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Quod non fecerunt barbari, fecerunt Barberini

2024

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Adultério umbilical

Minhas memórias são como aldeias de um paraíso


quiliástico, em sonho arrependido,
onde onduras de louvor perfazem remidos.

As próteses de meu amor ainda sentem o gemido


da flácida vontade aborrecida,
do préstimo penhor arraigado.

Porque, Senhor, sou voz do abismo?..


Quando nada mais é, eis que tudo é pecado.

Malditas fostes, ó cadeias de meu suplício,


quando movestes montanhas em pensamentos
fugindo às quimeras - quaisquer mosquitos!

Nada mais arde como na arte dos púberes momentos,


já que tudo é unguento, nada mais é martírio.

Então porque, Senhor, sou tão bom?


Inventador de hóstias, comendador de pão!

Em verdade vos digo: antes me confundir com cizânia do que servir de trigo
insandecido.

Enigma da compaixão

Há poucas razões para o homem esquecer-se de si mesmo e passar a


enternecer-se pelos maltrapilhos em torno. Uma delas é o arrefecimento de si mesmo.
Afinal, quem mais o pode interessar? Talvez um filho, rebento áureo de sua
comédia; talvez um pai, lamento ao vento de seu ódio envelhecido. Talvez… mas
nehum deles é capaz de superar seu grande amor pelo próprio ventre - de tudo, um
“entre”.

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Possa o naturalista me julgar, o calvinista me fugar, o vaticinio contra a barbárie
é o prejuízo de toda razão. Ela não é uma aposta - sequer uma proposta! - para os
dentes que mordem o impedimento.
Pois a razão é aquela vidente das coisas que estão supostas. Dentre todas, a
compaixão. Musa do incomestível, virgem vestal dos Santos anjos! Esta é o grande
enigma do querigma de nossa paixão, a imaculada moça que os brutos sonham
corromper.
Já que a verdadeira mácula se esconde onde a compaixão se enternece…

O fruto permitido

Ócio, terror do mendaz.


Que lhe precipita o bócio,
que lhe apraz a garganta,
que lhe invita o zelo e o desfaz na pujança.

O crime de Adão não foi matar a fome, mas dar vida à gula,
chula irmã da luxúria,
vã partícipe do nada.

O fruto permitido era tudo que não fosse um mero vácuo,


e ele pecou por ser furtivo
às delícias de um Deus tão permissivo.

Assim sendo - Morra, Adão! Já que o tédio se tornou proibição em paraíso


arrefecido,
como a morte se ligou a sujeição do desfrute original.

Adão foi salvo - eu, ainda insisto.

Barbarismo e ideia

O barbarismo deixou de ser um dispositivo normativo de distinção imperial e passou a


ser uma ideologia reformática de implosão civilizacional - em outras palavras, de palavra, se
tornou um método.

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Os antigos bárbaros foram homens que se chocaram com a fronteira limítrofe de seus
entendimentos. Não compreendiam o que estava lá, irrompendo na outra margem. Isto fez
com que as rusgas de sua situação presente se tornassem as sementes de todo futuro
subsequente - pois no embate, se tornaram o outro.

Isto significa que: é típico do bárbaro desconhecer sua situação concreta. Ser bárbaro
significa: não conhecer a sua situação identitária dentro de um contexto específico amplo.
Portanto, o barbarismo pode ser considerado uma questão de consciência, não de etnicidade.

Esta é a tentação, que os civilizados depõem contra os bárbaros - sua inconsciência em


relação ao dado. Não a qualquer dado, mas ao dado de identidade, de relação com o todo, de
pertencimento ao mundo.

Acontece que, na medida em que o mundo civilizado se tornou sinônimo de


mundo cristianizado, formou-se - no interior do próprio império da fé - ilhas de
barbarismo ideológico, um novo barbarismo que se formou como ideal de reversão ante
a força sobrenatural da conversão.

Em certa medida, o novo empreendimento bárbaro se tornou uma caricatura


satânica do ser civilizado. O velho hábito da rapina impôs-se como condição supérflua
da rebelião e as excelsas instituições milenares foram, por suas hordas, reduzidas a
objetos dourados potencialmente derretíveis no cadinho de suas ásperas objeções.

É neste ínterim que o conceito bárbaro deixou de ser uma distinção e passou a ser
um mecanismo independente. Agindo sobre a massa homogênea da consciência
predominante e suspendendo os limites territoriais do justo olhar, o mecanismo
funciona como um vírus ideal que se reproduz na medida em que morre seu hospedeiro.

Hoje, barbarismo e idea se mesclam como norma universal de subversão. E quem


não está ciente disso, se tornou bárbaro por habituação.

Trovas e troças

A Divina Comédia deixou de ser icônica,

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passou a ser cômica,

sinal de senelidade.

A antropo Tragédia real é a falta de humor crônico,

infinito binômio

de infelicidade.

Se não há maldade na comédia não haverá bondade no trágico

- eis aí a quintessência da melancolia.

Toda malícia se esconde no rancor ao réu felício,

no candor de um interstício

da inglória afasia.

Ânsia dos cônegos,

empatia dos ímpios

- aí subjaz a grotesca predileção ao inerme.

Nossa maior troça é se desfazer da trova

e aplacar a inércia! da gáudia ledice.

Antigos monumentos, modernas ruínas

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Nossa civilização atual é a somatória de todos os acertos passados e de todos os
erros futuros - um monumento falaz das ruínas a muito desejadas.

Lance um olhar sobre a esperança: antiga lembrança de algo nunca visto. Ela
sobrevive incauta entre as sórdidas aparências de progresso. Sim, o mesmo progresso
que hoje é apenas um assalto do pensamento comum foi, a pouco tempo, um poder de
congregação universal. Sua transformação se deu na medida em que transformaram o
futuro em uma realização presente.

Ninguém mais pressente uma ausência vindoura, mas tão somente, uma presença
enaltecida da vitória sobre o pretérito. Esta convicção nos arrasta à decadência da
esperança, que anda de mãos dadas com a falência do objetivo. Enquanto nos ocupamos
com a vanglória no pináculo das realizações humanas, perdemos o interesse pelo
desígnio máximo de nossas existências: o fim de tudo.

O fim de tudo - fim de qualquer referência segura no devir - traz a esperança do


início de alguma coisa extra experimental. Não há fim que não comporte este desejo de
continuidade, pois toda a própria noção de fim carrega a fé na próxima estação. Ou
alguém neste mundo opera cognitivamente segundo a experiência do vazio posterior?

O caráter expectante é o verdadeiro plano de referência no qual toda a inteligência


se estabelece. A remoção desta referência no horizonte de pensamento reinante indica
não sua ausência, mas a nossa! diante de sua presença virtual permanente.

As modernas ruínas se referem a este horizonte perdido e mumificado por


efêmeros monumentos de atualidades subversivas.

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