Como renascem

as democracias

.>7
 :lTHI Alain Rouquié + Bolivar Lamounier
e Jorge Schvarzer (orgs.)

e A Conciliação e Outras Estratégias -- /b7/cbe/

/L#.Debrua
© Os Democratas Autoritários -- ./oâó ,4/m/no
e Explode um Novo Brasil -- Diário da Campanha das Diretas
-- Ricardo Kotscho
© A Força do Povo -- Democracia Participativaem Lajes --
Márcio Moreira Alces
e A Invenção Democrática .:- (;/Bode Lefo4
© Por Que Democracia? -- E/anc&co We/fod
e Sentido Dinâmico da Democracia -- EZbs Chaves /Veto
e Sindicalismo no Processo Político do Brasil -- K. P, EPzc&son
Sindicatos e Democratização -- R. /Uaranháó
Como renascem
©

Colação Tudo é História

e Democracia e Ditadura no Chile -- Emó'Saber
e O Golpe de 1954 -- ,4m7anda Bo/fa Jr.
+ O Governo Goulart e o Golpe de 64 -- Ca/o/V. To/edo
as democracias
e O Governo Jânio Quadros -- lb#a/zaV7cfó/íaBenev/des
B O Governo Juscelino Kubitschek -- n. /14aran/7âó
e Movimento Operário Argentino -- ./osé l.uü B. Be/red
e Paris 1968 As Barricadas do Desejo -- C)©á/za C. F.
Mattos
e A Redemocratização Espanhola -- RegIDa/ab C./Uoraes

Coleção QuaIE
A Questão da Democracia -- De/HS Z.. Rosen/h/d

1985
CbpyrlgAr © IDESP

(;apa.'
Solange Salva

Revisão:
José W. S. Moraes
Saulo C. Rego

Índice.

Apresentação da edição brasileira -- .Bo/ívarmamou/zíer 7

Introdução geral: Querer a democracia -- .4/az'nRoaqulé 9
1. 0 mistério democrático -- das condições da demo-
cracia
/ às democracias sem condições -- .4/afazRou-
gtzze 19
2. Bases da democracia brasileira: lógica liberal e pra-
xis autoritária (1822-1945) -- .Hé/gfo Trüdade 46
3. A democracia populista, 1945-1964: bases e limites
-- Morta do Cawttlo C. de Souza 73
4. Apontamentos sobre a questão democrática brasa
leira -- .Bo/luar Zamoum/er 104
5. Argentina: a participação popular e seus avatares
(1880-1943) -- R;cardo Golzzá/ez, .meandro.H]. Gtz-
tierrez, Juan Curtos Korol, Leis Albertó Romeno e
Hz/daiSaóafo ......'''''''-'''''''.''''.'-'''. 141

@
g 6 Funcionamento da economia e poder político na Ar-
6 gentina: empecilhos para a democracia -- Jorre .F'.
8 .SáóafeelorgeScÀvarzer .......--..'''''''..... 155
ju 7
editora brasiliense s.a. O sistema jurídico argentino diante das sequelas do
01223 -- r. general jardim, 160 ''processo de reorganização nacional'' -- .EPzrlqzze l.
(;roislnan .....''''''''''''''''''.'...''..... 197
são paulo -- brasil
8 As fragilidades da democracia na França: o conflito
das finalidadese as dificuldades do compromisso --
.4/aín .Bergozznfotzxe Gérard G nberg . . . . . . . . . . . 211
9 Conclusão -- os desafios democráticos, ou o aprendi-
zado da virtude --.4/afaz .Rozzqufé . . . . . . . . . . . . . . . . 252
Bibliografia......''''''...................... 260

Apresentação
da edição brasileira

l.J livro que o leitor tem em mãos é fruto de um esforço

de cooperação entre pesquisadores franceses, argentinose bra-
sileiros. Tem, portanto, um importante significado acadé-
mico, que é a aproximaçãoentre instituiçõesdestestrês paí-
ses: a Fondaffon .Nbfiozza/edes .Sele/icesPo/íf;quem, do lado
francês; o CISEA -- Centro de Invesflgaclones .Soc/a/essobre
e/ Estado y /a .4dminisfracfón, do lado argentino; e o IDESP
-- Instituto de Estudos Económicos, Sociais e Políticos de São
jazz/o, do lado brasileiro.
A cooperação entre estas três instituições foi o arcabouço
que viabilizou a produção do livro. Mas não deixa de ser notá-
vel que esse trabalho tenha sido feito, num prazo relativa-
mente curto e apesar de pouco cantata direto entre os autores.
Como bem salienta Rouquié em sua introdução, o êxito do
empreendimentose explica pelo bom entendimentoentre os
autores quanto à relevância e aos contornos da tarefa a que se
propuseram. Tratava-se, por um lado, de compreender os
processos contemporâneos de redemocraüzação, notadamente
os casos brasileiro e argentino; mas, por outro lado, tratava-se
também de situar esta discussão num quadro histórico e con-
ceptualmais amplo, e não necessariamenterestrito ao hori-
zonte geográfico latino-americano. Daí a inclusão do caso
francês, ao lado do argentino e do brasileiro. Daí também a
amplitude temporal das análises, que ora recuam até origens
históricas razoavelmente distantes, ora se concentram em di-
8 APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

lemas, digamos assim, universais e imediatos da democracia

representativa neste final do século XX.
O caso brasileiro é discutido em três ensaios. Hélgio Trin-
dade retoma um dos debates clássicos sobre a formação histó-
rica brasileira, aquele que contrapõe a formação autoritária,
fundada na centralização burocrática e patrimonial, ao pro-
gressivoenraizamentode formas mais autónomas de organi-
zação e de valores políticos liberais, ou pluralistas. Mana do
Carmo Campello de Souza aborda questões semelhantes, mas
no contexto do que talvez tenha sido a grande oportunidade
democrática brasileira: o período 1945-1964.Aprofundando
um trabalho anterior, mostra como a dualidade discutida por
Introdução geral:
Hélgio Trindade marcou o nascimento, a ascensão e a morte
dos partidos políticos desse período. Finalmente, meu ensaio
Querer a democracia
Alain Rouquié+
questiona o excessivodeterminismo de algumas hipóteses que
apontam obstáculos económicos ao desenvolvimento demo-
crático, no Brasil; analisa a erosão do sistema autoritário e o
processo de abertura política durante a década de 1970, até as
eleiçõesde 1982; e conclui com algumas hipóteses sobre as '0 grande erro dos europeus é o de filosofar sobre as
novas formas assumidas pela participação política no decorrer origensdas coisas a partir daquilo que ocorreem tor-
desse processo. no deles... Para estudar o homem é preciso aprender
Como Relzascem as .Democracfai é, pois, uma mescla de a levar a vista longe; é preciso primeiro observar as
diferenças antes de descobrir as propriedades.
trabalho académico no campo da análise política comparada e
J. J; Rousseau,
de investigação enganada sobre as perspectivas e dilemas de
umaordem democrática e pluralista. A complexidade do tema E)líBIo sobre a Origem das .Lhgaas, cap VIII.
e a enormidadedos obstáculosque se antepõemao convívio
democrático forçaram os autores a renovarem a cada mo- ./\ democraciavolta a ser uma ideia nova no mundo.
mento a humildade intelectual de que se achavam inicialmente
Pelo menos o seu universo parece em expansão e isso justa-
imbuídos; mas a certeza de que estavam contribuindo para mente nos continentes onde menos se esperava. Ontem um es-
um debate importante permitiu-lhes levar adiante a ousadia. pécime em vias de extinção, um luxo de privilegiados, forma
Desejo consignar aqui os meus agradecimentos a diversas condenávele condenada pela história da dominação burguesa
pessoas que participaram da produção deste livro. b4aria Lú- ou do colonialismo, os sistemas representativos pluralistas
cia Montes e Mârio Miranda Filho traduziram textos e ofere-
aparecem de repente como portadores de valores universais e
ceram argutas sugestõeseditoriais. Rachel Meneguello ajudou aureolados com a sedução do fruto proibido ou do mal menor.
na revisão geral e na organização da bibliografia (que abrange Os defeitos do ''pior dos governos'' foram eclipsados pelos de
todos os ensaios e foi colocada no final do volume para facili- todos os outros reunidos. Pol Pot e o Gulag, tanto quanto Pi-
tar a consulta). Rosemeire Retzer desincumbiu-se da datilo-
grafia com a competênciae dedicação que Ihe são habituais.
Bolivar Lamounier (+) Alain Rouquié é professor e pesquisador da Fondation Nationale
sco Parto, novembro de 1984 des Sciences Politiques, Paras.
10 INTRODUÇÃO GERAL: QUERER A DEMOCRACIA
nochete Videla, contribuírampara reabilitara velhariae as
apalpadelas da ordem poliárquica. Mas se, de Santiago a Var-
sóviae de Andara a Kinshasa, os povos, cansadosdos salva-
dores de farda e dos dias seguintesque cantam, aspiram às
modestas liberdades do pluralismo real, nossa reflexão sobre o
funcionamento dos regimes democráticos não está de maneira
alguma à altura do tema. Na Europa não se coloca a questão.
Por exemplo,na França a única preocupaçãodiz respeitoà
expressão democrática, forças e comportamentos, como se o
ar que respiramos fosse natural. E verdade que, como escrevia
bem a propósito Stein Rokkan, a política comparada é uma
disciplina desequilibrada: ''Nos estados ocidentais economi-
camente avançados e constituídos de antiga data, possuímos
uma enorme quantidade de dados empíricos, mas apenas pou-
cos esforços esporádicos foram feitos no domínio teórico, en-
quanto que nos estados mais recentes e menos avançados da
América Latina, da Ãsia ou da Ãfrica, hâ uma pletora de de-
clarações ou de sugestõesteóricas, mas uma quantidade muito
menor de informações empíricas controladas'' (Rokkan, 1975,
562)
Seja lá como for, se existem muitas formas de se falar da
democracia, pode-se dizer que na Europa, e em particular na
França, o interessedireto por ela só se manifestaquando se
trata de assinalar seus limites ou seu caráter alienante e ilusó-
rio (Kolm, 1981, Pozzvolrs,1978), para opor o sistema repre-
sentativo à ''verdadeira'' democracia, vivida e autogerida pe-
los cidadãos (Braud, 1980, Mac Pherson, 1977), para analisar
a compatibilidade entre o socialismo e as liberdades democrá-
ticas, ou confrontar a lógica representativa e a lógica dos regi-
mes leninistas (Lefort, 1981), ou, ainda, para advertir as ''de-
mocracias industriais'' contra a tentação totalitária que leva
às ''democracias populares'' (Revel, 1983). Já nas zonas peri-
féricas do Ocidente capitalista, onde frequentemente a demo-
cracia conjuga-seno passado, o que esta na ordem do dia é a
saída das ditaduras, e a reflexão ou a pesquisa, quando po-
dem se exprimir, esposam com muita freqüência contornos
táticos. A transição para a democracia ocupa a frente da cena,
e diante da urgência do problema a procura das vias e meios,
quando não das receitas, marginaliza as reflexões políticas em
prol de visões normativas.
Quanto a este livro, ele trata da análise comparativa das
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 11
distorções e das continuidades de funcionamento dos sistemas
representativos pluralistas em contextos sócio-políticos que
são essencialmenteos da Argentina, do Brasii e da França.
Essa escolha que pode parecer artificial, ou mesmo arbitrária,
não é fruto do acaso. Constitui o resultadode uma decisão
metodológica e de uma aventura coletiva. Por certo, o redator
destas linhas tem sua responsabilidade nesta aproximação.
Francês embebido de Argentina e iniciado no Brasil, tem uma
certa fraqueza pelas reflexõestriangulares, mas seus colegas
argentinos ou brasileiros não deixam por menos: atentos à
vida política europeia, convencidos de que o que se passava na
França podia ter repercussõesem seus próprios países, como
algunsdeles de fato mostraram (Trindade, 1982a), são da-
quelesque ao invés de recusar o ''olhar à distância'' sobre sua
própria realidade nacional, convocam-no com franqueza sob
a condição de reciprocidade que ninguém cogitarâ negar-lhes.
Enfim, o que se quer dizer é que o estudo em profundidade
destes três casos visa esclarecer empiricamente nosso conheci-
mento das condições de reprodução dos sistemas representa-
tivos, através da projeção do foco sobre as particularidades
dessestrês objetos políticos bem identificados, graças a uma
perspectiva comparativa ampliada. Haverá quem se surpreen-
da com o caráter propositadamente limitado da comparação,
bem como com sua aparenteheterogeneidade.Por que não
uma ''democracia'' por continente, respeitando a simetria?
Por que afastar a primeira ]Uafer .Par/íamenlomm como pon-
to de referência, ou não incluir a Espanha recentementede-
mocratizada, modelo possível das liberações de além-Atlân-
tico? Simplesmenteporque este livro não é uma justaposição
de textos de encomenda. Assim como ele trata de um objeto
construído, tem sua vida própria nascida da longa familiari-
dade existente entre os autores, tecida de discussões múltiplas
e de valores comuns. Porque são preocupações intelectuais co-
muns que reuniram nesta empresa pesquisadores de horizon-
tes geográficos diversos mas de sensibilidade convergente. Pri-
meiramente uma certa concepção da política comparada, que
não exclui a análise aprofundada de uma realidade singular e
não sê resume à colheita de dados de segunda mão. O compa-
ratismo esta no enfoque, na maneira de colocar os problemas,
mais do que nos objetos estudados. Mas também porque os
autores se interrogam sobre um modo de ordenação política,
12 INTRODUÇÃO GERAL: QUERER A DEMOCRACIA
que estudam como ''analistas comprometidos'' e no qual
crêem. E compreensível, nestas condições, que não nos permi-
tíssemos uma volta ao mundo.
O fato de a América Latina ter maior espaço no livro não
quer dizer que a obra seja de e para especialistas desta região,
e muito menos que seja uma série de estudos sobre as dificul-
dades de implantação da democracia no Terceiro Mundo. O
caso francês esta aí justamente para desengastar a América
Latina, subtrai-la da rigidez conceptualdo ''Terceiro Mundo'',
sem retirar dos países estudados, como verá o leitor, sua per-
sonalidadepolíticae social. Quer dizer, recusar as interpre-
tações culturalistas para inscrever a abordagem das realidades
destecontinente em uma problemática global, ou mesmo uni-
versal. Quanto ao caso francês, a proximidade da Argentina e
do Brasil impunha o enfoque de um olhar novo, distanciado
do hexágono'kpolítico. Exótico, dirão talvez alguns; forma
justa de reciprocidade.
A razão comparativa
Com que então, objetar-se-á, comparais o Brasi], ainda
ontem escravista, à pátria dos direitos do homem, uma das
mais velhas democracias européias com um país novo, de ori-
gem.emigratória?Que hâ em comum entre uma grande nação
tropical e multiétnica e a doce pátria de Descartes, ou, ainda,
entre nações em via de desenvolvimento e a França pós-indus-
trial? A menos que vos submetais ao encanto da teoria da
modernização e que tenteis estabelecer um paralelo entre o
avanço económico e o desenvolvimento político. A França se-
ria, para nós, o coroamentode uma evoluçãoprevisível, o mo-
delo político acabado e perseguido? Ou acaso diríeis que a
França se ''latino-americaniza''? Não se diga que a república
esta em perigo só porque alguns contestadores tomam a liber-
dade, depois de maio de 1968, de manifestar intenções aven-
tureiras, deixando entrever uma impaciência culpada na busca
pelo poder, ou porque membros da atual oposição não se mos-
(+) Hexágono: metáfora com que os franceses designam a França continental
em razão de sua comia. (N. T.)
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 13
tram convencidos da legitimidade e mesmo da necessidade de
que haja oposição.E, por outro lado, permanecendono do-
mínio político, que interesse há em aproximar uma democra-
cia ''de origem'', que certamente teve suas vicissitudes histó-
ricas, mas que hoje chegou à maturidade, com países em que
o regime democrático importado, mimético e portanto artifi-
cial não pode ser senão frágil?
Poder-se-ia responder a estas objeções com um bom-senso
condescendente, simplesmente citando autoridades ''científi-
cas''. Alguns politólogosnorte-americanos,e não dos meno-
res, não classificam a Argentina, o Brasil e a França no mesmo
purgatóriodas ''democraciasinstáveis''(Lipset, 1959)?Mais
ainda: autores franceses respeitáveis não hesitam em conside-
rar que nosso país padece de um mal pernicioso, que os fran-
cesessão ingovernáveise até que a França é uma ''grande
doente'', frequentementeabúlica e dividida porque ela não
soube ''alçar vâo com as sociedades reformadas'' como os paí-
ses anglo-saxões ou escandinavos (Peyreffite, 1976)? E por-
tanto, como crê Alain Peyreffite, porque o ''mundo girou em
torno da praça Navone'' no momento da reforma e da contra-
reforma, que a França católica e latina ficou do lado ruim,
isto é, do lado das sociedades hierárquicas e administrativas
do Sul. Reconhecem-seaí argumentosque foram muito úteis
no século passado, aos quais um l)emolins ou um Charles
Moune (1899) haviam dado, como se diz, seus títulos de no-
breza, e que durante muito tempo alimentaram a anglofilia
latino-americana e o desprezo pelos latinos. Mesmo estas in-
terpretações psicoculturais e essencialistas, que só encontram
rivais nas teorias tropicalistas da degenerescência do homem
brasileiro, ou naquelas dos neopositivistasque atribuem à
mestiçagem americana as inconveniências das repúblicas me-
ridionais (Bunge, 1903;Holanda, 1956), não são desprovidas
de base fatual em seu ponto de partida político. A França
continua sendo uma grande consumidora de constituições. De-
zasseis regimes sucederam-se desde a monarquia, e todos, até
aqui, morreram de morte violenta. Isto não a habilita para
uma patente de instabilidade?
Estamos, portanto, diante de três nações (majoritaria-
mente) católicas, de cultura e de língua latina, e marcadas por
distintas modalidades de instabilidade política. Longe de nós
a idéia de que este último traço se explique pelos primeiros.
 14 INTRODUÇÃO GERAL: QUERER A DEMOCRACIA
Entretanto, talvez a aproximação não soja tão artificial quanto
parecia à primeira vista. A presença de um quadro normativo
comum aos três países selecionados dá à comparação uma di-
mensão experimental na qual os desníveis sócio-económicos
podemjustamente desempenhara função de reveladores. Se
nos atamos ao domínio político, justamente o principal inte-
resse deste livro, apercebemo-nos por outro lado da existência
de afinidades binárias para as quais a França serve de eixo ou
de referência.Assim, o Brasil e a França são naçõesconsti-
tuídas por um Estado forte e por uma sociedadecivil fraca. O
fato é bem conhecidona França desdeTocqueville, enquanto
que, no Brasíl, as análises de Faoro (1958) a respeito parecem
amplamenteaceitas. Na Argentina, ao contrário, o caráter
tardio da formação do Estado permaneceu solidário de uma
grande vitalidade associativa e de uma estruturação particu-
larmente robusta dos grupos dirigentes. Da mesma maneira,
poder-se-ia pâr frente a frente as respectivas culturas políti-
cas. Veríamos então que Argentina e França participam de
certas características comuns. A esse respeito, como notou
com propriedade um sociólogo franco-brasileiro, a cultura
política brasileira mostra-se tão unificada quanto se mostram
divididasas da França e da Argentina. De fato, nestesdois
países coexistem dificilmente duas tradições culturais antagó-
nicas, cada uma das quais abarcando, quase que totalmente,
certas domínios da vida (religioso, étnico, político). Nas mar-
gens do rio da Prata persiste sempre a oposição ''Civilização
X Barbárie'', como na época de Sarmiento, o mesmo ocor-
rendo entre o ''Espírito de Joana d'Arc'' e o de ''Voltaire''
margens do Seno. Poderíamos acrescentar a isto que a França
e a Argentina possuemtambém em comum a obsessãopelo
passado, nisto diferindo outra vez dos brasileiros, que se sur-
preendem com o fato de que seus vizinhos do Sul ainda se
batem a favor ou contra Rosas, govemador da Província de
Buenos Abres que reinou sobre o Pampa de 1830 a 18S2. O
que diriam então das lutas políticas francesas em torno da
Revolução de 1789e de seus heróis (Furet, 1979; Helvig, 1983)
quase dois séculos depois do acontecimento?
Como se vê, estamos aqui em meio a um terreno conhe-
cido e a heterogeneidadesocial não impede que se constitua
mçtodologicamente um espaço homogêneo de problemáticas
= políticas. Recusar essa possibilidade equivale a crer que possa
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 15
existir em política um progresso paralelo ao crescimento das
indústrias ou ao desenvolvimentodas sociedades. O que não
passa de ilusão, gratificante talvez, mas falaciosa para muitos
bons espíritos (Debray, 1982).
Desvio americano e coi\juntura política
O interesse de nosso trabalho parece-nos provir também
do momento político especial que vivem hoje os três países:
construção ou reconstrução da democracia nos casos da Ar-
gentina e do Brasil, aprendizado da alternância entre duas
coalizõesmuito polarizadas no caso francês. Passagensprivi-
legiadas (e dramatizadas) onde surgem as distorções e os me-
canismos do desenvolvimento dos sistemas representativos .
O Brasil conhece há vinte anos um regime forte, nascido
de um golpe de Estado onde o poder autoritário instituciona-
lizou-se mantendo uma rotação presidencial rigorosa e uma
vida parlamentar mínima. Desde 1974 a liberalizaçãovem
transcorrendo sob o controle dos militares. A abertura desen-
volveu-secomo fora programada pelos mais lúcidos respon-
sáveis pelo ''sistema". Em novembro de 1982 os governadores
dos estados foram eleitos pelo sufrágio universal direto, como
também o foram os deputados e os senadores. Mas os milita-
res parecem recuar diante do último obstáculo, a eleição pre-
sidencial, não abrindo mão da escolha do próximo titular da
magistratura suprema. De fato, uma vez estabelecidaa elei-
nas ção presidencial por sufrágio universal, o autoritarismo será
coisa do passado e os militares deverão retornar aos quartéis.
Na Argentina, o retornodos civis ao poder não foi nem
controlado nem outorgado: o regime militar estabelecido em
1976 desabou em consequência de uma série de desastres. A
derrota na acabrunhante epopeia do Atlântico sul desferiu-lhe
um golpe mortal que, entretanto, não foi o único. O escrutínio
de outubro de 1983deu a vitória a um candidato de centro-
esquerda frente ao invencível peronismo. Mas a democracia
não se resume às eleições, e o país, com seus milhares de ''de-
saparecidos'' e sua inflação de três dígitos, precisa ser recons-
truído.
Na França o difícil aprendizado da mudança de maioria,
após vintee três anos de hegemoniada direita, fez surgir as
16 INTRODUÇÃOGERAL: QUERER A DEMOCRACIA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 17
P

rachaduras do consenso republicano. O sistema da V Repú- outras) é concebida globalmentecomo produção social, de-
blica acabou por gratificamos contestadores mais extremados, pendente da vontade dos atores ou de alguns deles. Porque a
aqui e ali manifestaram-se certas tentações facciosas traduzi- democracia não é nem acidente nem predestinação, ainda que
das por diferençasde linguagensinéditas.Mas, ao mesmo a parte da fortuna não possa ser descartado, este livro sobre as
tempo, pode-se pensar que, talvez pela primeira vez desde a dificuldades de construir e de reproduzir os sistemas represen-
Revolução de 1789, o país em sua totalidade aceita como legí- tativos pluralistas desemboca em uma manifestação de oti-
timo o quadro institucional existente. Em suma: um período- mismo prudente em favor da capacidade dos povos ao auto-
dobradiça. governo.
Nestes contextos politicamente preciosos e expressivos,
nosso prqeto de comparação global, mesmo implícito, apre-
senta-se como umlogo de esse/hos que aumenta ou deforma
certos traços, destaca as especificidades, desmascara aparên-
cias significativas. Em nenhum momento os autores tentaram
assimilar, confundir ou enquadrar experiênciassingularesno
leito de Procusto de uma grade única e rígida. Sua abordagem
é empíricae seu enfoquetão-somente
comparativo.Deste
modo a América Latina deixa de ser uma realidade longín-
qua, e a França uma presença cotidiana, um dado apreendido /

sem recuo, para o leitor francês e vice-versa. Por que não co-
locar questões latino-americanas à política francesa e subme-
ter a Argentina e o Brasil a interrogaçõesfrancesas? Este livro
tambémfala da França pelo desvioamericano, da mesma
forma que explora os sistemas políticos argentinos ou brasi-
leiros através de uma incursão no Velho Mundo. Não era, afi-
nal, de seu próprio país que Tocquevillefalava em sua Z)emo-
b

cracfa na ,4méríca?
Recusando as interpretações deterministas de uma pseu-
do ''incapacidade democrática'' que afetaria as nações latino-
americanas por causa de sua situação geopolítica, de seu nível
de desenvolvimento ou de sua configuração social, e evocando
os segmentosde rachadura ou as fendas mal conhecidasdo
edifício democrático francês, provocados tanto pelas cristali-
zações bipolares de hoje quanto pelos conflitos do passado, os
autores deste livro não defendem uma tese. Mesmo porque as
contribuições provêm de diferentes disciplinas: juristas, poli-
tólogos, historiadores e economistas permaneceram fiéis a si
mesmos. Não obstante, como o leitor poderá perceber, um fio
condutor percorre o conjunto das contribuições, salienta-se
nas diferentes conclusõesparciais. Ele se identifica na prima-
zia do indeterminado e das práticas políticas sobre as supos- b

tas condições objetivas e instituintes. A democracia (entre

r
8

O mistério democrático:
Das condições da democracia
às democracias sem condições
.4/afaz Rouqzzlé

'A organização e o estabelecimento da democracia

(...) constituem o grande problema político de nosso
tempo.
Tocqueville, l)e la Z)émocraffe en .4mérfque

1..Js sistemas políticos ditos ''representativos pluralistas''

são considerados ora como o soberano bem político e o ponto
culminante de toda evolução, por seus partidários, ora como
um simples acidente feliz, cuja universalidade seria pratica-
mente impossível. Alguns não hesitam em pensar que, em vir-
tude da fraca difusão geográfica das formas estáveis da demo-
cracia, esta constitui um privilégio setentrional e industrial, e
até mesmo que ela apresenta afinidades inegáveis com a ética
protestantedo ''livre exame". Lipset vai ainda mais longeno
particularismo, ao descobrir dez monarquias entre as doze
democracias estáveis com as quais contam a Europa e os paí-
ses de língua inglesa (Lipset: 1959). Não se poderia salientar
melhor a excepcionalidade do fenómeno democrático.
Na verdade, talvez se trate de uma forma totalmenteex-
cepcional e por assim dizer inesperada de regulação política.
Caso contrário, como explicar a autoridade magica das urnas,
20 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
o poder como função e não como propriedade, os riscos e os
desafios da alternância dos homens e dos partidos no governo?
São alguns elementos que configuram um autêntico ''mistério
democrático'', à primeira vista insondável, exceto para alguns
partidários de um determinismo unilinear estrito. De fato, um
número sem dúvida excessivo de parâmetros entra em jogo
para que se possam discernir facilmente as condições próprias
à eclosão desta planta rara. Por isso, na maioria das vezeses-
condemos nossa ignorância atrás de indefiníveis noções de
''espírito público", de "cultura política'' ou de ''código cultu-
ral'', que seriam ou não favoráveis ao funcionamento dos sis-
temas democráticos. É por esta razão que, antes de analisar
empiricamente casos concretos de instabilidade ou de repro-
dução difícil de regimes representativos, pareceu-nos útil fazer
um inventário, menos de nossos conhecimentos do que da in-
suficiência deles, com relação às condições propícias ao apa-
recimento e à conservação das democracias, para, em seguida,
explorar igualmente em sua especificidade as democracias re-
conhecidas que não correspondem a essas determinações ca-
nónicas.
A 6íeF8da confusão democrática99:
problemas e definições
Atualmente sacraliza-se a democracia. Tirante algumas
exceções arcaicas, todos os regimes são ''democráticos'', pois
falam em nome da soberania do povo e assim se inscrevem na
definiçãojeffersoniana do govemo do povo pelo povo. E ver-
dade que todos os autores, depois de Rousseau, expresssam
dúvidas sobre a possibilidade do autogoverno do povo e da
''democracia governante'' (Burdeau). ''Se houvesse um povo
de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo
perfeito não convém aos homens...". ''Se tomarmos o termo
no rigor de sua acepção, nunca existiu uma verdadeira demo-
cracia. . .'', nos diz Jean-Jacques no Contrato .Sacia/ (livro lll,
capítulo IV), considerando os obstáculos inerentes a esta
forma direta de governo. Por isso, uma vez que o povo é sobe-
rano mas não pode exercer por si mesmo esta faculdade, ele
deve delega-la a seus representantes. A democracia é, pois, o
governofundado no consentimentoda maioria, à condição de
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 21
que este não seja extorquido ou forçado em consequência da
ausência de escolha (Crick: 1968, 7). O sistema representativo
implica um certo número de exigências significativas de uma
participação ampliada e livre, que o tornam autenticamente
pluralista: acessonão discriminatórioà cidadania, competi-
ção eleitoral aberta, apuração honesta do escrutínio, possibili-
dade de mudança pacífica dos partidos no poder (Rustow:
1967)
Mais abrangente e mais operatória que qualquer outra
parece-nos ser a definição schumpeteriana da ''democracia-
procedimento'': tal método permite, segundo regras definidas
(e pacíficas), ''aceitar ou recusar os homenschamados a go-
vernar'' (Schumpeter: 1965,368). Esta definiçãoé em parte
retomadae completadapor Sartori(1973, 57), quando escreve
que ''a democracia consiste, pois, no sistema político no qual
o povo exerce poder suficiente para ser capaz de mudar os di-
rigentes, mas não o bastante para se governar ele próprio'',
ou, em outras palavras, um ''sistema no qual é a maioria que
designa e que apoia a minoria que governa'' (/dem , 17). Evi-
dentemente, isto pressupõe um certo número de exigências
que permitem pâr em funcionamento esses procedimentos, a
saber, o respeito dos direitos cívicos e das liberdades sem as
quais qualquer mudança dos governantesé impossível e a al-
ternância pacífica dos partidos no poder se torna um objetivo
inacessível. Nem por isso se quer dizer que somente a alter-
nância constitui a pedra de toque da democracia: quando as
condiçõesque Ihe são propícias se acham reunidas, a manu-
tenção de um mesmo partido no poder por um longo período,
conforme demonstra o caso da ltália republicana, não é con-
traditória com a definição.
Na era da autogestãoe do leninismo,são conhecidasas
críticas, que se tornaram clássicas, contra esta concepção
''constitucional-pluralista'' da democracia. Ã sua dimensão li-
beral, opõe-se o conteúdo social de um regime justo fundado
na soberania do povo. Denunciam-se as ''liberdades formais''
em nome das ''liberdades reais''. Questiona-se o caráter de-
mocrático do regime representativo, que constituiria, para al-
guns, uma simples ficção jurídica, e mesmo um engodo, em
decorrência da confiscação do poder em benefício exclusivo
dos eleitos e da classe política (Turpin: 1978). Deplora-se
igualmenteo caráter lúdico e a ''racionalidadepacificadora''
22 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
do sufrágio universal, que conforta o sfafu que e mistifica os
eleitores, cujos interesses e antagonismos profundos ele é in-
capaz de refletir (Braud: 1980).
Os epígonosde Lenin não se cansam de apresentar este
tipo de governo como a forma acabada da dominação bur-
guesa, referindo-se, para isso, a algumas reflexões críticas de
Marx sobre ''a abstração representativa'' que implica a sepa-
ração entre a esfera política e a esfera da existência privada,
isto é, a ficção da igualdade dos direitos (políticos) de cida-
dãos desiguais em uma sociedade dividida em classes (cf. a
discussão do pensamento marxista em Bergounioux e Manin:
1979, 31-38). Mas eles esquecem, sem dúvida por razões im-
puras e táticas, as análises empíricas do mesmo Mam sobre os
perigos do sufrágio universal para a hegemonia da burguesia e
sobre o caráter virtualmente emancipador do voto para as clas-
ses dominadas. A idéia da função não conservadora da demo-
cracia é várias vezes salientada em textos clássicos consagra-
dos às crises políticas francesas após a revolução de 1848. Em
O Z)ezoífo Brumárío (1969, 5) Mam escreve explicitamente:
De modo geral, a república não é mais do que a forma de
transformação da sociedadeburguesa e não sua forma de con-
servação, como ocorre por exemplo nos Estados Unidos da
América...''. Em ,4s .Lzzfasde Classesna Franca (1967, 83), a
propósito da constituição republicana, escreve: ''A vasta con-
tradição desta constituição consiste nisso: as classes cuja es-
cravidão social deve perpetuar, proletariado, camponeses, pe-
queno-burgueses, são, através dela, dotados da posse do po-
der político por meio do sufrágio universal. E à classe cujo
antigo poder social sanciona, a burguesia, ela retira as garan-
tias políticas desse poder. Ela encerra sua dominação política
em condições democráticas que ajudam a cada instante as
classesinimigas a conquistar a vitória, e que colocam em ques-
tão os próprios fundamentos da sociedadeburguesa''.
Estas análises, nos antípodas da vulgata marxista que vi-
lipendiaa ''democraciaformal'' e ''burguesa'' e a armadilha
das eleições,têm a particularidade de não confundir libera-
lismo e democracia, como fazem com tanta freqüêhcia os crí-
ticos dos sistemas representativos. Ela aponta para dois fatos
interessantes para o nosso propósito: por um lado, que a bur-
guesia é naturalmente censitária e, assim, tenta apropriar-se,
limitando-a,da idéia da democracia,e, por outro lado, que a
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 23
capacidade transformadora do sufrágio universal não contra-
balanceado implica a instabilidade universal dos regimes de-
mocráticos (Przeworski: 1981). Diante do crescimento das
ameaças, isto é, das forças de mudanças ou dos grupos polí-
ticos representantes das classes dominadas, permitido pelo su-
frágiouniversal,os conservadores, o partido da ordem, gri-
tariam, como Odilon Barrot, tão frequentementecitado por
Engels, ''a legalidade nos mata'', e estariam dispostos a ''rom-
per esta legalidade que se tornou para eles tão fatal" (Engels:
1967,34). Não seria a história da Argentina ou do Brasil que
desmentida esta afirmação.
Não se pode estar seguro de que a instabilidade esteja
inscrita na própria definição do sistema representativo nos
países capitalistas, mas o que é certo é que as críticas desmis-
tificadoras dos sistemas representativos colocam antes o pro-
blema de suas condições de existência e de funcionamento
mais do que o denunciam. Assim, a hipocrisia aparente que
consiste em contar como unidades iguais os votos de cidadãos
desiguaisé o próprio preço da democracia. Na verdade, esta
consiste em formalizar, transpondo-os para lugares próprios e
simbólicos, os enfrentamentos da sociedade. Ela é simulta-
neamente constituição de uma ''cena de conflitualidade'' e um
''sistema de pacificação'' (Gauchet: 1980, 64): nela se fala de
conflitos e com eles se joga. A violência simbólica dos embates
oratórios substitui as lutas civis. A codificação dos combates
políticosé o próprio fundamento de um sistema de ''reconci-
liação das dissensões'' (Rustow: 1967, 234) que funciona à
base do compromisso. Na verdade, mesmo a democracia mais
transparente exprime os antagonismos de classe para evitar
que eles se realizem na violência nua. E evidente que os regi-
mes ''constitucionais-pluralistas'' estão longe de corresponder
a um estado de natureza; são totalmente ''artificiais'' e mani-
festam um grau elevado de criatividade e de elaboração no
domínio da ''institucionalização das praticas e dos procedi-
mentos'' políticos (Huntington: 1968).
Os teóricos da ''poliarquia'', outro nome dado ao mesmo
tipo de sistema (Dahl: 1971), insistem nas exigências desse
modelo político: a pequena monta daquilo que se põe em jogo
é a sua primeira condição, não devendo as consultas eleitorais
pâr em ''causa o conjunto das relaçõessociais'' (Bourricaud:
1970). Para isso, convém que não haja superposição absoluta
24 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
dos conflitos políticos e das clivagens sociais. A limitação dos
conflitos, a moderação das escolhas possíveis asseguram a au-
tonomia da ''instância política com relação à sociedade civil''
que é a essência mesma da ''operação representativa'' (Gau-
chet: 1980,65). Estas poliarquias são, pois, ''espaços do com-
promisso'' de grande fragilidade, onde os diferentes atores
devem conhecer e respeitar as regras do jogo, sabendo perfei-
tamente até onde podem ir. Elas representam uma tentativa
de ''resolver o problema fundamental do ajustamento da or-
dem à diversidade através da conciliação dos diferentes inte-
resses'' (Crick: 1968, 8). A flexibilidade deste tipo de sistema
permite a mudança social, mas através de um método gradua-
lista ou ''incremental'', que não pode proceder senão através
de correçõesrelativamentefracas e de maneira quase insen-
sível
V
As condições da democracia
Por que uma sociedade aceita o risco da democracia e se
apega a esta escolha? E por risco entendemos o das desconti-
nuidades políticas provocadas pelas mudanças programadas
de governantese também, naturalmente, a possibilidade de
subversão legal da ordem que este procedimento acarreta.
Quer se trate da subversão das maiorias ocasionais, quer da-
quela que provém das demandas ''revolucionárias'' das clas-
ses perigosas ou, ainda, das tentações restauradoras dos par-
tidários de uma ordem anterior. E por esta razão, alias, que os
liberais no século XIX, na maioria dos países da Europa, de-
fenderam, contra os conservadores tanto quanto contra os de-
mocratas radicais, o regime ce/zslfárlomais ou menosjustifi-
cado pelo princípio capacitârio, porque temiam ''as possibili-
dades de manipulação eleitoral se o sufrágio fosse estendido
aos cidadãos que não gozavam da independência económica'
(Bendix: 1977,117).
Esta questão não se reduz de modo algum à descrição das
diferentes ''vias'' de acesso ao regime democrático. Quer se
trate das democracias fundadoras do centro, quer de demo-
cracias importadas e miméticas da periferia, em suas diferen-
tes versões, o princípio permanece o mesmo. E por isso que,
de modo geral, todas as disciplinas foram solicitadas a trazer
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 25
sua contribuição para responder a esta questão, da economia
à antropologia, passando pela psicologia e a história. Em ou-
tras palavras, indagou-se se a democracia seria um acidente
histórico, sociológico,antropológicoe qual seria o fatos deci-
sivo nesse sentido. De fato, um regime político é o reflexo de
todo um conjunto de condições, e o famoso e tão frequente-
mente invocado ''código cultural'' não é sem dúvida outra
coisa senão o condensado dessas múltiplas determinações. Ê
evidentepara nós que podem existir coincidênciase mesmo
correlações entre um sistema político e uma série de variáveis,
mas que a pertinência de uma relação de causalidade estrita é
mais que duvidosa. Assim, é em nome de um certo probabi-
lismo e não enquanto devoto do determinismo que vamos evo-
car algumas hipóteses.
(Jm luxo de países ricos?
É tentador assimilar atualmentedemocracia e prosperi-
dade porque a área dos regimes representativos pluralistas es-
táveis recobre a dos países capitalistas ocidentais avançados.
De fato, parece evidente que o nível de industrialização, de
desenvolvimento urbano e de educação são mais elevados nos
países de regime democrático, e que uma situação de um certo
conforto generalizado, ao enfraquecer as tensões sociais, per-
mite o enraizamento deste tipo de regulação delicada(Lipset:
1959). Tocqueville notava que ''o bem-estar geral favorece a
estabilidade de todos os govemos mas particularmente do go-
verno democrático... Quando o povo governa, é necessário
que ele seja feliz para que não abalo o Estado'' (Tocqueville:
1981, 1-382).
Por isso foi possívelindagar se a democracianão seria
privilégiodo capitalismo maduro, cujo caráter auto-regulado
seria o único a permitir a autonomia do político. Ao contrario,
nas formas sociais capitalistas, onde ''o sistema de proprie-
dade é ao mesmo tempo um sistema direto de dominação e de
servidão... e nos quais somente à coerção extra-económica
pode extorquir um sobretrabalho por conta do proprietário''
(Mam: 1963, 1399), e onde, em outras palavras, ''o meca-
nismo de extração dos excedentes funciona pela fusão entre a
exploração económica e a coerção político-jurídica" (Ander-
26 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
son: 1978,1, 20), existiriaum obstáculodificilmentesuperâ-
vel para permitir o funcionamento do sistema representativo.
Se, de fato, a democracia é de algum modo uma ''extensão do
racionalismo do mercado'' (Apter: 1966, 26), haveria uma re-
lação necessária entre o mercado político da competição plu-
ralista e o mercado económico do capitalismo maduro. Certa-
mente não há dúvida de que a mobilidade dos fatores, a exis-
tência do assalariamento, o desaparecimento das relações de
dependência e sua substituição por relações contratuais facili-
tam os procedimentos de conciliação e a aceitação do princí-
pio de maioria. A dimensão social do capitalismo talvez se
encaminhe no sentido da construção democrática. Mas tere-
mos realmente certeza quanto às relações entre a causa e o
efeito? Tocqueville consagrou um capítulo às relações entre
senhorese serviçaisnas sociedadesaristocráticase nos Esta-
dos Unidos; a passagemda ''qualidade'' e do ''estatuto'' ao
contrato pareceu-lhe um fenómeno essencial mas, para ele, é
porque a sociedade é democrática que se criam relações con-
tratuais entre cidadãos e homens iguais (Tocqueville: 1981, 11,
226), e não o contrario. Vêem-se assim os limites desta deter-
minação.
Além do mais, não se pode assimilar a democracia uni-
camente ao capitalismo avançado. Deixemos de lado Atenas e
a democracia grega original, que não se compreende sem a
uiistência dos escravos. Mas a experiência dos Estados Uni-
dos no século XIX constitui, desde Tocqueville, um modelo de
referência. Seria, neste caso, a abundância primitiva de terras
cultiváveis que teria permitido o nascimento de uma sociedade
democrática e do regime representativo? O próprio Tocque-
ville assinala estas ''causas acidentais ou providenciais que
contribuem para a manutenção da república democrática nos
EstadosUnidos'': ''Foi o próprio Deus'', escreveele, ''que,
entregando-lhes um continente sem limites, conferiu-lhes os
meios de permanecerem por muito tempo iguais e livres''
(1981, 11, 382). A mobilidade horizontal e o espírito pioneiro,
ao fomentar a mobilidade vertical, teriam limitado os enfren-
tamentos de classes tanto quanto a rigidez das posições de sla-
ftzs. Sabemos como Tumor teoriza as virtudes da/ronfelra, e o
papel da facilidade do acesso às terras livres do Oeste na cons-
tituição da democracia americana (Tumer: 1921, 320; Potter:
lqhhl
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 27
Não deixa de ser interessante examinar comparativa-
menteo papel do espaçoaberto em um país onde a democra-
cia conheceu dificuldades de implementação como o Brasil.
Quanto ao ensaísta Vianna Moog, considera que aquilo que
denomina ''a imaturidade brasileira'' se deve ao desejo de en-
riquecimento rápido dos colonos portugueses e de seus des-
cendentes, oposto ao lento processo de conquista da terra do
pioneiro norte-americano: o bandeirante, caçador de escravo
ou de diamantes, é, segundo ele, um conquistador que obe-
dece a um chefe de bando, não um trabalhador individualista
e parcimonioso(1963, 100-200).Melhor ainda, em,4 .A/arcar
para o Oeste, Cassiano Ricardo, um dos ideólogosdo Estado
Novo de Vargas (1942), pretende mesmo que a ''fronteira'',
em sua versão brasileira, esta na origem do autoritarismo na-
cional e constitui o molde do ''governo forte e autocrático'': a
''democraciahierárquica'' da bandeiraseria a matriz primi-
tiva dos desdobramentos políticos contemporâneos. Assim, o
espaço aberto não leva necessariamente à democracia. Refle-
tindo sobre Turner e Ricardo (1976), Velho sublinha as dife-
renças de apropriação do espaço brasileiro e da ''fronteira''
norte-americana. Para além da igual abundância das terras,
as consequências políticas provêm do contraste entre um sis-
tema fundado no trabalho livre e outro que se baseia na ''re-
pressãoda força de trabalho'', entre uma colónia de povoa-
mentoe uma colónia de exploração.Não se poderia refutar
melhora ideia das causas físicas da democracia. E mais uma
vez é grande a tentação de citar Tocqueville, visto que o para-
lelo entre os Estados Unidos e as ''desditas'' da América do
Sul se encontra já em seus escritos, quando afirma: ''Em que
parte do mundo se encontram desertosmais férteis, maiores
rios, riquezas mais intactas e inesgotáveisdo que na América
do Sul? No entanto a América do Sul não pode suportar a
democracia...'' (1967, 1, 414). A riqueza desempenha por-
tanto apenas um pequeno papel na eclosão e sobrevivência das
instituições representativas.
Sociedades democráticas e regimes representativos
Existiriam sociedadesautoritárias que constituemum
obstáculo à democracia e, ao contrário, sociedades mais aptas
28 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
a esta forma de regulação política? Se a riqueza física de um
país não é um fatos determinante da possibilidade de instau-
rar mecanismos representativos, a distribuição mais ou menos
equitável desta riqueza não terá uma influência decisiva? Toc-
queville considerava antes de tudo a democracia como um
''estado de sociedade'' caracterizado pela igualdade das con-
dições. É possível indagar se a tendência para o ''desenvolvi-
mento gradual da igualdade de condições'' constitui um dos
pressupostos sociais para o funcionamento dos regimes repre-
sentativos.Com relação a esteponto, a experiênciaeuropeia
se inscreveria antes de modo negativo nessa hipótese. À dife-
rença do ''laboratório americano onde a sociedade esta em
coincidência com o princípio democrático'' e onde os cidadãos
nasceram iguais em vez de se tornarem iguais, as democracias
do Velho Mundo se estabeleceram em sociedades não-iguali-
tárias e hierárquicas, para cuja transformação vieram a con-
tribuir. O que Tocqueville não percebeu, como assinala justa-
mente Marcel Gauchet (1980, 45), é ''o sentido das transfor-
mações conflituais do velho universo da unidade orgânica hie-
rárquica e o trabalho penoso de ajustamento dos princípios ao
funcionamento efetivo de uma sociedade de feitio desespera-
damente rebelde, a partir dos quais se formou a democracia,
uma outra democracia, deste lado do Atlântico".
Sem dúvida, poder-se-á objetar que a difusão da proprie-
daiie pode criar situações mais favoráveis aos sistemas repre-
sentativos. A autonomia individual do ''campesinato parce-
lar'' teria assim tido uma influência decisiva na França para o
enraizamentoda ''repúblicano vilarejo'', de que, alias, dão
testemunho as diferenças de comportamento assinaladas por
Siegfried entre as zonas de grandes propriedades e as de pe-
quena produção (Siegfried: 1913). Mas a Inglaterra, ''mãe dos
parlamentos'', se caracteriza pela quase ausência desse pe-
queno campesinato desde os erzc/oszzres(''cercamentos'') tanto
quanto pelo peso essencial da aristocracia fundiária na edifi-
cação do regime representativo. Tocqueville considerava que
''o voto universal seria menos perigoso na França que na In-
glaterra, onde quase toda a propriedade suscetível de taxação
se encontra reunida em algumas mãos'' (1981, 1, 301).
Se a igualdade das condições não constitui um pressu-
posto nas ''democracias não tocquevilleanas'' dos regimes re-
presentativosestáveis da Europa Ocidental e de outras partes,
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 29
o princípio da igualdade política, que está na base do funcio-
namento desses regimes, deve no entanto revestir-se de uma
certa credibilidade. Em outras palavras, os direitos dos cida-
dãos não devem ser recusados pelas desigualdades sociais
reais: a ficção da igualdade jurídica (cada homem um voto)
não poderia estar em completa contradição com a configura-
ção das relações sociais reais. As sociedades hierárquicas, ba-
seadasna discriminação coletiva e na opressão individual, pa-
recem, pois, pouco aptas aos regimes competitivos pluralistas.
As relações de autoridade social e de dependência pessoal,
fortemente assimétricas, não favorecem a igualdade formal do
princípio de maioria. Aliás, alguns consideram que, de modo
geral, um regime político só é estável se houver correspondên-
cia entre as relações de autoridade no seio do sistema político
e as relaçõesde autoridadena sociedadeglobal(Eckstein:
1961). O debate histórico e as desastradasaventuras do su-
frágio universal ilustram suficientemente, aliás, uma tal cons-
tatação. É suficiente lembrar os erros de cálculo dos republi-
canos franceses em 1848 quanto à democracia, ao perceberem
como o sufrágio universal, pelo qual haviam reclamado, ia
contra seus interesses, ou as lutas políticas em outros países
no século passado, entre os liberais, favoráveis ao voto censi-
tário, e os conservadores, que defendiam o sufrágio universal
guiado e esclarecido pelas autoridades sociais.
Nas sociedades hierárquicas e autoritárias, a distinção
dos grupos reais e das condições herdadas, a ''longa cadeia
dos deveres'' que ela impõe a cada um (B. de Jouvenel), a ên-
fase dada à ''qualidade'' da pessoae a recusa das regrasim-
pessoais, e mesmo do anonimato da lei, se opõem ao ato-
mismo individual, garantia da igualdade político-jurídica,
base do regime representativo. O rito de autoridade que impõe
o reconhecimento da posição(e portanto o privilégio) descrito
pelo antropólogo Roberto Da Matta (1979) para o Brasil, e
que ele resume na frase: ''Você sabe com quem está falan-
do?'', exprime tâticas cotidianas que parecem estar em con-
tradição com a lógica da interação democrática. No entanto,
comportamentosidênticos podem ser encontrados em socie-
dades onde os ''sistemas globais universais'' permanecem pro-
fundamente impregnados pelos ''sistemas das relações pes-
soais'' e as posições adscritas de s/afzzs,mas que deram provas
de capacidade representativa. Ao ''Você sabe com quem está
30 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
falando?'' da sociedade brasileira corresponde um italiano Zeí
lzopzsa c/zísono io? (''O senhor não sabe quem sou eu?'') (No-
bécouft: 1975, 25) que não impediu quase quarenta anos de
república na ltâlia de superar os obstáculos sócio-históricos
''antidemocráticos''
De modogeral, no entanto, não resta dúvida de que uma
sociedade aberta e secularizada é eminentemente receptiva ao
regime representativo. A multiplicidade das .associações livres
e voluntárias constitui, como Tocquevillejá tinha notado, a
propedêutica e o esteio do regime representativo dos Estados
Unidos. As estruturas intermediárias são de alguma forma sua
''coluna vertebral'' (Sartori: 1973, 380). A macrodemocracia
supõe o substrato da microdemocracia que prepara o autogo-
verno de uma sociedade e enraiza no ''espírito público''
gosto pelo diálogo e a capacidade de negociar. No entanto,
o caso argentino, com sua instabilidade crónica, não parece
confirmar que estas condições da democracia, sem dúvida ne-
cessárias, sejam também suficientespara o seu desenvolvi-
mento harmonioso.
IJma singularidade antropológica?
Muitas vezesjâ se salientoua importância da homoge-
neidade social, étnica e às vezes religiosa para o florescimento
das democracias, sem que, por esta razão, se atribuísse a estas
variáveis uma necessidade estrita. Por oposição, as sociedades
ditas tribais ou com configuração baseada na linhagem não
apresentariamo grau de secularizaçãoexigidopara o bom
funcionamento dos ritos democráticos.
Alguns chegaram a pensar que o fundo antropológico ex-
plica todos os incidentes da vida política. Os estudos do ''ca-
râter nacional'' constituem o grau zero deste tipo de enfoque,
marcado por um fatalismo implacável. Mais sofisticada, a ex-
plicação dos regimes e dos sistemas ideológicos pela especifi-
cidade das estruturas familiares nem por isso é menos discutí-
vel, e parece corresponder mais a um esforço de desqualifi-
cação de certas ideologias do que a uma vontade não dogmá-
tica de compreender. Sem dúvida, não é científico pretender
que a família ''Comunitária exogâmica'' favoreça o comu-
nismo (Todd: 1982), pretender que os russos têm uma pro-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 31
pensão ao totalitarismo porque seus filhos são embrulhados
em cueiros muito apertados. No entanto, pode-se supor que as
estruturas familiares modelam em grande parte a relação do
indivíduo com a autoridade, mesmo que não constitua o único
fator nessedomínio, nem o fator preponderante. Nem todos
os tipos de família favorecem igualmente a liberdade e a igual-
dade dos futuros cidadãos. Sem cair no determinismoantro-
pológico das atitudes políticas, a transmissão dos valores e o
tipo de configuração social procurado não deixam de ter rela-
ção com o modelo familiar dominante. Assim, nas sociedades
muçulmanas do Mediterrâneo, a lógica da endogamia e do
casamento preferencial, além do enclausuramento das mulhe-
res e da hipertrofia da ligação familiar, vão contra o indivíduo
o e a igualdade (Tillion: 1966). A ''república dos primos'' não é
a república dos cidadãos do jogo democrático. Notou-se igual-
mente que, na Ãfrica, as relações políticas ''se declinam nor-
malmente sobre o modo das relações parentais", onde a rela-
ção dos ''caçulas sociais" com os mais velhos constitui um es-
quema dominante (Bayart: 1983, 25). Ao contrário, conforme
foi assinalado por Charles Tilly (1975, 18), na Europa Ociden-
tal, a família nuclear e a exogamia desenvolveram o individua-
lismo e a aceitação das relações interpessoais, que talvez te-
nham tido alguma incidência sobre as formas políticas adota-
das. Sem dúvida, seria pouco prudente ir muito além nesse
tipo de explicação.
Espírito público, cultura e "virtude''
Vimos que a característica central dos regimes constitu-
cionais pluralistas residia na sua estilização das lutas políti-
cas. Os ritos parlamentares, as campanhas eleitorais são a ex-
pressão simbólica e formalizada de rivalidades que poderiam
ser violentas entre aspirantes ao poder que representam inte-
ressese paixões antagónicos. Raymond Aron gostava de sa-
lientar o carâter a8ózzfcodo jogo político democrático, que é
marcado precisamente pela ''imposição de regras estritas, a
manutenção de um quadro espácio-temporal no interior do
qual os atores devem manter-se" (Aron: 1965, 85). Acentuan-
do na definição das instituições democráticas seu sentido libe-
ral, acrescentava, evocando o que chamamos anteriormente
32 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
de mistério democrático, que a democracia estabilizada na
América do Norte ou na Europa se define menos ''pela sobe-
rania do povo e o sufrágio universal(quase todos os regimes
da nossa época procedem por votação e invocam a vontade de
todos) que pela organização de uma competição alimentada
por paixões prestes a explodir. É forte a tentação, para aque-
les que estão no poder, de não se exporem ao risco de perdê-lo
e, para os que se acham excluídos dele, de utilizar os meios
legalmenteinterditospara deleseapossarem''(1965,85).
A democracianão se acha, pois, inscrita na natureza,
nem antropológica nem sociológica; trata-se bem de uma cria-
ção cultural. E a tentação da qual fala Aron constitui seu ho-
rizonte maldito, a ''queda'' e o ''pecado'' no sentido bíblico.
Por que nas democraciasestáveisesta tentação, apesar das
crises, consegue ser com tanta freqüência evitada? E Montes-
quieu que nos dâ a resposta: ''A virtude é o princípio da de-
mocracia". Qual é o conteúdodestaforça propulsoraessen-
cial do governorepublicano?''O amor pelas leis e pela pá-
tria'', nos diz ele, lembrando o papel da educação, no seu
entender capital, e precisando que a ''virtude política consiste
numa renúncia a si mesmoque é sempre coisa penosa'' (Es-
prff des .Edis, ]ivro ]V, capítu]o V). Comentando Montesquieu
em um texto pouco conhecido, Tocqueville precisa deste modo
esseprincípio: ''O poder moral que cada indivíduo exerce so-
bre si mesmo e que o impede de violar o direito dos outros...
O triunfo do homem sobre as tentações..." (citado por Aron:
1965, 28).
Em outras palavras, esta vl»:zde consiste, no plano cole-
tivo tal como ao nível do indivíduo, na capacidade cultural de
resistir à própria força e às pulsões agressivaselementares.
Ela exige o domínio de si mesmo que é indispensável à acei-
tação das práticas simbólicas próprias dos regimes represen-
tativos. Sem esta víNude, não pode haver estilização das pai-
xões nem expressão codificada destas em lugares normaliza-
dos, através do respeito às barreiras constitucionais. É este
domínio que evita, tanto quanto possível, a confusão entre
poder económico e poder político, que permite o respeito das
minorias pela maioria.
Esta interiorização da autocoerção é tanto mais forte por
ser não escrita e costumeira. Pode ter numerosas fontes(reli-
gião, memória coletiva, educação...),que seria conveniente
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 33
elucidar. Baseia-se evidentemente em ''premissas culturais
amplamente compartilhadas'' (Dahl: 1966, 119). Mas a paci-
ficação das condutas políticas, numa palavra, o não-recurso à
violência, sem dúvida representa apenas um aspecto da ''civi-
lização dos costumes'' analisada por Norbet Ellas (1973). A
''contenção'' e a ''autocoerção'', expressões da ''civilização'',
traduzem em todos os domínios uma reforma das estruturas
emocionais e uma mudança da afetividade. O autocontrole é
sempre a aceitação de um código de conduta; tem, pois, ne-
cessariamente uma dimensão política. O abrandamento dos
costumese o abandonodo recurso à violência não deixam de
ter relação com a igualdade das condições: só se aceitam como
compulsórias as regras do jogo se este tem lugar entre seme-
lhantes(Tocqueville:1967,206-208;Gauchet:1980,84).Aliás,
uma vez que o superego social limita tanto as pulsões sexuais
quanto o uso da força nos conflitos coletivose individuais,
nada impede de pensar que existe alguma concomitância entre
a emancipação da mulher, a liberação dos costumes que a
acompanha e o funcionamento das instituições democráticas.
As nações da Europa setentrional ilustram bastante bem uma
tal hipótese.
Mas, uma vez que a cultura individualou a civilização
nacional consistem no conjunto das respostas aprendidas e
das experiênciaspassadas, as evoluçõesnão são unilineares.
As influências ideológicas e religiosas não se encaminham to-
das no sentido do homem Inner-dírec/ed (''dirigido por si mes-
mo") de Riesman e do autocontrole mais ou menos kantiano.
Mesmo na esfera ocidental, como assinala Dahl (1966, 119),
pode-se,no final da cadeia, ver aparecer dois modelosdiver-
gentes de conduta: ''empírico-cooperativa'' contra ''raciona-
[ista'' ou, para fa]ar como Be]] (1967, 290), citando Max We-
ber, uma ''ética da responsabilidade''em face de uma ''ética
da convicção'', cujas relações com os procedimentos represen-
tativos são evidentemente muito diferentes.
O Estado e a invenção da democracia
No frágil equilíbrio entre liberdade e igualdade que sub-
jaz às práticas democráticas e alimenta os fantasmas das elites
liberais, o Estado não tem boa reputação. Ele é com freqüên-
34 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
cia denunciado como o Leviatã que ameaça o pluralismo, no
melhor dos casos como um ''ogre filantropo'' que, intervindo
em toda parte, falseia o jogo democrático. No entanto, consi-
derando a história um pouco mais cuidadosamente, percebe-
se que a antiguidadeda formaçãoestatale sua origemendó-
gena parecem freqüentemente paralelas ao enraizamento da
democracia. É verdade que a edificação de um Estado e a
formação da nação, na história européia, são processos dificil-
mente dissociáveis, mesmo que tenha sido possível dizer que,
na França, o Estado precedeu e modelou a nação.
Os Estados nascem na Europa em condições singulares.
Como assinalou Otto Hintze e, depois dele, Zolberg, estas for-
mações políticas aparecem nos interstícios do conflito entre o
Império e o papado (Hintze: 1975, 167; Zolberg: 1980, 737).
Foi a dissociação do temporal e do espiritual deste.modo pro-
duzida que favoreceu o seu nascimento. Stein Rokkan, por
sua vez, inscreve sua emergência numa dupla dimensão norte-
sul e leste-oeste:com relaçãoao ''centrocultural'' da cristan-
dade, Romã, e em função de um ''eixo económico" composto
pelo centra/ óe/f of frade roube clfies("cinturão central de ci-
dadesna rota comercial'') indo da ltâlia do Norte às cidades
hanseáticas. E à margem desses dois eixos que se produz o
Estado (Rokkan: 1975, 570-580). Esta apreensão geopolítica
do processo de sfafe-bzz//dipzg (''construção do Estado'') não
deixa de ter conseqíiências quanto ao tipo de regulação polí-
tica dominante ao qual essas nações deram nascimento. Nas
duas hipóteses, é a autonomização do político que está em
jogo. A Inglaterra e a França dão provas disso.
Pois o Estado -- o que é confirmado por estas duas teses
-- antes de mais nada põs fim, como assinalou Weber, ao pa-
trimonialismo, à confusão entre a propriedade e o governo.
Mas, de modo mais geral, ele foi o instrumento da separação
do poder e da sociedade em sua dimensão espiritual e religio-
sa, assim como na sua dimensão económica. Foi por ter-se
edificado deste modo que o Estado impôs o domínio da lei,
lançando as bases ''nomocráticas'' dos regimes representati-
vos. Assim, segundo Tocqueville, sem dúvida o antigo regime
tinha aberto o caminho à Revolução, porque a ação do Estado
absolutohavia preparado a tradição igualitária da república.
Segundo ele, ''a monarquia administrativa tinha esvaziado de
sua substância viva a sociedade de ordens'' (Furet: 1978, 39),
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 35
ou, dito de outro modo, ''a plenitude do poder público (...),
causa eficiente da plenitude dos poderes individuais'' necessá-
ria à burguesia, foi obra do absolutismo ''liberticidad'' (Jouve-
nel: 1955,226).
De modo mais geral, como notou Strayer (1970), o Es-
tado, nascido de uma certa estabilidadeterritorial, garante
antes de mais nada a segurança das pessoas, garantia de sua
liberdade através do desenvolvimentode ''instituições perma-
nentes e impessoais''. Os Estados soberanos se erigem em ''es-
tado de direito'' na medida em que, na Europa ocidental mo-
nárquica, sob a égide dos legistas, o poder não aceita autori-
dade superior à da lei e se reconhecem direitos individuais ina-
lienáveis (Barret-Kriegel: 1970, 21-55). Pode-se, aliás, com al-
guma razão pensar que foi o lento estabelecimento desse es-
tado de direito a partir das necessidadesda administração ter-
ritorial unificada que serviu de embasamento consistentepara
as instituições políticas estáveis. Por oposição, a instabilidade
democrática das nações ditas ''periféricas'' não proviria da
implantação do sistema representativo antes mesmo da sedi-
mentação de um ''estado de direito'' sólido?
Como quer que seja, é sobre o alicercejurídico edificado
pelos legistas do antigo regime que aparecem os procedimen-
tos representativos. Esta emergência foi atribuída a numero-
sas causas. Para alguns, além do sistema judiciário, que esta-
beleceo reino da lei, é o aparecimento de instituições finan-
ceiras que impõe ao soberano a consulta. E da necessidade do
consentimento à cobrança de impostos que nascem os parla-
mentos (Strayer: 1979, 69), do mesmo modo que as exigências
representativas dos povos surgem historicamente da recusa de
imposições fiscais não aprovadas. Assim, quando o Tesouro é
o pilar essencialdo Estado, as modalidades de sua lógica ex-
trativa contribuem para delinear o tipo de regulação política
dominante. Para outros autores, os parlamentos nasceriam da
obrigação, para o soberano, de fazer com que suas decisões
fossem aplicadas. Na falta de qualquer aparelho administra-
tivo, ele não teria tido ''outros agentes executivos senão as
autoridades locais'', atires paradoxais da centralização esta-
tal (Jouvenel: 1955, 224).
Não é, pois, surpreendente,como assinala Tilly, que as
nações européias mais estatizadas sejam aquelas que permiti-
ram mais cedo e mais rapidamente, senão de modo mais du-
36 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
râvel, a extensão do sufrágio universal (Tilly: 1975, 36). Mes-
mo que os construtoresdo Estado nem sempre se tenham in-
clinado a ''estender os direitos'' mas procurassem antes limitá-
los e absorva-los,pode-sesupor que, tendo o edifício estatal
adquirido solidez, os riscos e as incertezas dos governantes
não aparecem mais como um perigoso salto no vazio que era
necessário evitar a qualquer preço.
Se a emergência da democracia não é totalmente aciden-
tal, se ela parece responder a uma sequência de fatores inter-
dependentes,seu carâter histórico não diminui de modo al-
gum o mistérioque a cerca. Por issopode-seconsiderar que
precondições sociais múltiplas e convergentes, necessárias ao
seu aparecimento, tomem difícil sua exportação para a perife-
ria, e que a implantação mimética dos sistemas representa-
tivos em terrenos não propícios é, na maioria das vezes, rever-
síve[ou, pe]o menos, frágil. Mas, destemodo, não se supõe
que a liberdade dos atores e, portanto, sua estratégia de coe-
xistência seja secundaria na instalação dos procedimentose
das instituições de regulação política? Também os regimes são
produções sociais. A importância das estruturas condicionan-
tes não exclui de modo algum a vontade dos atores e particu-
larmente daqueles que dominam o jogo sócio-político. O que
explica talvez que regimes representativos aparentemente du-
ráveis apareçam em sociedades cujas características parecem
Pem poucofavoráveisà pratica democrática.
Democracias sem condições
A via real das quase-democracias
As quase-democracias ou os regimes representativos fic-
tícios abundam. Considera-los em bloco como simples e per-
versas homenagensdo vício autoritário à virtude representa-
tiva é sem dúvida insuficiente. E bem verdade que não são
raras as paródias de consultas pluralistas no caso de verda-
deiras ditaduras, do Paraguai às Filipinas, mas nem todos esses
regimes são idênticos e não podem ser vistos simplesmente sob
o aspectodo disfarce ou da mentira: impõem-senuanças e
gradações. Não nos esqueçamos do voto censitârio, capacitá-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 37
rio ou plural (Bendix: 1977, 117) num passado europeu relati-
vamente recente. As democracias ''evolutivas'' ou ''guiadas''
existentesespecialmente no Terceiro Mundo serão autoritaris-
mos disfarçados, e até mesmo institucionalizados, ou sistemas
de aprendizagem das formas representativas? A questão me-
rece ser colocada. Como os exemplos ambíguos são inúmeros,
não parece impossível distinguir as verdadeiras e as falsas di-
taduras. Onde colocar a democracia de 40% da Indonésia? A
democracia brasileira no período da abertura, embora domi-
nada pelos militares, tal como o sistema mexicano, após a
reforma eleitoral, com suas características comuns (ausência
de alternância, pluripartidarismo realcom acessomais ou me-
nos limitado aos cargos executivos, direitos civis relativamente
respeitados) poderiam entrar na categoria dos regimes semi-
competitivosmais do que nas das pseudodemocracias.
No
Egito, o fenómeno evolutivo é nitidamente perceptível: com
efeito, do regime militar mobilizador de Nasser, passou-se a
um regime ''quase-pluralista'' com Sadat, através da reforma
do funcionamentoda União SocialistaÁrabe em 1975para
permitir as tendências (p/adoras) (Buttner: 1979), antes de se
chegar, sob a presidência de Moubarak (1984), a eleições
semilivres e a um bipartidarismo efetivo que, no entanto. ain-
da é percebidopor parte da opinião pública como um álibi
político.
E mesmo em algumas ''democracias sob medida'', mais
decorativas que substanciais -- das quais se pede dizer que
suas práticas concorrenciais recentes se destinavam antes de
tudo a um uso externo -- embora o partido que ainda ontem
era o único permanecesse inamovível, o poder, ao autorizar e
mesmo suscitar o pluralismo partidário, não estaria criando
uma autolimitação? Nos casos quase paralelos do Senegal e da
Tunísia, a ruptura do monopóliodo partido único (Partido
Socialista Senegalês ou Destour), mesmo que acompanhada
de múltiplas salvaguardas, não representa um progresso na
ordem representativa? Estabelecem-se liberdades e, embora o
adversário político seja talvez ''balizado'' e mantido a uma
distância respeitosa do poder real, ele é tolerado, e não exor-
cizado ou diabolizado. Foi dado um passo à frente. Também
em matéria de democracia nem tudo é branco e preto, e com
frequência procurar pelo melhor significa transformar-se em
inimigo do que é simplesmente bom.
38 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
Certamente, não será de surpreender que nessas demo-
cracias de má vontade ou incoativas -- não vamos evocar aqui
as possíveis razões dessas aberturas -- aqui e ali alguém pro-
cure dar um pequeno empurrão para ajudar a sorte, limitar os
riscos inerentes ao sufrágio livre e assegurar a estabilidade do
poder. Da urna negra da oposição no Burundi, à supressão da
cabine indevassâvele da carteira de identidade do Senegal,
passando pela ausência de listas eleitorais ou envelopes em
certos países da América Central, as manipulações dos títulos
de eleitor ou o clássico preenchimento prévio das urnas, o ar-
senal da fraude é variado. Mas às vezes esses subterfúgios são
infinitamente legaise sutis, como no caso das leis eleitorais. O
Brasil semicompetitivo dos militares tornou-se mestre em elei-
ções tipo ganha-quem-perde e de ''geometria variável'': os re-
sultados eleitorais servem de barómetro para revisar o arranjo
legal a fim de permitir ao partido oficial minoritário conservar
o poder, apesar de tudo. Mas o antigo modo de escrutínio se-
negalês(lista maioritária em um turno em uma cirscunscnçao
nacional única), o voto vinculado brasileiro ou a mudança da
lei eleitoralna Guiana em 1963-- para tirar do poder o par-
tido revolucionário e marxista de Cheddi Jaghan -- não cons-
tituem estratégiasmuito diferentes da lei francesa sobre os
''aparentamentos'' entre partidos aliados, que oferecia uma
vantagem aos que deixavam o governo na IV República. Alias,
a escolha dos sistemas eleitorais que colocam a justiça (a pro-
porcionalidade integral) a serviço da estabilidade e da eficácia
-- representadas pelo escrutínio maioritário uninominal --
decorre indiscutivelmente da mesma ética.
De qualquer forma, não se pode deixar de ser sensível ao
fato de se produzirem evoluções democráticas em contextos
que não correspondem absolutamenteàs condições conside-
radas ótimas segundo a experiência ocidental. Evidentemente,
sempre se poderá questionar a precariedade dessas tentativas,
mas não se deve subestimar, na falta de condições objetivas ou
de imposição externa, a vontade dos protagonistas e da classe
política. Mais notávelainda, nessesentido,é a existência,na
área ocidental (ou não), de sociedades que apresentam obstá-
culos aparentemente intransponíveis ao enraizamento dos sis-
temas representativose que constituem, apesar disso, exem-
plos de estabilidade democrática.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 39
Sociedades divididas e democracia concordatária
Ao contrário, situações aparentemente incompatíveis com
o bom funcionamento do sistema representativo parecem na
verdade ter estimulado sua implementação. Haveria prova
mais clara de que os homens, pelo menos em matéria de polí-
tica, fazem seu destino e não apenas se submetem às condi-
ções objetivas de seu ambiente?
Assim, sociedades
divididassegundolinhas de futura
linguísticas (Suíça, Bélgica), religiosas e/ou ideológicas (Paí-
ses-Baixos, Austria) encontram-se entre os modelos mais aca-
bados de regularidade democrática. A segmentação social con-
flitual não é necessariamente sinónimo de instabilidade polí-
tica. Esses sistemas, que foram chamados de consoclafíona/
democracy (''democracia consociacional'') e que denominare-
mos ''democracias concordatárias'', baseiam-se na necessi-
dade do compromissoentre segmentossociais ou famílias es-
pirituais que devem coexistir ou arriscar-se à explosão da na-
ção (Mac Rae: ]974; Nordlinger: 1972). Essas sociedades se
encontram diante da escolha entre a regulação dos conflitos
levando em conta suas divisões irredutíveis e a guerra civil, di-
reta ou em estado larvar, como ocorre atualmente na Irlanda
do Norte e no Líbano.
A propósito deste último exemplo, que representa um
caso-limite particularmente interessante, pode-se assinalar
que, no mundo árabe, antes das convulsõesde origem sobre-
tudo exógenaque o destroçaram, o Líbano era o único país
realmente democrático, no sentido constitucional-pluralista
do termo. Ora, este país islagio-cristão, dividido entre qua-
torze comunidades religiosas distintas e antagónicas, havia
conseguido, com base no confessionalismo e através do Pacto
Nacional de 1943, que fixava os fundamentos de uma demo-
cracia intercomunitária, estabelecer um sistema representa-
tivo vivido mas igualmente frágil. A dosagem sutil e a reparti-
ção rigorosa da representação nacional não conseguiu superar
as tensões israelo-árabes e a questão palestina (Rondot: 1965).
Mas a fragilidade geopolíticado Líbano não deveria fazer es-
quecer os trinta anos de paz e de prosperidade concordatâria
que o país conheceu. A vontade de se viver junto, e portanto
de aceitar compromissos, é sem dúvida o primeiro móvel da
lógica democrática. Esta não conseguiria sobreviver ao aban-
40 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
dono do imperativo nacional em benefício de solidariedades
infra ou supranacionais inconciliáveis.
Mas os diferentes casos de democracia concordatâria
lembram ao menos a importância dos desafios, sociais e polí-
ticos, na edificação desse sistema de regulação pacificador. A
democracia como vontade e representação? Sim, se se trata da
representaçãodas catástrofesque qualquer outra forma de
governo inevitavelmentetraria, e se a vontade é a dos princi-
pais atores da existência nacional.
Clientelismo e pluralismo
As relações de clientelismo, baseadas na dependência
pessoal e, portanto, em assimetrias sociais muito fortes, pare-
cem opor-se à fluidez necessária ao bom funcionamento dos
regimes competitivos. Mas podem igualmente favorecer seu
enraizamento cheio de dificuldades. De fato, não há dúvida
de que, como prova a experiência de numerosos.países, a con-
figuração vertical do universo sócio-político, ao arear a organi-
zação de solidariedades sócio-económicas horizontais, perigo-
sas para o sfafu qzzo, atenua os conflitos e exerce uma função
estabilizadora. A ''polarização'' das famílias espirituais ou dos
segmentos sociais nas democracias ''consociacionais'' (Mac
Rae: 1974, 6) desempenha o mesmo papel moderador dos en-
frentamentos de classe.
Em uma tal estruturação ''diâdica'' e não-igualitária, os
recursos de clientelismo substituem uma administração esta-
tal enfraquecida e privatiza de certa forma o poder. As elei-
ções abertas, quando não realmente concorrenciais, desempe-
nham um papel funcional duplo. Elas demonstram ao poder
central a importância do capital "cívico'' detido pelo patrono,
ao mesmo tempo em que se reanimam as solidariedades verti-
cais que poderiam embotar-se (Rouquié: 1978, 95). Os meca-
nismos são mais ou menos idênticos nas formas de ''cliente-
lismo de notáveis'' e no ''clientelismode partido moderno''.
Assim, na ltâlia, um ''partido de massaclientelístico"(Gra-
ziano: 1973,212)que se confundecom o Estado construiu um
''império faraónico'' ''de interesses clientelísticos colossais'
(Tamburrano: 1974, 1-135), onde clientelas e ''parentelas"
(La Palombara: 1967)são os mais fortes esteiosdo regime.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 41
Poucos países da América Latina são dotados de condi-
ções menos favoráveis à democracia que a Colõmbia. Além da
pobreza de amplos setoresda sociedade, em face de uma gran-
de burguesia fundiária quase imutável, pode-se notar uma in-
tegração nacional pouco satisfatória, tanto do ponto de vista
geográfico quanto humano, uma lgrçja católica poderosa e
teocrática e uma herança de violência civil cujos sobressaltos
parecem intermináveis. E, no entanto, o regime político é
aberto e competitivo e não se desconhece a alternância, como
foi demonstrado pela inesperada vitória do candidato conser-
vador nas eleições presidenciais de 1982. Ê o bipartidarismo
que constitui aqui a coluna vertebral da sociedade política e
assegurauma democracia sem riscos, portanto estável. A
identificaçãopartidária familiar e hereditária com base geo-
gráfica -- alguém nasce liberal ou conservador -- constitui
um obstáculo às solidariedades de classes e estreita mais os
laços verticais de dominação. Esse bipartidarismo, tão funcio-
nal para a estabilidade da sociedade, opõe-se a qualquer pro-
cesso de participação popular independente, mesmo de tipo
populista. Enquanto os dois partidos se entendem na cúpula,
principalmente em virtude de sua espantosa homogeneidade
social, suas bases são mobilizadas por um ódio histórico por
muito tempo insuperável, que desembocou, tempos atrás, na
mais inexpiável e atroz das violências, .[a Vzo/elzcía (Wilde:
1979; Oquist: 1978).
No Senegal independente, um partido moderno domi-
nante, mas já não mais único, a União Progressista Senega-
lesa, transformada em Partido Socialista, apoia-se em uma
estrutura segmentâria clientelizada, sem se confundir com ela.
O Partido de Senghore Diouf se beneficia principalmento do
apoio, com base em um intercâmbio de poder, de poderosas
confederações marabúticas que controlam o voto (Coulon:
1981)
Geralmente, é só quando essas configurações verticais so-
frem erosão ou se acham em crise que o sistema ''democrá-
tico'' é colocadoem questãopor seus próprios beneficiários,
os defensores do ifalu qao.
42 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
Fragmentação e ordem hierárquica:
o enigma da maior democracia do mundo
Os teóricos mais ou menos etnocêntricos dos socfa/ pre-
reqzzüíres of democracy (''pré-requisitos sociais da democra-
cia'') têm algum trabalho para fazer a índia entrar nos seus
esquemas. Um governo parlamentar estável de mais de trinta
anos nesse país constitui um desafio intelectual e político con-
siderável.De fato, poucas naçõesdo mundo, novas ou anti-
gas, são divididaspor ''clivagensinternas tão profundas''
(Frankel: 1969). Mosaicode religiões,de raças, de línguas
(179 línguas e 544 dialetos oficialmente), atravessada e aba-
lada por todos os conflitos que daí decorrem (Kothari: 1970),
a Índia é também a sociedade do como Àferarcãlczzs e do sis-
tema das castas. Se as sociedadesnão-igualitárias são pouco
aptas à democracia, o que dizer de uma sociedade onde as
hierarquias são não só legitimadas como também sacralizadas
pela religião, além de codificadas e reconhecidas pela lei(scÀe-
du/e casas) e onde 90 milhões de cidadãos são considerados
''intocáveis'' (&arÜàni)? A igualdade legal em que se baseia o
sistema representativoparece estar muito pouco de acordo
com esse tipo de realidade social. A herança de Westminster
(dividida, aliás, com um Paquistão muçulmano muito instá-
vel) e as capacidades do Zndfan admf/züfraffve sewfce (''ser-
viço administrativo indiano'') legado igualmente pelos britâ-
nicos, não são suficientes para explicar o paradoxo dessas ins-
tituições representativas capazes de superar as crises, e apa-
rentemente independentes dos homens que a fundaram.
Na realidade, parece que a disciplina das castas tenha
desempenhado um papel complexo na articulação da tradição
sócio-cultural e da modernidade política. Ê certo que elas ten-
deram a reforçar sistemas de clientela, freando, lá como em
outros lugares, a organização coletiva(e subversiva) dos domi-
nados e obscurecendo os conf]itos de classes. Mas seu papel de
integração e de identificação social contribuiu também para
disciplinar os fenómenos de desintegraçãosocial; a divisão em
castas deu lugar a novas formas associativas que favoreceram
a passagem insensível a valores modernos (Rudolph: 1967,
23). Por isso, embora os famosos ''bancos de sufrágios'' conti-
nuem a existir, significando que não há (ainda) antagonismo
entre a prática representativa e as relações de dominação, hâ
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 43
indícios de que a tensão entre a rigidez da estruturação social
e a igualdade política legal tenha favorecido a capacidade de
barganhae de negociaçãodos atires (Kothari). Por outro
lado, se é verdade que os grupos preponderantes se esforçam
para evitar que a força numérica se transforme em poder elei-
toral (Jobert: 1982), os dominados se apegam ao sufrágio uni-
versal que contribui para a difusão de normas igualitárias. A
cidadania eleitoral que é consentida figura como emancipação
simbólica, e mesmo como substituto de uma verdadeira trans-
formação de seu estatuto legal (Mitra: 1979 e 1980). Mas a
fragmentação e a multidimensionalidade da sociedadeindiana
constituem sem dúvida o fator essencial para a manutenção
do sistema pluralista. A ''politização da diversidade'', a busca
do consenso e a rejeição da ''ilusão de dominação'' (Kothari:
1970, 320) apresentam-se como necessidades nacionais para
preservar a unidade da república-continente. O compromisso
democrático constitui, na era do desenvolvimento, a condição
da sobrevivência.Para isso não é necessárioque os valores
habitualmente considerados como próprios da democracia se-
jam dominantes; importa que as outras soluçõespolíticas apa-
reçam às elitescomo mais custosas ou mais arriscadas.
Do compromisso pluralista
como vontade e representação
Em uma visão dinâmica das condições da estabilidadee
da instabilidade dos sistemas representativos, não se pode es-
capar das recaídas do desenvolvimentoeconómico.Não basta-
ria uma visão estática tão-só dos componentes sociais e de seus
interesses bem compreendidos. De fato, as tensões do desen-
volvimento económico afetam a base dos regimes políticos. Jâ
se indagou se as necessidadesdo crescimento acelerado, e até
mesmo aquelas decorrentes da superação do atraso econó-
mico, seriam compatíveiscom as normas políticas da demo-
cracia. A acumulação e a simultaneidade dos problemas que
as primeiras democracias tiveram que resolver sucessivamen-
te, às vezes, ao longo de um século constituem desafios difíceis
de superar sem que haja derrapagem dos confrontos codifica-
dos da ordem representativa. Entre outros, o problema da to-
lerânciacom relação à desigualdadesocial em uma fase de
44 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO
acumulação foi inúmeras vezes examinado nesse sentido. Hirs-
chmann propôs uma resposta teórica (o "efeito túnel''), dis-
tinguindo funções ou fases de ''acumulação'' e de ''reforma-
distribuição'' (Hirschmann: 1975e 1979). A dialética dessas
duas funções seria capital para a estabilidade sócio-política. A
tolerância com relação às desigualdades permaneceria grande
enquanto as populações que as sofrem se encontram no ftí#e/
do pauperismo absoluto. Esta tolerância desaparece com o
desenvolvimentoindustrial e a esperança de uma distribuição
mais justa das riquezas. Não estamosassim muito longe do
''paradoxo tocquevilleano''segundoo qual a abertura de re-
formas e a melhoria de uma situação insuportável constituem
uma conjuntura propícia às crises políticas e aos abalos insti-
tucionais, pois ''o mal é menor, mas a sensibilidade é mais
viva''. Segundo uma tal hipótese, a democracia seria privilégio
não apenas das nações desenvolvidas, mas também talvez dos
países de menor desenvolvimentoabsoluto, sendo os Novos
Países Industriais os menos aptos à adoção e manutenção dos
sistemas representativos.
Se se tenta aplicar este esquema de leitura à classe média
internacional das nações latino-americanas mais industriali-
zadas, percebe-se que as poucas democracias ''permanentes''
do subcontinente estão longe de pertencer ao grupo dos países
pouco desenvolvidos. E verdade que se pode pensar que a ri-
q\rezapetrolífera permitiu harmonizar na Venezuela, demo-
cracia estáveldesde 1958, as duas funções mencionadas por
Hirschmann. No México, o ''desenvolvimentoestabilizador''.
pela rapidez de seu crescimento, criou talvez expectativas po-
pulares favoráveis à distensão social, enquanto na Colâmbia,
é duvidoso que o bipartidarismo tenha repartido as duas ''fun-
ções'' entre conservadores e liberais. Mas onde situar a Costa
Rica e como explicar o seu estranho apego ao sistema plura-
lista, mesmo atualmente, quando o país se encontra situado
na linha de frente de um novo conflito Leste-Oeste?
Na verdade, experiênciashistóricas comuns (e dramáti-
cas), a exemplodas guerras na Europa, sem dúvida fizeram
mais para a aceitação do compromisso e do pluralismo que os
condicionamentos diversos, económicos ou não. Na Costa
Rica, a guerra civil de 1948, que acarretou o desaparecimento
das instituiçõesmilitares, constituiu a experiênciafundadora
da democracia e representa até o momento o horizonte in-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 45
transponível da vida nacional. A evolução de 1910 no México
não faz parte apenas da ideologiaoficial mas constitui tam-
bém o ato de fundação do Partido dominante e a referência
suprema. .Z;a Vzo/enchana Colâmbia representa um elemento
da dissuasão de natureza a fazer baixar as apostas quanto ao
que se põe em jogo na política. O mesmo se poderia dizer de
numerosas "democracias sem condições". A começar pela Ín-
dia, onde a guerra de castas em estado larvar e os confrontos
''comunalistas" poriam em chamas o país se instituições re-
presentativas não conseguissem canalizar e ''agregar'' as de-
mandas.
Em todos os casos, implícita ou explicitamente, o com-
promisso democrático passa por um pacto nacional visando
criar contratualmente as condições da democracia quando es-
tas não existem, foijá-las levando em consideração as reali-
dades e as ameaças. Quanto à vontade de viver em conjunto
ela não é nem um mistério nem um acidente. A democracia
nasceassim pela dissuasão, talvez como um mal menor. Não
dizia Thiers que ''A República é o regime que nos divide me-
nos"? O sistema representativo não pode ser senão um obje-
tivo coletivo, porque ele implica uma tensão permanente, e
não uma decorrência, como consequência mecânica, de dados
objetivos. A lembrança amarga dos confrontos civis passa-
dos e a vontade de viver em conjunto são com muita frequên-
cia a força propulsora escondida da "virtude''

Bases da democracia
brasileira:
Lógica liberal
e praxis autoritária(1822/1945)
Hélgio Trindades
o título não pretende sugerir que houve no Brasil um
regime democrático conforme o modelo clássico dos países ca-
pitalistas centrais. Embora o termo democracia seja corrente
na linguagem política tradicional e um ef#os liberal se tenha
difundido e preservado na subcultura das elites políticas bra-
sileiras (coexistindo até com a sociedade escravista do Impé-
rio), o conceito de regime democrático aparece, geralmente,
na literatura e no discurso político, associado a um qualifica-
tivo restritivo: ''democracia coroada'', referindo-se à monar-
quia parlamentar do Segundo Império (1840-1889) ou ''demo-
cracia populista'' caracterizando o regime gerado na euforia
democratizante do pós-guerra (1945-1964). Mais recentemen-
te, após quase duas décadas de autoritarismo de base militar,
o novo modelo proposto pelos mentores da ''abertura política''
se autoproclamou ''democracia relativa''. Não deixa também
de ser significativo que a bibliografia brasileira dos últimos
trinta anos, no campo da Ciência Política, não contemplees-
(#) Hélgio Trindade é professor de Ciência Política da UFRS e da
PUCRS (Porto Alegre) .
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 47
tidos gerais sobre a questão da democracia, ainda que proli-
fera uma qualificada produção académica acerca de ''partidos
políticos'', ''comportamento eleitoral'', ''expansão da cidada-
nia'' , ''participação política'' , ''representação política e sis-
tema eleitoral'' (Lamounier e Cardoso, 1978; Lamounier,
1982b) .
Deixando de lado as razões políticas ou epistemológicas
que justifiquem o fato, cabe reconhecer que uma discussão
mais sistemática sobre a democracia tem sido uma preocupa-
ção recenteno Brasil e talvez explique por que Cardoso, num
ensaio sobre o tema, comece questionando: ''que sentido tem
hoje uma reflexão sobre a democracia?'' (Cardoso, 1981). E
bem verdade que uma certa tradição de estudos de política
comparada tendo como referência o modelo democrático ame-
ricano -- cuja vertente mais conhecida considerava a demo-
cracia um correlato do desenvolvimento económico (Lipset,
1959) -- entrou em crise teórica com a implantação, nos anos
60, de regimes autoritários estáveis nas sociedades mais ''mo-
dernizadas'' da América Latina. Esta nova situação, não pre-
vista pelo otimismo etnocêntricodos teóricos da reprodução
democrática, estimulou a construção de paradigmas alterna-
tivos sobre o processo histórico latino-americano (Huntington,
1968;Cardoso e Faletto,1969; O'Donnel, 1973). Apenas mais
recentemente,com os primeiros sinais de crise dessesregimes,
o foco de interesse, não apenas no Brasil mas no âmbito la-
tino-americano,
se deslocado ''autoritarismo''ou do ''fas-
cismo dependente'' (Trindade, 1983) para. a problemática da
''transição democrática'' ou das novas condiçõesde democra-
cia
A controvérsia que polarizou nos últimos anos os cientis-
tas sociais brasileiros, dando origem a interpretações contra-
ditórias, girou em torno das relaçõesEstado-sociedade.A cli-
vagem tradicional surgiu do confronto entre a posição que en-
fatiza o papel do Estado, através do ''estamento burocrático'',
ao longo da ''formação do patronato político brasileiro'' (Fao-
ro, 1958) e as análises em que o eixo central era colocado na
sociedadeagrária e nas formas de privatização de poder dela
decorrentes (Holanda, 1956; Duarte, 1939). Apesar dos anta-
gonismosentre os diversos autores, a controvérsia gerou novas
interpretações sobre a sociedade brasileira, especialmente, no
nível da dinâmica política, estabelecendobases mais sólidas
48 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
para estudos posteriores.' Nessa direção analítica, a contri-
buição de Schwartzman, retomando a tese de Faoro sobre a
hegemonia do Estado numa perspectiva neopatrimonialista,
busca, através do conceito de ''cooptação política'', explicar
como o Estado trata de ''submeter à sua tutela formas autó-
nomasde participação". (Schwartzman,1982:23).
No presente artigo nossa ênfase será menos a questão das
''bases do autoritarismo'' (como fez Schwartzman em seu úl-
timo livro) do que uma espécie de contraponto que examine o
processopolíticodo lado das ''bases da democracia". Certa-
mente, a tese do enraizamento profundo do ''autoritarismo''
na realidadepolítica brasileira tem fundamentos sólidos. En-
tretanto, o uso indiscriminado do conceito(inclusive para de-
finir diferentes situações políticas na América Latina) faz com
que ele se torne tão fluido quanto o de ''populismo". Em con-
seqüência, a preocupação, por vezes excessiva, de ressaltar os
aspectos ''autoritários'' do sistema político tem tolhido nossa
capacidade de perceber os processos e estratégias de tipo libe-
ral que estão também presentes na dinâmica política brasi-
leira. A ''práxü liberal'' torna-seum traço persistentee captá-
vel nas ideologias e instituições políticas desde a época colo-
nial, perpassando os períodos monárquico e republicano. A
questão-chave seria, então, entender por que o liberalismo
brasileiro, instalando-se de forma quase permanente no cam-
po político, não evolui, salvo em momentos transitórios e de
forma limitada, numa direção democratizante .
Partindo desse enfoque, seria importante empreender um
esforço analítico exploratório em direção das bates (e certa-
mente dos /ímffes) da democracia brasileira antes da implan-
tação da primeira experiência de ''democracia de massas''
com a república populista. Inicialmente, buscando, numa
perspectiva comparativa com a Argentina, articular o pro-
(1) A versão recente do debate rompe, em grande medida, com os parâmetros
da dicotomização anterior, não apenas discutindo criticamente a validade de certas
inferências históricas(lglésias, 1976; Carvalho, 1979), como a utilização de conceitos,
tais como "capitalismo" ou "feudalismo", na análise da formação histórica brasileira
(Reis, 1974a; Centra, 1974). O mais importante, porém, foi a incorporação das novas
abordagens teóricas e pesquisas sobre a problemática Estado-sociedade civil nos úl-
timos anos(Schwartzman, 1970; Reis, 1974b; Carvalho, 1974; Schwartzman, 1975;
Schwartzman, Reis e Cardoso, 1977; Urácoechea, 1978a; Uricoechea, 1978b; Carva-
lho, 1980).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 49
cesso de construção do Estado com a dinâmica liberal; se-
gundo, definindo os parâmetros da ordem política brasileira
no contexto de uma sociedade agrária; e, finalmente, discu-
tindo a questão do liberalismo e sua tendência a coexistir com
estruturas políticas autoritárias.
1. Construção do Estado
e dinâmica liberal
Para se entender a configuração do sistema político brasi-
leiro dois processos básicos devem ser relacionados: o padrão
de construção do Estado e a dinâmica do liberalismo. Dada a.
natureza exploratória de nossa reflexão, o objetivo inicial é de
explicitar o argumento, buscando definir os principais fatores
que poderiam estar associados ao processo político, a partir de
uma comparação entre os casos argentino e brasileiro. Geral-
mente, uma das dificuldades de entender as vicissitudes do
liberalismo no Brasil decorre de uma tendência a centrar as
análises na formação do Estado sem articula-lo com o pro-
cessoliberal presente desde os primórdios do sistema político.
Naturalmente, a questão é complexa e não temos a pretensão
de resolvê-la nos limites desse artigo, embora pareça que por
esta via pode-se abrir uma nova perspectiva analítica.2
A formação do Estado nas sociedadesperiféricas (parti-
cularmente na América Latina) foge, como observa O'Donnel,
à concepção clássica do Estado como reflexo da sociedade ci-
vil. Ao contrario, ''quanto mais a inserção no mercado mun-
dial e as tentativas para definir e realizar o desenvolvimento
económico foram tardios, mais o papel do aparelho de Estado
(2) Dois outros artigosanalisam o período de forma comparativa: Trindade,
1984,e anualmenteem elaboraçãoTrindade, Hélgio, Penerraçâo do Estado e l)fnê-
mica libera!; Aspectos G)mparativos do P)'acesso Político Brasileiro e Argentino (no
prelo). Noutra perspectiva analítica ver importante contribuição de Alimonda(1982).
Análises recentessobre a formação do Estado Nacional insistem sobre sua origem na
sociedadefeudal em transiçãopara o capitalismoe, ao mesmo tempo, na especifici-
dade européia do fenómeno estatal(Anderson, 1977; Badie, Bimbaum, 1979; Stra-
yer, 1979). Deixando de lado a discussão sobre as fronteiras históricas do processo de
estatização" e a questão do "feudalismo"(Simonsen, 1944; Ribeiro, 1957; Furtado,
19S4), parece legítimo postular a existência efetiva de Estados nacionais na América
Latina, embora sua estruturação, diferentemente da tradição européia, estala intima-
mente ligada ao fato colonial e à sua herança politica.
50 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
nos países do Terceiro Mundo foi decisivo e extenso''. As con-
seqüências dessa proposição são várias. De um lado, além do
Estado desempenhar em diversas situações históricas decisi-
vas ''um papel mais importante que no centro capitalista, a
classe dominante nacional é filha do aparelho de Estado''; de
outro lado, o ''Estado não é a síntese idealizada da sociedade
civil existente'', mas, ao contrario, sua função é sobretudo de
ser o ''agente de uma síntese'' numa sociedadeprofundamente
heterogénea(O'Donnel, 1980: 769-770).
Essa analise ao destacar alguns elementos centrais na de-
terminação das ''especificidades'' do Estado latino-americano
(peso da herança colonial, tipo de inserção no mercado mun-
dial e articulação entre Estado e classe dominante), não men-
ciona outros fatores que também contribuíram decisivamente
para sua formação. Refiro-me, especialmente,à dinâmica in-
terna da economia; a relação entre regiões, ''centro'' (Badie,
Birnbaum, 1979)e unidade nacional; o perfil das elitespolíti-
cas e seu grau de autonomia com relação à classe economica-
mente dominante; a autonomia dos poderes civil e religioso; o
peso das forças armadas ou da burocracia, etc.
Por sua vez, a questãodo liberalismona América Latina
tem sido insuficientementeanalisada. Os especialistas reco-
nhecem a presença, sob a influência dos ideários liberais in-
glês, francês ou americano, de uma tradição antiga que se
manifesta, desde os movimentos emancipadores, na maioria
dos países do continente. Geralmente são considerados como
idéias importadas, socialmente ''fora do lugar'' (Schwarz,
1973), circulando nos setoresmais ilustrados das elites coloni-
zadoras ou crio//as, mas cuja influência seria restrita. A maio-
ria das análises, em conseqüência, interpreta o liberalismo
como uma manifestaçãopuramente decorativa, fruto do mo-
dismo ou mimetismo intelectual, e que, paradoxalmente no
Brasi[ até o final do sécu]o X]X, coexistecom a escravidão.
Deixou-sede considerar adequadamenteque, sob a hegemo-
nia do autoritarismo, quase sempre se preservaram no Brasil
instituições de tipo liberal e que esse hibridismo institucionali-
zado tem sido um dos traços fundamentais do sistema político
brasileiro.
Nesta perspectivaanalítica, mais do que discutir a per-
centagem de autoritarismo que poderia ser detectado mesmo
na maioria dos atuais regimes demoliberais, seria interes-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS SI
sante considerar a abordagem utilizada por Hermet ao anali
sar as diferentes estratégias liberais produzidas historicamente
pelas ''democracias fundadoras'' (Inglaterra, França e Esta
dos Unidos), mas valorizando igualmente as que se desenvol
viram em outras partes da Europa (Prússia, Espanha e ltâlia)
e no espaço político latino-americano. Esta démarc#e tem a
vantagem de desmistificar uma certa visão idealizada da bons
tituição das democracias clássicas (cuja evolução não foi sem
pre nem liberal, nem linearmente democratizante) e de valori
zar outros padrões possíveis de democratização dos sistemas
políticos ocidentais, seja através da via autoritária bismar
kiana ou bonapartista, seja através do ''subterfúgio cliente-
lista'' dos regimes europeus mediterrâneos (Hermet, 1983). A
reconstituição dos processos políticos reais mostra quão varia
dos e contraditórios foram os caminhos na construção das de
mocracias contemporâneas.Todo o problema, pois, é buscar
a /ógica/ibera/ no interior do sistemapolítico e a partir daí
ter condições de entender a dinâmica da democracia possível
Partindo dessesparâmetros, a comparação entre os siste
mas políticos brasileiro e argentino, sugere alguns traços dife
renciadores significativos tanto na formação do Estado quanto
na dinâmica liberal. Para os objetivos de nossa analise separa
mos dois processos que estão correlacionados entre si: 1) a
formação do Estado nacional e seu grau de penetração na se l
piedade civil; 2) a capacidade de mobilização da sociedade e a
conseqilenteampliação da arena de competição política. \qas
sa hipótese pressupõe que existam entre os dois países padrões
diferentesde ''desenvolvimento
político''. De um lado, o pa
drão argentino se configura por um processo fardfo de forma
ção do Estado nacional, enquanto que, no caso brasileiro, o
Estado se constitui precocemente. De outro lado, no plano
da dinâmicaliberal, o padrão é praticamenteinverso:en
quanto na Argentina o ritmo de expansãoda arena política e
mais/arfa e amp/o; no Brasil, ele se desenvolve de forma mais
tenta e restrita
A interação entre esses dois processos indica, de forma
tendencial, as diferenças entre padrões políticos que estão
provavelmente relacionados também com variáveis sócio-eco-
nómicas. Primeiramente, constata-se variações entre o pro
cesso de formação do Estado a mobilizaçãoda sociedade
cíl,í/ no período que se estende da independência até a década
S2 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
de 1930. No caso brasileiro, o Estado nacional intemaliza e
consolida as estruturas monárquicas oriundas do Reino Unido
de Portugal e do Brasil (1815) favorecendo sua centralização
precoce, enquanto que a mobilização somente se manifesta
lentamenteentre as décadas de 1920 e 1930. No argentino, ao
contrário, o longo e conflitívo processo de indecisão na consti-
tuição do ''centro'' provoca um retardamento na construção
do Estado nacional cuja organização definitiva ocorre apenas
em torno de 1880, embora a mobilização comece rapidamente
com a criação de partidos urbanos(Unión Cívica Radical,
1891 e Partido Socialista, 1898) .
Por sua vez, a relação entre a penefraçâo do Estado e
a competição po/íffca mostra-se igualmente diferente. Na Ar-
gentina, até o advento do peronismo em 1943, a penetração do
Estado na sociedadeé menos forte do que no Brasil. Nesse,
o processo de intervenção estatal na economia, por exemplo:
aumenta progressivamente com as crises sucessivas do café
(desde o Acordo de Taubaté em 1906), amplia seu campo de
ação nos anos 30 com a ascensão de Vargas ao poder (controle
da organização sindical), estabelecendo, durante o Estado
Novo (1937;1945), as bases de sua hegemonia sobre a socie-
dade civil. A ampliação da competição, porém, em termos de
expansãoda cidadania e participação política ocorre de ma-
neira mais ampla e precocena Argentina do que no Brasil,
acelerada pela reforma eleitoral de Sáenz Peça (1912) que via-
biliza a ascensãoao poder, em 1916,de um partido (UCR)
não controlado pela oligarquia tradicional e maioritariamente
apoiado nas camadas médias urbanas.
Como explicar as diferenças entre os dois padrões de ''de-
senvolvimento político''? Sem pretender dar uma resposta sis-
temática a esta questão, nossa análise busca localizar, numa
perspectiva comparativa, alguns fatores que permitam sugerir
os principais elementos de diferenciação e convergência entre
os dois padrões, embora sem atribuir qualquer determinismo
às referidas variáveis consideradas isoladamente .
No período colonial configuram-se dois traços estruturais
que são importantes para a compreensão dos casos argentino
e brasileiro. Primeiro, a organizaçãodistinta da economia
produziu efeitos significativos sobre sua distribuição espacial.
Na Argentina esta articulação foi relativamenterestrita em
termos territoriais quando comparada com as conexões inter-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 53
nas mais amplas da economia brasileira (Furtado, 1976). Se
gundo, o peso do legado institucional político-administrativo
foi diverso: no caso brasileiro, o aparato administrativo colo-
nial era mais complexo,produziu a formação de um ''esta
mento burocrático'' (Faoro, 1958) e transmitiu-se intacto em
função da forma pacífica em que se deu a transição para a
independência; a Argentina, pela sua condição de Vice-Rei
nado tardio (1776), herdou um arcabouço institucional mais
simples e descentralizado com relação ao controle metropoli
tano. Além disso, a estrutura aditada de início (com a depo
sição do vice-rei em Buenos Abres) foi totalmente alterada
através do prolongado e conflitivo processo de unificação
nacional
A importância dessestraços da fase colonial torna-se bas
tante evidente. Na Argentina, a ausência de uma articulação
mais ampla entre a economia e a ocupação do território, assim
como a frouxa e descentralizada ligação com a Espanha têm
provavelmente,efeitos sobre a formação tardia do Estado,
apesar da precocidade de sua independência nacional. De
forma inversa, a diversificação da economia brasileira na fase
em que entra em decadência a mineração e a longa tradição
de controle centralizado das instituições coloniais, favorecem
a complexidade e rapidez da configuração estatal
Com a ruptura do vínculo colonial se coloca para ambos
os países, como problema crucial, a criação de um ''centro
que propicie as condições de emergência de uma estrutura es
fatal. Se alguns fatores, como vimos, estão ligados ao período
colonial (diferenças na estruturação económica e político-ad
ministrativa), outros decorrem da forma como se deu a eman
cipação política. Primeiro, os dois países acedem à indepen
dência de maneira diferente: o Brasil conquista sua unificação
política rapidamente, entre 1822e 1825 (derrotado o movi
mento republicano no Nordeste. a Confederação do Equa
dor), enquanto na Argentina transcorre uma década entre a
insurreição portenha'' (1810) e o final da guerra da indepen
dência. Em segundo lugar, a política interna evolui de forma
radicalmente diversa: de um lado 'o esquema de tipo brasa
leito, de continuidade com relaçã o à administração colonial
de outro lado, ''a descontinuidade bastante brutal própria à
América hispano-americana ' (O'Donnel, 1980: 772). Essas
variações não se explicam apenas pelo passado colonial, mas

S4 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
também por uma série de outros fatores intervenientes no pe-
ríodo pós-independentista,produzindo dois efeitos distintos:
a manutençãoda unidade política, num caso, e a fragmen-
tação territorial, no outro.
De uma maneira geral, os sistemaspolíticosimplantados
nas ex-colónias espanholas enfrentavam um ''longo período
anárquico e muitos só chegavam a organizar o poder em bases
mais ou menos legítimas através de lideranças de tipo caudi-
Ihesco''. No caso brasileiro, ''se não se evitou um período ini-
cial de instabilidade e rebeliões, não chegou a ter uma única
mudança irregular e violenta de governo (não considerando
como tais a abdicação e a antecipação da maioridade), e con-
servou sempre a supremacia do poder civil'' (Carvalho, 1980:
IS). Em conseqüência, a manutenção da monarquia pela elite
política brasileira facilitou a transição e criou um consenso
básico entre os governantes, garantindo um nível razoável de
legitimidade e estabilidade ao novo regime, indispensáveis .à
preservaçãoda unidade territorial. Na Argentina, ao contrá-
rio. ''se houve unanimidade para a declaração da independên-
cia, não houve, em troca, com respeito à forma de governo que
adotariamas ProvínciasUnidas'' (Romeno, 1975:68). A au-
sência de uma definição clara dos limites territoriais do Es-
tado nascente, a secessão de varias províncias (Paraguai, Alto
Peru e Banda Oriental) e os conflitos económicose políticos
entre as elites regionais diante da vocação hegemónica de Bue-
nos Abres, gerando uma situação permanente de guerra civil,
mina em suas bases a legitimidade de qualquer ordem política
estável até 1880.
A construçãodo Estado, pois, dependeuem muito das
condiçõespolíticas e económicas próprias a cada país. De uma
parte, a forma em que surge o ''centro'' decorre, em grande
medida, da estratégia de integração nacional da elite que con-
trola o aparelho do novo Estado e de sua capacidade de coop-
tar as elites periféricas, estabelecendo as bases de um pacto
político estável. De outra parte, esse processo encontra-se inti-
mamente associado à estruturação económica, na medida em
que, em função do grau de concentraçãoou distribuição dos
benefícios no interior das elites, criam-se as condições mate-
riais indispensáveis à legitimação de um Estado com vocação
nacional. Esses dois processos condicionam-se mutuamente
ao longo do período.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 55
Sem dar um peso determinante seja a fatores económicos
ou políticos na equaçãofragmentação/centrotardio e uni-
dade/centro precoce, seria difícil excluir um do outro. Toda-
via, se as condiçõespróprias da estruturaçãoeconómicaofe-
rece um argumento forte, por outro lado não se pode deixar de
reconhecer que as opções políticas das elites na transição
(mesmo que a margem de escolha fosse limitada) produz efei-
tos.sobre a localização do ''centro'' com implicações sobre a
unidade territorial. Parece também decisivo o tipo de regime
implantado, que decorre da estratégia liberal adotada pela
elite política ao se apropriar seletivamente do estoque de idéias
e instituições extraídas do liberalismo dominante, segundo
seus interessespolíticos ou económicos. Mesmo não discu-
tindo as diferenças significativas entre os vários projetos libe-
rais em curso na América Latina. pode-se admitir que, à épo-
ca, uma monarquia constitucional à inglesa tivesse mais con-
dições de atingir esses objetivos do que um regime republicano
sob forte influência do federalismo americano. Nesta ética.
torna-seinteressante mencionar que o centralismo unitário do
Império brasileiro somente se rompe, em 1889, com o advento
da República, inspirada no mesmo federalismo que fez da Ar-
gentina (salvo durante o período da ''Federação Rosista'') um
caso extremo de instabilidade cíclica associada à descentrali-
zação política.
O Brasil, ao contrário da Argentina, defronta-secom as
contradições mais complexas do regionalismo (exceto as rebe-
liões regionais durante a Regência) somente no período repu-
blicano, quandojá tinha superado, em grande parte, as ques-
tões da unidade nacional e construído um aparelho estatal
complexo e estável. Esta diferença se explica pela própria ex-
periência política, segundo Santos, dos novos Estados inde-
pendentes: ''Todos os demais países latino-americanos já in-
dependentesda Espanha -- o Brasil foi uma das últimas coló-
nias a se tornar independente -- já estavam experimentando
as conseqüências da estratégia liberal. Haviam-se tornado au-
tónomos em relação ao poder colonial, abolido a escravidão e
esboçado excelentesconstituições políticas republicanas. O
união senão estava em que a realidade não replicava o que
fora planejado'' (Santos, 1978b: 76).
Entretanto, não se pode esquecer os efeitos do processo
económico sobre a formação do Estado. Oszlak, ao analisar a

56 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
formação do Estado argentino, reconhece que as condições de
uma economiamais integrada teriam, como no caso brasi-
leiro, somada à preservação de certas instituições coloniais, a
possibilidade de produzir ''o cimento que amalgamada a so-
ciedade territorialmente constituída ao incipiente sistema de
dominação, num estado nacional'' (Oszlak, 1982: 25).' Apesar
da interpenetração de variáveis políticas e económicas, a com-
paração entre os dois casos nacionais tende a mostrar uma
certa'preponderânciade fatores de natureza política. Este
dado, porém, não invalida a generalização de que ''as possibi-
bilidades de êxito para impor uma ordem nacional estiveram
condicionadastanto pela situação do mercado, regida pelo
grupo que controla as exportações-- monopólio dos portos,
domínio do setor produtivo fundamental, etc. -- como pela
capacidade de alguns setores das classes dominantes de conso-
lidar um sistemapolítico de domínio'' (Cardoso e Faletto,
1970:43).
A evidente importância dessa articulação permanece, po-
rém, muito geral e se constitui de fato numa espéciede con-
texto estrutural para explicação da emergência precoce ou tar-
dia do Estado na América Latina. As diferenças entre os pro-
cessos políticos argentino e brasileiro tornam-se mais nítidas
se agregarmos três outros fatores mais específicos e que de-
sempenharam, na nossa interpretação, um papel .estratégico
no ritmo da construção do Estado; primeiro, o perfil básico da
classe dirigente (unidade ideológica e treinamento político).e
seu papel na ruptura do vínculo colonial e na constituição de
um aparato estatal; segundo, as relaçõesentre a construção
do Estado e o desenvolvimento das formas de controle coerci-
tivo sobre a sociedade (papel do exército e milícias cívicas);
terceiro, o grau maior ou menor de dissociação entre o. poder
político e a Igreja, tendo em vista a tradição católica das po-
tências colonizadoras e a influência da instituição religiosa na
formação do sistema político. Nossa hipótese (que não será
analisada em detalhe) postula que as diferenças na forma de
(3) Sua analise demonstrou que a fragmentação argentina residia,. em grande
parte, na ''heterogeneidade dos interesses económicos.regionais''; ''nas dificuldades
para formar alianças estáveis que articulassemum sistema de dominação" e..na
r' ;ã' li;das instituições e I'ecursos ex stenak,pam e25nder o poder de um Estada
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS S7
interação desses três fatores com o processo de construção da
ordem política, durante a segunda metade do século XIX, têm
influênciadecisiva no ritmo de implantação do Estado nacio-
nal
Da mesma forma, poder-se-ia comparar as diferenças na
dinâmica liberal entre os dois países através da análise da re-
lação entre a penetração do Estado e o desenvolvimento da
competiçãopolítica. Uma discussãomais detalhada das ''es-
tratégias liberais'' implicaria uma analise sistemática da ló-
gica política de cada regime, a partir da forma como foram
solucionados certos desafios básicos, comuns a diferentes sis-
temas políticos. A significativa diferenciação entre novos fato-
res políticos (tipo de regime, partidos políticos, clientelismo e
mobilização política) e sócio-económicos (tipo de economia
rural, processo de industrialização, dominação oligârquica,
fluxo emigratório, urbanização e mobilização social) oferecem
novas articulações que permitem conceber hipóteses explora-
tórias (Germana, 1972).
No caso brasileiro, a penetraçãoampla do Estado asso-
ciada a outros fatores intervenientes (partidos políticos domi-
nantes, regionais e oligárquicos; forte enquadramento cliente-
lístico rural; ausência de camadas médias organizadas politi-
camente; organização sindical sob o controle governamental,
etc.) tiveram um peso importante na incapacidade, até a dé-
cada de 30, de viabilizar a institucionalizaçãode formas de
participação política e social oriundas da sociedade civil. l\la
Argentina, de forma inversa, a emergência precoce da mobili-
zação política e social criando condiçõespara que a partici-
pação política superasse os limites do liberalismo oligárquico,
esta provavelmente ligada a uma expansão e intervenção mais
limitada do Estado, viabilizando a estruturação de partidos
nacionais competitivos e um movimento sindical independente
do poder político.
Essas diferenças no padrão do ''desenvolvimento polí-
tico'' entre os dois paísesnão se explica, porém, pelo mero
jogo do ''acaso e da necessidade''. Um peso considerável deve
ser atribuído também às estratégias políticas das respectivas
classes dirigentese dominantes. Se, como salienta Santos, na
ética da elite política brasileira considera-seque ''para se ter
um Estado liberal é necessário em primeiro lugar que se tenha
um Estado nacional'' (Santos, 1978b: 81), seria legítimo dizer
58 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
que, no caso argentino, em função das aspirações próprias das
elites portenhas, a meta é edificar um Estado nacional que
seja, ao mesmo tempo, um Estado liberal. Esta diferença na
lógica política das classes dirigentes mostra, em grande parte,
por que a Argentina, embora em atraso com relação ao Brasil
na formação do aparato do Estado nacional, produz precoce-
mente as condições de emergência de um regime liberal demo-
crático. Este contraste, porém, não impede que, paradoxal-
mente, na década de 1930se altere novamente o curso do pro-
cesso político. A revolução de 30 inaugura no Brasil, com Var-
gas, as condiçõesde ascensão ao poder das oligarquias dissi-
dentes com as camadas médias urbanas (civis e militares) e a
crise do autoritarismodo Estado Novo abre a via ao popu-
lismo. Na Argentina, ao contrario, o sentido da intervenção
dos militares em 30 interrompe a experiência liberal do radi-
calismo e restaura a dominação oligárquica tradicional, pro-
vocando, em 1943, a reação ''populista'' do peronismo.
2. Sociedade agrária
e liberalismo oligárquico
No períodoque se estendeda instauraçãodo Império
(1822) à queda da Primeira República (1930), a sociedade
brasileira é preponderantemente agrária. As contradições po-
líticas e o controle do Estado se fazem quase inteiramente en-
tre oligarquias rurais. Em conseqüência, os regimes políticos
que se sucedem não ultrapassam os limites do liberalismo oli-
gárquico. Neste contexto, as principais características institu-
cionais do sistema político, que permitem compreender as
bases e os limites de sua dinâmica liberal, evoluem ao longo de
diferentes fases.
A primeira nasce cam a Constituição de 1824, que, inau-
gurando formalmente uma ''monarquia constitucional'', con-
cede ao imperador, através do ''Poder Moderador'' , um meca-
nismo de veto sobre o sistema. Esse poder será parcialmente
atenuado, a partir do Segundo Reinado (1841), produzindo a
divisão da elite política em dois partidos (conservador e libe-
ral), e viabilizando o funcionamento de uma monarquia par-
lamentar na qual o ''Poder Moderador'' torna-se um instru-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 59
mentode arbitragem política.' A participação eleitoralera li-
mitada por um sistema censitário que previa eleiçõesindiretas
para a escolha de deputados e senadores. Esse sistema, que
vigorou até a República (seguindo a tradição da escolha indi-
reta para as Câmaras Municipais da época colonial), funcio-
nava através de um mecanismo de votação em dois graus.
Com a queda da monarquiaem 1889começaa segunda
fase dentro do novo marco institucional republicano. Ainda
que preservada a dominação oligârquica, o novo regime acaba
beneficiando-se dos efeitos modernizadores, decorrentes da
abolição da escravatura (1888), sobre o desenvolvimento da
economiacafeeira que se dinamiza com a introdução do tra-
balho livre e imigrantes europeus. O novo.regime presidencia-
lista, sob o signo do federalismorepublicano, implanta um
regime político descentralizado, sob o controle de partidos
únicos regionais, representativos das oligarquias estaduais do-
minantes e coordenados nacionalmente pelo Presidente da
República. Com a Primeira República extingue-seo sistema
censitârio, mas os analfabetos são excluídos totalmente do di-
reito de voto (também os praças de pré e os religiosos em co-
munidadeclaustral). Apesar das restriçõesdo novo sistema,
''a classe dirigente foi capaz de utilizar o mecanismo de am-
pliação do regime representativo como meio de manter a efi-
cácia e a validez de sua posição perante a coletividade'' (Sou-
za, 1969:169).
Comparando os dois regimes em termos de dinâmica li-
beral, alguns autores admitem que a pratica do parlamenta-
(4) Entre as principais atribuições do Poder Moderador, segundo a Constitui-
ção de 1824, estavam as de nomear os senadores, escolhendo numa lista tríplice de
nomes eleitosnas Províncias; convocar extraordinariamente a Assembléia Geral(reu-
nião conjunta da Câmara e Senado); sancionar leis; dissolvera Câmara de Depu-
tados e nomear os ministros de Estado. As duas únicas constituiçõesque ''adotaram o
Poder Moderador orgânico e autónomo(ambas por influência de D. Pedra 1) foram a
brasileira de 1824e a portuguesa de 1826.
(5) A constituição distinguia os vofaPzfes(incluindo os analfabetos) dos eleí-
fores, reconhecendocomo qualificados para votar os indivíduos do sexo masculino,
maiores de 25 anos(com exceção dos bacharéis e oficiais, que podiam votar com
idade inferior) e dispondo de renda líquida anual de 100 mil-réis. Para ser eleito, os
requisitos eram os mesmos, acrescidos de uma renda correspondente ao dobro da
exigida ao eleitor. No final do Império, a Lei Saraiva(1881) rebaixa a idade mínima
(21 anos) e adota a eleição direta, embora elevando o nívelde renda do corpo eleitoral
para 200mil-réis. Esta alteração, porém, não representounenhum alargamentosig-
nificativo do nível de participação política(Kinzo, 1980).
60 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
ritmo do Segundo Reinado correspondia mais ao liberalismo
novecentista europeu que evoluía numa direção democrática
do que à pratica do presidencialismorepublicano, marcada
por uma forte dose de autoritarismo.' No Brasil as primeiras
pressões democratizantes buscando alterar a ordem liberal
excludente se desencadeiam apenas na década dos 20, quando
se inicia a crise da República Velha, que, com a Revolução de
30, submergeno centro de suas próprias contradições.Daí
poder-se considerar que o retardamento das demandas demo-
cráticas no caso brasileiro se explica, em grande parte, pela
revitalização da dominação oligârquica que se produz com a
implantaçãodo federalismorepublicano. O novo pacto das
oligarquias regionais sob a hegemonia dos estados dominantes
(São Paulo e Minas Gerais) reforçoua representatividadedas
elites locais, tornando mais eficaz sua dominação no plano
nacional.
Se historicamente as democracias liberais foram primeiro
liberais (e somente depois democráticas), as condições de fa-
zer avançar o liberalismo brasileiro começam a ocorrer com os
primeiros movimentos sociais e políticos do pós-Primeira Guer-
ra Mundial. Esse processo que se manifesta, ao nível das elites
políticas, com a campanha civilista de Rui Barbosa (1910) e
na oposição militar do tenentismo (1922-1926), insere-se, em
1930, no ideário político da Aliança Liberal com a candida-
tura de Vargas à presidência e será frustrado, após a Revolu-
ção de 30, pela conjugação de duas tendências antiliberais --
o estatismocrescentee o pensamentoautoritário -- (Lamou-
nier, 1974) que legitimam a implantação do Estado Novo. Não
obstante, as novas reivindicaçõesliberais e seu apelo demo-
cratizante (expressas simbolicamente na divisa tenentista de
''representação e justiça''), se incorporam na legislação elei-
toral de 1932e na própria Constituição de 1934. As insurrei-
ções sucessivas dos tenentes e a Coluna Prestes ''consistiram
numa dramática ruptura da juventude militar com o sistema
oligárquico e em favor da abertura do pacto político'', provo-
(6) Essa convicção levou um historiador liberal a dizer que a República era "a
substituição de um regime de lide consulta, no qual o govemo dependente dos votos
do Parlamento não podia entrar em conflito permanente com a opinião pública, por
um outro regime, intransigente e autoritário, todo baseado na vontade exclusiva do
chefe do Estado(Santos, 1930: 8).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 61
cando, num primeiro momento, o afrontamento entre ''duas
propostas conflitantes de liberalismo (o excludente e o demo-
cratizantey' e, mais tarde, permite que a Aliança Liberal
transcenda a mera disputa regionalistae se transforme num
prometonacional que busca legitimidade nas camadas médias
urbanas, superando os limites ideológicosdas oligarquias dis-
sidentes(Viana, 1976: 106-107).
Com a Revolução de 30, o sufrágio se torna secreto e qua-
se universal, com a introdução inclusive do voto feminino, em-
bora mantendoa exclusão dos analfabetos. A experiência,
porém, dura menos de uma década, porque a radicalização
político-ideológica dos ''anos críticos'' entre 1934e 1938(Le-
vine, 1980),provocada, em grande parte, pela mobilizaçãode
massaoriunda de dois movimentospolíticos nacionais,' so-
capao consenso revolucionário e produz efeitos perversos. Es-
vazia politicamente, de um lado, o ideário liberal que dera
é/an ao movimento de 30, reforçando as tendências autoritá-
rias do Governo Provisório que haviam sido retardadas pelo
regime liberal da Constituição de 1934; de outro, oferece ao
regime os pretextos de ''crise" que legitimam o golpe militar e
frustram as expectativas de alternância democrática na suces-
são de Vargas em 1938. Com a instauração do Estado Novo
ocorre um refluxo autoritário, sob o controle de uma estru-
tura de poder centralizada, desmobilizadora e paternalista
que, dissolvendo os partidos, estabelece a matriz burocrático-
corporativa do Estado brasileiro.
Ao tentar definir os traços básicos do processo de confi-
guração do sistema político, constata-se que o padrão brasi-
leiro de interação Estado-sociedade civil contém dois compo-
nentes fundamentais, ambos bloqueadores do desenvolvimen-
to democrático: de um lado, a expansão de mecanümos eifa-
tais de controle tendendo a reduzir o espaço de estruturação
autónomada sociedadecivil; de outro, a atitude persistente
das elitespolíticas, independentemente dos regimes políticos,
(7) 1nregralismo, movimento fascista organizado nacionalmente, em 1932, e
que atinge antes da implantação do Estado Novo quase um milhão de adeptos e sim-
patizantes; .4/lança .Nbcibna/Zfóe#adora, movimento de massas lançado em meados
de 1935, sob o controle do PCB e tendo como presidente de honra LuasCarlos Prestes.
Maiores detalhessobre a AIB em Trindade(1981), e sobre a ANL em Rodrigues
(1981')
62 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
de dissuadir formas de participação de tipo liberal-democrâ-
fíco. A articulação contínua entre ambos não provocou, no
período considerado, nenhuma ruptura global com a socie-
dade civil, devido, em grande parte, à flexibilidade do pacto
oligárquico mantido por uma elite ao mesmo tempo represen-
tativa da sociedade agrária e experientena condução do Es-
todo
a presidenteque detém o poder Executivo, retira sua legitimi-
Nas diferentes fases da evolução do sistema político as
formas de controle do Estado e de dissuasão das elites polí-
ticas se diversificame se consolidam. Mesmo não concor-
dando com o peso atribuído por Raymundo Faoro ao ''esta-
mento burocrático'' (especialmente antes da transferência da
corte portuguesa em 1808), parece indiscutível que, com a in-
dependência,se inicia o processo de formação de um Estado
burocrático-tradicional que busca impor sua hegemonia sobre
a ''ordem privada''. Esse processo acaba por facilitar, sobre-
tudo com a autarquização da economia agrária, uma maior
articulação entre o Estado e a classe economicamente domi-
nante, pois tratava-se de criar arranjos que viabilizassem ''or-
ganizar politicamente espaços relativamente grandes com a
ajuda de meios de uma civilização subdesenvolvida'' (Centra,
1974:51)
No Império, além do desafioda integraçãonacionaldas
forças regionais e dos interesses económicos feudalizados, tor-
na-se a preocupação principal da classe dirigente construir um
sistema político estávelque consiga impor sua dominação so-
bre o conjunto da sociedade. A partir dessa época o processo
de supremacia do Estado se estabelece e as formas de controle
sobre a sociedadeampliam sua rede. A monarquia constitu-
cional hierarquiza seu poder em diferentesníveis. Na cúpula
do sistema esta o imperador armado do ''Poder Moderador''.
A agregação de interesses que inicialmente se manifesta atra-
vés de facções (''nacionais l,erszzsestrangeiros'') e de socieda-
des políticas (''Sociedade conservadora'', ''Sociedade defen-
sora'' ou ''Sociedademilitar'') passa a fazer-se, a partir de
1837, pelos primeiros partidos políticos (Conservador e Libe-
ral). A mediação entre o centro político e a extensa periferia
do sistema se faz, desde 1831, através da Guarda Nacional
que, enquanto mí/feia de cidadãos, ''favorece o aliciamento da
cooperação das classes privilegiadas para a organização patri-
monialista do Estado'' (Uricoechea, 1978a: 88).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 63
Com a proclamação da República, o novo discurso liberal
de inspiração jeffersoniana (apesar de suas variantes regio-
nais) proclama a idéia federalista se contrapondo ao centra-
lismo do Império. A pratica política da Primeira República,
porém, obedece a um esquema institucional cuja lógica oligár-
quica era diferente da monarquia. No ápice da pirâmide, o
dade do pacto político denominado ''política dos governado-
res". Os partidos únicos regionais garantem, da mesma forma
que o bipartidarismo do Império, a hegemonia da classe do-
minanteagrária, embora sob a égide dos estadospolítica e
economicamente mais poderosos, articulando-se nacional-
mente sob a direção do presidente da República. Finalmente,
a reconversãodas funçõesmilitarese cívicas da Guarda Na-
cional em cargos honoríficos de caráter político (''coronéis''),
concede ao sistema uma forma eficiente de mediação entre o
centroe a periferia atravésdo ''arranjo coronelístico''.(Cen-
tra. 1974)
A fase de transição do regime em direção da ''república
populista''começacom a ascensãode Vargas ao poder.8 O
desafio principal da nova ordem gerada pela Revolução de 30
(em que a ruptura da aliança dos estados dominantes produz
a queda da Velha República) é o de definir um novo modelo
político capaz de substituir o pacto oligárquico em crise. Este
seelabora pela via estatal, reestruturando de forma mais au-
tónoma as relaçõescom as oligarquiasregionais e estabele-
cendo novas formas de representação e participação das clas-
ses médiase do operariado. O laboratório político do Estado
Novo, utilizando-se voluntariamente do retrocesso autoritário
produzido pela classe política no poder (com a participação da
alta hierarquia do Exército), elabora os parâmetros do novo
paradigma em cujas bases se assenta até hoje o sistema polí-
tico brasileiro.
A experiência do Estado Novo estabelece as condições de
consolidação de um Estado nacional estruturado, sob a prote-
ção do estamento militar, definindo as formas da representa-
ção.dos novos interesses industriais (Diniz, 1978) e da organi-
(8) Varias encama sucessivamenteo chefe do Governo Provisório(1930-34), o
presidente da República constitucionalmente eleito(1934-37) e, sobretudo, o Chefe
da Nação, com a implantação do Estado Novo(1937-45).
64 BASESDA DEMOCRACIA BRASILEIRA
zação corporativa do sindicalismo, deixando sua base de sus-
tentação política como herança para a ''democracia popu-
lista''. O autoritarismo varguista, pois, com a deliberada des-
mobf/ízaçâopo/íffca, propicia a formação de uma nova elite
política leal ao Estado centralizado e, com a desmoblZízaçâo
sacia/ assenta as bases de controle corporativo do movimento
operário nascente.o
A contrapartida principal do esgotamento do regime oli-
gárquico-liberal da República Velha foi o reforçamento da cen-
tralização e da autonomização relativa do Estado em face da
sociedade. Esse processo não pode ser compreendido sem con-
siderar o peso das Forças .Armadas na balança do poder.
Como observa Carvalho, ''as transformações sociais verifica-
das no período, tendentes a reduzir a influência política e eco-
nómica de grupos rurais através da urbanização e industriali-
zação, produziram importantes aliados para as Forças Arma-
das''. Entretanto, não era apenas o processo de mudança eco-
nómico-social que abria novas perspectivas aos militares. Es-
sestambém se transformavam redefinindo seu papel na socie-
dade: desaparece o ''soldado-cidadão'' das insurreições con-
testatáriasdo tenentismopara surgir a ''corporaçãoe a clas-
se'', dando origem ao padrão de intervenção ''controladora''
sob a égideda alta hierarquia militar (Carvalho, 1974: 161,
162). Essa situação se consolida com o golpe de 1937, quando
''a construção do Estado Novo e a institucionalização da iden-
tidade do Exército eram uma mesma e única empresa'', fa-
zendo com que a ''simbiose Exército-Estado" se exprimisse
numa ''doutrina militar de efeitos duradouros'' (Campos,
1976: 98). Todos esseselementosindicam o importante papel
do Exército na transição para um sistema marcado por uma
maior autonomia do Estado em face das elites agrárias tradi-
cionais: apesar das divergênciasentre eles, ''tenentes, jovens
turcos e moderadores, todos concordavam nos propósitos cen-
(9) O Estado Novo apenas mais recentementetem sido objeto de estudos aca-
dêmicos, embora até agora não tenha sido publicada nenhuma obra definitiva sobre o
período. Ver Sola (1969); Carone (1977); Oliveira ( 1981); Diniz (1981); Schwarbman
(1983). Convém ressaltar, porém. que o "Estado Novo não inventou a centralização
do Poder Executivo federal. nem a expansão da presença estatal na economia. Ten-
dências neste sentido vinham pelo menos desde os primeiros anos deste século. Deu-
Ihes uma legfrfmaçâoe uma consisfêücfa ínsfltucfona/ xem diívfda frreversípels"(La-
mounier, 1981).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 65
tralizadores que eram basicamente anti:rurais e antiestados
(Carvalho, 1974: 185, 186), e que ''a participação das Forças
Armadas na Revolução de 30 e na instauração do Estado Novo
tem essencialmente por objetivo rl::forçar o Estado centra/
(Rouquié,1980:18)
Voltando à questão inicial das relações entre sociedade
agrária e ordem política, constata-se que a configuração do
sistema político até a década de 30 mostra que o controle do
Estado pela classe dominante rural, apesar da passagem do
regimemonárquico ao republicano, não alterou significativa
mente sua natureza. A elite política do Império, impregnada
pelas práticas e valores de uma sociedade rural e escravocrata
ao ser afastada do poder, vê-se substituída por uma nova elite
(inclusive em termos geracionais) que sendo mais federalista
que abolicionista prefere a descentralização regional a um in
crementoda participação política. Embora o dinamismo eco-
nómico da fase cafeeira introduzindo o trabalho livre e a imi
gração (repercutindo também nos níveis de urbanização) te
nha sido um avanço com relação à economia feudalizada e
escravocrata do Império, a dominação agrária permanecia in
tanta e as formas de controle da oligarquia rural (apesar da
eliminação do censo) sobre o Estado foram reforçadas. As pri
meiras fissuras do Estado oligárquico começam a se manifes
tar somente na década dos 20, quando o liberalismo conserva
dor sofre as primeiras investidas dos movimentos sociais e po-
líticos exteriores ao seu controle (Viana, 1976; Saes. 1975
FoÜaz, 1977)
A nova fase de transição, porém, ao desarticular proviso
riamente a relação Estado-elite agrária, preparou moderni
zando e dando novos papéis a essa mesma elite, o advento de
um novo pacto social que viabiliza no pos-guerra o avanço
democrático populista. 'A posição privilegiada do Estado e a
natureza da coalizão que se consolida depois de 1930'', como
ressalta Reis, ''são os elementos-chave para uma compreensão
do processo modemizante que tem lugar com Vargas
bora percam a exclusividade da representação, as elites agrâ
rias não são alojadasdo poder, No novo arranjo político, elas
dividem o poder com as elites industrializantes, sob o patro
cínio de um Estado significativamente autónomo. A preserva
ção do sistema de propriedade da terra e das relações de tra
banhono campo permitiu manter inalteradas as bases do po-

BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
der local dos latifundiários. No contexto urbano a estratégia
adotada para incorporar a classe trabalhadora ao sistema po-
lítico atrelou-a firmemente ao controle do Estado. A moder-
nizaçãope/o a/lo gradualmente se afirmou, promovendo mu-
danças decisivas, sem contudo permitir uma ruptura radical
com os antigos padrões de dominação'' (Reis, 1982: 340). Sem
o aprendizado político do Estado Novo, pois, decorrente da
ação do Estado nos setores de sindicalização, representação
de interesses, tecnificação é modernização económica, a nova
elite provavelmente teria dificuldades de entrar como princi-
pal paper/cafre no novo pacto que se estabelece no pós-guerra,
instituindo a democracia populista.
3. Lógica liberal e praxis autoritária
A questãoque resta discutir diz respeitoa uma das sin-
gularidades do sistema político brasileiro: como explicar que,
numa sociedade em que prepondera um secular autoritarismo
social e político, coexistam instituições e praticas liberais? Es-
ses componentesliberais não se limitam a uma pura retórica
política das elites ou a uma dimensão formal das instituições,
mas estão presentes na reflexão teórico-ideológica, no funcio-
namento das estruturas e na pratica política. O fato de que os
:'liberais doutrinários'' (Santos, 1978b: 78) nunca tenham
controlado duravelmente o poder desde o Império (o que toma
a questão mais paradoxal), não deve induzir à falsa conclusão
de que a ordem liberal não tenha importância no Brasil. Ca-
beria, no entanto, buscar entenderos limites do liberalismo
brasileiro através de suas manifestações durante o Império e a
República Velha, a fim de melhor penetrar nos fundamentos
ideológicosdo sistema político. Para tanto, torna-se indispen-
sável esboçar alguns traços das instituições e do seu conteúdo
ideológico, ainda que limitados ao nível político. Sem retomar
a discussão sobre o caráter socialmente etnocêntrico das ideo-
logias políticas, estudos recentes têm mostrado que o ideário
liberal, mais do que uma importação cultural, correspondia a
certos interesses e aspirações reais das elites brasileiras desde
a época anterior à Independência.
Embora a importância do liberalismo seja reconhecida
por gregos e troianos, tornou-se um lugar-comum na litera-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 6
tura o reconhecimentode seus limites. Enquanto uns conside-
ram que ''as ideologias políticas liberais tendem a se localizar
predominantemente entre grupos sociais relativamente restri-
tas, ainda que social e economicamente bem postos, e sempre
tiveram um conteúdo social bastante reduzido'' (SchWartz-
man, 1982: 10); outros, mesmo valorizando a ''praxis liberal'',
reconhecemos limites da implantação de uma ordem liberal
porque ''embora seja possível que exista agora uma burguesia
nacional brasileira, integrada via mercado interno, parece al-
tamente improvável que venha a ser suficientemente forte para
conquistar o monopólio ideológico da organização militar, do
sistema educacional e da burocracia pública -- o que tornaria
viável a implementação de uma ordem liberal no sentido clás-
sico'' (Santos, 1978b: 116).
No caso brasileiro (diferentemente dos países hispano-
americanos), o liberalismo identifica-se originariamente como
''a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão'' que em vez de
identificar-se ''com a liberação de uma ordem absolutista'',
preocupa-secom a ''necessidade de ordenação do poder na-
cional'' (Barreto, 1977: 110). Além do mais, era avesso ao li-
beralismo radical francês considerado como uma ameaça à
sociedade civil e propenso à anarquia e, conseqüentemente,
era um liberalismo ''lockeano'' e ''pré-democrático'' (Uricoe-
chea, 1978a:.84). Esses traços explicam o seu conteúdo visce-
ralmente conservador.
A idéia subjacente a essa concepçãoliberal é de que
''tudo deveria ser feito l)ara o povo mas nada pelo povo''. No
Império, ''o Estado liberal nasceria em virtude da vontade do
próprio governo e não em virtude de um processo revolucioná-
rio". Com essa orientação ideológica compreende-se melhor o
traço básico do liberalismobrasileiro: enquanto ''o Estado li-
beral anglo-saxão existia para garantir aos homens a fruição
de suas propriedades'' e ''a Reforma libertara as consciências
dos entraves colocados pela tradição católica'', (. . .) ''no fundo
da cultura portuguesa'' (apesar da reforma pombalina) havia
''uma razão religiosa para afastar do indivíduo os instrumen-
tos de riqueza''. Portanto, pode-se interpretar que a ''acumu-
lação de riquezas seria para a cultura política luso-brasileira
uma/unção do .Enfado, que passa a exercer o papel de prote-
tor da sociedade'' (Barretto, 1977:89, 90).
A mesma idéia de um liberalismo funcional às exigências
68 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
da estruturação autoritária da sociedade reaparece na analise
da Primeira República: ''as normas liberais que regiam o qua-
dro políticoe económicobrasileiro não devemser vistas so-
mente enquanto características impostas externamente''; mas
''sua utilização foi possível desde que também se revelou ins-
trumental no processo político e económico do país'' (Souza,
1969: 168). Entretanto, ainda que se possa admitir a funcio-
nalidade do liberalismo, parece indispensável distinguir insti-
tuições formais e pratica política. O liberalismo económico
praticado pelos cafeicultores paulistas (parcialmente compro-
metido pelo Convénio de Taubaté de 1906 quando o governo
intervémna defesa do preço do café) buscava, no plano polí-
tico, instituições políticas correspondentes: ''além da influên-
cia da Constituição americana a absorção do liberalismo polí-
tico foi possível e desejável internamente, dentro das novas
características do quadro político'' da República Velha. Muito
embora o sistema liberal não tivesse condições de estender-se
ao conjunto do país, a presença de uma ''estrutura flexível''
concedeu ''à cúpula dirigente mais tarde um meio de renovar-
se no poder, ampliando suas bases de legitimação política''
(Souza, 1969: 168, 170). Convém ressaltar, no entanto, que,
com a pratica da ''política dos governadores'', o funciona-
mento do sistema republicano oligárquico ''esvaziou o mer-
cado político dé' qualquer conteúdo liberal substantivo que
pudesse ter'' (Santos, 1978b: 92).
Apesar das disposiçõesliberais dos republicanose do
avanço que representou a expansão da representação e parti-
cipação política, não seria excessivoinsistir que o exercício do
liberalismo no Brasil foi bastante condicionado pela domina-
ção económica e política das elites agrárias. Esta observação
torna-se mais significativa quando se compara a lentidão e
atraso da ''dinâmica liberal'' no Brasil com a experiência li-
beral-democrática ocorrida na Argentina entre 1916 e 1930.
Como salientaViola, após a Reforma Política de 1912 de
Sáenz Peça ''os elementos fundamentais para a instauração
de um regime democrático estão dados: existência de um par-
tido opositormajoritârio (a Unión Cívica Radical) cuja pro-
posta fundamental é a democracia política e que canaliza tan-
to os setoressecundários das classes dominantes quanto am-
plas camadas médias urbanas e rurais; existência de um Par-
tido Socialista que agrupa um setor dos trabalhadores urba-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 69
nos, cuja proposta básica também é a da democracia política
a curto prazo, além do socialismoa longo prazo''. Durante
esseperíodo, que se interrompe com o golpe militar em 30,
''a base popular da autoridade estatal'', prossegue o autor,
''se ampliou notavelmente; os procedimentos parlamentares e
os partidos políticos conquistaram um lugar importante na
articulação e agregação de interesses; os militares mantive-
ram-se fora da cena política; existiu uma ampla liberdade de
reunião, expressão e organização política; os direitos e garan-
tias do indivíduo frente ao Estado foram respeitados, ao me-
nos na região pampeana. A presença simultânea desses ele-
mentosnos permite caracterizar esse período como de vigên-
cia de um regime liberal-democrático'', mas não ''democrá-
tico sfrlcfzzsenitz, devido ao fato de que permaneceram duas
limitações fundamentais em termos de cidadania: as mulheres
e os estrangeiros (esses últimos constituindo uma proporção
muito alta da população economicamenteatava) carecem de
direitos políticos'' (Viola, 1982: 1, 2).
No caso brasileiro, o Estado não enfrentou, pela ausência
de uma diversificação social ligada a um desenvolvimento
mais intenso da economia e dos níveis de urbanização, como
ocorre na Argentina, ''o desafio de mediar entre interessesso-
ciais conflitantes; não se viu ele na contingência de celebrar
alianças políticas típicas com um setor urbano combativo,
comoseobservahistoricamenteno caso da Inglaterra, nem se
aliar com um campesinato independente, como ocorreu no
caso francês'' (Reis, 1982: 339).
Considerando, pois, as limitações do liberalismo brasi-
leiro, caberia perguntar como se articulam no sistema polí-
tico brasileiro a lógica liberal e a praxis autoritária. No ensaio
sobre ''A praxis Liberal no Brasil'', Santos reconhece ''a ten-
dênciaà centralização, ao aumento das atividades regulatórias
do Estado e ao alargamento do escopo de sua capacidade ex-
trativa, e eventualmentedistributiva, sempre estevepresente
na história brasileira''. Parece contraditório, no entanto, que,
dentre as diferentes tradições de pensamento autoritário, o
autor considere que ''representa a forma mais antiga e resis-
tente'' a que denomina de ''auforífarümo fnsfr"t/menta/". Esta
Postularia ''o elercícfo autoritário do poder'' como "a ma-
neira maü r(íplda de se conseguiredificar uma sociedadelibe-
ral, após o que o carâter autoritário do Estado pode ser ques-
70 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
tionadoe abolido''. Essa concepçãode um autoritarismocomo
''formato político transitório'' (cujo teórico principal foi Oli-
veira Vianna), e que poderia ser assimilada à astral(gala bona-
parfüfa (Hermet, 1982), parece questionávelnum ponto es-
sencial: como explicar sua longa vigência histórica? A objeção
se reforça quando Santos sugere ''descobrir sinais de autori-
tarismo instrumental desde o início da história independente
do Brasil". Se Oliveira Vianna propunha, segundo a interpre-
tação do autor, um modelo de autoritarismo transitório ''para
criar as condiçõesque tornariam o liberalismo viável'', sua
permanência tem sido excessivamentelonga. Não apenas por-
que ''o Estado Novo, instituído em 1937, deu forma ao Estado
forte pretendido pelos autoritários instrumentais'', como,
após terem desaparecido ''durante muito tempo do cenário
ideológico'' (referindo-se à fase da democracia populista),
movimento militar de 1964acabou com o período de democra-
cia limitada no Brasil e assumiu a agenda dos autoritários
instrumentais dos anos 30'' (Santos, 1978b: 103, 106, 108).'"
Na realidade, a singularidadedo sistemapolítico brasi-
leiro é a sua persistente hibridez ideológica e institucional,
combinando estruturas e praticas políticas autoritárias e libe-
rais. Desse traço básico que se mantém associado ao tipo de
dominação da formação social brasileira desde a fase colonial,
decorre a hegemonia do padrão autoritário combinado com
surtos de expansão liberal (ou democratizantes como
1945), frustrados, geralmente, por crises políticas e instabili-
dades cíclicas. Nessa linha de raciocínio (se nos restringirmos
(lO) A crítica refere-se à equivalência entre os tempos ''instrumental"
sitório", sem que serejeite a ideia desenvolvidapor Carvalho de que o padrão brasi-
leiro é o ''de liberalizar a sociedadeatravés da política, fenómeno já percebido à
época pelo senador Vergueiro, ao afirmar que o Brasil anteêipara a organização polí-
tica à social"(Carvalho, 1980: 181). Nada impede, porém, que variantes da interpre-
tação do ''autoritarismo instrumental'', inspiradas em outros esquemas interpreta-
tivos(o modelo bismarckiano), estendam sua necessidade a um horizonte longínquo.
Recente ensaio não apenas estabeleceuuma linha de continuidade entre o Estado
Novo, o ''autoritarismo populista" e o "autoritarismo burocrático-militar"
mas profetiza utopicamente a desaparição dos mesmos com o perecimento do próprio
Estado: ''A largo prazo -- e a despeito de tais ou quais vicissitudes económicas con-
junturais -- o Estado, atravésda expansãode sua maquina governamentale, sobre-
tudo, de seu aparelho produtivo, terá cumprido o seu papel. Fazendo florescer a eco-
nomia e, deste modo, criando as condiçõespara a emergência de uma sociedade
autónomade classes,terá produzido, em última instância, as corzdfçõeide sua pn5-
pria relírada para o.fundoda cepzasacia/e políffca(grifo nosso)(Tapares, 1982: 181)
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 71
ao nível da superestrutura política), tem-se condições de en-
tender, na conjuntura atual, tanto as dificuldades de institu-
cionalização
da democraciaquantoa do autoritarismo.
A
ideologia e as instituições liberais remanescentes estabelecem
entraves à consolidação dos regimes autoritários e, por sua
vez, o peso das estruturas políticas e sociais autoritárias defi-
nem os limites aceitáveis de democracia política.
Esta peculiaridade explica por que Schmitter, referindo-
se ao Brasil, cunhou dois conceitos sincréticos: ''democra-
dzzra'' (''tentativa de adaptar o sistema político autoritário às
exigênciasmínimas da democracia formal sem modificar suas
estruturas essenciais'') e ''dlcrab/a/zda'' (''restabelecimento da
ordem autoritária .nos momentos de crise ou decadência da
situaçãoanterior'') (Schmitter, 1971; Schmitter, 1973). Da
''o mesma forma Lamounier refere-se ao ''sistema político hí-
brido'' que se instaura no pós-30 e cujos ''conceitos apropria-
dos'' somente foram desenvolvidos por Vector Nunes Leal, em
sua obra clássica sobre o ''coronelismo'' (Leal, 1948), ao des-
crevo-locomo ''um equilíbrio instável entre o sistema oligár-
quico liberal em decadência e um poder público fortalecido''
Esta mesma perspectiva analítica legitima também o conceito
de ''democracia e/aflora/'' utilizado, mais tarde, por Jaguari-
be para caracterizar o período 1945-1964(Lamounier, 1982:
414;Jaguaribe, 1962: 175). Por que não admitir, enfim, no
em conceito de ''democracia re/atira'', inspirador do atual projeto
de ''abertura política'' no Brasil, a ideia subjacente de insti-
tucionalização de uma forma de azzforífarismo /fberaJ? O sin-
cretismo da terminologia utilizada comprova a insufuciência
do conceito de ''autoritarismo'' ao se aplicar a um sistema polí-
e "tran-
tico no longo prazo. A análise do caso brasileiro parece ofere-
cer um rico laboratório de experiências para uma reflexão crí-
tica sobre o uso indiscriminado do conceito de ''autorita-
rismo''
Retornando à questão inicial das bases e /ímlfes da demo-
cracia /zo.Brasa/,conclui-seque a formação e o padrão evolu-
do pós-64,
tivo do sistema político, i' da monarquia constitucional à repú-
(11) Nossa análise converge, aliás, com a de Aspâsia Alcântara Camargo, que
considera(mesmo até a década de 60), ser a característica do "made/o po/ífíco brasi-
leiro, por seus diferentesreajustes no curso da História", a de "ter secretadouma
classe política simultaneamente vinculada aos interesses agrários e ao desempenho
72 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
blica populista, demarcam as fronteiras da democracÜ pos-
sível. O novo período que se inaugura em 1945 é tributário,
em grande parte, de dois processoscontraditórios e conver-
gentes. De um lado, a ampliação progressiva das bases de uma
maior competitividade política, estimulada pelas divergências
entra-oligárquicas e pela incorporação de novos atires polí-
ticos e sociais, gera aspirações quanto à extensão da arena
política para a prática e institucionalização de um sistema li-
beral mais aberto. De outro lado, a interrupção desse pro-
cesso, com a implantação do Estado Novo, reforça e amplia o
campo de ação do aparelho estatal e organiza novas formas de
representaçãoe de controle. Esses dois processos, aparente-
mente excludentes, ressurgem conjugados, moldando o sis-
tema no qual subsistem acoplados os componentes autoritá-
rios-liberais, embora num contexto de participação política e
social ampliada. Na compreensãoda /óglca /ibera/ que co-
existe persistentemente com uma praxis auforífárla, encontra-
se o segredo da diabética do sistema político brasileiro no pas-
sado e no presente.
das funções de Estado" que ''adquiriu a indispensável coesão que a fará presidir um
longo processo de transição social, mantendo sob o controle o alargamento e a com-
plexificação da comunidade política"(Camarão, 1981: 123).
A democracia populista
(1945/1964):
Bases e limites
Mana do Calmo Campello de Souza+
(.J ''ciclo populista'' brasileiro é frequentemente citado
como exemplo clássico de instabilidade endêmica, arremedo
de democracia e substituição por regimes ditatoriais.' Não
(+) Mana do Carmo C. de Souza é professora de Ciência Política da
USP e pesquisadora do IDESP ( São Paulo)
(1) Na literatura brasileira .se chamar "ciclo populista" o pe-
Fiadoda história do Brasil que se estende de 1946 a 1964, no qual a passagemda
política de "notáveis" para a política de dentro de um quadro constitucio-
nal liberal representativo é matizada através de m institucionais e ideo16-
gicos que interessesde classe, apagam sua identidade e impedem sua ação
política autónoma. Para autores que se dedicaram ao tema em questão, no Brasil, tal
modalidade de processo político verificar-se-ia em razão de uma situação onde, não
havendo hegemonia de uma classe social, coube ao Estado, na qualidade de árbitro
entreas classes, ditar as regras do jogo político e o caráter de "] 1" da partia
poçãopopular. Tal amplamente difundida na sociologia política brasa
leira e desenvolvida sobretudo por Weffort(1978) inspira-se no conceito mamista de
Estado bonapartista e tte. No Brasil, dada a incapacidade da burguesia
industrial de exercer seu papel hegemónico, o Estado chamaria a si o papel de pias
mar a organização política e económica nacional e nessa tarefa procuraria nas classes
populares fontes de legitimidade para o exercício do poder. Historicamente o início
desseprocessose situaria a partir da Revolução de 1930, que decreta a perda do
monopólio. do poder pelas classes agrárias e teria seufim em 1964
com a do regime autoritário, que se baseada em outra aliança de classe.
Outros estudos vão procurar nas características do processo de modernização latino-
respostas para muitas das questões sobre o surgimento do e
74 A DEMOCRACIA POPULISTA 194S-1964:BASES E LIMITES
semrazão. A exclusãode grande parte da populaçãodo pro-
cessopolítico durante o período,: as crises freqüentesque
pontuaram seu funcionamento, 3 e o golpe militar, em 1964,
que Ihe põs fim, fazem dele um exemplo do que até aqui se
tem afigurado como o sombrio horizonte das democracias la-
tino-americanas.
O intuito deste ensaio não é negar o que já é conhecido e
aceito, ou seja, que o regime populista brasileiro não atendia
às exigências de uma real democracia de massas; tampouco é
contestar seu desenrolar difícil e instável. O que nos interessa
é precisamente entender as causas. Afirmar a imperfeição da
democracia brasileira no período -- admitindo, para fins de
argumentação, que se trate de uma singularidade brasileira
ou latino-americana-- é dizer muito pouco. E a explicação
desse fato que se apresenta como tarefa para a analise política
e sociológica. Além do mais, freqüentemente as observações a
respeitodo caráter elitistaou do ''formalismo democrático''
do populismo brasileiro se têm mantido nos estreitos limites da
acusação. Com isso encobrem a presença de aspectos institu-
cionais democráticos naquela ordenação política, aspectos
cuja constatação e entendimento se impõem aos que se preo'
cupam em compaginar proJetos de desenvolvimentoeconó-
da instabilidade dos regimes latino-americanos que nele se baseiam. Dentro dessa
perspectiva, em linhas muito amplas, o processo de modernização nesses países teria
antecedido o desenvolvimentoda economia, levando a uma situação onde a satisfação
das demandas populares -- ou a pressão nesse sentido através de líderes carismáticos
ou messiânicas -- antecede o desenvolvimento mais pleno da acumulação do capital
ou dos recursos estatais. Grande parte das análises sobre o "peronismo" na Argen-
tina e o ''getulismo'' no Brasil, tem, em graus variados, se baseado em tais linhas
gerais de interpretação.
(2) Os dados sobre a participação eleitoral mostram que -- sobretudo em
razão das restriçõesimpostas aos analfabetos-- entre a população brasileira maior
de 20 anos, a percentagem de votantes era de 37%oem 1950 e de 38%nem 1960
(Alencastro, 1983). Esse é um dado de importância, considerando-seque o voto se
constituía no único recurso de poder político à disposição das massas rurais e da
grande maioria das camadas populares urbanas para terem acessoaté mesmo aos
benefícios clientelistasgcvemamentais ou privados.
(3) Refiro-me às crises que se sucederam a cada eleição presidencial realizada
duranteo período, bemcomo aquelasque conduziram ao suicídiodo presidenteVar-
ias em 1954, à renúncia do presidenteJânio Quadros em 1961 e ao golpe de Estado
em 1964. Todas elas envolveram grupos militares e setores civis ligados ao principal
partido de oposição, a UDN, em tentativas de golpe de Estado. Para uma análise dos
golpes e tentativas de golpes militares, ver Stepan, 1971. Para a atuação militar no
período, consultar também Campos, 1976, e Rouquié, 1980.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 7S
mico e mecanismos de um pluralismo democrático, recusando
a fatalidade de ''nosso destino autoritário''
A literatura interessada em explicar o problemático ca-
minho democrático brasileiro vem insistindo sobre um aspecto
básico de nossa evolução política: o de que o desenvolvimento
sócio-económicobrasileiro teria se manifestado incongruente
com uma organização horizontal e autónoma dos vários gru-
pos sociais, vista como condição necessária para o funciona-
mentode um sistemademocrático.A partir daí, duranteos
anos de ''experiência democrática'' no Brasi], populismo,
clientelismoe coronelismo' é que descreveriam as várias mo-
dalidades de participação e integração políticas. Um sistema
partidário-parlamentar
nãoinstitucionalizado
(Souza, 1976)e
o corporativismo estatal (Schmitter, 1971) é que regeriam as
relações de representação entre os interesses da sociedade e o
Estado. Ou seja, processos e estruturas que se constituem em
manifestaçõesclaras da ausênciaou da dificuldadede enrai-
zamento de um regime efetivamentemais democrático no
país. Parece claro, enfim, que tanto a organização de interes-
sescomo sua representaçãopolíticanão obedecemno Brasil
aos mesmosmoldes daquelas sociedadesonde a integração
política se baseia numa sociedade civil robusta que coloca obs-
táculos à manipulação e à repressão.
Não menosimportante, por outro lado, é o entendimento
do impacto exercido pelo modo de operação do sistema de re-
presentação de interesses sobre a legitimidade e eficácia da-
quele regime, ou de como as formas assumidas pelas institui-
ções que o compõem poderiam responder às questões sobre a
(4) Freqüentemente esses processos são analisados separadamente, seja por-
que as ações políticas que dele decorrem têm como base ou incidem sobre diferentes
setores sócio-económicos, seja porque são diversos os mecanismos acionados para se
conseguir apoio político(recursos materiais ou simbólicos) ou seja, enfim, porque en
sejam a dominação política a diferentes classes ou setores sociais(classe agrária
empresáriosurbanos, burocracia estatal, etc.). O agrupamento delesem uma só ca
tegoria obedece à razão de que todos eles se opõem ao modelo pluralista democrático
onde a política supõe a existência:de grupos que competem e barba
nham pelo poder. O estudo de Vector Nunes Leal(1948) é o clássico sobre o ''coro-
nelismo" na estrutura agrária brasileira. Centra(1974) e Reis(1974b) analisam a
relação entre esse processo e o da formação do Estado nacional brasileiro. Entre as
análisessobre o clientelismourbano durante o período cabe destacar os escritos de
Guerreiro Ramos (1956, 1961) e de Jaguaribe (1950, 1961, 1962). Os estudos de Wef
fora(196S, 1978) sobre o populismo brasileiro constituem referenciais importantes
para a análise dessa modalidade de participação política no Brasil
76 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
governabilidadedo regime e sobre as causas de sua ruptura
em 1964.s
Nosso objetivoé, pois, examinar uma das facetas do sis-
tema de representação política no período: o sistema partidá-
rio, condicionado em sua operação, de um lado, pela amplia-
ção dos direitos políticosàs camadas popularese pela exis-
tência de eleições progressivamente mais competitivas, de ou-
tro lado, pela presença de uma estrutura decisória na qual o
poder de decisão, centralizado nas mãos da burocracia esta-
tal, era exercidocom grande margem de autonomia em rela-
ção aos partidos políticos.
Algumas considerações se impõem a respeito do tema em
apreço, dada a insistência de vários autores sobre a pequena
relevância das instituições de caráter ''liberal'' na dinâmica
política brasileira; sobre sua inviabilidade em países perifé-
ricos ou enfim sobre sua obsolescência mais geral em face da
complexidade dos problemas políticos do mundo moderno .
Com argumentos e ênfase diferentes, inúmcrcPSestudos
afirmam que a essência da vida política brasileira se encontra
nas agências governamentais, nas corporações privadas e na
interação entre elites económicas e funcionários burocráticos,
enfim em padrões corporativos e cooptativos de representação
que impedem formas mais pluralistas de atividade política.
Dentro dessa perspectiva, o exame do sistema político brasi-
leiro através da ênfase em partidos, Congresso ou eleições,
foco convencional,por assim dizer, da ciênciapolítica, pode
se revelar enganoso e pouco gratificante em seus resultados.'
(S) O estudo das consequências que a emergência de diferentes modos de in-
temiediação formal de interesse tem sobre a governabilidade dos sistemas atuais na
Europa Ocidental e nos Estados Unidos é um dos assuntos centrais do livro editado
por Berger(1981). Sustentam os autores que a relativa governabilidade dos regimes
políticos desses países é muito mais o produto da natureza qualitativa de seus respec-
tivos sistemas de intemiediação de interesses que da magnitude quantitativa dos pro-
blemas económicos e sociais que elesenfrentam. P. Schmitter, um dos autores nessa
obra coletiva, argumenta que a crise de govemabilidade desses regimes é menos uma
função do overZoaddas demandas da sociedade, ou seja, do desequilíbrioentre a
soma total das demandas e a capacidade do Estado em atendê-las que dos processos
que identificam, agregam, promovem e implementam os interesses.
(6) Essas afirmações aparecem com maior ou menor grau de explicitação em
vários estudos sobre a política latino-americana. Foram desenvolvidas especialmente
por Wiarda(1973) que destaca em sua explicação a importância do "efhos ibérico'
Schmitter (1972), O'Donne11 (1973), Faoro (1958) e Schwartzman (1975) destacam o
papel do Estado burocrático-patrimonialista português no condicionamento da polí-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 77
Ê bem verdade que os vários governosno Brasil respon-
deram aos desafios de integração e incorporação colocados
pela classe média e pelo operariado através de estruturas cor-
porativas e condutos clientelistas. Não obstante, é também
verdade que existe no país uma aceitação, mesmo que parcial,
do princípio de que os líderes governamentais devem ser sele-
cionados e legitimados através de eleições. No período de um
século e meio de vida independente, o país deixou de ter elei-
çõese atividades partidário-parlamentares por não mais que
uma década; a despeito de fraudes, limitações ao sufrágio,
medidas restritivas a eleições verdadeiramente competitivas,
etc. , estabeleceram-se normas eleitorais e partidárias destina-
das a reger um dos lados do processo de representaçãopolí-
tida. 7
Evidentemente é possível argumentar-se -- e com razão
-- que a persistência de instituições liberal-democráticas na
história política brasileira, embora significativa e a exigir ex-
plicações, não estabelece por si só e suficientemente o grau de
sua relevância no quadro político. Esta somentepode apare-
cer se pudermos estabelecer sua importância; 1) enquanto re-
ferencial orientador da estruturação ideológica dos grupos so-
ciais; 2) como fator de aceleração ou desaceleração de crises;
ou 3) seu impacto no sentido de expandir o escapo da arena
política.
As pesquisas existentes permitem conclusões razoavel-
mente seguras quanto ao fato de que os partidos do regime
1945-1964 -- pelo menos os três principais (Padído .Soc/a/ Z)e-
mocráfíco -- PSD, t/nfâo Z)emocráffca .Nbclo#a/ -- UDN e o
Partido Tuba/#üfa .Eras/Zefro -- PTB), embora distassem de
obter a adesãoda maior parte da população,eram não obs-
tante apoiados de maneira diferencial pelas distintas camadas
sociais, as quais os percebiam como ideologicamente diferen-
ciados (Cintra, 1968; Soares, 196S, 1967, 1971; Couto, 1966;
Simão, 1956).
tica brasileira.(Trindade, neste volume, analisa alguns aspectos da literatura sobre a
questão da formação do Estado brasileiro.)
(7) A importância dessas instituições sob o regime militar brasileiro atual e o
efeito que têm exercido sobre os caminhos políticos do país têm sido amplamente
destacadospor Lamounier(1975, 1978, 1981, 1984). Ver sobre esta questão o artigo
de Alencastro (1981).

78 A DEN40CRACIA POPULISTA, 194S-1964:
BASES E LIMITES
Por outro lado, o Legislativo brasileiro, em comparação
com outros da América Latina, era uma instituição de impor-
tância, bastando lembrar, para demonstração, que crises como
a de 1954(suicídio do presidenteVargas) ou como a que se
seguiuà eleiçãode Kubitschek em 1955e ainda a crise que
envolveua renúncia do presidenteJânio Quadros em 1961,
contornadas através da atuação do Congresso Nacional, te-
riam levado a uma imediata degeneração do sistema político
em vários países latino-americanos, seja pela via do caudilhis-
mo plebiscitârio, seja pela dos ''pronunciamentos'' militares
pura e simplesmente. E, finalmente, os mecanismos eleitorais ,
apesar dos atropelos e restrições a que se viram sujeitos du-
rante o período, retiveram a potencialidade de ampliar a com-
petitividade e alargar o leque de alianças na luta sucessória,
com a consequente inclusão de novos itens na agenda política
e o reforço do carâter público dessa agenda.'
A despeito da alegada incompatibilidade entre o regime
partidário e os requisitos do processo de desenvolvimento dos
países periféricos, o que percebemos quando examinámos os
desdobramentoshistóricosmais recentesna América Latina é
o caráter recorrente dos debates em torno da natureza dos
partidos e dos novos significados e papéis suscetíveis de serem
encarnados por eles. Essa recorrência deve-se, a nosso ver, ao
fato de que a centralização do poder, por um lado, e a repre-
sentação e combinação de interesses, por outro, são problemas
igualmente objetivos e inarredáveis em qualquer sistema polí-
tico. E em função do caráter objetivo desse dilema que nasce a
instituição partido político; se não podemos afirmar que ela
seja eterna ou imutável em estrutura e função, podemos, pelo
menos, considerar como apressadas e ingênuas aquelas con-
cepções que passariam seu atestato de óbito (Souza, 1976).
A função singular e insubstituível exercida pelas institui-
ções partidária no funcionamento de regimes democráticosé
destacadapor Pizzorno (1981), num estudo em que se per-
gunta sobre as causas da sobrevivência de partidos políticos
em sociedades desenvolvidas onde sua redundância no desem-
(8) Para uma análise das situações onde não se cumprem as condições arque-
típicas da democracia representativa, mas, mesmo assim, as eleiçõeslogram produzir
efeitosforçando a ampliação do processo democrático, ver Guy Hermet, Richard
Rose e Alain Rouquié, E7ecffons wffàoaf (Zoíce, 1978.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 79
penho de funções classicamente imputadas a eles parece visí
vel
'Para que transações políticas de longo prazo, envolvendoum
grande número de atires, se tornem viáveis, faz-se necessária
uma categoriade mediadoresadequadamenteidentificados,
que funcione como uma instituição de crédífo po/íríco. A ga-
rantia da mediaçãopolítica estarájustamente no grau em que
essa instituição se torne depositária de uma confiança dura-
doura, através de uma contínua verificação do crédito dispo-
nível. por meio do processo eleitoral''.q
Ape/#ormance dos partidos políticosbrasileiros, embora
aquém do padrão acima desenhado, correspondeu em parte
ao que diz Pizzorno. Resta conhecer suas características de
modo a compreender algumas das razões que não permitiram
o desempenho pleno desses papéis na operação do regime de-
mocrático anterior a 1964.
1. Sistema partidário e estrutura estatal
A bibliografia disponível, brasileira e estrangeira, conta
jâ com um apreciável número de bons trabalhos sobre o ciclo
populista brasileiro, seu funcionamento e crise. Grande parte
deles, porém, se não chega a afirmações necessariamente er-
róneas sobre a forma e o conteúdo dos partidos políticos,
chega a conclusões insatisfatórias sobre sua dinâmica no pro-
cesso político. Fruto, a nosso ver, do fato de que a maioria
deles é centrada preferencialmente sobre uma única dimensão
de análise: a das intenções, valores e expectativas do eleitor
individual ou dos grupos sociais. O funcionamento das orga-
nizações políticas (recursos simbólicos e materiais, burocracia
interna, competição entre organizações) e, de outro lado. as
características legais que determinam ou condicionam o papel
que as instituições de representação irão exercer no sistenl:i
político, têm sido insistentementeminimizados por grande
parte da literatura.
(9) Pizzorno, ín Berger(org.), Organfzfng /lzferesls ípz Wesferzz Europe. 198 1
P. 277
80 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
Uma explicitação precisa dos estudos sobre os partidos
políticos brasileiros e dos vários pontos em que eles parecem
se apoiar tornaria necessárioum trabalho de revisão crítica
bem maior do que o pretendido e possível neste ensaio. Inte-
ressa-nos,contudo, explicitar algumasdas premissase con-
clusões aí existentes, de modo que a abordagem e conclusões
específicas deste trabalho possam ser destacados.
Uma perspectiva encontrada freqüentemente na litera-
tura sociológica produzida nos anos trinta, que se enraizou
com extremado vigor na bibliografia produzida posteriormen-
te, procurava explicar os estilos de incorporação política no
país -- clientelismo, coronelismo -- quase exclusivamente a
partir de condições sócio-económicas, sem ligação com a es-
trutura político-institucional.Ou seja, essa perspectiva julga
encontrar explicações suficientes no amorfismo da sociedade
brasileira, ou no baixo grau de diferenciação objetiva e subje-
tiva das classes sociais. Entendendo Interessei como produtos
rzâo mediados das propriedades fundamentais das estruturas
sócio-económicas, ela tende a ver os partidos políticos, sindi-
catos e associaçõescomo meras adaptações às circunstâncias e
não como uma parte do processo mesmo de identificação de
interesses.
Premissas como essas foram utilizadas com grande fre-
quência por ideólogos e políticos brasileiros autoritários nos
anos trinta '" comojustificativa para pâr fim à vida partidária,
eleitoral e parlamentar do país. Nessa ética, o estágio rudi-
mentar do desenvolvimentosócio-económicoe cultural brasi-
leiro é invariavelmente invocado como obstáculo às instituições
e praticas liberais. Elas teriam realidade apenas nominal, ou
tornar-se-iam feudos de clãs oligárquicos ou ainda instrumen-
tos de radicalismos de ''inspiração alienígena''. Ou seja, no
Brasil, essas instituições seriam sempre sinónimos de inauten-
ticidade, de artificialismo prejudicial pelos seus efeitos desa-
gregadores, tanto sob o ponto de vista territorial quanto em
(lO) A consulta aos Anais da Constituinte Brasileira de 1934 revela, sem am-
biguidade, a ênfase dos legisladores no fracasso dos partidos do regime anterior e a
incapacidade das elites em focalizar o problema a não ser pelo ângulo da extinção das
agremiações partidárias e do Congresso Nacional. Alguns dos porta-vozes mais im-
portantes da douüina antipartidos e anti-representação parlamentar na época foram
Oliveira Viana (1951, 1952), Azevedo Amaral (1938) e Francisco Campos (1941).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 81
termos de solidariedade social entre as classes. Elas impedi-
riam na pratica a preservaçãoda unidade nacional, a moder-
nização institucional e a conciliação dos interesses económi-
cos, impondo-seportantoo recurso ao autoritarismocomo
única forma viável de sobrevivência autónoma do país. Três
décadas mais tarde os militares responsáveis pelo golpe de Es-
tado em 1964justificariam quase com os mesmos argumentos
a criação de drásticas restrições ao processo partidário e elei-
ora
tonal
Nos anos cinqüenta, sob a égide do ISEB (Instituto Supe-
rior de Estudos Brasileiros), surgiu no Brasil uma série de es-
tudos centrados nos problemas em questão.i l
Tinham eleso mérito de chamar a atenção para a impor-
tância das instituições partidárias como fator interveniente na
dinâmica política do período, recusando-sea vê-las como um
mero artefato decorativo. Mantinham-se contudo em marcos
estreitospara a investigação do modo como os partidos opera-
vam no interior do regime, bem como dos condicionamentos
que dificultavam a sua institucionalização.
O sistema partidário aí é visto basicamente enquanto fa-
tor que impedia a concorrência entre um nível mais avançado
de conscientização política da sociedade brasileira e sua ex-
pressão institucional. Os partidos políticos -- ''carentes de
unidade programática e ideológica'' -- e o Congresso Nacio-
nal ''monopólio das forças agrárias sustentadas pela máquina
coronelista'' -- estariam em descompasso com os conflitos e
diferenciações induzidos pelo desenvolvimento económico-so-
cial. Atravésde estratégiaspopulistase clientelistas,
impe-
diam a articulação de alternativas políticas necessária ao pro-
gresso do país. Mostravam-se, pois, desadaptadas ao contexto
sócio-económico.
Estes pontos nos interessam em dois níveis distintos. Pri-
meiro, é necessáriodestacar o ângulo implicitamentenorma-
tivo em que os fenómenos do clientelismo e populismo são en-
carados. Faltando àquela literatura um foco ao mesmo tempo
estrutural e político, ela é levada a tratar tais processos como
efeitos da ''qualidade da liderança'' ou das ''preocupações
(11) Refiro-me sobretudo aos artigos publicados nos Cbdenzoi do grosso
Tempo, durante a década de 50, sob o patrocínio do ISEB, bem como os estudos de
Hélio Jaguaríbe e Guerreiro Ramos, já citados na nota 4, acima.
82 A DEMOCRACIA POPULISTA. 1945-t964:
BASES E LIMITES
eleitorais'', em vez de procurar esclarecer as relações possivel-
mente existentes entre as varias organizações políticas, e so-
bretudo entre Estado, sistema partidário e padrão de decisão;
e dentro desse quadro procurar entender as funções daqueles
fenómenos.
Vistos apenas como expressõesde uma estrutura social
atrasada ou da imaturidade das elites, os problemas do popu-
lismo e do clientelismo escapavam à analise política propria-
mente dita, cedendo lugar à exortação normativa sob a forma
da reivindicação de uma política propriamente ''ideológica''
Em segundo lugar, é através das concepções vigentes so-
bre esses processos que se manifesta, de maneira difusa ou
implícita, a tese que vê na ''crise de representatividade''uma
das raízes da quebra do regimede 1964. A literatura, con-
tudo, negligenciava um aspecto decisivo da questão, a saber:
estaria a possibilidade de uma maior adequação entre a atua-
ção efetiva dos partidos e a articulação de alternativas quanto
aos chamados ''problemas reais'' de fato ao alcance deles, bas-
tando-lhesuma mudança no seu comportamento ou nos pa-
drões para a seleçãode seus membros? Ou seria tal descom-
passo decorrenteda própria organizaçãodo Estado? Vistos
como organizações políticas, não seria precisamente o inte-
resse dos partidos, dadas as regras da competição eleitoral,
realizar adequadamente tal articulação e desse modo se forta-
lecerem? Nessa perspectiva, a resposta pelo menos para um
dos aspectos da crise de 64, negligenciado frequentemente,
talvez se encontre na própria distribuição do acesso, por parte
dos partidos, às arenas-chavedo processodecisórioe, espe-
cialmente,por parte do sistemapartidário em seu conjunto
aos demais atores relevantes, particularmente a burocracia es-
tatal e as Forças Armadas. ' funcional da organização burocrática estatal no quadro deci-
A perspectiva aqui utilizada contrasta, portanto, com o
modelo implícito na maior parte da literatura corrente (que vê
(12) Entre os esquemas disponíveis na bibliografia para o estudo da relação
entre sistema decisório e sistema de pai'ticipação é extremamente útil para o enten-
dimento da política brasileira o de Theodore lowi(1964). Ele estabeleceuma distin-
ção entre arenas declsóHas conforme o grau de divisibilidade possível nos respectivos
objetos de decisão. Cada uma dessas arenas -- redfsfríbtiffva, regtilafórfa e dfsfrlóu-
fíva -- tenderia a se estruturar de uma maneira distinta, no que se refere à forma de
controle sobre os processos decisórios e à atuação dos interessados -- indivíduos.
grupos e organizações.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 83
os partidos políticos em termos da sociedade atuando sobre o
Estado) na medida em que coloca o enfoque inverso: a estru-
tura estatal como condicionamento da formação, evolução e
atuação dos partidos políticos. ''
Uma organização política se afirma e se institucionaliza
na medida em que seja capaz de reservar para si o cumpri-
mento de determinadas funções ou atividades, e/ou de asse-
gurar acesso regular à arena específicaem que se tomam de-
cisõescruciais sobre tais funções ou atividades. É, assim, pela
identificação com determinada atividade, pela participação
nas decisões mais significativas a respeito dessa atividade, e
pelo controle dos recursos necessários a ela, que uma organi-
zação passa a ser vista como importante e merecedora de apoio
por parte de determinado público; é assim que ela se institu-
cionaliza.
Na medida, com efeito, em que o estado ''desenvolvimen-
tista'' impõe ou requer uma enorme concentração, no Execu-
tivofederal, das decisõesdo tipo redürrfbuffvo, cujos objetos
são fundamentalmentea distribuiçãoda renda e da proprie-
dade, que condições se apresentam para a institucionalização
da representação através do sistema partidário e do poder Le-
gislativo? Não tenderá a política partidária, nesse contexto, a
operar na política disfríbzzfíva e eventualmente na po/üfca re-
gzz/aróría, tornando-se sinónimo de clientelismo e de corrup-
ção?
A existência de uma estrutura estatal centralizada a/zfes
do surgimentodos partidos, como foi o caso brasileiro, cons-
titui, por si mesma, uma dificuldade à institucionalização des-
tese um estímuloà políticaclientelistaou populista. O peso
sório do país (Martins, 1976; Leff, 1968) levava os partidos a
operarem de uma maneira dispersa e mesmo deslegitimadora
de seu papel como instituição política. Nesse contexto. o sis-
tema partidário não tem chances apreciáveis de se desenvol-
(13) O Estado é aqui visto como uma organizaçãode âmbito territorial que
procura monopolizar determinadasfunçõese que por essa razão aciona os recursos
disponíveis para a sua realização com efetividade incomparavelmente maior que as
demais organizações sociais. Ele é o principal, mas não o único fator determinante
das características do sistema partidário. Esta perspectiva foi desenvolvida por J. P.
Nettl em "The State as a Conceptual Variable" (ver bibliografia ao final deste vo-
ume
84 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
ver: a estrutura centralizada de decisões confirma-se e se revi-
gora em seu próprio funcionamento. O clientelismo e o popu-
lismo compatibilizam-na com o carâter formalmente demo-
crático do regime político, mas representam, ao mesmo tem-
po, em sentido estrutural, a fraqueza dos partidos.
O raciocínio desenvolvidoacima nos conduz a três inda-
gações sobre as condições de emergência do regime democrâ-
tico
1) a distribuição de poder prévia à criação dos partidos
-- apropriação de atividades e dos recursos a elas correspon-
dentes -- que teria dificultado a institucionalização do sistema
partidário, de 1946em diante;
2) as características do sistema partidário que então se
formou (origens, número e tipos de partidos) ;
3) parâmetros legais que condicionaram seu funciona-
mento.
A partir da análise de alguns aspectos da estrutura insti-
tucional do Estado Novo e da história do processo de transição
cara o regime democrático esperamos responder a tais ques-
tões
2. Centralização e corporativismo''
A restauração democrática em 1945, causada bem mais
por eventos internacionais que por sérias dissensões internas,
muito menos por sério conflito de classes, não produziu uma
substituição radical dos grupos de poder, embora exigisseuma
reformulação político-institucional. Desse modo, se em 1945
foi deposto o presidente Vargas, manteve-se na liderança do
processo de redemocratização do país a mesma elite política
que comandava o regime deposto. Sob sua direção promove-
ram-se as primeiras eleições nacionais e a formulação da Carta
Constitucional, que deixou praticamente intacto, em pontos
cruciais, o arcabouço institucional do Estado Novo.
Uma investigação, mesmo superficial, sobre o período de
1943-1946mostra sem ambigüidades que a maciça maioria
(14) As duas primeiras seçõesda parte que se segue acompanham de perto o
estudo sobre a conjuntura de transição democrática realizado por mim em Souza
( 1976)
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 85
dos atores responsáveis pela reformulação da vida política na-
cional não se renovara, como também, o que é mais contun-
dente, era a mesma elite que, na década anterior, havia pro-
curado no autoritarismo e nas doutrinas antiliberais a solução
para os problemas que o país enfrentava.
A. Estado Novo: Aspectos institucionais
Nos anos trinta, os grupos revolucionáriosadaptaram às
condiçõesnativas ideologias antidemocráticas de diversos ma-
tizes, mas sempre marcadas pela característica básica de dis-
sociar a política partidária das arenas de decisão governamen-
tal. Difundia-se largamente pelos círculos políticos brasileiros
a desmoralização crescente do parlamentarismo multiparti-
dário, dentro de uma atmosfera de descrença no Estado libe-
ral e suas instituições, que passou a ser reavaliado criticamen-
te, procurando dar-se-lhenovo sentido e conteúdo. As preo-
cupações fundamentais no debate político da época -- uni-
dade nacional, incorporação de novos setores sociais e moder-
nização institucional -- levaram a maior parte dos ideólogose
políticos a concluir que o autoritarismo seria o único regime
harmonizado com o ''Brasil Real''. A noção de que o país não
se encontrava ainda maduro para um regime democrático, ou
de que a integração nacional exigia a abolição da vida parla-
mentar -- ''campo da caduca política regionalista e oligâr-
quica'' --, o enunciado da supremacia da Segurança Nacional
em perigo, dado o ''excessivoliberalismo'' em relação à cres-
centeparticipação popular nos movimentosde caráter comu-
nista e fascista, is terminavam por convergir num mesmo pon-
to: anulação do Congresso e dos partidos políticos, submissão
dos sindicatos à tutela estatal. Por outro lado, as mudanças
institucionais iniciadas logo após a Revolução de 1930e desen-
volvidas durante o Estado Novo redundaram, de modo geral,
(15) A eclosão da Aliança Nacional Libertadora(ANL), de inspiração comu-
nista, em 1935, bem como a mobilização induzida pelo movimento integralista, ine-
gavelmentefacilitaram a harmonização da ideologia liberal de cores então fortemente
agrárias e elitistas com a doutrina autoritário-corporativista que deificava o Estado e
s6 entendia a representação partidária num papel fortemente subordinado. Sobre o
movimento integralista, consultar Hélgio Trindade(1974); sobre a articulação comu-
nista, Chilcote (1974)

86 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
na criação de uma extensa máquina burocrática não contro-
lávelpor um Legislativoou por qualquer tipo de organismo
representativo da ''sociedade civil''
Essa autonomiaburocrática não provinha, todavia, de
uma impecáveleficiência racional-formal segundoo paradig-
ma weberiano das organizações burocráticas. Ao contrário, a
expansão e a centralização burocrática deram-se continua-
mente sob o signo da absorção ou cooptação de agrupamentos
de interesse, quer regionais, quer funcionais. Este aspecto é
evidente no novo padrão de relacionamento que se estabelece
entre o centro e os estados no nível da ampliação dos instru-
mentos de controle sobre a economia.
A essência do mecanismo institucional criado após a Re-
volução de 30 e purificado pelo Estado Novo era a articulação
entre /nfewenforias e depaNamenlos adminüfraf/vos, que li-
gava as oligarquias estaduais aos Ministérios e à Presidência
da República.
O sistema de interventorias pouco ou nada interferia com
os pilares económicos do poder político nos estados, nem era
esse o seu intuito. Seu mecanismo básico consistia no seguinte:
o Executivo federal nomeava para a chefia dos governos esta-
duais indivíduos que, embora nativos dos estados e identifi-
cados em suas perspectivas ideológicas aos grupos dominan-
tes, eram ao mesmo tempo ''marginais'' à vida partidária es-
tadual, isto é, indivíduos com escassa ou nenhuma biografia
política, ou, se possuíam alguma, haviam-na feito fora das
maquinas partidárias tradicionais dos estados.Assim, o inter-
ventor, embora ligado à elite estadual, não devia a ela sua
permanência no controle do estado e sim ao beneplácito do
Executivo federal.
Enfraquecendo as antigas situaçõespolíticas provenien-
tes da Primeira República (1889-1930),removia-seboa parte
dos empecilhos à centralização administrativa e estabelecia-
se, através do interventor, uma convivênciaentre as diversas
correntes da política regional, sem que o governo central en-
trasse em conflito aberto com elas ou sequer acenasse com
qualquer ameaça a seus interesses económicos. Compatibili-
zava-se assim o mínimo necessário e o máximo possível de mu-
dança: configurava-se a ditadura modernizante no combate à
descentralização oligárquico do regime anterior, forjando um
novo padrão de articulação entre as forças políticas, padrão
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS
esse que garantia ou visava garantir certo grau de autonomia
ao poder federal para a efetivação de medidas económicas ur-
gentes e de grande envergadura para o período.i
Paralelamente ao sistema de interventorias foram criados
órgãos administrativos estaduais (ramificações do organismo
central, o DASP, .Z)epaMamenfo 4dmlnz.sfraffvo do Sewfço
Pzíó//co), que funcionavam ao mesmo tempo como uma espé-
cie de legislativoestadual e como corpo supervisor para o in-
terventor e o Ministério da Justiça. Como uma engrenagem,
a interventoria, o Departamento Administrativo e o Ministé-
rio da Justiça cooperavam na administração dos estados sob o
controle do presidente da República. (Sobre estes pontos ver
Graham, 1968;Lowenstein,1944;Vieira da Cunha, 1963).
Praticamente nenhum campo da legislação permaneceu com
os estados, visto que em todos eles os governos estaduais de-
pendiam da aprovação do presidente da República (Miranda,
1953)
De maneira análoga ao que se passava na relação entre o
centro e os estados, a inventividade centralizante manifestou-
se também na criação de uma vasta gama de órgãos tecno-
burocráticos -- ins/ífzzros, aurarqzzías e grzzpos íéclzícoi. No-
minalmente sob a direção do presidente da República, mas
praticamente sob o controle dos Ministérios aos quais corres-
pondiam, estes órgãos serviam como agências coordenadoras
e centralizadoras do governo federal para campos específicos
da atividade económica (Lowenstein, 1944; Wirth, 1970; Da-
land, 1967; Martins, 1976). Toda a operação deles foi desen-
volvida no sentido de institucionalizar e legitimar a atuação
direta de interesses económicosjunto à burocracia. Esse pro-
cedimentotornou-sea regra, e a atuação em associaçõesre
presentativas de caráter autónomo e público, como se supõe
sejam os partidos políticos, a exceção. Embora constituíssem
resposta imediata à crítica conjuntura económica interna e ex-
terna, tais órgãos adquiriram significação mais ampla e dura-
doura, permanecendo como o modzzi e o /octzs /ache/zd/ das
respectivas atividades. Da mesma forma, as decisões sobre a
(16) O governo efetivou uma série de medidas relacionadas ao desenvolvi-
mento da indústria petrolífera e especialmente siderúrgica; à resolução de problemas
surgidos pela déóác/e da exportação do café em 1929, com efeitos sobre todo o sis
tema económico; e medidas referentes à questão da dívida externa.

88 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
siderurgia, que culminaram na criação de Volta Redonda, :'
encerraram um impasse que perdurava desde a década de
1920e criaram um modelo organizacional que se tornaria per-
manente -- aparticipaçãoestatal na ampliação da infra-estrutu-
ra, a conexão entre finalidades económicas e militares, a deci-
siva participação dos quadros técnicos do próprio governo e
do Exército na determinação das alternativas e na formulação
dos proÚetos.O mesmo se pode afirmar, naturalmente, com
referência às decisões sobre o petróleo, iniciadas na década de
1930,embora sua culminação numa conjuntura democrática
e até mesmo mobilizante .--.;o início dos anos 50 -- tenha
emprestado ao debate sobre a questão um caráter eminente-
mente público e de extensa participação.
A estas duas concentrações do poder, económica e tecno-
burocrâtica, cabe acrescentar duas outras: a da estrutura sin-
dical e a das Forças Armadas da União.
O arcabouço sindical brasileiro é bem conhecido. Em es-
sência, o controle governamental sobre as organizações operá-
rias urbanas é garantido pelo fato de que a legislaçãoconfere
ao Ministério do Trabalho um papel decisivo no reconheci-
mento e operação dos sindicatos. Essa estrutura, de inspiração
corporativista, caracteriza-se pela inserção de trabalhadores,
profissionais liberais e empregadores urbanos (e do setor rural
a partir de 1965) em hierarquias de entidades sindicais sepa-
radas e paralelas. A um único sindicato -- reconhecido pelo
Estado para entrar em negociaçõescoletivas nos tribunais tra-
balhistas -- é dado o monopólio da representação de uma ca-
tegoria profissional ou funcional existente em sua jurisdição.
Embora a filiação ao sindicato seja voluntária, a contribuição
sindical é compulsória a todos os trabalhadores, e somente
aqueles inscritos e quites com o imposto sindical (devendo
ainda pagar mensalidades adicionais) gozam de acesso aos
serviços assistenciais. De acordo com as leis de enquadra-
mento sindical, o Ministério do Trabalho determina a priori
quais trabalhadores, em quais áreas geográficas, podem se
unir para formar um sindicato;não é permitida a existência
de uma co/lãederaçãogera/ do fraga/ão, somentefederações
(17) A análise do processo de decisão a respeito da política siderúrgica encon-
tra-seem Wirth(1970) e Marfins(1976).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 89
estaduais ligadas verticalmente a várias confederações nacio-
nais. Finalmente, as leis trabalhistas conferem ao Ministério
do Trabalho o direito de intervir unilateralmente nos assuntos
internos de qualquer das entidades acima indicadas.
A estrutura trabalhista e a CLT (Consolidação das Leis
do Trabalho) permanecem praticamente intactas desde 1942.
As modificações feitas a partir de 1964 somente reforçaram o
poder estatal e reduziram ainda mais os limites da ação ope-
raria e os benefícios já alcançados.
A expansãoe o fortalecimentodas Forças Armadas da
União foram outro mecanismo decisivo de centralização do
regime do Estado Novo. Os novos comandos militares não se
subordinaramà figura de Getúlio Vargas, nem se identifica-
ram inteiramentecom sua mística ou com os seus objetivos
particulares. Nunca houve um processo de ''getulização'' do
Exército -- fato que teria grande significação nos alinhamentos
políticosdopós-guerra(Stepan,1971;Coelho,1976;Rouquíé,
1980). Mas o crescimento do Exército, mesmo mantendo essa
margem de autonomia frente ao governo, implicou a quebra
das milícias estaduais e uma expansão quantitativa e qualita-
tiva que levaria a uma configuração militar diametralmente
oposta à existente na Primeira República (Carvalho, 1974;
Coelho, 1976). Além do papel de avalista final de todo o ar-
ranjo político montado para o controle das unidades esta-
duais, surgindo como árbitro político do regime, o Exército
surgiu, através de seus quadros técnicos, como importante
po/lcy-maker na formulação e implementação das decisões
relativas ao desenvolvimentoindustrial, como demonstram os
já citados estudos sobre as políticas siderúrgica e petrolífera
(Wirth,1970; Martins, 1976).
Resumidamente, o que nos interessasalientar é que em
ambos os planos, no da ideologia e no da formação concreta
de um novo padrão institucional, deu-se durante o Estado
Novo uma .outra inflexão ao desenvolvimentopolítico, re-
criando, se assim podemosdize-lo, o padrão cooptativoda
vida política brasileira, dando-lhe novas e dentadas possibili-
dades. O papel de comando sobre a economiapor parte do
Estado que então se instaurava não foi evidentemente um ca-
pricho. A possibilidade da inflexão cooptativa a que nos refe-
rimos tem sua raiz na fragilidade objetiva das classes sociais e
dos grupos de interesse(Cardoso, 1969; Weffort, 1978). A

90 A DEMOCRACIA POPULISTA, 194S-1964:
BASES E LIMITES
conversão da informação técnica em recurso centralizante, se-
não monopólico,pode ser vista como um aspecto do mesmo
problema.
Evidentemente, uma estrutura estatal centralizada não
exclui por princípio e de maneira cabal qualquer hipótese de
evolução partidária. A constituição de aparatos tecnoburocrâ-
ticos de controle sobre a economia, o fortalecimento do poder
militar central, e assim por diante, não excluem, por definição
e necessariamente, uma paralela constituição de um sistema
de grandes organizações representativas. A democracia polí-
tica, embora seja teoricamente mais congruente com a ideia
de governo descentralizado, não exclui a necessidade de que o
poder se torne efetivamente público, e esta por sua vez pode
exigir certo grau de centralização. Embora seja possível ver
nos processos acima descritos os pilares de uma efetiva nacio-
nalização da estrutura política e, nesse sentido, um suposto a
longo prazo para a efetivação de um regime democrático, a
inflexão conjuntural dos anos trinta parece ter tido sinal clara-
mente oposto, dificultando a posterior institucionalização do
sistema de partidos. Embora seja legítimo afirmar, em tese, a
necessidadedo aumento do poder no centro político, a meto-
dologia institucional desenvolvidadurante o Estado Novo pa-
rece ter tido efeitos claramente negativos para o processo de-
mocrático que se iria instaurar no momento subsequente.
B. A abertura democrática de 1946
Visto que, de fato, a Constituição de 1946 estabeleceu
normas e medidas para a instalação de uma estrutura demo-
crática no país, ao observador mais descuidado a redemocra-
tizaçãõ pode parecer mais radical do que na realidade o foi. E
além do mais compreensível que, situado entre dois períodos
reconhecidamente
autoritários,o regimede 1946-1964seja
enfocado tanto pelos seus apologistas quanto pelos seus detra-
tores como radicalmente distinto em estrutura e em funciona-
mento. Sem abrigar o mais leve intento de desvalorizartal
contraste, desejamos realçar, através das grandes linhas da
conjuntura de transição, alguns aspectosinstitucionais em que
existiu continuidade, ou pelo menos mudanças claramente
condicionadas e dirigidas.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 91
Como indicamos acima, dada a inexistência, nessesanos
de abertura democrática, de qualquer movimentocontestatá-
rio de amplas bases sociais, ou inspirado em metas ideológicas
capazes de levar a uma confrontação mais drástica entre as
classes sociais, é inteiramente lícito supor que, sob tais condi-
ções, a estrutura política do Estado Novo foi fator determi-
nante da nova estrutura democrática que se formava. '' A de-
posição de Vargas deu-se num clima de ''cumplicidade com os
opositores'', no sentido de que, para muitos destes, e talvez
especialmentepara os militares, Getúlio Vargas não era visto
como inimigo radical, mas sim como um opositor transitório.
Manteve-se assim Vargas na condição de interlocutor-chefe
na passagem ao novo regime, o que Ihe facultou inclusive a
possibilidadede adotar uma série de medidas para a manu-
tenção de sua maquina política, assentada nas interventorias e
já então enraizada nos municípios.
Eis alguns dos recursos ou instrumentos acionados de
maneira consciente e sistemática, e com inegável êxito, por
Getúlio e pelos grupos dirigentes do Estado Novo:
1) a criação de um partido, o PSD, formado atravésda
absorção das interventorias e respectivas bases municipais,
articuladas com as ramos estaduais do serviço administrativo
(Soares, 1973; Lippi, 1981; Souza, 1976);
2) a formação de um partido trabalhista, o PTB, estrutu-
rado pela absorção das clientelas urbanas, sindicalizadas ou
cobertas pelas instituições previdenciárias, através da ação do
Ministério do Trabalho;
3) a emergência do ''getulismo'' como movimento polí-
tico estruturado ao nível do simbolismo pessoal, condensando
e dando forma atava a suportes de massa até então mais ou
menos latentes; ''
(18) Nos últimos meses do Estado Novo, irrompeu um movimento político a
favor da Constituinte e da manutençãode Getúlio Varias na Presidência da Repú-
blica, que ficou conhecido como o "movimento queremista". Embora fosse um movi-
mento restrito às grandes capitais do país e que não expressava um claro conflito de
classes, teve efeitos sobre o comportamento das lideranças políticas na Constituinte.
Num sistema político essencialmenteelitista e de participação restrita como o nosso,
essainsólita mobilização das massas operárias, de amplitude até então desconhecida
no país, explica em parte a moderação da oposição liberal e a deflação das alterna-
tivas institucionais por ela propostas para a construção do novo regime.
(19) A lealdade da classe trabalhadora a Vergas não deve ser vista apenas
como "alienação" do operariado brasileiro seduzido por um líder patemalista e caris-
92 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
4) a garantia antecipada do controle ou pelo menos de
um papel decisivopor parte dos remanescentesdo regime an-
terior sobre a primeira legislatura e sobre a Assembleia Cons-
tituinte através da manipulação dos instrumentos da legisla-
ção eleitoral; :'
5) a utilizaçãoda legislaçãopartidária, elaboradaainda
durante os últimos meses do regime autoritário, que indicava
a amplitude a ser considerada legítima para o espectro polí-
tico-partidário: através dela negou-se o registro a quinze par-
tidos cujos vínculos com o regime anterior eram ténues (Peter-
son, 1962),e em 1947permitiu-sea cassaçãodo Partido Co-
munista Brasileiro.:: Note-se que o PCB era então detentor de
considerável prestígio e eventualmente capaz de competir com
o PTB junto às massas populares;
6) a inscrição no próprio texto constitucional de vários
dispositivos asseguradores dessa mesma continuidade, nota-
damente a sub-representação no Congresso dos estados mais
urbanizados, a manutenção da estrutura sindical corporativa,
e a soma de poderes centralizados no Executivo federal.
A queda do Estado Novo foi assim amortecida e sua es-
trutura geral aproveitadapara a nova armação institucional.
mítico, pois tem também razões sólidas nas medidas tomadas durante sua gestão em
benefício daqueles setores. Para uma análise da política previdenciária e de outros
benefícios concedidos aos setores operários urbanos ver Vianna(1976) e Santos
9
(1979)
(20) Em face da precariedade dos recursos disponíveise da provavel lentidão do
alistamento eleitoral, foi permitido o registro de blocos de eleitorescom base em listas
preparadas por empregadores e agências govemamentais: o chamado alistamento
a-(l#icío. Este expediente assume um sentido muito especial quando se considera
que se trata de recursotipicamente clientelístico, embora urbano, geralmente concer-
nente ao funcionalismopúblico e aos sindicatos, pelo qual o getulismoexpande o
eleitorado ao mesmo tempo que o compromete. O alistamento ex-c#icfo correspon-
deu a 23%oda votação nacional em 1945, e nada menos que 54%üno Disüito Federal,
33%oem São Paulo, 31%ono Estado do Rio, 21%ano Rio Grande do Sul e em Pemam-
buco, 17%ona Bahia e 15% em Minas Gerais. Tratava-se, pois, de recurso eleitoral de
certa magnitude, que deu às eleições, senão um caráter de fraude oficializada, pelo
menos um viés considerável.
(21) O Partido Comunista foi legalizadologo após a derrubada de Vargas e
apresentou candidato à Presidência da República, que acumulou 8,7%odos votos
presidenciais, chegando a ganhar em algumas capitais do Nordeste, elegeu 14 depu-
tados e um senador à Assembleia Constituinte em 1945. Tomou-se o partido majo-
ritário na Câmara Municipal do Distrito Federal e da capital do Estado de São Paulo.
O PCB elegeu 46 dos 855 deputados estaduais em 15 dos 20 estados da federação. Era
naquela conjuntura a quarta força política eleitoral, após o PSD e o PTB(Soarem,
1973). Quinze partidos foram registrados durante o período. Em 1963, existiam treze
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 93
Não afirmamos, é claro, uma continuidade total, como se esti-
véssemosdiante de dois sistemas idênticos. Tal interpretação
equivaleria em sua ingenuidade àquela outra, simétrica, que
vê na Constituição de 1946 um corte abrupto com o passado e
a inauguração de uma etapa imaculadamente democrática em
nossa história política. Afirmamos, sim, que ao pluralismo
partidário, às eleições diretas em todos os níveis, ao retorno à
separaçãode poderes do Estado, determinadospela Carta
Constitucional, foi acoplada a estrutura anterior, marcada
pelo sistema de interventorias, pelo corporativismo sindical e
pela presença de uma burocracia estatal detentora de impor-
tante capacidade decis6ria.
A passagem para o regime democrático foi, pois, uma
combinação de instituições corporativo-estatais e liberal-de-
mocráticas. Parece-nos indispensável ter em mente tal sim-
biose, se de fato pretendemos compreender os percalços e con-
tradições da democracia política no Brasil, apoiada como es-
tevenum poder Legislativo nacional incerto entre espasmos de
altivez e submissão, e num sistema partidário aparentemente
incapaz de se expandir e de se afirmar a uma taxa compatível
com o ritmo das transformações sócio-económicas.
3. Representação corporativa
de interesses e sistema partidário
A. Aspectos gerais da dinâmica partidária (1946-1964)
O eixo básico do sistema partidário em funcionamento
era constituído por três partidos de extensão nacional: o PSD
e a UDN, ambos conservadores e detentores de amplas bases
rurais, e o PTB, partido de caráter reformista urbano. O PSD
e o PTB formaram-seem grande parte por decisão governa-
mental, ou pelo seu aberto beneplácito. Eram partidos ''inter-
namente mobilizados'', nos termos de Duverger, que realiza-
vam sua estruturação inicial a partir dos benefícios que retira-
vam do fácil acesso aos aparatos burocráticos-administrativos,
estaduais e federais.
A UDN nasceu da conspiração contra Vargas e a ditadura
do Estado Novo. Estruturou-se a partir das oposições às inter-
94 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
ventorias estaduais e da articulação com setores militares que
se opunham ao ''varguismo" desde os anos trinta (Picaluga,
1980; Benevides, 1981; Dulci, 1977).
Assim, o eixo polarízador em tomo do qual se estrutura-
vam os três grandes partidos políticos da época se encontrava
no sistema de interventorias e no acesso à burocracia federal.
A importância do acima exposto parece evidente. A estrutura
partidária, em seu corpo principal, formou-seem função de
fatores marcadamente conjunturais (anta ou pr6-''varguismo")
ou pela ligação e acesso à burocracia estatal, e não por cliva-
gens sócio-económicasnítidas, o que torna o conhecimento da
estrutura decisória e das clivagensregionais fundamental para
o entendimento da atuação das agremiações partidárias.z:
As condições que envolvem a origem dos partidos são de
particular importância na determinação de seu caráter como
organização. Assim, as probabilidades de um partido vir ou
não a utilizar a distribuição de benefícios clientelísticos de
modo a ganhar apoio de grupos sociais tem muito a ver com a
maneira como a liderança desse partido estabeleceuílzlcla/-
mente sua ligação com bases populares (Shefter, 1977). Par-
tidos fundados por elites que ocupam posição de poder dentro
de um regime estarão em posição privilegiada para se utilizar
de recursos estatais de modo a adquirir uma base popular.
Essa articulação inicial marcara o caráter da organização
em termos dos mecanismos que ela deverá acionar para man-
ter essa base, bem como efetivará o grande poder de barganha
que, no interior dos partidos, é detido pelos políticos que pra-
ticam o clientelismo em relação a seus oponentes eventuais.
Por certo há outras consideraçõesa seremlevadasem
conta pelas lideranças partidárias quanto às possibilidades de
utilização de estratégias clientelistas: orientações e preferên-
cias dos votantes, os interesses dos membros militantes do
aparato partidário e das elites com as quais os partidos se
(22) O tema das clivagens regionais continua uma das chaves cruciais para a
compreensão do processo político partidário nos dias atuais. Uma parte da literatura
supõe uma estrutura de classe formada em temposnacionais e procura reduzir as
agremiações partidárias a elas. Um conhecimento mais aprofundado do período,
apontando para a heterogeneidaderegional dos partidos, desafia a validade da maior
parte de tais interpretações.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 95
aliam, e finalmente as características do próprio estamento
burocrático-administrativo.
O primeiro desses fatores -- a preferência dos votantes --
não deveria ser considerada como preexistente ou à parte das
alternativas que lhes são apresentadas na arena política, visto
que em grande parte a operação das instituições de represen-
tação política faz parte do processo de identificação e defini-
ção dos interesses dos grupos sociais.
Colocam-se assim questões sobre outros fatores que im-
pelem os partidos políticos a escolherem tais estratégias. No
caso brasileiro, como foi sugerido, o perfil da estrutura deci-
sória compelia as agremiações partidárias a gravitarem em
torno das arenas distributiva e regulatória.
Não pretendemos com isso afirmar a onipotência do Es-
tado burocrático no Brasil, como se não houvesse competição
entre órgãos burocráticos, ou mesmo alinhamento de alguns
delescom diferentespartidos. Na realidade, o crescimentodo
aparelho estatal desde os anos trinta, posteriormente, deu-se
sob a égide de dois movimentos simultâneos: autonomia em re-
lação às fnsfífulções partidário-parlamentares e penetração pe-
los grupos privados de interesses. Pelo menos um dos níveis da
estrutura decisório -- o da execução específica das decisões
tomadas -- era entrecortado pelo jogo de pressões entre as
várias agências estatais e os diferentes grupos de interesse que
constituíam sua clientela, configurando o processo de ''balca-
nização'' frequentemente apontado na descrição da política
decisória brasileira(Leff, 1968; Cardoso, 1973; Santos, 1978).
Ê possível encontrar nos aspectos apontados uma das res-
postas para o fenómeno que tem surpreendido muitos analis-
tas do sistema partidário brasileiro (Schwartzman, 1970; Car-
doso, 1975): a debilidade da liderança paulista na direção dos
três grandes partidos nacionais do período. Com efeito, as eli-
tes dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande
do Sul detinham o controledas organizaçõespartidárias. Essa
característica pode ser explicada por razões de ordem conjun-
tural no período da implantçaão dos partidos, por estilos de
liderança regional diversos e pela história política de cada um
dos estados em relação ao ''varguismo''.a Não há dúvida, po-
(23) Consultar Skidmore(1967) para a história dos anos trinta ao fim do Es-
tado Novo. Para uma análise do quadro parüdádo paulista e sua evoluçãoaté anos
96 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
rém, de que a representação dos interesses económicos de São
Paulo se dava através da articulação direta com os organismos
burocrático-estatais, sendo esta uma das respostas para o pe-
queno ''investimento'' da elite paulista na ativação dos con-
dutas partidários para o desempenho daquelas funções junto
ao poder federal. A não representação das elites económicas
mais importantes do país ou de seu contingente operário mais
numeroso pelos três partidos centrais é um aspecto da precá-
ria institucionalização do sistema partidário em nível nacio-
tial. 24
A partir de 1946,o votourbano, embora insuficientepara
eleger à Presidência da República um candidato ''tipicamente
urbano'', detinha a possibilidadede fazer com que os resul-
tados pendessema favor de uma das facções dos grupos rurais
mais conservadores em litígio. A aliança PSD-PTB uniu o co-
ronelismo rural e o populismo urbano, dominando ampla-
mente as eleições presidenciais e detendo a maioria parlamen-
tar no Congresso Nacional durante todo o período (Soares,
1971e 1973; Schwartzman, 1971. Ver, porém, as ressalvas
quanto à hegemonia parlamentar da aliança PSD-PTB em
Santos, 1974).
A união Democrática Nacional, o maior partido da opo-
sição e o segundo em poder eleitoral no país, embora vitoriosa
em vários estados da federação, teve reduzidas suas chances
de atingir a Presidência de República num contexto onde os
recursos de poder partidário provinham sobretudo das articu-
lações clientelistas e da mobilização popular baseada na mís-
tica getulista e no apelo nacionalista. Frustrada em seu poder
de competição, a IJDN tornou-seum partido em eterna cons-
piração contra o regime: a cada eleição perdida proclamava a
'ilegalidade''do pleito, e atravésde um discursojurisdicista
mais recentes ver Cardoso (1975), Souza (1977), Schwartzman (1975). Para a análise
do "janismo" até 1964ver Ferreiro (1960), Weffort (1965), Souza (1976). Um exce-
lente estudo sobre o Partido Social Progressista (PSP), base partidária do "adema-
rismo", encontra-se em Sampaio (1981).
(24) A modalidade corporativísta de representação política perante o Estado
reforça a pouca visibilidade da atuação partidária, tomando difícil para a opinião
pública estabeleceruma associação.claraentre as siglas dos partidos e alternativas
políticas específicas. A demonstração dessa hipótese seria diretamente pertinente à
interpretação do "pouco amadurecimento" das força sociais que deveriam em prin-
cípio corresponder a diferentes partidos.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 97
apelava à intervenção militar. Já em 1946, por ocasião da As-
sembléiaConstituinte, a UDN não legara muitos exemplos de
uma crítica verdadeiramente liberal aos aspectos autoritários
incorporados na Carta Constitucional, dividida que estava
entre seu papel de oposição liberal à centralização do poder no
Executivo federal e suas raízes elitistas e conservadoras, que a
faziam temerosa da crescenteparticipação popular. Ã medida
que evoluía o processo de passagem de partidos meramente
representativos dos estratos altos da sociedade para as grandes
organizações partidárias de massas, a fragilidade ou a timidez
do pensamento liberal que ela afirmava representar tornou-se
mais explícita. Transforma-se, assim, progressivamente num
foco desestabilizador do regime, distanciando-se mais e mais
do papel de uma oposição baseada em questões substantivas,
que as expressasse a partir do reconhecimento do direito bá-
sico de seus oponentes eleitos de governarem. Iniciadora da
mobilizaçãopolítica contra a ditadura do Estado Novo, a
UDN veio mais tarde a se constituir no braço partidário do
golpe militar em 1964.
A composição política PSD-PTB, se redundou em ganhos
políticospara os partidos vitoriosos, teve também seu preço
em deslegitimação do sistema partidário e do poder Legisla-
tivo. Sendo uma composição em desacordo com as tendências
seculares das filiações do eleitorado, ela estimulou a cristali-
zação do discurso normativo em que o ''país legal'' -- o sis-
tema partidário especificamente -- era considerado como irre-
mediavelmente não representativo do ''país real''. H E, com
efeito, não o era. Como seria de se esperar, aumentaram os
atritos entre os dois partidos. As divergências entre ambos ad-
quiriram particular virulência nas eleiçõeslegislativas de 1958
e no processo sucessório de 1960.
A viabilidade da aliança PSD-PTB repousava nos ganhos
que reciprocamente se asseguravam em termos de controle da
máquina burocrática do Estado. Na arena propriamente legis-
lativa e nos embates ideológicos era frequente o dissenso entre
ambos, a despeito da condição majoritária da aliança. Esse
desgaste tornou-se mais visível e agudo no contexto de crise
económica do fim dos anos 50 e início da década de 60, quan-
(25) Ver a referência mais adiante sobre a evolução da força eleitoral dos
partidos políticos

98 A DEMOCRACIA POPULISTA, 194S-1964:
BASES E LIMITES
do vieram à tona as incongruências da política de moderni-
zação económica sustentada por aquela aliança partidária.
A eleiçãopresidencial em 1960tornou evidente, no nível
eleitoral, a precariedade da aliança. Foram vitoriosos, para a
Presidência, Jânio Quadros, candidato de uma coligação sus-
tentada pela UDN; e para a Vicê-Presidência, Jogo Goulart,
indicado pela coligação PTB-PSD . contradições políticas provenientes da operação desse sistema,
A nível parlamentar, a fragmentaçãointerna dos três
grandes partidos, já em curso nos anos anteriores, tornou-se
mais explícita devido às políticas postas em prática pelo go-
verno Quadros. Entre janeiro e agosto de 1961foram coloca-
das na arena política nacional propostas de grande escopo re-
feridas à política social, à política exterior (de carâter nacio-
nalista e independente) e a uma política económica de estabi-
lização que resultou, entre outros efeitos, numa brusca alta do
custo de vida e rebaixamento salarial. Os partidos que haviam
apoiado eleitoralmente o novo governo não concordavam intei-
ramente com essas políticas; nem discordavam delas inteira-
mente os partidos que o haviam combatido. A incidência si-
multânea das medidas governamentais sobre vários campos
cruciais da política pública e a rapidez com que elas foram
colocadas no debatepolítico conduziram o quadro partidário
a um acentuado processo de fragmentação, a alinhamentos
que se estabeleciame se desfaziam rapidamente, caracteri-
zando um alto grau de fluidez no apoio partidário-parlamen-
tar ao governo.Pode-seespecularque a renúnciado presi-
dente Jânio Quadros, em agosto de 1961, deveu-se em parte a
esses fatores.
A crise do governo Quadros anunciava com clareza o pro-
cesso de paralisia decisória a que chegou três anos mais tarde
-- e com conseqüências mais drásticas -- o governo Goulart.
Esse ponto, como foi argumentadopor Santos (1974), resul-
tou da combinação entre alta fragmentação no sistema de par-
tidos e acentuada polarização ideológica, conduzindo por sua
vez a um padrão de coalizões instáveis e à ilegitimidade.
De todo modo a fórmula institucional partidária que até
então garantira -- mesmo que atravessada por sobressaltos --
a política de modernizaçãoeconómicabrasileira, parecia ter
esgotado suas possibilidades.
De outra parte, o arranjo sindical através do qual era
assegurado o suporte político do setor operário urbano ao (jue
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 99
seconvencionouchamar de ''Estado de Compromisso'' perdia
legitimidadejunto a suas bases e à opinião pública em geral
em decorrência do próprio processo de desenvolvimentoeco-
nómico-sociale da ampliação da democracia política insta-
lada em 1946.
A bibliografia brasileira tem amplamente analisado as
em que os sindicatos são ao mesmo tempo entidades oficiais
(preenchendo funções definidas pelo Estado com o objetivo de
preservar conflitos) e grupos de interesse cuja liderança neces-
sita apresentar demandas trabalhistas às autoridades públicas
e as empresas.2ó
Por outro lado, têm sido constantemente ventilados os
efeitos do desenvolvimento económico e da modernização so-
bre o perfil do operariado brasileiro em termos de estratifica-
ção, valorese comportamentos políticos. Transformações des-
te tipo fizeram-se progressivamente sentir na eclosão de gru-
pos mais combativos, que contestavam a política sindical, seja
no interior dos próprios sindicatos seja através de movimentos
operários não controlados pelos sindicatos oficiais (Erickson,
1977)
Menos conhecida, porém, é a incidência da articulação
organizacional entre os sindicatos e um partido político, o
PTB. A literatura tem se restringido a examinar esse acopla-
mento sobre o ângulo clientelista da ação partidário-sindical,
ou sob o aspecto ''aliedador'' que através do apelo populista
ela exercia sobre as massas populares. O fato é que, em 1945,
o acoplamentode um partido político à atividadesindical
acrescentou uma nova dimensão à política trabalhista. Obede-
cendo à lógica da competitividade eleitoral, o PTB expandia o
escopo da disputa política e, através de estratégias mobiliza-
t6rias, articulava demandas económicas a posições político-
ideológicas mais amplas -- de caráter populista e nacionalista
--, caminhando numa direção inversa à compartimentação
entre aquelas duas áreas, prevista e desejada pelos idealiza-
dores da estrutura sindical nos anos trinta.
(26) Para uma análise da natureza da representação corporativa sindical, ver
Souza(1978). Parece evidente que a durabilidade e vitalidade do sindicalismo corpo-
rativista brasileiro não podem ser compreendidas se partirmos da visão de que os sin-
dicatos são destituídos de qualquer autonomia política ou não possuem nenhuma
representatividade.
100 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964;
BASES E LIMI'lES
B. A crise da democracia populista
Grande parte da literatura avalia os processos de erosão
do sistema partidário pela mudança sócio-económica.O de-
senvolvimentoteria alterado a correlação de forças políticas e
essa alteração ter-se-ia refletido no nível político-eleitoral com
o declínio dos partidos conservadores(sobretudo PSD e UDN)
configurando-se assim uma situação de crise. O ocorrido em
1964 toma-se portanto interpretâvel diretamente como uma
reação generalizada da direita a tais efeitos políticos da mu-
dança sócio-económica, ou pelo menos ao mecanismo institu-
cional vigente, que a enfraquecia.
Sem desconhecer que esse argumento pode encerrar boa
parcela de verdade, parece-nosque ele dilui a autonomia da
esferapolítica no mesmomomentoem que a postula. Se de
um lado reconheceque um mecanismoeleitoral formalmente
democrático, mesmo descontadasas mazelas do caso brasi-
leiro, funciona a longo prazo como corretivo político à estru-
tura de classes, de outro tende a diluir esse reconhecimento na
medida em que toma a mudança na correlação de forças sócio-
econõmicasquase diretamentecomo sinónimo de crise insti-
tucional. Faz coro, assim, com as interpretaçõespuramente
economicistas que prescindem do estudo dos mecanismos polí-
tico-institucionais por entenderem que a crise do modelo eco-
nómico os levaria fatalmente ao colapso.
Nossa hipótese básica, ao contrário, é de que o carâter
crítico da conjuntura de 1964derivou do simultâneo fortaleci-
mento do Estado e do sistema partidário, colocando de ma-
neira nada remota o dilema Estado sem pa Idos ou goverrzo
pa /daria. A despeitodas dificuldadesjâ apontadas, ou seja,
da preservação da máquina estatal e dos mecanismos centra-
lizadores dolo/lcy-makllzg durante o regime populista, e em-
bora o acoplamentode mecanismosformalmente democráti-
cos a mecanismos autoritários resultasse certamente no debili-
tamento do sistema de partidos, acreditamos que o mecanismo
institucionalse põs em marcha, forçando os partidos a um
processo de reestruturação e realinhamento.:' A questão deci-
(27) Para uma análiseda evoluçãoe clÍse do sistemapartidário no Brasil, bem
como para uma discussão crítica sobre a hipótese de rea/fnAamenfo parfídáHo, ver
Limo Júnior (1978) .
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 101
siva, porém, talvez seja a de saber se o sistema partidário se
achava exposto a uha fragmentação pura e simples, com dano
irreparável para sua eventual capacidade governaffva, ou se
de fato se processava um realinhamento através do qual essa
capacidade poderia ser reforçada, a médio prazo.
Os dados eleitorais analisados por Soarem(1971 e 1973) e
por Schwartzman (1971), sobre o período, revelam, resumida-
mente, que:
1) os pequenos partidos ''ideológicos'' cresciam de ma-
neira proporcionalmente mais rápida nas regiões desenvolvi-
das e nos grandes centros urbanos;
2) o PTB, que se desenvolveraa partir de uma base ex-
clusivamente urbana, localizada sobretudo nos grandes esta-
dos, ampliava sua penetração nos estados menos desenvolvi-
dos e também no interior. Essa ampliação não chegava obvia-
mente a descaracterizá-lo como partido trabalhista urbano;
3) em face da concorrência dos pequenos partidos e do
PTB, os chamados partidos conservadores -- PSD, UDN, PR
(Partido Republicano) -- viam-se forçados a procurar suas
''bases naturais'' nos municípios menores e a cultivar uma
maior aproximação com elas. Parece possível afirmar, tenden-
cialmente, que eles teriam de aumentar a mobilização de suas
respectivas bases, à medida que perdiam apoio, nas cidades,
conquistado pelo PTB e pelos pequenos partidos urbanos.
Sendo cornetaessa interpretação dos dados, parece evi-
dente que se processava, embora de maneira paulatina, um
realinhamento partidário. .Ao contrário do que sugere a maior
parte da literatura, um processo caótico e sem direção não
era, pois, a única possibilidade aberta naquele momento.
Esse realinhamento se desenvolviacom ritmos e extensões
diferentes. De modo lento, as eleições legislativas refletiam as
tendências da mudança social e económica ao nível do eleito-
rado. Jâ as eleições executivas, especialmente a da Presidência
da República,. embora registrassem aquelas mudanças de ma-
neira mais abrupta e dramática, condensando-asnos diferen-
tes estilos personalistas, distinguiam menos o eleitorado em
termos sócio-económicos, não s6 em virtude da obrigatorie-
dade de mobilizar uma maioria nacional, como pelo fato de
que essa maioria não poderia ser obtida por nenhum partido
ou candidato senão através de acordos com as máquinas e
oligarquias estaduais. Um candidato presidencial efetivamen-
102 A DEMOCRACIA POPIJLISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 103

te competitivo deveria obrigatoriamente ter estes dois compo-

quais a mudança sócio-económica incidia sobre a formação
nentesem sua votação: de um lado, um apelo generalizado,
dos dois poderes. Essa diferença poderia ter como consequên-
ultrapassando as diferenciações ou fronteiras geográfico-so- cia, a médio prazo, um e/tÉraqaecfmenfore/affvo do poder
ciais, a começar pela unificação de seu próprio estado; de ou- .Ekecuf;vo (preso ao elevado valor marginal do apoio das for-
tro, a conquista maciça de alguns estados através de acordos
ças políticas ''interioranas'') e uma crescente representativi-
com dirigentes locais.
dade e institucionalização das formações partidárias no Legis-
Nestas condições, é ingénuo imaginar que a eleição pre- lativo.
sidencial ou vice-presidencial tenha seguido contamos sócio- Por outro lado, o que se tem caracterizadoexclusiva-
econâmicosbem definidos, pois ela resulta dos dois compo- mente como indício de fragmentação partidária -- a dispersão
nentes assinalados, ambos neutralizadores dos determinantes
da força eleitoral -- aparece, sob o ponto de vista aqui deli-
sócio-económicos normais nas eleições legislativas. neado, como instauração de uma situação de relativa incer-
Este ponto tem relevância direta para a discussão do diag-
teza, sem a qual as instituições políticas não possuem qual-
nóstico segundo o qual a crise institucional teria se configu-
quer independência em face de suas determinações sócio-eco-
rado como confronto entre um Executivo de base urbana pro-
nómicas, e sem a qual, conseqüentemente, o processo eleitoral
gressista e um Legislativo agrário e conservador (Furtado, carece de significação.
1965) tese que passou a circular no início dos anos sessenta
Admitindo, como admitimos, a presença simultânea de
como interpretação mais ou menos indiscutível da crise insti-
tendênciasao fortalecimentoe à desagregação,o carátercrí-
tucional brasileira. Embora sua popularidade seja compreen-
tico é patente, visto que no final do período se prenunciava
sívelem função do momento político em que foi produzida,
como possibilidade, na hipótese de fortalecimento, a passa-
parece-nos que ela simplifica em excesso os problemas,. espe-
cialmente os relativos ao sistema de partidos e às característi- gem ao sistema degovernopaNfd(írz'o, evidentemente contra a
ideologiaantipartidária ainda vigentee o poder burocrático
cas do apoio eleitoraldo Executivoe do Legislativo,quer no ainda vigoroso. Na aguda incompatibilidade entre estas novas
nível federal, quer no estadual. tendências e og determinantes prévios da centralização e da
Os dados eleitorais mostram que os dois principais candi- ideologiaestatais poderia estar o caráter crítico da conjuntura
datos à Presidênciada República em 1960(Quadros e Lott) do início dos anos sessenta, que culmina no desenlace de mar-
obtiveram metade de sua votação nos municípios com mePzoi ço de 1964.
de 10000 eleitores. O mesmo padrão se observa em relação
aos candidatos à Vice-Presidência, sendo significativo lembrar
que
1) a candidatura Goulart, patrocinada pelo PTB, obteve
somente 26%ode seus votos nas grandes capitais, em compa-
ração com 31%oganhos pelo candidato de um pequeno par-
tido (F. Ferrari) e 28%odados à candidatura udenista de Mil-
ton Campos;
2) o candidato do PTB perdeu para seus opositores nas
capitais dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo (Souza,
1976)
Estas indicaçõessugeremque o quadro era mais com-
plexo. Talvez seja mais correto postular que o caráter crítico
do antagonismo institucional não estava tanto na diferença de
orientações em si, mas sim nos diferentes fe/7zpoisegundo os

Apontamentos sobre
a questãodemocrática
brasileiras
Bolivar Lamounier++
Introdução
U ma verdadeira questão democráf/ca não surge no Bra-
sil senão a partir de 1945. Mesmo no período constitucional
que então se abre, e que se caracteriza, no plano formal, pela
vigência de liberdades públicas e prerrogativas civis razoavel-
mente amplas, importantes ressalvas devem ser feitas no que
se refere ao avanço efetivo do processo de democratização. De
um lado, ressalvasligadas às restriçõesde /acto que a estru-
tura social antepunha à ampliação da cidadania. Basta lem-
(+) Diversos amigos leram uma versão preliminar deste texto. Sou
grato por suas críticas e sugestõesaos colegas da FNSP(Paria) e do CISEA
(Buenos Aires); a Amaury de Souza e Wanderley Guilherme dos Santos, do
IUPERJ; e a meus colegasdo IDESP, em particular a Raquel Meneguello,
Mana Teresa Sadek de Souza e Plínio Dentzien. Agradeço também o apoio
financeiro, sob a forma de uma bolsa de estudos, que recebi da Fundação
Guggenheim, para o estudo das questõesaqui tratadas. Cabe-me, entre-
tanto, a exclusivaresponsabilidadepelotrabalho em sua forma final, e em
particular pelos erros e impropriedades que porventura hajam persistido.
(++) Bolivar Lamounier é professor de Ciência Política da PUC-SP
e da USP, Diretor-Presidentedo IDESP -- Instituto de Estudos Econó-
micos, Sociais e Políticos de'São Paulo.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 10s
brar que a grande maioria da populaçãovivia em pequenas
cidades ou dispersa em pequenas aglomerações e áreas rurais;
que o campesinato pobre e analfabeto representava uma parte
substancial dessa maioria não mobl/ízada (no sentido de
Deutsch, 1961); e que o analfabetismoera (e continua sendo
atéhoje) um fator de exclusão do direito de voto.
De outro lado, como foi destacadopor Mana do Carmo
C. de Souza, a centralização burocrática levada a cabo pelo
Estado Novo (1937-1945) e o carâter historicamente patrimo-
nial, cooptativoe clientelísticodo Estado brasileiro dificulta-
ram o desenvolvimentoda nova estrutura partidária e neutra-
lizaram em grande parte os impulsos democratizantes inscri-
tos no arcabouço institucional do regime de 1946-1964. A exis-
tência de um Legislativo com amplas prerrogativas constitu-
cionais, o pluripartidarismo, a estrutura federativa, o clima
de liberdade civil então vigente, tudo isso teve seu potencial
democratizanteefetivamentelimitado, entre outras razões,
pela debilidade dos partidos e da chamada sociedade civil.
Nestepano de fundo é que se há de projetar o ponto ne-
vrálgicode todo sistema democrático, que é a altemância de
partidos na instância máxima do poder. Não é fácil o diagnós-
tico do período, sob este ponto de vista. Houve, por certo, elei-
ções presidenciais diretas, supervisionadas por órgãos judi-
ciais sérios e razoavelmente independentes. Essa substituição
de pessoas e grupos na instância máxima do poder gerou ten-
sõesmais que suficientespara se descartar a hipótesede um
mero jogo personalista entre membros de uma mesma oligar-
quia. Pelo menos no tocante à clivagem histórica entre o gefu-
/ümo e a/zfzkefu/esmo, não há dúvida de que se chegou, com a
substituiçãode Juscelino Kubitschek por Jânio Quadros, nas
eleiçõesde outubro de 1960, a uma alternância pacífica. Os
acontecimentos subseqíientes, com a renúncia de Quadros em
agostode 1961e a crise que então se abriu, podem ser vistos
como outro problema, produzido por fatores distintos.
Se tomarmos, porém, como critério uma tradição eleito-
ral em que haja clara contraposição entre direita e esquerda,
ou entre elites tradicionais e forças populares organizadas em
partido, chegaremosseguramenteà conclusão de que nunca
houve, no Brasil, verdadeira alternância. A eleição de Getúlio
Vargas em 1950seria a melhor aproximação, mas Getúlio,
embora tivesse apoio de forças populares, era também repre-
 I06 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
sentantede forças conservadoras e de remanescentesdo Es-
tado Novo. Além disso, seu retorno ao poder, pela via eleito-
ral, deu-senum quadro em que eram ainda muito baixos os
índices de urbanização e de mobilização social. Uma das in-
terpretações mais comuns do golpe militar de 1964, como ve-
remos adiante, é de que ele sobreveiojustamente quando o
conflito político começava a tornar-se claramente classista, em
condições de crescente mobilização. l
Em retrospecto, parece evidente que o Brasil possui ele-
mentos de uma tradição liberal-democrática, ao nível da cul-
tura política e de algumas instituições, mas nunca teve uma
prárfca irrestrita da moderna democracia representativa, se
considerarmos que esse sistema supõe a ocorrência simultânea
de pelo menos três condições:
1) altos níveis de mobilização social, no sentido já assi-
nalado;
2) partidos de massa, em contraposição a partidos mera-
mente oligárquicos ou de notáveis;
3) a possibilidade de que a alternância no poder entre
tais partidos, uma vez determinadapor um processo eleitoral
legítimo, se processe sem maiores traumas.
O contrastecom o período 1945-1964torna porém ine-
quívoco que uma aguda qzzesfãodemográfica se instaura a
partir de meados dos anos 70 à medida que o processo de aber-
tura controladaposto em marcha pelo governo do general
Geisel (1974-1978)começa a deitar raízes na nova estrutura
social e política do país. Ê o que se vê, desde logo, no que se
refere aos partidos políticos. Em lugar dos sonhos de ''mexica-
nização'' acalentados por alguns próceres do sistema de poder
estabelecido em 1964, o país está assistindo, pelo menos nos es-
tados mais urbanizados, à formação de partidos competitivos,
melhor enraizados e menos clientelísticos. O PMDB -- .Par-
tido do Movimento Z)emocráfíco .BrasiZefro,logrou organizar-
seem nível nacional bem antes de conquistar os meios repre-
sentados pelo controle de um número apreciável de governos
estaduais e municipais; o PT -- Parfldo dos Traça/dadores,
pode ser visto como um projeto até agora bem-sucedido de
(1) Para uma visão geral da história política brasileira desde o Estado Novo,
consulte-se Skidmore (1967), Flynn (1978) e Fleischer (1981).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 107
criação de um partido ''de baixo para cima'' , a partir dos sin-
dicatos e dos movimentos sociais, sem uma base parlamentar
prévia.
A questão chave, porém, numa perspectiva mais ampla,
é sem dúvida a gigantesca transformação sócio-económica
ocorrida desde os anos 50, com o avanço da industrialização e
com o simples crescimento da população (cujo total, segundo
o censo de 1980, alcança 121 milhões), agora maciçamente
urbana e mesmo metropolitana.: Deve-se observar que mesmo
a parcela, semdúvida significativa, que se encontra ainda nos
pequenosmunicípios e em áreas rurais é contemporânea de
uma rápida transformação nas relaçõesde trabalho e de um
importante avanço do sindicalismo e dos meios eletrânicos de
comunicação. O número de eleitoresatingiu 58 milhões nas
eleiçõesde 1982, o que significa a quase totalidade da po-
pulação adulta alfabetizada.
Estas mudanças começam a repercutir visivelmenteno
processo de articulação de interesses, no comportamento elei-
toral e associativo, na formação de movimentos sociais, enfim
em toda a questão da participação política.
Não há necessidade de indicadores mais refinados para se
demonstrar a elevação exponencial das tensões sociais e a rup-
tura definitiva com a situação dos anos cinqüenta, na qual a
participação política passava necessariamentepelo domínio
de oligarquiasprovincianas, pelo clientelismotradicional,
quando muito pelo populismo urbano.
Sob todos estes aspectos, trata-se hoje, rigorosamente, de
um ozzfropaís; mas é também o velho ''país de contrastes'' de
que falava Roger Bastide. Oitava economia do mundo capita-
lista, um dos grandes exportadores mundiais de armamentos,
o Brasil é também uma das sociedadesmais desiguais de que
se tem notícia, marcada, ainda, por aterradoresíndices de
insalubridade mesmo em suas principais áreas metropolita-
nas. Qual poderá ser, neste quadro, o desfechodo atual pro-
cesso de aberfzzra, com suas promessas, vacilações e retroces-
sos? Será o Brasil, nas próximas décadas, um dos poucos
exemplos bem-sucedidos de democratização na antiga perife-
(2) Em 1950, somente 20%oda população vivia em cidades de mais de 20 mil
habitantes. A parcela correspondente em 1980 era de 51 %a. VerTabela l.
I08 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 109

TABELA l 1. Economia e política, ou memórias

POPULAÇÃO TOTAL E POPULAÇÃO URBANA do subdesenvolvimento
t19n-1980)'

A noção de que os sistemas políticos mantêm um estreito

População População
total urbana paralelismo com ''estágios'' ou ''níveis'' de desenvolvimento
(em /aD) (ó/a) dapopufação das
económico tem sido freqüentemente submetida ao teste da
(a) cidades com pesquisa comparativa. Em sua valiosa contribuição, Robert
20000hab. ou .t Dahl concluiu que existe inquestionavelmente uma associação
19m 51940 10B5 19.9 positiva entre desenvolvimento sócio-económico e desenvolvi-
1960 70920 21073 a.7 mento democrático, mas acrescentou imediatamente que essa
1970 9230 34207 37.0 proposição ''does not take us very far". As questões que esse
19n 121 151 61254 50,6
tipo de abordagem não consegue responder satisfatoriamente
acham-se hoje extensamente discutidas na literatura: por que
' Tabela adaptada de Vilmar E. Faria, "Desenvolvimento, Urbanização e ocorrem desvios ou elceções tão importantes(por exemplo, a
Mudanças na Estrutura do Emprego", /n Bernardo Soro e Marca Hermínia Tava-
rosde Almeida, orgs.. op. clt. Costa Rica democráticano contextoda América Central); o
problema dos retrocessos(golpes militares e longos períodos
ditatoriais em países razoavelmente industrializados, como
ria colonial? Sobreviverão suas instituições representativas aos Brasil, Uruguai, Argentina e Chile -- para ficarmos só nestes
golpes e contragolpesda tutela militar e da instabilidade so- exemploshistórica e geograficamente próximos); enfim, a im-
cial? Que relações se estabelecerão entre essas novas formas possibilidadede destrinchar, no plano empírico, se o avanço
de organização e participação popular e as instituições políti- na consolidação democrática é causa ou i::Heífodo crescimento
cas tradicionais? económico e de progresso no bem-estar social.'
Estas indagações sugerem três eixos conceituais para a Por essas razões é que estudos mais recentes têm mani-
discussão da questão democrática brasileira: festado uma saudável inclinação a buscar determinantes mais
1) a re/anãoeconomia/po/ífíca: em que medida a forma- imediatamente políticos e institucionais dos co/apsoi de regi-
ção colonial do país e o subdesenvolvimento são percebidos mes democráticos e da redemocraíízação de regimes autoritá-
como obstáculos à democracia? Em que direção amuam os rios.4Esta última tendência corre porém o risco de passar ao
atuais condicionamentos económicos? extremo oposto, perdendo por completo a perspectiva de que
2) represenfaçâopo/ü/ca: o componente liberal da tradi- os dilemas da democracia e da redemocratização acham-se
ção política brasileira constitui realmente uma consfrafnr ope- inextricavelmente ligados, ainda que nem sempre de maneira
rativa, ou é apenas uma fachada verbal? Que significação têm imediata, aos problemas do crescimento económico, da for-
os mecanismos eleitorais e parlamentares no atual processo de mação de uma infra-estrutura que assegure padrões de sobre-
abertura e redemocratização? vivência e bem-estar à maioria da população e, em última
3) a qzzesrâoda parríc ração: que tipo de iüfema parti- análise, à redução das desigualdadessociais e regionais. A
cipativo está surgindo no contexto da redemocratização, no
bojo das transformaçõessócio-culturaise no embate com o
sistema decisório do Estado? (3) Ver DALI, 1971,pp. 63-66.Ainda maisradical é a crítica de Rustow
(1970), que acusa a maioria dos estudos disponíveis de lidarem apenas.com .questões
referentes à sustentação ou à estabilidade de sistemas democráticosjá copa/i8urados
como raü, relegando a segundo plano a questão histórico-genética de como se .ar-
mam pela primeira vez tais sistemas.
(4) Ver Rustow, op. cff. , e especialmenteLinz & Stepan( 1978).

IIO APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
questão da canso/ídaçâo democrática, e mesmo a questão mais
ampla do desenvolvimentopolítico entendido como ''institu-
cionalização de organizações e procedimentos'' (Huntington,
1968) não podem ser discutidas de maneira frutífera, no que
se refere ao chamado Torce/ro .A/findo, fora desse marco de
referência.
O desencanto com as hipóteses que procuram estabelecer
conexões gerais, de longo alcance, entre a base económica e o
desenvolvimento político é também evidente nas recentes con-
tribuições de alguns economistas. Referindo-se ao tema que
ora nos ocupa, assim se expressou Albert Hirschman (1979,
68)
''Mais de um século depois de Marx, ap/opoxlção gera/ de que
mudanças políticas importantes podem ser mais bem explica-
das por fatores económicosnão é nem particularmente nova
nem completamente convincente. Apesar de tudo, uma exci-
tação intelectual considerável ainda é gerada -- e legitima-
mente -- quando se mostra ou se alega que uma virada espe-
c#lca da maré política tem origem numa característicaprecísa
do terreno político subjacente'
A proposiçãogera/ a que se refere Hirschman pode ser
traduzida, para os fins do presenteensaio, como uma alusão
às pesquisas iniciadas no final dos anos 50, que procuravam
estabelecer conexões entre níveis de desenvolvimento econó-
mico e graus de consolidação democrática. Parece-nos entre-
tanto um pouco cedo para descartar de vez tais estudos, sobre-
tudo se isto significar uma perda completa de contato com
problemasestruturais ou de longo prazo. Uma linha concilia-
tória e quiçá mais frutífera, sugerida pelo próprio Hirschman,
consiste em atribuir maior peso explicativo à chamada instân-
cia ideológica -- vale dizer, às avaliações, memórias e expec-
tativas dos po/ícy-makers, ou dos ativistas políticos, de um
modo geral. Neste caso, a determinação dos fatos políticos
seria imputada, não diretamente aos ''fatos brutos'' da econo-
mia (sejam eles de longo ou de curto prazo), mas antes a essas
crenças das elites acerca dos obstáculos que a economia ante-
põe (ou dos meios que ela proporciona) ao desenvolvimentoda
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 111
esfera política.s Nesta linha de raciocínio, a questão dos con-
dicionamentos sócio-económicospode ser recolocada com pro-
veito se considerarmos:
1) que existem configurações estruturais menos ou mais
/avoráveü ao desenvolvimento democrático;
2) que a representação subjetiva dessas configurações,
na medida em que se incorpora à cultura política, pode exer-
cer efeitos duradouros e relativamente autónomos sobre o pro-
cesso político, através das escolhas concretas que as elites e os
ativistas políticos são levados a fazer, ao longo do tempo.
Com efeito, o desenvolvimentoda democracia represen-
tativa supõe um crescente enraizamento da competição parti-
dária e eleitoral(entendidas como formas normais e pacíficas
de disputa) e o livre funcionamento de instituições parlamen-
tares. Não se pode considerar como reducionista ou como eco-
nomicismo a proposição de que certas configurações sociais
Ihe são adversas, pois o que esta proposição afirma é apenas
que essas configurações têm maior probabilidade de gerar ati-
tudes e comportamentos frequentemente antagónicos com a
operação habitual daqueles mecanismos .
Essas configurações desfavoráveis, enquanto tipos ideais,
podem ser construídas de diversas maneiras, mas meu objetivo
aqui não é uma classificação ou tipologia sistemática. Desejo
fazer referência a apenas dois entre tais tipos (chamemo-los A
e B), salientando imediatamente que ambos encontram fortes
aproximaçõesno caso brasileiro -- no plano da estrutura só-
cio-económica objetiva e também no da ideologia -- ao longo
de todo este século.
A configuração A pode ser exemplificada facilmente com
a América Central e com o Nordeste brasileiro. São formações
claramente determinadas por uma estrutura produtiva de ori-
gem colonial, ainda hoje fortementeatada a uma extrema
concentração da propriedade fundiária. Uma parcela consi-
derável da força de trabalho depende da agricultura, mas não
tem acessoà propriedade da terra. Forma-se, assim, no meio
rural, üm campesinato ou proletariado rural numerosoe ex-
(5) Boas defesas de uma perspectiva mais esüítamente política podem ser en-
contradas em Santos(1974) e Di Palma(1983).. Di Palma escreve: "other conditions
(social, cultural, economia,intemational) are more oftenthan not only wamingsigns
to which organized politics are caUed(but may faU) to respond"(p. l).
112APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
tremamente pobre, muitas vezes concentrado em grandes
p/a/zfaffo/zi; no meio urbano, uma estrutura de emprego forte-
menteterciarizada, caracterizada pela expansãodo funciona-
lismo público e de serviços diversos, inclusive pessoais, em ní-
veis extremamente baixos de produtividade e de renda. Em que
pese à eventual dispersão geográfica dessa população, sua ex-
trema pobreza, suas crenças fatalistas ou mesmo sua religiosi-
dade tradicional, o controle social não prescinde de um alto
grau de monopolização dos meios de violência, seja direta-
mente pela elite agrária, seja através de um visível conluio
desta com as forças policiais e militares.'
O antagonismo desta configuração com o desenvolvi-
mento democrático é tão evidente que em geral os analistas se
dispensam de examinar as diferentes fases e fatores de sua
transformação, ou a possibilidade de que a representação sub-
jetiva dessesobstáculosna cultura política possa ser também
bastante variável.
No caso brasileiro, é indispensávelassinalar que o lati-
fúndio não levou a um monolitismo e/aflora/, nem mesmo no
nível local. Ao contrário, a adição de instituiçõeseleitorais
obviamente ''importadas'' da Europa e dos Estados l.Jnidos é
que-dispensougradativamente o poder central, desde o Impé-
rio, de intervir em cenários locais já marcados por forte riva-
lidade familística. Essa situação reproduzia-se de,alguma for-
mo ao nível das províncias, o que ajuda a compreender a rei-
vindicação do federalismo que acompanhou a preparação da
República, nas últimas décadas do século passado.
A discussão desta questão muitas vezes incide no equí-
voco de ver como monolíticas essas antigas estruturas de poder
locais e regionais, e em situar nessa característica os obstácu-
los ao desenvolvimento democrático. O equívoco consiste em
subestimar a significação, a longo prazo, dessa competição
(6) "0 sistema económico e a estrutura social do Brasil em 1930 -- escreve
Furtado -- não eram muito diversos do que haviam sido no século anterior... Do
ponto de vista do homem comum que nascia e morria dentro de uma grande fazenda,
o único sistema de poder real era o constituído pelos grandes senhores de terras. O
Estado como organização política nacional tinha escassa significação para a massa da
população..."(1965, 135). Para uma visão global da formaçãohistórica centro-
americana, ver Casanova(1981). Boas análises da problemática atual podem ser en:
centradas na edição especial dolotima/ oÍlaffn 4meHcan Sfudfes, Cambridge Uni-
versity Press, vo1. 15, parte 2, nov. 1983.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 113
entre grupos locais de elite, com base na observação, certa-
mente correta, de que eles pouco ou nada diferiam no que diz
respeitoa suas respectivasbases materiais ou a suas ideolo-
gias. Ora, essa competição, como ficou sugerido, sempre teve
fortes efeitos descentralizantes, inibindo a formação de um
partido dominante inteiramente fiel à burocracia estadual e
federal;.e forçando até mesmo os governos militares, no pe
ríodo pós-1964, a adotarem uma legislação que acomodava as
diferentes facções locais e estaduais dentro do partido gover-
nista, atravésdas chamadas t'sublegendas''.'
Houve, pois, certo grau de ãabífuação com as práticas
eleitoraise partidárias, facilitada pelo progressivocontrole
da violência, por sua vez impulsionado pela centralização do
poder federal a partir da Revolução de 1930.8 É evidente que
esse desenvolvimentonão tem sido homogéneo. A região Nor-
deste continua ainda bastante próxima do tipo ideal, ou sela,
de nossa configuração ''A'', com tudo o que ela contém de
obstáculo à rotinização democrática. Contudo, os estados nor-
destinos não são países independentes, embora tenham di-
mensões semelhantes ou mesmo superiores às dos países da
América Central. Se é certo que as oligarquiasnordestinas
exercem elevado grau de controle sobre os recursos económi-
cos e políticos da região, é também evidente que nenhum es-
tado nordestino se autodetermina no grau em que o faz um
país independente, mesmo entre os mais débeis. A eventual
semelhança de suas estruturas produtivas com as centro-ame-
ricanas não deve portanto fazer-nos esquecer que.o Nordeste é
uma região dentro de um país que tem, no conjunto, caracte-
rísticas totalmente distintas; e que é continuamente submetido
a uma dinâmica económica e cultural fortemente urbanizante.
bem como a um aparato governamentale a instituiçõesmili-
(7) A instituiçãodas iuó/e8e d©, penniündo a um partido indicar até três
candidatospara um tnesmocargo, nas eleiçõespara prefeito e senador, foi adotada
pela primeira vez através do artigo 92 do CÓdigOEleitoral de 1965. Sobre o problema
da repnsentação e]eitora] e suas conexõescom as disputas locais, ver Leal(1948),
Carvalho(1958), Lamounier e Kiazo(1978), Kinzo(.1980) e Lamounier(1981bj. ''
(8) Mesmo um fenoroso adversário da democracia representativa rnonhecia.
em 1938: "Houve, sem dúvida, uma profunda alteração dos nossos costumes eleito-
rais, depoisda Revolução de 1930...(como consequência)do voto secretoe do esta-
belecimento da justiça eleitoral. . .(pelo menos) nos centros populosos mais adianta-
dos- ." Ver amara/(1938), caps. 5-6. Para uma análisecomparativade processos
eleitoraiscontrolados, não competitivos, ver Hermet ef a/ÍÍ(1978).
114APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
taras que transcendem sua área geográfica. A observação é
trivial, mas necessáriase quisermoscompreendercomo e por
que a formação social nordestina, com tudo o que ela contém
de aparentemente explosivo, não se transforma em obstáculo
à democracia representativape/o camíPz#oconÀecldo em sí-
fzzaçõesserre/#anfes, vale dizer, pela militarização e ideologi-
zação dírefa das lutas sociais, ou daquelas que entre si travam
diferentes facções da oligarquia.
A mencionada habituação com as práticas eleitorais, alias
crescentemente enquadradas, a partir dos anos 50, em normas
federais homogéneas; o fortalecimento do poder central no to-
cante ao controle da violência privada; a rápida urbanização,
também a partir dos anos 50 e a crescente penetração dos
meios de comunicação eletrânicos, na década seguinte, tudo
isso produziu uma acentuação especial e em seguida uma ate-
nuação na representação subjetiva dos obstáculos engendra-
dos pela configuração ''A". Em vez da descrição, antes direta
e realista, das velhas famílias proprietárias -- usualmente de-
signadas pelo sobrenome do patriarca --, como verdadeiras
parentelas militarizadas ou como organizações clínicas que
orgulhosamente defendiam e governavam suas fazendas e en-
genhos, a historiografia dos anos vinte e trinta hesita entre o
realismo e a metáfora. Fala num poder público cujo caráfer se
adultera frente à hipertrofia do poder privado; numa estru-
tura social ainda marcada pelo ''complexo de Antígona'', na
qual a impessoalidade dos partidos não logra afirmar-se sobre
o particularismo dos grupos primários; num organismo social
que permanece como que invertebrado, dada a pouca nitidez
dos interesses que se proletam no domínio extradoméstico.
Duas décadas depois, já sob a Constituição liberal de 1946,
essa transformação se acelera. Os termos que aludiam a gru-
pos sociais concretos -- como c/âk, parentelas ou mesmo oli-
garquias -- caem em definitivo desuso, substituídos por ou-
tros, como o termo corone/isco, que situam esses referentes
num plano conceptualmais abrangente.9
Seria exageroimaginar que o termo coronelismotenha
adquirido no sensocomum o sentido altamente abstrato que
(9) Ver Nunes leal, op. cír., e também Holanda (1956), Duarte (1938),
veira Vianna (1951).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 115
Ihe emprestou Vector Nunes Leal em 1948: uma nova confi-
guração do sistema político, cujo ponto de equilíbrio se esta-
beleceriaagora entre um poder privado em decadéhcfae o
poder público /arfa/ecfdo.'o Não resta dúvida, porém, de que
ele se transformou num verdadeiro elo conceitual entre a nas-
cente sociologia acadêmica, ojomalismo político e os ativistas
políticos zzo locanfe à fnrerprefação do comporfamePzlo e/el-
fora/. As novas práticas eleitoraisdo pós-guerra, com sua ex-
periência pluripartidâria e com a representação proporcional,
eram assim imediatamente enquadradas num quadro inter-
pretativo que aludia, não tanto às tropelias e truculências que
vez por outra chegavamao noticiário das capitais, mas sim à
moffvaçâo do voto, à natureza intrínseca e necessariamente
clientelista, interesseira e acomodatícia do comportamento
partidário e eleitoral. Invertendo perversamentea analise de
Vector Nunes Leal, que estabelecerabases adequadas para
uma reflexão mais rigorosa, as sobrevivênciasa que nos refe-
rimos, incorporadas à cultura política, ofereciam um quadro
de referência que começava e terminava no indivíduo: em sua
motivaçãoparticularística, em sua incapacidade de guiar-se
por critérios impessoais, ou ideológicos .
O argumento desenvolvidonos parágrafos anteriores é
fugidio, um tanto especulativo, mas prenhe de consequências,
caso seja carreto. Quando a conceituação dos obstáculos en-
raizados na configuração ''A'' assume a forma de grupos so-
ciais concretos -- exércitos privados ou ''esquadrões da mor-
te'' salvadorenhos -- ela aponta para dificuldades graves, mas
razoavelmente objetivas, em princípio passíveis de remoção
através da ação governamental. Quando, ao contrário, alude
a sobrevivências culturais, à falsidade da representação polí-
tica em virtude da motivação sempre "clientelística'' do voto
ou da ''falta de espírito público'' dos candidatos, trata-se tal-
vez de uma dificuldade menos grave, mas certamente dura-
(lO) "Concebemos o corone/limo" -- escave Vector Nunes Leal -- "como
resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma
estrutura económica e social inadequada. .Rrâóé, pois, mera sobrevfvâlcfa do poder
privada, cuja hipertrofia constituiu fenómeno típico de nossa história colonial. É an-
tesumalbrma peculiar de man#êstaçâa do poder privado, ou seja, uma adaptação
em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conse-
Oli- guido coexistir com um regime político de extensa base representativa"(op. cff , p.
20; grifos meus).
116 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
doura e capaz de intrometer-se em todos os interstícios da cul-
tura política.
Como toda tentativa de explicação culturalista, estas so-
brevivências da configuração ''A'' apenas ajudam a compreen-
der o insuficiente enraizamento das instituições partidárias,
eleitorais e parlamentares, e eventualmente a debilidade do
comportamento associativo. São, pois, fatores talvez atuan-
tes no sentidode dificultar a como/fiação democrática;mas
não podem ser vistos como determinantes significativos de
uma crise institucional específica, seguida por um retrocesso
abrupto, como a que se deu no período de 1961-1964.O diag-
nóstico mais frequente sobre essa crise baseia-se, ao contrário,
na e.razzsfâodo clientelismo, do populismo e de outros meca-
nismos tradicionais de acomodação, no bojo da configuração
''B''. É o que veremos em seguida.
A configuração ''B'' pode ser exemplificada com a situa-
ção brasileira do final dos anos 50. Trata-se de uma formação
social jâ submetida a um intenso processo de industrialização
e urbanizaçãoe, nesta medida, a tensõese frustraçõescres-
centes. O aumento da participação do poder central na gestão
da economia e no controle social multiplica as oportunidades
de politização. Fortes fluxos migratórios somam-se a uma
progressiva integração do mercado interno e dos meios de co-
municação, acentuando a elevação das expectativas de con-
sumo e de mobilidade social. Começa a configurar-se a cha-
mada ''sociedade de massas''
à primeira vista, pelo menos, há certo paradoxo na per-
cepção da configuração ''B'' como um conjunto adverso à con-
tinuidade das instituições representativas no Brasil dos anos
50 e começo dos anos 60. O exame dessa percepção é, pois,
indispensável à presente discussão, tendo em vista seu papel
na crise de 1961-1964e, sobretudo, os debates recentes, que
vêm colocando a análise da questão democrática brasileira em
bases totalmente distintas.
A configuração ''B'', em si mesma, corresponde perfeita-
mente àquela classe de proposições genéricas que Hirschman
não considera nem novas nem convincentes quando convoca-
das a explicar mudanças políticas importantes. Contudo, o
paradoxo é que ePzquanfoproposição ge#érfca, ela deveria ser
considerada como condição mais favorável do que desfavorá-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 117
vel ao desenvolvimento
democrático.Trata-se, afinal, da su-
peração, através de transformações económicas e demográfi-
cas, dos obstáculos engendrados pela configuração ''A''. Em
que pese o eventual simplismo de uma formulação â /a ZÜ)sef
(1959), é inegável que o desenvolvimentoeconómico e a urba-
nização produzem esses efeitospositivos, sobretudo ao neutra-
lizarem as formas mais virulentas de servidão política associa-
das ao mandonismo rural.:' Na literatura sobre o desenvolvi-
mento político, mudanças deste tipo sã(i incluídas no conceito
de mobí/lzaçâo sacia/ (Deutsch, 1961). Os efeitos desse pro-
cesso, como argumenta Huntington (1968), não são necessa-
riamente disruptivos, pois dependem da capacidade de cresci-
mento das instituições políticas que sofrem seu impacto, que a
ele respondem, e que dele podem eventualmentese beneficiar.
Vejamos, pois, primeiro o contextointelectuale político
em que surgiu essa percepção negativa da configuração ''B'', e
e seguida as modÍ#caçõei que ela parece ter sofrido, no debate
posterior a 1964.
Há fortesindicaçõesde que a qualificaçãoda configura-
ção ''B'' como adversa baseia-se em diagnósticos produzidos
dzzra/zfea crise de 1961-1964,para não mencionar interpre-
tações posteriores, mas possivelmente não tão freqüentes abres
desseperíodo. Convém frisar que não estamosfalando sim-
plesmente da percepção de que tensões sociais se acumula-
vam, mas sim de que essas tensões e o modelo de crescimento
económico em que se inscreviam seriam mais cedo ou mais
tarde incompatíveis com a manutenção do processo democrá-
tico-representativo.'z Vale a pena lembrar, neste sentido, que
a substituiçãode Juscelino Kubitschek por Jânio Quadros, no
início de 1961, ainda transcorreu num clima de razoável con-
fiança na continuidade democrática -- confiança obviamente
(11) A concentração da propriedade fundiária aparece claramente como fatos
adverso à consolidação de sistemas políticos pluralistas na análise de Dahl; e o Brasil
é, evidentemente, um caso de alta concentração(op. cff. , pp. 82-88).
(12) Houve durante toda a década de 50 uma ênfase muito grande no surgi-
mento do "povo" como atou político, na tensão entre o "velho" e o "novo", na cres-
cente inadequação da política de clientela e no declínio eleitoral dos partidos conser-
vadores. Mas estes temas apareciam numa 6üca frequentemente otilnista e mesmo
ingénua, como "sobrevivências" condenadas ao desaparecimento. Entre as melhores
análises sociológicas, então produzidas, veja-se Jaguaribe(1950), Guerniro Ramos
(19S6 e 1961) e Carvalho(1958).

118 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
abalada após a renúncia de Quadros em agosto e a tentativa
de vetomilitar à possedo vice-presidente,João Goulart. Esta
observação tem um evidente ponto de cantata com a hipótese
da ''escavação ideológica'' proposta por Hirschman comoum
entre os diversos fatores que antecederam a virada para o au-
toritarismona AméricaLatina. A tendência,por parte de
intelectuaise ativistas políticos, a dramatizar em excessoa
profundidade e a interligação entre certos problemas, e por
conseguinte a considera,los imanejáveis a não ser num quadro
de grandes reformas estruturais teria, segundo Hirschman,
ajudado a minar a confiança nas instituições representativas
então vigentes.n
A conjetura do parágrafo anterior não significa, é claro,
que os problemas sociais existissem apenas na imaginação dos
atores. Afirmamos apenas, acompanhando Hirschman, que
''a articulação dos problemas e a elaboração de propostas para
a sua solução podem aumentar em certas ocasiões com com-
pleta independência do que acontece realmente na economia e
na sociedade" (idem, 82).
(13) "Quanto maior e mais generalizada a sensação de incapacidade de resol-
ver os problemas, maior será a tendência de realizar a mudança do regime, bem como
a disposição por parte de grandes grupos de aceita-la e talvez louva-la. E quanto
maior o número de problemas reais ou alegados não resolvidos no momento do esta-
belecimentode um govemo autoritário, maior será a tentação e justificação para esse
governo se instalar no poder por um longo período de tempo, e maiores são as chances
desse govemo se legitimar, desde que alguns destes problemas possam ser resolvidos
ou melhorados"(op. cff. , p. 82). Dahl salienta que a crença por parte dos ativistas
políticos, "that poliarchy is effecüve in solving major problema", é um fator favorável
à persistência de um sistema desse tipo(op. clt. , pp. 202-203). O paralelo entre este
texto de Hirschman e a agora clássica reflexão feita por Celso Furtado em 1965 é
extremamente insüuüvo. O ponto de partida de Furtado era o conflito entre "dois
princípios de legitimação da autoridade''. De um lado, a ''subordinação ao marco
constitucional", que a seu ver significava, na pratica, render-se ao veto exercido pelas
oligarquias agrárias através do poder Legislativo. De outro, a ''obediência ao mandato
substantivo que vem diretamente da vontade popular", que inevitavelmente envolvia
os candidatos a postos executivos na pressão do jogo populista: ''conscünfes do es-
tado psicológico das massas, eles reivindicam uma rápida modernização do país me-
dlarzfe reformas de base; mod#icações eitmftiraü. Esse conflito de poder entre os
líderes populistas e a classe dirigente tradicional ocupa o centro da luta política e
toma impraticável a consecução de qualquer programa coerentepor parte daqueles
que ocaifoizalmenle dfrz'gemo país. A existência(desse) conflito fundamental. .. cria
condições favoráveis à arbitragem multar, conforme ocorreu recentemente no Brasil
(op. cif. , pp. 140 e 143-144; grifos meus).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 119
Ainda melhor, neste sentido, é a formulação de Elster
(1978), para quem a transição de uma matriz social e política
a outra depende sempre da viabilidade económica (recursos) e
ideológica(aceitabilidade) de uma matriz intermediária. Ora.
como veremos em seguida, têm sido pouco frutíferas as hipó-
teses que sugerem a existência de obstáculos económicos bem
configurados à continuidade da democracia representativa no
período aqui considerado. No nível ideológico, entretanto, o
argumento parece ponderâvel. Não cabe a menor dúvida de
que o surgimento de movimentos populares, principalmente
no meio rural, fora dos quadros tradicionais do controle clien-
telístico, foi sentido pelos setóres conservadores da sociedade
como uma ameaça sem precedentes. O patrocínio oficial, pelo
governo João Goulart, de propostas reformistas, neste e em
diversos outros campos, seguramente acelerou a ''escalação''
a que nos referimos anteriormente, em vez de constituir uma
matriz intermediária viável.
Vemos, então, que a percepção de um antagonismo entre
a configuração ''B'' e a democracia não é independente da
própria crise, e que em certa medida se baseia em interpreta-
ções posteriores ao golpe militar de 1964. Cumpre-nos frisar
que mesmo essas interpretações posteriores em geral não ab-
solutizam o simples acúmulo de tensões associado à industria-
lização e à urbanização. O carâter disruptivo e incontrolável
atribuído a essas tensões é sempre associado à redlzçâo do rit-
mo de crescimento económico. A discussão desloca-se, assim,
para os condicionantes espec#lcos dessa redução, vale dizer,
para supostos requisitos da continuidade da acumulação capi-
talista que não poderiam ser satisfeitos dentro do marco insti-
tucional então vigente. Entre essas teses, já amplamente dis-
cutidas, destacam-se o ''esgotamento'' da industrialização ba-
seada no chamado ciclo fácil da substituição de importações,
a necessidade de ''aprofundar'' esse padrão de crescimento
industrial, e a inevitabilidade da ''superexploração'' da classe
.trabalhadora no âmbito do capitalismo dependente.Estas hi-
pótesesde fato despertaramo excífemenfa que se referiu
Hirschman, mas não têm resistidoa avaliaçõesempíricas e
analíticasmaisrigorosas(Serra, 1979).
Descartadas, portanto, extrapolaçõespuramente lineares
sobre os efeitos políticos da configuração ''B'', e mesmo as
versõeseconomicistas mais sofisticadas, abrem-se outras alter-
120 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
nativas de interpretação da crise de 1961-1964e, por via de
consequência, um campo mais promissor para o delineamento
da questão democrática brasileira. Esta reinterpretação dâ
um peso considerável não só às crenças das elites e dos ativis-
tas políticos, e a fatores institucionais, como a crise partidária
e parlamentar, mas inclusive a processos propriamente con-
junturais, comoa radicalizaçãodas forças de direita assusta-
das com o reformismo do presidente João Goulart, a ambigüi-
dade deste quanto à observação das normas constitucionais no
tocante a sua própria sucessão, o clima de pressão interna-
cional estimulado pela radicalização da revolução cubana, en-
fim o próprio apoio americano aos principais porta-vozes da
campanha contra João Goulart.
No estágioatual das pesquisas,a interpretaçãoda crise
de 1961-1964e dos efeitos imediatos do golpe militar pode ser
aproximadamente sintetizada nos seguintespontos :
t) perda de eficácia e wentual inversão da função dos
moca/zümoi fradlcio/leis de acomodaçâk). O avanço dos pro-
cessosde industrialização, urbanização e mobilização certa-
mente produziu tais efeitos. As migrações internas, o cliente-
lismo rural, o próprio populismo urbano perdem sua capaci-
dade de amortecer tensões; com a redução do ritmo de cresci-
mento, chegam mesmo, como é o caso do populismo urbano,
a inverter sua função, transformando-se em mecanismo de
politização e radicalização;i4
Zà baba capacidade global de resposta e adaptação do
sistemapolítico, no período 1961-]964.Colocando-secomo
(14) A exposição "canónica" desta primeira proposição é provavelmente Mar-
fins(1968, cap. 3). Santos(1974, cap. 1) discute as lünitações de tais abordagens, que
trabalham com mudanças sociais de longo prazo, na explicação de situações especí-
ficas de crise política. Sobre o populismo urbano brasileiro, o trabalho pioneiro é o de
Weffort (1978). Ver também lanni(1968), Soares (196S, 1973) e Sampaio (1980). É
desnecessáriolembrar que o tema do clientelismo tem sido objeto de amplo rwxame
nas ciências sociais, destacando-se sua grande generalidade e, portanto, a inconve-
niência de conceituações que o vejam como correlato estrito do subdesenvolvimentoe
do "atraso" cultural. Não menos importante neste contexto é a teorização de Hirsch-
man(1975) acerca de variações no grau de tolerância frente a desigualdades de renda
durante o processo de desenvolvimento. Hirschman chama a atenção para o fato de
que o impacto inicial do desenvolvimento é quase sempre a criação de expectativas
otimistas e de sentimentosde confiança no futuro, aumentando assim o espaço de
manobra dos govemantes mesmo na presença de grandes desigualdades ob#eflvas.
Sugere, também, que esses efeitos inicialmente positivos tendem a ser mais acentua-
dos em países grandes e mais homogéneosdo ponto de vista étnico e cultural.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 121
critério de avaliação a continuidade e um crescente enraiza-
mento das instituições democrático-representativas, uma res-
posta adequada do sistema político seria forçosamente uma
mescla de concessão parcial na questão das reformas e de re-
composição de um ''centro'' no espectro ideológico. Numa
primeira interpretação (Furtado, 1965), isto nâo ocorreu so-
bretudo devido a diferenças de postura e composição entre os
poderes Legislativo e Executivo. Baseado na representação
proporcional e sobre-representando os estados menos urbani-
zados, o Legislativoteria uma composiçãopredominantemen-
te clientelista e conservadora, e uma postura tendente a vetar
reformas progressistas. Eleito pelo voto maioritário, o Execu-
tivo das grandes cidades e dos estados, e o próprio presidente
da República, seriam forçosamente mais sensíveis às necessi-
dades e demandas do eleitorado urbano. Numa interpretação
mais recentee melhordocumentada,Santos(1974) postula
que a virtual imobilidade do sistema político teria suas raízes
numa paralisia decisório izzfernaao poder Legislativo, resul-
tante de uma crise partidária semelhanteà do modelo de ''plu-
ralismo polarizado'' proposto por Sartori(1976). Estas inter-
pretações são reforçadas pela hipótese da ''escalação ideoló-
gica'', segundo a qual a resposta à nâo resolução dos pro-
blemas colocados na agenda consistia em articular novos pro-
blemas. Aguçavam-se dessa forma a radicalização e o senti-
mento difuso de ameaça, e aumentava-se a descrença em que
tais problemas pudessem ser resolüdos dentro do marco ins-
titucional vigente;
3Õ intewenção militar, sobrevivência tutelada das insti-
tuições representativas e exclusão dos ''setores populares'' . O
êxito do golpe militar, apoiado em ampla coalizão empresarial
e em significativossetoresda classe média, deslocadecisiva-
mente o eixo do sistema político na direção autoritária. Sem
chegar de imediato a uma ruptura total com as instituições
legislativas e com o sistema partidário pré-1964, o fato é que o
pretorianismo larvar dos anos anteriores converte-se numa
intervenção multar organizada, que imediatamente respalda
um programa unilateral de estabilização económica e uma rá-
pida reestruturação da máquina estatal. Como sugere Serra
(1979), o reacionarismo dessa coalizão vitoriosa, a histórica
debilidade organizacional dos sindicatos e setores populares,
ou mesmo"as característicasdo processopolítico nos anos

122 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
imediatamente anteriores a 1964'', mais que requisitos econó-
micos de carâter geral, é que explicam o arrocho salarial e o
modelo excludente de crescimento económico posto em prá-
tica nos anos seguintes."
Se as conexões entre economia e política apresentam-se
mutáveise complexasno âmbitodas configurações
A e B,
cautela ainda maior será necessária ao tratarmos da situação
brasileira recente. O que apresentamosa seguir são apenas
algumas especulações para sugerir que a abertura política ini-
ciada em 1974pelo governo Geisel, com todos os retrocessos e
vacilações destes 10 anos, obedece em parte a uma concepção
política e ideológica de longo prazo, não se reduzindo inteira-
mente nem a interessestáticos nem a consfraínfs económicos
imediatos.ió
A característica principal do processo brasileiro de aber-
tura tem sido seu extremo gradualismo, seu caráter por assim
dizer experimental, baseado que é numa agenda extrema-
mente difusa; e por conseguinte a permanente incerteza quan-
to a seus rumos e até mesmo quanto a sua continuidade. Indi-
cado oficialmentecomo candidato da ARENA à sucessãodo
presidente Média em junho de 1973 -- (o que na época equi-
valia praticamente a uma nomeação final) --, o general Er-
nesto Geisel deixou entrever nos meses seguintes que introdu-
ziria modificaçõesno quadro político, possivelmentealgumas
medidas liberalizantes, mas não propriamente um processo de
redemocratização. A dificuldade terminológica, nesse perío-
do, não é casual. Mais que a um objetivoterminal, ou a uma
seqüência de etapas de transição, o léxico então criado aludia
apenas a um processo, assaz indefinido, de ''distensão'', que
haveria de ser ''gradual e seguro'
A evocação destes primórdios ajuda-nos a melhor delimi-
tar algumas possíveis conexões entre as estratégias política e
económica do governo Geisel, em particular entre o gradua-
(15) Sobre os primeiros anos do regime militar, ver Skidmore, op. cíf. , Flynn,
op. cff. , e Cardoso(1972). Um relato do dia-a-dia em alto nível jornalístico pode ser
encontrado em Castelo Branco(1977, 1978 e 1979). Stepan(1973) contém excelentes
análises do "milagre económico" e do endurecimento do regime a liartir de 1968.
(16) A bibliografia brasileira sobre o processo de abertura já é volumosa. Ver,
entreoutros, Cardoso (197S), Bresser Pereira (1978), Góes (1978), Santos (1978a),
Krishke (1982), Trindade (1982), Figueiredo & Cheibub (1982), Cruz & Mastins
(1982),Lafer (1984).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 123
TABELA 2
TAXAS DE CRESCIMENTO DO PIB REAL E DE INFLAÇÃO DURANTE
OS GOVERNOS GEISEL(197+1978) E FIGUEIREDO {1979...)
/azul /pzsl/pzõl /9 l sz81/pzsl 7 /w/l/wpl /9m
Fonte: Conjuntura Económica \wàT\osnümerosÀ. Fundação Getúlio Vargas, Rio de
Janeiro.
lismo obsessivo do processo de abertura e a sustentação â ou-
france do crescimento económico.'' Nossa hipótese geral é
que estas duas ''distorções'' foram em parte causadas por um
mesmofator, que seria a extrema rigidez do quadro político e
os riscos de uma degeneração fascistizante inerentes ao sis-
tema de poder da era Média. E claro que o gradualismo se
coaduna perfeitamente com o ''despotismo esclarecido'' do
próprio general Geisel, enquanto traço psicológico ou ideoló-
gico. Parece-nos, entretanto, que essa cautela foi também de-
corrente da forte entropia que se havia formado no sistema e
das novas incertezas sociais criadas pela aceleração do cresci-
mento industrial nos anos anteriores, que levavam a uma ex-
trema dificuldade em dimensionar o apoio ao governo nessa
nova fase, e para realinhar seus suportes propriamente polí-
ticos, na hipótese de uma liberalização mais rápida.i8
(17) Para uma análise da política económica dos governos Geisel e Figueiredo
e da tentativa de sustentar elevadas taxas de crescimento apesar da crescente adver-
sidade do ambiente económico internacional, ver Lamounier e Moura(1984).
(18) A imagem do "buraco negro" foi utilizada em mais de uma ocasião pelo
próprio arquiteto da distensão, general Golbery do Couto e Sirva. Em seu discurso de
posse, o general Geisel afirmou, também, que o aperfeiçoamentodo regime ''não
depende tão-somente da vontade do poder Executivo federal, pois reclama, em larga
medida, colaboração mais sincera e efetiva dos outros poderes da Nação. . ."(Cruz e
Martins, op. cff. , p. 46). Na mesma linha de raciocínio, Laser(1984) refere-se à "nova
importância da voz"(no sentido de Hirschman), que aumentou a capacidade de
aprendizagem dos governantes, conscientizando-os de que ''uma redução da auto-
cracia era condição para que se mantivessem como atores políticos viáveis''. Souza e
Lamounier(1981) também sugeremque as motivaçõesiniciais da abertura associa-
vam-se à preocupação do governo Geisel com o superisolamento e o imobilismo a que
se havia chegado na era Media.
124 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
Havia, por outro lado, a necessidadeimperativade sus-
tentar o otimismo, no campo económico. A euforia com as
altas taxas de expansão do PNB, virtualmente deificadas no
período Média, para não mencionar a retórica referente a um
sfafus já bem próximo de grande potência para o Brasil, fo-
ram convenientemente
substituídaspor uma versão mais só-
bria. Mas foi, sem dúvida, uma reelaboração cautelosa. Pode-
se especular que uma inversão mais acentuada das expecta-
tivas produziria forte dissonância não só com a política econó-
mica, que na prática continuava otimista, mas também com o
objetivo de conter os aparelhos repressivos e de forçar o re-
torno das Forças Armadas a um papel mais propriamente
profissional.
Comparando, porém, o governoMédia(1969-1973) com
os governosGeisel (1974-1978)e Figueiredo (1979-1984), cons-
tatamos à primeira vista uma total inversão daquela hipótese
tão cara ao senso comum, a de que a democracia florescena
prosperidade, enquanto a estagnação favorece os golpes e o
retrocesso ditatorial. No Brasil, o chamado ''milagre econó-
mico'' de 1967-1973associou-seà radicalização autoritária do
período Média, ao passo que a ''abertura'' iniciada em 1974
pelo governo Geisel conviveu com dificuldades cada vez mais
acentuadas para sustentar o ritmo de crescimento e, desde
1981,jâ no governoFigueiredo, com índices de recessão, in-
flação e desemprego industrial sem precedentes no país. Acei-
tar, porém, a inversãocompletaseria incorrer num reducio-
nismo não menos tosco. E necessáriolembrar que o sistema
autoritário implantado em 1964, embora excludente no ter-
reno social e conservador em vários aspectos, foi certamente
dinâmico no tocante à promoção do crescimento e da moder-
nização. O chamado ''milagre económico'' acelerou a trans-
formação sócio-económica e a urbanização, e consequente-
mente o processo de mobilização social. Se a democracia
não floresceu dara#fe essas transformações, não há dúvida
de que elas produziram fortes efeitos democratizantesno
período szzbseqüe#fe, através das eleições, como veremos em
seguida.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 125
11. Da quase "mexicanização" de 1970
à diarquia de 1982
O início da abe#ura brasileira, no exato momento em
que se faziam sentir os efeitosdo primeiro ''choque do petró-
leo'' e, sobretudo, sua continuação até a primeira metade dos
anos 80, convivendo com um agravamento sem precedentes da
crise económica e com taxas de inflação superiores a 200 por
cento anuais são fatos de grande importância comparativa.
Mas são principalmente fatos surpreendentes, se tomarmos
como ponto de referência os diagnósticos elaborados ainda sob
o impacto do ''milagre económico" e da era Média. Com efei-
to, ao completar 10 anos, o regime de 1964jâ correspondia à
mais longa experiência de governo autoritário jamais vivida
pelo Brasil independente, caracterizada pela ocupação direta
e corporativa do poder pelos militares. A não menos ostensiva
aliança destescom o ramo "internacionalista'' da tecnocracia
económica civil e com interesses empresariais de grande porte,
nacionais e estrangeiros, tornava inequívoca a implantação de
um novo modelo de organização estatal e de crescimento eco-
nómico. A exclusão dos sindicatos, das lideranças populistas e
dos agrupamentos de esquerda não deixava dúvidas quanto à
ruptura com os padrões de competiçãopolítica prevalecentes
durante os anos cinqüenta, até a queda de João Goulart em
1964. Recorrendo com frequência a técnicas repressivas as
mais violentas, esse novo modelo parecia imune a questiona-
mentos baseados na questão dos direitos humanos, a pressões
civisde qualquer.tipo e, por certo, a inquiriçõespor parte de
representantes eleitos pela oposição.
Nenhuma análise que insistisse nas contradições desse
novo modelo político com eventuais fatores democratizantes
engendrados pela estrutura social ou pelas tradições culturais
brasileiras parecia convincente. Ao contrario, se alguma tra-
dição devesseser invocada, por certo haveria de ser a da colo-
nização ibérica, que nos havia legado uma estrutura política
de corte centralizador, parasita, patrimonial e cooptativo, an-
tes que representativo de grupos sociais independentes, ou de
uma tradição liberal e individualista.'P A utilização da estru-
(19) Faoro(1958) e Schwarbman(1982) situam-se entre as principais inter-
pretações da fomiação do Estado brasileiro segundo o modelo do patrimonialismo e
da cooptação.
126 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
fura corporativa erigida durante os anos 30 e 40 tornava irre-
sistível a tentação de representar esse novo modelo como um
retorno, só que modernizado e eficiente, ao velho Estado Novo
getulista.n Não sem razão, os diagnósticosdo início dos anos
70 sugeriam que a contestação, se e quando surgisse, assumi-
ria necessariamente
a forma de um ou uns poucosautores
igualmentemonolíticos, produzidos pela lógica que o capita-
lismoretardado, a dominaçãotecnoburocráticae a engrena-
gem militar punham em marcha. Seria, quem sabe, uma fac-
ção militar nacionalista, uma grave cisão empresarial, ou uma
deserçãodas camadas médias, quando a redução da taxa de
crescimentonão mais permitissea acomodação de tantos no-
vos interesses; talvez um aguerrido movimento formado a par-
tir da periferia miserável das grandes concentrações urbanas.
Seja qual for o entendimento que se tenha do processo de
abertura iniciado em 1973-1974,inclusive no que diz respeito
a sua profundidade e alcance, parece fora de dúvida que ele
contradiz essas hipóteses em vários aspectos fundamentais.
Prímefro, a abertura, ou antes, a ''distensão'', não foi deter-
minada, no início, por pressõesorganizadasda sociedadeci-
vil. Segtz/zdo,ela Hão teve origem numa facção militar rebelde,
populista ou nacionalista. Ao contrario, seu núcleo era cons-
tituído pela própria cúpula governamentale, em particular,
pelo próprio general Geisel, um ienfor o#7cer fortemente iden-
tificado com a organização e a hierarquia militares. Terceiro,
a agregação de pressões pela via eleitoral, a partir de 1974, foi
a maneira pela qual se formou uma oposição significativa ao
sistema dominante. Essa pressão conflitou, certamente, com o
prometodo chamado grupo Geisel, em virtude da contundên-
cia dos resultadoseleitoraisde 1974,mas ao mesmotempo
reforçou-o contra outros setores militares e civis contrários até
mesmo a uma liberalização gradual e cautelosa.
Para se compreender adequadamente o alcance destes
pontos, é convenienteinserir aqui uma rápida comparação
entre o caso brasileiro e outros exemplos conteilnporâneos de
transição para a democracia. Ao contrario da redemocratiza-
ção ocorrida na Argentina com Alfonsín e hâ cerca de 10 anos
(20) Ver sobre este ponto as importantes conUibuições de Skidmore, Schmit-
ter, Cardoso e Stepan ao volume .AufAoHfaría .Braça, editado por Stepan(1973).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 127
em Portugal e na Grécia, o processo brasileiro caracteriza-se
por seu caráter totalmente endógeno e pelo seu gradualismo.
Mesmo em comparação com a Espanha, cuja redemocratiza-
ção foi também um processo político endógeno, isto é, não
marcado por derrotas militares graves que afetassem a coesão
e a credibilidade das Forças Armadas, o caso brasileiro dife-
rencia-se, digamos assim, por sua longevidade e por seu carâ-
ter ainda inconcluso. Daí, justamente, é que decorre o papel
crucial nele desempenhadopelo calendário eleitoral. Crucial,
e ao mesmo tempo limitado, o que à primeira vista constitui
um paradoxo. Explica-se: no Brasil, começandoem 1974, o
processo eleitoral foi de fato um teste de forças e de legitimi-
dade, e não o símbolo e coroamento de um pacto de transição
já acertado noutras bases entre os atires relevantes. Foi quase
o ponto de partida do processo. Os resultados de 1974 sinali-
zaram o desejode mudança que se vinha formando no seio da
sociedade, impulsionaram a organização de oposições varia-
das em um partido político (o MDB) e reforçaram a disposi-
ção inicial do governo Geisel de implantar um prometode libe-
ralização controlada, que encontrava resistências nos setores
mais intransigentes do regime.
Este processo de aberturape/a vía e/e/fora/ é, como disse,
algo singular. Uma análise aprofundada dos fatores que o tor-
naram viável deveria começar pelo legado ideológico e insti-
tucionalbrasileiro, cujo caráter autoritário tem sido frequen-
tementeressaltado, mas que também abriga importantes com-
ponentes liberais, não sendo concebível, entre nós, a legitima-
ção em termos duradouros de um sistema autoritário, muito
menos de uma autocracia repressiva como a que se configurou
na era Média. :: Evitarei, entretanto, um retorno a esta ques-
tão mais ampla -- o chamado fmperafívo e/effora/-- para con-
centrar-me em dois pontos que incidem de maneira mais ime-
diata na mecânica das mudanças ocorridas entre 1974 e 1984.
Estes dois pontos podem ser expressos nos seguintes termos:
1) a complexidade da estrutura social, o grau de urba-
nização do país e a importância de sua história político-eleito-
ral tornam perfeitamente viável a pressão democratizante pela
(21) Sobre as opções institucionais do autoritarismo brasileiro e, em particu-
lar, sobre o chamado "imperãüvo eleitoral", ver Linz(1973), Lamounier(1982 e
1984) e Alencastro (1981).
128 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 129

via eleitoral, uma vez asseguradas certas condições mínimas

de liberdade para a disputa;
2) o patrocínio da distensãopelo próprio núcleo do sis-
tema dominante permitiu-lhe monopolizar praticamente a í?zí-
claffva das mudanças político-institucionais a serem implan-
tadas. Desta forma, a estratificação do poder pôde ser proüe-
tada no tempo (inclusive, é claro, através de pequenos golpes
brancos e de expedientes de duvidosa moralidade), logrando a.
<

assim o governo o seu objetivo de atenuar o impacto de resul- 0

Q q o. n co N
tados eleitorais crescentemente adversos.
g gá8'8'ç
Vejamos inicialmente o que chamei de viabilidade da e
pressão democratizante pela via eleitoral. O ponto é talvez um 0
pouco óbvio, mas não custa ilustra-lo quantitativamente,a a <

começar pela simples magnitude do eleitorado, que atingiu 58 g

milhõesem 1982. As Tabelas 3 e 4 apresentam os resultados g
para o total do país, desde 1966. O ponto que ora nos in-
teressa evidentemente não é o significado dessa distribuição
<

g
como medida de poder efetivo, mas sim sugerir a ordem de
grandeza das chances eleitorais da oposição em diversos mo- 0 C»CDl\ q-
mentos do regime p6s-1964, inclusive no momento de maior
repressão, que foi a eleição de 1970.
Verifica-se, com efeito, que a votação da ARENA (PDS)
seguiu uma tendência declinante, desde a formação dos dois
partidos, baixando de aproximadamente50%oem 1966 para
36%o em 1982. Com exceção de 1970, quando foi drastica-
in -+ a) Q l\
iO

mente afetada pelos votos em branco e nulos, a parcela corres-

pondente ao MDB (ao total da oposição, em 1982) seguiu o
3
cn
caminho inverso, passando de um mínimo de 28% (para a 0
<

Câmara Federal) para um máximo de 50% em 1982. Estes

dados mostram, portanto, que as distorções e singularidades
<

que possam ser apontadas na estrutura social brasileira -- a 0

CD
proverbial debilidade da sociedadecivil, um ponto a ser discu- 0
0
r- <0 1r)

tido adiante -- não a impedem de produzir uma distribuição

:êuo'; '"
<

h-
de polos francamente competitiva, mesmo em condições extre- D
cn
mamente adversas para a oposição.zz ê
O encolhimento imposto à arena eleitoral e partidária na
fase de maior radicalismo autoritário acha-se estampado em l\ rhF\ Q in

(22) Sobre o comportamento eleitoral brasileiro de 1974 a 1982, ver Lamou-

nier & Cardoso(1975), Reis(1978), Lamounier(1980), lamounier & Muszinski 8'd
(1983), Peneira(1984) e Sadek(1984).

130 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
TABELA 4
"."'surgESRZ:lmn
ixs
.anos
1966 44,7 71.2
Fonte dos dados originais: Safe/for 7}fbuna/Hb/fora/.
nossas Tabelas 3 e 4. O momento de mexida/zízaçâo, se houve
algum, teria sido no intervalo de 1970a 1972, quando teori-
camente o governo poderia capitalizar seus sucessos económi-
cos. a vitóriada ARENA, e a debilidadedo MDB como par-
tido de oposição, derrotado que foi até pelos votos em branco
e nulos. Digo teoricamente,tendo em vista a circunstância
frequentemente notada de que dificilmente os militares brasi-
leiros aceitariam, naquelas condições, transferir poder real
para um partido político --qualquer que fosse ele. Refiro-me
também às percepções então vigentessobre as chances futuras
e a atuação dos dois partidos, as quais sugerem que os pró-
prios militares não se iludiram tanto quanto se pensa sobre
estas questões.Mesmo nas eleiçõesde 1966, no primeiro em-
bate dos recém-criados e urra-intimidados ARENA e MDB,
ficou patente a debilidade do partido governista nos grandes
cerzfroszzrbanos.No município do Rio de Janeiro, então Es-
tado da Guanabara, o MDB elegeu 15 deputados federais,
contra 6 da ARENA; no Estado do Rio de Janeiro, ll contra
10: no Estado de São Paulo, 27 contra 32.
Entre a impossibilidadede uma ''mexicanização''dura-
doura e o simples imobilismo ditatorial, o governo Geisel op-
tou. entretanto, por uma terceira via, que seria a da distensão
''gradual e segum''. Esta, como sugerimos acima, tinha como
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 131
condição básica a possibilidade de projetar no tempo a então
vigente estratificação do poder político-institucional. O ponto
de partida é simplesmente que a abertura via eleições foi pos-
sível em grande parte porque as forças político-partidárias
''reativadas'' em 1974estavam na realidade disputando o con-
trole de um poder Legislativo enormemente esvaziado em suas
funções e prerrogativas. Não se pode esquecer que a definição
formal do âmbito de atuação do Congresso Nacional é ainda
hoje sensivelmentemais restrita do que a vigente até 1964, a
começar pela inexistência, hoje, de iniciativa legislativa em
matéria económico-financeira. No tocante à eleição de 1974,
primeiro grande marco da distensão, nós sequer precisamos ir
tão longe. Basta lembrar que a vitória da oposição nesse pleito
(ver Tabela 3) se verificou somente na votaçãopara o .Senado,
e que a renovaçãodeste, naqueleano, atingiria somenteum
terço das cadeiras.
E indispensávelfrisar o ponto do parágrafo anterior para
que se compreenda, de um lado, que o mecanismo /arma/ da
representação,ou seja, o processoeleitoral,foi o campo de
ação ''distendido'' pelo sistema autoritário, permitindo o cres-
cimento da oposição; de outro que essa oposição, no início,
estava na realidade disputando espaços, construindo sua pró-
pria organização, visto que se batia, na melhor das hipóteses,
pelo controlede um Legislativo enfraquecido e sobre o qual
pairavam inclusive os instrumentos /egaü da tutela militar.
Em outras palavras, o governo conservava nesses pri-
meiros anos, através de sua maioria parlamentar e dos poderes
ilimitados que Ihe facultava o Ato Institucional n9 5, um con-
trole praticamente absoluto sobre a agenda das disputas no
campo político-institucional.A importância dos movimentos
da chamada sociedade civil -- movimentos estudantis, religio-
sos, de associaçõesprofissionais, finalmente sindicais -- não
foi tanto o de forçar o i/zícfo da abertura, mas sim o de ir aoi
poucos criando constrangimentosnão formais, porém efica-
zes, ao exercício ditatorial do poder. Do ângulo que ora nos
interessa, entretanto, as considerações relevantes são:
1) que os níveis de poder mais decisivospara a questão
democrática não se achavam realmente em jogo, de 1974 até
1982. Esses níveis são o acesso ao poder Executivo federal,
atravésda disputada Presidênciada República; a orientação
da política económica, obviamente dependente do poder Exe
132 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 133

cutivo; as expressões/egais da tutela militar sobre o processo

político, corporificadas no Ato Ho 5 até o final de 1978, e que
sobreviveram indiretamente, por exemplo através do disposi- Mudança Condição política favorável
à ação do governo
tivo constitucional referente ao ''estado'' e a t'medidas'' de
emergencia; 1978 a} RevogaçãodoAto Institucional
n' 5 e demais ates institucio-
2) que esse conjunto de instrumentos discricionários foi nais e complementares, atra-
efetivamenteutilizado para assegurar uma contínua iniciativa vés da Emenda Constitucional
do Executivo federal no tocante a mudanças político-institu- n' 1 1, de 13 de outubro.
cionais. A demonstração deste ponto requer apenas um ligeiro
retrospectodas principais medidas tomadas nessecampo pe- b) Eleição de 1978. Com 35% dos Toda a legislação anterior, espe-
votos, contra 46% do MDB. a cialmente o chamado "Pacote de
los governos Geisel e Figueiredo (ver Tabela 5) . ARENA fica com 63% das ca- Abril"
deiras no Senado, devido aos
TABELA 5 óión/cos e às diferenças popu-
lacionais entre os estados.
MUDANÇAS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS PROMOVIDAS PELOS
GOVERNOS GEISEL(197+1978) E FIGUEIREDO (1979... )
1979 Extinção dos dois partidos {ARE- Maioria absoluta área/sta em am
NA e MDB) e fixaçãode condi- bas as casas do Congresso.
4n ções legaispara criação dos no-
vos, com requisitos severos de or-
ganização no nível local e proibi-
1974
ção de coligaçõesentre os parti-
dos queviessema ser criados.

19@ Adiamento da eleição municipal Recorde-seque o quórum para

lprorrogação dos respectivos emendas constitucionais fora re-

 
mandatosaté 1982). através da duzido em 1977.
Emenda Constitucional n' 14. de 9
de setembro.
Restabelecimento da eleição d7le-
fa para os governos estaduaisa
partir de 1982 através da Emenda
Constitucional no 15. de 19 de no-
vembro. Extinçãoda figura do se-
nador ó/ón/co (indireto) a partir
de 1986.

19 2 a) Lei n' 7.015, de 16dejulho, im- Maioria governista (PDS) em am

põe a vinculação do voto entre bas as casas do Congresso.
fados os níveis para as eleições
de novembro, ou seja, a nuli-
dade de votos dados a candida-
tos de partidos diferentes, por-
tanto tornando inviáveis as co-
ligaçõesentre partidos da Opo-
sição.
 COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 135
134 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA

suficientes para deter a primeira grande ofensiva oposionista

Condição favorável pelo imediato retorno às eleições presidenciais diretas, em
à ação do governo abril de 1984, não resta dúvida de que o processo de abertura
b) Emenda Constitucional n' 22.
atingiu um novo patamar, na medida em que se desfez o
de 29 de junho, restabelece o monopólio governamental da iniciativa político-institucional.
quórum de 2/3 para aprovação Configura-se, assim, o esgotamentodo processo de aber-
de emendas constitucionais tura mostermos de Jazzpr(Velo í/z/cia/. Em retrospecto, parece
Esta o tinha o evi.
dente propósito de consewar o
aceitável a interpretação de que as mudanças ocorridas de
poder de veto do partido gover- 1974 a 1984tiveram como base uma negociação implícita, no
nisto agora denominado sentido de que os dois lados, governo e oposição, encontraram
PDS contra uma eventual ma
poria OD na Câmara espaço para redefinir sucessivamente seus respectivos papéis,
a partir das eleições de 1982. visualizando ganhos que adviriam da continuidade do próprio
(No Senado, a maioria gover- processo. A oposição, na medida em que se estruturava como
nista seria de qualquer forma
assegurada pelos ólõn/cos, cu força político-eleitoralpoderosa; na medida, também, que ob-
jo mandato vai até 1986. e pela teve do governo,em 1979, a lei de anistia, o fim dos poderes
renovaçãode apenas 1/3 em excepcionais consubstanciadas no Ato Institucional Do 5, e o
1982.) Além disso. a emenda
altera a composição do Colé- próprio retorno ao pluralismo partidário.
gio Eleitoral,visando garantir a O governo, por seu turno, beneficiava-se de diversas ma-
maioria governista na eleição neiras. Via reduzirem-se os custos da coerção. Livrava-se gra-
presidencial de 1985
dualmente do fantasma dos aparelhos automatizados no bojo
c) Eleição de 1982: somados, os 4 Possibilidade de atrair alguns vo- do Estado, responsáveis, como se sabe, por graves excessos
partidos de oposição (PMDB tos da oposição(principalmente repressivos que haviam comprometido seriamente a imagem
PT. PDT e PTB) obtêm 244 ca- do PTB, que elegeu 13 deputa-
deiras na Câmara. contra 235 dos); maioria de 2/3 no Senado internacionaldo país. Capitalizava, portanto, os benefícios
do PDS. O PMDB elege 9 go- políticos de uma atmosfera de norma/ízação progressiva, como
vernadores {inclusive os de São que trocando as perdas de legitimidade decorrentes de avalia-
Paulo e Minas Gerais); o PDT ções sobre seu passado por ganhos baseados na crescente cre-
elege Leonel Brizola no Rio de
Janeiro. Contudo. o PDS man dibilidade de suas intenções quanto ao futuro. Se houve, e é
tém-se majoritário no Colégio certo que houve, erosão da legitimidade autoritária, é pois
Eleitoral, com umã vantagem também certo que esse processo de mudança revitalizou a au-
de 38 votos sobre os partidos
de oposição em conjunto toridade governamental (no governo Geisel e nos primeiros
três anos do governo Figueiredo), na medida em que a investiu
no papel de agente desse prometode normalização.
Neste sentido especificamente institucional, as eleições de O aludido esgotamento do prometoinicial, ou seja, do gra-
1982é que representam um marco verdadeiramente significa- dualismo controlado e sujeito a freqüentes manipulações ca-
tivo. A eleição de 10 governadores oposicionistas e a perda suísticas, não necessariamente significa uma transição clara e
pelo governo da maioria absoluta na Câmara dos Deputados completapara a democracia. Significa, porém, um primeiro
deu ao sistemapolítico um caráter (como sugereJuan Linz) passo na direção da alternância no governo, ou de algum tipo
aproximadamente dfárqufco, e elevou substancialmente o ní- de negociaçãoexp/ícífa que revitalize o prometopolítico em seu
vel do confrontono que diz respeitoà própria sucessãopresi- conjunto, sob pena de se ver forçado o regime vigente a rom-
dencial.Emboraa representação
parlamentardo PDS e os per uma vez mais com sua própria legalidade, configurando-
meios coercitivos ainda à disposição do Executivo tenham sido se desta forma um novo período ditatorial.
136 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
m. Notas amais sobre o problema da participação,
ou a políarquiaperversa
Para Robert Dah], a democraciaé poliárquica.Para Juan
Linz (1983), a situação que emerge das eleições brasUeiras de
1982é pelo menos dlárqufca, pois contrapõe o sistema militar-
burocrâtico ainda dominante a governadores eleitos pelo voto
direto e a uma maioria oposicionistana Câmara baixa. Há,
portanto, dois princípios contrastantes, duas pretensões de le-
gitimidade e, até certo ponto, duas estruturas de poder.
Num panorama mais amplo, que ligasse estes aconteci-
mentos imediatos aos dados mais profundos da formação his-
tórica brasileira, poder-se-ia talvez falar de uma po/íarqula
pen'erga, isto é, uma sociedade que não se deixa enquadrar
numa dominação autoritária monolítica, mas que tampouco
possui a tradição de organização política pluralista e indepen-
dentedo Estado típica das verdadeiras poliarquias liberais.a
Realmente, o tema dos efeitosperversos, de instituições
que produzem comportamentos distintos ou contrários aos vi-
sados,é uma constantena historiografiabrasileira. Durante
toda a Primeira República, o /eff mof/v dos historiadorese
publicistas era o descompasso entre o Brasil ''legal'' e o Brasil
''real''. Ainda em 1949,como vimos, Nunes Leal descreviao
coronelismocomo produto da imposição de formas desenho/-
(23) Ver Schmitter (1973), Schwartzman (1982) e Góes (1984). Este último
sintetiza com propriedade esta linha de análise: "No caso brasileiro, o escasso desen-
volvimento das classes sociais fez pender a balança do poder para a articulação buro-
crático-militar que domina o Estado. Os outros grupos sociais são heterogéneos e se
caracterizam por baixa capacidade de intervenção política. Disso resulta intensa de-
bilidade institucional dos partidos políticos e do Parlamento, que seriam os insüu-
mentos adequados para organizar e exprimir os interesses daqueles setores que, ao
longo da história do país, tiveram papel secundário nas tarefas de construção do
Estado nacional"(pp. 1-2). A leitura do texto de Bergounioux e Grumberg, neste
volume, sugere, entretanto, que a França não representa adequadamente o tipo
oposto: "A constituição de um Estado nitidamente diferenciado da sociedade come-
çou na Idade Média. O antigo regime monárquico(-.) encontrou na centralização
administrativa o meio apropriado para governar um território extenso e heterogéneo.
Mas ele teve que batalhar contra a aristocracia e os parlamentos, manter à margem os
corpos intermediários, reduzir os particularismos e tender a concentrar as decisões.
Como mostrou vigorosamenteTocqueville, a revolução continuou, sem o saber, a
obra da Monarquia, e o Império a concluiu... Estas visões da força do Estado frente à
fraqueza da sociedade permaneceram justamente célebres e inspiraram, em menor.ou
maior grau, todas as reflexões sobre a Fiança'
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 137
vidas do regime representativo a uma base social e económica
flzadeqz/ada -- os grifos são meus, mas as expressões são dele.
Por estese por outros caminhos, o tema de participação parece
inseparável, no Brasil, dessa ênfase no esvaziamento pre-emp-
ffvo (valha a expressão) dos movimentos sociais pelo Estado;
nos enormes recursos que permitem a este uma prática sem li-
mitesda coerçãoe da cooptação;ou seja, no amorfismoe na
debilidade da Sociedade diante do Estado .
Supor que esse padrão básico se haja alterado em decor-
rência da aberfara dos últimos 10 anos seria sem dúvida teme-
rário. Há, entretanto, uma mudança significativano entendi-
mento destas questões. Há algumas décadas, a tese do ''amor-
fismo'' social fazia-se sempre acompanhar de uma represen-
tação do Estado como uma força coesa, ativa e criadora. Um
pesquisador cuidadoso não teria dificuldade em encontrar re-
presentaçõesfrancamente antropomórficas, nas quais o Es-
tado aparece como nume tutelar, generoso e altruísta. A con-
centraçãoburocrática, legal e militar do poder a partir de
1964,justamente porque atingiu níveisnunca vistos no país e
nem assim o impediu de mergulhar numa crise económica e
social de vastas proporções, está agora chamando a atenção
dos analistas para as fissuras e para os sinais de descontrole
que Ihe são inerentes. O próprio coordenador político do go-
vernoGeisel, generalGolberydo Coutoe Salva,fez amplo
uso da metáfora do bzzraconegro, presumivelmentepara re-
ferir-se a um poder infinitamente concentrado, e por isso tor-
nado inútil. Santos (1978a, 123) não resistiu ao termo óa/caní-
zação quando se defrontou com o crescenteencastelamento de
interessesburocráticos no setorprodutivo estatal. Já o ex-mi-
nistro Meio Franco (1984), numa fórmula mais caseira, disse
recentementeque no Brasil atual existepoder, mas não hâ go-
verno.
Estas imagens sugerem, no mínimo, que o poder central,
o sistema decisório, enfim o Estado, não pode moldar subs-
tancialmente o novo süfema parrícÜ)affvo que se vai consti-
tuindo no bojo da redemocratização. Ele pode, seH dúvida,
resisflr a pressõesparticipatórias muito acentuadas, mas não
possui recursosmateriais nem legitimidadeideológicapara
impor-lhesuma canalização ou delineaçãoespecífica. Nem o
Estado, nem os partidos. Será possível, então, adiantar al-
guma coisa acerca desse novo sistema participativo, ou dessas
138 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
novas/termas de participação? Colocarei, para concluir, ape-
nas algumas hipóteses:
1) participação nospartidos e no processo eleitoral: hou-
ve um progressivo alargamento da participação eleitoral e, se:
bretudo, do pressuposto de autonomia individual no compor-
tamento dos eleitores. Em outras palavras, o processo eleitoral
em seu conjunto passou a operar com níveis de /rzce#eza sufi-
cientes para torna-lo legítimo, não obstante as relações de
clientela ainda dominantes no interior dos estados mais atra-
sados. Esta afirmação é valida tanto para o período pré-64
quanto para os últimos 10 anos, desde que se entenda que
aqui não esta em jogo a equidade das leis eleitorais e sim o
montante agregado de incerteza que resulta de comportamen-
tos individuais (menos ou mais) autónomos.
2) l:!áeífosda mudalzça czz//zzra/
: a imposição do autorita-
rismo como forma de dominação política não impediu o que
Mannheim chamaria de ''democratização fundamental'', isto
é, a diluição de valores vinculados a marcas de slafzzs. Ao con-
trario, estesprocessosde mudança, que se situam na esfera
propriamente cultural, foram acelerados pelo padrão de cres-
cimento económicoimposto a partir de 1964, baseado numa
difusão muito mais ampla dos bens de consumo duráveis, no
aumento da escala de produção através da concentração oli-
gopólica, na expansãoe integraçãoem nível nacional dos
meios de comunicação de massa, da industrialização rápida.
E assim por diante;
3) a /armação de 'kzzelos '' parfícÜ)arórfos: a democrati-
zação va/orafíva a que nos referimos na nota anterior parece
refletir-se na formação de gtzefos participatórios: comunida-
des parciais inspiradas no assemb/Cismo,ou sela, numa con-
cepção ativista mas freqüentemente ingênua do processo po-
lítico. É o que se observa em algumas associações profissio-
nais, em alguns sindicatos, na vida universitária e em certas
manifestações ligadas a lideranças religiosas ;
4) apareclmenfo de Novos rabosde asioclações: referimo-
nos aqui sobretudo às Comunidades Eclesiais de Base e às as-
sociações de bairro. As pesquisas disponíveis não resultaram
ainda num bom balanço de seu significado, mas hâ indicações
claras de que o potencial político dessas associações tem sido
superestimadoe de que pelo menos as associaçõesde bairro
não são imunes à cooptação clientelística;
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 139
5) anãodirefa: o quebra-quebra que se verificou em São
Paulo em abril de 1983 foi o mais espetacular, mas de forma
alguma o único exemplo desse tipo de movimento. Ocorrên-
cias mais localizadas têm sido frequentesna periferia das
grandes cidades, e aumentarão, com certeza, caso se mante-
nham por muito tempo a crise da autoridade pública e os dados
básicos do atual quadro económico. A indagação principal, do
ponto de vista político-institucional e do processo de redemo-
cratízação, é que impacto terão tais movimentos sobre os par-
tidos de oposição e como afetarão o desempenho dos governa-
dores eleitos por voto direto em 1982;
6) .A/ovlmenfo s/lúdica/: as variáveis macroeconómicas e
macropolíticas apresentaram combinações cruéis para a classe
trabalhadora nos últimos 20 anos. De 1964a 1967, o autori-
tarismo é exercido diretamente para desmantelar o poder polí-
tico dos sindicatos, no contextode uma política de estabiliza-
ção (Souza e Lamounier, 1981). A retomada do crescimento e
o período do ''milagre económico'' ocorreram, portanto, num
momento em que o peso político dos sindicatos é praticamente
inexistente. A partir de 1974, com a vitória eleitoral da opo-
sição e o retorno do debate público, e de 1978, com o reapa-
recimento das greves, esse peso político poderia, em tese, tor-
nar-se significativo. Mas este, precisamente, é o período em
que se inicia a reversão das expectativasde crescimento, co-
meçando com o primeiro choque do petróleo, até chegar à
situação anual, que é de franca recessão, com altos índices in-
flaciónários e desemprego crescente. Não obstante, o apareci-
mento do chamado ''novo sindicalismo'' na região do ABC
paulista e nas indústrias de ponta, de um sindicalismo w&ífe-
co/Zarfreqüentemente
aguerrido(Martins Rodrigues,1979),e
sobretudo de um sindicalismo rural em franco desenvolvi-
mento são um contrapeso importante à fragilidade que ainda
é, sem dúvida, a característica marcante do sindicalismobra-
sileiro em seu conjunto. Organizado em moldes corporativos e
pressionado de fora para dentro por uma elasticíssima oferta
de mão-de-obra, não parece seguro que.o movimento sindical
venha a demonstrar força e coesão suficientes para reduzir sua
dependênciaem relação à tutela ministerial. Além disso, a
abertura política aparentemente trouxe-lhe novos complica-
dores, através da divisão político-partidária das forças de opo-
sição(Taparesde Almeida,1982);
140 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
7) descenfra/ilação e .pa#/cípação: a idéia de que des-
centralizar é um meio de aumentar a participação e a eficiên-
cia tem fortes adeptos no Brasil. Raramente, porém, essaidéia
ultrapassou o campo da retórica e das boas intenções. Na con-
juntura recente, o evidente empenho do governo central em
manter sua parcela dos recursos e o comando unificado da
política económica trabalha no sentido de evitar qualquer re-
forma tributária de cunho descentralizante. Asfixiados finan-
ceiramente pela recessão, os governosestaduais -- inclusive, é
claro, os de oposição -- têm de preocupar-se em primeiro lu-
gar com a defesa de suas respectivasreceitas, deixando em
segundo plano a discussão dos mecanismos regressivos em que
elas se baseiam e de possíveis experimentas participativos.
Embora a questão da participação Soja habitualmente re-
conhecida como crucial para o entendimento do desenvolvi-
mento democrático, é raro encontrar na literatura um esforço
de trata-la como um sistema que se molda na interação com o
sistema decisório. A hipótese geral que gostaria de deixar aqui
alinhavada éjustamente esta: que os sistemas decisório e par-
ticipativo moldam-se (e se deformam) mutuamente. A análise
da abertura brasileira devera levar em conta, neste sentido,
não s6 a debilidade historicamente sedimentada da sociedade
civil frente ao Estado, mas também estes dois traços especí-
ficos do processode abertura: de um lado, o fato de haver-se
iniciado pelo caminho eleitoral e sem colocar em xeque os ní-
veis decisórios mais fundamentais; de outro, o evidente declí-
nio da capacidade organizacional e ideológica do sistema au-
toritário para moldar ou canalizar estas novas formas de par-
ticipação.
Argentina:
A participação popular
e seus avatares (1880-1943)
Ricardo Gonzâlez, Leandro H. Gutiérrez.
luar Cartas Korol, Leis Alberto Romeno
e Hitda Sabato+
I'Na Argentina, o sistema democrático sofreu diversos
avatares: alguns avanços e muitos retrocessos. É um fato cor-
riqueiro que sua análise seja feita a partir do ponto de vista
dos grupos dominantes, dos donos do poder, da instituição
militar, e que os setores populares sejam considerados apenas
como força propulsora ou como aquelesque conferem o con-
senso de que necessita todo regime estável. É necessário, en-
tretanto, colocar o problema a partir de uma perspectiva com-
plementar a esta: a dos próprios setorespopulares -- decidi-
damenteos mais interessadosem uma democracia autêntica
-- em sua capacidade para gerar e alimentar processos demo-
cráticos.
Para os setorespopulares, a democraciaimplica um com-
ponenteessencial: a participação igualitária, que hoje só é
possível nas organizações celulares que funcionam no interior
da sociedade civil. l.Jm regime democrático integral supõe,
além desta, muitas outras condições, e principalmente um sis-
(+) Hilda Sabato, Juan Cardos Korol, Leandro H. Gutiérrez, Luas
Alberto Romero e Ricardo González são pesquisadores do CISEA(Buenos
Abres)
142 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
tema de partidos em que os interesses setoriais se integram e
se transformam em proletos políticos. Mas estesdevem apoiar-
se, necessariamente,
nesta rede de organizações
primárias
onde se gera a democracia.
São os duros avatares da democracia na Argentina que
nos levam a refletir acerca destas células iniciais, estes ''ni-
nhos'' nos quais se realiza a experiênciaprimordial da parti-
cipação igualitária, e onde se refugia e se mantém latente
quando o sistema político geral deixa de oferecer -- como
ocorre com muita freqüência -- a mediação para que a expe-
riência primária se prometena vida política. Os comentários
que se seguem, referentes aos setores populares de Buenos Ai-
res entre 1880 e 1943, visam lançar alguma luz sobre questões
que são muito atuais.
O período formativo, 1880-1912
Por volta de 1880concluiu-se o processo de constituição
do Estado nacional. No calor da crescenteprosperidade eco-
nómica, os diferentessetoresda e/ffe tradicional encerram as
sete longas décadas de luta e se integram em torno de uma
fórmula política que se exprime no amplo Partido Autonomis-
ta Nacional. Simultaneamente conclui-se a organização jurí-
dica do Estado, na qual se concedemextensasfaculdadesa
um poder central forte, capaz de garantir a ordem e a uni-
dade. O sistema político que administrou o Estado, e que di-
rigiu a grande transformação da sociedade manteve-se, por
longo tempo, restrito à e//fe tradicionale particularmentea
uma oligarquia política que se constituiu em seu seio.
Paralelamente, a sociedade se renovava totalmente, no
ritmo do crescimento agropecuária e da urbanização. Nas
grandes cidades -- particularmente em Buenos Aires e Rosá-
rio -- os setorespopulares se constituíram através da integra-
ção dos velhos grupos crio/Zos, os emigrados nas décadas ante-
riores, e os novos contingentes europeus. Esta foi uma etapa
de formação em todos os níveis: das atividades produtivas, das
redes sociais -- que se articularam primeiro nas periferias
pobres e logo nos bairros -- e das diferentes tradições cultu-
rais
a destas primeiras organizações celulares é seu carâter espon-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 143
Sobre essa sociedade ainda em estado embrionário pro-
curou intervir um Estado que, se impedia sua participação
política, tinha necessidade de ordena-la, disciplina-la e pro-
duzir nela um consensomínimo para sua ação. A ação do
Estado sobre a sociedade civil foi intensa e se projetou em vá-
rios níveis: na disciplina do trabalho, na ordem policial, no
controle sanitário. A educação pública -- instrumento formi-
dável -- foi decisiva para a integração dos imigrantes e, tam-
bém, para a difusão dos princípios básicos da ordem. A legis-
lação sobre o serviço militar obrigatório, concebida no mesmo
espírito, completou o processo, em uma etapa em que a ex-
plosão dos primeiros conflitos graves obrigou o Estado a refor-
çar sua função repressiva.
Mas simultaneamente, no seio desta sociedade em forma-
ção, na qual a diferenciação não avançara além dos primeiros
graus, foi-seconstituindo uma infinidade de organizaçõesce-
lulares, através das quais aquele conglomerado .embrionário
foi adquirindo formas definidas. Primeiramente, as diversas
instituições que reuniam as coletividades nacionais, cuja dupla
organização -- pelo lugar de origem e pela zona de residência
nas cidades -- é característicadesta etapa. Em seguida, as
sociedades corporativas e de socorro mútuo, freqüentemente
ligados com as primeiras. E, em outro plano, as diversas asso-
ciações com fins culturais ou recreativos: os clubes, as biblio-
tecas populares, os grupos teatrais ou filodramáticos, as es-
colas livres. . .
Qual foi a função deste vasto conjunto de instituições no
processo de conformação dos setores populares e, sobretudo,
no processo de aquisição de sua identidade? Uma de suas ca-
racterísticas foi a amplitude dos fins efetivos -- para além dos
declarados --, a pluralidade das funções assumidas, seu en-
trecruzamento e superposição, e sua relação conflituosa, ca-
racterísticas das sociedades de socorro mútuo e das sociedades
de resistência. Havia, sem dúvida, um espaço a ocupar, amplo
e elástico, em grande parte coincidentecom aquele sobre o
qual o Estado avançava: na educação, por exemplo, funcio-
nou durante muito tempo um sistema informal -- bibliotecas
populares, centros culturais, centros políticos -- cuja real
magnitude é pouco conhecida, mas que representou uma al-
ternativa diante do ensino estatal. Mas o traço mais saliente
144 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
tâneo, que tornou possíveluma participação efetiva e iguali-
tária, uma experiência concreta de discussão e gestão, de di-
vergênciae acordo, em suma, de democraciaembrionária.
Entre elas, nasceram algumas peculiares, destinadas a
transcendê-la: as corporações de ofícios, matriz dos sindica-
tos. Sabe-se que estes tiveram um auge precoce, se se consi-
dera o quanto era incipiente o desenvolvimentodas classes
trabalhadoras, assim como sua fragmentação e o peso enorme
exercido pelos que realizavam tarefas ocasionais, ou as ''por
conta própria''. Para o crescimento acelerado destas organi-
zações reivindicativas influíram tanto os problemas concretos
-- condição de trabalho, jornada de trabalho, salários, insta-
bilidade -- como a contribuição dos militantes estrangeiros
que representava um precoce desenvolvimento ideológico. O
que mais nos interessa nesse caso é o seu próprio funciona-
mento interno: tamanho reduzido e associação voluntária --
na verdade seu núcleo era constituído pelos ativistas -- impli-
cavam um perfeito funcionamento democrático, semelhante
ao que ocorria nas demais organizaçõescelulares. Porém,
diferentementedestas, estes sindicatos alcançaram rapida-
mente uma forte capacidade de mobilização, que se manifes-
tou na série de greves -- de caráter nitidamente contestatário
-- ao longo da primeira década deste século. Mais do que
uma adesão do conjunto dos trabalhadores à ideologia anar-
quista -- que era a dominante entre os dirigentes -- observa-
se aqui, da parte destesúltimos, uma capacidade, tanto para
captar as reivindicaçõesque então tinham os trabalhadores,
quanto para formular as palavras de ordem que possibilita-
vam sua mobilização. Deste modo, algumas daquelas organi-
zações celulares da sociedade -- e particularmente as dos tra-
balhadores -- começavam a evoluir para organizações mais
complexas, com funções mais específicas.
Algo similar ocorreu na esfera propriamente política.
Nela, a restrição impostapelo Estado imperava plenamente,
reforçada pelo fato de que o grosso dos imigrantes era avesso à
naturalização, condição necessáriapara uma hipotéticaparti-
cipação eleitoral. Entretanto, a falta de aquisição da naciona-
lidade cívica, de maneira nenhuma excluía totalmente os imi-
grantes de uma participação política que se fazia por outros
canais: as associações de coletividades, que em certas ocasiões
funcionavam como grupo de opinião ou de pressão, sobretudo
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 145
atravésde uma imprensa própria que foi-setornando cada vez
mais importante; as corporações e associações de trabalhado-
res, onde predominavam os imigrantes, nas quais a direção
anarquista estabelecia um forte vínculo entre a luta sindical e
a política. Houve inclusive a participação direta, com passea-
tas -- no ciclo crítico de 1890-1895-- e, eventualmente, com
algumas formas políticas de violência. Para os segmentos
c/lbaos, sua inclusão nas já constituídas clientelas da política
tradicional representava um primeiro passo no processo de in-
tegração na vida política.
Mas o que trouxe um avanço substancial para este pro-
cessopaulatino de politização das camadas populares foi o
surgimento de partidos políticos modernos, onde elas encon-
traram amplo abrigo, apesar de não serem essespartidos es-
pecificamentepopulares. No caso do radicalismo deve.se no-
tar que essa participação popular, que veio a ser importante.
não se deu nos seus primeiros tempos. O partido radical foi.
por muito tempo -- provavelmenteaté 1905-1910-- um par-
tido de quadros, dirigido por um setor dissidente da e/ffe tra-
dicional. Por essa época seu desenvolvimentorepresentou um
substancial aumento da participação que, entretanto, ficou
restrita aos limites do sistema estabelecido; em particular, de-
pois dos anos críticos de 1890-1895,ele entrou em um estado
próximo da letargia. Por outro lado, a nítida heterogeneidade
de sua composição limitou suas formulações programáticas ao
tema do sufrágio e impediu que a participação popular tivesse
um perfil mais definido. No caso do partido socialista essa
definiçãoprogramática existiu; pela primeira vez, uma agre-
miação política oferecia um programa para uma classe ope-
rária cuja formaçãoera estimulada. Partido para os trabalha-
dores, ele não foi, entretanto, um partido predominantemente
dos trabalhadores. Sua condução ficou reservada ao núcleo de
intelectuaisque o fundou e o grau de participação das corpo-
rações semprefoi, nele, restrita, a tal ponto que a maior parte
delas abandonou o partido em 1905.'Por outro lado, o lento
avanço da naturalização entre os trabalhadores imigrantes ín.
dica que a pregação do partido em pri)l de uma participação
política eleitoral -- que competia com a tese anarquista de
muito maior sucesso -- não obtinha grandes êxitos.

146 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
O primeiro impulso, 1912-1930
O período que vai da sanção da lei Sáenz Peça até a revo-
lução de 1930caracteriza-se por uma notável extensão da par-
ticipação política, bem como por uma crescente especializa-
ção das organizaçõesatravés das quais ela se exprime. Pro-
vavelmente,terá também ocorrido um enfraquecimentode
muitas daquelas primeiras organizações, ao mesmo tempo que
novas terão surgido.
Ainda que o desenvolvimento da sociedade não apresente
rupturas notáveis, pode-se assinalar entretanto que, nesta se-
gunda etapa, o processo formativo deu lugar a uma etapa de
reestruturação crescente. A diferenciação da sociedade é pa-
tentee, do conglomeradoinicial, pode-se distinguir com cla-
reza os segmentosde trabalhadores daqueles que deram um
passo importante na ''aventura da ascensão''. As mesmas di-
ferenças surgem entre o mundo marginal e o mundo do tra-
balho, e no interior deste, entre o conjunto dos trabalhadores
e um setor operário com perfis definidos. Por outro lado, a
existência de uma segunda geração de imigrantes -- argenti-
nos de nascimento -- altera completamente os dados referen-
tes a sua participação política. Por fim, torna-se mais evidente
que a onda geral de prosperidade da sociedade global -- que
se alça em 1880 e culmina em 1930 -- sofre interrupções em
conjunturas visíveis e violentas, como no ciclo que se segue à
Primeira Guerra Mundial, nas quais os conflitos da sociedade
chegam ao apogeu.
Entretanto, o decisivo para explicar as mudanças na par-
ticipação popular provém da esfera propriamente política. A
lei Sáenz Peça, em parte, produto de um amplo processo de
luta e de mobilização, teve, por sua vez, enormes efeitos mobi-
lizadores. Tão logo sancionada, incrementou a afluência de
afinados aos partidos, e, em particular, mudou anatureza do
radicalismo. Essa participação -- tanto em filiações quanto
em voto -- continuou aumentando até culminar nas eleições
de 1928, primeiro fenómeno de eleição de massas.
Para tanto influiu, além da lei que criava o marco jurí-
dico, a presença de um governopopular, tanto por sua origem
quanto, em boa parte do período, por suas políticas..Sem .en-
trar na discussão das bases ideológicasou dos objetivosúlti-
mos dos governosradicais -- e, particularmente dos de Yri-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 147
goyen -- é evidente que, em muitos aspectos, foram governos
mais permissivos do que restritivos, e que suas políticas esti-
veram orientadas para o que se chama ''o interessesocial'' e
pela vontade de mediar ou conciliar conflitos sociais. Esta si-
tuação criou um campo enorme para que se desenvolvessea
mobilização e a participação popular, e para que os grandes
organismos destinados a canaliza-la -- sindicatos e partidos
-- florescessemplenamente. Cri(iu, também, as condições pa-
ra uma reação igualmenteprofunda dos setores proprietários e
das Forças Armadas, de forma que desde logo o governo radi-
cal ficou preso entre a mobilização popular e a reação do esfa-
btishment.
A mobilização radical tornou-se, a um só tempo, mais
intensae mais específica,e suas fronteiras com a ação defi-
nida como política ficaram mais claras. A substituiçãodo
anarquismo pelo sindicalismo correspondeu ao desenvolvi-
mento de sindicatos de maior envergadura, com um início de
organização burocrática, fundados sobre atividades que reu-
niam muitos trabalhadores e cujas associações patronais esta-
vam relativamenteunificadas, como as dos portuários, dos
ferroviários, dos motorneiros ou dos marítimos. Os sindicalis-
tas cortaram os vínculos com os partidos políticos, concentra-
ram sua ação na reivindicação económica, perseguida através
do sindicato, e desenvolveram sua estratégia em torno da ne-
gociação, tanto com os patrões quanto com um estado que
intervinha cada vez mais nos problemas trabalhistas. As gre-
ves perdem o caráter ''selvagem''da etapa anarquista, con-
centrando-se na consecução de objetivos determinados e ne-
gociáveis.
Foi um longo períodocrítico, que se inicia por volta'de
1917, alcança seu auge em 1919 e se prolonga até 1923 (no
qual também se inserem importantes mobilizações agrárias) ,
menos pelos objetivos declarados do que pela soma de uma
série de conflitos parciais, radicados, por outro lado, em cen-
tros nevrálgicos da vida económica, como eram as atividades
exportadoras.
Com a saída do sindicalismo da ação política, seu campo
foi plenamente coberto por alguns partidos que sedesenvolve-
ram amplamente, organizaram a opinião, lutaram por ela,
impuseram seus representantes nas diversas instâncias do Es-
tado, divergirame negociaram,em suma: foram os veículos
148 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
da participação democrática. Esta se anuncia, naturalmente,
na crescenteparticipação eleitoral. Mas, também, no desen-
volvimentodaquelas seções dos partidos políticos que operam
no nível da sociedade civil, estabelecendo os vínculos entre ela
e a política. Os comitésradicais e socialistasnão apenas re-
crutaram eleitorespotenciais como ainda difundiram entre
eles a ideologia partidária.
Não se pode deixar de lado a questão de saber qual foi a
relação entre este partido e os núcleos anteriores que existiam
na sociedadecivil, um tema que parececrucial para com-
preender os alcances desta primeira grande experiência de-
mocrática. Em alguns casos, os comités assumiram as funções
dos velhos núcleos culturais ou sociedades de mutuários que
substituíram. Em outros, observam-nosinteiramente, confe-
rindo às suas atividades um carâter político. O clássico guia
(pzzrzfero)foi tambémum prestadorde serviçose o comité
pôde cumprir as hinções do clube do bairro, ao tempo em que
estes clubes não eram controlados por alguns dos grupos polí-
ticos. O centro socialista reuniu grupos com interessescultu-
rais, organizoubibliotecas e cursos. O comitê radical vendeu
pão barato em época de eleição, etc.
Assim, muitas das funções das primeiras organizações
celulares originais foram absorvidas pelos partidos que lhes
deram uma proüeçãopolítica ou, em outros casos, pelas orga-
nizações sindicais de novo tipo. Entretanto este não foi um fe-
nómeno generalizado, tendo havido resistências, lutas e con-
flitos e também reivindicação de apoliticismo. Em outros ca-
sos, como na educação, foi o avanço do Estado que, sem uma
proposta explícita, restringiu o campo destes agrupamentos
celulares. Por outro lado, a maioria deles mudou substancial-
mente de caráter, acompanhando o processo de diferenciação
e de estratificaçãoda sociedade.Assim, as associaçõesde co-
letividades integravam a totalidade dos membros de uma na-
cionalidade que nela procurava benefícios cada vez mais espe-
/
cíficos -- sob a direção dos grupos mais ricos. De horizontais
tornaram-se verticais e foram perdendo aquele caráter de ór-
gãos primários da democracia. Ê possível, entretanto, que em
outros setores da sociedade tenham surgido simultaneamente
outros novos, mas pouco sabemos a respeito.
t
Esta pratica de democraciaprimaria permaneceu nas no-
vas organizações -- partidos e sindicatos --, surgidas com o
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 149
processo de mobilização e participação? A resposta, em geral,
parece ser afirmativa, mas devemos assinalar certas dúvidas,
certas zonas obscuras em um desenvolvimento que nunca foi
linear. No partido socialista é conhecido o processo de escle-
rose de sua direção e a chamada ''ditadura'' de seus membros
fundadores, o que certamente deve ter repercutido na vida
interna dos centros de base. Os comitês radicais foram vistos
mais como prestadores de serviços do que como geradores de
inquietações, e a possibilidade de que estas chegassematé a
uma direção que, até 1925,era substancialmentesimilar à de
1890,eram escassas.Tendências semelhantespodiam ser de-
tectadasem sindicatos, que começavama contar com grupos
dirigentes estáveis e que, como no caso dos ferroviários, foram
decididamentecentralistas e autoritários, porque assim o re-
queriam as próprias condições de trabalho.
Assinalemosum último ponto. Partidos e sindicatostêm,
neste período, esferas de influência claramente diferenciadas.
A corrente dita ''sindicalista'', dominante nas corporações,
recusa os partidos. Os socialistas não só têm dificuldades para
fincar pé entre os operários como também, no próprio par-
tido, os dirigentes de origem corporativa possuem um limita-
díssimo campo de ação. O radicalismo não desenvolveuorgani-
camente um setor corporativo e suas relações neste domínio
ocorriam antes na cúpula, com alguns dirigentes ''sindicalis-
tas''. Do ponto de vista dos trabalhadores, isto significou que
suas solidariedades repartiram-se entre dirigentes corporativos
e políticos, sem que sua adesãopara a ação, em uma esfera
específica, implicasse que devia transladar-se para outra. Pro-
vavelmente, se tinham que negociar condições de trabalho,
apoiariam os sindicalistas, e se as coisas levassem ao enfrenta-
mento violento, seguiriam os anarquistas; porém, quando se
tratava de votar, eram por Yrigoyen.
O recuo, 1930-1943
A crise de 1930 inaugurou uma etapa caracterizada por
um regime restritivo apoiado na fraude, que entretanto não
chegoua negar, no plano dos princípios, o sistema democrá-
tico. O Estado ampliou suas esferas de ação e negociou direta-
mente com as organizações corporativas dos setores proprietá-
150 ARGENTINA: A .PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
rios, privandoassim os partidos de uma de suas principais
funções. Por outro lado, deteriorou progressivamente o apoio
consensual no conjunto da sociedade, particularmente entre
alguns setores populares que mudavam rapidamente de fisio-
nomia, graças às migrações e à industrialização.
A restrição política acarretou um fechamento dos espa-
ços, ganhosna etapa anterior, para a participaçãopopular
Não obstante, esta ressurgiu, com ímpeto notável, em 1945. E
pois o caso de se perguntar em que;domínios se conservou,
onde ''aninhou'' nesses anos em que ficou latente.
Dificilmente a resposta se encontrará no âmbito dos par-
tidos políticos tradicionais, que, quase sem exceção, se.ade-
quaram ao regime fraudulento. Separadas por essa exigência
prévia e do poder, os comités mal puderam prosseguir no de-
senvolvimentode suas funções políticas, nem nas sociais cone-
xas
Em compensação, os sindicatos aumentaram seu campo
de ação ao longo da década. Revitalizaram-se as organizações
e desenvolveu-seum amplo processo de mobilização, condu-
zido em grande parte por dirigentesdos partidos políticos
operários, socialistas e comunistas, que reencontraram nos
sindicatos e na CGT um vasto campo de ação. Junto com as
organizações cresceram os grupos sindicais de base, as comis-
sões internas e os novos sindicatos, no ritmo da expansão e
diversificação da indústria, e em que pese não ter havido entre
elas e as direçõesuma comunicaçãoconstantee fluida, pelo
menos nestes núcleos manteve-se e mesmo reativou-se a parti-
cipação igualitária.
Porém, o que, de uma só vez, é o mais interessantee o
mais desconhecidoé o que ocorreu no resto das organizações
que se desenvolviam no seio da sociedade civil. Muitas das que
nasceram na etapa anterior desapareceram, burocratizaram-
se ou se esclerosaram. Entretanto surgiram outras, particular-
mente nos bairros, antigos ou novos, que desde o início do
século tinham sido pontos de articulação da nova sociedade e
que provavelmentecontinuariam sendo, à medida que o pro-
cesso das migrações intimas ampliava a periferia de Buenos
Abres. Nestes anos, os clubes de bairros, as sociedades de ''fo-
mento'' às bibliotecas populares e muitas outras instituições
deste tipo parecem ter vivido sua época de maior florescimento
e criatividade.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 151
A questão sobre onde aninhou a democracia nestes anos
é, sem dúvida, complexa e mal conhecida, mas também rica
em sugestões para o nosso presente, também complicado e
obscuro. A prova da existênciae vigor destes ninhos acha-se
nestevertiginosoimpulso da mobilização popular que acom-
panhou o surgimentodo peronismo, ainda que não se tenha
esgotadonele, e que se manifestou em todos os níveis, desde a
base até a alta política.
Considerações finais
Se interrompemos esta análise em 1943 é porque pensa-
mos que a partir desta data mudam substancialmente os da-
dos básicos da vida política em Buenos Abres e no país. As
camadas populares começam então a ter uma participação de-
cisiva na luta política, que vai além de sua inclusão no pero-
nismo governante.
Esta luta se desenvolveatravésde formas desiguais:a
pressão efetiva do sindicalismo, desde os locais de trabalho até
ao mais alto nível político; a ação das unidades básicas (de
cujas múltiplas funções na realidade sabemos pouco) e, sobre-
tudo, a presença popular na rua, na praça, isto é, a mobili-
zação maciça destinada a apoiar uma alternativa política pro-
posta. Por outro lado, o Estado praticou uma política de mas-
sas inédita, com emprego abundante dos meios de comunica-
ção e com a tentativa de novas.formas de mobilização e en-
quadramento. À experiência populista seguiram-se diversas
tentativasde autoritarismo multar, cada vez mais aperfeiçoa-
do, através do qual procurou-se penetrar nos lugares mais
recônditos da sociedadee aniquilar toda forma de expressão
política das camadas populares.
l Porém, não obstante estas mudanças e a crescente com-
plexidade de vida política, de seus agentes e das praticas, a
velha questão da participação democrática permanece inteira.
Foi sobretudo nos períodos de avanço do autoritarismo, du-
rante os quais as formas democráticasforam suprimidas dos
espaços mais visíveis da sociedade, que alguns destes grupos
celularespuderam servir de refúgio para as práticas partici-
+
pativas. A percepção de sua opinião e de seu florescimento, nos
últimos anos, guiou nossa pesquisa acerca das formas mutan-
 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
152
tes de participação popular. E preciso que agora nos interro-
guemosacerca de sua função em-um processo de restauração e
de reforço democrático como o que vivemos hoje.
Certamente, com isto não esgotamoso problema da de-
mocracia, nem mesmo pode-se afirmar que ele sqa seu ele-
mento principal. O surgimento e consolidação de um sistema
democrático responde a outros fatores e implica considerar
problemas e circunstâncias muito mais amplos e complexos.
Mas a participação, em alguns dos níveis da sociedade, é sem
dúvida, um desseselementos. Até que ponto esses núcleos, nos
quais, no âmbito da sociedade, constata-se que a participação
é viável, podem subsistir e integrar-se num processo democrá-
tico? A resposta não é, de modo algum, óbvia: a experiência
indica que frequentemente os períodos de abertura democrá-
tica são solidários de um declínio da força que impulsiona a
existência desses núcleos, que inclusive acabam sendo absor-
vidos por outras organizações, especificamentepolíticas, ou
marginalizados pela vigência de outras praticas, que enfati-
zam a mobilização, em detrimento do componente participa-
tivo
Uma primeira dúvida surge em torno das relaçõesentre
estes grupos celulares da sociedadee o Estado: .Uma das ca-
racterísticas do nosso sistema político democrático -- ainda
que provavelmente não específica dele -- é o distanciamento
entre ãs autoridades e este conjunto de inquietações, desejos,
necessidades e reivindicações surgidos dos níveis mais celula-
res da sociedade. Quais são os canais pelos quais estas peque-
nas iniciativas e impulsos, surgidos da base da sociedade, po-
dem achar eco em algum dos níveis de decisão do Estado,
ainda que sejam os mais baixos? A resposta a essa questão
passa, certamente, pela possibilidadede que o Estado demo-
crático encarne e se enraíze na sociedade, encontrando nela,
consequentemente, defensores e sustentadores.
Uma segunda dúvida diz respeito à forma em que possam
coexistir estes grupos que surgem no seio da sociedadee as
organizações políticas populares. A relação entre uns e outros
é inevitável.De um lado, a articulaçãodas reivindicaçõesse-
toriais em um prometopolítico implica necessariamente sua
realização através dos partidos. De outro lado, as .organiza-
ções políticas, na medida em que se encarregam destas reivin-
dicações, tendem a aduar sela no interior das próprias organi-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 153
zações celulares, seja nas suas áreas de interesse. Neste caso,
tendem naturalmente a acentuar as definições, a estimular a
convergência de opiniões, a polarizar as pessoas em torno de
uma proposta unitária, a deixar de lado os matizes e diferen-
ças, a traçar grandes linhas divisórias na sociedadee na polí-
tica. Isto é mais visível nas organizações políticas populares,
como o radicalismo e sobretudo o peronismo, movimentos que
rebaixam os limites do partido e enquadram diversas organi-
zações da própria sociedade. Fazem-no com maior intensi-
dade quando se auto-identificam não com uma parte do povo,
mas com o próprio povo, negando a própria possibilidadedo
pluralismo. Nestes casos, aqueles espaços surgidos no seio da
sociedade são, ou absorvidos pelas organizações partidárias
ou substituídos por outras alternativas, construídas desde o
início sob o signo partidário. Neste caso, cabe perguntar quais
são as possibilidades de sobreüvência daquela participação
que, apoiando-seno pluralismo, surgia espontaneamentena
base da sociedade.
A última questão refere-se à vigência deste estilo de par-
ticipação no seio das organizações políticas populares. Em
certo sentido, o problema é comum a todos os sistemas demo-
cráticos atuais: como conservar aquela participação que se
produzia naturalmente .no seio das tradicionais democracias
burguesas. Nos velhos sistemas políticos restritivos a partici-
pação não se esgotavanos partidos: produzia-se em diversas
esferas -- dos clubes às sociedades científicas -- nas quais
geravam-se e cristalizavam-se opiniões que os partidos logo
recolhiam. Mas em um regime de democracia plena a partici-
pação política igualitária entra em conflito com as desigual-
dades que existemna sociedade.Sem contar que a própria
participação genera[izadajá é muito difícil por um simp]es
problema instrumental, a partir do qual geram-se praticas
que, estimulandoa apatia generalizada,transformam o pro-
blema inicial em oiro de/ozzdo .
Em nosso caso, Buenos Abres, deve-se acrescentar uma
circunstância histórica: as limitações daquele estilo tradicio-
nal de participação e exercício da democracia -- tão visíveis
na década de 1930ou nos anos posterioresa 1955-- estimu-
laram o desenvolvimentode outro estilo de participação, mais
apoiadona mobilizaçãomaciça do que nos partidos ou na
prática participativacelular, que se instaura na experiência
IS4 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES

dos setorespopulares com o peronismo e que se constitui como

parte de sua cultura política.
Assim, dificuldades materiais gerais e experiências polí-
ticas muito enraizadas conspiram contra o desenvolvimento
de uma pratica política participativa que, paradoxalmente, Funcionamento
parece encontrar melhores possibilidades fora do que dentro
dos partidos políticos. Neste caso, nossa última questão é se da economia
realmente é possível que se consolide um sistema democrático
sem que seus protagonistas, os partidos, se alimentam, em
suas próprias bases, com estas práticas de participação iguali-
e poder político
tária
a
na Argentina:
Empecilhos para a democracias
Jorre F. Sâbato/Jorre Schvarzer++

Para que crer Dias la Argentina?-- perguntoel

creyente ingénuo --
Quízâs para castigar la soberbia de quienes creen
conozer la sociedad de los hombres -- contesto el teó-
logo
tDiálogos imaginários de! Sigla XX\

./\Argentina não frustra apenas seus habitantes, mas,

também, aqueles que tentam entendo-la. O que ocorre neste
país contradiz tanto os conhecimentos consagrados como tam-
bém as teses opostas as mais discutidas sobre sociedadese
economias contemporâneas. Pior ainda: refuta, até mesmo, o
mero bom-senso .
d A obstinadanormalidadeda Argentina constituium de-
safio intelectual para a busca de explicações. Este trabalho é
uma tentativa a mais para responder a esse repto, uma pro-

(+) Este ü'abalho foi escrito em meados de 1983 e revisto para esta
publicação no início de 1984.
(++) Jorge Schvarzeré Diretor Geral do CISEA(Buenos Abres). Jorge
F. Sábato é pesquisador titular do CISEA, anualmente Secretário para As-
suntos Especiais do Ministério das Relações Exteriores.
156 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
cura de chaves que sirvam, ainda que parcialmente, para des-
velar a incógnita.
Optamos, propositadamente,por dar-lhe a forma de um
ensaio, apresentando de modo breve e assertivo, não uma ex-
plicação, mas algumas idéias para construí-l&.i O ponto de
partida é simples. Como a realidade argentina recusa inscre-
ver-se em certos modelos, implícita e universalmente, admiti-
dos, ao invés de insistir em acomoda-la dentro destes leitos de
Procusto, procuraremos fazer uma revisão dos pressupostos
que os inspiram enquanto observamos, ao mesmo tempo,
como aconteceram os fatos.
Nesta operação iconoclasta concentraremos nossa atenção
em dois fenómenos centrais: a instabilidade política e o caos
economico.
Quando qualquer um deles -- e sobretudo quando os
doisjuntos -- se mantém persistentementeem uma sociedade
são considerados, seja qual for o enfoque teórico, sintomas de
uma situação patológica. Hâ, subjacente, a ideia de que, nes-
sas condições, todos os grupos ou classes sociais perdem, a
curto ou longo prazo. Uma sociedadeonde, definitivamente,
ninguém se beneficia e onde, ao mesmo tempo, é difícil ou
impossível, para impede-lo, estabelecer as regras
vista como uma sociedade doente.
É impossívelverificar a validade deste diagnóstico, mes-
mo quando a experiência cotidiana parece confirma-lo a cada
instante. O fato de que esta situação dure há mais de meio
século, e de que neste lapso tão prolongado tenham-se tentado
sem êxito as mais diversas soluções -- incluídas, entre outras,
o populismo com Perón, a democracia com lllia, a autocracia
com Ongania -- serve apenas para sustentar a idéia de que
existe na crise profunda no país. Em muitos sentidos isto é
indubitável: entretanto, como, apesar de tudo, a Argentina
continuou existindo e funcionando, convém examinar os crité-
rios de normalidade habitualmente utilizados para julgar o
caso. Talvez possamosconcluir que o que se qualifica como
''anormal'' seja o normal na Argentina e, inversamente, o que
(1) Quase todas as idéias expostas são conclusões obtidas em diversos estudos
e pesquisas realizados pelos autores. razão pela qual na bibliografia limitar-nos-amos
a indicar estas publicações, nas quais os interessados poderão encontrar amplas refe-
rências bibliográficas.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 157
habitualmente se entende como ''normal'' seja anormal nesse
país. Não se trata, é claro, de um jogo engenhoso: no caso de
nos confundirmos, as conseqüências podem ser muito graves.
Por quê?
A idéia de normalidade supõe, a rigor, a existência de
forças intrínsecas a toda a sociedade, e que tendem a estabe-
lecer certas formas típicas de funcionamento. Em nosso caso
trata-se da estabilidade no sistema político e da ordem na eco-
nomia. Se estas formas são ''normais'' em toda a sociedade,
então podemos pensar que sua procura concitará, por certo,
um conjunto poderoso de forças sociais para encontra-las,
sqa, por exemplo, através de uma proposta de consolidar um
regime democrático de governo que não pretenda mudar a
estrutura do país -- mesmo que tenha a pretensão de reformu-
la em certos aspectos --, seja através de uma proposta revolu-
cionária que procure provocar mudanças estruturais, uma re-
volução social para definir um novo equilíbrio e uma nova
ordem para o país. Mas se o normal na Argentina é o anormal
para nossas concepções subjacentes, a equação de forças será
muito diferente da imaginada, a tarefa de procurar a demo-
cracia ou a revolução tornar-se-â muito mais árdua e, sobre-
do jogo, é tudo, talvez variem substancialmente as estratégias que se po-
dem conceber para alcançar esses objetivos.
A instabilidadepolítica:
anormalidade ou normalidade
na Argentina?
Entre 6 de setembro de 1930 e 10 de dezembro de 1983a
Argentina tevevinte e quatro presidentesda república -- in-
f
cluindo o efémero general Ramson e o transitório sr. Lastiri
dos quais dezesseis foram generais. Nesse ínterim produ-
ziram-se seis golpesde Estado vitoriososdas Forças Armadas
contra governoseleitos -- mal ou bem pouco importa por ora.
Contam-se às dezenas, se não às centenas, as tentativas de
golpes de Estado frustrados, bem como as ''propostas'' cas-
trenses, como presidentes eleitos apenas Justo e Perón pude-
ram cumprir o período estabelecidopela Constituição e não é
um acaso o fato de que nas duas ocasiõesambos foram mili-

158 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
tares que haviam exercido anteriormente a liderança no Exér-
cito
A simples consideração destes dados, sobretudo quando
os examinarmos -- como ocorre anualmente -- em torno do
fim de um regime militar, sublinha o papel desempenhado
pelas Forças Armadas na desestabilizaçãodo sistema político
argentino. A constatação é carreta, mas cumpre também assi-
nalar que os regimes militares foram igualmente instáveis. O
general Uriburu, o primeiro golpista vitorioso, viu-se obrigado
a deixar o governo antes do que desejavae de um modo que
não queria. O general Ramson, em 1943, sequer chegou a
formar seu governo. O general Ramírez, em 1944, foi substi-
tuído por seus camaradas. O general Farrell, em 1945, esteve a
ponto de ser expelido, não fosse a mobilização popular de 17
de outubro a favor de Perón. O general Lonardi foi destituído
em 1975 depois de ter chefiado a luta vitoriosa contra Perón.
O general Ongania foi derrubado em 1970pelas mesmas For-
ças Armadas que produziram o golpe de 1966. Seu sucessor,
o general Levingston sofreria a mesma sorte em 1971. Para tirar
o generalVidela da Presidência, em 1981, a Junta Militar in-
ventou uma nova fórmula verbal: declarou que ''havia cessado
em suas funções''.A substituiçãodo generalGaltieri, em
1982, foi mais tradicional: foi obrigado a renunciar. Dos gene-
rais que ocuparam a Presidência no período anterior a uma
convocação de eleições, Aramburu e Lanusse tiveram um des-
tino semelhante ao de Uriburu: em ambos os casos as condi-
ções e, como consequência, os resultados dos comícios foram
opostos às intenções e desejos que os giravam. Apenas Farrell
assistiu a uma sucessão eleitoral -- a de Perón -- de acordo
com as preferênciasde seu governo. Desta longa lista resta
apenas um exemplo de estabilidade dentro de um regime mili-
tar: o general Videla foi o único que cumpriu o período previa-
mente definido pelas próprias Forças Armadas entre 1976 e
1981. Mesmo esta afirmação dâ margem a discussão, mas é
mais interessante constatar que o fenómeno oconido durante
a gestão Videla -- o solitário testemunho da estabilidade mili-
tar -- veio a tomar-se o período dos anos recentes mais abo-
minado pelos próprios militares. A Imoral desta história é
aquela que anunciamos ao iniciar esse longo registro: a insta-
bilidade política na Argentina também inclui os próprios re-
gimes militares qué romperam a continuidade institucional.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS IS9
Uma visão menos imediata desses fenómenos evidencia
facetas sugestivas. Em todos os lugares, os setores privilegia-
dos defenderam, por definição, o sfafus que. Na Argentina
conspiraram tradicionalmente contra os governos eleitos. A
conjunção dessesdois dados indica que a vigência das regras
institucionais estabelecidas pelos setoresprivilegiados do país
na Constituição de 1853, e a livre expressão da vontade popu-
lar dentro destesmarcos atentam, pelo menos hâ meio século,
contra os interesses e as orientações de certos grupos minori-
tários com poder económico e capacidade de ação política.
Isto contrasta com o que ocorre nos países capitalistas de-
senvolvidosonde, em linhas gerais, os grupos privilegiados
aceitam ou procuram manter as regras políticas preexistentes,
enquanto que as iniciativas de reforma-las são, antes, respos-
tas às exigênciasdos setorespopulares. Esta particularidade
levou a inscrever a Argentina entre os países afetados pelo
subdesenvolvimento económicoe atraso social, nos quais a
emergência de projetos populistas, aproveitando os progra-
mas políticosda democracialiberal, tende a ameaçar a posi-
ção dos setores dominantes tradicionais. O que é curioso com
relação à Argentina é que ela não tinha nenhuma destas ca-
racterísticas quando, em 1930, os grupos privilegiados promo-
veram o primeiro golpe de Estado. Ao contrário, ela se achava
então entre as nações mais prósperas do mundo e havia conse-
guido, sem grandes sobressaltos, abrir socialmente um regime
político que vigorava hâ quase sete décadas praticamente sem
quebras. A esta diferença que existiu nas origens acrescen-
tava-se outra mantida ao longo de todo o período: sem menos-
prezar a importância dos problemas sociais existentesna. Ar-
gentina, não se pode ignorar que sua gravidade foi muito me-
nor do que nos países subdesenvolvidostípicos. A formação
precoce de uma ampla classe média e a ausência de questões
social-agrárias dominantes (como as que colocam uma popu-
lação maioritariamente camponesa), fez com que os movi-
mentos populares de massa não assumissem proüetos revolu-
cionários. De fato, nenhum dos governoseleitos com vocação
popular, nem antes nem depois de 1930,pretendeu explícita
ou implicitamente transformar radicalmente a estrutura capi-
talistada sociedadeargentina,indo, no máximo, até a intro-
dução de algumas reformas sociais dentro dela. Não se pode,
portanto, dizer que os setores dominantes promoveram a ins-
lw FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
f
tabilidade institucional como uma defesa extrema contra pro-
postas políticas e sociais que ameaçaram sua existência ou,
sequer, seus privilégios.
Observando mais de perto o comportamento político dos
setoresprivilegiados aparece outro traço interessante: além de
desestabilizar os govemos eleitos eles também tentaram deses-
tabilizar, em diversosmomentose por vezes com êxitos, go-
vernos que surgiram em todos e cada um dos regimes milita-
res. Essa história começou com o próprio Uriburu em 1931,
continuou com Ramirez e Farrell entre 1943e 1945, teve êxito
com Lonardi em 1955, com Levingston em 1971 e com Viola
em 1981.
A primeira conclusão, Óbvia, é a de que estes setores pri-
vilegiados, além de serem incapazes de exercer e controlar os
governoseleitos, foram muito menos aptos para estabelecer
alianças permanentes e duradouras com os militares que aju-
davam a derruba-los. Mas desta conclusão surge outra, mais
surpreendente: os grupos sociais dominantes prefere'am e esti-
mularam sistematicamentea ruptura de qualquer estabili-
dade política no país.
Como é possível conciliar este fenómeno com a possibili-
dade de manter um sfaltzs qzzono qual se preservea posição
privilegiada destes setores?
Há duas respostas plausíveis para a pergunta: ou os gru-
pos dominantes, incapazes de engendrar soluções políticas es-
táveis, acharam que as outras soluçõeseram piores para eles
do que a instabilidade permanente, ou a instabilidade política
não ameaçava realmente a preservação de sua posição privile-
giada.
Em ambos os casos, por um outro motivo -- e, natural-
mente, com maiores ou menores prejuízos -- parece evidente
que a instabilidade política efetiva vem a ser uma forma de
funcionamento mais normal e mais satisfatória para alguns do
que a estabilidade possível, ocorrendo assim uma inversão no
emprego habitual dessas nações. Ainda mais surpreendente é
a conclusão quando se constata como foi-se acentuando o caos
e a estagnaçãoeconómicada Argentina durante as últimas
décadas. Mas antes de examinar este aspecto, vale a pena as-
sinalar alguns benefícios inegáveis, proporcionados pela insta-
bilidade política, as posições de certos grupos influentes no
:d
âmbito do poder.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 161
Graças ao golpe de Uriburu, a antiga oligarquia recupe-
rou as alavancas do poder e dominou o governo da República
entre 1930e 1943. A revolução militar desse ano e o governo
peronista desalorajaram-na, em grande parte até 1955, mesmo
que o auge do peronismo, a rigor, se dê entre 1945 -- quando
surge nitidamente como uma opção política diferente -- e
l
1952 -- quando o projeto entra em crise político-económica.
A partir de 1955 ela recuperou sua influência nos governos de
grupos sociais dominantes, herdeiros, biológica e socialmente,
da oligarquiaconquantoadaptados,como era de esperar,
às novas condições económicas e sociais do país e do mundo.
Desde então, sua influência, ainda que com interrupções, pre-
valeceusobre o que pode ter o resto majoritârio dos demais
setores argentinos. Para não repetir uma crónica detalhada e
conhecida, limitar-nos-amos a recordar, a título de índice su-
gestivo, o papel desempenhadodurante estes últimos vinte e
oito anos por quatro pessoas estreitamente ligadas aos grupos
t privilegiados:Adalbert Krieger Vasena, Alvará Alsogaray,
RobertoAleman eJosé Alfredo Martinez deHoz(filho) .
Os quatro são membros de famílias tradicionais de ampla
atuação no país e desempenharam papéis decisivos na evolu-
ção nacional nas últimas décadas. Sua trajetória em diferentes
governos, esquematizada no Gráfico 1, pode ser resumida,
P para efeito de argumentação, nas fórmulas seguintes.
Adalbert Krieger Vasena começousua atuação em fun-
ção pública em 1956 e chegou ao cargo de ministro de Econo-
mia em 1957, aos trinta e sete anos de idade. Manteve-se no
cargo até a entrega do governo pela Revolução Libertadora,
quando passou para a atividade privada, nela permanecendo
por vários anos. Em janeiro de 1967foi novamente designado
ministro de Economia (que agora se via reforçado pela pasta
do Trabalho), aí permanecendoaté junho de 1969.Ao longo
}' da década dos setenta atuou como vice-presidente do Banco
Mundial, posto-chave no âmbito financeiro internacional, vol-
tando ao país em 1978. A partir de 1981é diretor da Bolsa de
Comércio e conselheiro reservado de ministros e funcionários
governamentais. Ao final desse ano surgiu como candidato ao
Ministério da Economia antes da designação definitiva de Ro-
berto Aleman.
Alvaro Alsogaray foi nomeado ministro da Indústria em
1956, aos quarenta e três anos de idade. Em junho de 1959
162 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
+
GRÁFICO l
POSIÇÕES EM CARGOS GOVERNAMENTAIS DE auêTBQ .
REPRESENTANTES DOS GRUPOS PRIVILEGIADOS NOS ÚLTIMOS
TRINTAANOS
A. KriogerVawna+
A. Alsogaray [] lE]
R. Aleman [=El]
J. A. Martinozde Hoz [:] n único ministro de Economia da Argentina moderna que se
Período coberto pe-
los quatro governos
(') As barras om negro indicam posiçõm do ministro da Economia.
As barras om branco indicam cargos de alto nível.
Aà barras om traços diagonaisindicam outros cargos importantes mas não
oficiais.
tornou-se ministro da economia, cargo que ocupou até abril
de 1961. Um ano depois ocupou novamenteo cargo até de-
zembro de 1962. Em junho de 1966exerceu seu último cargo
na função pública como embaixador nos Estados Unidos.
Roberto Aleman iniciou sua carreira de funcionário em
1956,aos trinta e quatro anos de idade, como conselheirofi-
nanceiro em Londres. A partir de 1960 foi assessor do Minis-
tério da Economia, cargo que ocupou como titular em abril de
1961, aos trinta e oito anos de idade. Renunciou em janeiro de
1962 e pouco depois foi nomeado embaixador nos Estados
Unidos, cargo em que permaneceu até ao final do governo do
presidente Guido. Seu irmão Juan foi secretario da Fazenda
com Martinez de Hoz em 1963 e, novamente, entre 1967 e
1981. Em dezembro de 1981 Roberto Aleman voltou a ser mi-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 163
nastroda Economia, permanecendo no cargo até a renúncia
do general Galtíeri à Presidência, em junho de 1982.
José Alfredo Martinez de Hoz(filho) iniciou-sena função
pública como ministro da Economia da província de Salta em
1956, aos trinta e um anos de idade. Ocupou vários cargos nos
+ anos seguintes, e ao findar o período de Revolução Liberta-
dora era vice-presidente da Junta Nacional de Grãos. Reapa-
rece em função pública como presidente dessa mesma institui-
ção em 1961e daí passa a secretárioda Agricultura e, logo,
ministro da Economia em maio de 1963(aos trinta e oito anos
de idade) até outubro do mesmo ano. Martinez de Hoz voltou
a ser ministro da Economia em março de 1976 e conseguiu
então recorde de permanência neste cargo, ao exercê-lodu-
rante cinco anos, até março de 1981. Converteu-seassim no
L
manteve em seu cargo durante um período presidencial com-
r pleto, mesmo que este tenha sido um período completado de
/acto
C
Como se vê, estas quatro pessoasassumiram, em con-
junto, funções-chave do governo durante dezassete dos quase
+
vinte e oito anos transcorridos desde setembro de 1955 até
hoje. Eles foram, realmente,os artíficesprincipaisde uma
política económica que sacrificou sistemática e reiteradamente
os setores populares na história recente do país, comprome-
tendo as possibilidades do desenvolvimento económico nacio-
nal, afetando assim o presente e o futuro. Foram igualmente
os únicos que tiveram, além da continuidade, a capacidade de
retornar, por uma e outra vez, à condução da economia, gra-
ças à sua proximidadecom os donos do poder. Este último é
um ponto decisivo que se deve realçar: nenhum outro conjunto
de pessoas, nem qualquer outro grupo social, conseguiu man-
ter-se durante tanto tempo no governo dirigindo a economia
argentina. Mas há mais: a maior parte destes dezassete anos
-- aos quais talvez se deva acrescentar mais alguns por conta
dos grupos privilegiados pela influência que tiveram outros
funcionáriosalém dos quatro mencionados-- não foram
iguais aos outros. Com efeito, por diversasvezes, estesminis-
tros governaram com regimes que haviam suprimido as garan-
164 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
tias constitucionais, proibido as greves e eliminado o Con-
gresso. Por isso dispuseram de um poder consideravelmente
maior do que o de seus colegas de govemos constitucionais, os
quais estavam sujeitos às críticas dos meios de difusão, aos
protestos dos setores sociais que se consideravam afetados por
suas medidas e à necessária discussão parlamentar das leis e
disposiçõesque propunham para conduzir a economia do
país. Ao contrário, os representantes dos grupos privilegiados
puderam trabalhar com a maior discrição quando estavam no
governo e com todos os direitos e liberdades quando passavam
para a oposição.
As vantagens conseguidas nos fatos somaram-se as obti-
das nas idéias. Durante as últimas décadas, graças a um am-
biente internacional propício, ao controle dos meios de infor-
mação, à manipulação do sistema educativo e.à destruição dos
centros de pensamento independente, produziu-se uma abrup-
ta inclinação para a direita na difusão e discussão de idéias
dentro do país. Posições que podiam ser defendidas e difun-
didas com total liberdade na década dos vinte foram repudia-
das meio século depois, proibidas, podendo mesmo tornar-se
motivo suficiente para que se exterminassem aqueles que por-
ventura as sustentassem.
Dentro desta atmosfera intelectualrarefeita, o triunfo
mail espetacular obtido pelas minorias dominantes consistiu
em criar uma imagem -- ocasionalmenteaceita por amplos
setores médios -- pela qual a instabilidade e o caos no país
tinham sua origem nas demandas e pressões populares. Desta
maneira, os grupos privilegiados apresentaram-se a si mesmos
diante do resto'da sociedade como os defensores da ordem,
sqa conspirando contra os governos que o acusavam de per-
turba-la, sela ainda reprimindo, a partir do governo, a oposi-
ção com o mesmo argumento. Ao fazer o balanço daqueles
que se beneficiarame daquelesque se prejudicaram com a
instabilidade política, parece forçoso pensar que os que per-
deram provocaram-na e os que ganharam procuraram evitá-
la. Vejamos então o que ocorreu com o caos economico-
q COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 16S
O caos na economia:
anormalidade ou normalidade?
Admitimos, ainda que provisoriamente, que a instabili-
dade política ocorrida durante as últimas décadas favoreceu
de fato aos grupos privilegiados da Argentina no âmbito do
poder. Aceitemospor um momentoque, para além de uma
impressão imediata pelo qual parecia haver um "empate polí-
tico'' que criava um equilíbrio instável -- e por isso mesmo
fácil e constantemente quebrado --, no fundo assistia-se a
uma dinâmicapolítica que, a médioe longoprazos, permitia
que os grupos sociais e económicos dominantes acumulasse
mais poder.
O chocante desta conclusão aparece em suas consequên-
cias mais óbvias. Porque é evidente que a instabilidade polí-
t tica na Argentina deu origem a mudanças bruscas e perma-
nentesque, por sua vez, alteraram incessantementeo funcio-
namento da economia. Com efeito, cada golpe de Estado,
cada ''proposta'' militar e cada crise política, dentro de um
mesmo governo, foi, em geral, motivo para a adoção de me-
didas que provocavam mudanças agudas no contexto econó-
mico. As desvalorizaçõesda moeda, a modificação repentina
+
dos mecanismos de fixação dos preços -- desde os controles
impostos ou aceites até a mais ampla liberdade de mercado
--; as mudanças abruptas na política de salários, de impostos
e de subsídios, foram todos fatores que engendraram perma-
nentes e significativas variações nos preços relativos dos bens e
dos serviçosdentro do país. O testemunhomais expressivo
destes fenómenos apareceu dramaticamente na hiperinflação
que aflige a Argentina durante os últimos tempos: em 1983
l ultrapassaram-se oito anos consecutivos com uma inflação
anual de três dígitos. O mercado fica então desprovido de cri-
térios objetivos que Ihe facultem tomar decisões, a médio ou
longo prazos, quando as variáveis económicas flutuam a ritmos
tão elevados. Por outro lado, as mudanças de direção nas po-
líticas económicas impossibilitam a substituição do mercado
por uma condução planejada. A incerteza e a imprevisibi-
t lidade obscurecem ostensivamente o horizonte, impossibili-
tando a administração adequada dos setores produtivos. A ins-
tabilidade política repercute na esfera económica, que por sua

166 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
vez reage sobre a política. Progressivamente, o reino do caos
instalou-se no país.
Esse fenómeno parece, à primeira vista, contraditório
com a própria natureza de um sistema de mercado ou, dito de
outra forma, de uma organização capitalista da sociedade:
normalmenteestetipo de sociedaderequer para funcionar um
alto grau de estabilidade, impessoalidade e previsibilidade no
desenvolvimento das relações económicas. Obviamente, como
em qualquer outra sociedadeconhecida, é preciso, como re-
quisito prévio, impor e manter uma estrutura específica de
dominaçãosocial; mas não hâ dúvida de que os requisitos de
funcionamento que acabamos de mencionar -- e que natural-
mente condicionam e alimentam as formas de dominação --
marcam a singularidade da sociedadecapitalista. São perse-
guidos desde as origens das revoluções liberais burguesas até
na formação de alguns governos autoritários modernos. A es-
tabilidade, a impessoalidadee a previsibilidadenas relações
económicas são condições absolutamente necessárias -- em-
bora não suficientes -- para que uma organização capitalista
possa desdobrar sua formidável capacidade para desenvolver
as forças produtivas da sociedade,estimulando um cresci-
mento económico que beneficia primeiramente os empresários
capitalistas, mas que também permite obter-se o consenso dos
setoressubmetidos e impõe assim sua hegemonia.
Por que então na Argentina os grupos privilegiados pu-
deram interessar-se por fomentar uma instabilidade política
que, não obstante tenha-lhes outorgado um poder crescente,
gerava um caos económico aparentemente atentatório contra
seus interessesmais profundos e permanentes?
Assim como ocorreu para com a instabilidade política,
a pergunta se torna mais premente quando se levam em conta
as características
económicase sociaisdo país. Não só em
torno de 1930 mas também ao longo do meio século transcor-
rida desde então, existiram reiteradas oportunidades para em-
preender-se um crescimento económicosignificativo que, como
vimos, não foi ameaçado por nenhum movimento popular re-
volucionário de massa que viessea modificar substancialmente
a estrutura capitalista da sociedade.
A perda destas oportunidades, a estagnação crescente da
economia -- entre 1970 e 1982 o PIB quase não cresceu, o PIB
per cáFIla e o produto industrial declinaram significativa-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 16
}
mente -- parecem oferecer testemunhos indubitáveis dos pre-
juízos causados pela desordem económica.
Quando se confrontam estes dados empíricos com as con-
siderações teóricas jâ assinaladas, parece ainda mais flagrante
a contradição entre a tendência a favorecer a instabilidade por
parte dos setores privilegiados e os prquízos que lhes ocasio-
nada o caos económico conseqüentemente.
Entretanto, esta impressão entra em contradição com ou-
tros dados. Nos Gráficos 2A e 2B, apresentamosas séries de
PIB a preços constantesjunto com a distribuição de renda entre
os assalariados e os não-assalariados. O que se evidencia é que
esta última cresceu mais que o PIB, quase incessantemente,
ao longo do período, o que se deveu, sobretudo, à queda da
renda dos não-assalariadosnos últimos anos. Com efeito, a
taxa de crescimento anual acumulativa entre 1950 e 1980 foi
de 3,1%opara o PIB e de 4,1%opara a renda dos não assala-
riados. Se dividirmos o período simplesmente em décadas
5 surge um fato mais curioso ainda.
Como se vê, a renda dos não assalariadoscresceu menos
quando o PIB cresceu mais e, inversamente, cresceu mais de-
pressa quando a taxa de crescimento do PIB diminuiu.
Observe-se, desde logo, que os dados sobre nível de renda
entre assalariados e não assalariados são um indicador insufi-
l ciente daquilo que puderam obter os setores mais privilegia-
dos. E grande a probabilidade de que em relação a estes gru-
pos os dados expostos sejam indícios que pecam mais por ca-
rência do que por excesso. A experiência cotidiana, bem como
os estudos parciais sobre processos de concentração empresa-
rial e modificação na participação de certos setores na forma-
ção do PIB, sugerem que durante os últimos lustros os estra-
GRÁFICO 2A
TAXAS ACUMULATIVAS ANUAIS DE CRESCIMENTO
4.7%
1950/60 2,7%
1960/70 3.8% 2.6%
1970/80 2.4% 4.3%
 COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 169
168 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
l
tos mais elevados da sociedade incrementaram substancial-
PIB mente sua riqueza em termos absolutos.
Diante dessesdados e indícios, o mínimo que se pode
20 dizer é que nem o caos nem a estagnação económica parecem
ter prejudicado notoriamente as camadas sociais privilegiadas
da Argentina. Poder-se-ia talvez argumentar que com ordem e
Revol. com um crescimento acentuado (como o que se poderia teori-
Argentina.
Per6n camenteimaginar para o país) o benefícioobtido seria maior
Perón Revol. Fron- Guido 'Procedo' ainda. Contra esta hipótese, que certamente não se pode des-
Libert. dize lllia
denhar, cabem entretanto duas objeções. Em primeiro lugar,
a de que os prquízos sofridos pelos setores privilegiados não fo-
15
ram bastante graves para que reconsiderassem e redefinissem
os comportamentosque conduziam ao caos económico (por
exemplo, sua tendência a favorecer a instabilidade política).
Não
Assalariados Em segundo lugar, sua experiência imediata pode ter-lhes in-
dicado que não era tão evidente que a uma aceleração do cres-
r'" ./'" \
cimento da economia corresponderia um incremento de seus
lucros: fatos ocorridos durante a década de 60 pareciam de-
l monstrar o contrario.
f
10 l Ê possível, então, que o caos económico não fosse assim
l tão anormal quanto habitualmente se pensa para estes gru-
pos. Ou, por outra, talvez este caos corresponda a uma situa-
,'.,' 'q
ção muito mais normal para os grupos privilegiados argenti-
nos do que a ordem, a estabilidade,e a previsibilidadeno
/

desenvolvimento das relações económicas. Tentando repensar

/

/'
/

/
os fatos nesses termos, podemos sugerir algumas hipóteses
acerca da lógica do sistema éconõmico e político vigentena
/

Argentina que nos permitam explicar esta inversão das noções

./

5
Assalariados de ''normalidade'', habitualmente aplicadas a um país capi-
/

talista
/

''A.

A lógica do sistema
1. A base económica
A 55 60 65 70 75 80
A primeira vista não parece plausível admitir que uma
Bilhões economia de mercado onde o caos predomina sobre a ordem,
Fontes; 1950-73: Banco Central de la RepúblicaArgentina. a conJetura sobre a previsibilidade, possa ter alguma lógica. O
1974-81: Estimativas da Fundación de Investigaciones para el Desar-
rollo (FIDE). que nos desconcerta diante de tal situação é o hábito de pen-
170 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLITICO.
sar em termos de produção, o que é natural quando falamos
T )
de economia. Entretanto, o caso argentino nos obriga a reca-
pitular e reconsiderar as noções mais simples e óbvias que or-
denam nosso pensamento, como um passo necessário para
que possamos também simplificar a explicação do exemplo
anómalo.
Recordemos então que, ao tratarmos de uma sociedade,
lidamos, pelo menos, com três fenómenos básicos: a produção
de bens e serviços, as formas adquiridas pelo processo de cres-
cimento dessa produção (através da aplicação de tecnologia e
do investimentoprodutivo) e, finalmente, os mecanismos pe-
los quais se decide e se realiza a distribuição dos bens econó-
micos entre a população. Os três fenómenosestão indissolu-
velmente ligados entre si, ainda que, por vezes, estas relações
adotem formas mais ou menos tensas. Justamente, uma das
características relevantesda moderna sociedade capitalista re-
side nas formas que integram os três fenómenos mencionados
em uma só e mesma lógica global. Em primeiro lugar, porque
'1
o próprio processo produtivo incorpora desde sua origem o
mecanismo que assegura certa distribuição desigual dos exce-
dentes através da retribuição ao capital, quer dizer, aos donos
dos bens de produção. Nunca é demais destacar a singulari-
dade deste traço que ressalta, por contraste, quando se com-
para a sociedade moderna com outros sistemas sociais conhe-
cidos na história, nos quais os grupos privilegiados nem sem-
pre estiveram integrados de modo tão íntimo ao processo pro-
dutivo. Nestescasos, a captação de boa parte da riqueza por
uma minoria baseava-se, por exemplo, no uso da força física,
que permitia realizar uma apropriação direta dos bens gera-
dos pelos que trabalhavam e produziam; outros mecanismos
mais sutis e indiretos foram os métodos de apropriação basea-
dos no monopólio de instrumentos intelectuais, na organiza-
ção de espaços económicos controlados ou na supervisão das
transações mercantis e financeiras.
O mesmo ocorre com a relação entre as formas produtivas
e os fatos que impulsionam. a expansão quantitativa e quali-
tativa da produção. A íntima conexão entre os proprietários
dos meios produtivos, por um lado, e a enorme concorrência
deflagrada entre eles -- primeiro no mercado nacional, em
seguida no mercado mundial -- geraram as condições pelas
quais a hegemonia e a própria sobrevivência dos empresários
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS l '7 l
capitalistas como tais proporcionava um formidável desenvol-
vimento das forças produtivas. Jamais na história da humani-
dade havia-se produzido esta constelação de fatores que abriu
as vias para uma expansãocontínuae crescenteda riqueza
social. Não é de admirar que este fenómeno, tão ostensivo nas
nações que lideram o processo de desenvolvimento das econo-
mias de mercado, tenha colocado a questão da produção, ex-
}
plícita ou implicitamente, como centro e pressuposto básico
de todo o pensamento sobre a economia. Parodiando Bache-
lard -- quando assinalavacomo o deslumbramentodiante de
fenómenos da vida entorpeceu o desenvolvimento da química
-- diríamos que assim se abriu um espaço para um ponto cego
que toma a produção com um dado claro e geral, impedindo a
percepção de outros fenómenos com suficiente clareza de espí-
rito
Não obstante, a produção não surge do nada. Existem
outros fenómenos derivados da formação histórica de cada
realidade económico-social que explicam o apogeu dos países
centrais a partir da revolução industrial. Existem também ou-
tros fenómenos nos países situados atualmente na periferia do
sistema internacional, nos quais se vêem traços específicose
lógicas económicas e organizativas diferentes das que predo-
minam nos centros. Acreditamos que a Argentina é um exem-
plo -- talvez extremo -- de resultados particulares que podem
l surgir de umã combinação diferente de certos traços aparen-
temente ''clássicos''; nossa hipótese, a esse respeito, é a se
guinte: boa parte do processo económico argentino origina-se
em condições que favorecem a captação de recursos preferen-
cialmente nos circuitos de circulação do que nos circuitos de
produção de riqueza. É neste fenómeno estrutural, básico,
surgido e consolidado através de uma longa história, que se
apoiam as ''anormalidades'' que proliferam no país e o distin-
guem das economias que privilegiam a produção. Isto não sig-
\
nifica que não haja na Argentina uma organização de mer-
cado capitalista na produção e na economiaem geral, e sim
que os setores produtivos não conseguiram a hegemonia no
sistema económico global, ao contrario do que ocorre -- pelo
menos até o início da década dos 80 -- nas nações.líderes do
Ocidente. O predomínio histórico dos circuitos comerciais e
financeiros -- através do comércio exterior, do controle dos
mecanismos de distribuição interna, como ocorreu algumas
172
FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLÍTICO.
vezes, do manejo do dinheiro -- impôs uma lógica diferente
daquela que se observa quando a hegemonia da produção se
combina com a concorrência entre os empresários para orien-
tar a economia em direção de uma nova dinâmica económica.
Não ignoramos que formulando estas idéias sacrificamos
a clareza em benefício da concisão. Fizemo-lo para deixar es-
tabelecido de antemão para que direção aponta nossa refle-
xão. Tentaremos agora precisa-la e fundamenta-la. Levando-
se em conta que o que fizemos foi sintetizar os traços essen-
ciais de um fenómeno que se foi gerando através de um pro-
cesso histórico específico, a melhor maneira de esclarecer o
alcance das hipóteses talvez consista em recapitular breve-
mente as fases desteprocessodurante as quais formou-se e
consolidou-seesta forma peculiar de organização capitalista
da economia na Argentina.
2. Gênese e consolidação histórica
+
Em nossa opinião,há três momentoschaves que sucessi-
vamente deram origem, fortaleceram e conferiram seus traços
atuais ao modelo de funcionamento estabelecido na hipótese.
Esses momentos correspondem ao da integração da economia
argentinano mercadomundial -- nas últimas décadas do sé-
culo passado --, ao do fechamento dessa economia -- desde a
crise mundial de 1930até meados da década de 50 -- e ao da
abertura ao circuito financeiro internacional -- desde o final
da década dos 50, com ênfase especial no subperíodo iniciado
em 1976.
1. A integração da economia argentina
no mercado mundía/
e Qformação do modelo (.1880-1920)
A integração da economia argentina no mercado mundial
produziu-se graças a um rápido crescimento da produção e da
exportaçãode grãos e carnes, tirando partido das vantagens
oferecidas pelo pampa amido, uma das grandes planícies tem-
peradas desabitadas do planeta que pede ser explorada du-
rante a segunda metade do século XIX.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 173
}
Assim, em pouco mais de uma geração, ocorreu uma rá-
pida e considerável acumulação de excedenteseconómicosori-
ginados da renda diferencial da terra em escala internacional
que fornecia o pampa. Este é o primeiro fato significativo: a
acumulação de capital na economia não derivava fundamen-
talmente do uso de um recurso produzido pelo homem mas
outorgado pela natureza. O trabalho e o investimento reque-
ridos para põr o pampa em estado de produzir, ainda que não
fossem, de modo nenhum, menosprezíveis, eram entretanto
pequenos em relação aos benefícios obtidos. Para as classes
privilegiadas da época, cujos membros haviam, pouco antes,
repartido grandes extensõesde terras, este fato criou uma
noção implícita de riqueza fácil, devida muito mais ao apro-
veitamento de uma oportunidade do que ao esforçopara ga-
lllld-ld.
Entretanto, este ponto de partida não teria sido suficiente
para gerar o modelo construído em nossa hipótese, não fosse o
papel de mediadores exercido por fatores adicionais. Com
efeito, aproximadamente na mesma época o mesmo fato -- a
renda diferencial da terra em escala internacional -- contri-
buiu substancialmentepara a acumulação de capital em paí-
ses como os Estados Unidos, o Canadâ, a Austrâlia, sem que
sua evolução posterior fosse a mesma da Argentina.
l
O primeiroelementoque acarretou a diferençafoi o sis-
l tema de produção adotado no pampa. Esse sistema provocou
três efeitos que não ocorreram nas planícies temperadas dos
Estados Unidos e do Canadá:
1) conferiu as grandes exploraçõesna eficiência econó-
mica maior em relação às das famílias de colonos,fato que
possibilitou a conservação de extensas propriedades, consoli-
dando uma classe de grandes proprietários e acarretando uma
forte concentração dos lucros e dos excedentes gerados no
pampa; '
(2) Tradicionalmente tem-se postulado que o sistema de produção do tipo
pampa, julgado irracional e por vezes pré-capitalista, deveu-seà existência prévia de
grandes latifundiários graças à repartição inicial de temas lives enfie os membros de
grupos influentes na Argentina do século XIX. Uma série de pesquisas que realiza-
mos durante os últimos anos levou-nosa uma conclusão inversa: foi o sistema de
produção instaurado, plenamentecapitalista e muito racional, que pemiiüu manter e
expandir a concentração da propriedade na região dos pampas.
174 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
2) acostumou essa classe empresarial a, atuando já com
critérios de eficientes empresários capitalistas, variar perma-
nentemente o tipo de produção rural(agrícola ou de grãos) em
função das oportunidades oferecidas pelo mercado. Esta pos-
sibilidade de acomodar-se a circunstâncias mutantes permi-
tia-lhes diminuir os riscos e obter ganhos superiores aos que
podiam obter pelo incremento da produtividade dos fatores:
3) em consequência, desestimuloua colocação dos ga-
nhos obtidos em investimentosprodutivos especializados,fa-
vorecendo em troca a manutenção de ativos líquidos ou semilí-
quidos que podiam alternativamente ser destinados a produ-
ção mais rentável.
Estas características de empresariadorural, cuja impor-
tância deriva do lugar central ocupado pela produção pam-
peana na economia argentina da época, viram-se enorme-
mente reforçadas pelas condições do contexto vigentes por esse
tempo. A concentração de excedentes líquidos consideráveis
nas mãos de um pequeno setor social teria várias consequên-
cias. Além de estimular um consumo suntuário e ostensivo --
\
fenómeno reiteradamente assinalado em descrições e estudos
-- pode articular-se com circunstâncias propícias que acaba-
riam por potencializá-lo. Com efeito, por essa época assistia-
se a um período de crescimento rápido de toda a economia ar-
gentina, impulsionadajustamente pela expansão da produção
pampeana, que abria inúmeras possibilidades para a coloca-
ção dos excedentes líquidos gerados no setor rural. l)esde as
construções urbanas até a nascente indústria, passando pelo
comércio, o banco e as obras públicas, atividades múltiplas
mostravam-se ávidas pela obtenção de fundos com que pu-
dessem se desenvolver. Assistiu-se então a uma rápida diversi-
ficação de atividades por parte de um mesmo núcleo de em-
presários, enquanto reforçavam-se as vantagens de um com-
portamento voltado para o aproveitamento das oportunidades
em detrimento do aumento da eficiência produtiva: na expan-
são febril das atividades urbanas iam aparecendo sucessiva-
mente as vantagens cada vez maiores, e os que podiam apro-
veita-las, deslocando-secom a rapidez conveniente,tinham a
oportunidade de obter excelentesganhos.
Deste modo foi tomando corpo um traço muito particular
da burguesia e do capitalismo na Argentina: enquanto que em
outros países, uma certa especialização produtiva estimulava
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 17S
)
os empresários capitalistas a buscar a maximização de seus
lucros nos momentos de produtividade, aqui, a experiência
cotidiana lhes demonstrava que o mais conveniente era apro-
veitar as oportunidades alternativas abertas por diversas ativi-
dades em vista do que, o mais importante era acumular capi-
r tais suficientemente líquidos. Em outras palavras: mesmo no
interior do âmbito produtivo, o empresário capitalista não es-
+
tava orientado para atuar com o critério de um produtor, mas,
os que corresponderiam antes ao de um comerciante ou finan-
cista.3 O interessante é que, durante o período de integração
da economia argentina no mercado mundial, esse traço não
brecou mas acelerou mesmo o crescimento económico. A ra-
zão era muito simples: como a produtividade do pampa ar-
gentino era comparativamente muito elevada em termos inter-
nacionais, tornava-se muito mais vantajoso ampliar a quanti-
dade de terras em exploração do que aumentar sua produtivi-
dade por unidade de superfície. Por conseguinte, todas as ati-
vidades que direta ou indiretamente estimularam o avanço da
fronteira agropecuária ficaram ''amarradas'' à alta produtivi-
dade relativa da economia pampeana. Tanto o sistema de pro-
l
dução instaurado no pampa quanto a possibilidade de impul-
sionar a produção de bens e serviços colocando com grande
agilidadecapitais líquidos, contribuíam para a ampliação da
fronteira agropecuária com maior eficiência do que teria tido
um sistema económico mais compartimentalizado e rígido.
Como consequência, a expansão da economia argentina foi
mais rápida se comparada com o que se viu, durante períodos
similares, em outros países com ''fronteiras abertas". São es-
(3) Este fenómeno, quanto ao mais, se acomodava a uma série de anteceden-
tes históricos de grande importância no país. A região dos pompas encontra-se na
área de influência de Buenos Abres, zona em que havia predominado uma economia
b
de colheitano interior da qual os setoresmais avançados -- e os mais prósperos e
privilegiados -- estavam vinculados ao comércio dos produtos do país. Foram estes os
setoresque promoveram mudanças na produção rural e que foram-n assenhoreando
das terras lives. E fizeram-no também com critério comercial, isto é, preocupando-se
mais em aproveitar as oportunidades oferecidas pelo mercado internacional do que
com a melhoria da produção. Por essa razão ocorreram mudanças muito violentas e
maciças que de ouço modo seriam surpreendentes: assim, por exemplo, em menos de
vinte anos -- entre 18S0 e 1870 -- assistiu-se à substituição brusca do gado bovino
l tradicional pelo gado oüno, enquanto que vinte anos depois se produziria um movi-
mentoinversoque, em pouco mais de uma década, liquidou milhõesde ovehas para
por milhões de vacas.
 176 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLÍTICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 177

tes traços macroeconómicosque, em última análise, criaram

presários agrícolas, empresários industriais de vários tipos,
condições para os comportamentos microeconõmicos que ten-
comerciantes, financistas, etc.) que fossem levadas a defender
diam a privilegiar as demandas, requisitos e benefícios do ca-
pital comercial e financeiro em detrimento do investimento seus interesses específicos diante das eventuais vantagens que
poderiam tentar obter os demais grupos. Em outros termos,
produtivo, tal como enunciámos em nossa hipótese.
os empresários argentinos apresentariam muito menos divi-
O que ocorreria quando, ao esgotar-se o avanço da fron-
teira agropecuária, não se pudessecontinuar usufruindo a sõesinternas do que as que se verificavam nas nações seme-
lhantes da época ou, dito de modo inverso, uma maior homo-
alta produtividade do pampa em termos internacionais e desa-
parecesse a base macroeconómica desse modelo de funciona- geneidade interna do que a existente nesses outros países. Em
segundo lugar, o modelo de funcionamento favoreceria uma
mento empresarial?
rápida e forte concentração de renda e em seu seio, criando
Antes de examinarmos esse ponto, convém, entretanto, um estado superior em seü ápice que disporia de um formidá-
assinalar algumas conseqüências económicas que resultariam
vel poder económico e de uma poderosa influência política
da internacionalização desse modelo de comportamento 'dos dentro da Argentina.
empresários capitalistas argentinos.
As manifestaçõesmais ostensivasde ambos os traços se
Do ponto de vista económicocabe registiar que os sinais verificariam,por um lado, no surgimento,em pouco tempo,
básicos que indicaram as oportunidadesque se poderiam de grupos económicos de múltiplas faces, verdadeiros ''con-
aproveitar deslocando-secapitais líquidos eram as variações
glomerados'' avazzf/a Zeffre, que ocupariam lugar de destaque
dos preços relativos. Nesse sentido, a forma de funcionamento
nas mais variadas atividades (produção rural, indústria, cons-
instaurada mostrava-sepeculiarmente adaptável a uma eco-
truções públicas e privadas, comércio, banco). Por sua vez, a
nomia submetida a fortes flutuações dos preços relativos, fe-
nómeno que em outros países poderia acarretar graves trans- concentração de riqueza e de poder viria a se manifestar no
aparecimento, também precoce, de um grupo homogéneo,
tornos, por exemplo, no caso em que os empresários capitalis-
tas estivessem amarrados a grandes investimentos produtivos ainda que difuso, que deteria uma riqueza e um poder inco-
cuja rentabilidade ficasse comprometida por esses movimen- mensuravelmente superiores a qualquer outro grupo social na
tos de preços. Correlativamente, os empresários capitalistas Argentina,uma ''oligarquia''difícil de definir mas fácil de
identificar no seio da sociedade e que uma visão demasiada-
argentinos não estavam motivados para amortecer essas va-
riações. Ao contrario, podiam perceber nelas um mecanismo mente simplista supôs ser apenas composta de proprietários
de terras quando, na realidade, imiscuía-seem todas as ativi-
útil para que, deslocando-seconvenientemente, estivessemem
dades económicas.
condições de manter ou aumentar sua taxa de lucros. As duas característicasbásicas desta cúpula dominante
Quanto à sociedadegostaríamosde sublinhar um par diferenciadano interior dos grupos proprietários dariam ori-
de efeitos que nos parecem essenciais. Enquanto o quadro
global gerado pela expansão da economia argentina nessa gem a um sistema de relações políticas substancialmente dis-
tintas daquelas que surgiram nas outras sociedades abertas da
etapa assemelhava-sebastante àquele que se podia encontrar
época e, no futuro, marcariam em grande parte a evolução tão
em outras ''sociedades abertas'' da época (Estados Unidos, diversa observada na economia e na política do país.
Canadá, Austrâlia), quer di:er, o de países nos quais se verifi-
cava uma mobilidade social apreciável e a formação de impor-
tantes setores médios, o modelo de comportamento predomi-
nante entre os empresários conferiu características bastante
diferentes e distributivas aos proprietários locais. Em primei-
ro lugar, porque a diversificaçãodas atividadesempresariais
.impediu a formação de frações nitidamente separadas (em-
178 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLÍTICO.
2. O fechamento da economia argentina
mediante Q substituição
r COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS
de importações (.1930-60)
A ocupação do pampa acabou de se concretizar em torno
de 1920. Os aumentos posteriores da produção agrária não
podiam mais provir da exploração extensiva da terra. O meca-
nismo que prevaleceu por longo período de culminância havia
esgotadosua capacidadee, cedo ou tarde, obrigaria a uma
substituição das bases sobre as quais se assentava a economia
nacional. Curiosamente, esse fenómeno, que marcava o fim
de uma época, permaneceu oculto na raiz dos efeitos imedia-
tos e prementes provocados pela crise mundial de 1929, o fe-
chamento dos mercados do exterior retirou toda importância
ao aumento da produção agropecuária, haja vista que apenas
com sorte podia-se negociar a disponível. As exportações eram
vitais para a Argentina; apenas através delas poderiam ser
pagas as importações dos numerosos bens requeridos por seu
relativamenteamplo mercado interno. Lentamente, a econo-
mia nacional começou a fechar-se sobre si mesma pressionada
pe[as novas condições do mercado criadas pe]a crise e logo
acentuadas pela Segunda Guerra Mundial. Nesta nova etapa,
a satisfação das demandas locais oferecia oportunidades apre-
ciáveis para o surgimento e a consolidação de certas atividades
industriais que foram ganhando importância ao longo das dé-
cadas seguintes.
A industrialização se orientou, quase exclusivamente,
para o atendimento do mercado interno jâ existente e que até
então satisfazia sua demanda recorrendo aos bens do exterior.
A indústria atendia a um mercado cativo no qual a impossi-
bilidade de importar eliminava a concorrência. Não é de ad-
mirar que nessas condições seu crescimento tenha ficado limi-
tado às dimensões do mercado interno existente e com poucos
impulsos dinâmicos a partir daí. De certo modo, o novo ciclo
tendia a repetir as características do anterior. A produção
agropecilária havia crescido horizontalmente, ocupando os es-
paços vazios do pampa; a produção industrial se estendia
atendendo aos espaços vazios do mercado interno deixados
pelo fechamento das importações.
O crescimentoindustrial avançavaramo por ramo. Cada
vez que um deles saturava a demanda do mercado intimo,
estancava, dando lugar a outro. A expansão do conjunto re-
fletia a soma dos avanços esporádicos de curta duração em
179
ramos diferentes que não conseguiam dinamizar o conjunto
da mesma maneira como nos processos clássicos de indus-
trialização.
Outro traço importanteda industrializaçãoargentina
destas décadas consiste em que ela se baseou, predominante-
mente, em grandes empresas oligopólicas. Grandes grupos
industriais, nascido em geral no início do século por obra do
modelo de funcionamento empresarial que estimulava a con-
centração, tomaram a dianteira na ocupação do mercado in-
terno e contribuíram para manto-lo sob um controle relativa-
mente estrito.
O fechamento
do mercadointernoe sua ocupaçãopre-
matura por grandes grupos industriais tendem a conferir ao
crescimentoindustrial um carâter particular. Os preços dos
produtos se fixavam quase que independentemente das estri-
tas regras do jogo que impõe a concorrência; os empresários
industriais tinham a oportunidade de levar seus preços até
captar parte dos excedentesgerados pelo terreno cultivado.
Mais ainda, tal estratégia mostrava-se muito mais rentável do
que a derivada de um possível incremento da produtividade --
como o teria exigido a concorrência internacional para con-
quistar novos mercados fora do país --. Aos poucos gerou-se
assim uma situação na qual os preços relativos e, portanto, as
rendas reais dos agentes económicos, formavam-se em um
mercado distorcido e separado de influências externas. A ''as-
túcia'' e o controle do mercado ofereciam uma base mais só-
lida para a riqueza do que o processode investimentoprodu-
tivo e de inovação tecnológica.
O curioso na Argentina é que esse processonão faliu,
como deu novo alento ao modelo de funcionamento empresa-
rial formado na etapa anterior. Em outros países ''jovens'' da
época, nos quais também havia-se registrado uma rápida ex-
pansão económica graças à ampliação da fronteira agropecuá-
ria dentro de espaços desabitados -- como no Canadá e em
particular na Austrália --, a proteçãoobrigatória criada pela
crise mundial abriu uma oportunidade para que os empresá-
rios industriais consolidassem sua posição e se transformas-
sem, irreversivelmente,nos promotores de uma nova fase de
crescimento a longo prazo. Na Argentina a tendência a operar
180 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
com alta liquideze a implantaçãoprévia dos empresáriosde
''múltiplas faces'' na indústria facilitou, em um primeiro mo-
mento, a mudança de frente para aproveitar as oportunidades
oferecidas a esta atividade por um mercado interno já forma-
do. Mas as mesmas características do nosso contexto, no qual
sucessivamente apareciam vantagens para diferentes ramos da
indústria, demonstrarammais uma vez a conveniênciade
manter-se uma grande liquidez para deslocar-se de um ramo a
outro, ao invés da especialização e da procura do aumento dos
ganhos através da realização de investimentos que aumentas-
sem a produtividade do conjunto.
A permanência e consolidação do modelo de funciona-
mento empresarial, que manifestava a continuidade dentro do
quadro instável gerado pela crise, veio se acrescentar, entre-
tanto, a aparição de um novo elementoque de fato marcaria a
história posteriorda Argentina: a ação do Estado sobre as
condições que demarcam a pratica económica.
Com efeito, a partir destesanos o Estado começou a de-
sempenhar um papel-chave no processo de distribuição de
renda. As necessidades incontornáveis criadas pela carência
de divisas, e a pressão de grandes interesses económicos, leva-
ram-no a controlar, desde o início de 1930, as importações.
Através de tarifas alfandegárias, o fechamento do mercado
interno impedia a aplicação das estruturas de preços relativos
eln vigência nos mercados mundiais. A variação constante de
preços e de rendas anulava a aplicação de um critério ''histó-
rico'', já que cada participante reclamavasua parte do pro-
duto, tomando como base o momento de maior preço relativo
de sua experiência anterior. A consolidação do processo infla-
cionário a partir do pós-guerra não parece alheio a esse fenó-
meno, parecendo mesmo ter colaborado para torna-lo mais
difuso e insolúvel.
Este jogo não se pode repetir ad llq#lzífam. A longo pra-
zo, um lance com tais características só pode encontrar uma
saída atravésdo desenvolvimentodas forças produtivas que
venha a modificar as possibilidades de a economia atender às
demandas setoriais. Mas o pr6priojogo dificulta essa solução.
A incerteza dos preços desestimulava os empresários a investir
em ativos fixos industriais de longa maturação. Esgotada a
etapa ''fácil'' da industrialização substitutiva reapareciam
novamente limitações para seu desenvolvimento posterior, que
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 181
não puderam ser removidas por falta de políticas estáveis e
conseqüentes. O desenvolvimento económico relativamente
lento começou a converter-se em um dado para a Argentina.
Uma outra saída seria a vitória decisivade um setorso-
cial sobre os outros. Os grupos privilegiados tinham capaci-
dade económica mas não a força política e social necessária
para se manter no poder. Os setoresmaioritários necessitam
da organização e do controle do aparelho do Estado para se
impar, mas sempre foram desalojados dele tão logo iniciaram
suas experiências.
O dilema mencionado acabou levando a um novo modelo
de funcionamento da economia argentina. Os setores privile-
giados tentaram diferentes formas de respostas diante das ex
penências que viviam nas frentes política e económica. À me-
dida que não conseguiam impor sua hegemonia sobre a socie
dade foram esboçando e desenhando uma tendência a fugir da
batalha pela renda através de novas formas de canalização dos
excedentes.Inaugurou-se então a etapa de abertura ao cir
cuito financeiro internacional que continua até hoje.
3. A abertura ao circuito financeiro
internacional(.1960- )
Ao contrario do anterior surgido em 1929, o novo cicl
não tem um momento de crescimento tão nítido. As mudan
ças foram-se consolidando de modo gradual e alcançaram su
forma mais acabada de 1975 em diante. Entretanto, o model
se esboça a partir dos traços desenhados desde hâ vários lus
trás
O aspecto que queremos sublinhar reside em dois ponto
estreitamente conectados: as características do modelo ante
rior levaram os empresários a reforçar a prioridade dada a
controle do dinheiro líquido e à saída de capitais do país. Re
correram a essas estratégias a fim de proteger-se dos risco
criados pelo jogo da renda e encontraram simultaneament
stratégias poderosos mecanismos para obter e canal
zar a acumulação de lucros fora da esfera de produção.
De fato, as intensas variações de renda representavam
um alto risco para os setores ligados a estruturas produtiva
fixas. Os empresários ligados exclusivamente à produção d
 182 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLITICO.
certo produto sofreram permanentemente os efeitos cíclicos
das flutuações de preços e de rendas. Por isto consolidou-se
uma corrente que tendeu a canalizar os excedentes como for-
ma de diminuir o risco. Novamente, os produtos rurais e in-
dustriais extraíram lucros e diminuíram investimentos, ten-
dendo a mantê-los na forma mais líquida possível; dessa for-
ma podiam saltar de uma oportunidade de investimento para
outra, em busca das alternativas mais rentáveis em cada mo-
mento e, em última análise, fugir do país exportando divisas
para investi-las em economias mais estáveis.
Cada vez que os grupos privilegiados assumiram o con-
trole da política económica, facilitaram esses movimentos
através das estratégias aplicadas. Desde 1955 tentaram suces-
sivamenteobter a liberaçãodo mercadofinanceiroe a elimi-
nação das restriçõesao fluxo de divisaspara o exterior.' O
privilégio concedido a essas atividades alimentava os movi-
mentos para liquidez em detrimento dos investimentos fixos
em setoresprodutivos.
A escassez relativa dos investimentos tendia a diminuir as
possibilidades de crescimento da economia argentina. A es-
(4) Importa assinalar que o argumento com que desde então se favorece a
abertura ao sistema financeiro intemacional é exatamente inverso ao que anotamos:
insistiu-se, repetidamente, em que faltam capitais no país para se promover um con-
junto de atividades, em particular aquelas que requerem investimentosvolumosos em
certos setores chaves. Obviamente isto está carreto, pelas mesmas razões que expuse-
mos ao descrever o modelo de funcionamento empresarial. O que não está carreto é
que não se tenham gerado, durante as décadas passadas, excedentes suficientes. no
interior da economia, para satisfazer essas necessidades: houve simplesmente acumu-
lação: mas não investimentoprodutivo. E aqui aparece outra tese frequentena qual
também se colocam as coisas ao contrário: a ausência de investimentos produtivos foi
usada, incansavelmente, como prova de que não existia suficiente acumulação de
excedentes, quer dizer, como argumento para se promover a uma redistribuição de
renda contra os setoresassalariados, muito embora nenhumdado indique que o au-
mento da renda dos não-assalariados tenha tido seu correspondente em um aumento
dos investimentos produtivos. Voltando à abertura financeira externa. é sintomático
que se insista, como certa vez disse o ex-ministro da economia Roberto Aleman. em
que "para que os capitais entrem é indispensável deixa-los sair", liberalizando com-
pletamenteos movimentos financeiros para o exterior. Se nos lembrarmos também de
que os grupos privilegiados sempre se representaram como defensores da ordem --
enquanto a instabilidade os favorecia. -- parecia haver certa constância em oferecer
argumentos sob a forma de imagens invertidas à opinião pública. Neste sentido. aos
exemplos mencionados poder-se-iam acrescentar outros, como a proclamada inten-
ção de Martinez de Hoz de "passar de uma economia de especulaçãoa uma economia
de produção", ou a insistência em afirmar as vantagens de um controle ortodoxo e
disciplinado da moeda, enquanto que na prática se faz o contrário.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 183
tagnação incrementava a intensidade das lutas setoriais que se
refletiam na evolução económica e política. Esses conflitos
serviam para convencer os grupos privilegiados das vantagens
de insistir em sua estratégia de fuga para as atividades espe-
culativas. A presença da inflação oferecia novas alternativas
de lucros através da variação dos preços relativos. O círculo
vicioso alcançou o ápice na segunda metade da década dos
setenta, quando esses grupos avançaram profundamente nes-
sa estratégia.
Dentro do modelo que estamos descrevendo, as experiên-
cias económicas posteriores a 1976 não refletem uma mudan-
ça qualitativa no funcionamento da economia argentina. Elas
nâmeno que já se vinha manifestando desde muito tempo e
que chega a sua expressão plena nessa conjuntura graças ao
fortalecimento político obtido pelos grupos privilegiados. A
história não determina o presente mas o condiciona. Os anti-
gos reflexos especulativos da elite permaneciam latentes e em
processo de consolidação, numa sociedade que não conseguia
criar um sistema estimulante para a geração de lucros através
da produção. Em compensação, as condições posteriores a
1976 impulsionaram prodigiosamente as oportunidades de
captação de excedentes através dos mecanismos monetários e
financeiros.
Os aspectos mais característicos do modelo foram a infla-
ção, a variação de preços e renda relativos, a tendência à hi-
rtrofia das atividades financeiras e a crescente intensifica-
ção dos fluxos de divisa para o exterior. Os resultados foram a
tagnação acentuada da produtividade, a deterioração da ren-
da dos setores assalariados e a consolidação dos mecanismos
de funcionamento do modelo.
A inflação argentina é um fenómeno característico. A alta
dos preços internos tem uma velocidade e uma persistência
que a diferencia nitidamente de qualquer outra economia mo-
derna. Durante um quarto de século -- de 1950 a 1975 -- a
inflação registrou uma média anual de 25%o; as taxas de au-
mento de preços oscilaram, no mesmo período, entre um mí-
nimo de 6%oe um máximo de 100%o.O processo de aumento
de preços alcançou um novo patamar a partir de 1975. Desde
então, a inflação registrou uma média anual superior a 200%o,

184 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLITICO.
com um máximo de 800%o e sem jamais cair abaixo de 100%o
ao ano. Não se conhecem outros exemplos de processos infla-
cionãrios com esta magnitude e tal duração.
Com tais características, uma inflação tende a modificar
o comportamento dos agentes económicos e afeta todo o fun-
cionamento do sistema, desde o seu dinamismo até as formas
de repartição da riqueza. Neste sentido, e qualquer que tenha
sido a sua origem, a inflação instalou-secomo um fator pro-
piciador dos aspectos mais perversos da economia argentina
sem que ninguém conseguisse, ou quisesse, elimina-la.
A hiperinflação argentina tem efeitos consideráveis sobre
a evolução dos preços relativos. Ainda que se saiba que toda
inflação exerce tal influência, a experimentada pela economia
argentina é tão intensa que provoca efeitos relevantes. Ã in-
tensificação da modificação dos preços relativos vem se somar
seu caráter repentino; as relações se modificam em proporção
significativa de um dia para o outro em função das atitudes e
estratégias dos agenteseconómicos. Isto provoca, em primeiro
lugar, um ritmo inédito nas transferências de renda. A uma
média de inflação mensal de 10%o,os setores que não podem
modificar seus preços perdem 10%oda renda real a cada mês:
os que podem fazê-lo rapidamente podem ganhar vários pon-
tos por mês. Nos momentossucessivosde aceleração inflacio-
nária essasrelaçõestornaram-seainda mais agudas, dando
lugar a modificações surpreendentes da estrutura das rendas
internas que não chegam a se consolidarplenamente por causa
do impacto sucessivo do contínuo processo inflacionário.
A variação dos preços relativos oferece uma oportunidade
especial para a valorização do capital líquido, capaz de trans-
portar-se de um setor para outro. A compra e venda de certos
bens básicos -- divisas, propriedades imobiliárias e, em par-
ticular, bens duráveis -- gera lucros muito elevados quando se
realizam na época mais favorável de variação dos preços rela-
tivos. A entrada e a saída de capitais em cada um destes seto-
res multiplica os lucros sem produção e orienta toda a estru-
tura de mercado para a captação de ganhos por essa via.
A possibilidade de apropriação de lucros extraordinários
não teria sido, talvez, tão aguda, não fossem as políticas expe-
rimentadas a partir de 1976, que tenderam a estimular a
maior liquidez possíveldo dinheiro em condições de elevada
inflação. A política oficial criou diversos instrumentos finan-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 185
ceiros que operam como se fossem moeda; todos esses bónus
permitem conservar-se o valor -- ao contrario da moeda fidu-
ciária que vê mutilado pela inflação o seu poder aquisitivo -- e
oferecemum meio de se manter a liquidez e concretizara
apropriação de lucros no mercado.
A abertura financeira externa facilitou o acesso das divi-
sas a essejogo e ofereceua possibilidadeda fuga do capital
nos momentos de risco. Ê provável que nenhuma atividade
produtiva no país tenha criado lucros comparáveis aos que
proporcionou a combinação da inflação com o desenvolvi-
mento do mercado financeiro e a abertura do fluxo de divisas
para o exterior.
E óbvio que as novas condições de funcionamento do sis-
tema financeiro internacional ofereceram um apoio considerá-
vel para a aplicação destas políticas e para a colheita dos re-
sultados mencionados. Esta é de fato uma explicação necessá-
ria, mas não suficiente. A integração da economia argentina
no mercado financeiro internacional realizou-se em condições
e ritmos que só se explicam em função da consolidaçãodo
modelo que descrevemos. Não há também nenhuma dúvida
de que essa experiência marcou profundamente os grupos pri-
vilegiados, consolidando atitudes e respostas que terão forte
influência nos destinos futuros do país. Os resultados que ob-
tiveram, em termos de lucros e de facilidade de apropriação
condicionam a evolução do país tanto ou mais, talvez, do que a
experiência do fim do século passado, e apresenta novas difi-
culdades para um desenvolvimento produtivo tão necessário
quanto difícil de executar.
3 O funcionamento do sistema politico
O exame do comportamento empresarial peculiar da
classe dominante argentina, a recapitulação de sua génese,
evolução e efeitos sobre a economia demonstram que o caos a
que se chegou é bastante explicável e mais normal do que pa-
rece à primeira vista. Essa análise, por sua vez, servir-nos-á
para compreender por que e como a instabilidade política que
imperou no país, dissimulada em uma aparência desconcer-
tante, também correspondea uma lógica profunda. Há, a
nosso juízo, quatro questões decisivas a esse respeito.
186 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
1. A tendência a brecar o crescimento económico
e szzas conseqzzenczas
Cessado o impulso externo à expansão da economia ar-
gentina e esgotadas as possibilidades de ampliação de fron-
teira agropecuária, a prioridade conferida pelos empresários
argentinos às atividades comerciais e financeiras sobre as pro-
dutivas tendeu a enfatizar as decisões conjunturais e os lucros
rápidos, bem como, a longo prazo, a brecar o crescimento
económico do país. Claro, muitos outros fenómenos colabo-
raram no mesmo sentido, mas o traço destacadoé singular, e
marca, a nosso ver, a especificidade de cada argentino.
A consequênciafundamental destefato é que deteriora a
própria base de legitimidadedo sistema capitalista, base so-
bre a qual os grupos privilegiados podem construir sua hege-
monia política. Isto porque o intenso desenvolvimentoda ca-
pacidade produtiva -- e o correspondente incremento do bem-
estar geral -- é o fenómeno central a partir do qual se argu-
menta para justificar a posição privilegiada de certos setores e
a distribuição desigual da renda e dos lucros no sistema. A
medida que o crescimento diminui ou é bloqueado, todas as
relações de poder no seio da sociedade começam a se alterar e
os conflitos tornam-se aguçados.
Nesta circunstância a manifestação mais ostensiva é a
luta cada vez mais crua pela distribuição da renda, cujo total
mãl aumenta: todos e cada um dos setorespretendemincre-
mentar sua participação líquida à custa dos demais. A forma
mais comum em que se exprime essa batalha são as variações
dos preços relativos, progressivamentemais abruptas e pro-
fundas.
Nos países capitalistas avançados a emergência deste tipo
de crise estimulou, geralmente, o aparecimento de mecanis-
mos de correção orientados para resolvo-la, não só pelas ten-
sões políticas que gerava, mas também -- e talvez principal-
mente -- porque as flutuações dos preços relativos causavam
prquízos diretos e graves à maioria dos setores proprietários.
Em compensação, na Argentina, a forma de comportamento
peculiar dos empresários permitia não apenas atenuar os pre-
juízos como inclusive, e frequentemente, transforma-los em
lucros para os grupos dominantes. Por conseguinte a procura
de mecanismos para restabelecer o equilíbrio tornou-se muito
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 187
mais débil, incerta e insuficiente, fazendo com que a crise se
prolongasse e aprofundasse a um grau incompreensível para o
olhar de uma outra sociedade. Nestas condições não é de ad-
mirar que se tenha apelado, cada vez mais, para a violência
como método final para controlar e resolver os conflitos; um
método, na verdade, incapaz de corrigir as causas originárias
da crise e que torna inviável a aplicação de qualquer outro me-
canismo que porventura pudesse faze-lo.
2. A homogeneidade da classe dominante
e a crise da legitimidade política
Paralelamente ao fenómeno anterior, e nascido da mesma
origem -- o comportamentopeculiar do empresariado --, a
homogeneidade das camadas mais concentradas dos setores
proprietários argentinos daria lugar a certos traços caracterís-
ticos do sistema político que se somam aos que acabamos de
anotar, ora complementando-os, ora obscurecendo-os.
Anotamos acima como o rápido desenvolvimentocapita-
lista produzido no país a partir do último terço do século XIX
abriu espaçopara a formação de uma sociedadeaberta, na
qual imperava uma pronunciada mobUidade e um alto grau
de autonomia individual. Isto se adequava às exigências pos-
tas pela expansãoeconómicaque ocorria em um território
praticamente desabitado. Em comparação com os países eu-
ropeus e à semelhança dos países ''novos'' da época é possível
afirmar que socialmentea Argentina era democrática, não
obstante a existência de um quase monopólio de governo por
parte de um grupo social reduzido durante quase toda esta
primeira fase. Rapidamente perfilaram-se com força crescente
reivindicações e pressões orientadas para a obtenção de uma
participaçãopolítica congruentecom a nova composiçãoso-
cial do país. Não sem lutas, algumasbastante árduas, con-
seguiu-seimpor finalmente a reivindicação de que os governos
fossemeleitos mediante o sufrágio universal e secreto. Tam-
bém contribuiu para isso a similitude entre a evolução social
que se havia produzido na Argentina e a ocorrida nos Estados
Unidos, modelo das nações jovens da época, similitude que
incitava a considerar quase natural e inevitável a abertura do
188 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLÍTICO.
sistema político. Por isso, uma fiação importante dentro do
antigo governo elitista achou prudente afrouxar as tensõesque
se haviam acumulado e aconselhável sancionar uma democra-
tização política ampla no país.
Entretanto, sob o acúmulo dos conflitos e de pressões que
forçavam à distensão e das semelhanças que iluminavam a
forma de realiza-la, permaneciamna penumbra diferenças
básicas entre os Estados Unidos e a Argentina. A concentra-
ção do poder económico e a unidade multissetorial dos grupos
proprietários dominantes criavam, a nosso ver, condições
substancialmentedistintas daquelas que imperavam em ou-
tros ''países jovens''. Principalmente porque a ausência de
frações proprietárias com interesses diferentes, e portanto con-
flitantes, dificultava a criação de dois ou mais partidos pluri-
classistasno estilo norte-americano, suscetíveisde canalizar,
cada um, alianças que atravessassema sociedade de cima a
baixo e nas quais se agrupassem representantesdos estratos
mais elevados, ao lado de grupos empresariais menores, mem-
bros das classes médias e porções significativas de operários
urbanos e rurais. Inversamente, com a polarização dos confli-
tos políticos em torno da classe dominante e ainda que esta
pudesse ampliar suas bases de apoio cooptando alguns setores
empresariaise da classemédia, era-lhe muito difícil, senão
impossível, deixar de ser minoritária em um regime político
presidido pelo sufrágio universal.
Assim, veio à tona o drama da legitimidadedo poder na
Argentina. Porque, para sintetizarmos, tornava-se evidente
que a disputa pelo governo ficava encenada em uma encru-
zilhada insolúvel. Se se pretendia manter um regime de demo-
cracia restrita, no qual a ''oligarquia'' pudesse assumir politi-
camente seu poder económico, engendrava-se uma óbvia, e a
longoprazo, incontrolável contradição com a vigência de uma
estrutura democrática que, por outro lado, correspondia às
necessidades sociais e económicas da Argentina. Mas se se
admitia que os governosfossem eleitospelo sufrágio livre.e
universal da maioria dos cidadãos, as forças políticas que po-
diam representar os interesses dessa oligarquia -- em razão
mesmo da unidade que ela possuía -- ficavam inevitavelmente
em minoria. O quefazia com queo grupo social e económico
mais poderoso do país ficasse excluído do acesso legal ao go-
verno. Contradição não menos insuperável do que a anterior
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 189
enquanto se mantivessem as estruturas económicas e sociais
que haviam sido criadas.
A resposta histórica a essa situação singular é conhecida:
foi impossível consolidar um regime político legal, único, viá-
vel e universalmenteaceito. Houve então uma alternância de
períodos em que funcionou um sistema democrático amplo de
eleição de governos, seguidos por outros nos quais limitavam-
se as eleições ou os governos eram impostos à força.
Como dizíamos no início, essa questão vem, em parte,
complementar e em parte ocultar aquela que examinámos no
momento anterior. Complementar porque na luta distributiva,
desencadeada pelo lento crescimento econõinico, a confronta-
ção política entre os grupos privilegiados e os setores popula-
res surge claramente à luz: a alternância entre governos livre-
mente eleitose governos impostos quase sempre se associa os-
tensivamentecom políticas opostas de distribuição de renda.
Entretanto, talvez em razão mesmo desta complementa-
ção, a oposição entre esse setor dominante -- visto ontem
como oligarquia e denominado agora de ''pátria financeira''
-- e o povo, toma-se tão notória e deslumbrante que tende a
deixar na penumbra as razões mais profundas pelas quais os
setoresprivilegiados argentinos são incapazes de produzir um
crescimento económico satisfatório.
Acreditamos estar aqui a origem de algumas confusões
bastante difundidas na Argentina. Uma delas, por exemplo, é
a exagerada importância atribuída à influência de interesses
estrangeiros-- primeiro inglesese em seguida norte-ameri-
canos -- para explicar o atraso do país. De acordo com esse
enfoque, a oligarquia argentina teria sido um agente particu-
larmente servil das grandes potências imperiais que tentavam
-- e tentam -- por todos os meios impedir que a Argentina
cresça. Ainda que dotada de grande força psicológica, essa
teoria apresenta todos os inconvenientesde outras que tam-
bém se baseiam em meias-verdades. Não se entende, por
exemplo, por que as classes privilegiadas argentinas tiveram
que ser mais c€1payas'K
do que as australianas ou as canadenses,
(+) (;ibayo: diz-se, pejorativamente, de um soldado índio a serviço de uma po:
tência europeia. Ou, em Cuba, aqueles que serviam no exército espanhol.(N. T.)

190 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
ou por que os Estados Unidos puderam estar menos interes-
sados em brecar o desenvolvimentoindustrial do Japão, Co-
réia, Taiwan, México, Brasil, etc., do que preocupadosem
impedir o da Argentina.
Outra confusão habitual consisteem considerar que a
concentração económica nas mãos de um grupo relativamente
pequeno-- no campo, na indústria, no comércio e no banco
-- provoca por si só uma tendência a brecar o desenvolvimento
económico e a manter o atraso político e social. Entretanto,
existempaíses, como por exemploa Suécia, em que uma alta
concentração da propriedade não se tomou incompatível com
um apreciável desenvolvimento económico, um grande pro-
gresso social e uma sólida democracia política.
A nosso ver, a influência dos interesses estrangeiros tor-
nou-se particularmente perniciosa porque os empresários ar-
gentinos desenvolveram o comportamento peculiar que des-
crevemos, e não o contrário. Foi o que tentamos sugerir, por
exemplo, mostrando a pressão que exerceram para abrir a Ar-
gentina ao sistema financeiro internacional, privilegiando a
possibilidade de colocar os excedenteslíquidos acumulados no
país de preferência a dar efetivo estímulo a investimentos de
capital produtivo (cf. uf szzpra, p. 172). Da mesma forma, a
concentração económica que aqui existe não é uma causa,
mas um efeito do tipo de funcionamento dos empresários ar-
gentinos, e seu caráter nocivo reside em que multiplica e aguça
as conseqüências económicas e políticas de tais comporta-
mentos.
Desde que colocamos nesta perspectiva, torna-se com-
preensível a importância do aspecto seguinte que queremos
examinar: a manipulação do poder do Estado.
3. A manipulação do poder do Estado
Não é esteo lugar para analisar a natureza e o papel do
Estado nas sociedades modernas, nem sequer no âmbito mais
preciso e restrito da Argentina. Queremos apenas assinalar
como alguns aspectosque surgem da análise anterior influi:
ram sobre o papel desempenhadopelo Estado argentino e
quais foram suas conseqüências sobre o sistema político.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 191
Desde a crise mundial de 1930e durante as duas décadas
seguintes, a ação do Estado e o uso de seu poder adquiriram
traços novosem relação à história anterior do país.
Em primeiro lugar, comojâ assinalamos nas pp 170 e ss.
verificou-se que através do Estado podiam-se fixar condições
de funcionamentoda economia(tipos de câmbio, preços, etc.)
que modificavam a distribuição da renda entre diferentes se-
tores produtivos e, correlativamente, entre os distintos grupos
e classes sociais existentes no país.
Logo se comprovou, como também vimos, que esse poder
podia ser dirigido tanto a favor como contra os interessesdos
grupos privilegiados. Por conseguinte, a posse do governo, o
controledo aparelho de decisãoestatal, capaz de distribuir
prebendas e cumprir punições, passou a constituir uma ques-
tão política essencial, não tanto em termos gerais mas em re-
lação aos lucros ou perdas experimentados imediatamente.
O papel central que assim passou a ocupar o Estado na
vida económica, social e política argentina, unido à destrui-
ção das instituições que ditavam as normas e asseguravamo
controle do aparelho estatal por parte da sociedade civil, ou-
torgou aos funcionários estatais uma crescente autonomia po-
lítica, em particular, às Forças Armadas, cuja intervenção
servia para destituir e ocupar governos .
Deste modo foi-se perfilando no cenário político argen-
tino, progressivamente, um novo ator que começaria a acu-
mular poder próprio. Para além da ambigüidade originada na
própria natureza das Forças Armadas e para além da pertur-
bação que introduziram no sistema institucional argentino,
interessa-nosaqui assinalar alguns aspectos da relação que se
criou entre elas e os setoresdominantes.
Antes de mais nada é preciso sublinhar a ambiguidade a
que ficou submetida a oligarquia em relação aos militares. De
um lado, era-lhe indispensávelcontar com eles para destituir
governos eleitos em que não tinha assento. Mas ao mesmo
tempo esse apelo deu nascimento e consolidou -- ao repetir-se
-- uma nova personagem política que iria definindo interesses
próprios e oportunidades opostas aos da classe dominante.
Com efeito, à medida que as Forças Armadas começaram
a exercer poder político não puderam ficar alheias aos proble-
mas que se colocavam a esse poder na Argentina, a começar,
naturalmente, por aqueles gerados pelo lento crescimento eco-
192 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
nâmico. Se os grupos privilegiados não eram capazes -- como
não foram -- de responder à questão, os militares viam-se
obrigados a fazê-lopor sua conta e risco, tanto para justificar
sua intervençãono governo, como -- sobretudo -- para per-
manecer no exercício do poder. E procura-la-iam no único
lugar onde podiam agir, quer dizer, na esfera do Estado.
Não é, então, de admirar que as Forças Armadas tenham
impulsionado a intervenção do Estado na economia, extrapo-
lando de suas funções reguladoras e assumindo uma partici-
pação na produção de bens e serviços. Ao faze-lo entravam em
contradição com a oligarquia, tanto por competirem na distri-
buição da renda nacional e dos excedentesgerados, quanto
por introduzirem nessa disputa um agente económico dotado
de atribuições especiais e privilegiadas para dirími-la.
Assim foram-se acumulando contradições que, ao fim e
ao cabo, acabaram por determinar uma oposição sistemática
dos grupos privilegiados aos regimes militares, juntamente
com uma conspiração contra sua estabilidade. Entretanto,
essa oposição acarretava, inevitavelmente, que os regimes mi-
litares procurassem formar uma aliança com os setores popu-
lares, ou convocassem eleições para designar um novo gover-
no, e, em ambos os casos, aqueles grupos ficavam excluídos.
O curioso é que esta dinâmica também encerrava as For-
ças Armadas em um dilema insolúvel que as impedia de man-
ter-se no governo. Perdiam-no tão logo convocavamas elei-
ções, mas também, decididamente, o mesmo ocorria quando
tentavam uma aliança com os setores populares. Porque, nes-
te último caso, o monopólio da força física que os militares
detinham deixava de ser imprescindível para exercer o go-
verno e com isto seu controle passava, cada vez mais, para a
organização política dos setores populares. A esse respeito a
experiência peronista foi para as Forças Armadas tão instru-
tiva quanto traumática: a controvertida liderança de Perón
dentro do Exército foi suficientepara assumir a liderança de
um grande movimentopopular que, por sua vez, ele utilizou
para revertê-lo em uma forma de controle político pessoal so-
bre as Forças Armadas.
Em outros termos: a oligarquia, que reiteradamente pro-
moveu a intervenção política dos militares, sempre acabou por
tornar-lhes impossível o exercício do governo, enquanto que a
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 193
reversão de alianças operada pelos militares junto aos setores
populares tornou-o desnecessário.
A instabUidade política crónica da Argentina, que afeta
igualmente governos eleitos como impostos à força, parece as-
sim bem compreensível.O resultado se assemelhada, nota-
velmente, a um eterno retorno, não fora a existência inapa-
rente de outra dinâmica mais profunda e dramática. Passe-
mos então para a última questão que completa nosso quadro.
4. A tendência a destruir asformas
de organização social
Na Argentina, o caos económicoproduzido pela instabi-
lidade política prejudica -- a curto ou longo prazo -- a todos,
menos à classe dominante, precisamente por causa de sua for-
ma peculiar de comportamento empresarial, que Ihe permite
auferir lucro nesse tipo de situação.
Esta é uma vantagem fundamental que imprime uma
orientação definida ao processo político, independentemente
dos projetos e intenções explícitos dos agentes sociais partici-
pantes - - incluída aí a própria classe dominante --. Sendo
este o único setor que não sofre prejuízos, a perspectiva do
caos económico não só não obriga a mudar de comportamento
-- reforça-o mesmo -- como ainda outorga-lhe graus de liber-
dade de que os outros carecem e, como se não bastasse, dimi-
nuem
e
Em virtude desta assimetria, a classe dominante vai ga-
nhando poder ao longo do tempo e da desordem. Primeira-
mente porque a instabilidade política e a exacerbação dos
conflitos começaram por romper com as regras institucionali-
zadas dojogo político e acabaram por pulverizar em sua tota-
lidade o tecido das organizaçõessociaisque, direta ou indire-
tamente, intervêm na disputa pelo poder e estruturam o corpo
social. A destruição é muito visível no caso das instituiçõese
formas republicanas de governo -- a organização e desempe-
nho do poder Executivo, o desaparecimento do Parlamento,
a degradação do poder Judiciário --; menos ostensiva nos par-
tidos políticos e nos sindicatos, e quase imperceptível no con-
junto de associações de todo tipo que organizam a vida de cor-
porações profissionais, locais de trabalho e núcleos populacio-
 194 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
naus. Entretanto, todas essas organizações se debilitam, dete-
rioram-se até a destruição quando a instabilidade se prolonga,
quando a violência e a manipulação acabam por erigir-se nos
últimos e únicos métodos para diminuir os conflitos.
No fundo assistimos a um desaparecimento progressivo
-- em meio a idas e vindas -- de todas as formas preexistentes
de controle sobre o exercício do poder. Durante o último quar-
to de século esse fenómeno foi-se tornando cada vez mais ní-
tido na Argentina, até que se tornou patente com o golpe mili-
tar de 1976. A partir daí comprovou-seaté que ponto tal si-
tuação favoreceria a um grupo privilegiado que pode atuar
com um mínimo de empecilhose que desdobroucom toda
força a natureza profundamente especulativa de seu compor-
tamento.
E claro que essesetor não foi um mero beneficiário pas-
sivo deste processo de desorganização social. Ao contrário, se
alguma linha clara surge de sua atuação política -- além dos
projetos positivos que puderam imaginar -- é precisamente a
intensa obra demolidora que desenvolveu. Primeiramente
dentro do âmbito estritamente político, ao exacerbar conflitos
e aprofundarrupturas no resto da sociedade.Assim o teste-
munham, por exemplo, o alento e estímulo que prestou à re-
pressão desencadeada pelo governo militar, circunstância que
criou um profundo abismo político entre as Forças Armadas e
os setores populares.
Paralelamente, prosseguiu com ardor e grande eficácia a
tarefa de desmantelaro poder do Estado, de modo a que se
torne cada vez mais difícil manipula-lo em seu prejuízo e mais
fácil a seu favor. À exceção de uma formidável ofensiva ideo-
lógica empreendida nessa direção, durante os últimos anos
tornaram-se medidas práticas de grande alcance para conso-
lida-la nos fatos.
A mais importante, provavelmente,foi aquela que con-
sistiu em criar -- usando o poder e recursos do Estado -- um
sistema financeiro que retirou dos poderes públicos sua capa-
cidade de controlar a moeda, transferindo essa capacidade
para o setorprivado e os credoresexternosaté reduzir a quase
nada a capacidade de o Estado regular o ciclo económico sem
o apoio de um circuito financeiro altamente concentrado e
com limites pouco preciosos. Assegurados pela vinculação es-
tabelecida com o sistema financeiro internacional, garantidos
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 195
pelo peso de uma enorme dívida externa, que reduz substan-
cialmente a capacidade de manobra dos futuros governos, os
grupos privilegiados passaram a controlar um setor chave a
partir do qual podeminfluir decisivamentesobre a determi-
nação dos preços e a distribuição da renda no pass-
em suma, o que nos importa nesse processo é como a
dinâmica da estabilidade foi destruindo a organização e o po-
der dos demais setores sociais e do próprio Estado, enquanto
permitiu a criação de novas bases de poder para o grupo do-
minante.
Conclusão
A 30 de outubro de 1983 os argentinos elegeram o go-
verno da nação, seu presidente e seus representantes no Parla-
mento. Por toda parte enaltecem-seas vantagens da democra-
cia e a necessidadede instaura-la definitivamentena Argen-
tina. Entretanto, ao mesmotempofica claro para nós -- e é
universalmentesentido -- que frente à oposição dos setores
privilegiados e à presença dos militares, as novas autoridades
terão grandes dificuldades para governar. Sua posição será
mais precária do que a que existiu em 1973, muito mais do
que a de 1963e incomparavelmente mais complicada do que a
que se vivia em 1943.
De nossa parte não temos dúvida de que, nas condições
anuais,a tarefa de instaurar a democracia será infrutífera en-
quanto o funcionamento da economia estiver submetido ao
comportamento peculiar que descrevemos. Examinar como se
deria vir a modifica-lo exigiria outro trabalho e, possivel-
mente, outro espaço.
Entrementes o caso argentino constitui, a nosso ver, um
exemplo caricatural do que pode ocorrer quando as linhas de
comportamento capitalista se afastam levemente do modelo
canónico a que estamos acostumados. Ainda que exagerado,
esse exemplotalvez sirva para prever os riscos que se corre-
riam em outros lugares sempre que apareçam fenómenos deste
tipo e, dentre os quais, não se pode deixar de mencionar os
próprios Estados Unidos, com a particular evolução que esta
experimentando nesta década de predomínio da atividade es-
196 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO

peculativo-financeira sobre sua economia interna com todas

as suas proüeçõesnegativas no âmbito internacional.
Voltando ao nosso tema, só nos resta agora uma questão
final: teremos também incorrido no pecado de soberba ao pre-
sumir que entendemosmelhor o que acontecena Argentina?

O sistemajurídico
argentino diante
das seqüelas do ''processo
de reorganização nacional''
Enrique1. Groisman+

o governomilitar que assumiu o poder na Argentina a

24 de março de 1976 adotou o presunçoso nome de ''Processo
de Reorganização Nacional''. Quase ninguém duvida de que
seus propósitos explícitos não foram alcançados, entretanto,
quando, a 10 de dezembro de 1983, sucedeu-o um governo
eleito democraticamente, sua influência na vida política, eco-
nómica e social não se esgotou. Deixou em todos essescampos
profundas seqüelas, entre as quais nos propomos analisar a
influência que podem ter sobre o futuro institucional estes
anos em que se perdeu a racionalidade do sistema jurídico e
em que se violaram sistematicamente suas garantias.
Em nosso país, a sociedade não sofreu apenas uma restri-
ção temporária dos direitos humanos, das formas de eleição
dos governantese das regras do exercício do poder. Viu uma
comoçãodas bases, dos pressupostosteóricos e dos valores
históricos sobre os quais repousa o sistema constitucional.

(+) Enrique Groisman é pesquisador do CISEA(Centro.de Investi-

gacionessobreel Estado y la Administración) de BuenosAbres:Atualmente
Subsecretáriode Análise'Jurídica e Elaboração Normativa da Secretaria da
Função Pública.

198
O SIS'laMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQÜKLAS.
Não se deveesquecerque foi apenas quando tudo isto
estava alterado, perturbado ou modificado que o governo mi-
litar começou a falar de democratização(entendendo com isto
apenas a convocação de eleição), como se nada tivesse ocor-
rido durante essesanos em relação às garantias individuais, os
modos de exercício do poder e o papel do Estado. Ao mesmo
tempo será preciso lembrar que não se trata hoje de recuperar
uma hipotética situação ideal de plena vigência da democra-
cia, mas de construir uma sociedadena qual esteregime possa
ser sólido e efetivo.
O Estado argentino foi submetido a uma espécie de esva-
ziamento deliberado; o aparelho repressivo foi hipertrofiado,
mas ao mesmo tempo foram desmantelados os organismos de
controle, de inspeção e de arrecadação. Não há dados precisos
sobre temas essenciais; um bom exemplo disto é a dívida ex-
terna -- a capacidade de gestão está seriamente afetada e se
descuidou da formação de administradores públicos. Os fun-
cionários, submetidos durante anos à instabilidade e ao risco
da demissão arbitrária, foram compelidos a tarefas rotineiras
e habituados a declinar de qualquer iniciativa e a se refugiar
no anonimato que facilita a sobrevivência.
l)urante quase oito anos, o ideal do regime com relação
ao Direito foi marginaliza-lo, relega-lo ao papel de legitimados
formal, a uma função instrumental que permitisse governar
Oas que não fixasse limites nem condicionamentos ao exercí-
cio do poder.
Um exemplo eloqüente dessa atitude é a chamada ''lei de
pacificação nacional'', mediante a qual se pretendeu anistiar
os delitos cometidos pelos agentes da ditadura. Lei essa que
não foi editada durante o apogeu do poder, mas em seu ocaso:
antes, bastou a convicção da impunidade, a sensação da força,
a crença na eternidade do regime, a onipotência. Outro exem-
plo: a lei //zextremis que autorizou a censura da correspon-
dência, das comunicações telefónicase dos papéis privados,
bem como a invasão de domicílio sem ordem judicial. Poucos
anos antes, os próprios governantesdo ''processo'' teriam rido
à menção da necessidade de uma lei que autorizasse tais ates,
que, de fato, foram executados sem nenhum limite .
Poder-se-ia objetar à descrição acima lembrando-se que o
''processo'' editou mais de mil e quinhentas leis (mais do que
qualquer governo,de/acto ou de /ure, em toda a história ar-
199
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS
gentina), mas a resposta é que a maioria destas leis o eram
apenas pelo título, carecendo dos caracteres clássicos de gene-
ralidade, previsibilidade e racionalidade, para não falar de
sua função de garantia diante da arbitrariedade.
Dir-se-ia que a concepção básica do ''processo'' consistiu
em imaginar o poder como uma força sem limites, nem jurídi-
cos nem nos fatos, sem se deter sequer diante dos textos cons-
titucionais, que ele reformou ao seu arbítrio em várias oca-
siões, mesmo quando, para a consecução dos fins perseguidos,
isto fosse desnecessário.
Apesar destas alterações da Constituição, o ''Processo''
esqueceu-sede modificar o seu artigo 32, que regulamenta o
procedimentode reforma. Por esta razão, todas as ''atas esta-
tuárias'' posterioresà edição do Estatuto violam a própria
normatividade do regime. Este parece ser um problema for-
mal, ma=elucida um modo de concebero poder.
No mesmo sentido, a Junta Militar editou vinte e duas
leis -- as que levam os números 21.257 a 21.278 -- sem seguir
o procedimento que ela mesma acabava de estabelecercriando
a comissão de assessoria legislativa.
Exerceu também funções judiciais -- não obstante ter
mantido formalmente a independência do poder Judiciário --
através da aplicação do ''ato para considerar a conduta de
pessoas responsáveis por ocasionar prejuízos aos interesses su-
periores da nação
A Junta utilizou as formas jurídicas de modo caótico: di-
tou instruções,normas, resoluções,leis, decretos, atas esta-
tuârias, modificações da Constituição e sanções, sem que o
conteúdo destes ates tivesse relação com sua hierarquia nor-
mativa.
Utilizou indistintamente a mesma forma para atos de
substância diferente e formas distintas para fitos similares.
Editou resoluções em matéria própria de decretos, como a ny
15, que designa os integrantes de uma comissão. Reformou a
Constituição, quando bastaria editar uma lei, ao introduzir a
censura à informação por motivos de segurança durante a
guerra das Malvinas, ou ao editar um estatutopara ''analisar
e avaliar as responsabilidades daqueles que integraram a Jun-
ta Militar e o poder Executivo nacional, no que toca à con-
dução política e estratégico-militar do conflito bélico do Atlân-
tico sul''. (Para maior detalhe, ver Groisman, 1983.)
200 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQÜELAS
Também editou decretos com conteúdo legislativo, como
o no 6, que suspendeu a atividade política, ou o Ro 9, que
proibiu a atividade corporativa.
Aconteceu também de utilizar a forma de lei para atou
administrativos, como é o caso da 21.275, que interditou a
opção para sair do país aos detidos à disposição do poder Exe-
cutivo, ou da 21.270, mediante a qual interveio na Confedera-
ção Geral do Trabalho.
Nem foi coerente na denominação das normas, já que
chamou acta tanto às reformas constitucionais como às ex-
pressões de propósitos sem conteúdo normativo.
A identificação destes diversos atos é caótica, porque al-
guns levam número, outros se inserem por sua data e os res-
tantes precisam ser citados através de uma ampla enunciação
de seus conteúdos. O quadro se completa com uma lei sem
número, que modificou a 21.256.
Tendo-se atribuído o poder onímodo de editar qualquer
categoriade ates, a Junta Militar exerceu, além disso, atribui-
ções que nem ela mesma havia previsto. Assim agiu ao invocar
''as faculdades emergentes de sua condição de poder de /acto''
(comunicado de 21 de outubro de 1982), fato reconhecido por
um dos comandantes-chefesao declarar que existiam decretos
secretos.
Em nenhummomentoa Junta deüou de se considerar
investida de atribuições implícitas, e algumas vezes plasmou
essa crença em textos normativos. A lei 21.257, por exemplo,
conferiu aos seus delegados ''as atribuições e competência que
legalmente correspondem aos respectivos ministérios, inten-
dências e secretarias'', e ''as demais que, porventura, sejam
necessárias para assegurar a continuidade dos serviços admi-
nistrativos nas jurisdições correspondentes''. Outorgou, por-
tanto, faculdades discricionaisem uma matéria que :-' até
mesmo por razões de ordem e de organização -- não pode ser
senão regulamentada.
Em que pese sua vocação por ditar normas, o ''Processo''
nunca se preocupou em demasia com elas: quando a Marinha
e a Força Aérea anunciaram seu afastamentodo governopo-
lítico, e o comandante-em-chefedo Exército designouo presi-
dente da República, permaneceram ignorados os fundamen-
tosjurídicos do ato. Escreveram-setrabalhosdoutrinais para
explica-lo, emitiram-se declarações que convidavam a ''re-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 201
compor'' a Junta Militar, foi até mesmo necessária uma sen-
tença -- diante de uma denúncia de usurpação de cargo --
que dissesse que a designação do general Bignone tinha uma
''certa legalidade''
Apenas meses depois, quando a Junta finalmente se ''re-
compôs'' é que se publicou um Estatuto que dava base norma-
tiva a esse ato e que -- inexplicavelmente -- não havia sido
invocado nem mencionado.
Este é talvez o exemplomais significativo, embora não o
único, haja vista que também não foram publicadas outras
modificações doEstatuto, como os ates nP 6, de 22 de setembro,
de 1976, e o no 69, de 26 dejulho do mesmo ano, de cuja exis-
tência só se veio a saber quando se publicou o texto ordenado,
mais de dez anos depois .
Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas basta acres-
centar que quando a lei 21.323 derrogou a caracterização deli-
tuosa da atividade política, continuaram em vigor o parágrafo
7 do ''Ato para o processode reorganizaçãonacional'' e o de-
creto no 6 da Junta Militar, que a proibiam.
No referido comunicado de 22 de outubro de 1982, no
qual a Junta invocou ''todas as faculdades emergentes de sua
condição de poder de /acto'', ministrou-se uma prova defini-
tiva de que o ''Processo'' considerava-se investido de poderes
extralegais cujo conteúdo ele não definiu e que se confundi-
ram, por conseguinte, com os limites concretos do poder.
Esta concepçãodo poder parece idealizar a ausência de
regras e tender sempre para a arbitrariedade absoluta.
Mesmo no exercício de atribuições arbitrárias -- como a
de detere transportarpessoasdurante o estado de sítio --
o ''Processo'' se superou, negando-se a expor os motivos de
suas decisões. A opção para sair do país -- única garantia
capaz de evitar que a detenção se convertesse em pena -- foi
suprimida por um dos primeiros atou da Junta Militar.
A Corte Suprema designada pelo "Processo'' considerou
essa medida como ''razoável'' em consideração às circuns-
tâncias que o país vivia e ao carâter .transitório da reforma.
Dessa forma, a suspensão do direito devia ser temporária, e, a
lo de setembro de 1977, a Junta decidiu ''tornar sem efeito a
suspensão do direito de opção'' e resolveu criar um sistema de
''liberdade vigiada''. O artigo 5o dessa nova reforma facultou
ao presidente o poder de recusar a opção ''quando, de acordo

202 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS
com seu juízo, o detido pudesse pâr em perigo a paz e a segu-
rança da nação com a permissão de saída do território argen-
tino''
Esta reforma não era apenas incompatível com o sistema
da Constituição: era autocontraditória. Se o detido não podia
pâr em perigo a paz e a segurança da nação, não se entendiam
os motivospara que a sua detençãocontinuasse.Mas o mais
absurdo, entretanto, não é isto, mas sim o fato de que a opção
que parece restabelecer-senão é feita a favor do detido mas
daquele que executou sua prisão.
Muito embora o exercício de faculdades arbitrárias não
acarrete a omissão dos fundamentos do ato para permitir seu
controlejudicial de razoabilidade, o fato é que, todas as vezes
em que a justiça requereu os motivos, o poder Executivo con-
siderou-se desobrigado de manifesta-los, ou fê-lo de modo ge-
nérico, ou invocou razões secretas.
E quando, finalmente, foi editada a lei 21.650 regula-
mentando o direito de opção, as restrições tornaram-se ainda
maiores: só era valido noventa dias após a prisão, e em caso de
recusa era necessárioesperar seis meses antes de reitera-lo,
sem que, naturalmente, o poder Executivo tivesseprazos pe-
remptórios para se pronunciar.
A acusação de ''subversivos'' implicava, para os presos
políticos, abertura de processo. Ao invés disto, o poder Exe-
cutivo preferiu recorrer à faculdade arbitrária de manto-los
indefinidamente presos. Evidencia-se assim, novamente, a
preferênciaem prescindir das regras e dos limites legais, a
reticência em empregar os procedimentos ordinários de acusa-
ção, prova e sentença.
A mesma tendência se verifica também em outras maté-
rias de menor incidência direta e sobre a liberdade individual,
como no caso da função pública.
A estabilidade na função pública está garantida pelo ar-
tigo 14-óü da Constituição nacional. Não obstante, ajurispru-
dência sustentou que era possíve] substituí-].a por uma indeni-
zação, quando razões de serviço a tornassem necessária e sem-
pre que não se constituísse em meio de se aplicar punições in-
diretas.
Pouco importa que essa interpretação fosse discutível, as
leis sucessivamenteeditadas para seu amparo mantiveram
pelo menos o princípio de que a demissão por disponibilidade
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 203
não tinha caráter punitivo e gerava o direito a uma indeni-
zaçao.
A novidade introduzida nesta matéria pelo ''Processo'' --
através da lei 21.274 e suas sucessivas prorrogações por mais
de cinco anos -- consistiu na demissão fundada no fato de
constituir ''um fator real ou potencial de perturbação do fun-
cionamentonormal do organismo'' (artigo 6?, inciso 6o) e de
achar-se ''de qualquer forma'' ''vinculado a atividades de ca-
ráter subversivo ou dissociador'' (artigo 6o, inciso lo) .
Observe-seque estas amputaçõesteriam permitido de-
missõesdisciplinatóriase não arbitrárias, desde que sob a
condição de recorrer-se ao sumário e produzir-se a prova. En-
tretanto, o procedimento de praxe consistiu na invocação ge-
nérica de tais instrumentos, sem se permitir vista prévia ao
interessado nem, é claro, oportunidade para que ele se defen-
desse das acusações.
Irracional ela o foi também ao proibir a readmissão dos
demitidos em qualquer outro organismo -- estadual ou muni-
cipal -- mesmo nos casos em que a acusação alegada fossem
razões de serviço. Deste modo, a disponibilidade fundada nes-
tas razões convertia-se em uma punição, o que desmentia o
único fundamento que -- mesmo discutível -- podia escusar a
norma. Além do mais, e apesar de ter a Corte Suprema decla-
rado inconstitucional essa proibição, o ''Processo'' continuou
a aplica-la.
A predileção deste regime pelos ates arbitrários e sem
fundamento tem como paradigma aquele que foi sustentado
pela municipalidade da cidade de Buenos Abres ao indeferir os
requerimentos de anulação de disponibilidades estabelecidas
por ela. Disse então que ''as faculdades do governo militar,
fundadas na necessidade que a emergência cria, devem ser
proporcionaisà própria emergência.Como elas não podem
ser previstasem sua magnitude, gravidade, duração e natu-
reza, essespoderessão 'discricionários',ficam entreguesà
apreciação que a autoridade militar faz da necessidade e não
aceitam nem podem aceitar outras limitações que não sejam
importantes pela própria necessidade''. ''Na necessidade não
há lei'', diz um velho adágio (veja-se o caso exemplar publi-
cado llzEZ Z)erecto, tomo 86, p. 372).
A fórmula ''discricionário + não fundamentação'' foi a

204 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS.
preferida pelo ''Processo'' não só em matéria administrativa
como também penal.
Assim, a lei 21.259 facultou ao poder Executivo expulsar
estrangeiros-- mesmo com visto de residência -- nos casos
em que eles, pelo critério destepoder, é claro, realizassem
''atividades que afetem a paz social, a segurança nacional e a
ordem pública". O artigo 2o dessa lei dispôs que a expulsão
seria decretada pelo poder Executivo, sendo sua decisão ine-
corrível. Consagrou-se assim uma pena semjulgamento prévio
e sem controle judicial.
Em matéria de leis penais existiu no ''Processo'' a mesma
tendênciaa criar figuras ambíguas,cuja imprecisãoe ampli-
tude permitissem enquadrar quase qualquer conduta que o
julgador quisessecastigar. Assim, a lei 21.264 reprime com
reclusão de até dez anos aquele que ''publicamente, por qual-
quer meio, incitar à violênciacoletiva,e/ou alterar a ordem
pública''. O julgamento deste delito foi atribuído aos tribu-
nais militares, que, além do procedimento sumaríssimo que
aplicam e da severidade que lhes é congénita, são tribunais
''de consciência", ou seja, ''não é obrigatório para o tribunal
castrense dar as razões pelas quais estima assim determinadas
pxawag'ÇFallos de la Corte Suprema de Justicia de la Nación ,
tomo 272, p. 99).
A lei 21.258 agregou ao Código de Justiça Militar um
artigo segundo o qual é possível impor como acessória à pena
de reclusãoou de prisão, a de cessaçãoabsolutaperpétua
''quando seus autores revelem uma posição genérica de rebel-
dia ao cumprimento dos deveres inerentes à nacionalidade''
Assim, não secastiga um fato, mas uma ''posição'' que os juí-
zes militares, sem necessidadede ministrar provas preciosas,
hão de considerar ou não enquadrada na figura tão vagamente
definida. De lei penal, esta norma não tem mais que o aspecto
formal: equivalea um texto que dissessealgo assim como:
''poder-se-á aplicar a pena acessória de cassação absoluta per-
pétua... quando os tribunais militares considerarem apro-
priado''
A insegurança jurídica resultante desta forma de legislar
estendeu-sea outras matérias, como a referenteaos direitos
patrimoniais, afetando a previsibilidade inerente ao sistema.
É eloquenteo que ocorreu com o tratamento dado aos
títulos da dívida pública: primeiro fixou-se um preço para eles
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 205
e uma taxa de reajuste que serviu de base para múltiplas obri-
gações. Repentinamente modificou-se o sistema, criando-se
um caos nas relações contratuais e operando-se transferências
de rendas, empobrecimentos e enriquecimentos especulativos
e, por fim, uma diminuição do direito de propriedade de mui-
tos em benefício de poucos.
Em consequência da política oficial, a moeda deixou de
constituir uma referênciavalida para se comparar o valor dos
bens, o sistema de preços ficou destruído e o Estado perdeu na
pratica a atribuição constitucional que Ihe outorga o artigo
679, inciso 10, da Constituição nacional.
As mudanças legislativas, mais frequentes do que em ne-
nhum momento da história do país, agravaram a insegurança:
a lei de entidadesfinanceiras, por exemplo, foi modificada
três vezes e a de transferência de tecnologia, duas. Por outro
lado, e haja vista que os debates na comissão de assessoria
legislativa eram secretos e as leis editadas sem exposição de
motivos, as razões destas mudanças e contradições permane-
ceram ignoradas.
As práticas viciadas dos órgãos superiores do Estado de-
ram o exemploe suscitaram a imitação da parte dos inferio-
res. Cada funcionário pede acreditar-selegislador e juiz, am-
parado na impunidade que consistia em reivindicar para o
''Processo'' toda a autoridade. Até mesmo em matéria admi-
nistrativa deu-se este fenómeno, que explica como a munici-
palidade da cidade de Buenos Abres pede chegar ao absurdo
de sustentar que suas atribuições para declarar a disponibili-
dade de seus funcionários baseavam-seem ''poderes milita-
res'' independentesde outras regras que não as ditadas pela
necessidade . . .
O estiloautoritáriofoi transportadoinclusivepara a ati-
vidade comercial e industrial do Estado, fazendo preponderar
os critérios de lucro sobre os de serviço. Os institutos de pre-
vidência -- não se sabe se como recurso para recolher fundos
ou como resultado de uma desordem inadmissível -- obriga-
ram sistematicamente seus afinados a pagar qualquer presta-
ção de que não tivessem conservado o recibo, ignorando até
mesmo os prazos de prescrição, demonstrando carecer de se-
gurança própria ou prescindir dela de modo deliberado.
Uma organização administrativa com linhas hierárquicas
duplas ou até triplas, um sistema de competênciasindefinidas
206 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SKQÜELAS.
e atribuições discricionárias, o ocultamento dos ates do poder,
e o exemploda anarquia à testa dele.mesmo, acabaram por
desembocar num sistema que se poderia chamar de ''autorita-
rismo descentralizado''.Esse sistema, baseando-seno princí-
pio de responsabilidade, cria a sensação de impunidade em
cada funcionário público, incita à corrupção e é incapaz de
controla-la quando não a fomenta. Reúnem-se assim as inde-
sejáveis qualidades de um máximo de repressão com um mí-
nimo de controle do poder sobre seus próprios ates.
Ê difícil conceber um poder baseado em tais pressupos-
tos, mesmo em se tratando de um sistema autoritário. A falta
de consenso o obriga neste caso a reprimir até chegar ao ter-
ror, que nunca foi um apoio sólido por muito tempo; requer,
por outro lado, doses cada vez maiores de repressão à medida
que diminui a obediência, aproximando-se de um ponto fron-
teiriço à decomposição.
E por fim a decomposiçãochegoupara o ''Processo'', e a
tal ponto que apenas a convocação de eleições pareceu sustá-
la. Mas chegou depois de ter deteriorado a autoridade presi-
dencial, de ter convertido as Forças Armadas em facções pra-
ticamenteautónomas, de ter adoecido o corpo social com os
germes de dissociaçãoimplícitos em todo poder arbitrário.
Pela via do autoritarismo, o ''Processo'' perdeu autoridade e
levouo país à beira da anarquia. Não é pouco para aqueles
que se sentiram chamados para salvar a nação do caos, nem
para aquelesque devemter na ordem a própria razão da sua
existência.
A pretensão de institucionalizar o golpe militar levou a
uma repartição do poder entre as três forças: Exército, Mari-
nha e Aeronáutica. Por isso, o ''Estatuto'' retirou do presi-
dente o carâter de chefe supremo da nação que Ihe confere o
artigo 86, incisa lo, da Constituição, ainda que tenha deixado
a seu encargo ''a administração geral do país".
A administraçãopública ficou, assim, com uma chefia
hierárquica que não era na realidade o mais alto escalão. Ain-
da que os recursos formais não chegassem à Junta, as vias in-
formais, os pedidos de audiência, as petições, as súplicas efe-
tuavam-se diante dela, e diante de cada comandante-em-
chefe, deteriorando não apenas a organização administrativa
mas o próprio prestígiodo poder.
Os militares designados para os cargos civis tiveram que
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 207
responder a uma dupla linha hierárquica: por um lado, aquela
correspondente à sua função, e, por outro, a inerente à sua
patentemilitar. Até mesmoo presidente,que a partir da re-
forma do Estatuto operada a 21 de novembrode 1978passou
a ser um oficial superior reformado, dependeuhierarquica-
mente de seu respectivo comandante. Este modelo de organi-
zação política chegou à sua expressão mais absurda quando o
comandante-em-chefe do Exército designou, por sua única
vontade, o presidente Bignone, o qual, dessa forma, se viu na
situação de atuar com uma autoridade de empréstimo.
O governo dos estados também foi afetado por essa disso-
ciação da hierarquia, porque ainda que a designaçãodos go-
vernadores coubesse ao presidente, eles estavam submetidos
às instruçõesda Junta Militar (artigo 12o do Estatuto). Poste-
riormente suprimiu-se essa incongruência mas criou-se uma
nova: a Junta assumiu a atribuição de nomear os governado-
res, mas deu ao presidente a de demita-los.
Desde o início, o ''Processo'' pâs em prática a duplicação
das linhas hierárquicas, jâ que um de seus primeiros atos foi
designar delegados seus para os órgãos, que, entretanto, de-
pendiam do presidente como o encarregado da administração
geral do país.
Os inconvenientes deste sistema manifestaram-se desde o
início de seu funcionamento, mas o governo militar -- sabe-se
lâ que estranhas razões o levaram permanentemente a perse-
verar em seus erros e a aprofunda-los -- acentuou suas falhas.
Ao reformar o Estatuto a 21 de novembro de 1978, diminuiu
mais ainda as atribuições presidenciais: privou o presidente
da atribuição de designar os juízes, embaixadores e governa-
dores, impondo-se-lhe para tanto ''requerer o acordo da Junta
Militar'
A deterioração da organização hierárquica e da unidade
nos critérios políticos não surgiu tanto do definhamento da
autoridadepresidencial, quanto do fato de que a capacidade
de decisão foi confiada a uma Junta constituída por represen-
tantes de forças praticamente autónomas.
Os comandantes eram designados dentro de cada arma, e
eram eles quem decidiam as promoções dos oficiais superio-
res. O presidente -- que deixou de ser o comandante-em-chefe
das Forças Armadas -- só tinha a atribuição de ''convalidar'.'
essas promoções (Estatuto, artigo 4', frzá'ne) de modo que
208 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS
cada comandante podia determinar aqueles que viriam a estar
em condições de substituí-lo.
A autonomia de cada arma chegou a tal ponto que a lei
21.256 (artigo 3. 1), ao estabelecer a integração da comissão de
assessoria legislativa, dispôs que seus integrantes ficariam no
cargo ''de acordo com o que cada arma resolvesse''
Esta comissão teve, indubitavelmente, características ori-
ginais: por estar composta de três representantesde cada
arma, ingeriu-seque teria funções deliberativas; entretanto, em
caso de votação, o membro mais antigo assumia ''a represen-
tação de sua força'' (t.o lei 21.256, parágrafo 3.5.2.1.), o que,
além de evidenciar a existência de mandatos rígidos, excluiu a
ideia de debate e a possibilidade de convencer os outros mem-
bros do corpo. Além disso, suas sessõesforam secretas, de
modo que ficou remota a possibilidade de que o complicado
procedimento de elaboração de leis implicasse alguma forma
de moderação ou de controle. Mas, mesmo no interior da es-
treita margem que estas características deixavam à delibera-
ção, a existência, dentro das Forças Armadas, de um órgão
como a comissão de assessoria legislativa contrariava não só o
princípio constitucional da unidade do poder militar, mas
também axiomas clássicos na matéria.
Foram, portanto, diversas as forças centrífugas que o
''Processo'' introduziu na organização do Estado. Até na Jun-
ta Militar, supostacúpula inapelável,cada arma adquiriu um
virtual direito de veto através da fragmentação da assistência
às reuniões. Houve, realmente, o requisito de realizar sessões
com a presença dos três comandantes, porém não foram pre-
vistos os meios para cumpri-lo.
A autonomia virtual jâ insinuada tornou-se real a 22 de
junho de 1982. Nesse dia a Marinha informou que tinha ''re-
solvido, a partir desta data, cessar sua participação na condu-
ção do Processo de Reorganização Nacional''; a Força Aérea
disse que se dispunha ''desligar-se a partir desta data da con-
dução política do 'Processo de Reorganização Nacional' ''
Ambas, entretanto, anunciaram reservar o direito de intervir
nas decisões que consideravam relevantes, sem considerarem-
se obrigadas frente ao poder, que diziam acatar com estas
reticências.
Era praticamentea anarquia, mas não uma anarquia de-
clarada; o governo do Estado não estava em disputa, pelo me-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 209
nos formalmente. O insólito é que se tratou de uma anarquia
''de direito'' (valha o paradoxo numa situação paradoxal por
excelência)porque o poder político ficou nas mãos das três
forças, que se consideravam autónomas e, ainda que reconhe-
cessema uma delas a atribuição de designar e demitir o pre-
sidente, reservavam-se uma cota de poder e um veto virtual.
Esta circunstância, realmente original, ofereceu à ciência po-
lítica, à sociologiae à história o caso de um governode /acto
dentro de um regimede/acto.
A passagem de uma situação como a descrita para um
regime constitucional leva a pensar nas coisas que vão mudar,
no que vai ser diferente. Durante um certo tempo, fatalmente,
deveremosconviver com as seqüelas do ''Processo'' nos usos e
costumes, no sistema jurídico e na administração pública.
O regime militar não se preocupou em demasia com o
Direito até que chegou o momento de convocar eleições.Até
então havia confiado mais na incontestabilidade de sua força
do que no poder normativo que se havia atribuído. Repentina-
mente, lembrou-se de que um de seus objetivos era a democra-
cia; não declinou, entretanto, do uso discricionário do poder;
simplesmente anunciou que tinha-se tornado democrático.
O Direito foi então utilizado para coonestar situações,
relaçõese obrigações. As garantias da ordem jurídica foram
invocadas para consolidar o já feito: direitos adquiridos, auto-
ridade da coisajulgada, irretroatividade da lei foram recupe-
rados para põr óbices à vontade democrática do governo.
O ''Processo'', que dissociou o Direito da força, exer-
cendo esta última sem sujeição àquele, procurou condicionar
juridicamente o poder legítimo para o momento em que a for-
ça deixasse de ser o fundamento da autoridade.
Com este propósito efetuou designações, celebrou contra-
tos, assumiu compromissos, concedeuprivilégios, incremen-
tou a dívida pública e o déficit do orçamento, editou normas e
quis até impor acordos formais para fixar limites a ulteriores
investigaçõessobre seus ates. Com freqüência recorreu ao se
gredo para editar normas ou instruções que atribuíssem com-
petências ou que implicassem ordens aberrantes.
Tal é a teia de situações, de normas e de práticas que dia-
riamente se desenterram, como se fossem objetos arqueológi-
cos, vestígios do passado autoritário que continuam incluindo
no presente.
210 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS

A vontade política de apagar as sequelas deste passado é

necessária, é claro, mas não é suficiente se não se conhece em
detalhe o sistema que se deve mudar. Não se trata de cortar
essateia, mas sim de destecê-la,porquenão é factívelconsi-
derar o passado imediato como um vazio: a negação obstinada
chega, certamente, ao mesmo resultado que a complacência
ou a cumplicidade, porque o aparelho administrativo do Es-
tado e do sistema jurídico revestem-sede características de As fragilidades
da democracia na Fiança:
continuidade -- mesmo na mudança -- cuja natureza torna
improváveis as modificações globais, não porque não sejam
desejáveis, mas simplesmente porque não resultam efetivas.
Isto justifica uma analise retrospectiva, não como um au- O conflito das finalidades
xílio para a história recente, mas comouma contribuição para
o futuro. e as dificuldades do compromisso
Alain Bergouniou)ce Gérard Grunberg+

./\ França pertence incontestavelmente ao grupo das de-

mocracias pluralistas estáveis. A democracia francesa oferece,
hoje, os traços principais do modelo da democracia liberal.
Ela esta, primeiramente, fundida sobre o princípio da sobe-
rania popular, portanto, sobre a tradição democráticapro-
priamente dita que entende por democracia o poder do povo.
O artigo 3o da Constituição de 1958estipula que:
''A soberania nacional pertence ao povo que a exerce por
seusrepresentantes e através do referendo
Mas essa soberaniapopular, fonte de legitimidadedo poder, é
restringida por um quadro constitucional que, conforme a tra-
dição liberal, fixa limites ao poder do povo. Suas outras carac-
terísticas são decorrentes dessa fusão entre as duas tradições.
As instituições permitem a expressão da vontade popular atra-
vés de eleições livres onde os partidos competem em igualdade
de direitos, assegurando assim o respeito pelas liberdades pú-
blicas e privadas. Desse modo, tanto a pluralidade dos inte-

(+) Alain Bergounioux, professor e pesquisador da Fondation Na

tionale des SciencesPolitiques, Paras. Gérard Grunberb, professor e pes
quisador da FNSP, Pauis.
212
AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
ressesquanto a garantia da lei são reconhecidos. Todos esses
traços atestam o parentescoentre a França e a evolução por
que passou o mundo ocidental no século XIX. A originalidade
da França consistiu em tê-los incorporado mais tardiamente
do que os países anglo-saxânicos. A democracia foi instaurada
na França, de modo durável e sob a forma republicana, pelas
leis constitucionaisde 1875 que fundaram a 111República.
De fato, esta se mantevede modo contínuo, se excetuar-
mos o período do regime de Vichy de 1940 a 1944, da derrota
francesa pela Alemanha até a liberação do território nacional.
Em 1946 a IV República foi instaurada. Em 1958sucedeu-a a
V República. Tendo dado o poder real a um presidenteeleito
por sufrágio universal (reformas de 1962), as instituições da
V República dissolveramo regime de Assembléia que funcio-
nará entre 1877e 1940e depois entre 1946e 1958. Com isso
ganhou o regime político francês: reforçou-se, suas bases tor-
naram-se mais sólidas, viu assegurada a estabilidade de seu
governo. Durante vinte e três anos, o general de Gaulle e seus
sucessores, G. Pompidou e V. Giscard d'Estaing, enraizaram
esse regime através de uma prática constante de reforço do
poder Executivo. Foi esse último traço que, incontestavel-
mente, constituiu, para os observadores estrangeiros, a origi-
nalidade da democracia francesa. A força do poder Executivo
contrasta com as concepções anglo-saxõnicas da democracia
pluralista onde a encarnação dó interesse geral no Estado não
é um dado natural.
Em 1981, a chegada da esquerda ao poder contribuiu de
duas maneiras para reforçar a estabilidade do regime político
francês. Este, de uma só vez, provou que permitia e suportava
a alternânciano poder das duas grandes coalizõespolíticas
francesas, alternância que é uma das características funda-
mentais dos regimes democráticos pluralistas. Esta alternân-
cia fez-se acompanhar de uma adesão da esquerda francesa
às instituições da .V República, estas mesmas instituições que,
desde a origem, foram combatidas pela esquerda. Esta adesão
traduziu-se em uma notável continuidade na pratica destas
instituições.
O presidente da República permanece, após 1981, o ver-
dadeiro chefe do Executivo, mas .também da maioria parla-
mentar. Nenhuma modificação digna de nota, da ordem ins-
titucional, afetou a alternância de 1981.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 213
Aderindo às instituições de 1958-1962,a esquerda fran-
cesa fez sua uma adesão que a opinião francesa jâ havia feito.
Republicanos e democratas desde o fim do século passado, os
franceses, pelas votações de 1958 e de 1962, testemunharam
que aceitaram a ruptura institucional provocada em 1958 pelo
general de Gaulle.
A participação nas eleições políticas é elevada e os eleito-
res sufragam, em sua grande maioria, as quatro grandes famí-
lias políticas que, no governoou na oposição, e para além de
suas diferenças,concordam na defesa das instituiçõese das
liberdades essenciais.
Nestas condições, como explicar que a democracia fran-
cesa possa entretanto parecer portadora de uma certa fragili-
dade? Como dar conta do fato de que o debate político seja
tão áspero, e sobretudo de que sejam tão numerosos os pontos
de enfrentamento levando os opositores a uma incessante troca
de processos de suspeição de legitimidade, à tentativa de ex-
clusão do concerto republicano, a constantes apelos à opinião
pública para que testemunhea insinceridade-- por parte do
outro -- do apego aos grandes valores sobre os quais um jogo
político normal poderia apoiar-se? Ejogo não necessariamente
consensual, mas onde a expressão do conflito seria canalizada
por regras universalmente aceitas.
Um sintoma, entre cem outros, deste estado de espírito
permanente foi-nos fornecido recentemente, em novembro de
1983, quando da eleição municipal parcial em Aulnay-sous-
Bois, no subúrbio de Paras, após a anulação do escrutínio que,
realizado na primavera desse mesmo ano, dera a vitória aos
comunistas. Ã oposição de direita cujo lema era ''liberar Aul-
nay da dominação comunista'', o ministro comunista Charles
Fiterman retorquia irado: ''Quando foram liberadas a França
e Aulnay? Foi no tempo da guerra em face do ocupante nazista!
Esta gente quer dizer que os nossoscandidatos são nazistas? E
indecente, intolerável! Esta linguagem não é mais a da demo-
cracias''(Ze ]Wonde, 5.11.83).
Mas essa oposição não deixava por menos. Por exemplo:
fustigandoa esquerdada qual um dos oradoreshavia decla-
rado: ''Aulnay será o Valmy da direita'', ela respondia ironi-
camente pela boca do editorialista do Ze Fixara: ''este orador
nos ensina que os concorrentes de seu candidato são de fato
invasores,inimigosda França e da República reunidas. Não
214 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
sei por quais descuidos do Cartório do Registro Civil os elei-
tores de direita são beneficiados com o título de franceses. E
inadmissível que soldados da Prússia e do duque de Brunswick
possam votar na França'' (.[e Xlgaro, 5.11.83). Poderíamos
ignorar tais declarações, considera-lascomo resultado do es-
quentamento natural dos espíritos que toda campanha eleito-
ral provoca e observar que este enquentamentonão é o apa-
nágio da democracia francesa.
Contudo, estas polémicas são muito sintomáticas da ma-
neira pela qual se desenvolveo debatepolítico em nosso país,
e, nossa história política está suficientementerecheada por
dois séculos de enfrentamento violento e rupturas institucio-
nais, para que possam ser consideradascomo simples decla-
rações de campanhas eleitorais. Elas constituem uma boa
amostra da cultura política francesa, da maneira como é per-
cebida e conduzida a luta política na França. Colocam-nos
diretamente na pista que nos permite a um só tempo procurar
a origem desta cultura do enfrentamentoe tentar compreen-
der por que ela sobreviveaté hoje. Indicam o momentofunda-
dor: a grande revolução de 1789, a derrubada violenta de uma
ordem política e socialpor uma outra. Incitam-nos assim a pro-
curar em nossa história os fundamentos desta cultura política
que se caracteriza por um conflito sobre as finalidades da polí-
tica, de onde resulta esta fragilidade permanente, sem dúvida
menos preocupante hoje do que ontem, da democracia fran-
cesa
A democracia francesa não se caracteriza unicamente
pela existência de um conflito central sobre as finalidades da
política. O regime republicano instalou-se em um quadro
marcado por uma tendência -- muito antiga e muito forte --
à centralização estatal. Nele, a máquina administrativa do Es-
tado reforçou-se, continuamente, a expensas dos corpos in-
termediários e dos interesses organizados desde a instauração
da monarquia capetiana. A democracia francesa foi forte-
mente marcada por esta tradição. Não apenas utilizou-a,
como acentuou seus efeitos. Instalada no interior dos muros
do Estado, ela tirou partido do papel protetor e estabilizador
da administração francesa. Mas, se a democracia francesa foi
protegida pelo Estado, ela herdou, ao mesmo tempo, uma cul-
tura estatal e centralizadora que prqudicou seu florescimento
na sociedade, privilegiando a uniformidade e enraizando o há-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 215
bits do apelo permanente a um Estado tutelar e onipotente.
Isto não favoreceu a organização e o enfrentamento pacífico
dos interesses.
O objetodesta contribuiçãoé o de procurar, nos traços
principais de nossa cultura política, os elementostradicionais
de fragilidade da democracia francesa e o de apreciar os peri-
gos reais que esses elementos de fragilidade constituem no pe-
ríodo anual para essa democracia.
1. A cultura política francesa
e o conflito das finalidades
1. A esquerda e a direita
Cada país tem suas tradições de luta política. E no âmago
desta luta encontramos a representação que cada força possui
de seus adversários. A relação ''amigo-inimigo'' é fundamen-
tal em política. Pode revestir-sede múltiplas formas que to-
davia giram em torno de duas lógicas: uma, em que o adver-
sário é reconhecido em sua existência, ou mesmo em sua legi-
timidade, e outra, em que ele é negado em seu ser político e
social. O enfrentamentopode ser igualmenterude em ambos
os casos, mas, no primeiro, o modo do enfrentamentoé o
compromisso, e a evolução pode se dar pela sucessão de com-
promisso. No segundo caso, o conflito é pensado na perspec-
tiva da aniquilação do adversário, mesmo que esta solução
seja distante e permaneça como prometo.É claro que estas ló-
gicas políticas jamais são puras. Elas levam em conta múlti-
plos condicionamentos. Entretanto, são suficientemente po-
derosas por acharem-se nos fundamentos das culturas políti-
cas modernas. As sociedades européias constituíram-se histo-
ricamenteno fim do século XIX em torno de um conflito cen-
tral onde se opunham o mundo do trabalho e o patronato. As
representações políticas anuais derivam sempre desta oposição
maior, mesmo se o surgimento de outros conflitos vieram a
tornar nossas sociedades contemporâneas menos ''inteligí-
veis'' do que hâ vinte ou trinta anos.
Na França, este conflito central organizou-se no seio de
uma cultura política jâ estruturada, desde a grande ruptura

216 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
de 1789, pelo conflito fundamental entre os republicanos e os
adversários da República. E a especificidade da cultura polí-
tica francesa do século XX advém da maneira como transcor-
reu esta superposição e esta composição entre as duas séries
deconflitos. Ê este o lugar onde devemosprocurar os elemen-
tos de fragilidade, mas também de solidez, da democracia
francesa. E nas relações entre o socialismo e a República que
podemos encontrar uma das chaves do funcionamento do re-
gime político francês.
Convém portanto partirmos da interrogação, a um só
tempo, sobre as formas de institucionalização da República
na França e sobre a cultura política republicana.
Ao longo do século XIX os republicanos combateram,
sem nenhum espírito de compromisso, o adversário monar-
quista, bonapartista e clerical. Tratava-se de destruir este ad-
versário para fundar um regime que permitisse governar os
franceses ''sem deus e sem reí'', para retomar as palavras de
Jules Ferry (Jantes, 1980, 29). O grande problema dos republi-
canos era o de fundar o poder, sem equívoco, sobre a sobe-
rania do povo. Viam nisto uma forma de legitimidadeacerca
da qual não podiam transigir. Foi um combate marcado por
numerosos fracassos e por episódios dramáticos. A vantagem
só se tornou decisiva para os republicanos quando se esgota-
ram as diversas tentativas de monarquia parlamentar e de di-
taiiura bonapartista e ainda quando, depois que, por duas
vezes, em 1848, e sobretudo em 1871, a maioria dos republi-
canos aceitou e mesmo contribuiu para o esmagamento da
insurreição do movimento popular parisiense, cuja origem
remontava às grandes jornadas de 1789. A derrota da Co-
muna de Paris e a participação que nela tiveram os republi-
canos teve uma conseqüência fundamental, que permitiu que
a República se instaurasse solidamente a seguir. Até então,
e desde a origem, o movimento revolucionário e republicano
jamais se decidira claramente por um dos dois tipos de legiti-
midade democrática: democracia direta e princípio represen-
tativo. De um lado, a legitimidade dos representantes do povo,
constituintes ou convencionais podendo conduzir a um regime
representativo, de outro o povo soberano podendo reivindicar
o exercício direto da soberania, o governo do povo pelo povo
(Furet, 1978,86).
Nem Mirabeau, nem a Gironda nem Robespierre quise-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 217
ram ou puderam suprimir essaambiguidade que marcou.toda
a épocarevolucionáriae foi a causa principal da tomada do
poder por Bonaparte.
' Após 1871, e o fracasso do republicano.Gambetta ao re-
pelir a invasão prussiana pelas armas, a maioria dos republi-
canos vai, seguindo Gambetta, aderir a uma política de com-
promisso com a direita parlamentar para fundar na França
um regime parlamentar. Não se tratava, entretanto, entre as
duas partes, de um compromisso sobre os princípios. que per-
maneciam inconciliáveis. Para os republicanos, a votação das
leis constitucionais de 1875 constituiu apenas uma etapa na
realização de seu objetivo central: o estabelecimento da Repú-
blica. A eleição de uma assembleia eleita por sufrágio univer-
sal devia permitir a restauração, na tradição jacobina, da legi-
timidade de uma representação nascida da vontade popular.
Jâ no espírito dos monarquistas, o compromisso de 1875de-
via, ao contrário, permitir, a prazo, a restauração monárquica
na tradição inglesa.
Este compromisso revelou-se, de fato, uma grande vitória
do partido republicano e permitiu nos anos seguintes a estabi-
lização do regime. As eleições de 1877e as de 1881 consagra-
ram a vitória definitiva dos republicanos.
Dois elementos contribuíram sobremaneira para fazer
deste regime uma democracia livre e pluralista. O primeiro
esta ligado ao compromisso de 1875: qualquer que tenha sido
a força do antagonismoentre monarquistase republicanos,
que atingiu seu paroxismo no momento da crise de 18771os
republicanos e seus adversários aprenderam a respeitar .as for-
mas do combate e do trabalho parlamentar. Tornando-se o
lugar principal do conflitopolítico o Parlamento permitiu or-
ganiza lo e canaliza-lo. Tocas as forças políticas. organizadas
submeteram-se à competição eleitoral. O pluralismo político
foi assim, de fato, instituído. A Assembleia nacional tornou-se
o lugar central dos compromissos. O segundo elementopro-
vem da própria cultura republicana que, impregnada pelo
humanismo das luzes, era portadora das grandes liberdades
democráticas características dos regimes livres .
Esta república soube enraizar-se .solidamente. O povo
francês tornou-se maioritariamente republicano. O regime so-
freu e ganhou a Primeira Guerra Mundial. Ele contribuiu
para amorteceros choques, que em outros lugares, na ltâlia,
218 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
na Espanha, na Alemanha, afetaram o regime democrático
entre as duas guerras. Foi preciso a derrota e a invasão de
1940para que ele desmoronasse, para renascer após a libera-
çao
Mas, sobretudo, ele foi capaz de integrar, paulatina-
mente, o movimentooperário que, entretanto, em alguns de
seus componentes, recusava-se a qualquer compromisso com
uma república qualificada de burguesa, e opunha a uma cul-
tura republicana que pretendia, uma vez vencidos monarquis-
tas e clericais, reunir o conjunto do povo francês em torno de
seus valores essenciais, uma cultura de enfrentamento que li-
gava o surgimento da democracia social à destruição da.ordem
antiga e ao esmagamento dos partidos burgueses, republicanos
ou não. Com efeito, a cada vez, os socialistasguesdistas nos
anos de 80, depois, o movimento sindicalista revolucionário
na passagemdo século,e enfim, o comunismoa partir de
1920, recusaram reconhecer-senesta República e combate-
ram-na por algum tempo.
Ora, o paradoxo desta República consiste em que foram
precisamente as mesmas as razões que, de um lado, tomaram
possível esta ''republicanização do movimento operário'' , fa-
tor de estabilização da sociedade francesa, e que, de outro,
encontram-se na origem desta fragilidade que contribuiu para
abata-la uma primeira vez em 1940e depois em 1958 expuse-
ram-na a correr um risco mortal, de que a preservou final-
menteo republicanode razão que era o generalde Gaulle.
Estas mesmas razões subsistem em parte, hoje, apesar da
mudança profunda de regime político ocorrida após o retomo
oder do general de Gaülle. Elas estão diretamente ligadas
à maneira como se constituiu a cultura republicana e como ela
se transformou no fim do século passado e às consequências
que daí resultaram do ponto de vista do funcionamento das
instituições republicanas.
2. A república e a alternância
A cultura republicana é constituída por um conjunto das
representações da sociedade que se elaboraram, em parte, no
transcurso da grande Revolução, em parte, na segunda me-
tade do século XIX, e se cristalizaram para formar o modelo
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 219
do adversário como excluído da nação, modelo este estrutu-
rado na França pela cultura de esquerda, mas também, e não
apenas por um efeito de simetria, pela cultura de direita.
A esquerda francesa, em sua forma republicana, depois
socialista e enfim, desde o ''Front Populaire'', comunista,
sempre fundou seu prometode transformação da sociedade so-
bre uma única estratégia: um povo unido contra um punhado
de adversários. Esses adversários são, de acordo com as épo-
cas, a coalizãoclerical monarquista, os facciosos,os reacio-
nários, os fascistas, o capital. São em pequeno número e, a
um só tempo, desprovidos de consistência social e de legitimi-
dade
A cultura de direita funciona de acordo com um esquema
muito semelhante. Desde a revolução o pensamento urra a
considera ilegítima. Apoiando-se no catolicismo e ainda que es-
boçando alguns compromissos com o espírito do século e com
uma parte dos herdeiros da revolução, o orleanismo e o bona-
partismo na verdade sempre praticaram a exclusão, o pri-
meiro, do movimentooperário, o segundo, do movimentore-
publicano.
Tanto na cultura de esquerda quanto na cultura de di-
reita, o adversárionão é assimilávelporque constitui uma
ameaça mortal para a unidade da nação (Bergounioux et Ma-
nin, 1980;Grunberg, 1983).
Na cultura republicana, que se confunde com a cultura
de esquerda -- mesmo se nem todos os republicanos são de
esquerda, nem todos os homens de esquerda, republicanos --
a recusa de conceder ao adversário toda a legitimidade funda-
se sobre três tipos de razões que estruturam a representação
deste adversário: ele é reacionário, quer dizer, ele tem como
finalidade a destruição da obra realizada pela Revolução e
pela República. Ele defende privilégios que, inconciliáveis
com a idéia igualitária, não tem nenhumajustificação moral.
Ele representa uma ordem condenada pela evolução da huma-
nidade orientada para a felicidade e o progresso, conforme a
filosofia das luzes que esta no coração do humanismo repu-
blicano.
A cultura republicana é teleológica. A evolução da socie-
dade é dotada de sentido: liberação do indivíduo e da socie-
dade, progressodo espírito finalmente liberada do obscuran-
tismo religioso, religião do homem sem Deus. Idade teológica,
220 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
como diria A. Comte, o passado está concluído. Os monar-
quistas e os clericais são as ruínas de uma ordem antiga, con-
denada pela evolução do homem e da sociedade francesa.
Rousseauístapor inspiração, a cultura da esquerda francesa
aposta em um homem capaz de realizar sua felicidade por si
só, por pouco que a sociedade Ihe dê os meios para seu flo-
rescimento. Liberdade e igualdade encontram-se assim indis-
soluvelmente ligadas. Essa cultura postula a possibilidade de
um assenhoreamento consciente da sociedade por ela mesma.
Nestas condições, a ideia de um compromisso durável
com o adversário não tem sentido, jâ que este adversário deve
desaparecer, menos pelos golpes que Ihe assestarão os republi-
canos do que pelos efeitos da própria evolução histórica.
Esta ausência de espírito de compromisso não é apenas o
apanágio dos republicanos radicais e mais tarde dos ''coleti-
vistas". Os grandes republicanos oportunistas, Gambetta,
Ferry, Waldeck-Rousseau proclamam bem alto a necessidade
do combate sem trégua contra os inimigos da República.
Em 1885, J. Ferry ainda pode denunciar ''a inimiga,
verdadeira inimiga, a inimiga implacávelque aí esta: a coali-
zão clerical-monarquista que nunca foi tão perigosa quanto
hoje, quando recolhe suas garras disfarçando-seem oposição
conservadora'' (Jules Ferry, 30 de agosto de 1885, discurso de
Bordeaux,T. 6, p. 35), e ainda: ''os combatesnão acabaram,
é sempre a República que está em causa. E sempre o.mesmo
combate em 1876 como em 1871, em 1881 como em 1877, em
1885como em 1881'' (Jules Ferry, 23 de agosto de 1885, dis-
curso d'Epinal, T. 6, p. 24).
Uma vez que o combate contra a reação ainda não aca-
bou, o ''partido republicano'', que se opõe à ''coalizão
cal-monarquista'', não pode, não deve ceder espaço para uma
pluralidade de partidos republicanos, para uma organização
dos republicanos entre conservadores e progressistas. Porque
apesar das clivagens profundas que separam uns dos outros os
acontecimentos que se sucedem -- crise de 1877, boulangis-
mo, caso Dreyfus -- obrigam periodicamenteà união dos re-
publicanos para salvar a República.
''Não senhores", declara Ferry em 1881, ''não é chegado
o momento para que os republicanos se classifiquem em wÀzgs
e em farias; não, estamos em combate, estamos na brecha,
temos 130cadeiras de monarquistas para conquistar'' (Jules
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 221
Ferry, discurso na Assembléia Nacional, 31 de maio de 1881,
T. 6, P. 59).
O desenvolvimentode uma direita antiparlamentar na-
cionalista e autoritária, que no transcurso dos anos de 30, em
período de crise, far-se-á mais atava e perigosa, permitirá a
reativação deste modelo. O período de Vichy e da resistência
Ihe trará um vigor redobrado. O esquemados resistentescon-
tra os fascistas substituir-se-â ao dos republicanos contra os
monarquistas e clericais.
Em 1958e em 1961,F. Mitterrand e a esquerdao utili-
zarão, por sua vez, contra o gaullismo e os ativistas da Argé-
lia. Ainda e sempre tratar-se-â de defender a República contra
os ''facciosos''
Que lugar pode ter a alternância em um tal sistema de
representação? A alternância com os adversários da Repú-
blica é algo sem sentido. Estes devemser reduzidos. Devem
desaparecer. As eleições far-se-ão, a partir de 1876, em sua
maioria, à esquerda, sobre o tema da defesa da República
a contra as ''200 famílias'', ou os ''facciosos''
A linha de separação entre a esquerda e a direita opõe,
nas representaçõesda esquerda, o legítimo ao ilegítimo, o pro-
gresso à reação, a República aos facciosos. Este modelo apre-
senta uma grande vantagem funcional. Permite de uma só vez
englobar o conjunto da direita, inclusive os republicanos con-
servadores, fazer a economia do debate fundamental sobre os
programase unir em um bloco as diferentescorrentesde es-
querda separadas, entretanto, por grandes clivagens, forne-
cendo uma representação comum do adversário. Desempenha
um papel integrador velando tanto quanto possível os antago-
cleri- nismos profundos, que existem no interior das esquerdas,
transfigurando em ''republicanos'' as mais revolucionárias de-
las. Enfim, permite aos mais moderados republicanos de es-
querda a conservação de sua identidade original, sua filiação
revolucionária e evita-lhes que tenham que se redefinir frente
às novas esquerdas que periodicamente se instalam ao lado
das antigas,relembrando-lhesde sua própria ideologiae de
seus próprios objetivos, instando-as a que cumpram sua pala-
vra, realizado seu credo: a liberação do homem pela subversão
de uma sociedade injusta. Assim acrescentar-se-á um adver-
sário a mais ao monarquistae ao poder: o capital. A Repú-
blica, como a grande Revolução, é primeiro uma dinâmica,
222 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
uma idéia. A República, como a revolução, são, a um s6 tem-
po, realizadas e entretanto sempre a refazer. A liberação do
homem é um movimento contínuo. A felicidade e a igualdade
esta no fim do caminho. Clemenceaupode declarar em 1891:
''Esta admirável revolução pela qual nós somos não acabou.
Ela ainda dura'' (discurso de 29.1.1891, citada em Barral).
Esta dinâmicageraum movimentoperpétuopara a esquerda.
A república é o sinistrismo.
'Michelet, em sua história da revolução, ilustra bem esse
processotomando partido pela Montanha contra a Gironda
aniquilada por ela.'Ele o faz com argumentos que: através de
uma reatualização regular, serão, em incontáveis vezes no
transcorrer de nossa história contemporânea, os dos partidá-
rios de esquerda: ''Ainda que a Gironda tenha sido expulsa da
Convenção por meios ignóbeis, indignos, nós nos.limitaríalnos
a protestar contra essa expulsão, não teríamos abandonado a
Convenção violada, não teríamos quebrado a unidade da
Montanha. Teríamos mantido a fidelidade a ela porque lâ es-
tava a bandeira. Mas, com a mistura entre os realistas e os
girondinos, não se podia mais defender estes senão fortifi-
cando aqueles; todo atcba favor dos girondinos teria sido um
golpe assestada contra a República'' (Michelet: T. 2: 405).
Esse sinistrismo da esquerda francesa impede os republi-
canos hostis aos coletivistasde romper clara e duravelmente
com eles, sobretudo quando estes últimos, como Jaurés, lhes
apresentam o socialismo como a realização natural dos ideais
de 89, o coletivismocomo a realização última da República, e o
capitalismo como o último obstáculo, após a vitória sobre a
monarquia e o clericalismo, à liberação e à felicidade do.ho-
Daí esta dialética permanente da aliança e da ruptura
no seio da esquerdafrancesa: radicais contra oportunistas,
socialistas contra radicais, comunistas contra socialistas.
De modo que os republicanos não coletivistas que não
podem conceber a alternância entre eles e a reação, .não po-
dem, muito menos, concebo-la entre eles e os coletivistas. Não
são os mesmos os ideais e os fins dos republicanos e dos cole-
tivistas? Jâ que a República é um movimento.contínuo:uma
dinâmica, como concederiam fossem os socialistas os únicos
depositáriosdesta dinâmica revolucionária! Como poderiam
os republicanos de esquerda pensar em si mesmos como sendo
unicamente conservadores!
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 223
E já que, de etapa em etapa, os ''coletivistas'' aderirão,
uns após os outros, à República e ao seu modelo de adversá-
rio, introduzindo simultaneamente um fator de clivagem pro-
fundo e fundamental entre os coletivistase os outros, entre
aqueles que estimam que a Revolução está por ser realizada e
aqueles que estimam que elajâ o foi, a questão da alternância
se torna insolúvel. Ou melhor, ela se resolverá no dia-a-dia, no
Parlamento, entre os grupos e os homens, pelo estabeleci-
mento e pela ruptura de alianças, e pela sucessão de compro-
missos nunca definitivos (Odile Rudelle, 1982). Desde então,
a vida política francesa, de -1875a 1958, funcionará em um
duplo registro. Frente ao país, a esquerda conseguirá trazer
para o seu terreno o adversário: a favor ou contra a República,
a favor ou contra os facciosos. No Parlamento, os republi-
canos e logo os socialistas moderados estabelecerão compro-
missos com o centro-direita ou com a direita republicana para
governar e gerir os negócios do país.
Este sistema, que funcionará quaseaté a Primeira Guerra
Mundial, emperrara em seguida. A constituição,quando das
eleições de 1936, de um forte eleitorado comunista e seu re-
forço em 1945tornarão cada vez mais difícil seu funciona-
mento. A exterioridade parcial do fenómeno comunista per-
mitira à direita revirar agora contra a esquerda seu modelo do
adversário fazendo apelo aos republicanos contra os marxis-
tas e os separatistas. O desequilíbrio do sistema será cada
vez mais grave e as oportunidadespara se estabelecerum
verdadeiro regime de alternância democrática cada vez mais
1 1 dçdb .
Enquanto a integraçãodo fenómenocomunistano fun-
cionamento clássico do modelo republicano revela-se difícil, o
regime republicano encontra uma outra dificuldade que se re-
velaria muito grave: o desamor crescente dos cidadãos por seu
regimepolítico. O Parlamento descolavado país. Os compro-
missos nele estabelecidos repousavam sempre menos sobre
uma legitimidade popular e eleitoral. A sucessão, sempre mais
frequente, de governos realizada fora das eleições aumentava
a impopularidade do regime. Os propósitos se tornavam pouco
claros, os programas ficavam no papel, as combinações minis-
teriais. decididas nos bastidores do Parlamento, perdiam toda
lógica política de conjunto. O regime sobrevivia ao preço de
sua legitimidade. Não conseguia mais reduzir os gravíssimos
 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
224
conflitos que afetavam a sociedade francesa após a Primeira
Guerra Mundial. Não engrenavamais com a realidade. Sua
impotência e sua perda de sustentação pela opinião desempe-
nharão um papeltão grande quanto a derrota e a invasãode
1940em sua fácil liquidação pelo marechal Pétain, em favor
de quem a Assembleia havia abdicado de todos os seus pode-
res. As mesmas causas produzindo os mesmos efeitos, quase
vinte anos mais tarde, a V República se autodissolvia em prol
do general de Gaulle. O regime da Assembleia desaparecia
assim após uma existênciade três quartos de século. Ele dei-
xava o campo livre para que um homem bem decidido resta-
belecesseum poder Executivo forte e enfraquecesseos parti-
dos sem destruir a República.
Simetricamente a esta cultura de esquerda, e desde 1789,
organizou-sea cultura contra-revolucionária.Elaborada, co-
mo a cultura revolucionária, no calor da hora e, como ela,
nascida da rupturabrutal de 89, ela também foi uma cultura
do enfrentamento, da recusa e da ausência de compromisso.
A Revolução havia derrubado uma sociedade cujos valores.de
ordem, religião, de hierarquia e de desigualdade ela defendia.
As direitas se sucederam sem chegar nem a se unir, nem a
impedir finalmente o estabelecimentoe o enraizamento da
República. A direita legitimista desaparece como força impor-
tante mas também como cultura política viva no fim do século
passado. Ao lado de uma direita antiparlamentar e naciona-
lista, a direita parlamentar, muito variegada, reorganizava-se
no fim do século, por ocasião do caso Dreyfus, que, graças a
uma poderosa alquimia política, reorganizava para um bom
tempo o campo do combate político. Diante de uma esquerda
republicana, leiga, social quando não socializante? igualitária
quando não igualitarista, desenvolve-seuma direita nacional
quando não nacionalista, católica quando não clerical, ampla-
mente filiada à República e adepta do parlamentarismo. Ten-
tada pelo estabelecimentode um poder Executivo forte ela é
mais zelosa para com a ordem do que para com a igualdade e
define-se anti-socialista e antimarxista. As eleições de 1902,
que em grande parte giram em tomo da questão clerical, con-
cluem o desenho de uma geografia do eleitorado que se reve-
lara, até hoje, de uma grande estabilidade(F. Goguel, 1970,
1981, 1983j. Para essa direita, o socialismoe mais tarde o
comunismo devem ser rejeitados como um corpo estrangeiro à
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 2H
sociedadefrancesa, como um perigo mortal de dissoluçãodo
corpo social.
Na França a alternância não é dificultada apenas pela
permanência de uma cultura política que sempre acaba pola-
rizando as paixões em torno da esquerda e da direita de acôrdo
com o modelo do adversário que nós rapidamente descre-
vemos.
Essas culturas políticas antagonistasadmitiram final-
mente as conseqüências do respeito ao sufrágio universal, e,
em particular, o confronto de uma pluralidade de partidos para
a conquistado poder. Mas sua representaçãode uma socie-
dade reunificada a prazo, uma vez o adversário destruído,
permanece suficientemente fecunda para que seja possível
contestar seu carâter autenticamente pluralista. E verdade
que, à direita, os partidos aceitaram a conquista do poder
pela esquerda em 1981. Quanto à esquerda, seus partidos ade-
riram, um por um, à lógica política da alternância. Mas a difi-
culdade, em uns e outros, de pensar o pluralismo em todas as
suas implicações reaparece a cada instante.
à esquerda, a origem desta incapacidade de pensar o
pluralismo reside neste terceiro estado de 1789 que, tornado
''o todo'', pensava representar sozinho o conjunto do povo.
Ela reside nestes representantes da nação que pretendiam ex-
primir coletivamente a vontade geral, nesta tradição da Con-
vençãoestabelecidaapós o 10 de agosto de 1792, pela qual o
eleito da nação representava o povo inteiro, onde, para reto-
mar as palavras de F. Furet, ''trata-se de saber quem repre-
senta o povo, ou a igualdade, ou a nação'', onde ''é a capaci-
dade de ocupar essa posição simbólica e de conserva-la que
define a vitória'' , e onde, como consequência, o fato de ocupar
esta posição permite legitimar a colocação para ''fora do
povo'', a designação dos inimigos do povo.
A partir do momento em que ''a Revolução instalou esta
simbólica no centro da ação política'': ''é ela e não os interes-
sesde classe que serve provisoriamente de árbitro para os con-
flitos do poder'' (Furet, 1978, 72-74).
Se, como observa B. Manin, o princípio representativoé
uma constituiçãoprópria aos chefesjacobinos que não cons-
tava da herança teórica de que eles se reclamavam, trata-se de
uma concepção da representação radicalmente diferente da-
quela dos liberais parlamentaristas (Manin, 1974). Nesta tra-
226 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
dição, o objetivo central não é o de tentar realizar o melhor
equilíbrio possível dos poderes, ou a melhor.colaboração pos-
sível entre esses poderes. Robespierre o diz claramente: ''Pou-
co nos importam as combinaçõesque abalam a autoridade
dos tiranos. É a tirania que é preciso extirpar. Não é nas dis-
putas de seus mestres que os povos devem procurar a vanta-
gem de respirar alguns momentos, é em sua .própria.força que
é preciso colocar a garantia dos direitos'' (Robespierre, dis-
curso sobre a Constituição, 10 de maio de 93).
O discurso jacobino não constituíra a única herança dos
republicanos do fim do século XIX. Mas, e a história se encar-
regará de manter esse tropismo, a esquerda desconfiará sem-
pre do poder Executivo, do poder ''pessoal' . Para ela, a legi-
timidade reside na Assembléia dos deputados eleitos por su'
frágil universal e em nenhum outro lugar. O pluralismo dos
interessesnão será realmenteintegrado com todas as suas
consequências. Daí a pretensão à universalidade por parte de
cada um dessespartidos, daí sua convicçãode que defendem,
e somenteeles, os direitos do povo ou os de uma classe opera-
ria que, por sua ação, para retomar as palavras de Jaurés,
prefigurava a libetação da Nação.
Isto contribuirá, .como o fará a tradição da Convenção,
para afrouxar o laço que une representantese representados.
Os representantes' não representam interesses particulares,
mas (5interesse geral. Assim sendo, cabe apenas a eles defini-
lo. Com isso a alternânciajâ não tem muito sentido. Pois sua
lógica não repousa no reconhecimento da pluralidade e da
oposição de interesses legítimos?
Também à direita, dos monarquistas legitimistasao bo-
napartismo, e depois ao gaullismo, a reivindicação da unidade
o povo, artificialmente'desfeita pelos partidários da luta de
classes, opõe-sea assumir em todas as suas dimensõeso plu-
ralismo político e social. Que pode significar uma alternância
em que os ''vermelhos'', os ''marxistas'', os ''separatistas''
acederiam ao poder para dar livre curso à sua obra de divisão
e destruição? Daí sua dificuldade em admitir a divisão real da
sociedade e a existência de duráveis conflitos de interesses.
Para de Gaulle, como para Pétain, como outrora para o.legi-
timismo, capitalismo e socialismo são lesivos à unidade do
corpo social. Mas aqui, não é mais a partir das deliberações
de uma Assembléia que poderá ser obtida a vontade geral e
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 227
realizada a reunificação do povo, e sim pela ação de um chefe
legítimo. A nação será reunida pela vitória do Estado sobre os
interesses particulares, pela destruição daquilo que de Gaulle
chamará ''o regime dos partidos''. A longa citação que se se-
gue exprime as concepções profundas do general de Gaulle:
'Se eu estivesseconvencido de que a soberania pertence ao
povo desde que ele se exprime diretamente e em seu conjunto,
eu não admitiria que ela pudesse ser despedaçada entre os di-
ferentes interesses representados pelos partidos. Certamente,
essesdeveriam, a meu ver, contribuir para a expressãodas opi-
niões e, consequentemente, para a eleição dos deputados, que,
no seio das Assembleias. deliberariam e votariam as leis. Mas
para que o Estado seja, como deve ser, o instrumento da uni-
dade francesa, do interesse superior do país, da continuidade
na ação nacional, via como necessárioque o governo prece'
desse, não do Parlamento, ou sqa, dos partidos, mas sim de
uma instância superior a eles, de uma cabeça cujo mandato e a
disposição para querer, decidir e agir derivasse diretamente do
conjunto da nação. Sem isso, a multiplicidade das tendências
que nos é própria na razão de nosso individualismo, de nossa
diversidade, dos fermentos de divisão que herdámos de nossas
desgraças,reduziria o Estado a ser, uma vez mais, apenas um
palco para o confronto de ideologias inconstantes, de rivalida-
des fragmentárias, de simulacros de ação interna e externa
sem duração e sem alcance'' (de Gaulle, 1970, 12).
As novas instituições adotadas em 1958, e, inspiradas por essa
convicção, substituindo um regime de Assembléia agonizante
pol uma espéciede monarquia republicana, reforçaram in-
contestavelmente a estabilidadee a eficácia do regimerepu-
blicano. Quanto a terem feito progredir na França a ideia de
pluralismo e a aceitação plena e integral de uma alternância
que elas entretanto tornaram possível, eis o que é mais duvi-
doso
11. Fraqueza da sociedade,
força do Estado
As dificuldades e incertezas próprias à alternância refle-
tem evidentemente a permanência da divisão existente entre

228 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
algumas tendências dominantes hâ quase .dois séculos, mas
acham também sua razão na importância de que se revesteo
Estado na luta política. Ele é, efetivamente, um premio ümco,
de certo modo a fortaleza que é preciso, primeiro tomar, e, em
seguida, reconstruirsob outra forma. Marx jâ havia notado
esse traço: ''Os partidos que lutaram sucessivamentepelo po-
der consideraram a conquista deste imenso edifício do Estado
como a principal presa do vencedor'' (Marx, 1852, 125). . a centralizaçãonão foi tudo, pois é inegávelque, ao mesmo
A constituição de um Estado nitidamente diferenciado da
sociedade começou na Idade Média. O antigo regime monár-
quico que, durante séculos, veio anexando ao domínio real
províncias que tinham suas instituições e seus privilégios, en-
controu na centralização administrativa o meio apropriado
para governar um território extensoe heterogéneo. Mas ele
teve que batalhar contra a aristocracia e os parlamentosl .man-
ter à margem os corpos intermediários, reduzir os particula-
rismos e tender a concentrar as decisões. Como mostrou vigo-
rosamente Tocqueville, a revolução continuou, sem o saber, a
obra da Monarquia, e o Império a concluiu. Com efeito,. des-
truídas ou abaladasas velhas instituições, o poder central não
encontrou nenhuma resistência capaz de detê-lo. ''A ideia de
formar apenas uma classe de cidadãos teria agradado a Riche-
lieu. Se essa superfície igual convém à liberdade, ela também
favorece o exercício do poder'' (Mirabeau). Quando a revolu-
ção chegou ao fim, Napoleão pede focar o Estado mais forte
da Europa: ''A centralizaçãofoi recolhidaem suas ruínas e
restaurada; e como, ao mesmo tempo que ela se recuperava,
tudo o que outrora pudera limita-la permanecia destruído,
das mesmas entranhas de uma nação que havia derrubado a
realeza viu-se sair, de repente, um poder mais extenso, mais
detalhado, mais absoluto do que o exercido por qualquer um
de nossosreis (...). A dominaçãocaiu, mas o que havia de
mais substancial em sua obra permaneceu de pé; seu governo
morto, sua administração continuou a viver, e todas as vezes
que, desde então, pretendeu-seabater o poder. absoluto, na
verdade o que se fez foi colocar a cabeça da liberdade num
corpo servil ' (Tocqueville, 1856, 318-319). Neste ponto, Marx
partilhava damesma análise: ''Cada interessecomum foi ime-
diatamente destacado da sociedade, oposta a ela como inte-
resse superior, geral, retirado. da iniciativa. dos membros da
sociedade, transformado em objeto da atividade governamen-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 229
tal, desdea ponte, o edifícioda escolae a propriedadecomu-
nitária da menor aldeia, até as ferrovias, os bens nacionais, as
universidades (. . .). Todas as evoluções políticas aperfeiçoa-
ram essa maquina ao invés de quebra-la'' (Mam, 1852, 125).
Estas visões da força do Estado frente à fraqueza da socie-
dade, permaneceram justamente célebres e inspiraram, em
menor ou maior escala, todas as reflexões sobre a França. Mas
tempo, a revolução lançou as bases do individualismo liberal.
Em março de 1791, os decretos de Allarde suprimiram as
corporações, em junho, a lei de Chapelier estabelecia a liber-
dade do contrato e proibia as associaçõesde interesses.Esse
quadro liberal como que circunscreveu as funções do Estado
para tudo que dizia respeito à economia quase até 1914. Mas,
o caráter liberal do Estado não impediu a confortávelpersis-
tência de um Estado administrativo ao longo do século. O es-
tatismo e o individualismo mantiveram relações que precisam
ser explicitadas. A supressão dos corpos intermediários favo-
receu o desenvolvimento da regulamentação pública. De fato,
privado voluntariamentede mediação para atingir os indiví-
duos, o Estadovaleu-sedas regras de princípiouniversale
igualitário. Liberalismo e estatismo coexistiram sob todos os
regimes, uns enfatizando o aspecto liberal, outros, a interven-
ção do Estado. Nenhuma síntese foi encontrada. Tanto menos
podia ser encontrada quanto a instauração durável da Repú-
blica, ao fim dos anos de 1870, fez prevaleceruma tradição
política que estabelecia a lei como a expressão da vontade ge-
ral. ''A política dos republicanos é uma política à moda an-
tiga, por intermédio dos representantes, não é uma política de
limitação do poder como a dos anglo-saxõesou a dos libe-
rais'' (Claude Nicolet, 1982, 357). Com efeito, a tradição re-
publicana, mesmo se incorpora muitas partes do liberalismo,
difere dele. Sempre recusou limitar o poder Legislativo que
confere valor constitucional a uma declaração dos direitos
estabelecendouma corte suprema, juiz dos ates da represen-
tação nacional, como nos Estados Unidos. As únicas garantias
que os republicanos admitiam era o exercício do sufrágio uni-
versal e a educaçãodo cidadão, e, compreende-seque com
mais razão fossem, neste ponto, seguidos pelos socialistas
quando estesassumiriam explicitamenteessa tradição. O Es-
tado francês pede, desse modo, ser caracterizado antes como

230 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
um ''Estado legal'' do que como um ''Estado de Direito'' no
sentido estrito (Carré de Malberg, 1961, 1, 492). Ele pretende
apenas assegurar a subordinação da administração às leis.
Mas, é preciso, além disso, levar em conta a existência de um
direito administrativo original, autónomo em relação ao di-
reito comum, nisto também diferente dos países anglo-saxões,
e que enfraqueceu ainda mais o princípio da separação dos
poderes. A lei de 24 de março de 1872 deu ao Conselho de
Estado um poder jurídico. Pouco a pouco foi-se formando
umajurisprudência em torno da noção de serviço público, en-
tendido como sendo de interesse geral. Ela tornou-se o critério
para a atribuição do regime particular do direito administra-
tivo e conheceuum extraordináriosucessocom a multiplica-
ção das intervenções do Estado no século XX.
O quadro liberal ruiu antes mesmo de 1914. O Estado foi
levadoa estar, cada vez mais, presentenos conflitossociais.
Após a Primeira Guerra Mundial ele se viu empenhado, de
modo irreversível -- 1936 constituiu neste particular uma eta-
pa decisiva -- no movimento económico e social. O Estado
tornou-sea principal arena da coesão social. Com isso cres-
ceu sua legitimidade, mesmo permanecendoo único alvo do
jogo político. Paralelamente, ele adquiriu uma considerável
espessurasocial: em 1914, ele jâ contava, mais ou. menos,
470Q00 funcionários, em 1946, 690000, e, em 1975, o recen.
seamentodo funcionalismo civil do Estado acusava 2 100000
pessoas,ou seja, por volta de 10%oda populaçãoatava(Cb-
hlers Franças, 1980, 24-25). Se a crítica do estatismo é recor-
rente na sociedade francesa, particularmente entre as profis-
sõesliberais, o prestígio da função pública.foi raramente ques-
tionado. Trabalhar nos altos escalõesdo Estado é a forma
mais prestigiada de sucesso social. A Escola Politécnica, a Es-
cola Livre de Ciências Políticas antes da guerra, a Escola Na-
cional da Administração desde então, acolheram e acolhem
primeiramente os filhos da burguesia. A sociedade francesa
jamais foi plenamente uma sociedade industrial: ontem a ren-
da, hoje o escritório, sempre rivalizaram com a livre inicia-
tiva. e não sem sucesso. É pois forçoso reconhecer que o Es-
tado central, apoiado sobre uma numerosa administração,
que, por vezes, o contesta ideologicamente, mas que com
maior freqüência o serve, permaneceu o elemento estável ao
longo de todo o período que vai da revolução de 1789 até hoje.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 231
Portanto, é o papel essencial desempenhado pela maquina es-
tatal, na direção políticae na regulamentaçãosocial, que ca-
racteriza a variante francesa da democracia liberal represen-
tativa. As consequências que daí resultam para a natureza da
democracia são, evidentemente, decisivas.
Comparada com outros países europeus, a auto-organi-
zação da sociedade francesa é fraca. Isto é verdadeiro para as
organizações tradicionais -- sindicatos, patronais e operários,
divididos, dotados de fraca coerência interna -- e para as
novas associações que defendem os consumidores e a quali-
dade de vida. O setor agrícola e o setor docente constituem,
desde os últimos cinqüenta anos, suas exceçõesnotáveis. Mas
deve-senotar que esses grandes sindicatos se vêem direta-
mente às voltas com o Estado em suas negociações.O único
regime político que tentou organizar comparativamente a so-
ciedadefoi o ''Estado francês'' de Vichy, mas ele o fez a partir
da derrota, de modo autoritário, e exerceupouca influência
fora do mundo rural. Este simples fato, a ausência de agentes
sociais poderosos e coerentes, a falta de lugares e de instâncias
de confrontação, torna incómoda uma democracia participa-
tiva independenteda ação do Estado. Essa dificuldade é redo-
brada por um conjunto de disposições sociais e culturais igual'
mente pouco propícias ao reconhecimento recíproco dos gru-
pos sociais e portanto ao dialogo entre eles. Com efeito, a
França foi profundamente marcada pelos violentos enfrenta-
mentos diretos que balizaram o século XIX e os quatro anos
da ocupação, onde uma guerra civil acompanhou a guerra es-
trangeira. Daí decorre, de uma só vez, uma tradição de anta-
gonismo virulento, .mas também um medo do conflito frontal.
As relações sociais se constroem evitando o face-a-face. Cada
uma das grandes forças sociais que, com a revolução indus-
trial, constituíram, pouco a pouco, a polaridade conflitual da
sociedademoderna, a burguesia e o operariado assalariado
procuraram impor seu poder por uma superioridade incontes-
tável que dissuadisse a outra de recorrer à prova de força, mas
que a mantivesse afastada das decisões. A burguesia manteve
sua dominação por muito tempo graças a um sistema de alian-
ças com o campesinato, a pequena burguesia tradicional, em
distintas combinações, para não compor com a classe opera-
ria. Essa atitude levou a esquerda, quando ela realmente pro-
curou ganhar o poder, a adotar uma mesma estratégia de iso-
232 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
l
lamento em relação à burguesia. Tudo se passou como se os
dois adversários se recusassem à própria ideia de compromis-
so, esperando sempre poder achar apoios adicionais para
evita-lo. Assim, havendo escassa visibilidade de interesses di-
vergentes em confronto, a intervenção administrativa tirou
sua força e sua necessidade da ausência de negociação direta
entre os grupos sociais.
A consideração destesdois fenómenos, a fraca auto-orga-
nização e o não-reconhecimento, que são igualmente a causa de
um quanto o efeito do outro, explica a persistência de um ''es-
tilo de autoridade'' que confere amplo espaço à ''autoridade
rotineira'' na maior parte do tempo e prepara a influência de
uma ''autoridade heróica'' nas crises nacionais. E o estilo de
não-participaçãoque não somenteprovoca uma escalada fí-
sica dos conflitos, como também perpetua os aspectos ideoló-
gicos tradicionais de alguns deles, quando, há muito tempo,
desapareceramas bases sociais originais dessas ideologias
(Stanley Hoffmann, 1974, 203). Por outras palavras, a socie-
dade francesa teve, até aqui, uma tendência a viver seus con-
flitos de modo exaltado sobre o plano político. Na prática, e
no detalheda vida social, para não tornar a coexistênciaim-
possível, foi preciso frequentemente decidir esses conflitos pelo
jogo das influências sobre uma administração poderosa. A
concepção republicana da democracia, toda política, acabou
acomodando esse sistema de gestão dos conflitos. Stanley Hof-
fmann pâs, claramente, em evidência a simultaneidade do
apelo ao Estado e da revolta contra o Estado, que contribuiu
para foliar um cidadão que espera muito do Estado e repugna
a negociação direta e o empenho pessoal. Os militantes, polí-
ticos e sindicais permanecem uma pequena minoria que tende
a se profissionalizar cada vez mais. O movimento social acha,
freqüentemente, sua expressão em uma ''contestação perma
nente'' que favoreceu as correntes antiparlamentares até 1958
e que, em suma, defende soluções autoritárias. A democracia
francesa carece de um enraizamento sólido em estruturas in-
termediárias numerosas, aptas à negociação entre si para faci-
litar as adaptações sociais.
As relações profissionais refletem, de modo privilegiado,
essa contradição que, incontestavelmente,torna, senão mais
frágil, ao menos inacabada a democracia. O sólido cresci-
mento do segmento assalariado industrial, desde o fim do sé-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 233
cujo XIX, não obteve reconhecimento antes de 1936, momento
em que se evidenciou,enfim, que a ordem não podia mais
permanecer fundada sobre uma equivalência entre a liberdade
e a propriedade. Mas, nesse ínterim, uma cultura havia sido
modelada. Michelle Perrot mostrou em Ozzvrlersen Grave que
o patronato não apenas combateu os sindicatos nascentes.
como preferiu, freqüentemente, ''a ação sobre o aparelho do
Estado'' (M. Perrot, 1974,683) em nome de uma concepção
da ordem pública. Quanto aos operários, eles, rapidamente,
utilizaram a greve como meio de pressões, enquanto, uma vez
realmente instalada a Terceira República, eles se dirigiam aos
representantes do governo para que arbitrassem a seu favor. A
hostilidade do sindicalismo revolucionário ao Estado não pâs
fim a essa prática. Desde o fim do século XIX as autoridades
públicas intervieram, cada vez mais freqüentemente, nos con-
flitos do trabalho. Os litígios passaram então a se desenvolver
no plano do direito e não no da negociação. Os acordos cole-
tivos, admitidos em 1918, depois do esforço de guerra, caíram
em desuso uma vez evidenciada a derrota operária da prima-
vera de 1920, ressuscitaram no momento do Xronf .l)opu/abre,
mas foi apenas com a lei de fevereiro de 1950 que começaram
a se tornar uma prática real. Mais perto de nós, os contratos
salariais, inaugurados em 1969, na ''Nova Sociedade'' do go-
verno Chaban Delmas, não modificaram profundamenteo
sistema das relações sociais. Assim, as relações profissionais
foram caracterizadas, desde a segunda metade do século XIX,
por um círculo vicioso, onde o patronato luta contra sindica-
tos maioritários que querem repor em causa os princípios da
economia de mercado, e os sindicatos invocam a atitude hostil
do patronato para justificar sua crítica fundamental. Todas as
etapas que marcaram o reconhecimento da presença sindical
na empresa foram o resultado de crises nacionais: 1936. os
delegadosdos operários; 1945,os comités de empresa; 1968,
as seções sindicais de empresa. Em 1981, as ''Leis Auroux'' só
se tornaram possíveis graças à vitória política da esquerda.
Assim é que G. Adam e J. D. Raymond têm razão de estatuir:
''(...) os sindicatos e os empregadores não desnaturaram, ao
longo dos acontecimentos, um modelo preexistente e ideal da
negociação e do conflito. Jamais houve, no modo anglo-saxão,
uma articulação institucional e quase automática entre a greve
e a negociação, entre a negociação e o acordo, entre o acordo e a
234 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 235

geral, é, não somente, a forma principal de gestão dos negó-

cios públicos, como também dos compromissos sociais. Sob a
Terceira República o Parlamento foi o lugar onde eles se con-
cretizaram. A administração desempenhou um papel mais sa-
liente sob a Quarta República, impotente diante dos desafios
que ela não soube dominar. A Quinta República assistiu ao
triunfo de uma ''arbitragem poderosa'' (A. Malraux), e consa-
grou, de modo decisivo, o poder e a influência da administra-
ção. O gaullismo, que recusava a legitimidade do choque dos
interesses e de sua expressão pelos partidos, quis que o Estado
impusessesua lei ao Parlamento, aos partidos, aos inteipsses
particulares. O Estado.gaullista, é certo que estabeleceu rela-
ções privilegiadas com os meios empresariais, mas sua prática
foi voluntarista, e, no interesse deles, forçou-os a aplicar uma
política de modernizaçãodas estruturas da economia. A crí-
tica do Estado onipotente foi(é sempre) um tema de apreço da
direita liberal e da esquerda socialista. Mas os impostos re-
tidos na fonte continuaram a crescer durante os sete anos em
que os ''novos orleanistas'' estiveram no poder. A esquerda,
quando exerceu o poder, não obstante sua vontade afirmada
de democratizar o ''aparelho de Estado'', não somente o ge-
riu, como ainda reforçou seus meios e aumentou sua legitimi-
dade realizando as nacionalizações, em 1936 no momento do
Fronf Popa/abre,em 1944-1946na liberação, e, enfim, após a
vitória eleitoral de 10 de maio de 1981.
Nada há portanto de surpreendenteem que as tensões
sejam lidas através dos princípios gerais. Com isso, a força do
Estado dramatiza as escolhas que os cidadãos têm que efe-
tuar. Isto jâ ocorria sob um regime parlamentar, e ocorre mais
ainda sob um regime presidencial. A esperança da mudança
política, num ou noutro sentido, mantém a distância entre os
grupos sociais, protegendo-os do enfrentamento, mas não
contribuiu de modo nenhum para mobiliza-los em prol da
ação cotidiana. Isto não apresenta inconvenientesapenas para
a eficácia do Estado. A fraqueza da sociedadecivil, quejusta-
põe alguns grupos de interesses relativamente integrados no
Estado e grupos mais contestatários, mas também mais dis-
tante das instâncias de decisão, menos consultados, impediu
que se constituísse realmente na França uma situação neocor-
porativista, que multiplicasse os óbices à ação dos estados. É o
que testemunha com clareza a continuidade dos governos da
236 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
V República quanto a questõestão importantes quanto a polí-
tem seus limites.
In. A democracia francesa
depois da alternância de 1981
A alternância de maio de 1981 é a primeira ocorrida des-
de a fundação da V República. Nessa data a esquerda ocupou
o poder. Essa altemânciaproduziu-seem.meioà calma. Que
cracia francesa? A Fiança inclui-se, de agora em diante, entre
sociedade?
1. A alternância do 10 de maio de 1981
e o sistema institucional
A ruptura institucional de 1958marcou um momento de-
cisivo da história política da república francesa: Esta achava,
enfim uma oportunidade
para estabilizar-se.
Mas a.hostili-
dade da esquerda e da direita parlamentar às instituições
acarretava o sério risco de privar essas instituições.do con-
senso necessário a um jogo normal de alternância democrá-
g me democráticopluralista devepoder suportar, sem choque
nempreluízo,aprovadaalternância. . ..
Se pudemos assistir, no transcurso. üos anos /u, a uni
ocesso regular de adesão das forças políticas ao regime da V
República, esta adesão nem sempre foi acompanhada, em
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 237
particular à esquerda, de uma reflexão nova sobre a questão
institucional. Ela se efetuou de modo tácito, silencioso, con-
traditório. Acrescente-se que a significação da alternância (O.
Duhamel, 1980) ocorrida a 10 de maio de 1981 não era ime-
diatamentedada. Os três anos que se seguirampermitem
pensar que as conseqüênciasque resultaram dessa'alternân-
cia, do ponto de vista do funcionamento do sistema político
francês, permanecem contraditórias, ainda que a tendência
principal pareça favorável à continuidade.
presidente socialista, que ainda podia escrever em
1980, poucos meses antes de sua eleição: ''O que ponho em
causa é realmentea monarquia. Chegará o dia em que para
reunir os franceses será preciso gritar-lhes: Viva a República"
::!:E IREI
l IE$ :
(F. Mitterrand, 1980, 120), declarava a 2 de julho de 1981,
F. Mitterrand, dispondo de uma maioria absoluta na As-
sembléia nacional, adotou uma prática das instituições que
descendeem linha netada de seus predecessores.É o primeim
presidente socialista, mas é igualmente, sem dúüda, o quarto
presidente da V República. A Presidência permanece o lugar
verdadeirodo poder do Estado. Não se manifesta nenhuma
ruptura com a prática anterior que fazia do presidente, eleito
por sufrágio universal, um monarca republicano .
Do lado do partido comunista, sua participaçãono go-
verno parece ter concluído o lento e difícil. processo de acei-
tação da lógica da alternância. Assim é que ele declarava sole-
nementea 18 de outubro de 1983: ''Trata-se de respeitar em
todos os casos, sem a menor exceção, a vontade da maioria
dos cidadãos, desde que ela é expressa pelo sufrágio universal.
Trata-se de respeitar a alternância democrática quando ela
sobrevém. Em nossa históriajá tivemos bastantes guerras ciüs
ou religiosas. A experiência universal ensinou-nos, suficiente-
mente, o que custam aos povos as sedições e os enfrentamen-
tos violentos Trata-se de desarmar os ódios, não permitir que
se cne uma sociedade onde ninguém escuta ninguém, favore-
. cer, sempreque possível,o diálogo, a concordância, a partici-
pação'' (Z 'Humanffé, 19. 10.1983, 3). ' '
Poder:se-ia então pensar que o conflito acerca das insti-
tuiçõesesta, enfim, encerrado; que de hoje em diante não há
 COMO RENASCEM AS DEMOCRACHAS 239
238 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
desde a vitória de 1981, adotava o hábito de qualificar de ''an-
tigo regime'' o septenário precedente, como se procurasse se
convencer de que a legitimidade de um regime institucional
está ligada à cor política dos homens que nele exercem o po-
der. ''Finalmente a luta de classes entrou no Palácio Bourbon,
alegrava-seabertamente um deputado socialista no outono de
1981'' (.[e .A4ozzde,3.2.82, 7), enquanto que o presidente do
grupo socialistapunha em causa as decisõesdo Conselho
Constitucional, o qual concluíra pela anulação de algumas
disposições legislativas votadas pela nova maioria, declarando:
''Nós representamos o povo, ele (isto é, os membros do Conse-
lho Constitucional) representam a maioria de outrora'' (16.1.
82). O próprio líder do PS, Lionel Jospin, estimava no mesmo
momento que ''as grandes correntes de reforma jamais se dei-
xaram deter por uma corte suprema fosse ela o que fosse'' (.Le
Monde, 23.10.81).
Esses exemplos mostram que, se a alternância de 1981
constitui uma etapa decisiva para um consenso entre as gran-
des formações políticas acerca das instituições da V Repú-
blica, é ainda muito cedo para afirmar que essas formações
aceitaram todas as implicações políticas decorrentes da pra-
tica da alternância democrática.
Um elementosuplementaropera, entretanto,a favor do
consenso: a opinião pública, em sua grande maioria, deseja a
alternância sem drama e demonstra muito apego pelas insti-
tuições atuais (SOFRES Opflzfon.Pzzb/íque,1984, 103): ora,
a lógica da eleiçãopresidencial obriga o candidato a obter a
maioria absoluta dos sufrágios expressos para ser eleito presi-
dente. Isto constitui uma poderosíssima salvaguarda contra
eventuais posições aventureiras no domínio do funcionamento
dos poderespúblicos. Nenhum candidato sério pode praticar
de modo muito manifesto o jogo da tensão, nem fazer o apren-
diz de feiticeiro, encorajando seus partidários e seus eleitores
às soluções extremas. Daí os apelos à calma, regularmente
lançados a uma base impaciente, pelos chefes da oposição.
A despeito do progresso realizado para um consenso ins-
titucional, convém sublinhar, por fiml um obstáculo -- que
resulta do jogo ajustado entre a pratica institucional e a orga-
nização do sistema de partidos -- àestabilização completa do
nosso sistema político. Sob a V República, como vimos, o pre-
sidente é ao mesmo tempo aquele que simboliza a unidade da
240 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
nação, o verdadeiro chefe do poder Executivo.e o eleito por
uma coligação de formações políticas. O. escrutínio majoritâ-
rio em dois fumos conduz a uma bipolarização das forças pf?-
líticas que, a partir de 1972, contribuiu para reatualizar Desse
a cli-
vagem esquerda/direita como clivagem política central.
modo, o presidenteacaba sendo o chefe da.esquerda ou da
direita em uma sociedadepolítica tradicionalmentemarcada
pela ausência de compromisso e pela forte centralização do
aer.se equivalea dizer, e n6s o vimos em 1968, que toda
crisepolítica gravetraz o risco de, a um só tempo, põr crua-
mente em causa a legitimidade e a autoridade do chefe do
Estado e de, eventualmente, acarretar a paralisia do Estado e
do governo. AÍ está o calcanhar de Aquêles do regime de que,
de outros pontos de vista, todos reconhecem, com granóe.jú-
bilo, a solidez e a eficácia. Toda crise grave pôde"tnostrar-se
dramática. Ora, não há nada que permita.resolver esta .con-
tradição fundamental de nosso regime politico. O próprio F
Mitterrand reconheceuisso, de certo modo, quando de sua
reunião com a imprensa a 4 de abril de 1984, declarando:
''Sou eleito dos cidadãos de esquerda mas sou o presidente de
todos os franceses! Eis a única distinção à qual me apegarei
(Ze ]Wonde, 6.4.1984).
2. A Alternância e o conflito das 6malidades
Até 1981a esquerdasocialistajamais havia exercido o
poder na França sem fazer alianças com a direita. Tratava se,
antes, de situações frequentemente excepcionais, onde .o espí-
rito antifascista, ou o da resistência, fazia as vezes de pro-
grama e sobretudo permitia manter intacta a esperança.de
ruptura:ou de revolução, não obstante o reformismo da gestão
no dia. a-dia. Quanto aos comunistas, eles apenas haviam par-
ticipado do poder de 1944 a 1947, durante a libertação. Hoje,
tendo chegado ao poder calmamente, pelo jogo normal da al-
temância a esquerdaesta em condiçõesde aplicar seu pro-
gmma mas não pode invocar circunstâncias excepcionais.
Ela
esta em cima do muro. Esse 'programa, nascido do prometo
socialista,quer ser um programa de ruptura com o capita-
lismo. O próprio F. Mitterrand escrevia, ao prefaciar o pro'
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 241
grama socialista de 1972: ''O Partido Socialista não procura a
aprovação,dos privilegiados, dos exploradores e dos aprovei-
tadores. Não pode haver trégua entre ele e os nimigos do
povo'' (n'ogramme Sacia/isfet 1972, 9). Os socialistas sempre
tomam o capitalismo como adversário, e um deles, J. P. Che-
venement: pede assimilar o ''liberalismo avançado'' de V
Giscard d'Estaing a um ''vichysmonegro'' e a ação do govemo
anterior de R. Barre a um ''fascismo serpelante''. O prometo
depoisde maio de 1981ia na via indicada pelo pmjeto e pelos
objetivos da esquerda. A direita podia então denunciar o au-
mento da estatizaçãa, o processo de ruptura com a sociedade
liberal, o perigo representado por um Partido Comunista que
estigmatizava, hoje como ontem, os patrões e estava muito
decidido a fazer com que os ricos pagassem aqueles que não
têm lugar na união para a defesa do interesse geral, aqueles
que se situam entreas "110000 famílias'' mais ricas (Z:Hü-
man/fé, 19.10.1983): A uma direita sempre considerada pela
esquerda como ilegítima porque defensora apenas dos privilé-
?.os fios possuidores, continuava deste modo a se opor, depois
da alternância, uma esquerda considerada pela direita como.
antes de mais nada, preocupada em revolucionar a sociedade
e preparar o coletivismo.
Entretanto? examinada com atenção,. a esquerda esco-
lheu, na prova do poder, não rasgar o tecido social,'permane-
cer em uma economia aberta, afirmar sua participação na
aliança atlântica, e mais, entre os socialistas, trabalhar para
seu reforço. Mais ainda: o presidenteda República transpor.
mou:se no apóstolo, desde 1981, da necessidade de uma eco-
nomia mista, de empresas prósperas e competitivas. Diante
da crise, a esquerdafinalmentedecidiu assumir uma gestão
ngorosa, comportando um extenso desemprego e a queda do
poder de compra. F. Mitterrand, a 10 de dezembro de 1981:
penso que as empresas são o lugar onde.se cria a riqueza do
país (. . .), os empresários não devem ser adversários. Devem ser
nossos associados'' (.Z;e.49onde, 4.1.83, 10). Sua reunião com
a imprensa a 6 de abril de 1984 constituiu-se num passo a
mais para a aceitação explícita da lógica do mercado e de suas
implicações. ''De duas uma, declarava ele, ou a Fiança será

242 AS FRAGILIDADES DA DENtOCRACIA NA FRANÇA
como uma autocrítica do presidente.
! publicanos contra marxistas de um lado, republicanos contra
libação marxista no poder
O consenso ideológico, que estão elaborando os diferentes
À esquerda, a evolução de fato para um ?ocialismo
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 243
vem oportunamente lembrar que, quando é necessário, a di-
reita e a esquerda sabem extirpar de suas antigas tradições de
enfrentamentosos temas, que poderíamos imaginar supera-
dos, para relançar a dinâmica do conflito sobre as finalidades.
Nenhum revisionismo verdadeiro marcou a evolução doutrinal
do socialismo francês desde 1981. A ambigüidade do discurso
socialista acerca da noção de compromisso tal como apareceu
no congresso de Valence em 1981 serve como testemunho in-
suspeito dessa repugnância à revisão.
No domínio das finalidades da política, o julgamento
sobre a evolução futura deve ser suspenso, como ele havia sido
a propósito das instituições. Ainda que os pontos de vista ten-
dessema se aproximar na realidade, o tom do debate político,
seu estilo, o vocabulário empregado são testemunhos da difi-
culdade, sentida pelos políticos, de se distanciar da linguagem
tradicional, cuja primeira função é a de desqualificar o adver-
sário, desvelando sua ilegitimidade. Assim, R. Barre podia
estimar que a esquerda era, de fato, infiel aos valores republi-
canos, já que ela doutrinava os cidadãos e impunha o dirigismo
ao país (Ze .A/onde, 5.11.83). Da mesma forma, como vimos.
a direita não hesita em qualificar o comunismo francês de
''fascismo vermelho'', enquanto que a esquerda, questionando
a existência de alianças eleitorais fatais entre a extrema-di-
reita e a direita, estigmatiza a fascistização desta última. Re-
fascistas do outro, os esquemas antigos nada perderam de sua
vitalidade. Alguns líderes da direita, como o deputado do
RPR Claude Labbé, chegam até a assumir as análises do
''Clube do Relógio'', círculo de reflexão de extrema-direita.
proclamando a existência de uma identidade histórica comum
entre fascismo e socialismo. Sob a impaciência da oposição
re- em voltar ao poder transparece uma atitude mais profunda
feita de exasperação diante de uma situação em si mesma in-
tolerável, o exercício do poder pela esquerda, como se depois
de ter governadotanto tempo o país, a direita tivessese con-
vencido de que ela era o único governo legítimo possível. O
jorna[ de extrema-direita]]&nufe dava assim o tom da cam-
panha da oposição entre os dois termos das eleições munici-
pais.de março de 1983, trazendo como manchete, após a der-
rota da esquerda no primeiro turno: ''É preciso acabar com
eles''. A direita desde agora fala de ''depois do socialismo''
244 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA

assim como a esquerda falava, no dia seguinte de sua vitória

l COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS

entre os dirigentes e as seções sindicais da empresa. Os laços

contratuais reforçam o progresso económico e social, o re-
24S

curso sistemático à lei, ao regulamento e à intervenção dos

poderes públicos, gera irresponsabilidade e rigidez'' (P. M.
Mauroy, 1981).Tratava-se, portanto, de favoreceruma trans-
formação das relações entre o Estado e a sociedade. A es-
querda -- seria mais cometo dizer os socialistas -- projetava,
ao mesmo tempo, reforçar o Estado através de um conjunto de
nacionalizações novas, para relançar as atividades-chave do
desenvolvimento económico, e favorecer a organização da so-
ameaça. sência de consenso, como se vê, não caracteriza ape- ciedade. Esta síntese, que cobrira duas perspectivas aparente-
mente opostas, pode parecer ousada, mas refletia a dupla as-
piração dos anos 70, que alimentou os programas socialistas,
planificar e descentralizar. As leis Auroux, que pretendem
codificar as novas relações de trabalho na empresa, e, além
disso, remodelar as negociaçõesprofissionais; fornecem um
exemplo interessante. Deram novos poderes ao sindicatos para
3. O Estado e 8 sociedade depois da alternância transforma-los em interlocutores reconhecidos e estipulavam
uma obrigação de negociação nos ramos profissionais, anual-
mente, sobre os salários, a cada cinco anos sobre as classifica-
çõesprofissionais, e anualmente, nas empresas em que estão
constituídas uma ou várias seções sindicais de organizações
representativas, sobre os salários, a duração e as condições de
trabalho. A finalidade destas leis é a de reforçar as relações
contratuais entre os ''sócios-adversários'' sociais. ''A preferên-
cia dada ao contrato em relação à lei e ao regulamento é abso-
lutamente essencial em nossa concepção da política social''
(Jean Auroux, 1982).
E já um pouco paradoxal que caiba ao Estado impor a
negociação social. Além do que, o mesmojá ocorrera quanto à
descentralização. Foi preciso recorrer às instituições políticas
desejadas pelo poder central para dar nova vida à sociedade.
Entretanto, a questãofundamental é saber se o lugar do Es-
tado evoluiu de modo sensívelnos últimos quatro anos. O jul-
gamentonão pode ser mais do que reticente. O Estado esta
sempre igualmente presente e solicitado. Em vez de privilegiar
a negociação entre si, os atores sociais tiveram tendência a se
voltar para o Estado, sem prejuízo de sua autonomia. Muitas
razões podem ser evocadas para dar conta deste fato. As gran-
des forças sociais não tiveram nenhum projeto comum acerca
da mudança ocorrida em maio de 1981. Que tenham ocorrido
246 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 247

tas vezes, os parceiros sociais, tanto para as reestruturações

industriais quanto para a gestão da previdência social. Na ver-
dade a ''nova cidadania'' não encarnou. Chocou-se contra as
condicionantesda crise, mas também contra as dificuldades
de ser de uma verdadeira sociedade política, intermediária
entre o Estado e a sociedadecivil. O círculo tradicional das
relaçõesentre o Estado e a a sociedadenão foi quebrado. A
expressão e a confrontação dos interesses, no quadro de uma
sociedadeconflitual e inventiva, permaneceu sempre um obje-
tivo, afirmado à esquerda e à direita, mas objetivoque o con-
flito das finalidades existente na sociedade francesa torna di-
fícil atingir. O Estado continuou a ver sua potência reforçada,
mas também sua fragilidade acusada. Ele se acha muito mais
num período de crise do que durante os anos de crescimento.
exposto às demandas múltiplas e contraditórias que emanam
da sociedade.

Forças e õ'aquelas da democracia francesa

A democracia é, por natureza, um regime aberto, onde os

fins da sociedadenão são estabelecidos,e, ao contrário, ali-
mentam uma contínua reavaliação. Esse traço é particular-
mente nítido na Fiança, onde se desenvolveuo idealismo da
justiça social. A maioria das democracias européiasconhece,
como q França, o confronto dos dois pólos principais de opo-
sição. A medida que uma pluralidade de partido está em com-
petição pelo poder, a lógica do sufrágio universal leva cada
um deles a procurar as mais amplas alianças possíveis. A de-
mocracia conduz à coalizão e à polarização, e mesmo, quando
o processo chega ao seu ápice, ao bipartidarismo. Ela com-
porta uma estrutura conflitual permanenteque o marxismo.
um pouco rapidamente, identificou apenas com a luta de clas-
ses, fazendo do enfrentamento, nascido na sociedade civil do
século XIX, entre a burguesia e a classe operária, a chave para
a compreensãode toda a vida política. Hde, quando se con-
frontam interessesmúltiplos e diversos, que não podem ser
reduzidos ao conflito central da sociedade industrial, a mesma
lógica política continua entretanto a vigorar. A originalidade
francesa consiste em oferecer, mais do que em outra parte da
248 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
Europa, o exemplo de uma sociedade atravessada em seu todo
um conflito fundamental, inextricavelmentede natureza
social e ideológica que organizou a sociedade, primeiro em
torno do face-a-face revolução/contra-revolução, depois, em
torno de um pólo católicoe conservadorde um lado e, de
outro, um pólo operário leigo, e que ofereceu uma estrutura
tão poderosa que todos os outros conflitos puderam ser reba-
tidos. sobre um eixo direita-esquerda, que é regulam'mentede-
nunciado como ultrapassado, mas que permanece como hori-
zonte de referência para a opinião (G. Michelat e M. Simon,
1977;F. Bon, 1979). A polaridade que a democracia francesa
conhecenão deriva, portanto, meramente, da lógica das insti-
tuições, mas de uma realidade cultural sempre viva. A prin-
cipal consequênciaé que o Estado não deixou de ser conce-
bido como um objeto de conquista para as forças políticas, e a
esperança política prevaleceu sobre o esforço de organização
da sociedade.
Toda constatação realizada acerca do estado da demo-
cracia francesa não deve esquecer que ela permanece fundada
sobre um conflito de finalidades sociais que dificulta a prática
dos compromissos explícitos. As fraquezas e as forças da de-
mocracia francesa são apreciáveis a partir daí, e não é parado-
xal que elas se engendram umas às outras. Porque,. de um
lado, a existência de paixões políticas vivas favorece a integra-
ção.dos interesses no jogo político, dâ o sentimento aos cida-
dãos de que são representados,de outro, a distânciafre-
quente entre as esperanças e as realidades provoca evidente-
mente sérias tensõese, o que é ainda mais grave, um desamor
periódico pela própria democracia. A evoluçãorecente auto-
riza algumas hipótesespara o futuro próximo. A opinião che-
gou a um consenso quanto às instituições, mesmo se a questão
de saber que fins visar através do sistema institucional perma-
nece sem resposta. Não hâ nenhuma dúvida de que a consti-
tuição da V República canalizou melhor a express41.da üo-
lência política do que os outros regimes nos séculos XIX e XX.
Esta permanecelatente, mas tomou uma forma mais simbó-
lica - o que incontestavelmente é um progresso, malgrado o
parecer de todas as escolas de pensamento que denunciam a
normalização'' das sociedadesocidentais. Importantes mu-
danças puderam surgir, na classe política, nas idéias, .nas
mentalidades. O enfrentamentodas finalidades não implica,
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 249
necessariamente, uma esclerose social. Entretanto, leva estas
mudanças a revestirem-se de uma aparência radical, mesmo
se não o são na realidade, e introduz assim distância entre os
preceitose as praticas, fator de decepçõespara amplos seg-
mentos do corpo eleitoral, submetidos, conforme os períodos,
às tentações do extremismo. Mais inquietante poderia ser um
enfrentamento da convicção democrática.
''Muralhas sem homens'', jâ dizia Homero, ''são apenas
muros ocos.'' Deste ponto de vista, as recentes pesquisas de
opinião incitam ao otimismo mas também à lucidez. Olivier
Duhamel, comentando a pesquisa realizada pela SOFRES
para ojomal Expans/on em março de 1983(SOFRES, Z'Opí-
lzfonPzzó//que,1984, pp. 133 e segs.) constata, primeira-
mente, que a alternância de 1981 teve um efeito integrador
que se traduziu, notadamente, pelo aumento do consenso
acerca do apego aos símbolos nacionais e à força de dissuasão
nuclear francesa. O mesmo se dá quanto ao apego ao direito
de voto -- 81%odos franceses estimam que sua supressão cons-
tituiria um fenómeno muito grave --, à previdência social, a
livre iniciativa ou à liberdade de imprensa. Nota-se igualmente
um consenso bastante amplo para considerar como irreversí-
veis algumas decisões políticas tomadas desde 1981, tais como
as leis Auroux sobre a expressão dos direitos dos trabalhado-
res na empresa, o estabelecimentode um imposto sobre a for-
tuna, ou a quinta semana de férias remuneradas.Em com-
pensação, parece que sobre alguns pontos de particular im-
portância, do ponto de vista da exigência democrática, a dis-
sensãopermaneceprofunda no seio da opinião pública, ou
mesmo aumenta. Assim, os eleitoresda oposição de direita
que consideram que seria muito grave suprimir o direito de
greve, ou que F. Mitterrand é o presidente de todos os france-
ses, constituem uma pequena minoria. Em compensação, é a
imensa maioria que exige a desnacionalização das empresas
nacionalizadas depois de 10 de maio de 1981. Por fim, os elei-
tores comunistas são os únicos que estimam -- por fraca
maioria -- que seria muito grave suprimir os partidos políti-
cos. Reencontramos
aqui a hostilidadeda opiniãopública
francesa à filiação e ao jogo partidários.
Esta rápida visão da opinião pública corresponde, final-
mente, muito bem aos traços da cultura democrática francesa
tal como a descrevemosgrosso modo: o essencialdos valores
 COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 251
250 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
t
perimentaram outras sociedades ocidentais -- vemos que na-
democráticospareceassegurado,mas se trata de uma demo- quela ocasião chegou-se a questionar a legitimidade do chefe
cracia de enfrentamento sem concessõesentre os dois campos, de Estado, o generalde GauUe, e, portanto, a das instituições.
mal enraizada quanto às próprias condições da participação A alternância de 1981 deve pois ser compreendida em suajusta
medida. Ela é a presunção de um enraizamento mais pro-
poiítja dos cidadãos.tas eleitorais (1986, 1988) constjtuhão fundo da cultura democrática na sociedadefrancesa. Mas ela
uma nova prova para a democracia francesa, em particular,
no caso de vitória da oposição. Ela será capaz de supera-la não significa que as instituições estejam além de qualquer
questionamento. O liberalismo cultural, que difundiu, nas so-
sem choques? . .
ciedades contemporâneas, os valores de individualismo. de
Esta realidade não é, evidentemente, o apanágio da Fran-
participação, de qualidade da vida, é ambíguo, já que é por-
ça. As sociedades europeias se construíram através do con-
flito. Muitos traços da situação francesa podem ser encontra- tador tanto de egoísmo social quanto de um certo igualita-
dos nas culturas políticas europeias. A existência de uma di- rismo, e nutre hoje as correntes neoliberais e o populismo de
reita e de uma esquerda, sob outras formas, aparece por toda esquerda. Os argumentos que se baseiam numa modificação,
vista como fundamental, da cultura política européia, não são
parte. A luta, mais ou menos precoce, contra o Antigo Regime decisivos para que se possa pensar em fundar solidamente
monárquico, as realidades de classe, e, mais simplesmente, a
uma ''democracia tranquila''. A homogeneização social não
lógica da democracia, que tende a formar coalizões, levaram a
este enfrentamentoentre dois pólos. Por falta de uma expe- assegura necessariamente a convergência política. Há mais de
vinte anos que diferentes episódios políticos têm mostrado a
riência cumulativa destes fenómenos, a vida política norte-
dificuldade em que se encontram os partidos políticos no po-
americana não pode ser interpretada através da mesma grade
de leitura. Na Europa, o período atual volta a mostrar a du- der quando procuram obter um consentimento político majo-
ritário. Para além das estruturas institucionais propriamente
reza possível dos conflitos políticos. Os chamados países do ditas, permanece precária a confiança política, essa realidade
consenso .também conhecem oposições ásperas. As divergên- cultural pela qual as previsões privadas e as decisõespúblicas
cias foram reavivadas pela crise. Entretanto, as futuras não deveriam reforçar-se mutuamente. Em comparação com as
se manifestam da mesma maneira nas diferentes sociedades. crises violentas da democracia em outras partes do mundo,
Na Inglaterra, as regras do jogo não foram suspensas, mas os tudo isto pode parecer de pouca gravidade. Mas a dificul-
conflitos sociais são extremamente violentos, e, hoje, a conver-
dade, ou mesmo, em certos casos, a paralisia das decisões
gência programática dos anos de 1950-1960deu lugar a um
verdadeiro enfrentamento entre os dois grandes partidos,. con- políticas não é o menor dos perigos que ameaçam a democra-
cia
servador e trabalhista. As divisões que atravessam a sociedde
alemã traduzem-se freqüentemente em termos de identidade
nacional. Por contraste, a especificidade francesa aparece:
quasetodos os conflitos, qualquer que seja sua natureza, so-
bem ao nível político e ideológico. A situação criada pela che-
gada da esquerda ao poder em 1981 parecia indicar que o
enfrentamento decisivo dar-se-ia no campo económico e so-
cial. Na realidade, foi a questãoescolar, o face-a-faceentre o
ensino público e o ensino privado, entendidos como um con-
junto de valores, que mobilizoumilhõesde franceses.deum
lado e de outro. E se recuarmos um pouco no tempo, até maio
de 1968,que, agora, todos concordam em definir. fundamen-
talmente como uma crise social e cultural -- que também ex-

Conclusão:
Os desafios democráticos
ou a aprendizagemda virtude
.4/afaz Rouqzzlé
.A principal idéia, talvez banal mas sem dúvida perti-
nente, que o leitor guardará deste livro, como vários dos.acto-
res sublinham, é que não hâ fatalidade do destino autoritário.
Assim como não existe também privilégio democrático perma-
nente. Nos dois extremos, a índia republicana e a Alemanha
hitletista contradizem as teorias deterministas. Mas os três
países que aqui foram explorados ilustram. também:.de ma-
neira complexa e contrastada, a autonomia do político e o
primado da liberdade. Na Europa, hoje em dia como no pari'
fado, sabe-se que o autoritarismo não é simplesmente aquilo
que acontece aos outros, preço da pobreza, apanágio da incul-
tura. Os dados objetivamente favoráveis aos processos demo-
cráticos estão longe de garantir o seu enraizamento, como de-
monstra, segundoa fórmula de Sábato e Schvarzer, ''a anor-
malidade obstinada da Argentina". E o que dizer da ''guerra
civil fna'' provocada na França pela divisão permanente do
espírito público e a amplidão do fosso que separa os dois cam-
pos? Mesmo voltando, como no (;b$ZdzzCbmmerce: aos ''gau-
lesesbriguentos'', a psicologia não nos auxilia muito a com-
preender a confusão permanente entre adversários e inimigos
que espreita os enfrentamentos políticos franceses.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 253
O analisadosinstitucional
O que é notoriamente exemplar nos três casos estudados
é a posição da classe dirigente diante dos procedimentosre-
presentativos. Não se poderia mostrar de modo mais nu os
paradoxos do liberalismo e da democracia e suas contradições
profundas, na era pós-censitária. Nesse sentido, a democracia
é um operadorsocial particularmenteeficaz. Assim, no Bra-
sil, como salienta Trindade, a lógica liberal tem uma ancora-
gem profunda, mas não é antagõnica a práticas autoritárias,
pois permanece fundamentalmenteexcludente ou, pelo me-
nos, não-integradora. A ''poliarquia perversa'' que daí resul-
ta, segundo a expressão de Lamounier, utiliza diversos meios
para que o sistema de decisão e o de participação permane-
çam o mais separados possível. A existência de ''guetos parti-
cipativos'' chega mesmo a garantir a natureza semicompeti-
tiva de um regime em que se aliam, de maneira mais ou menos
harmoniosa, ãs tradições liberais e autoritárias. Um dos casos
mais significativos dessa coexistência das ''duas moedas'', a
coerção e o voto, para empregar umâ. imagem de Celso Lafer
(1975, 64) vem a ser o comportamento da grande coalizão
antiditatorialdo tempode Getúlio Vargas batizadacomo
UDN (União Democrática Nacional). Esse partido, ponta-de-
lança da oposição liberal à ditadura getulista, logo se trans-
formará, como assinala Mana do Carmo Campello, numa for-
mação ''conspiratória'' e no braço político do regime multar,
na sua primeira etapa. Esses mesmos liberais de princípios,
restauradores da democracia após a queda de Vargas e do seu
Estado Novo em 1945, tomarão cuidado em não tocar na legis-
lação do trabalho corporativista herdada do regime deposto, e
que coloca os sindicatos sob o controle do Estado. Alias, é a.
inversão desse sistema que dará o sinal à ofensiva antidemo-
crática da UDN e de seus aliados militares, nos anos sessenta.
De fato, o controle do Estado sobre os trabalhadores parece
ter-se transformado, no governo do último presidente civil,
em pressão dos trabalhadoressobre a máquina estatal. O
avanço da sociedade civil sobre o Estado tem por resposta
(autoritária), fomentada pelos liberais, o ''golpe de Estado''
em que consiste o.pufscÀ de abril de 1964.
]
Um segundo ponto interessante no que se refere à especi-
ficidade brasileira, para a qual serve aqui. de analisador a
B4 CONCLUSÃO: OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS
questão democrática, consiste, diferentemente do que ocorreu
na Argentina, na manutenção, após 1964, de um parlamenta-
rismo mínimo, aliando um bipartidarismo coercitivo a uma
grande regularidade das consultas eleitorais, sob a tutela de
uma ditadura militar institucional. Jâ se indagou por que esse
regime híbrido, no qual aparecem ao mesmo tempo a dificul-
dade de institucionalizar o autoritarismo e a de enraizar a de-
mocracia. A história brasileira, em que se revela a força das
elites regionais e do poder privado, dâ um princípio de res-
posta: uma burguesia fracionada, esfacelada, em um país
imenso, necessita de corpos intermediários e de lugares públi-
cos em que a harmonização dos interesses e as barganhas com
o poder central possam ser efetuadas. Lugares bem trancados,
protegidos contra as classes perigosas e os impulsos popula-
res, evidentemente.
A Argentina apresenta a situação diametralmente opos-
ta: a burguesianão se acha fracionada, ou antes, existeum
grupo dominantehomogêneo,que não só não necessitade
partidos múltiplos e de um cenário político público perma-
nente, como também recusa os compromissos com outras ora-
ções menos privilegiadas. Esse grupo dominante multisseto-
rial, cujo eixo central se encontra no capital financeiro, é ao
mesmo tempo ''dominante e não-hegemónico'' (Rouquié:
1982,38). Em conseqüência, para ele, a instabilidade política
é funcional e a democracia, ao contrário, um risco fundamen-
tal, não pela ameaça das classes dominadas, mas em virtude
do próprio tipo de dominação solitária que exerce, e que se
recusa a compartilhar. Pior ainda, pela própria multissetoria-
lidade dos seus interessese pela tendência especulativa de seus
comportamentos económicos, as descontinuidades políticas
Ihe são mais propícias que os amplos estuários de estabilidade
e as políticas económicas de longo prazo. Visão conspiratória
da vida pública, dir-nos-ão. Mais simplesmente,analise da
democracia em termos de vontade e de finalidade social. Para
a grande burguesia argentina, ferozmente partidária do libe-
ralismo económico mais estrito, o que conta, antes de mais
nada, é um acesso direto e privilegiado ao Estado, e uma dis-
ponibilidade total dos seus recursos, que afasta qualquer es-
quema rígido de investimento. A tanto obriga a especulação.
E a França, nisso tudo? Não estamos assim tão longe
dela. Foi a alternância de 1981, dramatizada de ambos os la-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 2S5
dos, que revelou a fragilidade de nosso sistema político. Apre-
sentada à esquerda como ruptura triunfal e radical com o
''antigo regime'', à direita como um extravio passageiro do
eleitorado,a chegada ao poder da esquerda, no quadro das
sólidas instituições da V República, foi vivida como uma revo-
lução a mais pelos vencedorese, pelos vencidos, como uma ca-
tástrofe nacional, da qual a França devia sair o mais rapida-
mente possível, e até mesmo a qualquer preço. Nunca a cul-
tura do confrontoe de uma recusa do compromisso tinha pa-
recido tão perigosamentepresente, nem o processo de legiti-
midade do poder legal instruído de maneira tão escandalosa.
O adversário é tratado de ambos os lados como inimigo. A
oposição mantém um discurso que de bom grado desqualifica
o adversário, quase sedicioso, no limite do respeito às institui-
ções. Um vocabulário de guerra de religiões, que se compraz
em metáforas militares, constitui a partir de então a língua
parlamentar.
Deve-se atribuir à projeção política do estilo francês de
autoridade e à sua recusa do cantata face-a-face e, portanto,
do compromisso direto, segundo Crozier, essa engrenagem
tão perigosamente desestabilizadora? Ao conservadorismo
obstinado de uma burguesia de direito divino? Ou, mais sim-
plesmente, à distância entre as palavras e os ates, que um sis-
tema bipolarizado nos extremos fomenta, mas que, atual. B
mente como no passado, leva a govemar no centro? No en-
tanto, quanto mais as políticas se aproximam -- como ocorre
a partir de março de 1983e do plano de praxe -- tanto mais os
discursos se afastam. Enquanto a democracia não tem nada a
ganhar com ese jogo perverso. As areadas periódicas que os
líderes conservadores impõem contra as possíveis derrapagens
no seio de suas fileiras provam, no entanto, que a virtude de-
veria prevalecer, e que o extremismo desastroso será contido.
Não estamosem 1940,quando a derrotadera à burguesia
francesa a oportunidade de se vingar de 1936 e do ''grande
medo'' da Frente Popular, convertendo-seo desastrenacional
no triunfo dos ''nacionalistas'' (GuiUemin: 1974,420), que
preferiam Hitler a Thorez ou Blum. Por isso talvez não devês-
semos tomar ao pé da letra as bravatas de hoje. E se a espuma
das palavras nos escondesse evoluções profundas, e a gesticu-
lação encaminhamentog portadores de futuro?
H6 CONCLUSÃO: OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS
A encruzilhada
Pois insistimos neste livro nos fracassos da democracia e
nos obstáculosà sua implantaçãoou a sua realização. Quer
eles sejam devidos a bloqueios sociais e. estruturais antigos,
quer mesmo às consequências próprias dos regimes autoritâ-
nos, que a democracia deve superar para renascer: Mas exis
tem outras leituras possíveis dos mesmos dados e das mesmas
análises. Não se trata de cair no otimismo a qualquer preço,
para coroar com um fim edificanteuma série de textosque
não são absolutamente otimistas. Mas simplesmente de fazer
um inventário hipotético completo. . .
A começarpela França. Por detrásda intolerância,do
desprezo do adversário, de um clima pesado de confronto, tra
banhamfenómenos novos, que marcarão o futuro político do
país, e que ultrapassama própria dramatizaçãodas posições
ideológicas anuais. A esquerda aceitou as instituições da V Re-
pública, que garantem sua permanência, e a direita, que tem
sua permanência assegurada, aceitou a alternância e o desen-
volvimentonormal daquilo que talvez não sela apenas uma
''experiência socialista'; , com tudo o. que esse termo significa
em matéria de unicidade. Sobretudo as falsas disputas em
torno da escola privada, cuja legitimidade e direito ao finan-
ciamento público a esquerda reconheceu pela primeira vez,
dissimulam (mal) as convergências e os acordos inconfessá-
veis, em matéria de defesa, de política internacionale mesmo
de política económica. A esquerda está,. enfim, em um pro-
cesso de mudança, tanto na sua composição quanto nos seus
valores, mesmo que a distância entre os ates e as palavras não
permita sempre perceber as mutações. As responsabilidades
do poder livraram-na pouco a pouco de uma visão catastro-
fista da vida política e social, mais ''identitâria'' e historici-
zante do que adaptada às realidades do mundo atual, nascida
tanto a partir do seu afastamento do poder quanto do peso
doutrinário do Partido Comunista. O declínio histórico deste,
devido à sua rigidez organizacional e à sua filiação internacio-
nal, pode fazer esperar por alguns deslocamentos importantes
no tabuleiro de xadrez da política nacional, acarretando uma
distensão favorável a uma mudança cultural. O que foi cha-
mado de ''banalização ideológica" da Fiança, para deplorar.o
fato ou deseja-lo, não significa evidentementeo nascimento de
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 257
um bipartidarismo conservador/reformista,ao estilo alemão,
mas o surgimento de coalizões menos exclusivas ou apostas
menosaltas. Numa palvra, um acabamentoe uma moderni-
zação da democracia francesa, liberada tanto das miragens
revolucionárias, submersas pela sombra do Gzz/ag, quanto das
nostalgias autoritárias e anta-republicanas, a despeito dos
''poujadismos'' de ontem e de hoje.
Em um contextoinfinitamentemais difícil e grave, jo-
gando com os problemas nacionais em tamanho natural, e
não como no teatro de sombras francês, a reconstrução da
democracia na Argentina apresenta aspectos paradoxalmente
promissores. Com a vitória dos radicais de Raul Alfonsín e a
derrota peronista em outubro de 1983, pode-se dizer que nun-
ca um governo civil, depois de 1930, se viu diante de uma tal
acumulação de problemas dramáticos e potencialmente explo-
sivos, mas que nunca também foram reunidas tantas condi-
çõespara a instauraçãode uma verdadeirademocracia.Aqui
mesmo foram evocadas as dificuldades. E na Argentina, mais
do que em qualquer outro lugar, sabe-seque as eleiçõesnão
são a democracia. Mas o descrédito dos militares e do autori-
tarismo deposto traz, desta vez, um elemento novo. Depois da
guerra das Malvinas, a grande burguesia tem muito menos
confiança nos seus aliados de uniforme. A força dos senti-
mentos antiocidentais em alguns militares reconvertidos ao
nacionalismo irredentista a inquieta. O caráter errático e in-
controlado das decisões militares em todos os domínios não a
tranqüiliza. A desmilitarização talvez seja hoje funcional para
os interessesque fomentaram o militarismo durante meio sé-
culo
A derrota do peronismo também põe fim a um mito que
serviu muitas vezes para derrubar os governos eleitos, ou seja,
o mito da suposta irracionalidade do eleitorado argentino e do
caráter maioritário de um movimentopolítico antidemocrá-
tico. Sob o choque da vitória radical, desdedezembro de 1983
é como se duas culturas políticas se enfrentassem na Argen-
tina: a velhacultura pretoriana ou putschista e uma nova cul-
tura democrática.Para a. primeira, e para os grupossociais
que a ela aderem, permitem-setodos os golpes para fazer
triunfar a causa ''tribal'' , e não hâ nada, nem instituições nem
valores, que se possa opor à busca de vantagens setoriais. ''Pa-
reçam a nação e a democracia, desde que meu direito triun-
258 CONCLUSÃO: OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS H9

fe.'' Para a segunda,que começaa se organizar, a autocoer- dade'' contra o governo democrático, afastaram-se dos mili-
ção, o reconhecimentodas regras do jogo, a defesa das insti- tares guardiães do Estado. IJma minoria governante, alguns
tuições e de um quadro normativo comum necessário à coexis- clãs, tanto civis como militares, o núcleo da linha-dura do
tência social têm prioridade. Até agora, a vf#zzde parece pre- Exército ligado aos serviços de inteligência viram na aber-
valecer sobre a violência, que a sociedade argentina rejeita, tura apenas um meio de quebrar a oposição e de instituciona-
depois dos dez anos negros pelos quais o país acaba de passar. ( lizar seu poder. Fracassaram. Um retrocessoautoritário teria
A sobrevivência de uma sociedade que passou tão perto de sua um custo social e político tão alto que ninguém sonha sequer
própria dissolução e da perda de.sua identidade tem esse pre- com isso. A conciliação tradicional deveria permitir encontrar
ço, mas a grande burguesia, cujos comportamentosdesesta- uma saída que lembra a quadratura do círculo. Mas, por trás
bilizadores analisamos aqui, estará ainda satisfeita por muito do cenário oficial, aqui também têm lugar movimentosde
tempo, sem reformas de estrutura que quebrariam o seu fundo, cuja importância é de outra ordem. O que os jornalis-
poder?r tas brasileiros chamam de o despertar da sociedade civil e sua
Algumas das evoluçõesque aparecem na Argentina não emancipação com relação ao Estado recobre uma realidade
deixam de lembrar tendências aparentemente de peso na vida decisiva: a aspiração a uma verdadeira cidadania, a recusa da
política francesa. Na Argentina, a classe operaria integrou-se ''cidadania regulada'' que prevalece até agora (Santos: 1979).
à sociedade política no governo de Perón, em bases autoritá- A saída depende de um número excessivo de parâmetros para
rias. Na França, por razões diferentes,após a guerra de 14-18, que possa ser prevista com seriedade. Uma coisa é certa, como
a classeoperária perdeu a oportunidade de entrar no cenário demonstrou o franquismo a seu tempo: um regime pode es-
democrático. Bolchevizada por um mal-entendido .e um aci- conder outro. Talvez haja aqui também um laço comum entre
dente, ela pesou negativamente sobre as possibilidades de es- essas situações aparentemente disparates, mas problematica-
tabelecer uma república de compromisso, bloqueando em mente convergentes, que acabamos de evocar em sua dimen-
uma direita por muito tempo rancorosa e liberticida a moder- são futura, após termos explorado seu passado.
nização ideológicadas classes médias. Hoje, o declínio das
duas correntes, peronismo na Argentina e comunismo na
França,'não deixa de ter conseqüênciaspara o futuro da de-
mocracia nos dois países.
Mas, considerada globalmente, a situação argentina evo-
ca antes os últimos desdobramentos da interminável abertura
brasileira. Também aqui a burguesia, mais diversa e mais
heterogênea que na Argentina, parece ter perdido sua antiga
confiança no poder militar. Quer pelo fato de se ter reforçado
e não mais precisar, como em 1964, dessa custosa prótese,
quer porque agora desconfia da tendência dirigista dos mili-
taresno poder, acusadosem 1976-1978de esfaflzara econo-
mia, como vulgares socialistas. De qualquer forma, as pesqui-
sas de opinião são prova disso, bem como as tomadas de posi-
ção públicas e as gigantescas manifestações de rua pelas ''di-
retas-já'', a eleiçãodo presidenteda República que deveria
marcar o fim do ''sistema'' saído da ''revolução de 1964'': as
classes médias e a burguesia moderna que, em 1964, saíram
às ruas nas ''marchascom Deus, pela família e a proprie-
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CABANAGEM O Povo no Poder

Jülio José Chiavenato
Arrebentando com a hierarquia social,
destruindo as forças militares e
substituindo-as por algo que faz tremer os
poderosos: o povo em armas, no poder.
e

A REVOLTA DE KRONSTADT
Henri A rvon
A história do soviete de Kronstadt, que
lutou e resistiu à ditadura do Partido, após
a Revolução de Outubro de 1917, na
Rússia.
e

QUOTIDIANO E PODER EM SÃO PAULO

NO SEC. XIX
Mana edita Leite da Silvo Dias
O que se relata aqui é a história de
mulheres que viveram às margens do
sistema, instalaram-senas frestas sociais,
à sombra dos chamados acontecimentos
históricos.

rL- ]
AHMOKPATIA.
POR QUE DEMOCRACIA?
Francisco C. Weffort
IJm trabalho brilhante de um intelectual que anuncia uma sole-
ne chegada à maturidade. Lendo-o, entende-semelhor a ques-
tão democrática e acredita-se mais na democracia." ,
''' ]\fúria Sérvio Cona Veja
Até quando?
Weffort tem a seu favor neste livro o clima de atualidade: foi
concluído em setembro e pôde abordar. com dados recentes. a
corrida sucessória via Colégio Eleitoral. Além disso, embora O SENHOR E O UNICORNIO - A Economia dos Anos 80
sua formação seja a de um acadêmico, escreve.para ser lido. l.uiz Gonzaga de Melão BeHuzzo
Seu texto flui. sem tropeços nem embromaçoes Fanfiní -- /sfo E Através de artigos publicados originalmente na Revista Se
nhor. Belluzzo -- intelectual independente que luta pela recons
trução nacional -- analisa a situação económica brasileira e in
ternacional. numa linguagem que não dá margem às interpreta
ções duvidosas.
A QUESTÃO DA DEMOCRACIA
Denis L. Roseníield DÍVIDA EXTERNA E POLÍTICA ECONÓMICA - A
Coleção QUALE
Experiência Brasileira nos Anos 70
Num país que viveu recentementea experiência de manifesta- Paulo Davidoff Cruz
ções políticas carácter izadas
. por exigências
. . democráticas -- Estudando em profundidade ái transformações da econo-
exigências de um governo da maioria e de um governo regido mia brasileira, os mecanismos de financiamento e o endivida-
Dor leis --- a democracia é mais.do que nunca uma.pelTjlJ;linfa
-- mento do Brasil no período que vai do auge do.ciclo expansivo à
e uma resposta -- que diz respeito ao nosso futuro, futuro de ho- recessão dos anos 80, o autor discute o papel desempenhado pe-
mens livres e responsáveis. la politica económica.governamental'e as consequênciasda
abertura financeira'' para o exterior.
+ INFLAÇÃO É RECESSÃO
juiz Cardos Bresser Peneira e Yoshiaki Nakano
Reunindo textos inéditos ou publicados na lievista de Eco-
nomia Política. este livro lança uma luz à discussão sobre infla-
COMO RENASCEMAS DEMOCRAÇIAS ção e recessão: partindo do conceitode estagflagão, gs,autores
Alain Rouquié, Babvar Lamounier e Jorre Schvarzer dentificam latos histói'idos decisivos na ''estabilização'' da cri-
se económica mundial.

O OUTRO LADO
COMUNICAÇÃO
O DIREITO DE COMUNICAR - Expressão,
Informação e Liberdade
oesinona Fischer
O objetivo deste livro é fazer o conceito de
comunicação melhor conhecido, de forma a encorajar
uma discussão mais ampla sobre o direito de
comunicar. direito de estar informadoe participar da
comunicação pública.
COMPANHEIROS DE VIAGEM
Deocélia Vianna
Esposa, mãe e companheira de trabalho falando dos
acontecimentos que marcaram sua vida ao lado do
marido Oduvaldo Vianna e do filho Vianinha,
recuperando parte importante da história do rádio e
da cultura brasileira deste século.
ILUSÃO ESPECULA.AR - Uma Introdução à
Fotografia
Ariindo Mlachado
Através de um profundo estudo do código fotográfico,
são discutidos os conceitos de realidade e objetividade
atribuídos à fotogrclfia.fazendo uma crítica dos seus
suportes ideológicos, de modo que se possa esclarecer
por que não podem existir sistemassignificantes
neutros nem inocentes.
ANTROPOLOGIA DO COTIDIANO
da periferia à Indústria Cultural
A POLITICA DOS OUTROS -- O Cotidiano dos
Moradores da Periferia e o que Pensam do
Poder e dos Poderosos
Teresa Pires do Rio Caldeira
A história de um bairro da periferia de São Paulo e de
seus moradores, mostrando como se formou esse pedaço
da cidade onde tudo é precário e quem são seus
habitantes, que idéias têm da política, como vivem -- ou
sobrevivem -- junto com seus familiares.
TESTEMUNHAOCULAR -- Textosde
Antropol99ia Social do Cotidiano
Diversos Autores
Os cinco ensaios reunidos neste livrosão o resultado da
aplicação da teoria antropológica moderna a algo
familiar: á imagem do índio no livro didãtico, o conceito
de valor de usõ em confronto com os produtos da Souza
Cruz, imagens da educação, a festa de Natal e um caso
homossexual.
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
Do Mito à Indústria Cultural
Massimo Canevacci
A partir da busca do ''espíritodo cinema'', dos seus
mecanismosde reprodução de estereótipos,e de toda
mitologia que o cerca. o autor lança nova lyz sobre a
questão da indústria cultural no capitalismo.
 denaçõo: MarilenaChaui

Textos de filosofia políticaque analisam e

questionam o problema da Democracia.
8

A INVENÇÃO DEMOCRÁTICA -- Os limitesdo

totalitarism o
Claude Lefort
O autor faz uma análise onde confronta democracia com
totalitarismo e situa a democracia entre duas formas
historicamente determinadas: o Antigo Regime e o Estado
Totalitário.

SOCIALISMO 0U BARBÁRIE -- O conteúdo do

Socialismo
Cornelius Castoriadis
Castoriadls faz uma análise crítica das utopias socialistas de dois
séculos atrás. do ''socialismo real de hoje'' e propõe uma nova
visão de socialismo.