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Lutero Agitador

A Guerra dos Camponeses é um fato chave para compreender quais foram as


consequências práticas da “Reforma” Protestante e como as doutrinas de
Lutero, maximizadas por circunstâncias históricas delicadas, acabaram levando
ao destronamento de toda organização eclesiástica e ao empoderamento, em
assuntos tanto políticos como religiosos e morais, da autoridade civil.

Nesta aula do curso sobre Martinho Lutero e o Mundo Moderno, Padre Paulo
explica como uma mistura explosiva de ideologia religiosa e reivindicação
social levou à “politização da fé” e à “confessionalização da política”.
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Para entender as consequências práticas de rebelião de Lutero, é essencial compreender,
antes de mais, o que foi a Guerra dos Camponeses (Deutscher Bauernkrieg, em alemão),
que durou de 1524 a 1525 e teve como resultado a morte de cerca de 100 mil homens. Pois
bem, de volta a Wittenberg em 1522, após seu exílio no Castelo de Wartburg no ano
anterior, Lutero encontrou-se com uma série de desentendimentos entre seus companheiros
de revolta acerca da organização do movimento “reformista”. A razão desses conflitos
consiste em boa medida na crescente discordância quanto à interpretação das Escrituras.
De fato, com a “liberação” da Bíblia das amarras da Tradição apostólica e do
“autoritarismo” do Magistério eclesiástico, as Escrituras começaram a ser objeto das mais
díspares interpretações. Mas Lutero, se defendia, por um lado, certa liberdade cristã na
leitura do Texto Sagrado, não podia aceitar, por outro, qualquer interpretação que
discordasse da sua. E o contexto social da Alemanha daqueles anos, cujo mundo rural
“estava preparado para levantar-se e já tinha conhecido várias insurreições” [1], acabou
permitindo que alguns pregadores dissidentes dessem às Escrituras uma interpretação em
chave marcadamente política, mesclando, numa mistura explosiva, ideologia religiosa e
reivindicação social.

Foi sobre essa base que estalou a Guerra dos Camponeses. Tratava-se, é verdade, de um
revolta de caráter eminentemente socioeconômico: não há dúvida de que o homem do
campo, naqueles duros anos para a Alemanha, sofria na mão de senhores muitas vezes
caprichosos, sob o peso de inúmeros impostos e privado das garantias legais as mais
básicas. Mas tampouco se pode duvidar de que “se mesclaram com a rebelião também
motivos religiosos” [2], insuflados pela pregação de Lutero sobre a liberação cristã do
“poder sagrado” do Papa e dos Concílios. Isso não quer dizer, obviamente, que Lutero
tenha sido nem o idealizador nem muito menos o dirigente da revolta campesina; mas é
certo que as sua pregações inflamadas e virulentas contra os “malditos papistas” serviram
para incitar ânimos já propensos à rebeldia. Outros pregadores, como o ex-sacerdote
católico Thomas Müntzer, passaram a aplicar à realidade temporal muitas doutrinas de
Lutero, mas desviando-se de outras em vários pontos.

No caso concreto de Müntzer, por exemplo, a ideia luterana de que cada fiel é seu próprio
Papa levava, como consequência lógica, à ideia de que cada um é também o seu próprio
rei: de fato, se a alma, que é mais nobre do que o corpo, não está submetida a ninguém
mais do que Deus, por que negar ao corpo o direito de estar livre de toda autoridade
secular? O igualitarismo “autocrático” de Müntzer, de cores talvez um pouco "comunistas"
e carregado de espírito apocalíptico, tinha como “meta realizar o Reino de Deus para o
povo simples e pobre” [3]; mas, para isso, era preciso que o povo se desse conta de que o
destinatário principal dos Evangelhos eram os pobres e miseráveis, que, pelo só fato de o
serem, são também os eleitos de Deus, de modo que está nas mãos deles preparar, sem
medo ao perigo nem à morte, a vinda definitiva do Reino dos Céus.

Assim, interpretando as Escrituras com a liberdade que Lutero — para bem e para mal —
lhe havia outorgado, pregadores radicais como Müntzer começaram a incitar os
camponeses “a acudir a tumultos, destruir imagens e”, quando fosse oportuno, “rebelar-se
contra os reis, os príncipes e os clérigos” [4]. Invadiram-se conventos, palácios episcopais
e igrejas catedrais; profanaram-se espécies sagradas, roubaram-se cálices de prata e de
ouro, arrebentaram-se altares; assassinaram-se religiosos, bispos e padres; e, por fim,
mataram-se nobres e se distribuíram os bens roubados. Como tentativa de apaziguar a
situação, redigiram-se na Suábia, no ano de 1525, os Doze artigos do campesinato suábio,
que expressavam uma série de reivindicações sociais, mas cuja fundamentação se
formulava em termos de “direito divino”, amparado, supostamente, no testemunho
irrefragável do Antigo Testamento. Essa “declaração de direitos” — se assim se pode
dizer —, apesar de seu teor eminentemente social e econômico, estava entrecortada de
citações bíblicas como apoio e fundamento das reivindicações camponesas. De todos os
artigos, o 12.º é o mais revelador: “Se um ou mais dos artigos aqui apresentados não
estiver de acordo com a Palavra de Deus [...], que se nos prove isto com a Palavra de
Deus”.

Mas quem, afinal, poderia determinar qual era e como se havia de entender “a Palavra de
Deus”? A resposta circulava já num folheto à parte, no qual se dizia que, em matéria de
interpretação bíblica, a primeira pessoa a quem se deveria acudir era ninguém mais,
ninguém menos do que o próprio Lutero. Era ele, aos olhos dos camponeses, o homem
autorizado a interpretar, como oráculo infalível, a Palavra de Deus. Não foi preciso esperar
muito para que as autoridades seculares exigissem de Lutero um posição clara. A primeira
resposta de Lutero, escrita ainda em 1525, foi mais ou menos ambígua: na Exortação à
paz, a propósito dos Doze artigos antes mencionados, o “reformador” se dirigia tanto aos
príncipes quanto aos camponeses e, se declarava legítimas as reivindicações, não deixava
de repreender os que, sem resignar-se, se revoltavam contra a própria condição.

Mas, diante dos massacres perpetrados continuamente pelos revoltosos, Lutero se viu
instado a dirigir-se outra vez aos príncipes alemães. Dessa vez, na obra incendiária Contra
as hordas assaltantes e homicidas dos camponeses, escrita com o mais duro de sua
cortante retórica, Lutero não só autoriza como exorta os príncipes a matarem os
camponeses como a “cachorros danados”, com o pretexto de que isto era não só um dever,
mas uma obra agradável a Deus [5]. “A revolta”, com efeito, “foi afogada em sangue, entre
maio e junho de 1525, e foram impostos terríveis castigos. Thomas Müntzer”, que tanto
havia contribuído para acender o espírito revolucionário, “uma vez feito prisioneiro, foi
decapitado” [6].
Todo esse triste episódio manifesta a tendência, que se foi acentuando à medida que a
“Reforma” se consolidava, a conferir cada vez mais poder aos soberanos temporais em
assuntos tanto políticos como religiosos. Além de ter feito Lutero perder popularidade
entre as massas, o resultado da Guerra dos Camponeses não se limitou a um simples
incremento de poder político nas mãos dos príncipes, senão que outorgou a estes um papel
protagônico, para não dizer exclusivo, para dirimir conflitos religiosos e, no fim das
contas, para determinar qual é a interpretação “legítima” das Escrituras.

Somadas, pois, às delicadas circunstâncias históricas da Alemanha no século XVI, as


doutrinas de Lutero sobre a interpretação da Bíblia, do “sacerdócio universal dos fiéis e da
Igreja como comunidade invisível dos verdadeiros cristãos, unidos pelo vínculo da fé,
contribuíram para o destronamento da organização eclesiástica” [7], cujo lugar veio a ser
ocupado justamente pelas autoridades seculares, isto é, pelo que hoje chamaríamos Estado.
Sem o marco de uma Tradição universalmente reconhecida como norma da fé, sem o
auxílio de um Magistério encarregado de zelar pela unidade da doutrina cristã, sem uma
Igreja, enfim, com estruturas hierárquicas claramente definidas, a única solução possível
para os “reformadores” era fundar, não mais a Igreja, mas as igrejas sobre os governantes
de seus respectivos territórios: assim surgiram as igrejas territoriais alemãs
(Landeskirchen), e assim foi entregue aos príncipes e magistrados o que, até então, fora
prerrogativa do Magistério eclesiástico.

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