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Aspectos ritualísticos e simbólicos do Jogo de Bola

Aspectos rituales y simbólicos del Juego de Pelota


Vera Barros de Oliveira
Universidade de São Paulo - Brasil
Resumo: Os rituais presentes nos jogos acompanham a escalada evolutiva, dos filogenéticos
aos culturais, sendo que se voltam sempre para a coesão saudável do grupo. Presentes nas
sociedades primitivas, adquirem o status de palavra e se manifestam associados ao culto do
sagrado, destinados a assegurar a preservação do elo com a divindade. O rito expressa uma
idéia e não pode se desvincular da imagem mítica que o ilumina e conduz. Por sua repetição e
transmissão torna-se veículo de tradição cultural, na qual se verificam ordem, tensão,
movimento, solenidade, ritmo e entusiasmo, características lúdicas essenciais. Os jogos de
bola, extremamente populares, fazem parte dessa trajetória, presentes nas civilizações antigas,
como entre os gregos, a Sphaeromaquia e entre os romanos, as associações de jogadores de
bola, os Pilicrepi. Símbolo da totalidade, a bola relaciona-se ao rotundus alquímico, imagem
de perfeição, alegoria do mundo. Registros arqueológicos pré-hispânicos do México
acompanham a origem e o desenvolvimento do juego de pelota, revelando-o como produto de
uma tradição de mais de três mil anos, podendo ser considerado do status onipresente da
cultura do milho e do uso do calendário. No jogo, tempo, espaço, posturas e movimentação
corporal adquirem um valor simbólico atrelado a uma representação mítica. A bola não pode
ser tocada com as mãos ou os pés. Sua simbologia expressa a luta entre os opostos na busca
da ordem cósmica e da fertilidade, a qual é alcançada por meio de um sacrifício humano pela
decapitação. No Brasil, o futebol, inserido profundamente em nossa cultura tem sua prática
junto a povos indígenas, com pequenas alterações. Assim, o Xikunahity, dos Parecis, jogado
com a cabeça, que comemora Wazare, entidade mítica de sua cultura, com bola de látex de
mangabeira. No alto Xingu, o Katulaiwa, jogado com os joelhos, visando também dar
continuidade à cultura do povo. O futebol vem tendo boa aceitação entre as etnias que
participam dos Jogos dos Povos Indígenas. Observa-se contudo que, além do grande
envolvimento que o jogo desperta, aspectos ritualísticos e simbólicos de coesão e renovação
cultural, devam ser preservados.

Palavras-chave: jogo de bola; jogo indígena; simbolismo do jogo; ritual do jogo.

Resumen: Los rituales presentes en los juegos acompañan a la escalada evolutiva, de los
filogenéticos a los culturales, aunque sigan siempre a la saludable cohesión del grupo.
Presente en las sociedades primitivas, adquieren el status de palabra y se manifiestan
asociados al culto del sagrado, para garantizar la preservación de la relación con la
divinidad. El rito expresa una idea y no se puede desvincularlo de la imagen mítica que
ilumina y guía. Por la repetición y la transmisión se convierte en vehículo de tradición
cultural, en el cual hay orden, tensión, movimiento, solemnidad, ritmo y entusiasmo,
características lúdicas esenciales. Los juegos de pelota, muy populares, son parte de esta
tendencia presente en las civilizaciones antiguas, como la Sphaeromaquia entre los griegos y
el Pilicrepi, las asociaciones de jugadores de pelota, entre los romanos. Símbolo de la
integridad, la pelota tiene que ver con el rotundus alquímico, la imagen de la perfección, la
alegoría del mundo. Registros arqueológicos prehispánicos en México acompañan el origen y
el desarrollo del juego de pelota, que se revela como el producto de una tradición de más de
tres mil años y se puede considerar del status omnipresente de la cultura del maíz y del uso
del calendario. En el juego el tiempo, el espacio, las posturas y movimientos corporales
adquieren un valor simbólico unido a una representación mítica. La pelota no puede ser
tocada con las manos tampoco los pies. Su simbolismo expresa la lucha entre opuestos en
busca del orden cósmico y de la fertilidad, que se alcanza mediante un sacrificio humano por
decapitación. En Brasil, el fútbol, de raíces profundas en nuestra cultura, tiene su práctica
con los pueblos indígenas, con cambios menores. Así, el Xikunahity de los Parecis se juega
con la cabeza, celebrando Wazare, la entidad mítica de su cultura, con la pelota de látex
mangabeira. En el Alto Xingu, el Katulaiwa se juega con las rodillas, también con el objetivo
de seguir con la cultura del pueblo. El fútbol ha tenido buena aceptación entre los grupos
étnicos que participan en los Juegos de los Pueblos Indígenas. Se observa, sin embargo, que
además del gran compromiso que el juego despierta, aspectos rituales y simbólicos de
cohesión y renovación cultural se deben preservar.

Palabras clave: juego de pelota; juego indígena; simbolismo del juego; ritual del juego.

Refletindo sobre a natureza e o significado do Jogo, Huizinga (2004) em seu clássico


Homo Ludens, considera ser impossível negar sua existência, ao mesmo tempo em que não se
consegue defini-lo. Ao tratar do Jogo como função da cultura, o autor acompanha sua
trajetória desde suas origens mais remotas até a fase da civilização dos dias de hoje. Como já
expunha Birket-Smith (1965), toda cultura, como um ser vivo, necessita, em sua história, de
condições internas e externas para sobreviver. O instinto gregário, argamassa milenar dessa
sobrevivência, traz consigo e mobiliza instintos de conservação e submissão.
O surgimento de um dispositivo social baseado em valores culturais, fracionado por
vezes, em função de etnias diversas, conduz a um novo tipo de relações entre o indivíduo e o
grupo, sendo que, o grau de sujeição sócio-étnica é tão forte para o indivíduo como havia sido
a sujeição zoológica que evoluiu para o homo sapiens, segundo Leroi-Gourham (1984, 1990).
Nos agrupamentos humanos, como ressalta o autor, a possibilidade de expressão e de
liberdade pessoal, afirmam-se lentamente, sendo que a relação indivíduo-sociedade apóia-se e
varia em função das estruturas tecnoeconômicas presentes no tempo vivido.
Da conjugação dinâmica entre técnica x comunicação/expressão surge e alimenta-se a
memória, registro vivo que dá forma e arrasta com sua força, valores e crenças do grupo, ou
seja, constrói-se e transforma-se, cria corpo e afirma-se como uma cultura. A passagem do
grupo zoo para o grupo étnico supõe uma lenta, sofrida e árdua conquista pelo homem do
universo simbólico. Em sua variada e extensa gama, as manifestações simbólicas interagem
entre si continuamente, compostas por simbolismos verbais, imagéticos, sonoros e
dramáticos, entre outros, com características religiosas, estéticas e sociais, em suas infinitas
combinações.

Os rituais e a preservação dos grupos sociais


Na criação e manutenção da coesão e preservação saudável dos grupos sociais, os
rituais desempenham um papel essencial, uma vez favorecem a comunicação interna, evitam
sua ambigüidade, criam laços entre os indivíduos e canalizam a agressividade para fins
inofensivos ao grupo. Nesse sentido, segundo Lorenz (1992), os rituais podem ser vistos
como instrumentos de coesão do grupo, uma vez que suprimem lutas em seu interior,
consolidam sua unidade e o garantem como entidade independente, ao velar por sua
especificidade, frente a grupos semelhantes, se preciso, pela oposição. Como sintetiza
Oliveira (1998, 2006), para o pai da Etologia, não resta dúvida de que toda a arte humana
emerge e se desenvolve a serviço dos ritos, havendo constituído aos poucos sua autonomia, ao
se liberar gradualmente do contexto ritualista, em um longo progresso cultural.
Por outro lado, na experiência humana do sagrado, segundo Eliade (1989, 1994), ritos
e mitos estão presentes e imbricados, sendo que a tomada de consciência da realidade vivida,
de um mundo real e significativo, está intimamente ligada à descoberta do sagrado. A
religiosidade, vista pelo autor como inerente ao ser humano,faz-se presente já em fases
arcaicas. As noções de Ser e de Realidade constroem-se e mantém-se firmes e vivas graças às
tradições. Como nos explica esse grande teórico, para o homem arcaico, os objetos externos
não teriam um valor em si, intrínseco, não seriam “reais” até adquirirem uma significação por
tomarem parte em uma hierofania, isto é, em uma manifestação do sagrado, através de um
ritual sacro que representa, em suma, o ato primordial mítico. Ao ser ritualizado, o objeto
recebe o “mana” que lhe dá realidade própria, separando-o do ambiente e lhe conferindo valor
e sentido.
Por meio desse processo mágico, o rito passa a representar a situação primordial e a
incorporar sua energia, ao ser dela depositário. Nesse sentido, a ontologia arcaica,
essencialmente tradicional, expressa-se através da repetição sem fim dos gestos e falas que
buscam reconstituir o começo dos tempos. A finalidade do rito é, portanto, repetir sem cessar
o ato da criação (Eliade, 1989).
Em seu bojo, contudo, o rito traz também a força da renovação. O binômio
conservação-inovação, proposto por Cassirer (1977) em sua Antropologia Filosófica
acompanha a trajetória humana. O caráter simbólico representativo dos rituais contem em seu
núcleo um vetor latente com dupla significação, a de uma repetição, mas também, a de uma
presença. A encenação ritualística acontece realmente, cria forma e se desenvolve por meio de
uma ação prenhe de vida e de emoção. Quem a anima e lhe dá vida é a imagem mítica que a
origina e lhe dá suporte. Rito e Mito formam, portanto, uma estrutura coesa, significativa e
dinâmica.

Jogo : terreno fértil da vida civilizada

Retomando Huizinga (2004), o mesmo assegura-nos que é no terreno fértil do Jogo,


em sua ligação íntima com o mito e com o culto, que brotam e se alimentam as raízes da vida
civilizada, de onde brotam e que constroem o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a
indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência .
Os jogos de bola, extremamente populares, fazem parte dessa trajetória, presentes em
civilizações antigas, dentre elas as que alimentam nossas raízes greco-latinas, como entre os
gregos, a Esferomaquia ( Sphaeromaquia, σφαιροµαχία), uma espécie de luta de Box, na qual
os lutadores tinham bolas de ferro atadas em suas mãos. O costume de organizar competições
com jogos, em suas origens gregas, possuía caráter ritualístico, sendo que essas celebrações
revelam sua ligação com o sagrado. Para Huizinga,o espírito agonístico atrelado ao jogo
aspira justamente à honra, à dignidade, à superioridade e à beleza. Entre os romanos, havia as
associações de jogadores de bola, os Pilicrepi, jogos com bolas de vidro.
Símbolo da totalidade, a bola relaciona-se ao rotundus alquímico, imagem de
perfeição, alegoria do mundo (Cirlot, 1984). Nas diferentes regiões da América, encontramos
os jogos de bola em suas diferentes manifestações, mas sempre atrelados aos usos e costumes
do povo do local, à sua trajetória histórica, às suas raízes, como seiva revigorante de sua
identidade e de suas aspirações mais elevadas.

O Jogo de Bola: produto e fonte de cultura e tradição

Registros arqueológicos pré-hispânicos do México acompanham a origem e o


desenvolvimento do juego de pelota, revelando-o como produto de uma tradição de mais de
três mil anos, podendo ser considerado do status onipresente da cultura do milho e do uso do
calendário. No jogo, tempo, espaço, posturas e movimentação corporal adquirem um valor
simbólico atrelado a uma representação mítica. A bola não pode ser tocada com as mãos ou os
pés. Sua simbologia expressa a luta entre os opostos na busca da ordem cósmica e da
fertilidade, a qual é alcançada por meio de um sacrifício humano pela decapitação.
Em seu texto El juego de pelota mesoamericano – origen y desarrollo, Taladoire
(2000), escreve que as 1.500 quadras de jogo de bola encontradas até hoje dentre outras
evidências arqueológicas , demonstram que o jogo além de ser uma prática desportiva
milenar, teve um papel ritual, político e, possivelmente econômico. No jogo, duas equipes, de
um a sete jogadores, cada uma, se enfrentam fazendo passes entre si ou jogando uma bola de
borracha não vulcanizada, isto é, não tratada com enxofre, processo que faria com que
conservasse sua elasticidade. Portanto, tratava-se uma bola mais rígida, e com
aproximadamente três quilos. Na quadra extensa em comprimento, dividida em dois, os
jogadores não podiam tocar a bola com as mãos, os pés ou a cabeça, apenas com os
antebraços, os ombros, as costas ou os glúteos, de acordo com o local ou a época. Usavam
luvas e joelheiras para se proteger, pois atiravam-se ao solo muitas vezes para alcançar a bola.
Os trajes dos jogadores eram vestidos também de forma cerimonial. A luta ritualística entre os
oponentes, entre contrários, faz parte da rica simbologia dos jogos de bola, assim como sua
significação profunda relacionada à fertilidade e até à sustentação e manutenção da ordem
cósmica.
O sacrifício humano entre a população da mesoamérica, em geral, oferecido ao final
do jogo, era visto como necessário para a estabilização do sistema cósmico e político, da qual
derivava a continuação da existência no mundo e da própria vida . Através de seus rituais, o
homem busca perceber uma outra realidade, um tempo que transcorre de outra forma (Uriarte,
2000). Nos rituais, o tempo histórico, que caminha e não volta atrás, para de correr. Cria-se
um hiato temporal, um corte, para que o tempo primordial volte a se fazer presente, e, com
ele, a organização primeira do cosmos volte a valer. Da mesma forma, o espaço, passa a ter
uma significação profunda e mítica, que acolhe e dá condições para que a encenação do
drama primeiro da humanidade seja representado e assim, a força motriz geradora de tudo que
nasce, cresce, se movimenta e se reproduz se revitalize. O ritual do jogo de bola encena o
teatro da Vida, onde morte e renascimento se perpetuam.
Em numerosas inscrições maias foi identificado o verbo “jogar bola”, o que significa
que, além de ser uma prática desportiva ritualística, tinha importante papel econômico e
político, relacionado com o poder e com a própria História da Mesoamérica, classificação
geográfica utilizada por Taladoire (2000).

A evolução dos campos de jogo de bola na Mesoamérica, segundo o autor , apesar da


diversidade das civilizações que o praticaram e o praticam, com suas diferenças culturais e
cronológicas, revela uma unidade simbólica. Segundo Choque, Cortés e Jiménez (2007),
várias são as hipóteses do simbolismo do jogo em suas associações mais freqüentes, como ao
rito de fertilidade, ao cerimonial guerreiro, a seu significado astral ou papel econômico,
baseado em interpretações documentais. A unidade simbólica do jogo encontraria uma
expressão na configuração espacial arquitetônica das quadras. Assim, a morfologia das
quadras se contrapõe a das pirâmides e se configura como uma abertura na terra que permite a
entrada, a penetração no inframundo, onde o rei ou o jogador herói enfrenta as forças
subterrâneas e assegura o renascimento da vida, a fertilidade, o fim da seca e da fome.

O simbolismo do espaço e do tempo nos Jogos de Bola

A delimitação espacial e temporal do Jogo é uma de suas características principais,


como considera Huizinga (2004), uma vez que ele se distingue dos enquadres do dia-a-dia,
tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa, uma vez que ele supõe isolamento e limitação
exigidos pelo ritual. Essa delimitação representa justamente sua separação da esfera da vida
comum. O jogo, nesse circunscrito tem regras. Como diz autor, o jogo cria ordem e é ordem.
O mito que inspira, conduz e vitaliza o ritual do jogo, contem a representação primeira
do drama da união/separação dos contrários, pois, é ao descer ao submundo que o jogador
consegue se elevar ao estrato mais elevado da vida humana, isto é, ao sagrado. Para tanto,
num ritual, o jogador mergulha de corpo e alma no jogo e sente não apenas fisicamente os
embates e tensões, vivenciados por seu corpo, mas também, os sentimentos e emoções que o
jogo desperta em seu espírito. Não se trata pois, de um faz-de-conta, mas de uma realidade
vivida intensamente, mas em outra esfera, o domínio do sagrado (Oliveira, 2006).
O substrato ideológico do jogo de bola, como um jogo sagrado teve para o homem
mesoamericano permite compreender sua grande difusão e sobrevivência, segundo Uriarte
(2000). A simbologia da luta entre contrários expressa nestes jogos possui também uma
iconografia, na qual aparecem animais e plantas. Em desenhos que adornam espaços
reservados ao jogo de bola, verifica-se a representação do sacrifício ritual com ingestão de
plantas alucinógenas, como a nínfea, planta aquática, associado à prática do jogo.
A prática do jogo de bola nos dias de hoje, segundo Turok (2000), fica a meio
caminho entre o sincretismo e a sobrevivência. Os esportes de origem pré-hispânica que se
praticam ainda hoje em dia são treze, sendo que a grande tradição espanhola do jogo de bola
teve influência em vários deles, gerando certa mestiçagem em diversas modalidades. O autor
ressalta que os espanhóis, e, em particular, os bascos, praticavam há tempos esse jogo.
Delineia algumas semelhanças e particularidade do jogo, praticado na Europa e na América.
O uso da borracha, por exemplo, introduzido na mesoamérica revolucionou a prática do jogo
na Europa.
Dentre os jogos com bola praticados atualmente que derivam de uma tradição cultural,
encontra-se a prática do futebol entre os ayamaras do norte do Chile, mantido como um
espaço de sociabilidade urbana, no qual mulheres e homens se afirmam e expressam sua
identidade, como relatam Choque, Cortés e Jiménez (2007). Em um campo de futebol e ao
seu redor, o povo aymara se reúne e as pessoas tocam instrumentos musicais, dançam, comem
e bebem. Neste espaço, a comunidade andina se revitaliza, atualmente, em espaço urbano,
como consideram os autores salientando que as fronteiras e elos entre um aymara e um
quéchua, ou entre um chileno e um peruano, são mais culturais do que geográficas. Visão esta
embasada em Barth (1970), que vê a dimensão dinâmica da etnicidade,

A experiência indígena no Brasil com os Jogos de Bola: algumas considerações

No Brasil, o Xikunahity (pronuncia-se Zikunariti), também conhecido futebol de


cabeça é tradicionalmente praticado pelos povos Paresi, Salumã, Irantxe, Mamaidê e Enawe
nê-Na wê. Semelhante ao futebol, é contudo jogado apenas com a cabeça. Segundo a tradição
paresi, é um jogo que comemora a festa de Wasare, entidade mítica, que, após acomodar seu
povo em sua chapada, fez uma grande festa de confraternização antes de regressar a seu
mundo. Durante a festa, Wasare mostrou a todos a função da cabeça no comando do corpo e
sua capacidade de desenvolver a inteligência e alcançar a plenitude mental e espiritual. Ele
também demonstrou que a cabeça poderia ser usada em sua capacidade física,
especificamente na habilidade para com o Xikunahity. Foi nesta comemoração que aconteceu
a primeira partida deste esporte; ou seja, entrando literalmente de cabeça.

A etnia Paresi é formada por 45 aldeias. Cultivam arroz, milho e batata doce e
comercializam seu artesanato em cerâmica.. Entre os pareci, o esporte só é praticado durante
grandes cerimônias, como: oferta da primeira colheita das roças, iniciação dos jovens de
ambos os sexos, reforma das flautas sagradas, caça, pesca e coleta de frutas silvestres
abundantes e a reincorporação de um espírito novo em doentes terminais. Atualmente, o
Xikunahity tem sido a modalidade mais praticada pelos paresi nos Jogos Indígenas.
Além do caráter místico, os paresi também praticam o esporte como diversão. É
realizado em campo de terra batida para que a bola ganhe impulso. A confecção da bola
também segue um ritual. Na fabricação, o látex da mangaba é colocado ao fogo, sobre uma
frigideira, até tomar um aspecto de panqueca. Em seguida, o índio morde a massa e a sopra
para formar a bola. O látex é espalhado em tiras sobre uma mesa, onde o material seca: a bola
é envolvida por camadas e fica mais espessa e pesada. A escolha da seringa de onde é extraída
a mangaba também é cuidadosa, não podendo esta ser fina. Para confeccionar a bola é
importante que o dia esteja quente e ensolarado, o que ajuda na secagem da liga.
Várias outras modalidades de jogos com bola são praticados no Brasil por povos
indígenas de diversas etnias, como o Rõkrã, jogado pelos Kaiapós, no estado do Pará, ao norte
do Brasil. Neste jogo, os atletas usam uma borduna como bastão e tentam rebater um côco,
que funciona como bola, para o campo adversário. O jogo assemelha-se muito ao Lacross,
praticado no Canadá, também de origem indígena, de onde se apreende a grande difusão
cultural que os jogos permitem, ultrapassando fronteiras geográficas e políticas.
Conforme tradições culturais desportivas dos povos indígenas no Brasil, há
informações de que etnias que desapareceram, praticavam diferentes versões do jogo de bola,
como os indígenas habitantes do Alto Xingu, MT, que praticam um esporte em que a bola era
arremessada usando somente os joelhos, chamado Katulaiwa, onde a regra se assemelha ao do
futebol. O primeiro encontro de indígenas de diferentes etnias para a prática do futebol,
aconteceu no dia 19 de abril de 1979, Dia do Índio. Foi organizada uma seleção indígena de
futebol, da qual participaram os Karajá, Terena, Bakairi, Xavante e Tuxá. Dessa experiência,
nasceu uma equipe de futebol de campo e salão composta por estudantes indígenas, chamada
Kurumim.
No Brasil, os Jogos dos Povos Indígenas foram criados com o objetivo de aproximar
os diferentes grupos étnicos e de valorizar suas diversas culturas, criando condições para que
expressem sua identidade cultural por meio dos jogos e de outras manifestações. Iniciaram-se
em 1996, com a participação de 29 etnias. Em suas diversas edições, esses jogos têm
evidenciado a valorização dos jogadores pelos oponentes, portanto honrando-os (Rubio;
Futada & Silva, 2006). Verifica-se o cuidado dos organizadores desses Jogos em buscar
manter firmes seus objetivos culturais, evitando o mero espetáculo de entretenimento.

Considerações finais
A presença viva e atuante dos Jogos de Bola nas mais variadas culturas e sociedades atuais
evidencia sua força de conservação e inovação, de manutenção da história, com seus valores,
desafios e conquistas, assim como de suas transformações. O caráter simbólico e ritualístico
dos jogos de bola pode ser visto desde a pelada que é jogada na praia aos grandes
campeonatos internacionais de futebol, entre outros jogos de bola. A delimitação da quadra
configura o espaço reservado do jogo, onde valem suas regras, onde os adversários precisam
respeitá-las sob o risco de serem excluídos. A duração do jogo também delimita seu tempo,
tempo este diferente do das obrigações habituais do dia-a-dia, delimitação temporal esta que
traz em sua memória a ruptura com a realidade e o vínculo mítico com o sagrado. Daí a
grande comoção que acompanha os jogos. Jogadores e torcedores das diversas agremiações
unem-se de corpo e alma. Daí também os riscos que essas competições trazem consigo, de
extrapolação emocional, com possíveis agressões físicas e verbais. Veículo de vida, o jogo
traz em seu cerne o risco da morte, seu complemento natural, daí também a relevância de
estar atrelado a valores culturais e humanos de convivência.

Referências

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