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GUILHERME PERES
Head de curadoria
VIDA CONECTADA:
COMO VIVER MELHOR
NO MUNDO ON–LINE
Este evento que estamos vivenciando, propiciado pela internet, só pode ser
comparado, em sua medida, com a invenção da escrita ou do livro, com uma
diferença muito grande entre si: a velocidade que estas invenções tecno
informacionais chegam à sociedade. Estamos vivenciando tal processo em
seu desenvolvimento pleno.
A realidade virtual não é real, não é efetiva e tangível, mas sim uma forma
de apego ao fictício. Porém, a mente também é uma categoria, um espaço
Casa do Saber
virtual sem localização específica no corpo, que sabemos que existe através
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de um processo amplo e integrado. A internet de certa forma nos leva a um
lugar, à uma experiência que em sua forma é parecida com a nossa mente.
Nossa mente é um espaço virtual que faz a intermediação com o mundo.
Freud trabalha com o conceito de uma realidade psíquica, ao tratar dos
pacientes tidos como histéricos e que sofriam de reminiscência de memórias
dolorosas, memórias traumáticas e reprimidas que acabavam refletindo
em sintomas físicos. Utilizando da técnica da associação livre de forma
a construir e reconstruir o que fora perdido e poder conviver com esta
memória, concluiu que o sintoma seria uma forma de expressão daquelas
representações que se encontravam no inconsciente.
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A internet, pode então ser compreendida como um espaço lúdico de
acesso à informação, ao resto do mundo e aos outros, um espaço de
transicionalidade e fantasia. Nunca tanta gente teve acesso a tanta
informação ao mesmo tempo, porém é importante salientar a diferença
de informação, de conhecimento e, por fim, de sabedoria. Excesso
de acesso pode revelar sintomas curiosos. Ter acesso é valioso, mas seu
excesso pode ser prejudicial e atingir níveis patológicos de dependência.
Nossa energia oscila para fora (objeto da ação) e para dentro (da memória
e da introspecção), de forma a recolher e gastar energia. Somos chamados
para fora o tempo inteiro, o que nos rouba o tempo de repouso, caracterizando
um conflito contemporâneo: não há mais um momento para recolher energia
e produzir memórias, consolidar os conhecimentos, por isso muitas vezes
temos dificuldade em diferenciar uma notícia real de uma notícia falsa, pois
além de estarmos lotados de informações e conteúdos, não temos tempo
de assimilar todas as informações e concretizá-las em uma memórias
consolidadas.
tempo em que o futuro parece ter acabado. Hoje sonhamos com distopias,
o tempo de hoje se chama “cada instante”, e deve ser repleto de gozo.
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Aula 2
O objetivo deste encontro é avançar mais no conceito das relações
sobre a cultura do narcisismo, seus efeitos, ante uma hiperconectividade.
Quais os potenciais riscos que podemos enfrentar neste caminho
que vem se firmando? Até chegarmos nos novos sofrimentos
humanos, nas novas doenças da alma, que são características
deste ambiente contemporâneo.
O que deveria ser feito para se desligar desta rotina cada vez mais estressante
e massante seria uma desaceleração gradativa, de forma a acalmar este estado
de cansaço, mas o stress nos impede, pois o sobressalto deixa o corpo em
estado de prontidão. O estresse deixa este corpo exausto e em consequência
destas ações podemos observar a insônia, estado que não permite o adormecer
e o descanso.
A cultura é um fator fundamental a ser analisado, uma vez que cada local possui
uma dinâmica específica que requer a adoção de certas medidas de reação
para cada tipo de anseio. Os conflitos internos, os questionamentos pessoais,
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de certa forma, são reações ao ambiente. Por onde passamos há excesso
de demandas, criadoras de experiências mais reativas do que ativas.
Para Winnicott, a saúde mental é ter capacidade de estar só, senão somos
capazes de ficarmos sós, acabamos dependendo de nos conectar com
alguém com uma enorme presença o tempo todo.
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Aula 3
O Narcisismo, termo apropriado à maneira de Freud, trabalhado mais
especificamente na obra “Introdução ao Narcisismo”, muitas vezes
relacionado ao termo autoestima, é um investir em si mesmo, mas
é também um limite entre seres, onde acaba um indivíduo e começa
outro. Quanto mais intolerante somos com o que é diferente de nós,
mais narcísicos somos, quanto mais tolerantes menos narcísicos somos.
Porém, todos precisamos ter, em certa medida, uma dose de narcisismo
para conseguirmos vislumbrar nosso próprio “eu”. A criança, por volta do
primeiro ano de idade, começa a criar uma representação de si. Segundo
Freud, é o momento em que ela se separa do outro, e ao surgir um “eu”,
automaticamente se apresenta um “não-eu”.
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de uma intermediação, por meio do espelhamento dos outros. Aqui nos
constituímos através do olhar do outro. O “eu” está no ponto cego de
si mesmo.
então a vida como ela é, para uma abertura para a vida da negociação,
da espera, dos símbolos.
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Ao tratarmos de uma sociedade narcísica, podemos observar um sintoma
da falha da função paterna, algo sobre a autoridade. Com a internet é importante
saber filtrar quais os tipos de conteúdo que a criança tem acesso, sem privar
do acesso propriamente dito. Estes desejos e a cultura narcísica geram uma
busca por uma dependência, o anseio de algo que o contemple, uma vez
que não se conseguiu uma liberdade e autonomia próprias, ou um lugar de
ação no mundo.
Casa do Saber
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Aula 4
O objetivo desta aula é o reconhecimento e a possibilidade de
mudança que podemos enfrentar a partir das relações hiperconectadas.
Entender algumas dinâmicas do indivíduo na sociedade na perspectiva
da ambivalência nos permite perceber o que se ganha e o que se perde,
bem como o papel de uma experiência coletiva de conectividade.
A internet nunca foi livre, sempre esteve vinculada aos interesses e arti
culações comerciais e a captura de informações que alimentam ferramentas
de controle social. Quem possui condições financeiras para comprar estes
dados têm absoluta vantagem sobre quem não têm acesso. A conectividade
passa aumentar as desigualdades (sociais e financeiras) e a iminência da
defasagem de certas funções laborais.
A pandemia nos explica que muitos recursos pensados para atender situações
emergenciais podem funcionar bem, como por exemplo o trabalho remoto.
Algumas conformações pré-estabelecidas foram completamente modificadas,
por exemplo, é possível que tenhamos um sistema híbrido de ensino, ou
o trabalho em alguns setores específicos jamais será o mesmo.
Melanie Klein entende que para uma criança pequena não há vazio, nem
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silêncio. Sua experiência é sempre com o outro, ela não se sente plenamente
vazia, ora pode ser a presença de uma “mãe boa”, ou de uma “mãe ruim”, uma
posição entendida como esquizo-paranóide, uma fragmentação persecutória.
A paranoia é uma grande teoria da conspiração que a verdade é contingente.
Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”, onde relaciona o poder à paranoia,
entende que aquele que ocupa o poder sente que sua posição é cobiçada e
decide aniquilar os inimigos.
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A ARTE DE COMUNICAR:
PERSUASÃO,NEGOCIAÇÃO
E ORATÓRIA
CONTEÚDO
APROVAÇÃO
MAYTÊ CARVALHO
Professora
DESIGN
DEBORAH KUTNIKAS
Designer
suporte@casadosaber.com.br
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APRESENTAÇÃO
Entender a arte de comunicar talvez seja uma das grandes questões
no desenvolvimento das sociedades. A persuasão, em suas diferentes
formas, tornou-se fundamental no desdobramento das relações, sejam
elas oriundas da esfera pública ou privada. Neste material complementar,
a Casa do Saber reuniu os principais conceitos e teorias dos cursos
“Persuasão e Influência: O Poder da Fala” e “A Arte de Comunicar:
Persuasão, Negociação e Oratória”. Para além dos principais conceitos,
tabelas, referências bibliográficas e complementares para seu aprendizado,
este material foi pensado, também, a partir das questões mais relevantes
trazidas por alunas e alunos durante as aulas.
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01
UM POUCO
DE FILOSOFIA
Aristóteles e as raízes
da comunicação Ocidental
FICHA TÉCNICA
Sócrates
ETHOS
Diz respeito ao caráter de quem fala. É a credibilidade e um dos
principais aspectos que fazem com que uma pessoa acredite em
quem enuncia o discurso - uma união de histórico pessoal
e reputação.
PATHOS
Diz respeito às emoções, ou melhor, às paixões. Um discurso
que baseia-se no pathos apela para a empatia e as vulnerabilidades
daqueles que recebem o discurso - faz com que as pessoas
se emocionem.
LOGOS
Diz respeito à razão, ou seja, às provas lógicas e racionais que
o enunciador emprega ao seu discurso. Se pathos apela para
emoções, logos apela para pesquisas, dados, gráficos e números
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02
ABORDAGENS PERSUASIVAS
DE CONHECIMENTO
Provocação, Intimidação,
Sedução e Tentação
PROVOCAÇÃO
Faz-se uma imagem negativa da competência do outro.
Exemplo: Eu duvido que você consiga realizar essa atividade
INTIMIDAÇÃO
A fala contém um valor negativo que representa uma ameaça
ao outro: Se você não realizar essa atividade, não ganhará
sua recompensa.
SEDUÇÃO
É criada uma imagem positiva do outro com uma fala sedutora.
Exemplo: Você é tão capaz, com certeza conseguirá realizar
essa atividade.
TENTAÇÃO
É oferecido ao outro um valor positivo para a ação.
Exemplo: Se você realizar sua atividade, receberá
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sua recompensa.
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03
ISOPRAXISMO / ESPELHAMENTO
Essa técnica consiste no ato de copiar o outro para criar uma
situação mais confortável, gerar confiança por meio da mimesis
– que em grego significa algo como “copiar o outro” - ao criar
semelhança com a maneira com que o receptor do seu discurso
fala ou se comporta.
TRIANGULAÇÃO
Um triângulo possui três pontas, certo? Esta técnica usa o triângulo
como a figura que liga você, a pessoa com quem você fala e um
terceiro sujeito, que não está na conversa. Com essa técnica você
despertará o desejo do outro ao demonstrar que você – ou o seu
produto – é desejado por outras pessoas.
ESCASSEZ E URGÊNCIA
Tática que preocupa-se em causar ao receptor uma noção de
urgência, um gatilho de escassez que faz com que a pessoa
afetada pelo discurso sinta a necessidade de adquirir o que
você oferece. Um exemplo clássico é a propaganda de televisão
que diz “É SÓ AMANHÃ!”
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04
FALÁCIAS
Identifique as falácias
mais comuns nos discursos
cotidianosa
AD HOMINEM ABUSIVA
É uma falácia que consiste no ataque pessoal ao receptor da fala. Esta
comunicação tenta acessar diretamente o caráter da primeira pessoa
que iniciou um a crítica, por exemplo:
AD HOMINEM CIRCUNSTANCIAL
Esta falácia questiona a imparcialidade da pessoa que propõe o questionamento.
Por exemplo:
AD HOMINEM TU QUOQUE
Esta falácia também é conhecida como a “falácia da hipocrisia”.Observe
que B, ao questionar A, aponta que o discurso inicial parte de uma atitude
hipócrita.
AD POPULUM
Esta falácia consiste em afirmar que determinada proposição é verdadeira
e válida pelo simples argumento de que uma maioria numérica de pessoas
concorda com ela. Por exemplo “9 a cada 10 maquiadoras recomendam
este batom, adquira já”.
AD VERECUNDIAM
O apelo à autoridade é o método desta falácia. De maneira lógica,
o emissor da fala valida sua afirmação ao buscar a palavra
ou reputação de alguma autoridade no assunto específico.
AD MISERICORDIAM
Esta falácia evoca o PATHOS do receptor da fala. O emissor afirma
que será muito mais feliz ou realizado caso
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05
A HABILIDADE
ESSENCIAL
O profissional do futuro
é um bom comunicador
Hard skills e soft skills são palavras em inglês que fazem parte do
vocabulário dos negócios há algum tempo. Entretanto, essas
habilidades não são somente importantes para o mercado norte
–americano – são notáveis capacidades que devem ser reconhecidas
e aprimoradas.
HARD SKILLS
Em tradução literal, habilidades/competências “duras” – são
habilidades que podem ser aprendidas e facilmente quantificadas,
são tangíveis. Você aprende hard skills na sala de aula, com livros
e apostilas, ou até mesmo no trabalho. São consideradas hard skills:
Graduações e especializações, como cursos técnicos e cursos
em universidades.
SOFT SKILLS
Em tradução literal, habilidades/competências “suaves” – são
competências subjetivas. Também são conhecidas como people
skills – habilidades com pessoas - ou interpersonal skills – habilidades
interpessoais. As soft skills são características da personalidade que
possuem influência sobre os relacionamentos no ambiente de trabalho
e, por consequência, sobre a produtividade da equipe. São consideradas
soft skills: critical thinking (pensamento crítico), decision making
(tomada de decisão), empathy (empatia), ethics (ética), flexibility
(flexibilidade, alternativa: resilience - resiliência), leadership (liderança)
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A IMPORTÂNCIA
DO STORYTELLING
Crie narrativas
bem estruturadas
As nossas más decisões não são ruins em função dos fatos, mas
pela ausência de uma história que dê sentido a eles: as pessoas
não são racionais e ninguém sabe exatamente o que quer. Assim,
usar o ímpeto de desejos universais é uma boa estratégia, porque
em um mundo artificial todos são um pouco carentes de atenção.
Contar uma história é com certeza uma das formas de suprir a
carência dos sujeitos.
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mas que leva os ouvintes a sentirem emoções diversas), histórias
de ensinamentos, histórias de valores (que se usa de muitos exemplos
e que, se contada da maneira correta, pode gerar engajamentos)
e a história que visa a mostrar que o falante pensa de forma
semelhante a seus ouvintes (que serve para construir aliados,
criar conexões). Ao contar uma história, no entanto, deve-se tomar
cuidado com a vaidade (usar mais “nós” e menos “eu”, conectando
os ouvintes), com excessiva autoridade, com a insinceridade e com
a ostentação.
Dessa forma, não seria por acaso que grandes líderes e grandes
empresas de sucesso possuem não somente narrativas de storytelling
bem estruturadas, mas também amplamente conhecidas. Storytelling
significa, em tradução literal para o português: “narração de uma
história”; na tradução prática, podemos dizer que é o que incentiva
a criação de uma narrativa bem pensada nos discursos, sobretudo
os persuasivos.
STORYTELLING: A IMPORTÂNCIA
DE UMA HISTÓRIA BEM CONTADA
Augusto Uchôa
Casa do Saber
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COMUNICAÇÃO
NÃO VIOLENTA
Opte pela assertividade inteligente,
não pela agressividade
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Casa do Saber
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SEMIÓTICA
Entenda o estudo dos signos
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Na área da semiótica, Algirdas Greimas foi um dos mais notáveis
pensadores. Entre suas descobertas mais relevantes está o chamado
“Quadrado de Greimas”, um diagrama usado na análise estrutural
de relações entre signos.
A REALIDADE TRANSFORMADA
EM SÍMBOLOS
Luís Mauro Sá
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Casa do Saber
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ÉTICA PROTESTANTE E O
ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Como a cultura de um povo pode
influenciar na sua negociação.
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religiosa. O Homem, através de seu mérito pessoal, busca o
“reino dos céus” à medida que nega as tentações e se dedica
somente ao trabalho. Surge então a ascese intramundana a partir
da ideologia protestante ocidental. moderna
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Casa do Saber
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COMO ESCREVER
E-MAILS PERSUASIVOS
A comunicação escrita
também deve ser eficiente
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SEU NOME
NOME RECEPTOR
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INDICAÇÃO DE LEITURA
DA CASA DO SABER:
COMO ESCREVER
E-MAILS CLAROS,
CONCISOS E ADEQUADOS
2019
Maytê Carvalho
Casa do Saber
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LIVROS, FILMES E DOCUMENTÁRIOS:
LIVROS
Retórica, Aristóteles
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FILMES
Silicon Cowboys
O Discurso do Rei
VIPs
Parasita
OUTROS
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Você é (ou seria)
um bom líder?
Diogo Arrais
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O poder da fala
Maytê Carvalho
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Discursos na cultura
do cancelamento
Maytê Carvalho
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Casa do Saber
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Como a gente organiza os nossos
pensamentos através das palavras
Vivian Rio Stella
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Linguagem, poder
e sociedade
Vivian Rio Stella
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Casa do Saber
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 5ª.ed. São Paulo:
Ática, 2011.
SILVA, Maria Júlia Paes da. Comunicação tem remédio: a comunicação nas
relações interpessoais em saúde / Maria Júlia Paes da Silva. – São Paulo:
Edições Loyola, 2006.
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Um conteúdo original
da Casa do Saber
AVISO
Este material foi elaborado pela curadoria da Casa do Saber exclusiva-
mente para o curso Guia Filosófico das (Novas) Questões da Humani-
dade, com o professor Clóvis de Barros Filho, em setembro e outubro
de 2021. A leitura deste material não substitui as aulas e sua reprodução
e/ou compartilhamento de forma parcial ou total não é permitida sem a
autorização expressa de seus criadores.
CONTEÚDO
Guilherme Peres
Curador da Casa do Saber
Amanda Péchy
Curadora Assistente da Casa do Saber
DESIGN
Ana Luiza dos Santos
Designer
6 AULA 1 -
PARA O FUTURO E AS INCERTEZAS,
A CORAGEM E A RESPONSABILIDADE
21 AULA 2 -
PARA O TRABALHO E A REALIZAÇÃO PESSOAL,
A SIMPLICIDADE E A HUMILDADE
34 AULA 3 -
PARA A SOLIDÃO E O INDIVIDUALISMO,
A GENEROSIDADE E A GRATIDÃO
44 AULA 4 -
PARA A DESIGUALDADE E A DISCRIMINAÇÃO,
O RESPEITO
54 AULA 5 -
PARA O ÓDIO E A INTOLERÂNCIA,
A TOLERÂNCIA E A COMPAIXÃO
65 AULA 6 -
PARA OPINIÕES E A BUSCA DA VERDADE,
A PRUDÊNCIA E A BOA FÉ
78 AULA 7 -
PARA A VIDA COM OS OUTROS,
GENTILEZA E COMPAIXÃO
89 AULA 8 -
LIDAR (MELHOR) COM A MORTE E O LUTO -
A CONSCIÊNCIA
Casa do Saber
99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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APRESENTAÇÃO
Este curso ao qual você tem acesso é uma criação inédita da Casa do Saber,
que desde 2004 tem o privilégio da companhia do professor Clóvis de Bar-
ros Filho. Ao longo dos anos, nós e todo o público fomos presenteados com
algumas das reflexões mais provocadoras e acessíveis a respeito de nossa
condição, nosso lugar no mundo e, sobretudo, nossas responsabilidades
para conosco e com os outros. Explicadores como ele são capazes de mov-
imentar nossos corações e razão. De nos colocar diante de um espelho em
que nos vemos tal como somos, mas com energia o suficiente para nos aju-
dar a descobrir quem podemos (e queremos) ser.
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AULA 1
PARA O FUTURO E AS
INCERTEZAS, A CORAGEM
E A RESPONSABILIDADE
Casa do Saber
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Desde que as ideias sobre nossa relação com o cosmos foram organizadas
em um sistema chamado “filosofia”, boa parte do pensamento humano foi
dedicada a entender o sentido da existência. Não apenas nossas possíveis
origens, mas nosso lugar no desenrolar da vida e, sobretudo, nossos des-
tinos – a curto e a longo prazo. A questão do futuro foi sempre crucial. Na
Grécia Antiga, berço da filosofia ocidental tal qual a entendemos, conhecer
os desígnios do destino traçado pelas Moiras poderia ser uma maldição – tal
qual na vida de Cassandra, que previu a destruição de Tróia e até hoje segue
como referência àquelas pessoas cujas previsões são desacreditadas –, ou
uma missão – como em Sócrates, que considerou sua missão colocar à prova
a declaração do oráculo do Templo de Apolo em Delfos, de que ele seria o
homem mais sábio da Grécia.
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Ainda assim, pensar o futuro se tornou uma preocupação que foi além da
religião ou das representações dos mitos. No teatro, Sófocles (497/496 a.C.
- 406/405 a.C.) usou o enredo de um homem que quis fugir de seu destino
e correu de encontro a ele para construir uma das tragédias mais famosas
da humanidade. Em Édipo Rei (427 a.C.), Laio, rei de Tebas, ouve a profecia
de que morreria pelas mãos do próprio filho recém-nascido. Ele ordena que
Jocasta, sua esposa, mate a criança, mas ela a entrega a um servo que a
abandona. A criança é resgatada, nomeada Édipo e levada a Corinto, onde é
adotada pelo rei. Ao consultar o oráculo sobre sua origem, ouve que ele es-
tava destinado a desposar sua mãe e assassinar seu pai. Sem saber que não
é filho dos reis de Corinto, foge da cidade em direção a Tebas. No caminho,
discute com um velho e o mata, sem saber que aquele era Laio, seu ver-
dadeiro pai. Ao chegar em Tebas, se depara com a esfinge, que aterroriza
a cidade devorando seus habitantes e viajantes enquanto não solucionar-
em seu enigma – que Édipo rapidamente resolve. A esfinge se joga de um
penhasco e Édipo é recompensado com o trono da cidade e a mão da rainha
viúva – Jocasta, sua mãe. É Tirésias, outro profeta, quem revela a Édipo o que
ele cometeu e, ao final (spoilers), Édipo fura os próprios olhos e parte para o
exílio, atormentado, em uma das histórias mais famosas da história.
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Alguns dos chamados pré-socráticos, como Demócrito, Heráclito e Par-
mênides, por exemplo, propuseram ideias que, de uma forma ou de outra,
pautaram algumas das principais visões a respeito do que seria o devir hu-
mano. Seria tudo um aglomerado de átomos desordenados colidindo caoti-
camente, como propôs Demócrito? Um fluxo de transformações constantes
e intermináveis, de acordo com Heráclito? Ou o que existe é apenas o ser e
o não-ser, portanto não havemos de nos preocupar com o que (ainda) não
é? Fiquemos apenas com Heráclito e Parmênides, cujas fontes e relatos são
mais confiáveis. Veja abaixo, de forma mais direta, exemplos mais claros de
suas ideias.
Foi Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.) quem, em A República (cerca de 375
a.C.), idealizou a primeira das utopias da filosofia – a cidade ideal, Kallipolis,
governada por uma aristocracia de sábios, reis filósofos, imaginada na busca
de um conceito maior sobre a justiça, que passa também sobre o destino da
alma. Entre os campos da ética e da metafísica, o futuro foi sendo pensado,
basicamente, a partir destas matrizes. Estoicos como Epiteto, Marco Aurélio
e Sêneca aconselhavam que não dedicássemos energia ao que não estava
sob nosso controle (ainda que recomendassem o exercício de lembrar da
Casa do Saber
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HERÁCLITO PLATÃO
PARMÊNIDES
Casa do Saber
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PARA SABER MAIS:
A REPÚBLICA DE PLATÃO
Maurício Marsola
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Quando, pois, se admite que a proibição desperta o desejo, ob-
tém-se ao invés da ignorância um saber, pois neste caso Adão deve
ter tido um saber acerca da liberdade, uma vez que o prazer consis-
tia em usá-la. Esta explicação é, portanto, a posteriori. A proibição o
angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que
tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da an-
gústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada:
a angustiante possibilidade de ser-capaz-de. Ela não tem nenhuma
ideia do que é que ela seria capaz de fazer, pois de outro modo se
pressupõe, certamente – como em geral sucede – o que só vem
depois, a distinção entre bem e mal. Existe apenas a possibilidade de
ser-capaz-de, enquanto uma forma superior da ignorância e enquan-
to uma expressão superior da angústia, porque esta capacidade,
num sentido superior, é e não é, porque num sentido superior ela a
ama e foge dela. (KIERKEGAARD, S. 2017, p. 52)
Søren Aabye Kierkegaard foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social di-
namarquês, amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista.)
Casa do Saber
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A angústia abre as portas para o vir-a-ser, já que não há um ser fixo, de-
terminado ao qual nos agarrarmos (apesar de a angústia nos fazer desejar
agarrar algo fixo e que nos dê referências). Devemos, para Kierkegaard, nos
lançar neste absurdo, o que ele chamou de “salto de fé”: somos uma sínte-
se entre o finito e o infinito, ou seja, estamos inseridos no tempo, em carne
e osso, mas destinados à indeterminação. Aqui é importante entendermos
o conceito de repetição. Diferente da rememoração, que teria o sentido do
passado, a repetição tem o sentido do futuro – em dinamarquês, o termo é
Gjentagelse, com o sentido de “retomar”, “reapropriar”. É na repetição, por-
tanto, que reside a própria ideia de esperança. A cada momento de retomada
desse devir de nós mesmos, temos a possibilidade de nos tornarmos quem
somos.
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Na angústia - dizemos nós - ‘a gente se sente estranho’. O que sus-
cita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer
diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente total-
mente assim. Todas as coisas e nós mesmo afundamo-nos numa
indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desapa-
recer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se
do ente1 em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime.
Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente
– este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada. ‘Estamos suspen-
sos’ na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela
põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós
próprios - os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos en-
tes. É por isso que, em última análise, não sou ‘eu’ ou não és ‘tu’ que
te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua
presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso
onde nada há em que apoiar-se. (HEIDEGGER, 1999, p. 56-57)
KIERKEGAARD:
ANGÚSTIA E ESPERANÇA
Oswaldo Giacoia Júnior
A angústia tem o nada como causa e efeito, daí sua frase conhecida de
que “o nada nadifica”. No entanto, essa é a condição que coloca a existên-
cia humana diante dela mesma. A angústia nos alerta para a nossa existência
finita, colocando a inautenticidade e também a autenticidade como possibili-
dades de nosso ser e nos convoca a sair da inautenticidade em que vivemos
Casa do Saber
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cesso da própria existência como um todo e, de forma muito particular, algo
único de cada pessoa. É nela que cada um encontra sua verdade no tempo e
por meio da consciência dela que temos a oportunidade de assumir a vida.
Martin Heidegger foi um filósofo, escritor e professor alemão. Foi um pensador seminal
na tradição continental e hermenêutica filosófica, e é amplamente reconhecido como
um dos filósofos mais originais e importantes do século XX
em 2018, feita em 24 países com mais de 17 mil pessoas, mostrou que parte
significativa da população brasileira (e mundial) é pessimista em relação ao
futuro.
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Neste ponto, vale lembrar da figura de Hans Jonas (1903-1993), aluno
de Heidegger no final dos anos 1920. Jonas foi um dos maiores pensadores
a tratar de forma sistemática a questão do desenvolvimento de uma ética
que levasse em consideração o avanço tecnológico desenfreado vivido pelo
mundo após a Segunda Guerra Mundial. Judeu, fugiu da Alemanha nazista
para a Palestina, para depois se juntar ao exército britânico, vendo de perto
os efeitos da guerra.
A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE
Oswaldo Giacoia Júnior
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O mistério e o paradoxo da moral é que o eu deve esquecer de si
mesmo em proveito da causa, de modo a permitir que um eu supe-
rior apareça (na verdade, um bem-em-si). Deve-lhe ser permitido
dizer: “Eu quero poder encarar-me de frente” (ou submeter-me ao
julgamento de Deus), mas isso só me será possível caso o que im-
porte aí seja a “causa” e não eu mesmo: nunca posso ser a causa, e
o objeto do ato será apenas a oportunidade para tal. O homem bom
não é aquele que se tornou um homem bom, mas aquele que fez o
bem em virtude do bem. O bem é a “causa” no mundo, na verdade,
a causa do mundo. A moralidade jamais pode se considerar como
um fim (...) Não é o próprio dever que é o objeto; não é a lei moral
que motiva a ação moral, mas o apelo do bem em si no mundo, que
confronta minha vontade e exige obediência - de acordo com a lei
moral. Ouvir aquele apelo é exatamente o que a lei moral ordena: isso
é tão-somente a obediência genérica ao apelo de todos os bens
dependentes da ação e o seu direito respectivo à minha ação. Ele
torna meu dever aquilo que a intelecção me mostrou que é digno
de existir por si mesmo e necessita da minha intervenção. Para que
algo me atinja e me afete de maneira a influenciar minha vontade é
preciso que eu seja capaz de ser influenciado por esse algo. Nosso
lado emocional tem de entrar em jogo. E é da própria essência da
nossa natureza moral que a nossa intelecção nos transmita um apelo
que encontre uma resposta em nosso sentimento. É o sentimento de
responsabilidade. (JONAS, 2006, p. 156-157)
com aqueles que ainda não nasceram. O que ele sustenta é que neste exer-
cício cada um garante a manutenção da humanidade em todos os seus senti-
dos, numa necessidade paradoxal de desprendimento do eu, mas que ainda
16
assim o sustenta. Desprendimento este que envolve não esperar das gera-
ções vindouras uma recompensa por nossas ações morais – nosso dever é
garantir que tenham o direito e a possibilidade de existir, ainda que para negar
aquilo feito em nome delas. Ainda nas palavras de Jonas:
Hans Jonas foi um filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à
sua influente obra O Princípio Responsabilidade.
Casa do Saber
17
A preocupação com o futuro e a incerteza provocam em nós uma angús-
tia que pode nos paralisar, ou nos convidar assumirmos nossa autenticidade,
nosso si-mesmo. A angústia nos prepara para esse momento de síntese entre
corpo e alma, sujeito e natureza, finito e eternidade. Esse tornar-se sujeito
nos lança ao futuro numa chave de esperança e de dever em relação a algo
que transcende o indivíduo. É a angústia a responsável, paradoxalmente, por
nos afligir e nos dar a chave para superá-la. Antes é preciso, porém, dar o
“salto no abismo”. Abrir mão de si para ser capaz de (re)encontrar a si mes-
mo e, nessa retomada, recomeçar. Esse tipo de pensamento reverbera ainda
em diferentes vertentes e origens do pensamento, dentro ou fora do que se
convencionou chamar de “tradição”, e se tornou uma das principais preocu-
pações de parte significativa da intelectualidade. Talvez não do restante do
mundo. O brasileiro Ailton Krenak anuncia em Ideias para Adiar o Fim do Mun-
do sua versão de uma reflexão a respeito de nossa ligação com o mundo e o
que ainda há de vir:
18
PARA SABER MAIS:
VOZES DA FLORESTA
Ailton Krenak
Convidamos você a refletir sobre essas ideias em nosso tempo e nas suas
vivências particulares. Que tipo de consciência, ética e futuro temos organ-
izado? É justo tratarmos destes temas na primeira pessoa do plural? Ou ainda
estamos patinando no singular?
Casa do Saber
19
AULA 2
PARA O TRABALHO E A
REALIZAÇÃO PESSOAL,
A SIMPLICIDADE E
A HUMILDADE
Casa do Saber
20
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Assim
começa a narrativa de A Metamorfose, de Franz Kafka, publicado pela primei-
ra vez em 1915. Depois de brevemente se perguntar o que havia acontecido
com si mesmo, o protagonista se dedica a uma preocupação absurda: a ne-
cessidade de se levantar para não perder o trem que o levaria ao trabalho.
Em seu livro Kafka: Pró e Contra, o pensador alemão Günther Anders resume
bem essa atmosfera com uma frase antológica: “O espantoso, em Kafka, é
que o espantoso não espanta ninguém”. Não é apenas Gregor Samsa que
tem essa preocupação banal diante do absurdo – seu chefe também vem
visitá-lo para entender por que ele se ausentou do trabalho, dizendo esperar
que não seja nada grave, não sem antes ressaltar que é preciso “colocar nos-
sas obrigações profissionais bem à frente de qualquer ligeira indisposição”.
21
E, se tem esse caráter, por quais motivos e em que medida? Não é
necessário demonstrar a gravidade desse problema prático, porque,
qualquer que seja nosso juízo sobre a divisão do trabalho, todo o
mundo sente bem que ela é e se torna cada vez mais uma das bases
fundamentais da ordem social (DURKHEIM, 1999, p. 4)
David Émile Durkheim foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e
filósofo francês. Formalmente, tornou a sociologia uma ciência e, com Karl Marx e Max We-
ber, é citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da sociologia.
22
Desta forma, na visão de Durkheim, o trabalho seria essa forma de união
social e de reconhecimento do indivíduo como parte de um todo numa lógi-
ca em que os valores e hábitos vão se desfazendo devido a esse processo
de singularização e alienação do indivíduo. É por meio do trabalho que cada
um se reconhece como pertencente à sociedade da qual participa. Aqui nas
palavras dele:
23
Antes de suas obras mais conhecidas, publicou Manuscritos Econômico-Fi-
losóficos (1844), na qual se dedicou, entre outras coisas, a tratar das conex-
ões “entre a propriedade privada, a ganância, a separação de trabalho, capital
e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do
homem, de monopólio e concorrência etc., de todo este estranhamento com
o sistema do dinheiro” (Marx, 2010, p. 80). À medida que produz e quan-
to mais cria, mais valoriza o mundo das coisas e desvaloriza o mundo dos
homens. Nesta lógica do capital, o trabalho (re)produz a si mesmo, transfor-
mando tudo (inclusive o trabalho e o trabalhador) em mercadoria, tanto quan-
to aquilo que é produzido. A relação de valor se inverte, e aquele que produz
não tem condições de possuir ou se apropriar de suas criações. A isso, Marx
deu o nome de estranhamento, ou alienação.
24
Essa relação íntima e desigual pode gerar efeitos perversos de desu-
manização, especialmente em tempos nos quais o tempo de lazer, ou seja,
distante do trabalho, é pautado majoritariamente em relações de consumo.
O mesmo ocorre com a divisão do trabalho quando interpretada por Marx: a
eventual naturalização das relações capitalistas de produção, orientada pelo
percurso que vai da divisão do trabalho às dinâmicas de troca, passando pela
propriedade privada, seria naturalizar essa objetificação do humano. Em ou-
tras palavras, a exploração do trabalho e as consequências da alienação e da
objetificação nos desumanizariam, dando às coisas a primazia sobre nós, ge-
rando um ciclo que reproduziria a si mesmo, perpetuando essas relWações.
25
em conceitos como vocação e pecado, a acumulação se tornou uma carac-
terística dos protestantes, facilitando o desenvolvimento de uma organização
social e econômica pautada pelo lucro e fundamentada no esforço e no mé-
rito. Weber não considerava essa relação exclusiva do mundo ocidental, no
entanto – sua obra mais famosa é parte de um conjunto de estudos sobre as
relações entre religião, sociedade e economia.
MAX WEBBER E O
ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Paulo Niccoli Ramirez
26
Ainda faz sentido pensarmos nossa relação com o trabalho a partir des-
tas abordagens? A forma como nos identificamos com o que fazemos, atre-
lando nossas personalidades àquilo que produzimos e realizamos; as manei-
ras como estamos imersos e envolvidos com as tarefas, desvinculados de um
todo do qual nos reconhecemos como parte; as relações de trabalho mais
frágeis, que se tornam veladas por uma individualização de responsabilida-
des sobre a própria condição – muito disso ainda ocorre e encontra eco em
manifestações observadas por estes pensadores.
TRABALHO E
REALIZAÇÃO PESSOAL
Pedro de Santi
Todo campo também tem regras que resultam de uma aceitação tácita,
Casa do Saber
um “acordo implícito” dos agentes sobre as formas de agir dentro dos cam-
pos. Essas regras, específicas de cada campo, são internalizadas por cada
pessoa de tal maneira que moldam nosso comportamento para além do que
27
conseguimos perceber. O habitus “é um conhecimento adquirido e também
um haver, que indica uma disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu,
1989, p. 61). As formas como agimos, pensamos ou mesmo aquilo que quere-
mos e desejamos é condicionado a partir de nossa educação, convivências
e o meio em que nos socializamos. Achamos que o que importa são as ações
conscientes, mas é o contrário. A sociedade atua também sobre ações in-
conscientes e nossa trajetória influi em sentimentos e ações conscientes.
Como não conseguimos resgatar todos os acontecimentos que nos molda-
ram, traduzimos nosso comportamento como natural.
28
Pierre Bourdieu foi um dos maiores pensadores das ciências humanas do século XX,
desenvolvendo trabalhos no campos da antropologia e sociologia e contribuindo para
áreas do conhecimento como educação e cultura.)
Essa relação com o trabalho tem nos consumido de forma exagerada, no en-
tanto. Não que seja possível, num passe de mágica, ressignificar e reelaborar
nossas dinâmicas de vida em torno dele, mas a consciência destes proces-
sos pode, sim, nos deixar mais atentos para quando estivermos perdendo o
controle ou nos deixando levar de uma forma que nos prejudique. O Brasil em
especial ainda é um país que carece de atenção em relação à saúde mental
Casa do Saber
29
O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, Byung-chul Han (1959-), reflete
sobre como nos tornamos crentes de que sermos “empreendedores de si”
e autorrealizadores nos livraria de uma exploração em que nossos algozes
somos nós mesmos. Em A Sociedade do Cansaço (2010), Han anuncia como
não vivemos mais numa sociedade de controle e disciplina, que comanda
pelo não, mas em uma sociedade de performance e desempenho, pautada
pelo sim – “sim, eu posso”, “sim, eu devo” – que julga e condena aqueles
que não se adaptam às suas regras. Essa cobrança constante por resultados,
quaisquer que sejam, nos consome sem nos deixar parar. Logo no início da
obra Han anuncia:
A SOCIEDADE DO CANSAÇO
Christian Dunker
Para Han, nem a revolução é possível, já que não há contra quem direcioná-la
Casa do Saber
a não ser nós mesmos. No entanto, uma das saídas que ele propõe é uma
reconexão com a realidade, ressignificando o uso do tempo. Han assumiu
cuidar de um jardim secreto, que o colocava em contato com os aromas,
30
texturas e sensações do mundo real, como relata logo no prólogo do livro
Louvor da Terra:
Quem sabe se retornarmos o olhar para nós e o mundo de outra forma, seja
possível vermos também que há sentido fora desta lógica em que atuamos,
por vezes, contra nós mesmos. Esses exercícios de reconhecimento dos lim-
ites (e do respeito a eles) podem nos direcionar a novas práticas de relação
com o que nos cerca. Vale sempre lembrar de algumas ideias de André
Comte-Sponville (1952-) a respeito de virtudes como a simplicidade e a hu-
mildade, apresentadas em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1995):
Essa percepção das coisas para além de sua utilidade ou benefício, um olhar
atento, pode nos revelar a beleza que esquecemos de encontrar no dia a dia;
a percepção dessa beleza, da singularidade de cada elemento que compõe o
mundo, é uma das coisas que nos alerta para o encanto e o espanto que nos
Casa do Saber
31
PARA SABER MAIS:
A FELICIDADE É ÚTIL
Clóvis de Barros Filho
32
AULA 3
PARA A SOLIDÃO E O
INDIVIDUALISMO,
A GENEROSIDADE E A
GRATIDÃO
Casa do Saber
33
O filme Dois dias, uma noite (2014), uma produção franco-ítalo-belga
estrelando Marion Cotillard, instantaneamente atraiu atenção, boas críticas e
inúmeras indicações a prêmios do cinema após sua estreia. Parte do sucesso
deve-se à atuação da protagonista, que transmite universos de sentimento
com os menores gestos, recebendo 15 minutos ininterruptos de aplausos
de pé dos espectadores em Cannes. Menos não se esperava de uma pro-
dução dos irmãos Dardenne. Outra possibilidade é que o filme europeu toca
na questão árdua do trabalho e desemprego em pleno 2014, durante uma
das mais profundas crises econômicas da Zona do Euro. Além: a trama se
aprofunda na saúde mental desses trabalhadores, tratando da luta contra a
depressão em meio a aperto monetário. Mas talvez o filme tenha gerado o
impacto que gerou por conta de algo ainda mais singelo – a questão do indi-
vidualismo e do coletivo.
34
tindo, assim, o sustento de sua família. A trama se desenrola em meio a uma
série de sins, nãos e justificativas para ambos. Percebe-se que Sandra não
tinha muitos amigos no trabalho – quem sabe um dos fatores que contribuiu
para sua depressão? – e que nosso papel junto ao coletivo é mais complexo
do que se imagina.
Sandra está sendo individualista por lutar pela sua posição na fábrica?
Seus colegas que realmente precisam do bônus para não passar necessi-
dade são egoístas? Todo individualismo é ruim? Como navegar o coletivo
mantendo a individualidade? Como lidar melhor com a solidão, principalmen-
te quando ela aparece mesmo em meio à multidão? O isolamento nos torna
mais egoístas? As filosofias de Epicuro e de Baruch Espinosa, assim como a
virtude da generosidade, podem conduzir a possíveis saídas.
35
nalidade é a função humana comum a todos é controversa. “Muitos acham
que os seres humanos são por demais complexos para terem uma única fun-
ção característica, comum a todos. Outros duvidam que essa função seja a
racionalidade” (FILHO, 2017, p. 108). Outros, como o filósofo e sábio Epicuro,
enxergam a relação com o mundo e com os outros de forma diferente.
Nascido em 341 a.C., ele foi o fundador de uma das escolas filosóficas
mais importantes da época, porque as questões da existência trabalhadas
pelos grandes Sócrates, Platão e Aristóteles, que vieram antes dele, perde-
ram um pouco o sentido em um mundo constantemente assolado por guerras
- a instabilidade no Mar Egeu após a morte de Alexandre. O érgon passa a ser
questionado quando o mundo é aleatório, caótico e não se sabe como será o
dia seguinte.
Neste contexto, Epicuro se mudou para Atenas aos 35 anos, onde com-
prou uma casa com um quintal e passou a dar aulas de filosofia. A escola pas-
sa a ser conhecida como O Jardim, e o sábio começou a se autoproclamar
terapeuta do espírito, médico das almas e cirurgião das paixões. Sua máxima
era a busca pela felicidade e pelo prazer, o que erroneamente fez com que
ganhasse fama de hedonista e depravado. Na verdade, para o filósofo, o prin-
cipal prazer da vida é a não perturbação da alma. Ausência de sofrimento. O
controle das emoções e dos encontros com o mundo evitariam extremadas
turbulências. Por isso, ele tinha certa desconfiança da vida política aristoté-
lica, prezando pela primazia das próprias sensações em detrimento de um
pertencimento a uma unidade maior. Ou melhor, Epicuro considerava que a
unidade maior a ser preservada era a própria vida.
UMA REFLEXÃO
SOBRE O PRAZER
Maurício Marsola
36
Isso não significa, porém, a ausência de relações com o outro. A amiza-
de era um dos principais valores do epicurismo. Para além do respaldo con-
tra injustiças e agressões que uma rede de conexões gera ao buscar o bem
estar de todos, a philia de Epicuro passa a ser um prazer em si. O sábio prega
a eleição, em torno de afinidades, de um círculo de amigos, pessoas que es-
colhemos estar próximas e que nos deixam felizes, para que a amizade atinja
seu brilho máximo. Uma de suas máximas é que, por mais que muitas vezes
possa se originar de seus benefícios, “toda amizade deve ser buscada por
si mesma (...) Não age como amigo nem quem em toda ocasião procura tirar
proveito, nem quem nunca entra em contato; aquele negocia a retribuição
de seus favores; este se priva de boa expectativa para o futuro” (em Epicu-
ro: Máximas Principais (2010), de João Quartim de Moraes). Dessa forma, o
Jardim propunha uma espécie de conservação da individualidade – a preser-
vação da própria vida – sem a geração de uma comunidade individualista.
37
Afresco na Tumba do Mergulhador, em Pesto, com cena de simpósio, século 5º a.C.
38
Para Espinosa, os seres humanos são seres naturais, em complexa rede
de causalidades materiais. Ou seja, sua concepção não aceita o livre-arbítrio,
porque nunca haveria a possibilidade de agir de forma diferente daquela que
é necessário ser – a existência é apenas como poderia ser. O livre-arbítrio
é só uma ilusão criada porque os humanos não conseguem observar tudo
aquilo que os afeta, um consolo para explicar porque agem da forma que
agem e porque estão no mundo. Só há necessidade, não possibilidade. Só
há o real (também herança forte de Demócrito). A única coisa verdadeiramen-
te pertencente ao humano seria a potência de agir.
39
Estaríamos vivendo, então, em meio a uma guerra de desejos? Cada in-
divíduo age e escolhe da forma que é melhor para si, de modo a realizar sua
potência? O conatus só seria pleno em conflito individualista? Espinosa diz
que não. Na verdade, viver em civilização facilita a proteção da natureza (ou
individualidade), de cada ser, já que não estarão constantemente expostos
às violências (ou turbulências) de uma guerra de todos contra todos. A ver-
dadeira luta social é a briga para decidir o valor que as coisas devem ter, em
relação às quais seres em socialização serão educados para sentir a potência
aumentar ou diminuir – mas isso é outra história. O ponto é que o ser sempre
deve agir de forma a aumentar seu conatus, e essa é a única maneira que se
poderia agir. Assim, a liberdade se manifesta para além da autodeterminação
individual e passa a estar dentro da coletividade: na plena manifestação do
ser, tal como ele só poderia ser, em meio a uma vasta rede material e natural
de causalidades.
Mas esta reflexão traz um novo problema. Sendo a vida uma série de encon-
tros do eu com o mundo, duas vidas jamais serão iguais. Ou melhor, jamais
terão qualquer ponto de coincidência. Clóvis escreve:
“É óbvio também que, quando um outro corpo que não o seu encon-
tra a mesma coisa que você encontra, esse outro, por ser diferente
do seu, sente outra coisa. Portanto, um erro a não cometer: imaginar
que os outros sentem o mesmo que você sente quando encontram
o mesmo mundo. Na verdade, sentimos exclusivamente, somos ilhas
afetivas. Ninguém sente o que sentimos porque ninguém tem o cor-
po que temos.” (BARROS FILHO, C., 2017, p. 25.)
Somos ilhas afetivas, o que pode – se não deve – gerar uma sensação de
profunda solidão. Um estudo publicado em janeiro de 2021 na revista científi-
ca The Lancet revelou os resultados de um estudo longitudinal que avaliou
a depressão em adultos de 2004 a 2017, descobrindo que “independente-
mente de outras experiências sociais, maiores níveis de solidão no início do
estudo foram associados a maiores níveis de gravidade dos sintomas de de-
pressão durante 12 anos de acompanhamento entre adultos com 50 anos ou
mais” (tradução livre). O mais preocupante, talvez, seja saber que a solidão
pode ocorrer mesmo quando se está rodeado de pessoas, assim como San-
dra, de Dois Dias, Uma Noite, caiu em depressão mesmo com um marido e
dois filhos que a amavam e conviviam com ela. A solidão é diferente de isola-
Casa do Saber
40
veniência disso na pele porque não sente o que ela sente”, escreve Clóvis.
Ou seja, para uma vida boa, é preciso levar a solidão em consideração. A
felicidade deve estar desconectada da necessidade de que o outro sinta o
mesmo que você sente.
A IMPORTÂNCIA DE ESTAR SÓ
Maria Homem
Não é tarefa fácil, afinal, pedidos internos e externos por empatia e “colo-
que-se em meu lugar” correm a torto e a direito, especialmente em uma
sociedade que estimula ações individuais e individualistas. É o que diaria-
mente é pedido a amigos, família, parceiros e parceiras. É o que Sandra pede
quando explica que odeia induzir que seus colegas deixem o bônus de lado,
mas que precisa muito do emprego, e o que os colegas que recusam pedem
quando afirmam que o bônus é essencial para a própria sobrevivência. Um
possível caminho para começar a aplacar essa sensação de solidão é o ex-
ercício das virtudes da generosidade e da gratidão.
41
Generosidade é uma virtude que prevê abrir mão de algo importante, não
por lei ou pela razão, mas pela moral e contra os interesses. Prevê também
o exercício (impossível, como determinado anteriormente) da alteridade. Já
a gratidão é o prazer resultante da generosidade. “A gratidão nada tem a dar,
além do prazer de ter recebido”, escreve Comte-Sponville. “Agradecer é dar;
ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa
alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em
receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si.” É o ex-
ercício de compartilhar o bem que alguém fez a você com essa mesma pes-
soa. Exercícios porque são constantes processos e esforços. E, talvez, nesta
constância seja possível aplacar minimamente a dor da solidão permanente e
navegar o individualismo para uma vida bem vivida.
A LIBERDADE É INDIVIDUAL
OU COLETIVA?
André Martins
42
AULA 4
PARA A DESIGUALDADE E A
DISCRIMINAÇÃO, O RESPEITO
Casa do Saber
43
A desigualdade é um tema multidimensional. Ainda que comumente ela
seja pensada e entendida como uma questão econômica – uma desigualda-
de de renda ou de distribuição de riquezas -, a desigualdade manifesta seus
desdobramentos em diversas frentes da vida pública, como educação, saú-
de, segurança e saneamento, por exemplo. Por isso, o campo de estudos
sobre desigualdades se trata assim, no plural, e é bastante rigoroso quanto à
especificação do objeto de estudos – de que tipo de desigualdade estamos
falando?
45
O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto
é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o
verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e
assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gêne-
ro humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem esse impostor!
Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra
é de ninguém!”. Mas é muito provável que as coisas já houvessem
chegado então ao ponto de não poderem mais durar como eram. A
ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que
só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no
espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita
indústria e muitas luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração em
geração, antes de se chegar a esse último termo do estado de na-
tureza. (ROUSSEAU, 2008, p. 80)
John Stuart Mill foi um dos mais influentes pensadores do século XIX, responsável por
lançar as bases da revisão do utilitarismo como ideologia suprema.)
46
Bentham traduziu o princípio da utilidade como sendo um reconheci-
mento da sujeição humana aos dois afetos naturais que nos regem: a dor e o
prazer. Na abertura de Introdução aos Princípios da Moral e Legislação, es-
crito em 1789, ele reconhece que qualquer tentativa de negar a dor e o pra-
zer apenas confirmam e demonstram como elas governam todas as nossas
ações. A felicidade deveria, portanto, ser construída sobre as bases da razão
e da lei, ordenamentos que proporcionariam ações adequadas e distantes
das paixões. Desta forma, Bentham elenca algumas definições do utilitarismo,
entre elas:
47
O fim último, em relação ao qual e em função do qual todas as out-
ras coisas são desejáveis (independentemente de estarmos a con-
siderar o nosso próprio bem ou o bem das outras pessoas), é uma
existência tanto quanto possível livre de dor e, também na medida do
possível, rica em deleites no que respeita à quantidade e à qualidade
- e o teste da qualidade, bem como a regra para a confrontar com
a quantidade, é a preferência sentida por aqueles que, em virtude
das suas oportunidades de experiência, às quais têm de se acres-
centar os seus hábitos de consciência e observação de si próprios,
dispõem dos melhores meios de comparação. Sendo isto o fim da
ação humana, é necessariamente, segundo a opinião utilitarista,
também o padrão da moralidade. Este padrão define as regras e os
preceitos da conduta humana. cuja observância pode assegurar aos
seres humanos, no maior grau possível, uma existência como a que
descrevemos - e não só a eles, mas, na medida em que a natureza
das coisas o permite, a todas as criaturas sencientes. (MILL, 2005,
p. 53)
Mill vai além ao tratar da relação entre justiça e utilidade. Para ele, a ideia
de igualdade se relaciona à imparcialidade, que aparentemente inexiste nas
relações de poder ou na distribuição das riquezas. Desejamos a igualdade
desde que ela não interfira em nossas pretensões, quando entendemos que
algumas desigualdades são aceitáveis. As máximas da igualdade e da impar-
cialidade devem ser preceitos da justiça “quando nenhum dever mais forte o
proíbe” – o igual direito de cada pessoa à felicidade implica também a igual-
dade de direitos aos meios para a felicidade, “exceto na medida em que as
inevitáveis condições da vida humana, bem como o interesse geral, impõem
limites a essa máxima”. Para Mill, todos têm direito a um tratamento igual, ex-
ceto quando uma “convenção social reconhecida” exige o inverso – daí sua
asserção de que achamos certas injustiças tirânicas esquecendo que tolera-
mos outras desigualdades igualmente condenáveis.
48
Boaventura de Sousa Santos (1940-), por exemplo, este último denunciando
como as iniciativas de combate às desigualdades, apesar de se pretenderem
universalistas, surgem para combater as consequências da ordem social insti-
tuída, não suas causas.
49
PARA SABER MAIS:
AULA 3 | OS LEGADOS DA
DESIGUALDADE.
O QUE PODEMOS FAZER?
Thiago Amparo
As políticas de ações afirmativas têm sido praticadas para atender a diferentes seg-
mentos da população que por questões históricas, culturais ou de racismo e discriminação
foram prejudicados em sua inserção social e participação igualitária no desenvolvimento
(...) no Brasil as ações afirmativas patinam em um debate escapista, fundado na defesa da
suposta meritocracia, que esconde o desejo de permanência do status quo, o qual, histo-
ricamente, produz privilégios, além de reproduzir e ampliar as desigualdades e retardar o
desenvolvimento. (CARNEIRO, 2011, p. 27-28)
50
vantajosas. Com isso, a redução prolongada da desigualdade via
reformas graduais e duradouras tem grande dificuldade de sair do
papel. Ao mesmo tempo, o próprio jogo democrático e o perigo de
desorganização social tornam altamente improvável a adoção de
medidas mais radicais e imediatas. Dessa forma, as mudanças na
concentração de renda ocorrem sobretudo em momentos de cri-
se e ruptura, que ocasionalmente fornecem a determinados atores
a capacidade temporária de reformar profundamente o arranjo in-
stitucional vigente, alterando a distribuição dos ativos e suas taxas
de retorno (...) Apesar de todas as conquistas desde a Constituição
Federal de 1988, é no mínimo prematuro falar em um novo contrato
social com baixa tolerância à desigualdade (...) muitos privilégios
foram mantidos ou reforçados, e algumas dimensões estruturais tam-
pouco passaram por grandes transformações. No limite, é razoável
postular que a democracia pode servir mais para conter o aumento
da nossa desigualdade do que para reduzi-la. (SOUZA, P.H. G. F.,
2018, p. 377-379)
A REFLEXÃO DO
ESTADO RACISTA
51
indivíduo ou grupo. Um respeito de reconhecimento, que o filósofo ganense
Kwame Anthony Appiah (1954-) descreveu ao afirmar que “porque uma éti-
ca da autenticidade demanda que expressemos o que centralmente somos,
posteriormente demanda o reconhecimento na vida social como mulheres,
homossexuais, negros, católicos. Porque não há razão aceitável para tratar
mal pessoas desse tipo, e porque a cultura continua a prover imagens degra-
dantes deles apesar disso, ela nos obriga a realizar trabalhos culturais para
resistir a estereótipos, a desafiar as ofensas, a suspender as restrições”.
DESIGUALDADE GLOBAL
TV Folha
52
AULA 5
PARA O ÓDIO E A INTOLERÂNCIA,
A TOLERÂNCIA E A COMPAIXÃO
Casa do Saber
53
No fim de 1894, Alfred Dreyfus, capitão francês de origem judaica, foi
condenado injustamente por espionagem e alta traição. A República Fran-
cesa emitiu uma sentença de prisão perpétua na Ilha do Diabo, acusando-o
de supostamente entregar documentos sigilosos ao Império Alemão – em
um contexto favorável ao antissemitismo e ao ódio aos germânicos, após
a anexação da Alsácia-Lorena em 1871. Conhecido como “Caso Dreyfus”, o
acontecimento eletrizou a sociedade francesa a ponto de dar origem a novas
palavras: dreyfusard, que designa quem defendia sua inocência, e antidreyfu-
sard, para os que o consideravam culpado. Do francês Émile Zola ao brasileiro
Rui Barbosa, o episódio mobilizou personalidades que se posicionaram no
debate com artigos, discursos e abaixo-assinados, entre os quais se destaca
o J’Accuse...! de Zola.
Diz-se que vivemos em meio à uma cultura do ódio, ideia muito associa-
da aos discursos de ódio propagados de forma vertiginosa nas redes sociais.
Em 2019, o jornalista e escritor Ricardo Viveiros publicou no jornal Folha de
São Paulo:
54
contra outros. Todos os dias recebemos vídeos de pessoas sen-
do ofendidas, agredidas, acuadas por suas posições ideológicas.
Que síndrome é essa que faz humanos perderem a calma, atacarem
semelhantes? São centenas de falsas notícias, imagens montadas,
cenas antigas repaginadas, versões de fatos causando reações
imprevisíveis. Erros do passado lembrados no presente para destruir
o futuro. Violência gera violência, que gera violência... E não acaba
mais. Acaba sim, em tragédia, como registra a história.” (VIVEIROS,
R., 22/9/2019)
MALDADE, CRUELDADE,
PERVERSIDADE
Luíz Hanns
Contudo, a ideia de cultura do ódio existe há muito mais tempo que a inter-
net. A filósofa e cientista política alemã Hannah Arendt (Linden, 1906 - Nova
York, 1975) é uma das autoras-referência sobre o tema. Sua obra foi marcada
pelo corte das duas Grandes Guerras, assim como do totalitarismo nazista e
do exílio nos Estados Unidos, após perder a cidadania em 1937. Não à toa,
desenvolveu um modo crítico de olhar para a sociedade pensando em liber-
dade, na banalidade do mal e na ideia de vida humana. Ao experienciar o ódio
gestado pelo Partido Nazista, percebeu que viver sob constante ameaça não
é viver, e que não estar submetido a leis (tornar-se apátrida) significa uma
ausência absoluta de direitos e garantia de proteção.
55
PARA SABER MAIS:
RAÍZES DA INTOLERÂNCIA
Pedro de Santi
56
do outro. É necessário que exista uma educação para a empatia, tanto para
reduzir atuações de ódio em democracias quanto para evitar a deturpação de
regimes.
Isso se relaciona a outro conceito famosamente explorado por Arendt
em Eichmann em Jerusalém (1963), a banalidade do mal. Em 1960, Adolf Ei-
chmann foi capturado na cidade de Buenos Aires pelo Mossad (Instituto para
Inteligência e Operações Especiais de Israel) e levado até Jerusalém, para o
que deveria ser o mais midiático julgamento de um nazista desde o tribunal
de Nuremberg. O militar era responsável gerir a logística das deportações em
massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupa-
das pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. A
filósofa, judia alemã refugiada do regime nazista, cobriu o processo em uma
série de cinco artigos para a revista estadunidense The New Yorker, que mais
tarde tornaram-se o livro. O principal ponto descrito por Arendt é que, durante
o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge
apenas um funcionário, um burocrata. O exercício da violência homicida foi
igualado ao mero cumprimento da atividade burocrática.
A NORMALIZAÇÃO DO ÓDIO
Maria Homem
Casa do Saber
57
Diferente da banalização – em que o mal deixa de causar choque devi-
do à extrema repetição –, a banalidade ocorre quando o mal deixa de chocar
porque não é mais visto como mal, e sim como uma relação necessária do
eu com o outro. Eichmann nunca questionou a moralidade daquilo que estava
fazendo, em consistência com a perda do padrão moral e ético dentro do to-
talitarismo. É aí que o mal deixa de ser uma tentação, um mal absoluto, e vira
corriqueiro. Não se passa à banalidade de uma hora para a outra: é preciso
passar por estágios de apagamento da identidade, dos direitos, da cidadania
e, por fim, da humanidade do outro. Contudo, aquele simples burocrata ale-
mão mostra que a essência da banalidade pode estar mais próxima do que
pensamos. Por exemplo, no dia a dia é possível associar a figura das pessoas
em situação de rua à banalidade: na invisibilidade social, passar ao lado de
alguém que dorme na rua sem pestanejar tornou-se “natural”. Uma relação
como matáveis. Este conceito representa a vida indigna de ser vivida, o limiar
além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante para o Estado e en-
tão pode ser eliminada. Para Agamben:
58
“Toda a sociedade fixa este limite, toda a sociedade – mesmo as
mais modernas – decide quais sejam seus “homo sacer”. É possível,
aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exception
da vida natural da ordem jurídico estatal não tenha feito mais do que
alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no novo horizonte
biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao
interior de toda a vida humana e de todo o cidadão. A vida nua [não
política] não está mais confinada a um lugar particular ou em uma cat-
egoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente.”
(AGAMBEN, G., 2010, p. 135)
Então, qual seria o antídoto para o mal, para o ódio? Um antídoto con-
tra a indiferença ao outro, a destruição progressiva da ideia do outro como
pessoa? Para Arendt, em reformulação da teoria aristotélica de que somos
animais políticos, seria a vida na pólis. O exercício da cidadania, o debate,
o conflito que apenas a democracia pode permitir. Em A Condição Humana
(1958), a filósofa define “política” como a vida livre em conjunto com os ou-
tros, afirmando que evitar o caminho da banalidade do mal passa pela possi-
bilidade de escolha, a liberdade de escolher. Porém, ao contrário dos existen-
cialistas, para quem o ser humano não apenas nasce, mas é condenado a ser
livre, Arendt diz que a liberdade é uma conquista, que só pode ser feita em
conjunto.
59
importantes que vão além da política tradicional. O resultado é, quase inva-
riavelmente, violento, já que o uso do poder está desvinculado à liberdade e
responsabilidade.
EMPATIA EM TEMPOS
EGOÍSTAS
Luís Mauro Sá Martino
60
Por isso, a filósofa encara o ato de narrar como um ato político. Compar-
tilhar histórias cria um terreno comum, o espaço entre dois sujeitos, essen-
cial para a vida na pólis. Não significa que a convivência com a pluralidade, a
singularidade de cada um, seja fácil (não é à toa que existe um ditado que diz:
“o acordo é um movimento racional em que todas as partes saem insatisfei-
tas). Contudo, o desenvolvimento de uma comunidade faz com que o sujeito
perceba que sua história é, paradoxalmente, diferente de todas as outras e
igual a todas as outras. As narrativas mostram que, ao fim e ao cabo, no fundo
somos todos “apenas mais um”. Cria uma sensação de vínculo e pertenci-
mento, refutando a atomização do ser humano característica de sociedades
totalitárias, e a partir da compreensão do outro torna-se possível agir politica-
mente com o outro. A empatia, ainda que limitada. Além disso, contar histó-
rias – no sentido de conquista da própria voz e conquista da escuta do outro
– provoca uma libertação do medo, uma oportunidade para exercer a vida po-
lítica. E falar também gera autoconhecimento: organizando ideias, colocando
pensamentos em ordem, inicia-se a percepção de quem se é. Hannah Aren-
dt, então, chega à conclusão de que “toda dor se torna suportável se sobre
ela for possível contar uma história”. O compartilhamento de narrativas, por-
tanto, tem potencial de gerar autoconhecimento e, ao mesmo tempo, acei-
tação do outro como ele é. A convivência, se não gerar empatia verdadeira,
gera ao menos tolerância (a insatisfação civilizada da democracia).
61
“(...) a tolerância tem a ver com a humildade, ou antes, dela decorre,
como esta da boa-fé: amar a verdade até o fim é também aceitar a
dúvida em que ela resulta, para o homem. (...) ainda que tivéssemos
acesso a uma verdade absoluta, com efeito, isso não poderia obrigar
todo o mundo a respeitar os mesmos valores, nem portanto a viver
da mesma maneira. O conhecimento, que se refere ao ser, nada diz
sobre o dever-ser: o conhecimento não julga, o conhecimento não
comanda! (...)
62
quilados, e com eles a tolerância.” Já que a humanidade é, invariavelmente,
conflitual, passional, atormentada, uma sociedade em que uma tolerância uni-
versal fosse possível já não seria humana – já nem necessitaria de tolerância.
Contudo, pelo caminho desta “pequena virtude”, como a caracteriza Com-
te-Sponville, nossa sociedade humana pode chegar a virtudes mais perma-
nentes, como a empatia. E, por mais que estar com o outro possa ser difícil
– especialmente com o diferente –, e isso que torna a ação política possível,
a vida mais rica, a democracia mais forte, o individualismo mais fraco e, no
teste dos limites entre o eu e o outro, a identidade mais inteligível.
Casa do Saber
63
AULA 6
PARA OPINIÕES E A
BUSCA DA VERDADE,
A PRUDÊNCIA E A BOA FÉ
Casa do Saber
64
Na mitologia grega, Apolo tem várias representações: deus divina distân-
cia, que ameaçava ou protegia desde o alto dos céus, patrono da poesia e
inspiração artística, deus da morte súbita, mas também da cura e da medici-
na. Contudo, seu mais conhecido atributo é aquele identificado com o Sol, a
luz: conhecimento. Segundo registros de autores gregos, Apolo surge como
o regulador do céu e preservador da ordem do mundo, mantendo o sol sem-
pre em seu curso, fazendo disso um símbolo do caminho da sabedoria. Com
a pontaria infalível de suas flechas de luz, ilumina o intelecto humano, ressal-
tando sua ligação com o dom da profecia. Além disso, era o patrono do mais
famoso oráculo da Antiguidade, o Oráculo de Delfos – não só anunciador de
verdades, mas também verdadeiro legislador de toda a Grécia.
1. NADA EM EXCESSO;
2. COMPROMETER-SE CONDUZ À INFELICIDADE;
3. CONHECE-TE A TI MESMO.
65
na ausência do Oráculo de Delfos, apelam para outros templos em busca de
conhecimento, como grupos de WhatsApp, o Feed do Facebook e aquela
pesquisa rápida no Google. Conhecimentos científicos e metafísicos são de-
safiados diariamente por esses oráculos da atualidade. Contudo, na ausência
de Zeus ou qualquer outra figura de autoridade por trás das mensagens por
eles proferidas, talvez seja mais sábio voltar-se para a filosofia para encontrar
o caminho da busca pela verdade.
COMO PENSAR
E DESCONFIAR
Luis Mauro Sá Martino
Sócrates teve seu próprio encontro com o Oráculo de Delfos. No diálogo Ap-
ologia de Sócrates (399 a.C), de Platão, em que seu mestre se defende em
um julgamento onde é acusado de corromper a juventude e não acreditar nos
deuses (que levou a sua condenação à morte), o filósofo relata que o oráculo
profetizou: “Sócrates é o mais sábio de todos os homens”. Incrédulo, decide
prová-lo incorreto, já que achava que conhecia homens muito mais sábios
do que ele próprio. Para isso, passa a interrogar aqueles que julga os prin-
cipais “experts” em grandes questões como a Justiça, ou a Política, apenas
para descobrir que todos têm a pretensão da sabedoria, mas na verdade não
sabem. Ou seja, ignoram que não sabem. O único aspecto que diferenciava
Sócrates destes supostos conhecedores, aquilo que o tornava o mais sábio
dos homens, era sua consciência da própria ignorância. Daí nasce sua famo-
sa frase: “Só sei que nada sei”.
Para ele, o primeiro passo para conhecer, para buscar verdades, é colocar-se
em posição de douta ignorância, uma atitude permanente de interrogação
Casa do Saber
66
socrática, seria aquela dedicada à busca pela sabedoria – essência da filoso-
fia, philo (amor) + sophia (sabedoria) –, da excelência, da melhor maneira de
realizar uma finalidade. O movimento de busca pela virtude é o mesmo mov-
imento de tentar praticá-las, e o mesmo do conhecimento e cuidado de si. E
o prazer e bem-viver dependem, antes de tudo, da consciência das próprias
limitações (diante tanto dos deuses quanto dos homens, da natureza, das
questões que escapam os sentidos). Não seria uma autovigilância, mas um
processo eterno, um habitual exercício dos músculos espirituais. (No diálogo
platônico Primeiro Alcibíades [390 a.C.], o jovem aristocrata revela a ambição
descomedida de tornar-se governante de Atenas, Esparta e da Pérsia – ou
seja, essencialmente do mundo ocidental, naquele ponto da história –, ao
que Sócrates diz apenas: “Conhece-te a ti mesmo”).
67
neiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da
qual passam pessoas carregando objetos diversos – “estátuas de homens,
figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material” – mas os
prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles. Veem apenas as
sombras que projetadas na parede, associando a elas também todos os sons
que vêm de fora da caverna. Um deles se liberta e, ao olhar para a luz, doem-
-lhe os olhos. “É preciso que ele se habitue”, escreve Platão, para que possa
enxergar os objetos e seres que antes eram apenas sombras. Depois de um
tempo, percebe “como o herói de Homero, que mais vale ‘viver como escra-
vo de um lavrador’ e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória
da caverna”, mas decide voltar para convencer seus colegas a seguir pelo
mesmo caminho. Eles, contudo, rejeitam-no, porque não podia mais enxergar
no escuro e parecia desnorteado. “Voltou com a vista perdida”.
68
PARA SABER MAIS:
A CAVERNA DE PLATÃO
NA ERA DA SELFIE
69
Immanuel Kant foi um filósofo prussiano que
operou, na epistemologia, uma síntese en-
tre o racionalismo continental, e a tradição
empírica inglesa.)
Por isso, seria preciso criticar a razão, o que o prussiano denomina Tribunal
da Crítica da Razão Pura, onde se estabelecem pretensões legítimas da razão
e são excluídas as ilegítimas, em julgamento de si mesma. Na briga entre
dogmáticos e céticos, quanto mais afirmam-se dogmas, maior é a exposição
às críticas dos céticos – e, para Kant, é essencial que a crítica seja livre.
Assim, uma doutrina, ou verdade, que não passa pelo crivo crítico é dogmat-
ismo. Para atingir uma razão elevada, é preciso examinar tanto os argumentos
Casa do Saber
70
Por isso, seria preciso criticar a razão, o que o prussiano denomina Tribu-
nal da Crítica da Razão Pura, onde se estabelecem pretensões legítimas da
razão e são excluídas as ilegítimas, em julgamento de si mesma. Na briga en-
tre dogmáticos e céticos, quanto mais afirmam-se dogmas, maior é a exposi-
ção às críticas dos céticos – e, para Kant, é essencial que a crítica seja livre.
Assim, uma doutrina, ou verdade, que não passa pelo crivo crítico é
dogmatismo. Para atingir uma razão elevada, é preciso examinar tanto os ar-
gumentos dogmáticos quanto os céticos, criando um movimento de reflexão
da razão sobre si mesma. Não à toa, a síntese é o cerne da crítica, segundo
Kant, que também coloca em diálogo os fenômenos e as coisas em si mes-
mas. O primeiro, aquilo que aparece no mundo para os humanos. O segundo,
o que é desconhecido, do mundo inteligível. Contudo, o filósofo só afirma
que é impossível conhecer as coisas em si mesmas, não pensar sobre elas.
Ou seja, a imaginação faz a ponte entre o sensível e o inteligível, livre para
pensar, mas limitada pela transcendência das ideias.
71
PARA SABER MAIS:
RAZÃO PURA
Daniel Omar Perez
Conhecido por suas teorias acerca do poder, com Vigiar e Punir (1975) como
uma de suas principais obras, o filósofo francês via a verdade como uma
produção histórica. Desta forma, rompe com a perspectiva universalista da
verdade, de que se poderia chegar a uma essência do verdadeiro. Para Fou-
cault, a verdade é indissociável da singularidade do acontecimento. Aquilo
qualificado de verdadeiro não habita num já-aí; antes, é produzido como ac-
ontecimento num espaço e num tempo específicos. Além disso, não poderia
deixar de ser que a produção da verdade é feita no âmbito das relações de
poder. Recuperando Espinosa, que afirma que a verdadeira luta social não
ocorre entre o significado das coisas, não ocorre sequer entre os desejos
individuais de cada pessoa, mas sim para decidir o valor que as coisas de-
vem ter. Poder é ter controle da definição do valor (ou controle da definição
da verdade. Foucault não enuncia que exista uma verdade, apenas discursos
lutando pelo poder.
Casa do Saber
72
Michel Foucault, influenciado por Nietzsche, Marx e Freud, revolucionou as estruturas
filosóficas do século XX ao analisá-las por meio de uma nova ótica.
73
Mas Foucault vai mais longe que seu antecessor. Em A Gaia Ciência
(1882), Nietzsche afirma: “o mundo para nós tornou-se novamente infinito
no sentido de que não podemos negar a possibilidade de se prestar a uma
infinidade de interpretações”, ao que o francês responde: “Se a interpretação
nunca se pode completar, é porque simplesmente não há nada a interpretar...
Pois, no fundo, tudo já é interpretação”.
A VERDADE EXISTE?
Pedro Pimenta e Adilson Oliveira
Como, então, analisar algo que parece tão insólito? Como começar a
busca pela verdade, que nunca virá em sua forma absoluta? Como conhecer
a si mesmo, sair da menoridade, sem tornar-se cego a interpretações outras?
André Comte-Sponville sugere as virtudes da prudência e da boa-fé.
74
importa o verdadeiro, se não sabemos viver? Ou seja, investigar a verdade
com prudência prevê uma escolha cuidadosa dos caminhos a seguir, fontes a
confiar, posicionamentos a construir. Comte-Sponville relaciona a virtude com
a ética da responsabilidade em Max Weber (Erfurt, 1864 - Munique, 1920),
mais um perspectivista:
76
AULA 7
PARA A VIDA COM OS OUTROS,
GENTILEZA E COMPAIXÃO
Casa do Saber
77
Em 2019, havia 11,7 milhões de pessoas vivendo sozinhas no Brasil,
ou 16,2% dos lares, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lio Contínua (Pnad Contínua). Trata-se do maior número de domicílios com
apenas um morador pelo menos desde 2016, início da série histórica para
esse indicador. Em 2018, 11 milhões de brasileiros viviam sozinhos, o que
correspondia a 15,5% dos domicílios existentes no país. Não é só no Brasil:
globalmente, lares estão diminuindo. Quase dois terços de todas as casas na
União Europeia já eram habitadas por apenas uma pessoa em 2016 por uma
ou duas pessoas, com destaque para a Alemanha, Países Baixos e França
(41,7%, 38,3% e 36,2%, respectivamente). Por que mais e mais pessoas es-
tão morando sozinhas? A capacidade de ter uma vida mais harmoniosa com
os outros está diminuindo? O que está em jogo na vida em sociedade?
Para Aristóteles (Estagira, 384 a.C. - Atenas, 322 a.C.), o homem é, por
natureza, um animal político (zoon politikon). Isso significa que, além de ser
um animal gregário, possui a especificidade da racionalidade (logos) e a fina-
lidade de buscar excelência nesta agregação. O fato do ser humano ser ca-
paz de formular juízos de valor e compartilhá-los com seus pares através da
linguagem é a razão pela qual tende, por natureza, a viver politicamente. Ela é
a sua função (ergon), pois a natureza “não faz nada em vão” e deu apenas ao
homem, de modo pleno, a posse desta faculdade.
Ou seja, uma vida política está diretamente relacionada aos valores mo-
rais, percepções exclusivamente humanas. Como afirma o autor, é “a comu-
nidade dessas percepções que produz a família e a cidade: a humanidade se
Casa do Saber
A ESSÊNCIA DA FELICIDADE
Luís Mauro
Casa do Saber
79
O encaixe do ser humano no universo se dá pela sua função, que é sua
atividade racional. Portanto, um ser humano feliz, no pensamento de Aris-
tóteles, é aquele que faz bom uso da razão e que vive conforme à razão.
Porque só a razão é capaz de educar os apetites que atrapalham a felicidade
humana. Por isso, Aristóteles insiste no seu pensamento ético na educação
das emoções, para que floresça o caráter e se tenha uma vida virtuosa e boa.
Contudo, avançando para o século XVII, a ideia de que as agregações
sociais são naturais passa a ser fortemente contestada. Na teoria política e
filosófica do contratualismo, a tese é que existe uma espécie de pacto ou
contrato social que retira o ser humano de seu estado de natureza e coloca-o
em convivência com outros seres humanos em sociedade.
“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam natural-
mente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela
restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.
Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a
consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais
dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em
Casa do Saber
O estado estaria acima das leis, sem limites para suas ações, desde que
agisse no cumprimento de sua parte no contrato: garantir a vida, a prosperi-
dade e a paz. Em troca, os homens abdicam de sua liberdade, para obter os
benefícios dos limites das leis. Ou seja, o estado governa pela força e violên-
cia, mas os humanos não precisam mais temer uns aos outros. Hobbes vai
além ao afirmar ainda que “os homens não tiram prazer algum da companhia
uns dos outros [...], quando não existe um poder capaz de manter a todos em
respeito”.
81
caracterizada por ações individuais com objetivo de satisfazer suas necessi-
dades, mas rejeita a ideia de “guerra de todos contra todos”. O homem sel-
vagem viveria isolado e, por isso, não haveria tendência ao conflito quando
os indivíduos se encontrassem: em comunhão com a natureza, seus desejos
seriam satisfeitos com pouco esforço. Assim, já que o homem se completa
com a natureza, não é um estado a ser superado. Escreve em Discurso So-
bre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755): “A
maioria de nossos males é obra nossa e (…) os teríamos evitado quase todos
conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era
prescrita pela natureza”. A desigualdade e o conflito teriam nascido da trans-
formação da natureza pelo homem.
82
Por meio da razão aliada à piedade, seria possível retornar ao estado de
natureza pacífico (uma espécie de República utópica) por meio de um con-
trato social. No pensamento rousseauniano, o elemento artificial estabelecido
não é um estado soberano que governa pelo medo, mas a ideia de cidadania,
uma igualdade artificial. Para Rousseau, o Estado somos nós e a imposição
legítima de comandos só ocorre através da vontade geral, uma “escolha em
tese”, hipotética, proveniente de uma deliberação altruísta do que é melhor
para todos – transcendendo a mera soma das vontades individuais. Por fim,
pela lógica orgânica, este sistema extraordinariamente democrático em que
“é tudo pela sociedade, nada pelo indivíduo” acaba por beneficiar seus
membros individualmente, já que tudo aquilo que favorece a sociedade em
tese também favorece o indivíduo.
83
va. Mudando paradigmas, seu conceito de racionalidade está ancorado nos
processos de comunicação (a razão do humano conecta-se intrinsecamente
à vida com os outros).
84
do ato comunicativo: Inteligibilidade, Verdade, Sinceridade e Correção Nor-
mativa (falas de acordo com o contexto de normas e valores estabelecidos).
85
ordem ética, do que sentimos ao que queremos, do que somos ao
que devemos ser.” (COMTE-SPONVILLE, A., 2016)
COMO APRENDER A
ESCUTAR O OUTRO?
Christian Dunker
por alguém: “Agir amavelmente é criar condições para o amor. Dar à luz uma
possibilidade amorosa.”
86
“O que é shinsetsu? Na falta de sinônimos, tentemos uma definição.
Trata-se de uma forma particular de pensar para agir em convivência. Segun-
do a qual a existência de qualquer pessoa – em interação real ou potencial
com quem age – é fator relevante na definição dos limites que este agente se
imporá para evitar-lhe dano, tristeza ou incômodo. (...)
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AULA 8
LIDAR (MELHOR) COM A MORTE
E O LUTO - A CONSCIÊNCIA
Casa do Saber
88
“Cada um de nós tem sua própria morte”, escreveu José Saramago
(1922-2010) em As Intermitências da Morte (2005), “transporta-a consigo
num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.”
A filosofia sempre teve a morte como um tema central, mesmo antes de se
chamar filosofia, quando os mitos e histórias deram aos humanos o estatuto e
a ambição da eternidade. Ainda que cada morte seja única, é uma das coisas
que nos une a todos em seu mistério.
89
dividual, tornando os sujeitos o centro do pensamento. Logo, a morte passou
a ocupar boa parte das reflexões de pensadores daquele período, como não
apenas Epicuro, mas os estoicos na Grécia e Roma.
Uma das escolas filosóficas que mais pensou a relação entre nossa fini-
tude e as condições de nossa existência foi o estoicismo. Nascida na Grécia,
sob a figura de Zenão de Cítio (333 a.C. – 263 a.C.) por volta de 300 a.C.,
ecoou no tempo até a Roma de Sêneca e Marco Aurélio. O nome deriva do
local onde se reuniam – a Stoa Poikile -, um pórtico fora da ágora de Atenas
em que funcionava um mercado, e onde Zenão e seus discípulos se juntavam
para discutir - já que, diferente de Platão ou Aristóteles, não possuíam um
lugar específico, como a Academia ou o Liceu, para a prática da filosofia. De
todas as propostas, foi por meio da ética que os estoicos, por mais de meio
milênio, fizeram ser ouvidas suas mensagens particularmente iluminadoras do
sentido da vida, e consoladoras, libertadoras de ilusões. Para eles, a finalida-
de da vida é a felicidade – mais do que isso, esse é o fim principal e único de
todas as partes da filosofia (REALE, 2015).
90
Em Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), a filosofia estoica teve uma de suas maio-
res representações. Em sua carta Sobre a Brevidade da Vida, anuncia que “a
vida toda é aprender a morrer”. Tal qual Sócrates, o exercício da vida deve
considerar, também, uma preparação para o seu fim. Essa perspectiva surge
da compreensão de que a morte é um processo natural da existência. Enten-
der a morte como essa parte constituinte de um processo maior é um dos
pontos levantados por Sêneca que justificam sua afirmação de que a morte
não é algo a se temer.
91
existencialismo. A consciência de que nossa vida termina leva a uma reflexão
mais atenta sobre o significado que ela tem ao longo de sua duração. Uma
vez que não possuímos uma essência prévia que define nossa atuação no
mundo – a famosa alegação de Jean-Paul Sartre (1905-1980) em seu ensaio
O Existencialismo é um Humanismo (1946) de que “a existência precede a
essência” -, a liberdade à qual estamos condenados diz respeito justamente
à construção deste significado. Mais do que isso, o apossar-se dessa liberda-
de e dessa responsabilidade de construirmos a nós mesmos. Claro que essa
ausência de sentido prévio e os desafios de construção deste sentido não
passariam em branco pela história do pensamento.
92
Em função disso, nosso processo de subjetivação – o movimento rumo
a se tornar indivíduo, nosso desejo de identidade – se intensifica: o fato da
existência preceder a essência faz com que nossa preocupação com ela
aumente, apesar desse desejo de alcançá-la ser irrealizável. Tudo que nos
tornamos é para que deixemos de ser. Todas as nossas escolhas são apenas
parte de um processo que nossa morte interromperá antes que acabe. Para
que ele acabasse, seria preciso que se realizasse a totalidade humana. É a
falta que nos constitui, e é impossível de ser suprida. Somos o desejo de to-
talidade. Constituímos nossa vida a partir de um projeto de ser e o desejo de
ser. Queremos transcender, mas a transcendência é decepcionante: o desejo
existe apenas para motivar a busca.
O QUE IMPORTARÁ
AO FINAL DA VIDA?
Luís Hanns
Isso faz surgir o para-si, o que faz as vezes do “eu”. O homem tenta re-
alizar esse si como ser, pois ele mesmo será sempre definido pelo nada que
a consciência é originalmente, jamais um ser-em-si, realidade material pura
e simples com consciência de sua plenitude, como é deus. Nós buscamos
a realidade em-si-para-si: nós desejamos ser deus, juntar a imobilidade da
pedra com a consciência lúcida da totalidade. Buscamos suprir essa falta de
diversas maneiras, inclusive ilusões que nos coloquem aparentemente no
lugar de deus.
da angústia que nos assola quando verificamos que o que queremos é intrin-
secamente irrealizável. O indivíduo se faz si mesmo de forma tão exagerada
que acredita ser somente aquilo.
93
O antropólogo estadunidense Ernest Becker (1924-1974) é autor do livro
A Negação da Morte (1973), que rendeu ao autor um prêmio Pulitzer póstu-
mo. Neste estudo que reúne psicanálise, filosofia e estudos culturais, Becker
partiu da premissa de que o medo da morte é o maior motivador humano.
Admiramos aqueles que enfrentam a morte e temos nesse heroísmo a nossa
grande ambição enquanto espécie. Para Becker, “o herói era o homem que
podia entrar no mundo espiritual, no mundo dos mortos, e voltar vivo” – o he-
roísmo é um “culto” e nossa possibilidade de sobreviver à morte. No entanto,
vivemos em negação em relação à nossa morte, porque seria insuportável
viver com esse fato estampado o tempo inteiro em nossa consciência.
94
PARA SABER MAIS:
A NEGAÇÃO DA MORTE
Andrei Martins
95
com a ideia de repetição de que tratamos no primeiro encontro. Por mais que
essa consciência seja insuportável, ela é necessária para que nos lembre-
mos dessa possibilidade de retomada, de posse de nós mesmos e de nosso
destino. A cada repetição há, paradoxalmente, a possibilidade de nos liber-
tarmos dos grilhões – a repetição que se move para frente, não para o passa-
do. Entre as diversas abordagens que tratamos aqui, muito se assemelha em
relação à ideia de que este sentido para a vida, se não existe, é artificial: de
um lado, a ausência de sentido é um absurdo praticamente inconcebível; de
outro, uma ilusão. De todo modo, é ele o chão sobre qual pisamos os passos
de nossa existência.
Em seu livro Mortais (2014), o médico Atul Gawande (1965-) diz que “a
vida tem significado porque é uma história” que temos capacidade de moldar,
apesar de o tempo ser ininterruptamente mais escasso a cada segundo. A
grande sacada, segundo ele, é perceber que há outras prioridades além do
fato de estar e permanecer vivo – de sobreviver. Por mais insuportável que
seja, essa consciência do fim é necessária e precisa ser encarada de forma
madura. Essa consciência faz emergir a ideia de presença no sentido de estar
presente, notando os instantes, a nós mesmos e as coisas que nos cercam
com uma atenção mais dedicada.
96
PARA SABER MAIS:
97
BIBLIOGRAFIA E RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
98
DOIS Dias, Uma Noite. Direção de Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne.
França: Les Films du Fleuve, 2014. 1 DVD (95 min).
EPICURO. Carta a Meneceu. (Álvaro Lorencini, Enzo Del Carratore). São Pau-
lo: UNESP, 1997
KRENAK, A. Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020.
99
MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
100