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Índice

Índice 1

Orbital 3

I - Des(ins)istência 7

II - Indefinida Espera 8

III - Inerte Sonhador Apático 9

IV – Buliçoso Sonhador Vívido 10

V – A Névoa De Psique 11

VI – O Preço De Não Haver Esforço 12

VII – A Assistente 13

VIII - Das Repugnâncias 15

IX - Paciência Para Com Um Ébrio 16

X – Esplendor De Uma Papelaria 17

XI – Precipícios – A União Na Divisão 19

XII – Fado Do Entediado 20

XIII – Soneto Infrutífero 21

XIV – Hierarquia 22

XV – Intriga 23

1
XVI – Irresponsivo 24

XVII – Vento 25

XVIII – Deslindo 26

XIX – Arrogância 27

XX – Impulsividade 28

XXI – Cansaço Poético 29

XXII – Pena 30

XXIII – Ricochete 31

XXIV – Perdição 32

XXV – Em Nome Do Pai 33

XXVI – Uma ponte 34

XXVII – Sobre A Lua 35

XXVIII – Precipícios – A Divisão Na União 36

latibrO 37

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Orbital
Metade de mim não é verdade,
Sou ínfima parte de Maior Instinto;
Quiçá rumo à Luz, quiçá Labirinto...
Quiçá uma prova de Cristandade.

Eu, que sempre fugi, nunca rezei,


Atado à divisão de universos,
Falido entre cadáveres perversos,
Onde a Discórdia reina sobre a Lei:

Agora assoberbado, reagindo


Em perspicácia às transmutações
Que me fizeram, de Invernos, Verões;
Do baixo, alto; do reles, lindo.

Distraído com mal, velado em vício,


Mesmerizado pela psicose,
Perdera tudo o que tinha em posse,
Homologando prévio auspício.

Para me conter, sempre afirmava


Que o meu ardor, meu vaticínio,
Eram obras de ulterior desígnio
Duma força primitiva e brava.

Foram subindo meus irmãos e amigos,


E eu estagnado no trilho lunar,
Envolto em prazeres da Água e do Ar,
Incapaz de edificar abrigos;

3
Muito recostado p’ra colocar
Pedras sobre templos ou jazigos;
Apático perante os perigos
Ópticos de quem se deve adorar.

Cravara, de Afrodite, os frutos,


Curioso de sabores imensos;
Porém, os prazeres mais densos
Azedaram com terríveis lutos.

E, sobre mim, a Flauta da Origem,


Marco da Eternidade em Rebelião,
Liberdade por Imaginação;
Encontrara o Homem na Vertigem.

Mas o meu corpo urgia em voltar a ser


Louco! Por apetites grotescos,
Selvajaria sem cavalheirescos,
Falsos saudosismos de entorpecer...

Ignorei simbólico devir


Num horror e dor inalienáveis;
Tão poucas emoções afáveis
Pareciam no futuro reluzir.

Eis-me na circundante calçada,


Martírio giratório, orbital,
Ilusão de elevação a pedestal
Em caminhos que vão dar a Nada.

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Regatearia a Sorte com o Destino
Face à Inércia do Desprendimento,
Só a Evolução e extensão do argumento
Me trariam ao estado cristalino.

Se me entregasse ao esmorecimento,
Preguiça e Presunção que abomino,
Seria o espectro do meu nome fino
Entre as máculas do Firmamento.

Mas nem sempre a luta é fácil, branda;


Há que saber domar a Gravidade...
E quando o Espaço não nos é confrade,
Torna-se escura, a nossa demanda.

E até que tudo desabe à volta


Dos Escolhidos, os Elementos
Aglomeram-se em constrangimentos,
Erguendo o espírito da Revolta!

Pobre do que cede e abandona a Paz


Para perscrutar dentro a Dúvida:
Afundar-se-á na Terra húmida
Que a alma nenhuma regala ou compraz.

Por isso até é mais afortunado


Quem permanece sempre ignorante,
Capaz de não se exaltar perante
Os fenómenos do Mundo Criado.

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Fecundidade imaginativa,
Não! Ímpio afundado na senda,
Fardo de pesar triste sem emenda
No vácuo oculto da Alma cativa!

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I - Des(ins)istência

Estava cansado da vida,


Pronto a saltar a vedação
Quando, de entre o jardim ancião
Me chamou uma flor colorida.

Inspirado, regressara
À Natureza multiforme
Da substância que não dorme
E movimento que não pára.

Decepção! Fraude! Diabrura!


Chegar e ver que murchara
A raiz da minha ternura...

Sem porta nem abertura


Ou via de volta à esfera rara
Onde sofri brutal tortura...

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II - Indefinida Espera
Se algo sinto em teu recordar,
É sempre uma forma ou imagem,
E a dor que vem da miragem
Sussurra que vou sufocar.

Embora intuição do certo,


Sempre é o auspício sem rigor
Mensageiro de maior temor,
Pois que mostra o tempo aberto.

Temo então ver-nos felizes


Trespassadas as distâncias
Que fomentam dissonâncias
Entre as rosas e as raízes!

Mas temeria mais soubesse


A circunscrição exacta,
A própria causa, hora e data
De enredos que a mente tece.

Tudo ver não me é cabido!


Resta-me sentir – desejo
Que a luz em que nos almejo,
Num futuro indefinido,

Não condene de iludido


Este pobre que te espera,
Disputando com a Fera
O Domínio do Sentido.

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III - Inerte Sonhador Apático

Tive um roteiro de avaro tédio


No Reino da solidão de cristal.
Mas vi, um dia, em rimas feitas mal,
Reflexo terapêutico, remédio.

P'lo verso, acorrentava o demónio


Causador de toda a minha inércia –
Talvez morta relíquia da Grécia,
Sob o nome dum Rei Macedónio

Reencarnada, vivaz e disposta


A acometer-se aos prazeres da era
Em que roubou uma vivência vera,
De males e imperfeições composta.

E descobri que a doença não estava


Em mim, mas num corpo separado
Que alguma mulher havia abortado
Torpe e terna, dum deus que a violava.

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IV – Buliçoso Sonhador Vívido

Adormecia no leito das feridas,


Embalado p'las ondas de um mar
Eterno, onde as memórias são vidas
Astronomicamente coloridas
E não há força que o disturbe ou pare.

Lá, sempre era o mesmo, o seu tormento:


Dragavam-no, tentavam extraí-lo de alas
Desenhadas pelo sôfrego alento
(Paixão e labor remando contra o vento);
Virtudes, não lhe concediam lográ-las.

Negros vácuos impuros, que cativo


Tentavam, opressivamente, manter
O seu espírito, para que o deus vivo
Não penetrasse o atmosférico ruivo,
Tão pai do esplendor quão do Sol a nascer.

Ei-lo, Ares, acorrentado a Afrodite


Perante outros deuses, nu de vergonha!
Presa no sonho, não há como levite,
A Vontade – e o Vigor! – de quem permite,
Amiúde, que o seu todo se exponha.

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V – A Névoa De Psique

Lá caminhava, de punhos cerrados,


Amarguradamente cabisbaixo
Por entre as ruas dos citadinos prados.

Ia em busca do cíclico lenitivo


Que ilusoriamente lhe estancava a dor
(Movendo, nos ilude, o passivo).

Dia após dia, enclausurava-se na prisão


Onde tinha já cumprido a sua pena:
Retornava ao claustro por desilusão

Para com o mundo que descobrira,


E servia-se doses de melancolia
Em que se mal fala, mal se respira...

Deitara assim grande parte da Vida


A fundamentos infundamentados,
Enquanto se lhe infectava a ferida –

Porque o tempo exigente nunca perdoa,


E aquele que busca em futilidade
Verá quão veloz o Rei das horas voa.

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VI – O Preço De Não Haver Esforço

Deixa a mãe dormir e sai de casa


Para ir curtir com o namorado –
Talvez brincar com o seu gelado,
Jogar água sobre a mata em brasa.

Entre as coxas, já vai apertadinha


E molhada, a cueca que se mal vê:
Sabia que fácil um macho se vinha
Quando deixava o corpo à sua mercê.

Julgou todos os homens por iguais


Mas à recepção ficou admirada.
Disse-lhe o justo: “Não é com genitais
Imundos que ma vais pôr hasteada!”

E a moça, encavacada, sem mais não,


Em vez de as sacras partes ir lavar,
Deixou-lhe no rosto a sombra da mão
E entoou: “Deve ser triste não entesar!”

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VII – A Assistente

Preparou-se para o trabalho,


Rompia a manhã quando entrou no carro,
Abriu a porta coberta de orvalho,
Pintou os lábios, acendeu um cigarro.

Na noite anterior foi o marido quem


Lhe preparou, com carinho, o jantar,
Mas p’ra com ele só mostrou desdém –
Nem teve tempo de se aperaltar.

Comeu à pressa, sem reclamações


Ou assunto sobre o qual conversassem,
Pois só lhe ocorria que os bons patrões
De olhos atentos desaprovassem

A sua apresentação se engordasse;


Depois deitou-se com a tragédia,
Negou ao triste homem o livre-passe,
Ignorou o durão, tirou-lhe a rédea,
E o infeliz falou: “Isto é uma comédia!
Já nem te apraz que te beije ou abrace!”

E ela levantou-se, p’ra das unhas


Ir tratar, com limas e vernizes –
Não dissessem, quaisquer testemunhas,
Que o seu cuidado enfrentava crises.

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Pois ei-la hoje, requintadíssima,
Aprontada para o soberano
Com uma túnica riquíssima
De seda, adquirida de um cigano.

Tão cedo, melhor não vestirá


(Bom já será, se tiver merenda!...)
Porquanto agora que marido não há,
Da sua cave até a porta está à venda!

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VIII - Das Repugnâncias

Não gosto de piadas convenientes


Nem de broncos rituais salutares.
Humanos que a outros erguem altares
São mais loucos que os veros dementes!

Estou condenado a irremediáveis fúrias


Pelos pacóvios sorrisos de bom dia,
Por essa malta triste que se refugia
P’los cafés – viscosos antros de lamúrias!

Fartei-me de duplamente beijar


Caras que nunca vira pintadas!
De ingerir o seu bafo às alvoradas
Com cheiro barato p’ra disfarçar.

Ah, e os que nos berram do passeio oposto,


Que vêm falar nem que a pessoa esteja nua?
Bendito homem – bendita paciência tua!
Possuis o mundo assim que lavas o rosto...

Esta é a Terra dos que estudaram


Para se tornarem homenzinhos,
Porém, por que são tão mesquinhos,
Oh deuses, não me elucidaram!

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IX - Paciência Para Com Um Ébrio

Tombai um pouco mais desse sangue de Cristo


Na minha taça de chapa já fervida,
Que ora é seca de haver sido tão lambida;
Vertei o vinho, que ninguém mais me convida
Para olvidar todo o mal que tenho visto.

Talvez percamos a noite na conversa,


Mas que fazer ante um licoroso Porto?
Não penseis que um de nós se quedará morto –
Quando muito, vai para casa torto,
Com visão desfocada e a razão dispersa.

Puxai um banco e avivai as memórias, lembranças


Dos tempos que, p’ra nós, jamais regressarão –
Que venha um copo por cada recordação!
Subiremos ao auge da consciente expansão
Erguendo o passado entre tantas mudanças!

Um pouco mais de vinho e talvez eu esqueça


Que desci ao mundo sem me ser dada escolha,
Que me encerraram no claustro duma bolha,
Que sinto a vida mais fina que uma folha
E que troquei o coração pela cabeça.

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X – Esplendor De Uma Papelaria
Dormia na cama e tornei à papelaria
Onde imprimira as palavras primeiras...
Mas eram, à vista, os objectos sem beiras;
Só pude distinguir que brilhava o dia.

Era-me estranha, a razão da visita


Mas emproei-me p’ra ditar o pedido;
Tão pasmado fiquei – até algo aturdido! –
Quando surgiu a habitual rapariguita

Que tinha sempre um sorriso p’ra atender,


Muito digno e honesto, sem traço d’ ócio;
Nela realçavam as olheiras e o bócio,
Rugas de quem tem muito para dizer.

Mantinha o tom expressivo, mas cansado,


Comum aos depressivos que não comem.
E enquanto falava, surgira um homem,
Já meio tosco, vesgo e alquebrado.

Miraram-me os dois e eu lo fiz de volta;


Pairava no ar a mórbida estranheza
E o vaguíssimo senso de leveza
Que só no fim o corpo físico solta.

Não os via em carne, mas num activo calor


Que ondulava sem cessar por um instante;
Assim era o retrato delirante
Do futuro anunciado com Esplendor.

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Foi quando, sem dar um passo, pude ouvir
Ecoar a gargalhada de uma criança,
E embalado em melodias de esperança,
Quis saber de toda a cidade o porvir.

Levitei sem levitar, uma vez mais!


E só então avistei os magníficos jardins,
Purificado rio, caminhos sem fins,
Milhares de infantes dançando com os pais!

Por fim, ao retornar da visão vasta,


Testemunhei o início do descanso
Do casal que tudo vendera ao ganso
Que levou a papelaria numa pasta...

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XI – Precipícios – A União Na Divisão

Quanto mais medo tenho,


Menos assustado me sinto –
É no medo que me embrenho!
E eu vou sem armas ao labirinto:

Vê-me a passo de louco!


Acendendo e apagando esferas!
Escuta o meu grito rouco,
Ó voraz dragão que te obliteras!

Desenlaçar o mundo
E tê-lo, nas mãos, dividido...
Maldito eu, quanto redundo!...
Queria-lo sereno... Adormecido...

19
XII – Fado Do Entediado

Há meses que cogito uma fuga


Do litoral para o denso interior;
Vento vai soprando, a pele enruga,
E o espaço é o mesmo – não muda de cor...

Estou acorrentado a esta cidade!


Abnegado à prova das montanhas,
Revivo o sonho de mocidade:
Rio infinito, florestas estranhas...

O meu espelho de transe, a passagem


Da alma é como atravessar o Sado,
Serenando-me, até à outra margem,

Onde o espectro da labuta ávida


Se esconde por entre ou detrás das praias
Em prostração perante a Arrábida.

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XIII – Soneto Infrutífero

Mentiria se dissesse
Que não tenho saudades
Das efemeridades
Em que o amor aparece.

Se chegasse a declarar
Que o nosso fim de Verão
Edificou uma ilusão,
A enlouquecer não ia tardar.

Pondo o meu temor na Arte,


Faço branco do preto,
Deliro conquistar-te,

Mas não – não me prometo


Que o Verbo vá abalar-te
Na harmonia de um soneto.

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XIV – Hierarquia

Os dias são um ciclo de busca


Interminável mas latente;
Nocivos à alma doente
E inspirada em pesquisa brusca.

Que não viva quem não pode


Suportar uma Quimera
Às costas. Falo da esfera
Onde cada outra esfera eclode.

Existe a Razão arbitrária


Pela qual uns, ricos nascem
E outros aguardam viragem
Na eternidade precária.

Verdade, o oiro não é de todos


E alguns nem podem tê-lo em mão –
Julgam portar a perfeição
E ter soçobrado os engodos!

Cuidado, homem! Bem vestidos,


Nestes dias, todos podemos
Andar – com o que parecemos
Não custa enganar sentidos.

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XV – Intriga

Fui parido na Era do desinteresse,


Do povo em que se inculcaram fulvas ânsias;
Era em que findaram as cartas e distâncias
Como o laço entre o envio e recepção esvaecesse.

Prezo e rezo o malogro das circunstâncias,


Que a estes tempos meu coração não enternece,
E espanto não era se o espírito adoecesse,
Tombasse, ante este palco de exorbitâncias.

Onde há menos regras é onde há mais costumes,


Donde todos hoje se amem, fodam, bebam,
E ainda não se privem de engenhar queixumes.

Natural que enquanto avancem, retrocedam;


Sentirão Apolo a fustigá-los por ciúmes
Dos méritos e histórias que distorceram.

23
XVI – Irresponsivo

Quem não conhece os prantos sós, cinzentos?


Noite, dor agreste e fel insuportável,
Trabalhos, questionamento interminável,
Razias por toda a estrada de tormentos?

Sabei: não há postura mais abominável


Com que ripostar aos acontecimentos –
E por certo procura desabamentos
Quem se torna, ao vão malogro, vulnerável.

Procurai nos livros vossa escapatória,


Ó vozes dos infindos sepulcros vindas,
Se aspirais a uma existência meritória.

Se é vosso rumo vir a ver luzes lindas,


Um dia, considerai ter mão da Vitória –
Esse Fauno hediondo e acompanhantes Ninfas!

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XVII – Vento

Se um dedo singelo me tocasse


Agora, de súbito, nos ombros,
Era impossível que não pensasse
Vê-lo vindo, meu amor, dos escombros...

Que os meus sóis volvem sempre num impasse


De génio reduzido aos assombros
Do passado eclodindo-se em estrondos
Que urge ao demonstrar o desenlace.

A certa altura, nem o louco sabe


Que alma outra desafia o pensamento,
Drenando-o ao pasto, às florestas jade:

Como eu, rubro amor, inútil tento


Decifrar a origem da saudade
Que sofro sempre que passa um vento!

25
XVIII – Deslindo

A vós me dirijo, ó tenro amante,


Que hoje decidistes à vossa voz
Pintar, por minha mão e tinta veloz,
Pois o fim foi um quadro delirante.

A vida desenleou todos os nós


Pela ponta de uma espada errante
E enveredou-vos, paixão triunfante,
Vã formosura, por túnel de mós.

Desenquadraram, por e sobre mim,


Laivos, lamúrias, torpes memórias,
Astros que orbitavam de frenesim –

E a intempérie de erradas vitórias


Cobriu, com um velcro ruivo e carmesim,
Os meus pecados, minhas escórias.

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XIX – Arrogância

“Ah, do avesso me virasse este lamento


E me tornasse um puro cabrão frívolo!”
É por lo ter clamado que hoje o símbolo
Se me tornou pátria de obscurecimento.

Os loucos de amores fazem do olho ídolo,


Constringem a voz e a razão do julgamento,
Vivem para saciar o vil resfriamento
Propagado no seu carnal vestíbulo.

Por isso é mesmo a carne aquilo que mais dói


Aos que adormecem de coração ripado
Pela dor que é, que será, e pela que já foi;

Sofrendo por um tormento arquitectado,


Discernirão tais almas que nunca houve um herói
Dentro de si latente por deus planeado?

27
XX – Impulsividade

Ó tu, que enalteces o passado


E favoreces espirais agruras,
Sai hoje do limite das alturas!
O teu espectro é vão, mortificado...

Ninguém vive onde habitam loucuras...


Não no terreno esterilizado,
No poço do sacro profanado –
Tudo o que é demais causa rupturas...

Destranca o desterro do Inconsciente,


Mas que ao sonho sempre vejas Prata;
Cuida o sopro ruivo fervescente

Que assombra assim que a mente dilata


E o resto do teu fraco corpo sente,
Sucumbindo, uma Erótica Abstracta...

28
XXI – Cansaço Poético

Ouve – escuta bem o pedido de descanso


E as barbáries que dizes! Ouve o sereno
Amparo da Voz da Mente; sente-te pleno,
Vagar de céu brando, lagar de rio manso.

Nem sempre ao pedir é o corpo trapaceiro –


Se fechado o pórtico do seu conseguir,
A alma virá ao corpo; mas a Alma quer sempre ir
E, revoltada, fará luz no nevoeiro,

Abrirá portas pelas quais possa voltar...


Oh! Funérea carne envelhecida nas rachas,
As grutas ventosas que não podes fechar!

Dorme já – ou a Vida levar-te-á cavernosas


Umbras, dores de olvidares aquilo que ÉS!
Não vás pelos espinhos... Vai pelas Rosas.

29
XXII – Pena

Atravessou-se-me hoje no passeio


A figurinha da pobre Constança;
Faz dez anos que lhe pedi dança
E sugeri qualquer coisa pelo meio.

Ninguém via, dentro de si, esperança –


Ela própria fazia do mundo recreio,
E a sua juventude em fulvo devaneio
Cerrou ao parir prematura criança.

Constança, pobr’ alma, enfatuada assim...


Fazendo-se carregar mais peso
Em horas de dançar com vestes de cetim.

Ah! Lamento esse infante indefeso...


Outro destinado a ver o Sem-Fim!
Filhos da mãe em que o mal está preso...

30
XXIII – Ricochete

Arrumava os talheres no refeitório,


Onde não trabalhava nem tinha obrigação –
Mas logo me chamaram ao cuidado, à atenção,

Em tom de superioridade, vexatório:


“Tira, badalhoco, dessa loiça a tua mão!”
“Ai de mim!” se me lista no reportório
A alta engenheira do sobretudo finório

Que julga olhar do céu os porcos que andam no chão.


Quem vos dera, ó mulher da visão enublada,
Ter em vossas mãos das minhas a pureza –

Aí poderíeis cantar a antiga badalada


De quem se acha dono da divina certeza.
Olhai, engenheira, minhas mãos – vereis nada
Que não sejam cicatrizes da Beleza.

31
XXIV – Perdição

Num dia surges, noutro logo te vais –


Culpa minha, amor, desta loucura!
Embarco às vezes na desventura
Da paixão, mas todo eu por ti sou de ais.

Um ai a este amor egoísta que perdura,


Outro à desaprovação pelos demais;
Um ai ao regozijo que terei jamais,
Ao meu dardo de amor que não fura

Corações moles, corações duros,


Nem permite alcançar a Vitória
Entre os espíritos claros e puros.

Ai, musa! Venenosa memória


Vai-me drenando a prantos obscuros
E eu conheço a dor – não é transitória...

32
XXV – Em Nome Do Pai

Veio arrasar tudo, este abalo do meu tédio,


Após te procurar por meio provocador –
Que a real palavra não mente: provoca dor
Querer selar a dor com doce remédio.

Fui tão parvo, tão tonto, levado de amor


A escalar pelo grandiosíssimo prédio
Na demanda, busca do domínio régio
Sobre mim mesmo e meu eternal, triste pavor;

E hoje a queda de quem não teve colégio


Coabita-me – mísero artista sem vigor,
Sem vontades de exumar o sacrilégio...

Fede o Fado – e a Fortuna! – do profanador


Condenado à descida neste milénio;
Dista um deserto entre si e o nome do Senhor.

33
XXVI – Uma ponte

Quando há uma ponte, já nem sei o que sinto,


Já nem sinto ou falo sobre o que penso –
Resvala-se a Psique num manto denso,
E o senso de vida é não mais distinto.

Acontece mais por cansaço extenso,


Prolongado a noites de labirinto
(É nas brumas da noite que me pinto
Entre Vénus e Mercúrio, suspenso!...)

Pois mesmo quando a bruma ao meio se parte,


Pasmado acordo, como que ainda em sonho,
E é infrutífero tentar evitar-te...

Mas não te conheço e de ti disponho...


Nasce umbra de martírio, depois a Arte,
E à Alvorada torno ao mundo medonho.

34
XXVII – Sobre A Lua

Viria a ser benesse, a aliança do intelecto


Com a força da juventude e formosura,
À passagem por calendários de agrura,
De tédio – meu lenitivo predilecto.

Que enquanto alado em Lua de carnal ternura,


Minha inteligência não excede a de um insecto –
Só me ocorrem volúpias que, sob um tecto,
Congregaram nossas almas sem censura.

Pois o Ritmo da Palavra traz-me unção


Sacra, ostentação da Poesia Mágica,
E no Verbo descubro alguma Libertação;

Mas se, porventura, me quedo em trágica


Veia irreversível de louca imaginação,
Minha alucinação, a criação esporádica.

35
XXVIII – Precipícios – A Divisão Na
União

Há sítios onde a Inspiração me não chega


(Porque iguala o amor), seja em mar ou terra –
Rejeita a alma como refinada pega,
E essa, vingativa, em seu covil se encerra.

Depois, do que vê, nada mais desenterra


O espírito confiado a uma consciência cega –
É nos pilos do Tártaro que se aferra,
Engolfando-se no vapor da bodega.

E estes sítios não limitam o planeta –


Como não se resume um homem às suas falhas –
Mas reprimem, proibindo, a Arte da caneta;

Pairam-lhes em cima atmosferas grisalhas...


Lá não vereis anjos, homens, ou o estafeta
Alado que oscila entre os Ares e as fornalhas.

36
latibrO
Do Vácuo oculto da Alma cativa
Após a busca por interior emenda
Se ergue um ímpio afundado na senda
Repleto de fecundidade criativa

Teve em si novo Mundo Criado


Com trabalho brutal, delirante
Ainda torna ignoto, ignorante
Do que o teve nas umbras cerrado

A alma nenhuma regala ou compraz


Afundar-se na Terra húmida
Para perscrutar dentro a Dúvida
Cedendo e abandonando a Paz

Ergue-se o espírito da Revolta


Aglomeram-se em constrangimentos
Dos escolhidos, os Elementos
Até que tudo desabe à volta

Torna-se escura a nossa demanda


E quando o Espaço não nos é confrade
Há que saber domar a Gravidade
Mas nem sempre a luta é fácil, branda,

Entre as máculas do Firmamento


Seria o espectro do meu Nome fino
Marco da renúncia que abomino
Se me entregasse ao esmorecimento

37
Me elevam ao estado cristalino
Só a Evolução e Extensão do Argumento
Face à Inércia do Desprendimento
Eu dito a minha Sorte e o meu Destino

Vi Caminhos que vão dar a Nada


Presumi elevação a pedestal
Martírio giratório, orbital
Não se escapa se é pedida essa jornada

Fadados à Fusão no meu porvir


Logos, o Triunfo e Glória inabaláveis
Porto vontade e empenho estáveis
Enalteço o dom para remir

Fim aos saudosismos de entorpecer


À selvajaria sem parentescos
À loucura de apetites grotescos
O meu corpo já não urge por prazer

Tornei-me um Homem na Vertigem


Entre o Real e a Imaginação
Domando a baixa Rebelião
Com o som da Flauta da Origem.

Entreguei à Morte e aos lutos


Os odores dos desejos densos
Os sabores corporais imensos
A ilusão de afrodisíacos frutos

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Adorei quem se deixou adorar
Deixei para trás meus inimigos
Pedras sobre templos ou jazigos
Aprendi, lentamente, a colocar

Fundei os meus palácios e abrigos


Com terra, fogo, água e ar
Abri as portas no trilho lunar
Subindo ao passo dos irmãos e amigos

Duma força primitiva e brava


Eram obras de ulterior desígnio
Que o grande ardor, o vaticínio
Para me guiar, reformulava

Revelou-se o prévio auspício


Encontrei o que tivera em posse
Liberado das astrais psicoses
Abluí o mal e dispersei o vício

Vi no alto, o baixo; no reles, o lindo


Nos Outonos, Primaveras; nos Invernos, Verões
Sofrendo as dores das transmutações
Que me moldaram no Infindo

Não há Discórdia entre a Lei


Ergui-me dos corpos perversos
Atei as cordas de universos
Segui a Luz do Astro Rei

39
Vencido o escombro, a Insanidade
Volto aos degraus do Labirinto
Trago em mãos a cabeça dos Instintos
E as sangrentas manchas das verdades

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Edição adaptada a formato digital pelo autor em 2022.

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