Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DEUS E A CRIAÇÃO
Há controvérsias.
E ele chegou a estas conclusões, que publicou em seu The Anals of The
World (1658): pelo calendário Juliano (adotado pelo imperador romano
Júlio César em 46 a.C.), foi no início da noite, por volta das 6 horas de um
domingo, 22 de outubro de 4004 a.C.
Por isso, e por muitos outros cálculos sobre as datas das histórias sagradas,
James Ussher é referendado como o pai da cronologia bíblica.
Mas, como tudo nesse mundo tem um porém, dois detalhes importantes
devem ser considerados.
Embora ainda início de inverno, não chovia, mas os raios do sol também
não conseguiam varar as nuvens densas, cinzentas, que encobriam a cidade
e seu porto.
Sobre tudo isso, o que imperava mesmo era o velho farol, uma torre
levantada em 1759 para guiar os navios mercantes e da armada britânica
por aqueles mares.
Foi um dos 107 navios daquele tipo construídos pela Marinha Real
Britânica para suas campanhas marítimas, garantindo o poder naval dos
ingleses na época.
Agora, porém, o HSM Beagle já não era o mesmo, não mais era uma nave
de combate; fora transformado numa espécie de barca e adaptado como
navio hidrográfico, preparado para viagens de exploração de longo curso.
Era a segunda vez que aquele jovem aristocrata de 26 anos iria comandar o
brigue.
Exatos três anos após, o capitão FitzRoy era, de novo, o senhor do HMS
Beagle.
Ele sabia que a sua nova missão, que na verdade iria complementar a
anterior, era de importância estratégica tanto em termos bélicos, para
garantir à Armada Britânica o domínio dos mares, como em termos
econômicos, para a exploração e expansão das rotas marítimas.
Até porque, aquela não era uma expedição militar, mas de exploração
científica.
Por isso mesmo estavam ali, à sua frente, aquelas dezenas de estudiosos e
pesquisadores destacados para a expedição.
O capitão sabia que, anteriormente, o jovem Darwin começara a estudar
medicina; como não gostava dessa sina, e por decisão do pai, passara a
cursar teologia, mas, como naquela época havia uma grande onda em
relação ao geneticismo, naturalismo e evolucionismo, o rapaz começou a
pensar sobre aquelas novas ideias que questionavam o que lhe ensinava a
teologia.
Pouco mais de meia hora depois, a ponta de seu mastro mais alto sumiu no
horizonte enevoado.
Darwin ficou fascinado com sua primeira visão de vegetação tropical e com
a geologia do lugar.
Daí em diante, toda a viagem do Beagle, que deveria ter durado dois anos,
se estendeu por longos quatro anos e nove meses até a sua volta à
Inglaterra, em 1836.
Água.
Junto com a terra e o ar, ela é um dos três elementos substanciais para a
existência de vida e da própria terra, mas em momento algum da Bíblia está
dito que o Divino tenha criado a água.
E pouco importa qual tenha sido, essa explosão formou elementos os mais
variados que, reagindo entre si, produziram novas explosões e estas, por sua
vez, liberaram gazes, vapores, nuvens...
E Deus viu com bons olhos que a luz era boa e, então, fez a separação entre
a luz e as trevas.
OS ANGÉLICOS
O Gênesis não traz qualquer menção à criação desses seres celestiais, mas
em outras partes da Bíblia há a suposição de que surgiram exatamente no
segundo dia de trabalho de Deus.
Eles foram criados aos montes, aos milhares mesmo, e passaram a viver ao
redor de Deus, todos com uma característica: eram alados.
Lúcifer foi o mais famoso dos querubins, os guardiões das coisas de Deus.
Mas não era só isso: Lúcifer também era a vaidade em pessoa, pois
considerava-se bonito, forte e elegante, e fazia-se destacar sobre os demais
angélicos pela inteligência, outro predicado de que se achava dotado.
Não sem razão: nas conversas de grupos, e mesmo nos debates entre os
angélicos e Deus, as suas palavras eram sempre apreciadas e aguardadas
com sofreguidão, tanto quanto as do Divino.
O que determinasse, virava lei pétrea que tinha de ser seguida à risca por
todos os angélicos, embora Ele nunca tenha decretado, até aquela época,
punições para os desobedientes.
Até porque, ali, nos domínios angelicais, não havia clima para isso, para
desobediência.
Isso não, ele não era besta de fazer abertamente, de forma descarada, mas
atiçava o cérebro dos angélicos para o fato de que eles poderiam ser
maiores e mais poderosos do que todos os milhares e milhares de seres que
viviam no plano celestial, ao redor de Deus, beijando as barras das vestes d
´Ele.
No entanto, ele não deu pão e água aos insatisfeitos, mas palavras
encorajadoras de que, mesmo com fome e sede, eles poderiam reagir e lutar
por uma vida que lhes fosse justa.
Ocorre que não foi assim, uma coisa tão simples, pois essa influência sobre
os demais, um dom natural, terminou virando a cabeça de Lúcifer.
Mas logo ele entendeu que, sozinho, jamais alcançaria esse objetivo.
ADÃO
Ao sexto dia, Ele produziu os seres viventes sobre a terra, de tudo que é
espécie: os animais domésticos, répteis e animais selváticos, e a terra tinha
como característica a cor vermelha.
Mas ao admirar aquilo tudo, toda aquela beleza, bateu-Lhe uma dúvida:
para que tudo isso, todo esse esplendor e essa maravilhosa riqueza, se não
há quem o usufrua? Até porque, pensava Ele, os seres que acabara de criar e
nadavam placidamente nas águas, voavam livres, leves e soltos sob o
firmamento, e caminhavam e rastejavam com tranquilidade sobre a terra,
tinham ação e visão limitadas.
Eram irracionais.
E eles foram feitos da terra assim mesmo, irracionais, sem nunca poderem
ter noção de nada daquilo, e até de si mesmos.
Por horas a fio Deus ficou sentado no trono celestial, silencioso, matutando,
ora coçando a cabeça com vagar, às vezes cofiando com lentidão a barba de
fios longos e brancos; de vez em quando levantava-se e, resmungando,
ficava dando voltas ao redor do trono, as mãos às costas, fuçando o cérebro
na tentativa de dirimir aquela dúvida, de encontrar uma resposta para o que
já começava a considerar toda aquela criação uma obra incompleta.
Impaciente, Ele voltou ao trono celestial, sentou-se relaxadamente e de
novo cofiou a barba branca, olhando fixamente para o nada.
Passou muito tempo assim, inerte, só cofiando a barba branca ou, às vezes,
enrolando as suíças com os dedos.
Ele se lembrava bem: quatro dias antes criara o firmamento no meio das
águas; depois, separou as águas do firmamento e ordenou que se juntassem
num só lugar, àquelas que estavam no solo, o que resultou no surgimento
dos mares e de uma porção seca, a que Ele chamou de terra.
Ocorre que, desde então, Deus não fizera chover sobre a terra, mas, a
despeito disso, dela uma neblina tênue subia vagarosamente e o orvalho
resultante caia e regava toda a superfície do solo.
E Deus observou mais: nada saía das entranhas daquela terra vermelha.
É que Ele tinha uma ideia fixa na cabeça: criar um ser que pudesse não só
usufruir de todo o Paraíso, mas que também tivesse domínio sobre os peixes
do mar, dos lagos e dos rios, as aves do céu e os animais domésticos e
selváticos, e sobre toda a terra.
Um ser como Ele mesmo, à sua imagem e semelhança, em tudo por tudo.
Deus passou horas a fio construindo a sua criatura a partir daquele barro
vermelho e, por fim, admirado, tinha à sua frente uma estátua, mas numa
forma diferente de todos os outros seres que Ele também criara da terra e já
habitavam o Paraíso, inclusive os angélicos.
Ou melhor, em seu conceito estrutural, todos os seres vivos até então feitos
do barro vermelho por Deus, eram iguais, formados por cabeça, tronco e
membros, e isso tinha um sentido lógico: o tronco, o ponto central do corpo,
para abrigar os órgãos vitais; a cabeça com a função de ver, ouvir, cheirar,
comer, emitir sons, e reagir por instinto; os membros, divididos em
superiores e inferiores, com funções distintas, a depender do ser e seu
habitat.
E já que era à Sua imagem e semelhança, àquele ser, que acabara de criar,
Deus dotou de algo além do sentido lógico do corpo em relação a todos os
outros seres, aves, peixes e animais que viviam sob o firmamento: o pensar.
Como o ser estava estático à Sua frente, Deus não contou história: com o
Seu poder divino segurou os ombros daquela estátua, soprou nas duas
narinas dela e, enquanto aguardava o resultado, aquele sopro divino
percorreu um longo caminho pelo interior do corpo feito de barro vermelho:
primeiro, destravou a faringe; em seguida, abriu as comportas da laringe e,
então, desceu pela longa traqueia, no fim da qual desembocou nos
brônquios, dividindo-se em dois; a seguir entrou nos pulmões e misturou-se
com o sangue vindo da medula óssea.
Não que Deus duvidasse de si, de seu poder de criação, mas é que criar um
ser à sua imagem e semelhança não foi algo tão simples assim.
Ou melhor, para Deus, fazer o universo, fazer surgir a terra e o ar com todos
os seus seres vivos, foi uma luta constante e sem descanso, a cada dia,
naqueles seis dias.
Mas criar aquele ser à sua imagem e semelhança em tudo e por tudo exigiu
esforços extras, foi bem mais diferente e cansativo do que colocar todos os
seres vivos na terra porque, a estes, Ele não deu o poder do raciocínio.
Após mirar aquele ser de barbas e cabelos brancos, o olhar fixo nos seus
olhos, logo o ser de barro, que acabara de despertar para vida, desviou o seu
olhar para a esquerda e depois para a direita, e voltou a olhar para o ser à
sua frente, que agora estava a sorrir, feliz, satisfeito.
Adão nada disse, mas passou a olhar o mundo, para tudo aquilo que tinha
diante dos seus olhos perturbados por toda aquela intensa luminosidade
emanada por um globo suspenso lá no firmamento, naquele início de tarde,
segundo Ussher, ou ao por do sol, de acordo com o calendário judaico.
O homem ergueu-se, sentiu um ardor nas feridas dos dedos e soprou sobre
elas para aliviar aquela queimação, mas não desistiu.
Em seguida, como se recorda, Deus ergueu aquele ser feito de barro pelos
ombros e lhe soprou as ventas, dando-lhe a vida; depois, o Divino
determinou ao novo ser: “Enchei a terra e sujeita-a”.
Deus acabou de criar um ser para ter imposição sobre tudo que há no
Paraíso.
É um direito dele.
Ele ruminava consigo mesmo: será que esses abestalhados não percebem,
ou é só eu que vejo? - Ê, Azazyel, tens o cérebro travado? Não percebes que
Deus acabou de criar um ser capaz de procriar e sujeitar o mundo? Nós, que
temos vivido lealmente ao redor d´Ele, viveremos eternamente, mas nunca
poderemos procriar.
O que é que tem o fato de Deus ter criado esse novo ser, o homem, pra
encher a terra e dominá-la? Vi que Deus deu ao homem uma função e, pelo
que entendo, nós continuamos com a nossa função, protegendo as coisas de
Deus, inclusive Adão.
- Mas tu, como os demais dos nossos, não percebes uma coisa importante:
Adão foi feito à imagem e semelhança de Deus.
- E o que tem isso, Lúcifer? Por acaso estás procurando sarna para se coçar?
- Pois eu pergunto, sua besta quadrada: por que Deus também não fez a
gente à sua imagem e semelhança? E por que só Adão pode sujeitar a terra e
tudo que nela há? Fez dele um imperador, um tirano, e isso me deixa
indignado.
- Deixa de ser invejoso, Lúcifer! - Invejoso, eu? Ai, ai, Azazyel, vou te
mostrar o que eu sou, na realidade.
A ti e a Deus.
Sim, porque as outras três faces de sua cabeça eram de animais, não
raciocinavam.
Quer dizer, sob suas patas, pois, como define Ezequiel, os querubins tinham
pernas direitas, mas plantas dos pés como as de um bezerro.
Assim é que, tudo o que se falava ou se fazia nos céus, não tinha
escapatória, chegava ao seu conhecimento e, por conseguinte, de Deus.
Pois foi com base nos relatórios de seus agentes que Raguél relatou a Deus,
com minúcias, todas as bravatas, provocações e ideias de Lúcifer.
- Por acaso você está querendo dizer que Lúcifer virou um revoltoso contra
mim, contra a ordem celestial? - Não estou querendo dizer, meu Deus -
respondeu Raguél, de pronto -, eu estou afirmando com convicção.
Aqui está uma síntese dos relatórios dos meus agentes sobre tudo que eles
viram e ouviram sobre esse caso.
Tudo bem, Raguél, mas você confia plenamente nesses seus agentes que
veem e escutam a tudo e a todos? - Ah, Senhor, me desculpe, mas fiz uma
seleção meticulosa.
Sei como vivem, o que fazem, com quem andam, o que dizem e até o que
pensam.
Sei lá! Qualquer um deles, por conta de uma rixa pessoal até, não poderia
estar denunciando alguém como rebelde, só por vingança? - Ah, não, meu
Deus, isso é impossível.
Nada me escapa.
Eu tenho uma tática, meu Senhor: cada um dos meus agentes vigia o
próximo.
Deus tinha resolvido não avançar nessa questão de inteligência porque, ali
mesmo nos céus, em tão pouco tempo da Criação, já experimentava
dissabores.
Mas, ante a gravidade das informações expostas com convicção por Raguél,
Ele também tomou uma decisão mais grave ainda, extrema mesmo: chamou
o arcanjo Miguel e lhe deu a ordem para cortar pela raiz aquele mal, que já
estava empestando todo o céu.
Miguel era um dos arcanjos guerreiros criados preventivamente por Deus
para combater eventuais divergências filosóficas, ideológicas, sociológicas,
teológicas, teosóficas e democráticas ali nos céus.
Para isso, tempos antes ele nomeara os colegas de casta Rafael e Gabriel
como seus oficiais imediatos, e com eles escolhera, entre os angélicos, os
mais astutos, corajosos e fortes para formar um exército celestial.
Foi um grupo liderado por Yekun, um dos primeiros anjos criados por Deus,
que resolveu se rebelar contra o Criador só por se rebelar, mas sem uma
ideia, uma ideologia.
Seria uma luta diferente porque, sabia ele, Lúcifer era muito astuto e,
sobretudo, tinha muitos seguidores, um terço dos angélicos criados por
Deus.
A REBELDIA DE LILITH
Naquele sexto dia da criação do mundo, e logo após ter sido feito por Deus
a partir do barro vermelho do Éden, e de ter sido despertado para a vida
pelo sopro Divino, Adão já sabia que era um ser diferente de tudo o que
existia no Paraíso, mas ainda procurava entender o que ele mesmo era
naquela paisagem.
Deus então explicou que aquele ser, que Ele também acabara de construir
do barro vermelho, seria a auxiliadora dele no Paraíso, a companheira que,
de resto, todos os demais seres vivos também tinham.
Adão olhou com mais atenção para o ser que, como disse Deus, seria a sua
auxiliadora, sua companheira de vida.
Aí, sim, ele chegou à seguinte conclusão: da terra, Deus fez todos os seres
vivos, os animais domésticos e selváticos que andavam e rastejavam pela
terra, as aves que voavam sob o firmamento e os peixes que nadavam sob as
águas dos mares, lagos e rios, machos e fêmeas, exatamente com a mesma
aparência; a ele e à mulher, Ele os fez à sua semelhança, mas com corpos
diferentes na sua aparência exterior.
Aquele curto texto bíblico atiçou a mente dos exegetas, para quem a
indicação mais forte da existência dessa primeira mulher está nas últimas
frases de dois versículos daquele capítulo.
O primeiro é o 18, em que Deus reconhece não ser bom que o homem esteja
só e declara: “Far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea”.
O segundo é o 20, que diz, no entanto, que para o homem, no Paraíso, “não
se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea”.
Idônea? Das duas, uma: ou o Paraíso era habitado por muitas mulheres e
nenhuma delas era idônea, ou só existiu uma, que foi inidônea.
Eis a questão.
E para corroborar essa tese, há outra palavra icônica daquele curto trecho
que narra a formação da mulher, na segunda linha do versículo 23: afinal.
Essa palavra foi dita por Adão na sua exclamação logo que Deus lhe
apresentou a Varoa, a segunda mulher.
*** Como se vê, o Gênesis deixa rastros e mais rastros para essa história da
primeira mulher de Adão, antes da Varoa.
Sem falar que, ao longo dos séculos, os textos bíblicos foram manipulados
ao sabor de soturnos teólogos e monges, que os estudaram e transcreveram
conforme as suas próprias interpretações e seus níveis de conhecimento do
latim, grego e hebraico, e da própria Igreja que, depois de definir as
‘verdades’ que lhe interessavam para a Bíblia, passou a sedimentar a fé nos
corações e mentes dos fiéis.
Pois, ao definir a Bíblia como ela é, o que a Igreja fez foi subjugar os fiéis a
uma crença baseada nas ´verdades´ que a interessavam.
A anatemização foi usada pela primeira vez como regra pela Igreja, como
forma de punição rigorosa, no Concílio de Elvira, na Espanha, a que
compareceram 19 bispos da Península Ibérica.
Sabe-se que esse concílio foi realizado no século IV, mas em data incerta,
variando de 303 a 324.
Ainda no século IV, e também em data imprecisa nos anos 323, 343 ou 376,
realizou-se o Sínodo de Gangra, cidade hoje denominada Çankiri, no
centro-norte da Turquia, com a participação de 21 bispos.
Pois foi por conta da escravidão que aquele Sínodo de Gangra usou um
forte sinônimo de anátema, pela primeira vez, em um texto canônico: “Se
alguém, sob pretexto de piedade religiosa, ensina o escravo a desprezar o
seu amo, a subtrair a escravidão ou a não servi-lo com boa vontade e amor,
que seja excomungado”.
E entre dezembro de 1869 e dezembro de 1870, o Concílio Vaticano I, que
reuniu 744 bispos de todo o mundo, concebeu 18 cânones em que foram
definidas as transgressões passíveis do anátema, e no final de cada um deles
decretou o castigo maior ao transgressor: “seja excomungado”.
Há quem induza essa sentença divina a uma dúvida, de que existiam outros
casais no Paraíso.
Até porque, não tinha como Adão e uma mulher, seres humanos sozinhos
no Paraíso, encherem a terra.
crias.
E a mulher criada por Deus também estava nessa categoria Sendo assim,
como esse único casal de humanos poderia encher a terra? Isso, certamente,
levaria anos, séculos, milênios.
Outros argumentam: a história bíblica da criação do homem e da mulher por
Deus foi num sentido figurado, pois, na verdade, naquela hora o Divino
criou a própria humanidade, distribuída por todo o seu Paraíso.
Até hoje a Igreja Católica, porém, não concorda com a teoria de que o
Paraíso foi habitado por vários casais humanos, que teriam originado toda a
humanidade.
E mais: considera que a forma como surgiu a matéria corpórea não faz parte
do depósito da fé, desde que o fiel creia que, em algum momento, Deus deu
ao homem uma alma, que o diferenciou dos demais animais.
Essa tese de Pio XII foi referendada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965),
evento marcado pela abertura com a ciência e pela salvaguarda dos direitos
humanos, com destaque para a liberdade de expressão.
Em 1978, o cardeal polonês Karol Wojtyla foi feito 264º papa da Igreja
Católica, numa eleição surpreendente.
Escolheu o nome João Paulo II e, como tal, afável e carismático, com suas
viagens peregrinas conquistou o mundo e assim, nos seus 27 anos de
pontificado, foi o papa mais pop de todos os tempos.
Continua o livro: “Criou Ele então uma mulher para Adão, tirada da terra,
assim como havia criado o próprio Adão, e a chamou de Lilith”.
Ocorre que a frase grifada no parágrafo anterior (Não é bom que o homem
esteja só), destacada naqueles provérbios escritos em hebraico e aramaico,
também está no Gênesis 2:18, que trata da formação da mulher, e que na
sequência diz que ela é a Varoa, a mulher que Deus criou a partir da menor
costela do lado esquerdo de Adão, para servi-lo como “uma auxiliadora
idônea”.
De qualquer forma, seja qual for a versão, elas têm em comum a assertiva
de que Deus fez Lilith surgir no mundo como uma mulher e a deu como
esposa e colaboradora a Adão, e os dois começaram a coabitar no Paraíso.
A história de Adão e Lilith é escassa, mas, pelo que se sabe hoje, passaram-
se dias, semanas, meses mesmo, em que o casal vivia numa felicidade total,
os dois usufruindo do Paraíso e se amando em tudo por tudo e em tudo que
era brecha de oportunidade, O problema é que, mesmo no Paraíso, também
já existia algo que, lenta e silenciosamente, se infiltra no cérebro de uma
pessoa, corroendo a vida em comum de um casal: a rotina.
Uma vez, ela questionou o marido sobre isso: - Tu não achas que a gente
leva uma vida insossa danada aqui nessa terra? - Insossa? Como assim,
insossa? - Oxente!? Tu não percebes? Sem nenhuma graça, ora! Tudo aqui
nesse Paraíso é perfeito.
Notando que Adão estava sem entender nada, e para fazer valer o seu
raciocínio, Lilith, uma observadora de tudo o que acontecia no Paraíso,
tentou explicar ao marido: - Já notaste, Adão? O sol se levanta, percorre o
arco do firmamento e se recolhe no outro lado, seguindo uma rotina diária,
constante; vem a noite.
com ou sem a lua, mas sempre cheia de estrelas, e a gente só trabalha e faz
o que Deus quer; nada existe para quebrar essa rotina.
- Oh, mulher, o que é que se pode fazer de diferente aqui, neste Paraíso? -
Sei lá!? E, sinceramente, nem quero saber.
O que eu sei é que a gente vive nesse cercado criado por Deus, e o tempo
todo observado por Ele, mas sem saber o que existe fora daqui.
No dia seguinte voltaram à rotina do Éden, Adão mitigando a sua vida com
o trabalho de dominar a terra e a obediência irrestrita a Deus; Lilith,
auxiliando o marido no trabalho diário no Paraíso, mas a contragosto
engolindo os dissabores de discordar de uma ou outra ordem ou palavra do
Divino, e do desejo irrealizável de aventuras fora daquela rotina entediante.
Isso lhe ocorreu quando viu um pica-pau, com sua bela crista vermelha,
abanar as asas numa velocidade impressionante para se manter parado no ar
e, com seu bico robusto, espicaçar o tronco de uma árvore.
Mas a partir do momento em que viu o esforço extremo daquele belo pica-
pau em construir o ninho em que iria abrigar e amar a sua amada, deu um
destrambelho na cabeça dela.
Diferente do pica-pau, ele não arrumava o ninho, pois considerava que isso
era tarefa cotidiana dela; depois, não admitia que ela se imiscuísse no trato
do Paraíso, a não ser que ela fizesse o que ele dizia.
Certo dia, depois do amanhecer, café da manhã feito e posto sobre uma
pedra retangular dentro da caverna, os dois comendo as iguarias, Lilith saiu-
se com essa: - Adão, sabes fazer um café da manhã como esse? - Oh,
mulher, tu sabes que eu não sei cozinhar.
Mas aonde queres chegar com isso? - Deixe de ser desconfiado, homem.
Só quero saber se, um dia, és capaz de fazer uma mesa dessa pra gente.
- Mas já te disse, mulher, não sei cozinhar, mas sei caçar, desossar uma caça
e assar a carne para a gente comer.
Adão olhou estupefato para Lilith, sem entender aonde ela queria chegar
com aquela conversa sem sentido.
- Oh, mulher, logo na hora em que estamos comendo em paz, tu vens com
essas perguntas doidas.
- Eu, hein? Para Lilith, esse “Eu hein” foi a desgraça de tudo.
Mesmo porque, e Adão sabia disso, ela fora criada por Deus na mesma hora
e do mesmo barro vermelho que ele.
Então, eles eram iguais em tudo por tudo, inclusive em relação a Deus.
E ela percebia com clareza que Adão, por saber ou querer, ignorava essa
realidade.
Duas semanas depois, num meio de tarde, durante uma chuva torrencial
com ventos fortes, Adão e Lilith estavam na caverna que usavam como
morada.
A caverna ficava no lado sul do jardim, num dos morros que integram as
montanhas do Éden.
Adão acendera uma pequena fogueira a uns três metros da parede do lado
direito da entrada, onde assava o quarto de um porco do mato que caçara no
final da manhã, bem antes da chuva, perto do Eufrates, um dos quatro rios
que integravam o Éden.
Ora, pensava ela, Deus criara os dois a partir do barro vermelho que
dominava o Paraíso, naquela época ainda deserto.
Tá certo, entendia ela, primeiro Deus criou Adão e depois, ela; mas, no seu
raciocínio, a mulher se deu conta: isso não dá a Adão a primazia sobre ela e
o Paraíso.
Afinal, se fora criada por Deus da mesma essência usada para a construção
de Adão, o barro vermelho, então ela era igual ao homem.
Pela primeira na vida, ela reagiu àquela ação, que era costumeira na hora do
sexo entre os dois, Adão sempre por cima.
Ela resolveu dar um basta, pois entendeu que, naquela posição, estava
sendo submetida pelo homem, ela deitada de costas, as pernas abertas, ele
deitado sobre ela, dominando e invadindo o seu corpo.
Com o braço direito, ela tentou segurar o corpo dele sobre a pele de urso,
enquanto impulsionava o seu próprio corpo para cima de Adão, mas seu
esforço foi em vão.
É que, rindo, o homem fez prevalecer a sua força masculina e, num pulo, de
novo estava deitado sobre ela, de novo já procurando invadir o seu corpo.
Por que isso agora, Ôxe? - Esse é o teu problema, Adão, achar que, por ser
homem, tudo tem de ser quando e como queres.
- Ih, Lilith, assim, de repente, queres mudar o rumo natural das coisas, é? -
Estás vendo só, homem, como o teu pensamento é curto e, além do mais,
tacanho? Não se trata disso, de querer mudar o rumo natural das coisas,
como dizes.
- Somos...
Mas o que aumentou a ira de Lilith foi o fato de Adão a estar tratando, e aos
seus argumentos, como coisas sem a menor importância, uma questão
desprezível de alguém que está abaixo dele mesmo.
Deus fez ele assim, não tens como mudá-lo, nem mesmo a mim, pois sou
como Ele me fez e, a ti, como minha auxiliadora.
Pronto.
Cansei.
De pronto, ela levantou-se, agarrou uma pele de urso e foi para o canto
oposto do salão da caverna, onde deitou-se.
Adão, como um parvo, ficou no seu canto, ainda sentado, sem entender a
reação extemporânea da mulher.
Mesmo porque, pensava, ela nunca fora disso; porém, ele notara que, nos
últimos tempos, Lilith andava com umas esquisitices, como naquele dia
quando lhe perguntou se não achava que eles levavam uma vida insossa no
Éden.
Mas aquela explosão dela ali, sobre as peles de urso e dentro da aquecida e
aconchegante caverna que os abrigava das intempéries da vida, o deixou
desnorteado, sem saber como reagir.
Por fim, ele deitou-se, puxou a sua pele de urso para cima de si, manteve-se
deitado sobre o seu lado direito e, como não conseguiu apaziguar o
tormento que revirava o seu cérebro, travou uma luta inglória contra o sono.
Até deu cochiladas que não sabia se foram rápidas ou longas, mas o fato é
que, naquele tormento da sonolência, em certo momento Adão vislumbrava
que as duas curvas da entrada da caverna mostravam que a claridade do dia
se esvaia, se misturava com a tênue luminosidade vinda das brasas restantes
da fogueira.
O homem olhou o canto do salão que Lilith arrumou para dormir e viu que
a pele de urso com que ela se cobrira para se proteger do frio, não mais
mostrava as curvas do corpo dela.
Irritado e incrédulo, Adão virou o rosto para a esquerda e olhou para a boca
do salão da caverna.
Nunca entendeu Adão que, bem mais irritada, naquele final de tarde Lilith
também enfrentara os seus próprios tormentos.
Mas como mulher resolvida e decidida que era, renegou o marido, a quem
considerava um indeciso, ou mesmo um ser sem opinião própria, e o
abandonou.
Foi lá que encontraram Lilith que, mesmo ante a ameaça de Deus de que ela
receberia uma punição severa se continuasse fugindo, preferiu arriscar a
punição a se submeter de novo às ideias e ações possessivas de Adão e de
Deus no Paraíso.
Por sua característica demoníaca e por sempre agir à noite, assim ela é
identificada: “Aninhar-se-á ali a coruja”, embora algumas traduções
portuguesas troquem a palavra coruja por animais noturnos.
O JARDIM DO ÉDEN
Quer dizer, nele os animais, os mais variados, também criados do barro por
Deus, andavam e rastejavam pela terra, nadavam sob as águas e voavam no
espaço entre a terra e o firmamento.
Na visão do agora triste e solitário Adão, era um mundo sem cor, sem
alegria.
Ou, por outra, ele via uma paisagem cinza, sombria, soturna, quebrada
apenas pelo movimento e o barulho de todos aqueles animais.
Num segundo momento, o Divino concordou mesmo que a sua cria maior
era um elo perdido no Paraíso.
Como dominar uma terra onde só havia animais, peixes e aves, seres
irracionais? Um dia Adão percebeu isso: ele comia o que cultivava e existia
na terra para sustentar o corpo.
Era a lei da selva, que já existia no Paraíso, e que também era válida tanto
para os seres vivos do ar quanto para os das águas e...
Certo dia, sentado numa pedra na boca da caverna em que morava, ele viu,
surpreso e inerte, uma águia fincar as suas garras no dorso de um cervo e,
batendo com força as suas longas asas, levantar voo em direção a uma
montanha onde certamente aquela caça serviria de alimento para ela e a sua
prole.
Até mesmo Adão se valia de suas prerrogativas de ser racional para também
fazer parte daquele círculo da vida, pois tudo, naquele mundo deserto,
servia de alimento para a preservação das espécies, mas isso é outra
história.
Aí, o Divino entendeu que não era bom que o homem dominasse aquela
vastidão desértica, cheia de seres vivos, era verdade, mas sem sentido.
Por conta dessa referência bíblica de que o jardim estava próximo aos rios
Tigre e Eufrates, os arqueólogos acreditam que ele, um oásis numa região
desértica, era a antiga Mesopotâmia, palavra grega que significa entre rios.
Agora sim, aquele jardim, aquela parte do Paraíso, era produtivo e tinha o
homem, que passou a cuidar dele, fazendo nascer plantas de toda espécie e
tamanho para o seu sustento.
Deus deixou que aquela sua cria explorasse o universo e, assim, dias e mais
dias se passaram, fazendo com que, aos poucos, Adão ocupasse a sua mente
com o Jardim.
Batendo perna por todo o jardim do Éden, um dia a atenção dele foi
desviada para duas árvores belas, diferentes de todas as demais, plantadas
lado a lado, no alto de uma colina, numa área circular ocupada só por elas.
Ele parou estático e por longo tempo ficou extasiado, admirando aquelas
belezas Como que, aquelas duas árvores o atraiam, mas, ao mesmo tempo,
parecia existir ao redor delas uma barreira invisível que o impedia de se
aproximar.
É claro, Deus sabia muito bem o que embaralhava a cabeça da sua cria.
Até porque, daquelas duas árvores, uma delas não saia da cabeça do rapaz,
que nem sabia o porquê daquela atração.
- Adão.
O Divino pegou sua cria pelo braço direito e o fez seguir pelo jardim do
Éden.
Esse mundo é para ti, e até já gastaste tempo para classificar e dar nome a
cada ser vivo daqui da terra.
No entanto, chamo a tua atenção: estás vendo aquelas duas árvores bem no
meio do pomar? - Vixe, meu Deus! Que Maravilha! Elas são muito bonitas
mesmo.
De novo, o homem ficou extasiado, e com razão, pois as duas árvores
resplandeciam.
Elas eram imensas, mas tão imensas que as suas copas correspondiam à de
três ou quatro árvores comuns, juntas e até superpostas.
Mas, em meio àquele êxtase do homem, Deus advertiu: - Escutes o que vou
te dizer agora, Adão, e nunca, mas nunca mesmo, esqueças disso: aquela ali
(e Ele apontou para a esquerda) é a Árvore da Vida; da mesma forma que de
todas as outras que existem ou venham existir aqui no Paraíso, do fruto dela
podes comer para prolongar a tua existência.
Agora, prestes bem a atenção porque, nunca mais, vou repetir isso: eu te dei
a vida eterna, mas daquela outra árvore que te aponto agora, à direita da
primeira, não comerás.
Estupefato, pela segunda vez o homem mirou aquela árvore apontada pelo
Divino; ela era como um azougue, com o balançar de sua gigantesca copa
ao vento, o tronco e os galhos rijos, as folhas de um verde vivo, brilhante, e
os frutos lustrosos e tentadores, mas que ele não sabia definir quanto à sua
textura, cheiro e gosto, o atraía.
Por uma razão simples: semanas atrás, ele foi capaz de resistir à atração da
beleza daquela árvore, deu-lhe as costas e foi continuar o seu trabalho de
nomear os seres vivos da terra.
Agora, não, era diferente: de novo ele estava em frente àquela imponência,
mas com Deus ao seu lado.
Ai, desculpe-me meu Deus, fiquei pensando sobre essa árvore que o Senhor
está me apontando.
- Por que? - Mas foi o Senhor que acabou de avisar, para eu nunca mais me
esquecer dela! - E nunca esqueças também: do fruto dessa árvore não
comereis.
- O que!? Mas, meu Senhor, por que isso? E aí Deus foi enfático: - Porque
ela é a árvore do conhecimento do bem e do mal.
E não sejas presunçoso, rapaz, pois essa árvore maldita não diz respeito
apenas a ti, mas a qualquer outro ser criado por mim e que vive sob as
minhas bênçãos aqui no Paraíso.
- O que, meu Deus, o Senhor quer dizer com isso? - Que tu, como qualquer
outro ser deste Jardim que comer do fruto desta árvore, certamente
morrerás.
Perante Deus, ele deu umas tossidas, mas permaneceu em silêncio por
alguns segundos, e enquanto mirava a grande árvore pensava: ele tinha a
vida eterna ali no Paraíso, não sabia o que era sofrimento, dor, doença,
martírio; tinha uma vida saudável e perfeita; e era o único ser vivo capaz de
dominar todos os demais existentes na terra e, mais do que isso, a própria
terra, pois Deus dera a ele essa capacidade.
Aliás, fora ele próprio que batizara todos os seres vivos que habitavam o ar,
o mar e a terra, dando nome a cada um deles conforme o seu porte e seu
habitat.
Ou melhor, de corpo o homem sabia que tinha uma vida saudável e perfeita,
mas na mente tinha dúvidas.
Vivia uma vida simples, sem complicações, de bem com Deus e a natureza.
Afinal, não foi assim que Deus o fez, à sua imagem e semelhança, em tudo
por tudo, um ser capaz de dominar os demais, todos irracionais e que
tinham ação e visão limitadas? Assim, enquanto o tempo corria, Adão
passou a observar a natureza com mais atenção, a querer sentir e entender o
pulsar da vida na terra.
Via que todos os seres do Éden, com exceção das plantas e árvores, que
eram estáticas, plantadas no solo, viviam numa leniência preguiçosa,
gostosa, os da terra a exercitar os seus músculos de vez em quando em
correrias, uns atrás dos outros, ou às vezes dormitando sob a sombra de
árvores, mas sempre em grupos; os do ar, a voarem em bandos, seguindo
uma dança acrobática, uns chilreando e outros grasnando o tempo todo; nas
águas, de repente os grandes emergiam das profundezas, davam um volteio
acrobático em pleno ar e caiam com estardalhaço, espadanando água para
todo lado, ao mesmo tempo em que, lá embaixo, cardumes de pequenos
peixes como que imitavam a dança acrobática das aves lá acima das águas,
sob o firmamento.
Tempos depois de muito observar, Adão notou um sutil detalhe a que nunca
dera importância antes por ser rotineiro em demasia, mas agora fazia
sentido em relação ao comportamento de todos os seres vivos no jardim:
Deus dera a eles o direito e uma forma de se multiplicarem naquela sua
placidez.
Tudo bem, pensava, ele também teve a sua chance, pois Deus construiu a
Lilith e a deu como companheira, mas o problema é que, tempos depois, a
desvairada abandonou tudo para viver lá fora.
Mas o fato era que Adão continuava sozinho no mundo, não tinha um par.
Por que? - Ê, rapaz, aonde queres chegar? - A isso, meu Senhor: de todos os
seres vivos que habitam a terra, e até mesmo das estáticas árvores, nascem
novos rebentos, que também crescem e procriam.
Eu, no entanto, sozinho, não tenho esse direito, não posso procriar.
Por que não posso ter uma companheira? Deus ficou calado por longos
segundos, atônito mesmo, pois fora pego de surpresa por aquele
questionamento repentino de Adão.
No entanto, Ele terminou por concordar que a reclamação de Sua cria maior
era bem fundamentada e, por isso, admitiu que não era bom que o homem
estivesse só, sem uma auxiliadora que lhe fosse idônea.
- Está bem, Adão, vou ver o que faço para aplacar essa tua insatisfação, mas
desde já aviso que o atendimento dessa tua reclamação certamente vai
exigir um sacrifício.
A VAROA INSATISFEITA
E ele já não tivera uma? E o que resultou disso? Claro, Deus sabia daquele
resultado, até porque Ele mesmo apontara o seu dedo indicador da mão
direita para crivar o destino da primeira mulher da Sua cria, a Lilith.
O problema é que agora, tempos depois, Adão viera se queixar de que vivia
numa solidão sem fim, que era um solitário no Paraíso.
“Esse Adão não tem jeito, gosta de viver em enrascada”, falava Deus de si
para consigo.
De qualquer forma, o Divino concluiu que a coisa mais fácil a fazer era dar
à sua cria uma nova companheira.
Melhor do que ficar ouvindo aquele lenga-lenga infindável dele sobre viver
solitário, de não ter ninguém para lhe fazer um cafuné, ajudá-lo a cuidar da
casa e do jardim.
O problema era como, e a partir de quê, criar uma nova mulher para Adão.
A primeira fora fácil, foi seguir a forma como construiu o próprio Adão, do
barro vermelho.
Só que, nesse caso, a solução não deu certo, pois Lilith terminou
trespassando a cêrca do Paraíso, e foi se perder no mundo exterior.
Por conta disso, Deus até se perguntou: “Será que errei nessa criação”?
Nunca, porque Deus, soberano como é, por suposto nunca erra.
Mesmo assim, de pronto Ele entendeu que não deveria, de novo, construir
do barro outra mulher para Adão.
Se não deu certo na primeira vez, também não poderia dar certo agora,
pensava Ele.
Deus mirava a terra com todos os animais e aves que criara dias antes, o
firmamento com os seus luzeiros do dia e da noite, as águas com os seus
peixes a fazerem acrobacias espetaculares.
Mas, indagava-se, de onde tirar uma auxiliar para Adão, ainda mais,
idônea? Pelo que o Criador via, porém, nada daquilo do Paraíso, que Ele
mesmo criara, servia para o seu propósito.
Mas, que propósito? Claro, Deus tinha certeza de que não era só criar uma
auxiliadora idônea para Adão, mas como deveria ser essa companheira.
Depois de muito pensar sobre essa questão, Deus viu Adão passar ao largo,
talvez a cumprir alguma tarefa.
E por que não tirar do próprio Adão a matéria prima para a construção da
companheira que tanto ele pede? “Adão quer uma companheira?”,
perguntou o Divino para si próprio, “pois não pense ele que vai conseguir
de uma forma fácil, como da primeira vez”.
- Olhe aqui, rapaz, vou satisfazer o teu desejo por uma nova companheira.
É que não vou construir essa nova mulher a partir do barro, mas de uma
parte do teu próprio corpo.
Assim, diz o Gênesis, “Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este
adormeceu”.
No fim, estava criada a mulher, outro ser vivo à sua imagem e semelhança.
E nem foi preciso soprar as narinas dela para lhe dar vida, pois, diferente de
Adão, ela fora criada de parte do corpo vivo dele: justamente de uma
costela, ligada à espinha dorsal que, no seu interior, tem a medula óssea,
popularmente conhecida como tutano, que fabrica as plaquetas e os
glóbulos vermelhos e brancos do sangue.
Feita a mulher, Deus cuidou de acordar Adão com vagar, para que ele não
fosse acometido de algum choque ao abrir os olhos.
Sentindo algumas pontadas no lado esquerdo do tronco, Adão olhou para ali
e viu uma cicatriz longa na vertical e manchas de sangue na pele.
Levantou os olhos para o lado de Deus, à sua direita, e Ele, exibindo um
riso cheio de satisfação, apontava com a mão direita, também marcada por
manchas de sangue na pele, a mulher que acabara de criar.
É claro, como parâmetro de mulher, Adão tinha apenas a Lilith, que era
muito diferente das companheiras de todos os seres vivos da terra, pois
todos os animais, machos e fêmeas, tinham a mesma aparência.
Mas a que Deus acabara de fazer de sua costela e estava ali, em pé ao lado
direito d’Ele, essa...
Bem, essa o próprio Adão não sabia explicar, traduzir para si mesmo.
Não que tivesse definido para Deus como deveria fazê-la, mas, no seu parco
conhecimento sobre beleza feminina, o homem entendeu que o Divino
caprichara naquela criação.
- Ah, meu Deus, o que posso dizer, a não ser agradecer ao Senhor por me
premiar com o que eu pedi? - É só isso o que tens a dizer, rapaz? - E o que é
que o Senhor quer ouvir, então? - O que tu achas dela? - Bom, nesse caso,
meu Senhor, o que posso dizer é que esta, afinal, é osso dos meus ossos e
carne da minha carne, e linda.
*** Mas, um detalhe: a primeira visão que Adão teve à sua frente, depois
que Deus soprou a vida nas ventas dele, foi o próprio Divino, um ser igual a
ele, e, atrás d´Ele, aquela terra imensa, nua, mas cheia de vida.
Ela olhou aquele corpo, baixou a cabeça para mirar o seu próprio corpo e
viu que eles eram iguais no geral, mas com estruturas diferentes.
Quando percebeu essas diferenças, a mulher deu um passo para trás, sem
entender nada daquilo, mas Deus apaziguou os ânimos dela, explicando-lhe
com detalhes minuciosos o significado e o sentido de Adão, o homem nu à
frente dela, e os dela própria, também nua, e do fato de seus corpos serem
parecidos na estrutura, mas desiguais nos fundamentos, e a razão pela qual
ela fora colocada ali na terra, a pedido do próprio homem, que queria uma
parceira.
Em seguida, Deus pegou a mão direita de cada uma de suas duas crias,
pediu que os dois não temessem um ao outro e, então, os abençoou: - Sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeita-a; dominai sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela
terra.
*** Com a sua Varoa sempre ao lado, Adão passou a viver feliz da vida no
Éden, a mostra-lhe as belezas do jardim e a exibi-la, todo pomposo, aos
demais seres que viviam no ar, nas águas e na terra.
Talvez nunca tenha chegado a ser uma obsessão, mas terminou sendo uma
paixão quase cega pelo ser que pedira a Deus.
Desse modo é que Adão vivia satisfeito e feliz com a sua amada, atendia a
todos os caprichos que, naquele início dos tempos, ainda naquele tempo do
Paraíso, já eram próprios da mulher.
Ele não sabia disso, claro, mas seguia a sua vida trabalhando, amando a
mulher e convivendo com Deus.
Mas Deus, e evidentemente Ele já sabia disso, fez a mulher de uma forma
diferente em relação ao homem, cheia de peculiaridades não só no corpo;
também na mente.
Isso Deus também fez com o corpo da mulher para, assim, procriar com
prazer e satisfação, e está citado no Cântico dos Cânticos e em várias outras
passagens bíblicas que descrevem claramente o prazer sexual, pois o prazer,
o clímax do ato sexual entre o homem e a mulher, também é uma permissão
divina no amor e na produção de filhos.
Basta lembrar, por exemplo, que todos os ditos santos e os papas de todas as
igrejas católicas, nasceram do prazer sexual de seus pais.
Pois é, Adão vivia feliz e satisfeito com a sua amada, atento e atendendo a
todos os caprichos próprios da mulher, mas a Varoa, sem ela mesma nem
perceber, já estava pedindo sempre mais.
Isso quando Adão não pegava sua manta feita de pele de urso para ir dormir
lá num outro canto da caverna em que moravam, num inverso do que
acontecia nos tempos de Lilith.
Um dia, depois de uma discussão à toa, já nesse ponto por uma besteira
qualquer, Adão foi remoer seus desgostos no trabalho de cuidar da terra e
dos animais.
A Varoa, por seu turno, saiu cabisbaixa da caverna e, distraidamente, foi
caminhar pelo bosque, de que conhecia cada trilha.
Quando se deu conta, estava bem no meio do Jardim de Deus, como séculos
depois definiriam os profetas Ezequiel e Isaías, e aí a atenção dela foi
chamada para as duas árvores, as mais altas que todas as outras, frondosas e
bonitas, que existiam por ali.
Por um momento ela ficou estática, mas logo os seus olhos passaram a
reluzir todo o esplendor emanado por elas.
Ela sabia bem, aquelas árvores especiais foram plantadas por Deus como
marcos da fidelidade e da obediência dela e de Adão: a Árvore da Vida, a
que ela e o marido recorriam com frequência, pois os seus frutos lhes
davam créditos para alongar as suas vidas no Paraíso; e a árvore do
conhecimento do bem e do mal.
A Árvore da Vida, deduzia ela, dava ao casal a certeza de que viveria pleno
de felicidades no Éden.
Aí deu um clarão no cérebro da mulher: até mesmo nas horas em que ela e
Adão se amavam, o roçar de corpos já não tinha a graça de outrora,
raramente os lábios dele avançavam para o seu pescoço, já não provocavam
sobre a sua latente carótida um choque que percorresse todo o seu corpo.
Adão estava a preparar o jantar, assando dois coelhos que acabara de caçar.
- Por onde andaste, mulher? - Fiquei batendo perna por aí, vendo as plantas,
os animais e os pássaros - respondeu ela, de cara fechada -, queria esfriar
minha cabeça.
- Mas por que isso? Não vês que preciso da tua ajuda aqui na terra?
Ademais, não pensas em mim, que sofro com esse isolamento, a cada vez
que a gente discute sobre alguma coisa? O homem dispôs bem acima do
calor das brasas vivas as finas varas que ele espetara, cada uma ao longo do
corpo de um animal, e aproximou-se da companheira, que acabara de se
sentar sobre um banco formado por uma pedra lisa.
Ele rodeou o ombro dela com o braço direito: - Vamos, mulher, o que há? O
que tá havendo com a gente? Eu fico aqui matutando, tentando entender o
que vai na tua cabeça, mas não encontro uma resposta que alivie essa minha
tortura.
Ou melhor, ele se perguntava onde e em que ela cometera alguma falha para
que as coisas entre os dois chegassem àquele nível, mas nunca se preocupou
em entender as razões da mulher e, sequer, passava pela sua cabeça que ele
próprio, no seu comportamento como homem e marido, poderia ser não só a
causa, mas também o efeito daquele infortúnio.
Ele sabia, mas não queria falar dessa questão claramente com ela porque,
desde o momento em que Deus a criou a partir da costela mais curta do seu
lado esquerdo, notou que havia uma diferença abissal entre eles e que essa
diferença não se resumia apenas na dessemelhança de seus corpos. *** No
meio de uma manhã, os dois entraram em nova desavença.
E o homem tinha adoração imensa por ela, como ele mesmo demonstrava
em palavras e atos, a todo instante e a toda hora.
Dessa vez, a desavença foi por conta de uma questão muito séria.
Foi exatamente isso que ela fez ver ao marido, mas Adão relutava,
contemporizava mesmo na tentativa de fazer a mulher voltar à razão da
vivência no Paraíso, e com Deus.
Tu não queres ver, ou mesmo admitir, que a nossa vivência como marido e
mulher já não se sustenta.
Tu sabes muito bem, mulher, fomos criados pelo Divino e aqui colocados
neste jardim, também criado por Ele, para dominar tudo que na terra há e,
também, para procriar e fazer a humanidade crescer.
Aliás, que eu saiba, Deus não criou outro mundo além deste.
Dessa vez foi a Varoa que tomou a iniciativa: soltou um resmungo, virou-se
e dirigiu-se para a boca da caverna que lhes servia de abrigo.
Por vários dias ela caiu em mutismo, se isolou no seu mundo interior.
Como sempre, Adão ficou sem entender aquela atitude da mulher.
Para ele, isso era um martírio sem fim, um suplício que já não estava
podendo aguentar e que, com vagar, minava a sua disposição de lutar por
um relacionamento que se tornava cada vez mais difícil de suportar.
Mas Adão permanecia ali, sozinho, sentado, calado, os dedos das mãos
emaranhando os bastos cabelos pretos, e quieto.
Aí, então, pela primeira vez, bateu-lhe uma dúvida existencial: seria ele o
culpado desses problemas todos? Não deveria ser mais tolerante com um ou
outro capricho da amada? Não poderia ser ainda mais paciente com a sua
companheira, aquela que ele mesmo fora reclamar a Deus? Mas quando a
mulher estava por perto, Adão esquecia tudo isso e se derretia por ela.
Não sem razão, até porque ele tinha certeza absoluta de que a Varoa era a
essência da sua própria existência; sem ela, a vida dele não tinha o menor
sentido naquele Éden, não tinha como existir sozinho entre tantos seres
vivos que viviam aos pares.
E aí, em desespero, um dia apelou para o que considerava o mais fácil: - Ai,
meu Deus, não aguento esse suplício.
E quanto à mulher? Deus, claro, sabia o que ela era e como era.
Até porque, ao extrair a costela mais curta do lado esquerdo de Adão para
criar uma companheira para ele, o Divino já tinha em mente como deveria
ser aquela sua nova cria, e assim a criou: uma mulher forte, corajosa,
inteligente e, muito mais importante, resolvida (como também era a Lilith),
seja lá o que isso significasse ali dentro do Éden, no Jardim de Deus.
*** É preciso lembrar aqui, também, que Adão e a Varoa foram colocados
no mundo com uma desvantagem em relação a todos os demais humanos
que nasceram na terra, depois deles: foram feitos por Deus, mas já adultos.
Não foram gerados, como depois eles mesmos geraram Abel, Caim, Set e
outros filhos e filhas e, então, a humanidade.
Adão e sua mulher, ao contrário dos próprios filhos e dos filhos das
gerações depois deles, não tiveram um pai e uma mãe que os orientassem
sobre os caminhos e descaminhos da vida, que lhes dessem uma palmada no
bumbum, um cascudo na cabeça, um beliscão num braço, de leve ou com
força que fosse, para lhes indicar um rumo a seguir.
O casal foi feito por Deus pronto para viver, amar um ao outro e dominar a
terra e todos os seus seres vivos, e provavelmente, esse fato moldou o
comportamento e a mente do homem e da mulher.
***Sabe-se que Adão e a Varoa eram muito obedientes a Deus, com quem
conversavam com frequência, e nessas conversas ouviam d´Ele conselhos e
ensinamentos sobre a vida.
E a despeito, ou por causa mesmo dessas todas ações, ela também divagava
sobre aquilo tudo.
*** Com toda a certeza, a Varoa usufruía de uma vida boa, cheia de
bonanças, ali no Paraíso; tinha um marido amado e amante, e a
complacência de Deus a toda hora e a todo instante.
O problema é que, fora isso, nada mais havia a fazer e toda aquela rotina do
jardim a deixava enfarada.
No seu entender, vivia num marasmo que nem ela mesma entendia e,
sequer, podia suportar.
Talvez não fosse culpa do marido e nem mesmo de Deus, mas sabia que
aquela vida rotineira não a satisfazia.
Até se perguntava mesmo se estava sendo injusta com tudo e com todos,
inclusive com ela mesma.
A mulher pensava: quando, nas vezes em que Deus estava a conversar com
o casal, e ela involuntariamente se deixava atrair por coisas frívolas, não era
por desinteresse nas palavras do Divino ou desrespeito ao Criador, mas pelo
fato de o jardim do Paraíso estar se tornando um mundo pequeno, limitado
a uma rotina sem perspectivas, restrito ao perímetro e à vida determinados
por Deus, sem mais avanços.
E enquanto via Adão assentir com tudo que Deus falava, e executar com
paciência e conformismo a lida diária na terra, a Varoa não sabia dizer ao
certo se ele deveria receber compaixão ou se simplesmente merecia o seu
desprezo.
Tinha a certeza absoluta, porém, que ainda havia amor entre eles e bem
grande, mas ela ruminava para si mesma que aquele amor lentamente se
esfarelava por entre os seus corpos.
Parecia até que alguém colocara um redutor nas torneiras que, através dos
poros de suas peles, fazia jorrar litros e mais litros de suor que outrora
banhava os seus corpos durante os atos do amor cheio de volúpia.
Agora não, o suor resultante do esforço do amor não mais passava do que
um sereno que mal umedecia a sua pele seca.
Então, sem nem saber por quê, deu vontade à Varoa de ver novamente a
árvore do conhecimento do bem e do mal, que certamente traria a morte
para ela e Adão, se eles comessem do seu belo fruto, assim advertira Deus.
Capítulo 5
O FRUTO DO PECADO
Terras que, depois de molhadas várias semanas antes pelas enchentes dos
rios, provavelmente já estariam exibindo o resultado do trabalho da
natureza para aquela época do ano, o outono: grãos e frutos.
Alimentos.
Assim, era muito comum o marido estar fora de casa umas três semanas.
A Varoa, por sua vez, ficava com o encargo de cuidar da caverna em que
moravam, da área ao seu redor, e dos animais domésticos e dos que lhes
davam o sustento diário.
Por alguns dias, a mulher tentou resistir àquela vontade de rever a árvore do
conhecimento do bem e do mal, pois ela sabia que aquela planta enorme,
bonita, resplandecente e colocada por Deus bem no meio do jardim, ao lado
da Árvore da Vida, certamente poderia lhe levar à perdição.
“Mas que perdição pode ser essa, se eu usufruir de seu fruto?”, perguntava-
se.
Deus avisara a Adão, e depois ele replicou para a Varoa: “Se dele comeres,
certamente morrerás”.
Mas seria assim, ficar de corpo inerte e duro como ela via acontecer
frequentemente com os animais, aves e peixes que morriam naturalmente
ou eram mortos por outros que tinham fome e precisavam de alimento?
Passadas duas semanas de solidão, e batendo cabeça com aquelas questões,
no meio de uma tarde a mulher deixou os seus afazeres e foi caminhar pelas
trilhas que já conhecia.
Rumou sem rumo e sem pressa, e por um longo tempo andou assim, à toa,
sem se preocupar com tempo e lugar.
Embora a caminhada não tenha exigido muito esforço, ela suava e respirava
fora do compasso.
A Varou parou e ficou extática, perplexa e sem entender como chegara até
ali, mas ao mesmo tempo se deslumbrava.
É que bem à sua frente via um entre tantos espetáculos criados por Deus no
universo, aquela árvore de copa gigantesca, tronco e galhos rijos e
garbosos, folhas lustrando de verde e frutos arredondados, vermelhos,
lindos.
Indagou-se que mal poderia vir dali, mas não encontrava uma resposta e por
longos minutos ela ficou mirando a bela e grandiosa árvore e, depois de
tanto relutar, terminou dando alguns passos na direção dela, mas parou de
novo.
Não sabia se devia continuar; tinha dúvidas mesmo sobre o que poderia
resultar daquela aventura, daquela exploração do desconhecido.
Com a palma da mão direita tocou com leveza a casca acinzentada e cheia
de rachaduras daquela madeira e se admirou pelo fato de o tronco exigir
pelo menos seis vezes o seu marido de braços abertos, um apenas tocando a
ponta dos dedos do outro, para açambarcá-lo.
Ou, se teve, e já que estava ali, pela primeira vez na vida, debaixo daquela
grande árvore, levantou a mão esquerda acima da cabeça e apalpou um dos
belos frutos pendurados de finos galhos.
*** A Bíblia não especifica qual era o fruto enfaticamente proibido por
Deus, o da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Mas, no início dos tempos da Igreja, ele era representado por frutos os mais
variados, dependendo até da região, entre os quais a romã e o damasco.
O damasco, por sua vez, mais conhecido como apricó ou ameixa armênia,
faz parte da família do pêssego: casca alaranjada ou vermelha, frutos
carnívoros e um caroço grande, onde está a sua semente.
Ou seja, nada indica que o fruto do pecado seja, com certeza, a maçã, como
indica a lenda.
Essa lenda, aliás, surgiu porque Dâmaso I, 37º papa entre 366 e 384 d.C,
português de nascimento, resolveu bancar uma tradução da Bíblia hebraica
para o latim, a língua oficial da Igreja.
E para fazer essa tradução, ele encarregou um dos seus principais escribas,
Jerônimo de Estridão, o São Jerônimo.
São Jerônimo começou a sua tradução do hebraico para o latim em 390, seis
anos após a morte de Dâmaso I.
Nesse trabalho, gastou 15 anos de sua vida para concluí-la, mas a fez no
latim popular, que resultou na Vulgata Latina, uma Bíblia de mais fácil
compreensão pelos fiéis comuns e que até hoje é respeitada e fonte para
traduções no mundo inteiro.
Michelangelo, entre 1508 e 1512, pago pelo papa Júlio II, produziu o
afresco mais importante e conhecido do mundo, no teto da Capela Sistina,
no Vaticano.
E nesse poema épico, John Milton assegura por duas vezes que a maçã é o
fruto proibido.
De logo ela recolheu a mão, procurou identificar de onde viera aquele som
estranho, olhou para um lado e outro, e pensou que ele poderia ter vindo do
farfalhar das folhas provocado pela brisa que de vez em quando varria o
jardim.
Procurava sentir o que vinha de dentro dele, que mal poderia provocar a
quem o comesse.
Mas ela sabia que ali mesmo, no Éden, existiam plantas com que até os
animais, embora irracionais, tinham cuidado.
Por um motivo simples: do jeito que podem curar no uso regrado, as plantas
também podem matar no uso exagerado.
Até porque, pensava a Varoa, e conforme Adão lhe dissera, Deus o alertara
tempos atrás que, se ele comesse daquele fruto, certamente morreria,
porque, enfatizara o Divino, aquela árvore era a “do conhecimento do bem
e do mal”.
Com a mão direita alisou a superfície, como a retirar um cisco ou uma fina
camada de poeira da casca colorida; depois, devagar, levantou a mão com o
fruto em direção ao próprio rosto e imaginou que aquele fruto proibido
parecia ter mais gosto, mais cheiro do que os de todas as outras árvores
comuns do Éden (e, aliás, a própria Bíblia diz em Provérbios 9:17: “...o pão
comido às ocultas é agradável”).
Mas, de novo, ela ouviu aquele som estranho, sibilino, e dessa vez mais
insistente e mais próximo.
Cheia de terror, deixou o fruto cair no chão e, sem mais pensar, saiu numa
carreira desembestada pela trilha, cabelos pretos e lisos esvoaçando atrás da
cabeça, sem olhar uma única vez para trás.
- Já voltaste, Adão? O que foi que houve pra tu voltar assim, antes do
tempo? - O que houve, pergunto eu, mulher.
Por que estás toda suada, descabelada, ofegante desse jeito, e esse corpo
cheio de sujeira? - Nada demais, homem - respondeu ela, com as mãos
tentando expelir da pele molhada pelo suor, gravetos, pedaços de folhas, até
grãos de terra -, só estava tentando vencer uns animais numa corrida.
- Correndo contra animais? Mas sabes que nunca vais conseguir isso, pois
tu, como eu, não tens agilidade e nem fôlego contra eles, ora.
*** No dia seguinte, depois de saciarem a fome com ovos cozidos, verduras
e vegetais, a Varou perguntou ao marido: - Adão, me diz a verdade.
Como é que não sabes, se justamente o Divino te levou até a presença dela
e te alertou sobre o mal que ela pode trazer para nós? - Ah, bom, sobre isso,
o que eu entendi é que, se comermos do fruto dela, morreremos.
Afinal, foi Ele que nos botou nesse mundo que Ele também criou, num foi
não? - Mas não achas que é uma imposição muito forte em cima da gente.
Por que? Ora, se Ele não quisesse isso, não teria colocado aquela árvore
esplendorosa e de fruto proibido bem no meio do jardim! - Pode ser,
mulher, pode ser.
Às vezes, eu também até tenho me perguntado sobre tudo isso, mas não
encontro uma resposta.
Talvez porque eu temo e sou fiel a Deus por demais, e não entra na minha
cabeça que o nosso Criador queira nos punir por um mal que Ele mesmo
tenha plantado no meio desse jardim.
Não percebes isso? - O que? Que Deus quer punir a gente se comermos o
fruto da árvore proibida? - Não, de testar a gente.
- Mas testar o que, se Ele sabe que lhe somos fiéis? A Varoa soltou uns
resmungos, desistiu daquela discussão sem sentido e foi lá pra fora da
caverna, dar tratos à bola.
Capítulo 6
A MALÍCIA DA SERPENTE
A lguns dias depois, a mulher deu uma desculpa ao marido de que teria de
cuidar de alguns animais perto da colina, no centro do jardim.
Seu objetivo era outro, porém: de novo, ver e tocar o fruto da árvore bela,
grande e frondosa.
Ela se sentia fortemente atraída por ele, mas não sabia explicar a razão.
Ou, por outra, o que ela tinha certeza mesmo era que o fruto daquela árvore
do conhecimento do bem e do mal, plantada e condenada por Deus, de
alguma forma poderia lhe aplacar a carência por algo que ia além da sua
própria imaginação, quem sabe reverter a sua insatisfação, a angústia por
conta das mesmices do jardim e do seu próprio marido, Adão.
E eis que, de novo embaixo da imensa árvore, a Varoa olhou para cima,
para a fechada copa.
Sentia que a brisa vinda do sul - da foz dos rios Tigre e Eufrates, lá no
Golfo Pérsico - a afagar a sua pele e a esvoaçar de leve os seus longos
cabelos, também balançava as folhas verdejantes e aquelas centenas de
frutos em cujas cascas se misturavam o vermelho, o amarelo e o branco,
como se estivessem a bailar.
De repente, porém, ela ouviu uma voz que vinha de um grosso galho,
acima, no seu lado direito.
- Taí, mulher, tá bonito isso aí, tu, dançando desse jeito, cheia de graça,
cheia de alegria.
Ela parou assustada, levantou a cabeça e, então, viu aquele ser a se destacar
na penumbra que obscurecia a fechada copa da árvore, mas bem perto de si.
- E eras tu, então, que dia desses vinha dando silvos aqui nessa árvore, só
pra me assustar, é? De novo, o réptil soltou a língua o mais longe que pôde,
enlaçou uma pequena folha em que descansava uma inocente lagarta e a
recolheu para dentro de si com a mesma velocidade, e riu com ar matreiro: -
Hehehehe, mas não quero te meter medo.
- Ai, da última vez que ouvi esse teu som sibilino, assustador mesmo, sai
correndo daqui feito uma doida, com um medo da bexiga.
Por que, desde o início, não falaste comigo? Precisava ser desse jeito,
metendo medo em mim? - Hehehehe - riu de novo a cobra -, mas é que eu
queria conhecer as tuas intenções.
- Mas, me diga, pra que te interessa saber quem eu sou? Isso não tem a
menor importância, menina.
Isso é o que basta, para mim e para ti, viu? - Assim, tu me deixas confusa.
- Por que? - Sei lá?! Eu não te conheço e, ademais, só sei que tudo é
possível na vontade de Deus.
E não foi Ele que criou o Paraíso e depois meteu a gente dentro dele? - Ih,
mulher, aonde tu queres chegar com isso? - Ora, se Deus criou tudo,
também, de repente, Ele pode fazer uma cobra falar.
- O que estás querendo insinuar, sua boba? - Já te disse que não te conheço.
Queres que eu pense o que? - Que isso é coisa de Deus? - Mas é claro que
sim.
Por que Ele plantou essa árvore do conhecimento do bem e do mal aqui,
bem no meio do jardim? Pelo mesmo motivo que te fez subir nesse galho da
árvore, te dar voz, e me testar.
Tu sabes muito bem sobre o que eu estou falando, pois, a mando d’Ele, tu
cumpres um propósito.
Eu, numa missão de Deus? Qual’é, mulher, eu não tenho que pensar nisso.
- Então, mulher, o que tu queres, vindo com frequência até esta árvore, que
Deus diz que é a do conhecimento do bem e do mal? - Só por curiosidade,
já que ela é misteriosa.
A Varoa deu as costas e foi para casa, mas sobrou para um calango que
rondava por ali, a dois galhos de distância: a insaciável víbora soltou o seu
som sibilino, com a língua bifurcada sentiu o cheiro do réptil e, numa
velocidade surpreendente, a expeliu e recolheu com a vítima para a boca;
em seguida, acomodou o seu longo corpo cheio de escamas em volta do
grosso galho em que estava enroscada, descansou a cabeça triangular sobre
a casca grossa da madeira, de novo soltou o som sibilino tenebroso que lhe
era característico e, então, moveu as mandíbulas e cravou as presas, lá atrás
da sua boca, no corpo do calango.
Sou paciente, mulher, tenho todo o tempo do mundo para deglutir esse
bicho, enquanto espero a tua volta.
Pela transparência das pálpebras fechadas, deu para ver que os olhos se
apagaram e, então, ela caiu no sono.
Aproveitou que Adão fora cuidar dos seus afazeres pelo lado oeste do Éden
e debandou-se para a colina do centro do jardim, em que estavam a Árvore
da Vida e a do conhecimento do bem e do mal.
Como sempre, não teve dúvida: plantou-se sob a frondosa copa da segunda
e, com a palma da mão direita, tocou o casco todo cheio de sulcos e
cinzento do tronco.
Após alguns segundos, o seu corpo desnudo fremia, aos poucos caiu em
êxtase e depois, olhando para cima, ela sentiu que a enorme copa da árvore
começou a girar.
Sentia como que uma carga elétrica invadir o seu corpo através da mão
espalmada no tronco.
Tentei me segurar no tronco dessa árvore, mas a tontura foi tão forte que
terminei caindo.
- Hehehe.
Claro, ele tem as suas falhas, mas eu também tenho as minhas, ora.
- Então, vou te sugerir uma coisa: por que não experimentas o belo fruto
desta árvore do conhecimento do bem e do mal? - O que? Tu ficaste doida
dessa tua cabeça triangular, sua víbora? Esse fruto é proibido pelo Divino,
dele a gente não pode comer.
- Mas foi assim que Deus disse ao teu marido, “não comereis de toda árvore
do jardim”? - Não, o que Adão me disse foi que Deus falou a ele que “dos
frutos da árvore do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está
no meio do jardim, não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais”.
- Taí, não sabia dessa história da proibição de Deus, que vocês também não
podem tocar no fruto dessa árvore.
- Como assim, não tocar no fruto? - Mas tu acabaste de dizer isso, que a
proibição também é para não tocar no fruto...
- Te acalmes, mulher.
No caso, a morte.
Vamos, acalme-se.
Hoje vocês têm a aparência d’Ele; vocês três são iguais, mas só fisicamente.
Mas Deus sabe que, quem tem o conhecimento, tudo possui, e pode ser
igual a Ele também no poder de, além de ver, observar, pensar, criar e
transformar.
Esse fruto é a barreira imposta por Deus entre a aparência física de vocês
três, e a ciência, que só Ele tem.
Só isso.
De novo a mulher baixou a cabeça e pensou por alguns segundos.
Achava mesmo que o fruto daquela frondosa árvore era bom para se comer,
agradável aos olhos, e que a própria árvore era desejável para dar
entendimento.
Contrariada, de seu canto a víbora viu a mulher, sem dizer mais nada, dar as
costas e tomar o rumo de casa.
Sua estratégia de capturar a mulher, e com ela provar que Deus não era tão
poderoso como agia, estava a desejar, não se sustentava.
É que ela não esperava que a mulher criada por Deus fosse tão difícil, cheia
personalidade.
- Tô começando a achar que, o mais fácil mesmo, era ter atacado o Adão
nesse propósito - ruminou a serpente, concluindo -: Ai, que tédio chato! ***
Em casa, Adão e a Varoa passaram dias e mais dias remoendo aquele
assunto.
Pelo que a gente sabe, ficou nisso mesmo, ela não morreu.
- Pode ser que a Lilith não tenha morrido, mulher, mas, como ela vive hoje?
- Por que perguntas isso? Por acaso, sabes de algo que eu não estou
sabendo? - Ih, mulher, lá vem tu, de novo, com as tuas desconfianças.
Tá certo, às vezes a gente tem de cuidar da terra e dos animais, mas sobre
eles é a gente que tem o domínio.
Ou melhor, só temos que seguir as regras do Divino, e isso não é tão difícil
assim.
E a minha preocupação tem a ver com essa vida cheia de mesmices que vivi
ontem, estou vivendo agora e com toda certeza vou viver amanhã.
Como vamos viver num mundo que a gente não conhece, sem saber se tem
proteção, futuro? - Homem, quanto a este Paraíso, escute bem o que te digo
agora, já sei de cor e salteado como é: pequeno, cercado e sem a menor
chance de se expandir.
Na verdade, a vida que eu quero para nós dois é mais do que essa
monotonia que a gente vive.
Quero que a gente descubra o que existe além da Árvore da Vida, no centro
do jardim, e a porta para isso está bem do lado direito dela: a árvore do
conhecimento do bem e do mal com o seu belo fruto redondo, mas proibido
por Deus.
Pronto, falei.
Ao ouvir a mulher falar tudo aquilo de uma vez, palavras que sem parar ela
soltara pela boca, como se fossem as águas que, às vezes, num turbilhão,
percorrem os leitos dos quatro rios do Paraíso, Adão olhou pasmo para ela.
- Ei, Adão, não vais me responder, não mereço uma resposta? - Não é isso,
mulher, estava só pensando sobre tudo isso que acabaste de falar.
Confesso que me pegaste de surpresa.
- E isso quer dizer o que? - Tenho de pensar mais um tempo sobre essa
questão.
- Porém, Adão, fiques certo do seguinte: eu não aguento mais a nossa vida
desse jeito e, por isso, estou seriamente propensa a me rebelar à soberania
de Deus, a comer o fruto proibido, a experimentar o que me oferece a
árvore do conhecimento do bem e do mal.
Que fique bem claro em tua cabeça: tenho um profundo respeito pelo nosso
Criador, como Ele é.
Mas insisto nessa questão: tu não achas que a gente deve fidelidade e
obediência a Ele, que tudo nos deu e dá? - Ai, Adão, agora te pergunto: de
que adiantam a fé e a obediência que temos n’Ele, mas, em contrapartida,
Ele parte do princípio de que a gente não merece confiança? - Como a gente
não merece a confiança d’Ele? - Homem, como tu te fazes de desentendido!
Eu, na minha sã consciência, não acredito que não atines para o fato de que
aquela maldita árvore seja uma prova inconteste da desconfiança de Deus
em relação à gente.
Sinceramente, tu me decepcionas.
Na verdade, o que vinha me preocupando nos últimos dias era a tua reação.
Por isso é que, antes de tomar uma decisão, preferi discutir o assunto
contigo, de repente ter de ti uma opinião contrária, mas substancial o
bastante para reverter essa minha propensão.
Rápido, a mulher raciocinou: Adão sempre foi desse jeito, com o seu
mísero defeito de a irritar com tiradas como essa durante discussões sérias,
e todas as vezes isso a fazia sair do sério; no entanto, ela sabia também que
isso era mais gozação da parte dele, justamente para não levar uma
discussão a sério.
Na maioria das vezes, ela deixava passar porque, assim mesmo, ela o
amava.
Respirou fundo, mas naquela vez ela não deu o braço a torcer.
Ela disse: - Veja bem, Adão, comer aquele fruto proibido nos induz a uma
reação, a um erro ou um acerto.
Eu estive pensando cá com meu umbigo: se a gente não age, não erra ou
não acerta.
- Ô seu cabeça ôca, pensa: só depois de agir, a gente sabe se erra ou acerta,
e certamente os dois casos nos servem de lição para conduzirmos as nossas
vidas.
Mas não sabemos que gosto ele tem e se, de fato, morreremos depois de
comê-lo.
Tudo isso que tenho falado é o meu pensamento sobre essa mesmice do
Paraíso.
Mas não aceito mais essa tua indecisão eterna, entre a obediência cega a
Deus e o conhecimento do bem e do mal.
- Vais consultar a Deus? - Não, porque a minha cabeça está com Ele.
*** Adão ficou angustiado pela situação que a Varoa lhe impôs daquela
forma.
Pela enésima vez, pensava, a sua consciência estava fechada com Deus, o
seu criador, a quem amava, ouvia e obedecia em tudo por tudo.
Deus mesmo dissera a ele que o criara para ser a inteligência entre todos os
seres vivos existentes sob o firmamento, na terra e nas águas, todos
irracionais, sem nunca poderem se lembrar do ontem e sem nunca saberem
do amanhã, só viverem o hoje, o agora.
Aliás, pensava Adão, os seres que viviam no ar, voando entre o firmamento
e a terra, até que tinham certa esperteza, pois faziam ninhos nos galhos de
árvores, ou em saliências e buracos de montes e montanhas, para não deixar
as suas crias ao relento.
Os do mar, ele não sabia como agiam nesse caso, mas os que caminhavam
sob a terra, até podiam se abrigar numa caverna contra as intempéries da
natureza, mas nunca poderiam transformar aquela caverna num ambiente
confortável para ali viverem.
Ele, não.
Por nomeação de Deus, ele dominava o Paraíso, todos os seres que
habitavam o ar, as águas e a terra, e a própria terra.
Era essa a diferença entre o homem e todos os demais seres vivos da terra.
Adão pensava em tudo isso, nesse poder enorme que tinha, por concessão
de Deus.
Mas também ele tinha a mulher, a Varoa, que com tanta insistência pedira
ao Divino, pois já não aguentava a solidão imensa e torturante em que vivia,
enquanto todos os outros seres vivos se compraziam com uma companheira,
aninhando os seus corpos e deixando rastros de sua existência no Paraíso,
no ar, na terra e nas águas.
Ele até alisou a sutil cicatriz vertical no lado esquerdo do seu tronco, a
marca de que por ali Deus extraíra sua costela mais curta para criar a sua
companheira.
E ele mesmo já não lhe externara que ela era o seu próprio jardim? Até
porque, sabia, se a perdesse, seria o fim do mundo; do seu mundo.
Ele já passara por uma situação dessa antes, com a primeira mulher, a
desvairada da Lilith, criada por Deus do mesmo barro vermelho que Deus o
criou.
Mas Lilith fora uma decepção, para ele e para Deus, e Adão não queria
passar por aquilo de novo.
Lilith entendera que, tendo sido criada na mesma hora e da mesma essência
do homem, o barro vermelho que dominava o Paraíso, tinha os mesmos
deveres e direitos dele; como isso não foi reconhecido por Adão e, pior
ainda, foi desconsiderado por Deus, ela foi radical: se rebelou e abandonou
a tudo e a todos.
Como desobedecer a Deus, o seu criador? Com que cara, depois, vai olhar
para a face d’Ele, justificar um ato de traição a quem o ama e por quem ele
mesmo, Adão, tem adoração? Sem coragem de olhar para a frente e de
repente ver a face do Criador, o homem fechou os olhos e afundou o rosto
entre as mãos.
De novo ele pensou: Deus era o seu mundo, a garantia da vida eterna,
aquela mesma vida que Ele lhe soprara pelas ventas quando ainda era uma
mera estátua feita do barro vermelho do Paraíso.
Mas a Varoa...
É que, sem ela, ele simplesmente não teria mais como viver naquele Paraíso
abençoado e habitado por Deus.
Por conta disso, Adão tomou a decisão que mudou e marcou a sua vida para
sempre: acompanhar a mulher na sua aventura a, de novo, sofrer o martírio
da solidão no Paraíso, mesmo tendo Deus por companhia.
Capítulo 7
A IRA DE DEUS
E ela, ainda surpresa, mas feliz, admitia para si própria, com sinceridade,
que não esperava por isso, de Adão chegar a esse ponto, de lhe seguir na
sua empreitada pelo mistério representado pela árvore do conhecimento do
bem e do mal.
E, aí, ela foi enfática: - Olha, Adão, eu não quero te desvirtuar da tua vida
daqui do Paraíso e, mais ainda, da tua crença em Deus, em tudo por tudo.
- Mulher, de uma coisa estou certo, e isso te digo com toda certeza: não
quero te perder.
Nunca na vida.
Se a tua decisão é experimentar o que vem dessa árvore maldita por Deus,
este também é o meu desejo.
Contigo vou dar uma dentada, mastigar e engolir um pedaço daquele fruto.
- Mas assim, sem mais nem menos? - Por que? Não confias em mim? - Não,
não é isso.
Apenas quero acabar com essa história toda, mas isso não tem tanta pressa
assim.
Adão, ainda temeroso, olhou para o lado dela, mas disse: - Vamos em
frente, mulher.
Eles foram.
E já sob a copa da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão olhou
aquela imensidão acima dele, galhos grossos e enormes, folhas verdejantes
que, quanto mais altas, mais escuras se mostravam.
Ou melhor, ele sabia que, quando se plantou com a mulher sob aquela
árvore, era pegar um daqueles belos frutos, arrancá-lo do galho que o
segurava, cravar-lhe uma mordida, mastigar a sua massa e, pronto, a
desobediência a Deus estava feita.
Quem reagiu à ação da víbora foi a mulher: - Ei, sibilina, vamos com calma.
Como vês, trouxe o meu marido para ele ver de perto esta árvore do bem e
do mal.
Adão olhou para cima e, ao ver a cobra, chegou a dar um passo atrás, mas
foi rapidamente contido pela mulher, que o segurou pela mão esquerda.
Essa víbora não nos faz mal, só tenta nos convencer a experimentar desse
fruto.
- Hehehehe, prazer em te conhecer, Adão - disse a serpente ao homem, que
agora já estava irresoluto sobre tudo aquilo; o homem tentou se
desvencilhar da mão esquerda da Varoa, mas ela manteve-se firme.
- Adão, calma, deixe eu falar com ela - e aí, se dirigindo à cobra, a mulher
perguntou -: por que achas que não morreremos, se comermos do fruto
dessa árvore amaldiçoada? - Por uma coisa simples, criaturas: Deus sabe
que, no dia em que dele comeres, se vos abrirão os olhos e, como Ele sabe,
sereis conhecedores do bem e do mal.
Se vieste até aqui, sabendo o que a árvore e o seu fruto são, é por que tinhas
um propósito.
Seu olhar não era de terror, só de medo; o corpo tremia levemente e ele ora
olhava para a mulher, ora para a serpente, ora para os frutos da árvore, ora
para a esquerda, onde estava a Árvore da Vida, de que ele sempre comia
livremente para expandir o seu tempo de vida no Paraíso.
Não acreditava que estava vendo nada daquilo, que tudo não passava de um
tormento na sua mente.
Mas, não, na realidade, sentiu o seu rosto ser afagado pela mão direita da
mulher.
Mesmo naquele tormento, ele sabia que àquele toque mágico nunca pode
resistir e, por isso, concluiu que ainda não seria dessa vez.
Ele olhou os olhos dela e, como ela olhava diretamente para ele,
repentinamente sentiu o seu tormento ser apaziguado.
- Se queres desistir, Adão, esta é a hora, mas eu vou atrás do meu rumo.
Sem dizer mais nada, a Varoa abriu a boca, levou o fruto do pecado até ela
e, então, nele cravou os seus dentes brancos, alinhados e perfeitos e,
enquanto as duas arcadas se fechavam, poros do sumo do fruto esvoaçaram
ao redor da boca.
Adão, claro, dessa vez entrou em desespero, pois sabia que, a partir desse
ato da Varoa, não tinha mais volta: por amor, por não querer perdê-la, teria
de fazer a mesma coisa.
Mas, se é a morte o destino que Deus me reserva por conta disso, estou
pronta a enfrentá-la.
- Ai, mulher, tu sabes que és a minha perdição; não resisto a viver sem ti no
Paraíso.
Adão mirou um dos frutos e, sem dar tempo para que alguma dúvida
restante mexesse com a sua mente, deixou o coração agir: com a mão
direita arrancou-o do galho em que estava pendurado, levou-o à boca e,
então, os seus fortes dentes vararam a fina casca colorida e se enterraram na
densa massa daquele pomo proibido.
*** Sobre essa ação do casal criado pelo Divino, até hoje persiste a
discussão em relação a duas coisas: quem, dos dois, foi o culpado maior
contra os atos de Deus; e que ato foi esse, se desobediência e/ou revolta, ou
a inferência ao sexo.
O Gênesis deixa claro que Adão seguiu a Varoa, mas em nenhum momento
considera as razões do homem para essa decisão, se por fraqueza
comportamental ou leniência amorosa em relação à mulher.
No entanto, diz claramente que esse ato foi apenas uma desobediência,
grave, tudo bem; mas, como a Igreja sempre manipulou a verdade que lhe
interessou para capturar e manter a fidelidade dos cristãos, séculos depois
adotou a tese de Santo Agostinho (354-439), um bispo argelino, a de que
todos os males do mundo, a começar do pecado praticado no Gênesis,
foram originados pelo sexo e suas bestealidades.
No entanto, ele admite que Adão e Eva não teriam sucumbido ao orgulho e
à falta de sabedoria, se Satã não tivesse semeado em seus sentidos o que
Agostinho chamou de “a raiz do mal”.
Ou seja, segundo ele, naquele momento a natureza humana foi ferida pela
concupiscência, o apreço pelos prazeres sexuais.
Agostinho era tão radical nesse aspecto que até definia a ereção masculina
como um pecado.
Porém, considerava que esse era um ato involuntário do homem e, aí, não
teve dúvida: colocou o controle desse ato sobre a mulher e na sua
habilidade de influenciar os homens.
Não fosse assim, Ele não teria criado os dois com formas diferentes.
Então, pelo menos teoricamente, no jardim não poderia existir aquilo que a
mente de Santo Agostinho cometeu: perversão, sadismo...
E ele tinha essas ideias desde os 19 anos de idade, a partir de quando seguiu
o maniqueísmo e o hedonismo.
Parecia que, de uma hora para outra, sem mais nem menos, um gosto
amargo descia pela sua garganta, se aprofundava no interior do seu corpo e
caia de supetão lá no fundo do estômago.
Justo naquele instante, com a mão esquerda a Varoa colocou perante a boca
o último pedaço do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Propositalmente, ela até fez teatro: deu uma pausa, olhou para o marido,
com vagar abriu a boca e, então, lá dentro, depositou aquele resto de fruto
sobre a língua e começou a mastigá-lo saborosamente.
- Isso não pode ser - cortou imediatamente Adão no seu sofrimento -, por
que tenho uma indisposição amarga logo depois de comer esse fruto
adocicado, e tu, também comendo dele, continuas toda disposta, faceira
esse jeito? - Porque eu sei o que eu quero, Adão.
Eu não me importo com o que vem pela frente, se é doce ou amargo, macio
ou duro.
Já te disse, não me importa o que Deus acha e qual será a reação d’Ele
sobre essa coisa toda.
O que me importa é o conhecimento por trás disso tudo que Deus esconde
da gente.
- Ai, meu Deus, o que faço? - Oh, homem, entendas: se já toquei e comi o
fruto desta árvore proibida, não há mais volta.
No entanto, te digo com certeza: estou satisfeita com o que fiz e posso te
garantir uma coisa: esse fruto, em nada difere dos que são gerados por essas
centenas de árvores que existem aqui no Paraíso, inclusive a Árvore da
Vida.
Acreditava que Deus, o seu criador, era o começo e o fim pois, se criou,
também poderia dar um fim a tudo.
Mas, indagava-se o homem, se Ele criou isso tudo, inclusive a ele e à Varoa
para dominarem o mundo, não fazia sentido a morte deles por comerem
daquela árvore do conhecimento do bem e do mal.
Como contrapeso, Adão via o seguinte: a Varoa já comera todo o fruto que
arrancara daquela árvore amaldiçoada; ele comera um pedaço do fruto, de
que ainda restava um pedaço em sua mão e, então, olhou atônito para a
Varoa e depois virou o olho para a serpente.
Tu, com tuas fraquezas! Se Adão ainda tinha dúvidas sobre toda essa
questão, não se sabe com certeza.
esperou o resultado.
*** Deus, é claro, viu aquela encenação toda, mas deixou os dias passarem;
ficou só atentando como aquele casal humano iria agir a partir daquele ato
infame.
Adão, coitado dele, sentia como se o seu cérebro fosse explodir de uma para
outra.
Tudo para se esquivar de Deus, pois sabia que não teria coragem de encarar
a face divina.
Um dia, a Varoa notou algo inusitado no marido, quando ele voltou de suas
andanças por entre as árvores do jardim: o sexo dele estava coberto por
folhas.
- Mas, o que é isso Adão, por que essas folhas escondendo o teu sexo? -
Porque vi que estamos nus; acho que isso não é certo.
- Mas tem anos e mais anos que vivemos desse jeito, e até hoje nunca te
preocupaste com isso! Por que assim, de repente? O que deu na tua cabeça?
- Olhe, mulher, desde que provamos do fruto da árvore do bem e do mal,
não percebi nenhuma mudança em meus pensamentos e nem o meu cérebro
ativou ideias novas para me sentir diferenciado ou maior que o Criador.
Toma.
- Mas ainda não atinei para o sentido disso, Adão - disse a mulher depois
que recebeu aquela vestimenta improvisada por Adão.
- É que, de uma hora para outra, notei que somos diferentes dos animais
selváticos e domésticos que perambulam pelo solo do Paraíso.
Eles não pensam, não têm noção do que as suas vidas representam para a
natureza, para o mundo e, menos ainda, não sabem o que é nudez.
Nós, não.
Talvez seja esse o primeiro sinal de que mudamos depois de comer aquele
fruto proibido.
O fato de cobrirmos o nosso sexo não nos faz melhor e nem menor que os
animais da terra.
- Não, mas pelo menos teremos pudor perante Deus, quando Ele reaparecer
para a gente, e perante a gente mesmo.
Vamos, mulher, assim como por amor te segui nessa questão de provar o
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, eu apelo: vista isso.
E eles passaram a caminhar pelo jardim assim, até que um dia, justo ao
anoitecer, quando voltavam para a caverna que faziam de lar, ouviram a voz
de Deus.
Ficaram em silêncio.
- Onde estás, Adão - indagou Deus, e Ele insistiu -: rapaz, sei que estás por
entre essas árvores; vamos, sai daí de uma vez.
Adão e a Varoa saíram de entre as árvores e, na presença do Divino, até
mesmo bateu na Varoa uma relutância inesperada.
Adão respondeu: - Ouvi a tua voz no jardim e, porque estava nu, tive medo,
e me escondi.
- Quem te fez saber que estavas nu, Adão? Por acaso, comeste da árvore de
que te ordenei que não comesses? Sem coragem de encarar Deus, Adão
baixou os olhos para o chão e ficou mudo por alguns segundos, que lhe
pareceram uma eternidade.
- O que???!!! Não acredito nisso, Adão, que disseste uma coisa dessa! O
homem continuou cabisbaixo, em silêncio, mas Deus indagou: - Que é isso
que fizeste, mulher? - A serpente me enganou, e eu comi - foi a saída
simplista dela, talvez até mesmo para não piorar as coisas, não atiçar a ira
de Deus.
Sobre o casal humano não lançou a morte, mas para a mulher multiplicou
os sofrimentos da sua gravidez, enquanto para Adão, por conta da sua
desobediência, amaldiçoou a terra e decretou que “no suor do rosto comerás
o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e
ao pó tornarás”.
Dito isso, Deus recolheu-se e, mais aliviado, o casal rumou para a sua
caverna.
Sendo assim, a partir de hoje não te chamo mais de Varoa, mas de Eva.
Ali, o Divino pensou (Gn 3:22): “Eis que o homem se tornou como um de
nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome
também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente”.
Tudo bem, desobedeci à sua ordem, mas não o fiz com a intenção de
abandonar ao Senhor e ao Paraíso.
Deus foi implacável: - Por teres comido o fruto da árvore do bem e do mal,
Adão, não tens mais o direito à vida eterna, de viver eternamente aqui no
Paraíso.
E sem mais contemplações, a Adão e sua mulher Deus, como diz o Gênesis
em 3:23, “lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora
tomado”.
Fim