caverna.

Lá fora, por suposto, o temporal tinha passado.

Nunca entendeu Adão que, bem mais irritada, naquele final de tarde Lilith
também enfrentara os seus próprios tormentos.
Mas como mulher resolvida e decidida que era, renegou o marido, a quem
considerava um indeciso, ou mesmo um ser sem opinião própria, e o
abandonou.

Justo quando o sol se punha, começo da noite, a mulher saiu do Paraíso,


renunciou à vida eterna e se perdeu no mundo.

Na primeira oportunidade em que esteve com Deus, Adão reclamou que


Lilith fugira e até explicou o motivo dessa fuga: a rebeldia às normas
ditadas pelo Divino sobre a convivência do homem e da mulher no Éden.

Deus aceitou as reclamações do homem, e logo enviou três anjos à procura


de Lilitih, com a recomendação de que a trouxessem de volta ao Paraíso e
ao convívio com Adão.

Sanvi, Sansavie e Semangelaf vasculharam por tudo que é canto, e nada.

Resolveram, então, atravessar a linha que marcava o perímetro do Paraíso e


tomaram a direção do sul, rumo ao Mar Vermelho.

Foi lá que encontraram Lilith que, mesmo ante a ameaça de Deus de que ela
receberia uma punição severa se continuasse fugindo, preferiu arriscar a
punição a se submeter de novo às ideias e ações possessivas de Adão e de
Deus no Paraíso.

Segundo a lenda judaica, Deus a transformou num demônio.

E a única menção relacionada a Lilith na Bíblia está no livro de Isaías, em


34:15.

Por sua característica demoníaca e por sempre agir à noite, assim ela é
identificada: “Aninhar-se-á ali a coruja”, embora algumas traduções
portuguesas troquem a palavra coruja por animais noturnos.

E apesar de incerto e inseguro, tudo isso integra os textos considerados


apócrifos e, sabe-se, até o Vaticano os trancafiou em seus cofres herméticos
para nenhum cristão comum do mundo ter acesso a eles, inclusive à Lilith e
sua história.
Capítulo 3

O JARDIM DO ÉDEN

A gora um solitário, Adão passou a viver no Paraíso, ruminando o tempo


todo pelo fato de não ter como afastar aquela tristeza que o fazia sofrer no
coração e na mente.

Até porque, o Éden ainda era um deserto só.

Quer dizer, nele os animais, os mais variados, também criados do barro por
Deus, andavam e rastejavam pela terra, nadavam sob as águas e voavam no
espaço entre a terra e o firmamento.

Mas era só, pois as planícies e montanhas não passavam de um


descampado, quebrado aqui, ali e além por uma ou outra árvore.

Na visão do agora triste e solitário Adão, era um mundo sem cor, sem
alegria.

Ou, por outra, ele via uma paisagem cinza, sombria, soturna, quebrada
apenas pelo movimento e o barulho de todos aqueles animais.

Num primeiro momento, Deus administrou aquele sofrimento de sua cria


maior, controlando com rigor a dosagem capaz de manter o homem na
sombra que divide a tristeza da alegria; a loucura, da razão.

Mas Adão não se conformava, murmurava para si mesmo, achando que


Deus nunca saberia dos seus pensamentos; que aquilo não era vida; que ele
vivia numa prisão, numa solitária gigantesca mesmo, da qual nunca poderia
fugir, aumentando ainda mais o seu martírio naquela solidão.

Num segundo momento, o Divino concordou mesmo que a sua cria maior
era um elo perdido no Paraíso.

Como dominar uma terra onde só havia animais, peixes e aves, seres
irracionais? Um dia Adão percebeu isso: ele comia o que cultivava e existia
na terra para sustentar o corpo.

No entanto, todos os demais seres vivos também tinham de se alimentar,


mas a diferença é que eles, irracionais, não cultivavam a terra, comiam o
que ela lhes oferecia.

Desse modo é que muitos se alimentavam das gramíneas rasteiras, enquanto


outros se saciavam de folhas e frutos das copas das árvores, mas para
muitos outros Deus concebeu especiais instintos de sobrevivência, entre
eles a caça de animais iguais, menores ou mais fracos, para subsistirem.

Era a lei da selva, que já existia no Paraíso, e que também era válida tanto
para os seres vivos do ar quanto para os das águas e...

até para Adão.

E no correr da vida, Adão assistia a cenas chocantes, da luta entre os mais


fortes e inteligentes contra os mais fracos, mas terminou entendendo que
elas eram comuns e necessárias para a preservação da vida no Paraíso.

Certo dia, sentado numa pedra na boca da caverna em que morava, ele viu,
surpreso e inerte, uma águia fincar as suas garras no dorso de um cervo e,
batendo com força as suas longas asas, levantar voo em direção a uma
montanha onde certamente aquela caça serviria de alimento para ela e a sua
prole.

Aliás, os cervos e os coelhos, coitados, eram fontes fáceis e indefesas de


alimento para os animais da terra e das águas, como os leões e tigres,
jacarés e serpentes.

Via também o homem as ordeiras formigas, num vai-e-vem incansável,


percorrer longos trechos carregando com suas presas o alimento, tirado das
ervas terrestres, para estocá-lo nas profundezas da terra e alimentá-las em
tempos de incertezas.

No entanto, via também Adão, de repente aquela longa fileira de formigas,


no seu vai-e-vem ordeiro, ser vítima indefesa da longa e ferina língua de um
tamanduá ou de uma serpente, que as arrastava para a sua boca e
simplesmente as engolia, inclusive com a sua preciosa carga de alimento.

Até mesmo Adão se valia de suas prerrogativas de ser racional para também
fazer parte daquele círculo da vida, pois tudo, naquele mundo deserto,
servia de alimento para a preservação das espécies, mas isso é outra
história.

Aí, o Divino entendeu que não era bom que o homem dominasse aquela
vastidão desértica, cheia de seres vivos, era verdade, mas sem sentido.

Assim, num simples estalar de dedos da mão direita, Ele resolveu o


problema: criou um pomar, um jardim no Éden.

O próprio Gênesis (2:8-14) especifica que esse jardim foi plantado na


direção do Oriente, e que “saía um rio do Éden para regar o jardim e dali se
dividia, repartindo-se em quatro braços”: o primeiro, o Pisom, “que rodeia a
terra de Havilá, onde há ouro, bdélio (goma aromática, comum no Oriente)
e a pedra de ônix (uma das mais importantes gemas de adorno e uso
terapêutico na antiguidade)”; o segundo, o Giom, “que circunda a terra de
Cuxe”; o terceiro é o rio Tigre, “que corre pelo oriente da Assíria”; o
quarto, o rio Eufrates.

Por conta dessa referência bíblica de que o jardim estava próximo aos rios
Tigre e Eufrates, os arqueólogos acreditam que ele, um oásis numa região
desértica, era a antiga Mesopotâmia, palavra grega que significa entre rios.

O Éden, no entanto, foi destruído pelo dilúvio séculos depois.

Também há o fato de Ezequiel, em 27:23, se referir ao Éden como uma


localidade existente em seus dias, e que era a Babilônia, região integrante
da Mesopotâmia, à margem esquerda do rio Eufrates.

Agora sim, aquele jardim, aquela parte do Paraíso, era produtivo e tinha o
homem, que passou a cuidar dele, fazendo nascer plantas de toda espécie e
tamanho para o seu sustento.
Deus deixou que aquela sua cria explorasse o universo e, assim, dias e mais
dias se passaram, fazendo com que, aos poucos, Adão ocupasse a sua mente
com o Jardim.

E enquanto Adão explorava aquele universo, Deus até se divertia com o


fato de ele tocar plantas tenras e árvores enormes; brincar com os animais
domésticos e selváticos; aprender a diferença de gosto entre as águas
terrenas e as do mar; entender que, para continuar vivendo, teria de se
alimentar de tudo o que o Paraíso lhe oferecia, das plantas e dos animais
que podia caçar, e daqueles de que tinha se livrar.

Adão, é claro, gastou um longo tempo nessa exploração, do conhecimento


de tudo que havia no jardim, inclusive de si mesmo, até que, um dia, Deus
disse: - Rapaz, como esse é o mundo em que viverás daqui pra frente e dele
tirarás o teu sustento, tens de dar nome a cada um dos seres que eu criei, e
acabaste de conhecer.

Adão ficou envaidecido com isso.

E já que era assim, na sua inocência o homem passou a percorrer o Paraíso


e botou a cabeça para trabalhar, chamando de planta e árvore a tudo que
brotava da terra; aos seres dos rios, dos lagos e dos oceanos batizou de
peixes; aos que se movimentavam sobre a terra, rastejando ou caminhando
sobre pernas, classificou como animais, e de aves nominou todo ser que
voava entre a terra e o firmamento.

Batendo perna por todo o jardim do Éden, um dia a atenção dele foi
desviada para duas árvores belas, diferentes de todas as demais, plantadas
lado a lado, no alto de uma colina, numa área circular ocupada só por elas.

Ele parou estático e por longo tempo ficou extasiado, admirando aquelas
belezas Como que, aquelas duas árvores o atraiam, mas, ao mesmo tempo,
parecia existir ao redor delas uma barreira invisível que o impedia de se
aproximar.

De imediato, Adão saiu daquele êxtase, se recuperou e voltou ao trabalho


de nominar os seres vivos do jardim, mas com o pensamento sobre aquelas
duas árvores.
Tempos depois, e vendo que todo aquele trabalho tinha terminado, Deus
notou que os pensamentos de Adão estavam dispersos, que ele andava pelo
Paraíso de forma aleatória, sem um rumo preciso, como a se desviar de algo
que o importunava.

É claro, Deus sabia muito bem o que embaralhava a cabeça da sua cria.

Até porque, daquelas duas árvores, uma delas não saia da cabeça do rapaz,
que nem sabia o porquê daquela atração.

Por isso, um dia o Divino chamou a sua criatura.

- Adão.

- Pronto, meu Senhor - respondeu ele e logo se aproximou de Deus.

O Divino pegou sua cria pelo braço direito e o fez seguir pelo jardim do
Éden.

E enquanto caminhavam, Ele falou para o homem: - Veja bem, rapaz, Eu te


criei e coloquei neste jardim como o único ser que pode fazer dele o seu
próprio mundo, da forma que bem estender.

Esse mundo é para ti, e até já gastaste tempo para classificar e dar nome a
cada ser vivo daqui da terra.

Notei mesmo que aprendeste a conhecer minuciosamente cada um desses


seres.

Isso muito me alegra, Adão.

E justo quando os dois chegaram ao sítio onde estavam as duas grandes


árvores, surpreso Adão ouviu de Deus: - Te dei o domínio de todo o
Paraíso, rapaz.

No entanto, chamo a tua atenção: estás vendo aquelas duas árvores bem no
meio do pomar? - Vixe, meu Deus! Que Maravilha! Elas são muito bonitas
mesmo.
De novo, o homem ficou extasiado, e com razão, pois as duas árvores
resplandeciam.

Elas eram imensas, mas tão imensas que as suas copas correspondiam à de
três ou quatro árvores comuns, juntas e até superpostas.

Adão notava mesmo que, à luz do sol pendurado lá no meio do firmamento,


as folhas verdejantes das duas árvores brilhavam com muito mais fulgor
que as das outras, que se mostravam pequenas e um tanto foscas.

Mas, em meio àquele êxtase do homem, Deus advertiu: - Escutes o que vou
te dizer agora, Adão, e nunca, mas nunca mesmo, esqueças disso: aquela ali
(e Ele apontou para a esquerda) é a Árvore da Vida; da mesma forma que de
todas as outras que existem ou venham existir aqui no Paraíso, do fruto dela
podes comer para prolongar a tua existência.

Agora, prestes bem a atenção porque, nunca mais, vou repetir isso: eu te dei
a vida eterna, mas daquela outra árvore que te aponto agora, à direita da
primeira, não comerás.

Estupefato, pela segunda vez o homem mirou aquela árvore apontada pelo
Divino; ela era como um azougue, com o balançar de sua gigantesca copa
ao vento, o tronco e os galhos rijos, as folhas de um verde vivo, brilhante, e
os frutos lustrosos e tentadores, mas que ele não sabia definir quanto à sua
textura, cheiro e gosto, o atraía.

Por uma razão simples: semanas atrás, ele foi capaz de resistir à atração da
beleza daquela árvore, deu-lhe as costas e foi continuar o seu trabalho de
nomear os seres vivos da terra.

Agora, não, era diferente: de novo ele estava em frente àquela imponência,
mas com Deus ao seu lado.

Em um momento mirava a gigantesca árvore, mas no outro desviava os


olhos para o chão ou até para a Árvore da Vida, ao lado esquerdo.

- E aí, Adão? Essa pergunta do Divino acordou o rapaz da sua divagação


em relação àquela árvore e de seu temor inexplicável perante ela, se por
Deus, bem ao seu lado, ou por falta de coragem de enfrentar o
desconhecido.

- Fala, rapaz! - E aí o que, meu Senhor? – respondeu o homem com


relutância, sem levantar o rosto para o Divino -.

Ai, desculpe-me meu Deus, fiquei pensando sobre essa árvore que o Senhor
está me apontando.

- Por que? - Mas foi o Senhor que acabou de avisar, para eu nunca mais me
esquecer dela! - E nunca esqueças também: do fruto dessa árvore não
comereis.

- O que!? Mas, meu Senhor, por que isso? E aí Deus foi enfático: - Porque
ela é a árvore do conhecimento do bem e do mal.

- Como assim, Senhor, árvore do conhecimento e do mal? O que isso


significa? O que isso tem a ver comigo, Senhor? - Simplesmente, Adão,
significa isso: plantei esta árvore aqui no meio do Paraíso, mas a tornei o
único ser maldito de todo o meu domínio.

E não sejas presunçoso, rapaz, pois essa árvore maldita não diz respeito
apenas a ti, mas a qualquer outro ser criado por mim e que vive sob as
minhas bênçãos aqui no Paraíso.

- O que, meu Deus, o Senhor quer dizer com isso? - Que tu, como qualquer
outro ser deste Jardim que comer do fruto desta árvore, certamente
morrerás.

Adão engoliu em seco; parecia até que, ao deglutir um naco do fruto


daquela árvore, a laringe se esqueceu de se fechar e, então, partículas do
fruto entraram na via respiratória, provocando um engasgo, impedindo o
homem de respirar.

Perante Deus, ele deu umas tossidas, mas permaneceu em silêncio por
alguns segundos, e enquanto mirava a grande árvore pensava: ele tinha a
vida eterna ali no Paraíso, não sabia o que era sofrimento, dor, doença,
martírio; tinha uma vida saudável e perfeita; e era o único ser vivo capaz de
dominar todos os demais existentes na terra e, mais do que isso, a própria
terra, pois Deus dera a ele essa capacidade.

Além disso, Adão escutava, respeitava, adorava, obedecia e seguia a Deus e


aos seus ensinamentos com uma fidelidade ao extremo e indiscutível.

Aliás, fora ele próprio que batizara todos os seres vivos que habitavam o ar,
o mar e a terra, dando nome a cada um deles conforme o seu porte e seu
habitat.

Mas nesse caso do fruto da árvore do bem e do mal, ele titubeou.

Ou melhor, de corpo o homem sabia que tinha uma vida saudável e perfeita,
mas na mente tinha dúvidas.

Ele se indagava mesmo sobre a razão dessa imposição do Divino, de a


morte ser uma punição extrema em relação à fidelidade.

Por que? E o que era a morte? Ele não sabia.

- O que estás a pensar, Adão? - perguntou Deus, que lera os pensamentos de


sua cria.

- Nada, Senhor - respondeu o homem, irresoluto -, apenas estou admirando


a beleza daquelas duas árvores que o Senhor plantou ali, bem no meio do
jardim.

Adão continuou se amoldando à rotina do Éden, enquanto cuidava da terra e


se alimentava dos frutos e dos animais que ela, com o seu trabalho, lhe
dava.

Vivia uma vida simples, sem complicações, de bem com Deus e a natureza.

No entanto, e por consequência daquele incidente das duas grandes árvores,


ao longo do tempo o homem foi aguçando a sua curiosidade de ser racional,
procurando entender e descobrir coisas.

Afinal, não foi assim que Deus o fez, à sua imagem e semelhança, em tudo
por tudo, um ser capaz de dominar os demais, todos irracionais e que
tinham ação e visão limitadas? Assim, enquanto o tempo corria, Adão
passou a observar a natureza com mais atenção, a querer sentir e entender o
pulsar da vida na terra.

Via que todos os seres do Éden, com exceção das plantas e árvores, que
eram estáticas, plantadas no solo, viviam numa leniência preguiçosa,
gostosa, os da terra a exercitar os seus músculos de vez em quando em
correrias, uns atrás dos outros, ou às vezes dormitando sob a sombra de
árvores, mas sempre em grupos; os do ar, a voarem em bandos, seguindo
uma dança acrobática, uns chilreando e outros grasnando o tempo todo; nas
águas, de repente os grandes emergiam das profundezas, davam um volteio
acrobático em pleno ar e caiam com estardalhaço, espadanando água para
todo lado, ao mesmo tempo em que, lá embaixo, cardumes de pequenos
peixes como que imitavam a dança acrobática das aves lá acima das águas,
sob o firmamento.

Tempos depois de muito observar, Adão notou um sutil detalhe a que nunca
dera importância antes por ser rotineiro em demasia, mas agora fazia
sentido em relação ao comportamento de todos os seres vivos no jardim:
Deus dera a eles o direito e uma forma de se multiplicarem naquela sua
placidez.

Adão entendeu: todos procriavam no Paraíso, menos ele.

Tudo bem, pensava, ele também teve a sua chance, pois Deus construiu a
Lilith e a deu como companheira, mas o problema é que, tempos depois, a
desvairada abandonou tudo para viver lá fora.

E, no entender do homem, a culpa não era dele.

Mas o fato era que Adão continuava sozinho no mundo, não tinha um par.

Não teve dúvida, na primeira oportunidade tomou coragem e falou sobre


essa questão com Deus.

- Senhor, de que me adianta toda essa beleza do universo, todos os peixes


do mar, dos lagos e dos rios, todas as aves do céu e todos os animais
domésticos, répteis e animais selváticos, e até mesmo a própria terra que eu
domino? - De que estás a reclamar, Adão? Por que essa tua insatisfação? - É
que, diferentemente de todos os seres vivos do ar, do mar e da terra, meu
Senhor, eu continuo sozinho.

Por que? - Ê, rapaz, aonde queres chegar? - A isso, meu Senhor: de todos os
seres vivos que habitam a terra, e até mesmo das estáticas árvores, nascem
novos rebentos, que também crescem e procriam.

Eu, no entanto, sozinho, não tenho esse direito, não posso procriar.

Por que não posso ter uma companheira? Deus ficou calado por longos
segundos, atônito mesmo, pois fora pego de surpresa por aquele
questionamento repentino de Adão.

No entanto, Ele terminou por concordar que a reclamação de Sua cria maior
era bem fundamentada e, por isso, admitiu que não era bom que o homem
estivesse só, sem uma auxiliadora que lhe fosse idônea.

- Está bem, Adão, vou ver o que faço para aplacar essa tua insatisfação, mas
desde já aviso que o atendimento dessa tua reclamação certamente vai
exigir um sacrifício.

- Aceito o risco, Senhor - respondeu Adão, dessa vez sem titubear.

- Tudo bem, rapaz, se é assim que tu queres...


Capítulo 4

A VAROA INSATISFEITA

Resignado, Deus cruzou as mãos nas costas e se afastou em silêncio.

No íntimo resmungava, se indagava sobre aquela ideia estapafúrdia de


Adão, botar na cabeça de querer outra mulher.

E ele já não tivera uma? E o que resultou disso? Claro, Deus sabia daquele
resultado, até porque Ele mesmo apontara o seu dedo indicador da mão
direita para crivar o destino da primeira mulher da Sua cria, a Lilith.

O problema é que agora, tempos depois, Adão viera se queixar de que vivia
numa solidão sem fim, que era um solitário no Paraíso.

“Esse Adão não tem jeito, gosta de viver em enrascada”, falava Deus de si
para consigo.

De qualquer forma, o Divino concluiu que a coisa mais fácil a fazer era dar
à sua cria uma nova companheira.

Melhor do que ficar ouvindo aquele lenga-lenga infindável dele sobre viver
solitário, de não ter ninguém para lhe fazer um cafuné, ajudá-lo a cuidar da
casa e do jardim.

O problema era como, e a partir de quê, criar uma nova mulher para Adão.

A primeira fora fácil, foi seguir a forma como construiu o próprio Adão, do
barro vermelho.

Só que, nesse caso, a solução não deu certo, pois Lilith terminou
trespassando a cêrca do Paraíso, e foi se perder no mundo exterior.

Por conta disso, Deus até se perguntou: “Será que errei nessa criação”?
Nunca, porque Deus, soberano como é, por suposto nunca erra.
Mesmo assim, de pronto Ele entendeu que não deveria, de novo, construir
do barro outra mulher para Adão.

Se não deu certo na primeira vez, também não poderia dar certo agora,
pensava Ele.

Deus mirava a terra com todos os animais e aves que criara dias antes, o
firmamento com os seus luzeiros do dia e da noite, as águas com os seus
peixes a fazerem acrobacias espetaculares.

Mas, indagava-se, de onde tirar uma auxiliar para Adão, ainda mais,
idônea? Pelo que o Criador via, porém, nada daquilo do Paraíso, que Ele
mesmo criara, servia para o seu propósito.

Mas, que propósito? Claro, Deus tinha certeza de que não era só criar uma
auxiliadora idônea para Adão, mas como deveria ser essa companheira.

Depois de muito pensar sobre essa questão, Deus viu Adão passar ao largo,
talvez a cumprir alguma tarefa.

E por que não tirar do próprio Adão a matéria prima para a construção da
companheira que tanto ele pede? “Adão quer uma companheira?”,
perguntou o Divino para si próprio, “pois não pense ele que vai conseguir
de uma forma fácil, como da primeira vez”.

Deus, então, chamou Adão.

- Olhe aqui, rapaz, vou satisfazer o teu desejo por uma nova companheira.

No entanto, como te avisei antes, isso exigirá um sacrifício e esse sacrifício


será da tua parte.

É que não vou construir essa nova mulher a partir do barro, mas de uma
parte do teu próprio corpo.

- Como assim, meu Senhor? - Não te faças de desentendido, pois sabes


muito bem o que isso significa.
Queres uma mulher? Pois vais tê-la, mas com sacrifício, doando
compulsoriamente uma parte do teu corpo.

Assim, diz o Gênesis, “Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este
adormeceu”.

E, então, o Divino iniciou uma operação cirúrgica delicada e demorada:


primeiro, segundo o profeta Maomé, que no início do século 17 criou o
islamismo, Deus fez uma incisão precisa no meio do lado esquerdo do
tronco de Adão e dali, habilmente, extraiu a costela mais curta; segundo, diz
o Gênesis, preencheu o lugar do osso com carne e fechou a incisão;
finalmente, pegou aquele osso encurvado ainda envolvido com carne e
sangue da sua cria, e gastou sete horas num trabalho de precisão cirúrgica.

No fim, estava criada a mulher, outro ser vivo à sua imagem e semelhança.

E nem foi preciso soprar as narinas dela para lhe dar vida, pois, diferente de
Adão, ela fora criada de parte do corpo vivo dele: justamente de uma
costela, ligada à espinha dorsal que, no seu interior, tem a medula óssea,
popularmente conhecida como tutano, que fabrica as plaquetas e os
glóbulos vermelhos e brancos do sangue.

A seiva da vida, enfim, que percorre veias e artérias do corpo, empurrada


que foi pelo sopro do Divino.

Feita a mulher, Deus cuidou de acordar Adão com vagar, para que ele não
fosse acometido de algum choque ao abrir os olhos.

E ao homem já acordado, Deus disse: - Pronto Adão, atendi ao teu pedido e,


a partir da tua costela mais curta do teu lado esquerdo, criei uma nova
mulher para ti.

Eis que te apresento à tua nova companheira e auxiliadora.

Sentindo algumas pontadas no lado esquerdo do tronco, Adão olhou para ali
e viu uma cicatriz longa na vertical e manchas de sangue na pele.
Levantou os olhos para o lado de Deus, à sua direita, e Ele, exibindo um
riso cheio de satisfação, apontava com a mão direita, também marcada por
manchas de sangue na pele, a mulher que acabara de criar.

E ao ser apresentado a ela, o homem deslumbrou-se.

É claro, como parâmetro de mulher, Adão tinha apenas a Lilith, que era
muito diferente das companheiras de todos os seres vivos da terra, pois
todos os animais, machos e fêmeas, tinham a mesma aparência.

Mas a que Deus acabara de fazer de sua costela e estava ali, em pé ao lado
direito d’Ele, essa...

Bem, essa o próprio Adão não sabia explicar, traduzir para si mesmo.

Mas o que ele via era a síntese do que esperava.

Não que tivesse definido para Deus como deveria fazê-la, mas, no seu parco
conhecimento sobre beleza feminina, o homem entendeu que o Divino
caprichara naquela criação.

Simplesmente, ela era linda.

- E então, Adão, o que dizes? - cortou Deus.

- Ah, meu Deus, o que posso dizer, a não ser agradecer ao Senhor por me
premiar com o que eu pedi? - É só isso o que tens a dizer, rapaz? - E o que é
que o Senhor quer ouvir, então? - O que tu achas dela? - Bom, nesse caso,
meu Senhor, o que posso dizer é que esta, afinal, é osso dos meus ossos e
carne da minha carne, e linda.

- E como tu vais chamá-la, Adão - perguntou Deus com ar de impaciência.

- Ah, meu Deus, não sei, ainda não pensei nisso.

Mas, por enquanto, chamar-se-á Varoa, porquanto do varão foi tomada.

*** Mas, um detalhe: a primeira visão que Adão teve à sua frente, depois
que Deus soprou a vida nas ventas dele, foi o próprio Divino, um ser igual a
ele, e, atrás d´Ele, aquela terra imensa, nua, mas cheia de vida.

No caso da mulher foi diferente, sua primeira visão foi a de um homem nu à


sua frente.

Ela olhou aquele corpo, baixou a cabeça para mirar o seu próprio corpo e
viu que eles eram iguais no geral, mas com estruturas diferentes.

Quando percebeu essas diferenças, a mulher deu um passo para trás, sem
entender nada daquilo, mas Deus apaziguou os ânimos dela, explicando-lhe
com detalhes minuciosos o significado e o sentido de Adão, o homem nu à
frente dela, e os dela própria, também nua, e do fato de seus corpos serem
parecidos na estrutura, mas desiguais nos fundamentos, e a razão pela qual
ela fora colocada ali na terra, a pedido do próprio homem, que queria uma
parceira.

Em seguida, Deus pegou a mão direita de cada uma de suas duas crias,
pediu que os dois não temessem um ao outro e, então, os abençoou: - Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeita-a; dominai sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela
terra.

Terminado todo aquele trabalho, e satisfeito da vida, Deus foi descansar,


mas com a certeza absoluta de que a Humanidade, iniciada por Ele com
aquele casal, seria o princípio de problemas e esforços eternos ainda
maiores dentro da imensidão do universo.

*** Com a sua Varoa sempre ao lado, Adão passou a viver feliz da vida no
Éden, a mostra-lhe as belezas do jardim e a exibi-la, todo pomposo, aos
demais seres que viviam no ar, nas águas e na terra.

Nus, andavam de mãos dadas; percorriam a pé as trilhas cobertas com um


tapete de esmaecidas folhas caídas das árvores; pelos campos abertos
cavalgavam os animais mais variados; de longe atiçavam os animais
selváticos.

Ao longo do dia também cuidavam dos animais domésticos, trabalhavam a


terra e conversavam com Deus, mas também namoravam muito.
Aliás, com o tempo, meses mesmo passados, Adão aprendeu a amar a
mulher por demais.

Talvez nunca tenha chegado a ser uma obsessão, mas terminou sendo uma
paixão quase cega pelo ser que pedira a Deus.

E Deus observava aquele relacionamento com atenção, cuidando para que o


casal fosse sempre e muito feliz.

Desse modo é que Adão vivia satisfeito e feliz com a sua amada, atendia a
todos os caprichos que, naquele início dos tempos, ainda naquele tempo do
Paraíso, já eram próprios da mulher.

Ele não sabia disso, claro, mas seguia a sua vida trabalhando, amando a
mulher e convivendo com Deus.

Mas Deus, e evidentemente Ele já sabia disso, fez a mulher de uma forma
diferente em relação ao homem, cheia de peculiaridades não só no corpo;
também na mente.

Ou seja, Deus construiu o homem à sua imagem e semelhança, mas a


mulher...

Bem, sabidamente, Deus construiu a mulher em uma forma diferente que


todos sabem como é.

Aliás, embora à primeira vista não se conseguisse distinguir os machos e as


fêmeas dos seres vivos do jardim, na verdade Deus os dotou de uma
diferença fundamental, cada um deles com uma característica própria para
ter um ao outro: o da fêmea acoplar o do macho.

Isso Deus também fez com o corpo da mulher para, assim, procriar com
prazer e satisfação, e está citado no Cântico dos Cânticos e em várias outras
passagens bíblicas que descrevem claramente o prazer sexual, pois o prazer,
o clímax do ato sexual entre o homem e a mulher, também é uma permissão
divina no amor e na produção de filhos.
Basta lembrar, por exemplo, que todos os ditos santos e os papas de todas as
igrejas católicas, nasceram do prazer sexual de seus pais.

No entanto, e embora toda aquela felicidade de Adão e da Varoa,


lentamente a rotina começou a afetar aquele relacionamento, da mesma
forma que se conta na lenda judaica sobre Lilith e Adão.

Pois é, Adão vivia feliz e satisfeito com a sua amada, atento e atendendo a
todos os caprichos próprios da mulher, mas a Varoa, sem ela mesma nem
perceber, já estava pedindo sempre mais.

Mas quando o marido deixava de atender a um ou outro capricho, ela


passava a resmungar, a ficar amuada em um canto qualquer do jardim.

Pior passou a ser quando a mulher começou a reclamar.

E, num crescendo, a fazer exigências; a dizer que Adão já não a amava


como antes; a se isolar; e aí os momentos dos dois juntos começaram a
escassear.

Adão tentava contornar a situação, a argumentar que a mulher estava


equivocada, que ela fosse mais paciente com a vida que eles levavam.

Às vezes essa tática funcionava; em outras, não havia acordo, e aí os dois


dormiam de costas um para o outro.

Isso quando Adão não pegava sua manta feita de pele de urso para ir dormir
lá num outro canto da caverna em que moravam, num inverso do que
acontecia nos tempos de Lilith.

O tempo continuou avançando e a vida do casal seguia nesse ramerrão,


intercalando momentos de felicidade plena e períodos de torturantes
isolamentos.

Um dia, depois de uma discussão à toa, já nesse ponto por uma besteira
qualquer, Adão foi remoer seus desgostos no trabalho de cuidar da terra e
dos animais.
A Varoa, por seu turno, saiu cabisbaixa da caverna e, distraidamente, foi
caminhar pelo bosque, de que conhecia cada trilha.

E nesse caminhar, prestava atenção ao chilrear dos pássaros; afagava os


animais por que passava; cheirava uma ou outra flor; sentia a brisa acariciar
o seu corpo nu.

Quando se deu conta, estava bem no meio do Jardim de Deus, como séculos
depois definiriam os profetas Ezequiel e Isaías, e aí a atenção dela foi
chamada para as duas árvores, as mais altas que todas as outras, frondosas e
bonitas, que existiam por ali.

Por um momento ela ficou estática, mas logo os seus olhos passaram a
reluzir todo o esplendor emanado por elas.

Naquele transe, a mulher agachou-se, com as mãos amontoou junto a uma


árvore folhas e mais folhas caídas no chão, sentou-se sobre o macio monte
acolchoado, relaxou as costas no tronco da árvore, dobrou os joelhos para
cima e uniu as canelas às coxas, plantou os cotovelos sobre os joelhos e,
com as mãos sustentando a cabeça em cada lado do rosto, com ar de
admiração mirou aqueles dois colossos à sua frente.

Ela sabia bem, aquelas árvores especiais foram plantadas por Deus como
marcos da fidelidade e da obediência dela e de Adão: a Árvore da Vida, a
que ela e o marido recorriam com frequência, pois os seus frutos lhes
davam créditos para alongar as suas vidas no Paraíso; e a árvore do
conhecimento do bem e do mal.

Nesse ponto, a mulher lembrou-se da advertência de Deus a Adão e


repassada pelo homem a ela, de não comer o fruto daquela segunda árvore.

E sempre estava bem viva na mente dela a sentença final daquela


advertência do Divino: “...

no dia em que dele comeres, com certeza morrerás”.

A mulher gastou um longo tempo ali, sentada daquele jeito, mirando as


duas frondosas árvores e pensando sobre o significado dos frutos de cada
uma delas na sua vida e na do marido.

A Árvore da Vida, deduzia ela, dava ao casal a certeza de que viveria pleno
de felicidades no Éden.

No entanto, rememorando o tempo já vivido ali, uma vida sem


preocupações, amando e sendo amada, se deu conta de uma coisa: ela e o
marido viviam uma vida sem graça, cheia de rotinas em tudo...

Aí deu um clarão no cérebro da mulher: até mesmo nas horas em que ela e
Adão se amavam, o roçar de corpos já não tinha a graça de outrora,
raramente os lábios dele avançavam para o seu pescoço, já não provocavam
sobre a sua latente carótida um choque que percorresse todo o seu corpo.

Os dois agiam quase que fria e mecanicamente, já sabiam o que um e o


outro iria fazer para tentar alcançar o prazer sexual possível naquela relação
cada vez mais burocrática.

- Ôxe! - exclamou a desnorteada Varoa sobre aqueles pensamentos -, que


ideia mais louca, essa! De pronto, a mulher levantou-se, arrastou as mãos
pelas nádegas para dali livrar a pele de grãos de areia ou de pequenos
gravetos, e tomou o rumo de casa, com as duas árvores, a sentença divina e
os seus próprios questionamentos sobre a vida que levava no Paraíso, a
ocuparem os seus pensamentos.

Adão estava a preparar o jantar, assando dois coelhos que acabara de caçar.

- Por onde andaste, mulher? - Fiquei batendo perna por aí, vendo as plantas,
os animais e os pássaros - respondeu ela, de cara fechada -, queria esfriar
minha cabeça.

- Mas por que isso? Não vês que preciso da tua ajuda aqui na terra?
Ademais, não pensas em mim, que sofro com esse isolamento, a cada vez
que a gente discute sobre alguma coisa? O homem dispôs bem acima do
calor das brasas vivas as finas varas que ele espetara, cada uma ao longo do
corpo de um animal, e aproximou-se da companheira, que acabara de se
sentar sobre um banco formado por uma pedra lisa.
Ele rodeou o ombro dela com o braço direito: - Vamos, mulher, o que há? O
que tá havendo com a gente? Eu fico aqui matutando, tentando entender o
que vai na tua cabeça, mas não encontro uma resposta que alivie essa minha
tortura.

Na verdade, sobre aquela relação, o homem só mirava o próprio umbigo.

Ou melhor, ele se perguntava onde e em que ela cometera alguma falha para
que as coisas entre os dois chegassem àquele nível, mas nunca se preocupou
em entender as razões da mulher e, sequer, passava pela sua cabeça que ele
próprio, no seu comportamento como homem e marido, poderia ser não só a
causa, mas também o efeito daquele infortúnio.

No entanto, admitia que a esposa vivia insatisfeita, embora todas as regalias


que tinha ao seu dispor ali no Paraíso.

Ele sabia, mas não queria falar dessa questão claramente com ela porque,
desde o momento em que Deus a criou a partir da costela mais curta do seu
lado esquerdo, notou que havia uma diferença abissal entre eles e que essa
diferença não se resumia apenas na dessemelhança de seus corpos. *** No
meio de uma manhã, os dois entraram em nova desavença.

A mulher sabia bem: àquela altura, o relacionamento deles se equilibrava


sobre uma linha fina que, se partisse, faria os dois despencarem nas
profundezas de um abismo sem fim, de onde jamais poderiam sair.

Para o bem ou para o mal.

Porém, e a despeito da insatisfação existencial, como aliás aconteceu com


Lilith, a Varoa amava o marido, e ela não tinha a mínima dúvida sobre isso.

Na sua visão, Adão era um homem trabalhador incansável, sempre


preocupado em cumprir as suas tarefas no trato da terra e dos seres viventes
do jardim, e ela o ajudava rotineiramente nesse trabalho árduo e constante.

E o homem tinha adoração imensa por ela, como ele mesmo demonstrava
em palavras e atos, a todo instante e a toda hora.
Dessa vez, a desavença foi por conta de uma questão muito séria.

Na verdade, era algo que vinha incomodando a Varoa há muito tempo: a


forma como Adão se conduzia perante Deus.

Não que ela quisesse que o marido desobedecesse ao Divino, de jeito


nenhum.

O que a incomodava é que o seu homem sempre aceitava e cumpria tácita e


plenamente tudo o que Deus dizia ou determinava; nunca havia uma recusa,
para coisa alguma havia um questionamento, sobre uma dúvida jamais se
dava um tempo para pensar.

Foi exatamente isso que ela fez ver ao marido, mas Adão relutava,
contemporizava mesmo na tentativa de fazer a mulher voltar à razão da
vivência no Paraíso, e com Deus.

- Esse é o teu problema, Adão.

Tu não queres ver, ou mesmo admitir, que a nossa vivência como marido e
mulher já não se sustenta.

Tudo por conta dessa mesmice do Paraíso.

- Mas o que tu queres que eu faça!? Este é o nosso mundo.

Tu sabes muito bem, mulher, fomos criados pelo Divino e aqui colocados
neste jardim, também criado por Ele, para dominar tudo que na terra há e,
também, para procriar e fazer a humanidade crescer.

Aliás, que eu saiba, Deus não criou outro mundo além deste.

- Tá vendo só? - Tá vendo só o que? - A estreiteza do teu raciocínio, ora! -


Oh, mulher...

Dessa vez foi a Varoa que tomou a iniciativa: soltou um resmungo, virou-se
e dirigiu-se para a boca da caverna que lhes servia de abrigo.

Por vários dias ela caiu em mutismo, se isolou no seu mundo interior.
Como sempre, Adão ficou sem entender aquela atitude da mulher.

Para ele, isso era um martírio sem fim, um suplício que já não estava
podendo aguentar e que, com vagar, minava a sua disposição de lutar por
um relacionamento que se tornava cada vez mais difícil de suportar.

Às vezes, ele ficava horas sentado num toco de árvore, pensando, se


questionando, e até tinha vontade de socar a própria cabeça, só para ver se
dali saia uma resposta para seus questionamentos.

Mas Adão permanecia ali, sozinho, sentado, calado, os dedos das mãos
emaranhando os bastos cabelos pretos, e quieto.

Aí, então, pela primeira vez, bateu-lhe uma dúvida existencial: seria ele o
culpado desses problemas todos? Não deveria ser mais tolerante com um ou
outro capricho da amada? Não poderia ser ainda mais paciente com a sua
companheira, aquela que ele mesmo fora reclamar a Deus? Mas quando a
mulher estava por perto, Adão esquecia tudo isso e se derretia por ela.

Não sem razão, até porque ele tinha certeza absoluta de que a Varoa era a
essência da sua própria existência; sem ela, a vida dele não tinha o menor
sentido naquele Éden, não tinha como existir sozinho entre tantos seres
vivos que viviam aos pares.

Ela, afinal, era o seu jardim.

E aí, em desespero, um dia apelou para o que considerava o mais fácil: - Ai,
meu Deus, não aguento esse suplício.

O que fazer? Evidentemente, o homem não obteve resposta do Todo


Poderoso.

É que Deus assistia a tudo aquilo com um misto de indiferença e


comiseração, mas estava nítido em sua memória que advertira Adão,
quando ele pediu, suplicou mesmo, uma companheira para viver como
todos os demais seres vivos do Paraíso, e que o homem aceitara todos os
riscos que poderiam advir disso.
Por conta dessas fraquezas de sua cria, uma vez ou outra Deus sentia
vontade de, com o dedo indicador da mão direita, lançar um chicote de fogo
nas costas de Adão, para puni-lo, por ele se mostrar tão fraco de
pensamento naquelas ocasiões, mas logo se continha em ser tão severo,
recolhia o dedo ameaçador por saber que o homem teria de resolver as suas
próprias enrascadas.

No entanto, resmungava: “Oh homem que não quer raciocinar!”.

E quanto à mulher? Deus, claro, sabia o que ela era e como era.

Até porque, ao extrair a costela mais curta do lado esquerdo de Adão para
criar uma companheira para ele, o Divino já tinha em mente como deveria
ser aquela sua nova cria, e assim a criou: uma mulher forte, corajosa,
inteligente e, muito mais importante, resolvida (como também era a Lilith),
seja lá o que isso significasse ali dentro do Éden, no Jardim de Deus.

*** É preciso lembrar aqui, também, que Adão e a Varoa foram colocados
no mundo com uma desvantagem em relação a todos os demais humanos
que nasceram na terra, depois deles: foram feitos por Deus, mas já adultos.

Não foram gerados, como depois eles mesmos geraram Abel, Caim, Set e
outros filhos e filhas e, então, a humanidade.

Adão e sua mulher, ao contrário dos próprios filhos e dos filhos das
gerações depois deles, não tiveram um pai e uma mãe que os orientassem
sobre os caminhos e descaminhos da vida, que lhes dessem uma palmada no
bumbum, um cascudo na cabeça, um beliscão num braço, de leve ou com
força que fosse, para lhes indicar um rumo a seguir.

Simplesmente, Adão e a Varoa surgiram assim, de repente, ele do barro


vermelho, já como homem, e ela, da costela mais curta do lado esquerdo
dele, já como mulher.

Não passaram pelos estágios de criança e suas traquinagens e, sequer, da


adolescência em que, como normal, poderiam conquistar um ao outro com
uma simples piscadela de olhos e, daí, passarem para a fase do pegar de
mãos, dos beijos às escondidas, dos sarros atrás das moitas do jardim do
Éden...

Começando a viver já no início da vida adulta, o homem e a mulher tiveram


de conhecer a si mesmos, e aos seus corpos, praticamente de forma rápida,
sem explorações e experimentos tímidos prévios e sem explosões de desejo.

O casal foi feito por Deus pronto para viver, amar um ao outro e dominar a
terra e todos os seus seres vivos, e provavelmente, esse fato moldou o
comportamento e a mente do homem e da mulher.

***Sabe-se que Adão e a Varoa eram muito obedientes a Deus, com quem
conversavam com frequência, e nessas conversas ouviam d´Ele conselhos e
ensinamentos sobre a vida.

No entanto, e com o tempo o Divino notou isso, Adão sempre se mostrava


atento, fazia indagações e aplicava o que deduzia daquelas conversas no
dia-a-dia do Paraíso, enquanto a mulher, embora ouvindo e falando, de vez
em quando dispersava os seus pensamentos para o volteio de uma
borboleta, às vezes para uma bonita flor colorida que ela arrancava de uma
planta pelo caule e absorvia a sua fragrância com volúpia, até mesmo para
com as mãos arranjar a cabeleira negra e basta que a brisa acabara de fazer
flutuar com o seu sopro.

E a despeito, ou por causa mesmo dessas todas ações, ela também divagava
sobre aquilo tudo.

*** Com toda a certeza, a Varoa usufruía de uma vida boa, cheia de
bonanças, ali no Paraíso; tinha um marido amado e amante, e a
complacência de Deus a toda hora e a todo instante.

O problema é que, fora isso, nada mais havia a fazer e toda aquela rotina do
jardim a deixava enfarada.

No seu entender, vivia num marasmo que nem ela mesma entendia e,
sequer, podia suportar.
Talvez não fosse culpa do marido e nem mesmo de Deus, mas sabia que
aquela vida rotineira não a satisfazia.

E mesmo quando estava a cumprir os seus afazeres normais, ajudando Adão


em uma ou outra tarefa no cuidado da terra, das plantas e dos animais, o
cérebro dela se debatia em questionamentos.

Até se perguntava mesmo se estava sendo injusta com tudo e com todos,
inclusive com ela mesma.

A mulher pensava: quando, nas vezes em que Deus estava a conversar com
o casal, e ela involuntariamente se deixava atrair por coisas frívolas, não era
por desinteresse nas palavras do Divino ou desrespeito ao Criador, mas pelo
fato de o jardim do Paraíso estar se tornando um mundo pequeno, limitado
a uma rotina sem perspectivas, restrito ao perímetro e à vida determinados
por Deus, sem mais avanços.

E enquanto via Adão assentir com tudo que Deus falava, e executar com
paciência e conformismo a lida diária na terra, a Varoa não sabia dizer ao
certo se ele deveria receber compaixão ou se simplesmente merecia o seu
desprezo.

Tinha a certeza absoluta, porém, que ainda havia amor entre eles e bem
grande, mas ela ruminava para si mesma que aquele amor lentamente se
esfarelava por entre os seus corpos.

Parecia até que alguém colocara um redutor nas torneiras que, através dos
poros de suas peles, fazia jorrar litros e mais litros de suor que outrora
banhava os seus corpos durante os atos do amor cheio de volúpia.

Agora não, o suor resultante do esforço do amor não mais passava do que
um sereno que mal umedecia a sua pele seca.

Então, sem nem saber por quê, deu vontade à Varoa de ver novamente a
árvore do conhecimento do bem e do mal, que certamente traria a morte
para ela e Adão, se eles comessem do seu belo fruto, assim advertira Deus.
Capítulo 5

O FRUTO DO PECADO

Um dia, Adão teve de embrenhar-se no Éden para verificar as terras ao


norte do Paraíso.

Terras que, depois de molhadas várias semanas antes pelas enchentes dos
rios, provavelmente já estariam exibindo o resultado do trabalho da
natureza para aquela época do ano, o outono: grãos e frutos.

Alimentos.

Alimentos que, se não colhesse no tempo apropriado, certamente o homem


teria a concorrência rápida e feroz dos animais selváticos que viviam
naquela região, se não apodrecessem antes.

Assim, era muito comum o marido estar fora de casa umas três semanas.

A Varoa, por sua vez, ficava com o encargo de cuidar da caverna em que
moravam, da área ao seu redor, e dos animais domésticos e dos que lhes
davam o sustento diário.

Por alguns dias, a mulher tentou resistir àquela vontade de rever a árvore do
conhecimento do bem e do mal, pois ela sabia que aquela planta enorme,
bonita, resplandecente e colocada por Deus bem no meio do jardim, ao lado
da Árvore da Vida, certamente poderia lhe levar à perdição.

“Mas que perdição pode ser essa, se eu usufruir de seu fruto?”, perguntava-
se.

Deus avisara a Adão, e depois ele replicou para a Varoa: “Se dele comeres,
certamente morrerás”.

Mas seria assim, ficar de corpo inerte e duro como ela via acontecer
frequentemente com os animais, aves e peixes que morriam naturalmente
ou eram mortos por outros que tinham fome e precisavam de alimento?
Passadas duas semanas de solidão, e batendo cabeça com aquelas questões,
no meio de uma tarde a mulher deixou os seus afazeres e foi caminhar pelas
trilhas que já conhecia.

Rumou sem rumo e sem pressa, e por um longo tempo andou assim, à toa,
sem se preocupar com tempo e lugar.

Quando se deu conta, estava no centro do jardim.

Embora a caminhada não tenha exigido muito esforço, ela suava e respirava
fora do compasso.

A Varou parou e ficou extática, perplexa e sem entender como chegara até
ali, mas ao mesmo tempo se deslumbrava.

É que bem à sua frente via um entre tantos espetáculos criados por Deus no
universo, aquela árvore de copa gigantesca, tronco e galhos rijos e
garbosos, folhas lustrando de verde e frutos arredondados, vermelhos,
lindos.

A mulher, parada, já com a respiração voltando ao normal, mas ainda com a


pele úmida por conta do suor que secava lentamente, estava a uns 100
metros da árvore, admirando-a, atraída mesmo pelo magnetismo que dela
emanava intensamente.

Indagou-se que mal poderia vir dali, mas não encontrava uma resposta e por
longos minutos ela ficou mirando a bela e grandiosa árvore e, depois de
tanto relutar, terminou dando alguns passos na direção dela, mas parou de
novo.

Não sabia se devia continuar; tinha dúvidas mesmo sobre o que poderia
resultar daquela aventura, daquela exploração do desconhecido.

Mas o imã da árvore foi mais forte.

A Varoa resolveu, então, se aproximar.

Ainda assim, seguiu a passos lentos, olhar desconfiado.


E à medida em que, passo a passo, subindo a colina, se aproximava, o temor
que inicialmente lhe invadira se esvaia, até que ela chegou perto do grosso
tronco.

Com a palma da mão direita tocou com leveza a casca acinzentada e cheia
de rachaduras daquela madeira e se admirou pelo fato de o tronco exigir
pelo menos seis vezes o seu marido de braços abertos, um apenas tocando a
ponta dos dedos do outro, para açambarcá-lo.

Ao olhar para cima, ainda mais a Varoa deslumbrou-se com a imensa e


esplendorosa copa, coisa só igualada pela Árvore da Vida, à esquerda,
também tão alta e esplendorosa.

Ela até notou um detalhe: os raios do luzeiro lá do firmamento não


conseguiam varar o fechado manto formado pelos inúmeros galhos e ramos
de todos os tamanhos e as folhas grandes e verdejantes e, por isso, o interior
daquela copa era obscuro, como que uma penumbra densa lhe dava um ar
de mistério.

Apesar da tarde acalorada, de repente a mulher sentiu um calafrio percorrer


o seu corpo nu, mas achou que era por conta do suor que ainda não
evaporara ou não fora absorvido de todo pela sua pele.

De qualquer forma, numa reação involuntária para se proteger, ela encolheu


o corpo, cruzou os braços à sua frente, mas não teve medo.

Ou, se teve, e já que estava ali, pela primeira vez na vida, debaixo daquela
grande árvore, levantou a mão esquerda acima da cabeça e apalpou um dos
belos frutos pendurados de finos galhos.

*** A Bíblia não especifica qual era o fruto enfaticamente proibido por
Deus, o da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Mas, no início dos tempos da Igreja, ele era representado por frutos os mais
variados, dependendo até da região, entre os quais a romã e o damasco.

A romã está associada a uma passagem do Êxodo e até foi esculpida no


Templo de Salomão, em Jerusalém.
Por conta de suas 613 sementes coincidirem com os 613 mandamentos ou
provérbios do Torá, é um símbolo de integridade.

No cristianismo, a romã simboliza a perfeição divina, o amor cristão e a


virgindade de Maria; na maçonaria, é a união e está simbolizada na entrada
dos seus templos, embora o termo maçom venha de maçã.

O damasco, por sua vez, mais conhecido como apricó ou ameixa armênia,
faz parte da família do pêssego: casca alaranjada ou vermelha, frutos
carnívoros e um caroço grande, onde está a sua semente.

Ou seja, nada indica que o fruto do pecado seja, com certeza, a maçã, como
indica a lenda.

Essa lenda, aliás, surgiu porque Dâmaso I, 37º papa entre 366 e 384 d.C,
português de nascimento, resolveu bancar uma tradução da Bíblia hebraica
para o latim, a língua oficial da Igreja.

E para fazer essa tradução, ele encarregou um dos seus principais escribas,
Jerônimo de Estridão, o São Jerônimo.

Originalmente, o Antigo Testamento foi escrito em hebraico, entre os


séculos XIV e IV a.C., e só a partir do século III a.C.

é que os judeus fizeram a primeira tradução para o grego, um dos idiomas


oficiais na época do Império Romano.

A essa versão grega, denominou-se Septuaginta.

São Jerônimo começou a sua tradução do hebraico para o latim em 390, seis
anos após a morte de Dâmaso I.

Nesse trabalho, gastou 15 anos de sua vida para concluí-la, mas a fez no
latim popular, que resultou na Vulgata Latina, uma Bíblia de mais fácil
compreensão pelos fiéis comuns e que até hoje é respeitada e fonte para
traduções no mundo inteiro.

Em relação a Jerônimo, no entanto, é preciso esclarecer o seguinte: ele era


proficiente em latim e grego, mas deixava a desejar em relação ao hebraico.
Por exemplo, há quem diga que, na versão hebraica, ele encontrou a palavra
peri, que classifica como fruto qualquer pomo pendurado em uma árvore.

Então poderia ser um daqueles listados nos parágrafos acima.

Ocorre que, no latim, as palavras mal e maçã possuem a mesma grafia,


malus, e esta foi a que Jerônimo usou na Vulgata Latina.

Além do mais, os artistas plásticos, os retratistas da época, sempre foram os


intérpretes das histórias de personagens e fatos religiosos, perpetuando em
obras de arte, pinturas e esculturas, as narrativas bíblicas com a
aquiescência ou até a demanda da Igreja, sempre pagas regiamente, e que
perduram até hoje.

E nessa questão do fruto proibido, inúmeros artistas plásticos fizeram as


suas obras conforme entendiam o que aconteceu no Paraíso.

Por exemplo, Albrecht Durer, artista alemão famoso entre os séculos 15 e


16, pintou Adão e Eva ao lado de uma macieira e, dizem, isso se tornou
uma referência na arte religiosa.

Michelangelo, entre 1508 e 1512, pago pelo papa Júlio II, produziu o
afresco mais importante e conhecido do mundo, no teto da Capela Sistina,
no Vaticano.

E lá, há uma serpente enrolada em uma figueira.

Além disso, em 1667 o poeta e escritor inglês John Milton lançou um


poema épico, Paraiso Perdido, com 10 cantos, em que aborda toda a história
de Adão e Eva.

E nesse poema épico, John Milton assegura por duas vezes que a maçã é o
fruto proibido.

O fato é que o fruto era um pomo, e a casca numa mistura de verde,


amarelo e vermelho, tinha consistência densa e podia ser açambarcado com
uma mão.
*** Mas, enquanto explorava o fruto com a mão esquerda, a mulher ouviu
um som sibilino.

De logo ela recolheu a mão, procurou identificar de onde viera aquele som
estranho, olhou para um lado e outro, e pensou que ele poderia ter vindo do
farfalhar das folhas provocado pela brisa que de vez em quando varria o
jardim.

A mulher descontraiu-se de novo e, mais uma vez, envolveu o fruto com a


mão esquerda.

Procurava sentir o que vinha de dentro dele, que mal poderia provocar a
quem o comesse.

A menos que ele contivesse substância venenosa, pensou a Varoa.

Mas ela sabia que ali mesmo, no Éden, existiam plantas com que até os
animais, embora irracionais, tinham cuidado.

Por um motivo simples: do jeito que podem curar no uso regrado, as plantas
também podem matar no uso exagerado.

Mas não podia ser isso, um veneno.

Até porque, pensava a Varoa, e conforme Adão lhe dissera, Deus o alertara
tempos atrás que, se ele comesse daquele fruto, certamente morreria,
porque, enfatizara o Divino, aquela árvore era a “do conhecimento do bem
e do mal”.

De repente, e cheia de curiosidade, a mulher terminou puxando aquele


pomo, partindo a sua radícula, separando-o do galho que o segurava.

Ela olhou o fruto com admiração.

Ele era leve.

Com a mão direita alisou a superfície, como a retirar um cisco ou uma fina
camada de poeira da casca colorida; depois, devagar, levantou a mão com o
fruto em direção ao próprio rosto e imaginou que aquele fruto proibido
parecia ter mais gosto, mais cheiro do que os de todas as outras árvores
comuns do Éden (e, aliás, a própria Bíblia diz em Provérbios 9:17: “...o pão
comido às ocultas é agradável”).

Mas, de novo, ela ouviu aquele som estranho, sibilino, e dessa vez mais
insistente e mais próximo.

Olhou para cima, para a copa fechada e obscura.

Parecia que um ar frio vinha dali.

Então, a Varoa entrou em pânico.

Cheia de terror, deixou o fruto cair no chão e, sem mais pensar, saiu numa
carreira desembestada pela trilha, cabelos pretos e lisos esvoaçando atrás da
cabeça, sem olhar uma única vez para trás.

Só parou quando chegou ao terreno em frente à caverna em que morava.

Ou melhor, parou de supetão pois, lá na entrada da caverna, Adão estava


sentado em uma pedra lisa e, tranquilamente, brincava com dois animais
domésticos que viviam no jardim.

Distraído com os animais, o homem não viu a ação destrambelhada da


mulher.

E ela, parada, procurou retomar o fôlego, com as mãos tentou enxugar o


suor da testa e, depois, recompor a cabeleira longa e negra, e caminhou em
direção ao marido.

- Já voltaste, Adão? O que foi que houve pra tu voltar assim, antes do
tempo? - O que houve, pergunto eu, mulher.

Por que estás toda suada, descabelada, ofegante desse jeito, e esse corpo
cheio de sujeira? - Nada demais, homem - respondeu ela, com as mãos
tentando expelir da pele molhada pelo suor, gravetos, pedaços de folhas, até
grãos de terra -, só estava tentando vencer uns animais numa corrida.
- Correndo contra animais? Mas sabes que nunca vais conseguir isso, pois
tu, como eu, não tens agilidade e nem fôlego contra eles, ora.

- Eu sei, mas de vez em quando brinco disso com eles.

É divertido e ajuda a passar o tempo.

- Ê mulher sem juízo.

O que a gente vai jantar? - E como foi o trabalho lá nas margens do


Eufrates? - devolveu a Varoa, agora rumando para o interior da caverna,
sem esperar a resposta do marido.

E depois do jantar, banhados, se amaram entre peles de urso.

*** No dia seguinte, depois de saciarem a fome com ovos cozidos, verduras
e vegetais, a Varou perguntou ao marido: - Adão, me diz a verdade.

O que tu achas daquela enorme árvore lá do meio do jardim, que Deus


chama de árvore do conhecimento do bem e do mal? - Não sei, mulher.

- Mas, olhe, eu não entendo isso.

Como é que não sabes, se justamente o Divino te levou até a presença dela
e te alertou sobre o mal que ela pode trazer para nós? - Ah, bom, sobre isso,
o que eu entendi é que, se comermos do fruto dela, morreremos.

- Oie, homem, não se faça de desentendido.

Tu sabes muito bem o que eu estou perguntando, se já paraste para pensar


nessa coisa, nessa história do conhecimento do bem e do mal.

Adão ficou calado por um instante.

Realmente, admitia para si próprio, já pensara sobre isso, sobre o


significado daquela sentença de Deus.

Mas como adorava e era temente ao Divino, o seu criador, cumpria


fielmente o que Ele lhe dizia, nunca o questionava.
- Não vais responder, homem? Adão respirou fundo, procurando entender
aonde a mulher queria chegar com aquelas perguntas todas, que ele não
sabia responder.

- Oh, mulher, se o Criador diz que é assim, nós devemos cumprir.

Afinal, foi Ele que nos botou nesse mundo que Ele também criou, num foi
não? - Mas não achas que é uma imposição muito forte em cima da gente.

Por que? Ora, se Ele não quisesse isso, não teria colocado aquela árvore
esplendorosa e de fruto proibido bem no meio do jardim! - Pode ser,
mulher, pode ser.

Às vezes, eu também até tenho me perguntado sobre tudo isso, mas não
encontro uma resposta.

Talvez porque eu temo e sou fiel a Deus por demais, e não entra na minha
cabeça que o nosso Criador queira nos punir por um mal que Ele mesmo
tenha plantado no meio desse jardim.

- Mas essa é a razão da árvore do fruto proibido.

Não percebes isso? - O que? Que Deus quer punir a gente se comermos o
fruto da árvore proibida? - Não, de testar a gente.

- Mas testar o que, se Ele sabe que lhe somos fiéis? A Varoa soltou uns
resmungos, desistiu daquela discussão sem sentido e foi lá pra fora da
caverna, dar tratos à bola.
Capítulo 6

A MALÍCIA DA SERPENTE

A lguns dias depois, a mulher deu uma desculpa ao marido de que teria de
cuidar de alguns animais perto da colina, no centro do jardim.

Seu objetivo era outro, porém: de novo, ver e tocar o fruto da árvore bela,
grande e frondosa.

Ela se sentia fortemente atraída por ele, mas não sabia explicar a razão.

Ou, por outra, o que ela tinha certeza mesmo era que o fruto daquela árvore
do conhecimento do bem e do mal, plantada e condenada por Deus, de
alguma forma poderia lhe aplacar a carência por algo que ia além da sua
própria imaginação, quem sabe reverter a sua insatisfação, a angústia por
conta das mesmices do jardim e do seu próprio marido, Adão.

E eis que, de novo embaixo da imensa árvore, a Varoa olhou para cima,
para a fechada copa.

Sentia que a brisa vinda do sul - da foz dos rios Tigre e Eufrates, lá no
Golfo Pérsico - a afagar a sua pele e a esvoaçar de leve os seus longos
cabelos, também balançava as folhas verdejantes e aquelas centenas de
frutos em cujas cascas se misturavam o vermelho, o amarelo e o branco,
como se estivessem a bailar.

A mulher não resistiu e, cheia de graça, levantou os braços, passou a


movimentar as mãos e os pés, a girar o corpo compassadamente, como se o
farfalhar das folhas empurradas pelo vento fosse a música a dar o ritmo
daquela dança.

Inebriada, a Varoa esqueceu-se de tudo, ria feliz enquanto dançava.

De repente, porém, ela ouviu uma voz que vinha de um grosso galho,
acima, no seu lado direito.
- Taí, mulher, tá bonito isso aí, tu, dançando desse jeito, cheia de graça,
cheia de alegria.

Ela parou assustada, levantou a cabeça e, então, viu aquele ser a se destacar
na penumbra que obscurecia a fechada copa da árvore, mas bem perto de si.

Era um réptil asqueroso, o corpo cheio de escamas enroscado no galho e a


cabeça de forma triangular virada para a sua direção, as pálpebras
transparentes e, o mais lúgubre de tudo: a fina e longa língua com uma
bifurcação na ponta, que, na verdade, é o que lhe dá a direção do odor, do
cheiro.

Aterrorizada, a mulher voltou-se e procurou fugir dali, mas enquanto corria,


de novo ouviu a voz sibilina: - Por que tu foges, mulher? Qual é o teu
temor? Ao ouvir aquela pergunta, ela parou e ficou ali, em pé, se
indagando: “Meu temor? É o meu Deus, claro!”.

E enquanto a mulher permanecia estática, a língua rachada da sibilina


distinguiu o cheiro de uma lesma que, protegida com seu casco duro às
costas, avançava com lentidão sobre um fino galho em direção a um dos
frutos da árvore.

A serpente, claro, não lhe deu tempo para isso.

Por fim, a Varoa virou-se e caminhou em direção ao tronco da árvore.

- Vamos, mulher, me dês uma resposta.

- Ôxe! Nunca vi uma cobra falar.

O que tu queres, rastejadora? - Nada demais, só falar contigo, mulher - e, aí,


a serpente soltou o seu som sibilino, que a Varoa ouvira diversas vezes, dias
atrás.

- E eras tu, então, que dia desses vinha dando silvos aqui nessa árvore, só
pra me assustar, é? De novo, o réptil soltou a língua o mais longe que pôde,
enlaçou uma pequena folha em que descansava uma inocente lagarta e a
recolheu para dentro de si com a mesma velocidade, e riu com ar matreiro: -
Hehehehe, mas não quero te meter medo.

Longe de mim isso.

- Ai, da última vez que ouvi esse teu som sibilino, assustador mesmo, sai
correndo daqui feito uma doida, com um medo da bexiga.

Por que, desde o início, não falaste comigo? Precisava ser desse jeito,
metendo medo em mim? - Hehehehe - riu de novo a cobra -, mas é que eu
queria conhecer as tuas intenções.

- Minhas intenções? Como assim? - Francamente, mulher, qual é o teu


propósito? O que tu queres, vindo aqui, sabendo que o fruto desta árvore é
amaldiçoado por Deus? Não estás feliz no jardim? O teu homem não te
satisfaz? - Ishi, quanta pergunta doida! Mas não disseste quem tu és.

- Mas, me diga, pra que te interessa saber quem eu sou? Isso não tem a
menor importância, menina.

Eu sou o que sou.

Isso é o que basta, para mim e para ti, viu? - Assim, tu me deixas confusa.

- Por que? - Sei lá?! Eu não te conheço e, ademais, só sei que tudo é
possível na vontade de Deus.

E não foi Ele que criou o Paraíso e depois meteu a gente dentro dele? - Ih,
mulher, aonde tu queres chegar com isso? - Ora, se Deus criou tudo,
também, de repente, Ele pode fazer uma cobra falar.

Por que não? O que me pergunto é qual o motivo para isso.

- O que estás querendo insinuar, sua boba? - Já te disse que não te conheço.

E, depois, enroscada nesse galho grosso e escondida no meio da folhagem


desta árvore, ficaste soltando sons sibilinos só pra me assustar.
Agora, sem que nem pra que, tu apareces com essa cara triangular, lançando
essa língua ferina e rachada, e falando que nem eu, Adão e Deus.

Queres que eu pense o que? - Que isso é coisa de Deus? - Mas é claro que
sim.

Por que Ele plantou essa árvore do conhecimento do bem e do mal aqui,
bem no meio do jardim? Pelo mesmo motivo que te fez subir nesse galho da
árvore, te dar voz, e me testar.

- Te testar em que? - Ah, deixa de teatro, sibilina.

Tu sabes muito bem sobre o que eu estou falando, pois, a mando d’Ele, tu
cumpres um propósito.

É, ou não? - Eu, hein!? Hehehe.

Eu, numa missão de Deus? Qual’é, mulher, eu não tenho que pensar nisso.

Isso é coisa tua.

E, na tua cabeça, que missão é essa? - Já te disse, a de me testar.

Aliás, me ocorreu agora: me fazer negar a obediência ao Criador.

- E, por acaso, tu tens dúvidas sobre isso? - Não, de jeito nenhum.

- Então, mulher, o que tu queres, vindo com frequência até esta árvore, que
Deus diz que é a do conhecimento do bem e do mal? - Só por curiosidade,
já que ela é misteriosa.

Mas não se trata de desobediência a Deus, isso eu te digo com franqueza.

- E do que se trata, então? - Bem, vou ser sincera contigo.

O que eu sinto é um enfado enorme com essa vida aqui no jardim do


Paraíso.
- Ah, é? Por isso queres descobrir o que essa árvore tem, qual a causa dela
ser proibida, é? - Ih, criatura, essa conversa tá começando a virar o meu
cérebro.

Eu, hein!? Vou-me embora.

A Varoa deu as costas e foi para casa, mas sobrou para um calango que
rondava por ali, a dois galhos de distância: a insaciável víbora soltou o seu
som sibilino, com a língua bifurcada sentiu o cheiro do réptil e, numa
velocidade surpreendente, a expeliu e recolheu com a vítima para a boca;
em seguida, acomodou o seu longo corpo cheio de escamas em volta do
grosso galho em que estava enroscada, descansou a cabeça triangular sobre
a casca grossa da madeira, de novo soltou o som sibilino tenebroso que lhe
era característico e, então, moveu as mandíbulas e cravou as presas, lá atrás
da sua boca, no corpo do calango.

Depois, sarcástica, riu: - Hehehehe.

Sou paciente, mulher, tenho todo o tempo do mundo para deglutir esse
bicho, enquanto espero a tua volta.

A serpente soltou um huuummm de satisfação.

Pela transparência das pálpebras fechadas, deu para ver que os olhos se
apagaram e, então, ela caiu no sono.

Dois dias depois, a Varoa não resistiu.

Aproveitou que Adão fora cuidar dos seus afazeres pelo lado oeste do Éden
e debandou-se para a colina do centro do jardim, em que estavam a Árvore
da Vida e a do conhecimento do bem e do mal.

Como sempre, não teve dúvida: plantou-se sob a frondosa copa da segunda
e, com a palma da mão direita, tocou o casco todo cheio de sulcos e
cinzento do tronco.

Após alguns segundos, o seu corpo desnudo fremia, aos poucos caiu em
êxtase e depois, olhando para cima, ela sentiu que a enorme copa da árvore
começou a girar.

Sentia como que uma carga elétrica invadir o seu corpo através da mão
espalmada no tronco.

Ela respirou com profundidade e, ao soltar o ar pela boca, parecia que se


libertava de uma força que a subjugava.

Sentiu um pouco de tonteira e, para tentar se manter em pé, firme, com os


dois braços tentou abarcar o tronco da árvore, de novo olhou para cima e
viu que a copa girava cada vez mais veloz e, nesse girar contínuo, a mulher
terminou caindo de costas no chão, zonza.

Enquanto procurava se recompor e entender o que havia acontecido assim,


de repente, ela ouviu a voz da serpente: - Ei, mulher, tá variada? - Ai, tu de
novo, escamada? - respondeu ela, levantando-se.

- O que te aconteceu? Fraquejaste das pernas, ao ponto de caíres no chão


desse jeito? - Foi uma tontura.

De repente surgiu um redemoinho na minha cabeça, tudo começou a girar


em volta de mim.

Nunca senti isso nesse pouco tempo de minha vida.

Tentei me segurar no tronco dessa árvore, mas a tontura foi tão forte que
terminei caindo.

- Hehehe.

Parece que essa coisa de enfado em relação ao Paraíso e a Adão virou um


tormento na tua cabeça, não é? - Êpa! Vamos separar as coisas – disse ela,
levantando-se apressadamente –, amo o meu homem.

Claro, ele tem as suas falhas, mas eu também tenho as minhas, ora.

- Tá certo, não vou discutir isso.


Mas o que te pergunto é o seguinte: o que tu queres fazer para mudar esse
estado de coisa? - Ai, falando sério, não sei.

- Então, vou te sugerir uma coisa: por que não experimentas o belo fruto
desta árvore do conhecimento do bem e do mal? - O que? Tu ficaste doida
dessa tua cabeça triangular, sua víbora? Esse fruto é proibido pelo Divino,
dele a gente não pode comer.

- Mas foi assim que Deus disse ao teu marido, “não comereis de toda árvore
do jardim”? - Não, o que Adão me disse foi que Deus falou a ele que “dos
frutos da árvore do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está
no meio do jardim, não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais”.

- Taí, não sabia dessa história da proibição de Deus, que vocês também não
podem tocar no fruto dessa árvore.

Sabia só da advertência que não devessem comer dele.

- Como assim, não tocar no fruto? - Mas tu acabaste de dizer isso, que a
proibição também é para não tocar no fruto...

- Eu disse isso? Ai, já nem sei mais o que eu estou dizendo.

- Te acalmes, mulher.

Mas, se te serve de consolo, se a proibição também inclui o tocar o fruto,


então não faz diferença nenhuma se provares um pedaço dele, não é
mesmo? A Varoa ficou surpresa com aquela observação da serpente falante,
e pensou: de fato, considerando-se isso, comer um daqueles frutos não iria
piorar em nada o castigo que Deus viesse a aplicar a ela.

No caso, a morte.

Como a Varoa manteve-se em silêncio, a avaliar tudo aquilo, a sibilina


voltou a atacar: - Estás em dúvida, mulher? Veja bem: é certo que, se tu e
Adão comerem do fruto, não vão morrer.

O redemoinho voltou a girar no cérebro da mulher e, assim, ela já não sabia


mais o que pensar, a discernir entre a obediência e a tentação.
Na tentativa de aplacar aquele tormento, ela pôs os braços em volta da
cabeça, cerrou os olhos, mas manteve-se calada.

De novo, ouviu a voz da sibilina.

- Por que esse tormento, menina? Isso não leva a nada.

Vamos, acalme-se.

Pense nisso: esse fruto proibido é, na verdade, o limite entre vocês, tu e


Adão, e Deus.

Hoje vocês têm a aparência d’Ele; vocês três são iguais, mas só fisicamente.

Mas Deus sabe que, quem tem o conhecimento, tudo possui, e pode ser
igual a Ele também no poder de, além de ver, observar, pensar, criar e
transformar.

E esse poder quem pode dar a tu e a Adão é o fruto desta árvore.

Esse fruto é a barreira imposta por Deus entre a aparência física de vocês
três, e a ciência, que só Ele tem.

A mulher arriou os braços, manteve a cabeça abaixada, os longos cabelos


lisos e pretos a cobrirem as faces, e os olhos cerrados.

Aos poucos, voltou a respirar com normalidade, levantou a cabeça, abriu os


olhos e mirou as pálpebras transparentes daquela cabeça triangular e
perguntou: - Por que insistes tanto para que eu coma desse fruto proibido? -
Na verdade, eu só quero te ajudar.

- Me ajudar? Não vejo em que sentido! - Em te livrares desse tormento.

- E o que tu ganhas com isso? - Eu? Nada.

Ou melhor, ficarei satisfeita em te fazer feliz.

Só isso.
De novo a mulher baixou a cabeça e pensou por alguns segundos.

Achava mesmo que o fruto daquela frondosa árvore era bom para se comer,
agradável aos olhos, e que a própria árvore era desejável para dar
entendimento.

Assim, tomou uma decisão: - Tudo bem, concordo contigo.

Porém, tenho de conversar com Adão sobre tudo isso.

Vou pra casa, para discutir esse assunto com ele.

Contrariada, de seu canto a víbora viu a mulher, sem dizer mais nada, dar as
costas e tomar o rumo de casa.

Restando sozinha, enroscada no grosso galho da árvore do pecado, ela já


começava a achar que nem era tão sagaz assim e isso a impacientava.

Sua estratégia de capturar a mulher, e com ela provar que Deus não era tão
poderoso como agia, estava a desejar, não se sustentava.

É que ela não esperava que a mulher criada por Deus fosse tão difícil, cheia
personalidade.

- Tô começando a achar que, o mais fácil mesmo, era ter atacado o Adão
nesse propósito - ruminou a serpente, concluindo -: Ai, que tédio chato! ***
Em casa, Adão e a Varoa passaram dias e mais dias remoendo aquele
assunto.

Até porque, tinham a certeza absoluta que a questão não se resumia ao


simples fato de se arrancar um daqueles belos frutos da árvore do
conhecimento do bem e do mal, com uma dentada botar um naco na boca,
mastigar e engolir aquela massa proibida.

E também não só dizia respeito a uma desobediência à ordem de Deus e,


ainda mais, à sentença d’Ele de que, com isso, certamente eles morreriam.

Não, a questão era bem mais do que isso.


Numa dessas discussões, a Varoa falou: - Aliás, agora me lembro de uma
coisa importante: a tua primeira mulher, a Lilith, rejeitou a ti e a Deus, e
fugiu do Paraíso.

Pelo que a gente sabe, ficou nisso mesmo, ela não morreu.

- Pode ser que a Lilith não tenha morrido, mulher, mas, como ela vive hoje?
- Por que perguntas isso? Por acaso, sabes de algo que eu não estou
sabendo? - Ih, mulher, lá vem tu, de novo, com as tuas desconfianças.

Não se trata disso.

- E do que se trata, então? - Oh, mulher, não queres perceber? Trata-se do


futuro, do desconhecido.

Aqui no Éden vivemos sob o abrigo de Deus.

Ele é que se preocupa com a gente.

Tá certo, às vezes a gente tem de cuidar da terra e dos animais, mas sobre
eles é a gente que tem o domínio.

A gente vive hoje sabendo como vai ser o amanhã, o futuro.

Não temos que nos preocupar com isso.

Ou melhor, só temos que seguir as regras do Divino, e isso não é tão difícil
assim.

- Olha Adão - a Varoa fez uma pausa estratégica, respirou fundo e


continuou -, pra falar com toda franqueza, eu estou preocupada com o
amanhã, sim.

E a minha preocupação tem a ver com essa vida cheia de mesmices que vivi
ontem, estou vivendo agora e com toda certeza vou viver amanhã.

Toda essa mesmice é que me deixa enfarada.

Pra mim, isso não é vida, é martírio.


- Mas que vida tu queres, mulher? Fora daqui a gente não conhece nada,
não sabe o que existe lá fora do Paraíso.

Como vamos viver num mundo que a gente não conhece, sem saber se tem
proteção, futuro? - Homem, quanto a este Paraíso, escute bem o que te digo
agora, já sei de cor e salteado como é: pequeno, cercado e sem a menor
chance de se expandir.

Da mesma forma, Adão, este Paraíso também está limitando a vida da


gente.

Mas isso não quer dizer que quero sair daqui.

Na verdade, a vida que eu quero para nós dois é mais do que essa
monotonia que a gente vive.

Quero que a gente descubra o que existe além da Árvore da Vida, no centro
do jardim, e a porta para isso está bem do lado direito dela: a árvore do
conhecimento do bem e do mal com o seu belo fruto redondo, mas proibido
por Deus.

Pronto, falei.

Ao ouvir a mulher falar tudo aquilo de uma vez, palavras que sem parar ela
soltara pela boca, como se fossem as águas que, às vezes, num turbilhão,
percorrem os leitos dos quatro rios do Paraíso, Adão olhou pasmo para ela.

Há muito tempo sabia que a Varoa tinha pensamento e comportamento


diferentes dos dele, mas não ligava para isso, tratava essas coisas com
indiferença, como caprichos de alguém que só queria atenção.

Esse mesmo comportamento ele notava entre os casais de animais


domésticos e selváticos, as aves que voavam entre o firmamento e a terra, e
os peixes que nadavam nos rios, nos lagos e nos mares, a fêmea sempre
chamando a atenção do macho, atraindo-o para onde ela queria e, ali...

- Ei, Adão, não vais me responder, não mereço uma resposta? - Não é isso,
mulher, estava só pensando sobre tudo isso que acabaste de falar.
Confesso que me pegaste de surpresa.

Como já te falei dias atrás, também já me questionei sobre essa questão


daquela árvore do conhecimento do bem e do mal e de seu fruto proibido.

Mas nunca tinha pensado em desobedecer a ordem de Deus.

- E isso quer dizer o que? - Tenho de pensar mais um tempo sobre essa
questão.

- Porém, Adão, fiques certo do seguinte: eu não aguento mais a nossa vida
desse jeito e, por isso, estou seriamente propensa a me rebelar à soberania
de Deus, a comer o fruto proibido, a experimentar o que me oferece a
árvore do conhecimento do bem e do mal.

- Mas isso é, simplesmente, desobedecer à ordem do nosso Criador, minha


Varoa, a Ele, que nos deu a vida e criou tudo que temos ao redor para viver
sem preocupações.

- Não, meu marido, não se trata de desobediência.

Que fique bem claro em tua cabeça: tenho um profundo respeito pelo nosso
Criador, como Ele é.

No entanto, discordo plenamente como Ele age em relação à gente.

- Como assim? Não estou te entendendo.

E Ele não satisfaz a toda e qualquer vontade da gente? - Ma’rapaz, tu és


mesmo um fraco de pensamento, né não? E tu, por duas vezes, já não me
falaste que tinhas te questionado sobre a proibição de Deus em relação à
árvore e seu fruto proibido? E, também já não discutimos sobre isso, que é
um teste sobre a fidelidade da gente? - Foi, tudo bem.

Mas insisto nessa questão: tu não achas que a gente deve fidelidade e
obediência a Ele, que tudo nos deu e dá? - Ai, Adão, agora te pergunto: de
que adiantam a fé e a obediência que temos n’Ele, mas, em contrapartida,
Ele parte do princípio de que a gente não merece confiança? - Como a gente
não merece a confiança d’Ele? - Homem, como tu te fazes de desentendido!
Eu, na minha sã consciência, não acredito que não atines para o fato de que
aquela maldita árvore seja uma prova inconteste da desconfiança de Deus
em relação à gente.

Sinceramente, tu me decepcionas.

- E a serpente, mulher, aquela que tu mesma desconfias do seu propósito e


até achas que é uma enviada de Deus para testar a gente? - Isso já não me
perturba mais, homem.

Na verdade, o que vinha me preocupando nos últimos dias era a tua reação.

Por isso é que, antes de tomar uma decisão, preferi discutir o assunto
contigo, de repente ter de ti uma opinião contrária, mas substancial o
bastante para reverter essa minha propensão.

Mas até agora não vi isso.

- Oh, mulher, sendo assim, também estás me testando, me pondo à prova.

Naquele dia, a discussão parou nesse ponto e a Varoa, preocupada,


levantou-se e foi cuidar de algumas coisas dentro da caverna.

Noutro dia, num final de tarde, quando os dois andavam aleatoriamente


pelo jardim, Adão saiu-se com essa: - Já pensaste no que te falei naquele dia
de nossa discussão, mulher? - Sobre o fato de que eu estou te pondo à
prova, é isso? - Claro, e o que poderia ser mais? Não achas que estás pondo
minhocas dentro do teu cérebro? Atônita, a Varoa parou, virou-se para ele e,
lançando chispas pelos olhos, disse: - Homem, não me provoques, viu? -
Qualé, mulher, não se afobe.

Só quero saber disso, se estás me testando.

Rápido, a mulher raciocinou: Adão sempre foi desse jeito, com o seu
mísero defeito de a irritar com tiradas como essa durante discussões sérias,
e todas as vezes isso a fazia sair do sério; no entanto, ela sabia também que
isso era mais gozação da parte dele, justamente para não levar uma
discussão a sério.
Na maioria das vezes, ela deixava passar porque, assim mesmo, ela o
amava.

Respirou fundo, mas naquela vez ela não deu o braço a torcer.

Ela disse: - Veja bem, Adão, comer aquele fruto proibido nos induz a uma
reação, a um erro ou um acerto.

Mas essa reação é uma escolha.

Eu estive pensando cá com meu umbigo: se a gente não age, não erra ou
não acerta.

- Aqui pra nós, não tô entendendo esse teu raciocínio, mulher.

- Ô seu cabeça ôca, pensa: só depois de agir, a gente sabe se erra ou acerta,
e certamente os dois casos nos servem de lição para conduzirmos as nossas
vidas.

Aliás, acho que o erro nos ensina mais que os acertos.

Tu mesmo já te feriste nos espinheiros ou até sentiste na pele a ardência das


urtigas.

Nesse caso, agora sabes que tens de evitá-los.

- E o que tem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal a ver


com isso, com erros e acertos para a nossa vida? - Dele, Adão, nada
sabemos, a não ser que certamente morreremos se o comermos, como Deus
ordenou.

Mas não sabemos que gosto ele tem e se, de fato, morreremos depois de
comê-lo.

Outro dia eu te vi curioso com uma lagarta de fogo que vagarosa e


molemente rastejava pelo chão; queimaste a ponta do teu dedo.

Assim, experimentar o fruto proibido não é uma desobediência a Deus, mas


uma lição de vida.
- Então, já decidiste! - De jeito nenhum, ôxe! Não entendeste, ainda.

Tudo isso que tenho falado é o meu pensamento sobre essa mesmice do
Paraíso.

Agora, o que quero saber é se tu és capaz de vir comigo, ou de tirar essa


ideia da minha cabeça.

Mas não aceito mais essa tua indecisão eterna, entre a obediência cega a
Deus e o conhecimento do bem e do mal.

- Mulher, não reclames de novo, só me dê mais um tempo.

- Vais consultar a Deus? - Não, porque a minha cabeça está com Ele.

O que vou consultar é ao meu coração.

*** Adão ficou angustiado pela situação que a Varoa lhe impôs daquela
forma.

Pela enésima vez, pensava, a sua consciência estava fechada com Deus, o
seu criador, a quem amava, ouvia e obedecia em tudo por tudo.

Deus mesmo dissera a ele que o criara para ser a inteligência entre todos os
seres vivos existentes sob o firmamento, na terra e nas águas, todos
irracionais, sem nunca poderem se lembrar do ontem e sem nunca saberem
do amanhã, só viverem o hoje, o agora.

Aliás, pensava Adão, os seres que viviam no ar, voando entre o firmamento
e a terra, até que tinham certa esperteza, pois faziam ninhos nos galhos de
árvores, ou em saliências e buracos de montes e montanhas, para não deixar
as suas crias ao relento.

Os do mar, ele não sabia como agiam nesse caso, mas os que caminhavam
sob a terra, até podiam se abrigar numa caverna contra as intempéries da
natureza, mas nunca poderiam transformar aquela caverna num ambiente
confortável para ali viverem.

Ele, não.
Por nomeação de Deus, ele dominava o Paraíso, todos os seres que
habitavam o ar, as águas e a terra, e a própria terra.

Era muito poder, muita responsabilidade que tinha em mãos.

E isso, graças ao fato de Deus, ao construí-lo do barro vermelho


característico do Éden, ter-lhe dado o dom do pensar, cuidando para que
todos vivessem conforme o desejo do Criador e transformando mesmo o
que existia no Paraíso, para tornar mais confortável o viver de todos.

Era essa a diferença entre o homem e todos os demais seres vivos da terra.

Adão pensava em tudo isso, nesse poder enorme que tinha, por concessão
de Deus.

Mas também ele tinha a mulher, a Varoa, que com tanta insistência pedira
ao Divino, pois já não aguentava a solidão imensa e torturante em que vivia,
enquanto todos os outros seres vivos se compraziam com uma companheira,
aninhando os seus corpos e deixando rastros de sua existência no Paraíso,
no ar, na terra e nas águas.

Ele até alisou a sutil cicatriz vertical no lado esquerdo do seu tronco, a
marca de que por ali Deus extraíra sua costela mais curta para criar a sua
companheira.

Adão amava a Varoa, e a amava por demais.

E ele mesmo já não lhe externara que ela era o seu próprio jardim? Até
porque, sabia, se a perdesse, seria o fim do mundo; do seu mundo.

Ele já passara por uma situação dessa antes, com a primeira mulher, a
desvairada da Lilith, criada por Deus do mesmo barro vermelho que Deus o
criou.

Mas Lilith fora uma decepção, para ele e para Deus, e Adão não queria
passar por aquilo de novo.

O problema é que, comparando o comportamento entre as duas mulheres de


sua vida, Adão terminou concluindo que a Varoa estava enveredando pelo
mesmo caminho de Lilith, mas numa senda diferente.

Lilith entendera que, tendo sido criada na mesma hora e da mesma essência
do homem, o barro vermelho que dominava o Paraíso, tinha os mesmos
deveres e direitos dele; como isso não foi reconhecido por Adão e, pior
ainda, foi desconsiderado por Deus, ela foi radical: se rebelou e abandonou
a tudo e a todos.

Com a Varoa, a coisa estava sendo mais pensada.

Adão sabia que a mulher o amava, que respeitava a Deus e ouvia os


ensinamentos d’Ele, mas de repente virou a ideia; botou na cabeça que
Deus controlava tudo e a todo tempo queria testar a fidelidade e a confiança
deles; que o Éden era um cercado pequeno e sem futuro.

A saída, se rebelar contra tudo isso e comer o fruto proibido da árvore do


conhecimento, para o bem ou para o mal.

Da angústia, Adão passou para o martírio.

Como desobedecer a Deus, o seu criador? Com que cara, depois, vai olhar
para a face d’Ele, justificar um ato de traição a quem o ama e por quem ele
mesmo, Adão, tem adoração? Sem coragem de olhar para a frente e de
repente ver a face do Criador, o homem fechou os olhos e afundou o rosto
entre as mãos.

Sofria, só em pensar nisso.

No entanto, mesmo com os olhos fechados e o rosto entre as mãos, viu o


semblante da mulher, radiante, alegre.

De novo ele pensou: Deus era o seu mundo, a garantia da vida eterna,
aquela mesma vida que Ele lhe soprara pelas ventas quando ainda era uma
mera estátua feita do barro vermelho do Paraíso.

Mas a Varoa...

Bem, mais que a auxiliadora como Deus a apresentou depois de a criar a


partir da costela mais curta do seu lado esquerdo, a Varoa era a sua
companheira; até mais ainda que as fêmeas de todos os demais seres vivos
do Paraíso.

É que, sem ela, ele simplesmente não teria mais como viver naquele Paraíso
abençoado e habitado por Deus.

Ela, em suma, era o sentido da sua própria vida.

Por conta disso, Adão tomou a decisão que mudou e marcou a sua vida para
sempre: acompanhar a mulher na sua aventura a, de novo, sofrer o martírio
da solidão no Paraíso, mesmo tendo Deus por companhia.
Capítulo 7

A IRA DE DEUS

A hn!? - reagiu a mulher.

O homem manteve-se calado, a rir de forma enigmática para ela.

E ela, ainda surpresa, mas feliz, admitia para si própria, com sinceridade,
que não esperava por isso, de Adão chegar a esse ponto, de lhe seguir na
sua empreitada pelo mistério representado pela árvore do conhecimento do
bem e do mal.

E, aí, ela foi enfática: - Olha, Adão, eu não quero te desvirtuar da tua vida
daqui do Paraíso e, mais ainda, da tua crença em Deus, em tudo por tudo.

Mas, se esta tua decisão é pra valer, de a gente experimentar o fruto


proibido, fiques certo de uma coisa: a partir daí estaremos mais juntos
ainda, enfrentando o desconhecido.

Prefiro isso a viver nessa modorra eterna.

- Mulher, de uma coisa estou certo, e isso te digo com toda certeza: não
quero te perder.

Nunca na vida.

Se a tua decisão é experimentar o que vem dessa árvore maldita por Deus,
este também é o meu desejo.

Contigo vou dar uma dentada, mastigar e engolir um pedaço daquele fruto.

- Tudo bem, Adão, já que decidiste assim, eu te pergunto: quando queres ir


até a árvore do conhecimento do bem e do mal? - Quando der na tua veneta.

- Tu não estás brincando comigo, né? - Não, falo sério.


Se queres, vamos agora mesmo.

- Mas assim, sem mais nem menos? - Por que? Não confias em mim? - Não,
não é isso.

Apenas quero acabar com essa história toda, mas isso não tem tanta pressa
assim.

- OK, se é desse jeito, vamos amanhã de manhã, logo cedo, à colina do


centro do jardim.

Então, na manhã seguinte, ainda nas primeiras horas, e sem mesmo


tomarem o café da manhã, Adão e a Varoa começaram a caminhar pelas
trilhas emaranhadas, rumando para a colina no centro do jardim, onde
estavam plantadas por Deus as duas árvores mais frondosas e bonitas do
Paraíso, a Árvore da Vida e a do conhecimento do bem e do mal.

Gastaram um longo tempo nessa caminhada, toda ela feita quase em


silêncio, não fosse o fato de que, de vez em quando, soltassem resmungos e
até mesmo uma ou outra imprecação para que chegassem sem problema ao
seu objetivo.

Depois de muito caminharem sem descanso, o homem e a mulher pararam


ao pé da colina.

Estavam suados, a respiração ofegante e famintos.

Logo miraram a árvore amaldiçoada.

Em seguida, a Varoa olhou para o marido e ele, ainda no resquício de uma


dúvida sobre aquilo tudo, sentiu na mão direita um aperto forçado pela mão
esquerda dela, como a lhe cobrar uma decisão definitiva.

Adão, ainda temeroso, olhou para o lado dela, mas disse: - Vamos em
frente, mulher.

Eles foram.
E já sob a copa da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão olhou
aquela imensidão acima dele, galhos grossos e enormes, folhas verdejantes
que, quanto mais altas, mais escuras se mostravam.

- Estás com medo, Adão? - perguntou a mulher.

- Não, de jeito nenhum.

Apenas quero entender o que está acontecendo.

- Entender o que, se já sabias que a gente veio pra cá com um propósito?


Então a sibilina, com o seu longo corpo enroscado no galho acima deles, e
mostrando a cabeça triangular com seus olhos de pálpebras opacas, resolveu
interferir.

- As criaturas decidiram, então, seguir a curiosidade, querem saber que


gosto tem o fruto desta árvore proibida? Adão não esperava por isso.

Ou melhor, ele sabia que, quando se plantou com a mulher sob aquela
árvore, era pegar um daqueles belos frutos, arrancá-lo do galho que o
segurava, cravar-lhe uma mordida, mastigar a sua massa e, pronto, a
desobediência a Deus estava feita.

A partir daí, era aguentar as consequências.

Quem reagiu à ação da víbora foi a mulher: - Ei, sibilina, vamos com calma.

Como vês, trouxe o meu marido para ele ver de perto esta árvore do bem e
do mal.

Adão olhou para cima e, ao ver a cobra, chegou a dar um passo atrás, mas
foi rapidamente contido pela mulher, que o segurou pela mão esquerda.

- Calma, homem, não te assustes.

Essa víbora não nos faz mal, só tenta nos convencer a experimentar desse
fruto.
- Hehehehe, prazer em te conhecer, Adão - disse a serpente ao homem, que
agora já estava irresoluto sobre tudo aquilo; o homem tentou se
desvencilhar da mão esquerda da Varoa, mas ela manteve-se firme.

- Adão, calma, deixe eu falar com ela - e aí, se dirigindo à cobra, a mulher
perguntou -: por que achas que não morreremos, se comermos do fruto
dessa árvore amaldiçoada? - Por uma coisa simples, criaturas: Deus sabe
que, no dia em que dele comeres, se vos abrirão os olhos e, como Ele sabe,
sereis conhecedores do bem e do mal.

Como Ele, aliás.

Adão ouviu aquilo atônito, pasmado mesmo, sem entender direito a


metáfora usada pela serpente, de que o fruto do pecado abriria os seus olhos
e, enquanto a mulher sustinha a sua mão direita, a serpente mostrou-se
sagaz: - Veja bem, rapaz, já que chegaste até aqui, embaixo dessa frondosa
e linda copa da árvore amaldiçoada, com certeza o conflito de tua mente
não tem o menor sentido.

Se vieste até aqui, sabendo o que a árvore e o seu fruto são, é por que tinhas
um propósito.

Por que isso, agora? Adão não falou nada.

Seu olhar não era de terror, só de medo; o corpo tremia levemente e ele ora
olhava para a mulher, ora para a serpente, ora para os frutos da árvore, ora
para a esquerda, onde estava a Árvore da Vida, de que ele sempre comia
livremente para expandir o seu tempo de vida no Paraíso.

Mas, indagou-se, os frutos de todas as demais árvores também não tinham


esse mesmo sentido, de alimentá-lo, de sustentar o seu corpo? Adão virou
os olhos para o chão, sabendo mesmo que ali também não iria achar o cisco
capaz de lhe dar uma resposta, até que a mulher soltou a mão dele.

Olhou para ela assustado, sentindo-se desprotegido e, atônito, viu a Varoa


erguer a mão esquerda até o fruto mais próximo, abarcá-lo e, numa ação
rápida, puxá-lo para baixo, forçando a quebra da fina radícula que o prendia
ao também fino galho envolvido por inúmeras folhas verdes.
Ele arregalou os olhos e, pior, viu a mulher descer a mão até a altura da sua
própria boca.

Adão achava que estava no meio de um vendaval.

Não acreditava que estava vendo nada daquilo, que tudo não passava de um
tormento na sua mente.

Mas, não, na realidade, sentiu o seu rosto ser afagado pela mão direita da
mulher.

Mesmo naquele tormento, ele sabia que àquele toque mágico nunca pode
resistir e, por isso, concluiu que ainda não seria dessa vez.

Ele olhou os olhos dela e, como ela olhava diretamente para ele,
repentinamente sentiu o seu tormento ser apaziguado.

Tranquilizou-se; no entanto, notou que a mão esquerda dela, sustentando o


fruto, agora mantinha-se entre as bocas deles dois.

Ele voltou a olhar os olhos dela.

- Se queres desistir, Adão, esta é a hora, mas eu vou atrás do meu rumo.

Sem dizer mais nada, a Varoa abriu a boca, levou o fruto do pecado até ela
e, então, nele cravou os seus dentes brancos, alinhados e perfeitos e,
enquanto as duas arcadas se fechavam, poros do sumo do fruto esvoaçaram
ao redor da boca.

Adão, claro, dessa vez entrou em desespero, pois sabia que, a partir desse
ato da Varoa, não tinha mais volta: por amor, por não querer perdê-la, teria
de fazer a mesma coisa.

A mulher começou a mastigar o naco da fruta em sua boca, sentiu um gosto


adocicado naquela massa e, depois de engoli-lo, riu com satisfação, não
deixando de limpar os beiços com a mão direita.

- O fruto é saboroso, Adão.


E não estou sentindo nada demais.

Pelo menos por enquanto.

A Varoa, então, deu outra dentada no fruto, mastigou e engoliu, e exortou o


marido: - Homem, se estás com medo, tudo bem, vou entender.

Mas, se é a morte o destino que Deus me reserva por conta disso, estou
pronta a enfrentá-la.

- Ai, mulher, tu sabes que és a minha perdição; não resisto a viver sem ti no
Paraíso.

Adão mirou um dos frutos e, sem dar tempo para que alguma dúvida
restante mexesse com a sua mente, deixou o coração agir: com a mão
direita arrancou-o do galho em que estava pendurado, levou-o à boca e,
então, os seus fortes dentes vararam a fina casca colorida e se enterraram na
densa massa daquele pomo proibido.

*** Sobre essa ação do casal criado pelo Divino, até hoje persiste a
discussão em relação a duas coisas: quem, dos dois, foi o culpado maior
contra os atos de Deus; e que ato foi esse, se desobediência e/ou revolta, ou
a inferência ao sexo.

O Gênesis deixa claro que Adão seguiu a Varoa, mas em nenhum momento
considera as razões do homem para essa decisão, se por fraqueza
comportamental ou leniência amorosa em relação à mulher.

No entanto, diz claramente que esse ato foi apenas uma desobediência,
grave, tudo bem; mas, como a Igreja sempre manipulou a verdade que lhe
interessou para capturar e manter a fidelidade dos cristãos, séculos depois
adotou a tese de Santo Agostinho (354-439), um bispo argelino, a de que
todos os males do mundo, a começar do pecado praticado no Gênesis,
foram originados pelo sexo e suas bestealidades.

Nascido de uma família rica na Argélia, então província do Império


Romano na África, na juventude Agostinho integrou as hostes maniqueístas
e hedonista, e a partir do início da vida adulta viveu em concubinato por
mais de 13 anos com uma jovem cartaginesa, com quem teve um filho.

Ele se converteu ao cristianismo em 386, foi batizado no ano seguinte e em


391 foi ordenado sacerdote.

Quatro anos depois foi ordenado bispo de Hipona.

Tornou-se um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos


do cristianismo, ao ponto de ter criado a doutrina do pecado original, o
primeiro praticado pelo homem, pela humanidade (no judaísmo e no
islamismo, isso simplesmente não existe).

Ao definir o pecado original, ele concluiu que, se Adão e Eva comeram o


fruto proibido, isso resultou de uma dessas duas ações: um ato de estupidez
seguido de orgulho e desobediência a Deus; ou, desde o início, um ato de
orgulho.

Agostinho entendeu que o egoísmo do casal, comendo o fruto proibido, o


levou a desconsiderar e desrespeitar o mundo como fora criado por Deus,
com sua hierarquia de seres e valores.

No entanto, ele admite que Adão e Eva não teriam sucumbido ao orgulho e
à falta de sabedoria, se Satã não tivesse semeado em seus sentidos o que
Agostinho chamou de “a raiz do mal”.

Ou seja, segundo ele, naquele momento a natureza humana foi ferida pela
concupiscência, o apreço pelos prazeres sexuais.

Agostinho era tão radical nesse aspecto que até definia a ereção masculina
como um pecado.

Porém, considerava que esse era um ato involuntário do homem e, aí, não
teve dúvida: colocou o controle desse ato sobre a mulher e na sua
habilidade de influenciar os homens.

Essa tese de Agostinho foi confirmada pelos papas Inocêncio I e Zósimo, e


sacramentada pelos concílios de Cartago (418), Éfeso (431), Orange (529) e
Trento (1546).

Isso, na verdade, é uma coisa sem sentido, até porque, no Paraíso, de


humanos, só existiam Adão e a Varoa e, como o Gênesis deixa claro, o sexo
era abençoado por Deus.

Não fosse assim, Ele não teria criado os dois com formas diferentes.

Então, pelo menos teoricamente, no jardim não poderia existir aquilo que a
mente de Santo Agostinho cometeu: perversão, sadismo...

E ele tinha essas ideias desde os 19 anos de idade, a partir de quando seguiu
o maniqueísmo e o hedonismo.

Agostinho de Hipona foi canonizado em 1298.

*** Mas, depois de mastigar a macia carne adocicada do fruto, misturando-


a com a própria saliva, e engolir aquela massa, Adão sentiu um travo na
boca.

Parecia que, de uma hora para outra, sem mais nem menos, um gosto
amargo descia pela sua garganta, se aprofundava no interior do seu corpo e
caia de supetão lá no fundo do estômago.

Os seus olhos reviraram, com as mãos apertou o estômago e, de repente,


sentiu que, contra a sua vontade, incontrolável e rapidamente alguma coisa
quente subiu de seu estômago e chegou à sua boca.

Adão vomitou uma gosma esbranquiçada com o gosto amargo de fel.

Naquele instante, ele amaldiçoou não só as próprias entranhas, mas a si


próprio.

No entanto, olhou para a Varoa.

Justo naquele instante, com a mão esquerda a Varoa colocou perante a boca
o último pedaço do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Propositalmente, ela até fez teatro: deu uma pausa, olhou para o marido,
com vagar abriu a boca e, então, lá dentro, depositou aquele resto de fruto
sobre a língua e começou a mastigá-lo saborosamente.

Aí, ela disse: - Homem, se estás arrependido...

- Isso não pode ser - cortou imediatamente Adão no seu sofrimento -, por
que tenho uma indisposição amarga logo depois de comer esse fruto
adocicado, e tu, também comendo dele, continuas toda disposta, faceira
esse jeito? - Porque eu sei o que eu quero, Adão.

Eu não me importo com o que vem pela frente, se é doce ou amargo, macio
ou duro.

Já te disse, não me importa o que Deus acha e qual será a reação d’Ele
sobre essa coisa toda.

O que me importa é o conhecimento por trás disso tudo que Deus esconde
da gente.

- Ai, meu Deus, o que faço? - Oh, homem, entendas: se já toquei e comi o
fruto desta árvore proibida, não há mais volta.

Vou esperar o que Deus reservou para mim.

No entanto, te digo com certeza: estou satisfeita com o que fiz e posso te
garantir uma coisa: esse fruto, em nada difere dos que são gerados por essas
centenas de árvores que existem aqui no Paraíso, inclusive a Árvore da
Vida.

Adão ficou mudo por um momento.

Pensava se isso estaria certo, considerando as advertências de Deus.

Acreditava que Deus, o seu criador, era o começo e o fim pois, se criou,
também poderia dar um fim a tudo.

Mas, indagava-se o homem, se Ele criou isso tudo, inclusive a ele e à Varoa
para dominarem o mundo, não fazia sentido a morte deles por comerem
daquela árvore do conhecimento do bem e do mal.

Como contrapeso, Adão via o seguinte: a Varoa já comera todo o fruto que
arrancara daquela árvore amaldiçoada; ele comera um pedaço do fruto, de
que ainda restava um pedaço em sua mão e, então, olhou atônito para a
Varoa e depois virou o olho para a serpente.

A mulher cruzou os braços sobre o estômago, olhou de soslaio para o


marido, enquanto a sibilina soltava um silvo longo e provocou: - Ai, ai,
Adão.

Tu, com tuas fraquezas! Se Adão ainda tinha dúvidas sobre toda essa
questão, não se sabe com certeza.

O certo é que ele levou à boca o último pedaço do fruto da árvore do


conhecimento do bem e do mal, mastigou com vontade, engoliu e...

esperou o resultado.

*** Deus, é claro, viu aquela encenação toda, mas deixou os dias passarem;
ficou só atentando como aquele casal humano iria agir a partir daquele ato
infame.

A Varoa, é preciso ser honesto, continuava fiel às suas convicções e, assim,


agia normalmente, como se nada tivesse acontecido, trabalhava a área que
lhe fora destinada nos lados sul e leste do jardim e cuidava das fêmeas dos
seres viventes do Paraíso.

Adão, coitado dele, sentia como se o seu cérebro fosse explodir de uma para
outra.

Não que estivesse arrependido de ter provado o fruto da árvore proibida.

Isso não, mesmo porque o fizera unicamente por amor à Varoa.

O problema dele era outro: a reação de Deus, que certamente seria


implacável.
Disso era que ele tinha medo, tanto que passou a andar sob agrupamentos
de árvores e por saliências das grandes pedras das colinas e montanhas do
Paraíso.

Tudo para se esquivar de Deus, pois sabia que não teria coragem de encarar
a face divina.

A despeito disso tudo, o homem e a mulher passaram a se amar com mais


intensidade ainda do que antes: a Varoa, talvez pelo fato de o marido ter se
sacrificado naquele ato de rebelião contra a lei de Deus; Adão, em busca de
proteção dos braços da mulher em torno de seu corpo.

Um dia, a Varoa notou algo inusitado no marido, quando ele voltou de suas
andanças por entre as árvores do jardim: o sexo dele estava coberto por
folhas.

E mais, a mão direita dele segurava outras folhas iguais.

- Mas, o que é isso Adão, por que essas folhas escondendo o teu sexo? -
Porque vi que estamos nus; acho que isso não é certo.

- Mas tem anos e mais anos que vivemos desse jeito, e até hoje nunca te
preocupaste com isso! Por que assim, de repente? O que deu na tua cabeça?
- Olhe, mulher, desde que provamos do fruto da árvore do bem e do mal,
não percebi nenhuma mudança em meus pensamentos e nem o meu cérebro
ativou ideias novas para me sentir diferenciado ou maior que o Criador.

Só hoje é que notei que a minha própria nudez chama a atenção.

Aliás, eu cosi algumas folhas para também cobrires o teu sexo.

Toma.

- Mas ainda não atinei para o sentido disso, Adão - disse a mulher depois
que recebeu aquela vestimenta improvisada por Adão.

- É que, de uma hora para outra, notei que somos diferentes dos animais
selváticos e domésticos que perambulam pelo solo do Paraíso.
Eles não pensam, não têm noção do que as suas vidas representam para a
natureza, para o mundo e, menos ainda, não sabem o que é nudez.

Afinal, os corpos dos animais, machos e fêmeas, são iguais, a sexualidade


deles não é exposta.

Nós, não.

Como um casal, macho e fêmea, homem e mulher, temos corpos diferentes,


nossos sexos se expõem até em demasia, e isso incomoda.

Talvez seja esse o primeiro sinal de que mudamos depois de comer aquele
fruto proibido.

- Mas eu acho que não há necessidade disso.

O fato de cobrirmos o nosso sexo não nos faz melhor e nem menor que os
animais da terra.

- Não, mas pelo menos teremos pudor perante Deus, quando Ele reaparecer
para a gente, e perante a gente mesmo.

Vamos, mulher, assim como por amor te segui nessa questão de provar o
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, eu apelo: vista isso.

A Varoa sucumbiu ao pedido do homem, e cobriu o seu sexo com as folhas


cosidas pelo marido.

E eles passaram a caminhar pelo jardim assim, até que um dia, justo ao
anoitecer, quando voltavam para a caverna que faziam de lar, ouviram a voz
de Deus.

Adão puxou a mulher pela mão para debaixo das árvores.

Ficaram em silêncio.

- Onde estás, Adão - indagou Deus, e Ele insistiu -: rapaz, sei que estás por
entre essas árvores; vamos, sai daí de uma vez.
Adão e a Varoa saíram de entre as árvores e, na presença do Divino, até
mesmo bateu na Varoa uma relutância inesperada.

Adão respondeu: - Ouvi a tua voz no jardim e, porque estava nu, tive medo,
e me escondi.

- Quem te fez saber que estavas nu, Adão? Por acaso, comeste da árvore de
que te ordenei que não comesses? Sem coragem de encarar Deus, Adão
baixou os olhos para o chão e ficou mudo por alguns segundos, que lhe
pareceram uma eternidade.

Então, a fraqueza interior dele, o medo que tinha de Deus, sobrepujou o


amor que dedicava com intensidade à Varoa.

Ainda com relutância e olhando para o chão, ele dedurou a mulher: - A


Varoa, a mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.

Atônita, a mulher virou o rosto para o marido.

- O que???!!! Não acredito nisso, Adão, que disseste uma coisa dessa! O
homem continuou cabisbaixo, em silêncio, mas Deus indagou: - Que é isso
que fizeste, mulher? - A serpente me enganou, e eu comi - foi a saída
simplista dela, talvez até mesmo para não piorar as coisas, não atiçar a ira
de Deus.

Mas o Criador encheu-se de furor, e Sua maldição não livrou ninguém.

À serpente, que não se sabe por que ainda continuava preguiçosamente


esparramada no grosso tronco da árvore do conhecimento do bem e do mal,
condenou a rastejar sobre o seu ventre e a comer o pó todos os dias de sua
vida, mas não a expulsou do Paraíso.

Sobre o casal humano não lançou a morte, mas para a mulher multiplicou
os sofrimentos da sua gravidez, enquanto para Adão, por conta da sua
desobediência, amaldiçoou a terra e decretou que “no suor do rosto comerás
o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e
ao pó tornarás”.
Dito isso, Deus recolheu-se e, mais aliviado, o casal rumou para a sua
caverna.

Lá dentro, Adão e a Varoa tentaram comer o jantar, mas um travo amargo


nas suas bocas tirou toda a vontade deles de se alimentarem.

- E agora, homem, o que vamos fazer? - Não sei.

Aliás, agora quero fazer uma reparação: te nomear, dar a ti um nome


próprio, coisa que vinha adiando desde a tua criação.

Sendo assim, a partir de hoje não te chamo mais de Varoa, mas de Eva.

Agora, vamos esperar qual será o próximo passo de Deus.

Enquanto isso, vamos executar com normalidade as nossas tarefas aqui no


Jardim.

O casal não esperou muito tempo.

No meio da tarde do dia seguinte, Deus chamou os dois e cobriu os corpos


deles com vestimentas que fez de peles e depois, em silêncio, de novo se
recolheu ao seu trono celestial.

Ali, o Divino pensou (Gn 3:22): “Eis que o homem se tornou como um de
nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome
também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente”.

Então, no final daquela tarde Deus comunicou ao homem e sua mulher a


decisão radical que tomou pela sua desobediência: expulsá-los do Paraíso.

- Mas, meu Deus - reagiu incrédulo o Adão -, nunca o Senhor me alertou


sobre isso, apenas que certamente eu morreria.

Tudo bem, desobedeci à sua ordem, mas não o fiz com a intenção de
abandonar ao Senhor e ao Paraíso.

Deus foi implacável: - Por teres comido o fruto da árvore do bem e do mal,
Adão, não tens mais o direito à vida eterna, de viver eternamente aqui no
Paraíso.

Certamente morrerás; não necessariamente agora, imediatamente, mas em


algum tempo no futuro, porque perdeste a imortalidade.

E sem mais contemplações, a Adão e sua mulher Deus, como diz o Gênesis
em 3:23, “lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora
tomado”.

Em seguida, encarregou um daqueles querubins para uma missão especial:


armado com uma espada que refulgia intensamente, guardar o caminho da
Árvore da Vida, com o propósito único de barrar, a todo custo, que Adão e
Eva voltassem ao Paraíso e tentassem comer do fruto da vida eterna.

Era uma segunda-feira, 10 de novembro de 4004 a.C.

Pelos cálculos do arcebispo irlandês James Ussher, baseado no calendário


Juliano, isso aconteceu 18 dias depois da criação de Adão.

Fim

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