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O poema samba-canção de Ana Cristina César (2016) é delineado a partir de um titulo

sugestivo sobre a musicalidade em si, não quer dizer que se trata de uma letra de música, mas
que há o ritmo ou embalo de um samba-canção, sub gênero do samba. Ou seja, pode-se inferir
o encontro de questões que esse gênero detém. Desde um sentimentalismo barato às
complexidades das paixões. O poema pode ser assim, ir de um extremo ao outro, de algo banal
a uma abordagem mais descritiva. Nesse momento, Susan Sontag (1964) faz emergir o caos
que as diversas interpretações estavam causando nas artes no geral, causando o
bloqueamento do sentir simplesmente devido a alta procura de subtextos na obra, de
respostas a perguntas, deixando de lado a forma da obra em si. Para Sontag a crítica literária
deve ir na contramão da interpretação conteudista. Deve-se ater a obra por ela mesma,
enxergá-la perante a ‘’luminosidade’’ das coisas, da “coisa em si”. De tal forma, o poema
samba-canção traz o ritmo e batida que suavizam situações, pormenores vividos. O samba-
canção grita, grita alguma dor, um desespero contínuo, o desejo não alcançado. Neste embalo,
o eu-lírico se volta para alguém de quem gosta, numa mostra de suas faces na estratégia de
conquista. Passou, então, a estar de maneiras que lhe colocasse no caminho certo, mesmo que
realidade jamais temos a certeza do traçado certo a seguir. Esse deslocamento que o eu-lírico
se dispôs é fatalmente humano, inteligível para nós todos que erramos, acertamos, diante das
relações e relacionamentos que nos permeia.

Numa ambivalência contínua e momentânea, adentrando nos prazeres desconhecidos, os


relacionamentos se quebram, se chocam, corpos duelam sensações e o que pode restar de
tudo isso? Somente no final entenderemos, mas quando é esse final? Que nunca chega,
estando sempre nos limites que nós mesmos construímos como castelos de areia. O eu-lírico
segue uma tendência que a altera, numa metamorfose que pode ser apenas uma alegoria das
movimentações que fazemos em torno da pessoa amada. De “mulher vulgar”, “meia-bruxa”,
“vândala”, estando no meio e permanecendo no meio porque as relações se constroem nesse
lugar, num encontro que se distancia cada vez mais do seu fim. Estar meio assim pode sugerir
que se trata de uma relação em que falta algo, e que o próprio eu-lírico sente isso, a falta de si
e do outro. Ana Cristina de certa forma suaviza esse emaranhado de metades dispersas que
estão desencontradas. Somos meio, e isso não pode ser tão ruim assim, pois na realidade a
completude fica cada mais longe de nossas mãos e olhares quando nos relacionamentos
porque o cruzamento de desejos, carícias, fluidos, corpos, fazem surgir novas dimensões do
próprio existir. Essa existência que é penetrada por outro alguém tão diferente e tão parecido
de nós. O “risinho modernista” traz uma ironia que é até sutil com nosso sentir. Até onde
chegamos enquanto nos relacionamos. O risinho de um jeito mais não tão preciso, que outrora
foi necessário mas que no momento se tornou limitante, que arranha na garganta, que quer
alterar o tom de voz, atenuar o agora. “Malandra”, “bicha”, “bem viada”, “quase
maquiavélica”, uma adjetivação constante que demonstra a inconstância do ser do eu-lírico,
que é tão comum a todos nós, ou seja, a inconstância em sermos algo para alguém. O quanto
se pode transgredir apenas para tentar ser amado, receber ao menos carinho como é dito ao
final do poema. Como você me quer? Parece ser uma das perguntas do eu-lírico. Quase
estando assim de um jeito agradável para o outro, mas e para mim? São discrepâncias em
torno de um diálogo entre sujeitos que parecem estar mais distantes do que um dia foram.
Então, o eu-lírico se valeu de mesuras, cortesias para agradar mesmo já se “emburrando”. A
cada passo algo cai, se perde, e não se vê mais. Se emburra, escancara um pouco do desprazer
de não sentir. Fez comércio de si, se vendendo a troco de quê? Se moldando, se descolorindo,
fingindo ser “rubra” atrás da palidez. Esse momento mostra o quanto essa desfiguração causa,
de um ponto a outro, pulando etapas não visíveis, de desencanto em torno de si. E tantas
vezes isso foi feito, como em cenas que são apenas junções de imagens postas uma após a
outra, rapidamente, como “spots” que formam o tracejo que seguimos diante de nós,
diariamente. Spots que são pontos e cada ponto um segundo, um momento de si, do outro.
Com o outro, e como disse Marília Garcia em O teste de resistores (2014), nosso trajeto se faz
paralelamente às nossas movimentações, o começo que vai se construindo durante. Esse
deslocamento do sujeito provoca inúmeras “possibilidades de transformações.” O furo
ocasionado na construção do filme descrito por Marília pode ser transposto para os “spots”
em samba-canção. Cada furo, uma interrupção, algo novo, a mais, entre os sujeitos, em cada
um a mudança.

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