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TEORIAS NA GEOGRAFIA

Avaliação crítica do pensamento geográfico


ELISEU SAVÉRIO SPOSITO E GUILHERME DOS SANTOS CLAUDINO
(ORGANIZADORES)

Teorias na geografia
Avaliação crítica do pensamento geográfico

CONSEQUÊNCIA
© 2020, dos autores

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T314
Teorias na Geografia: avaliação crítica do pensamento geográfico / organi-
zado por Eliseu Savério Sposito, Guilherme dos Santos Claudino. - Rio de
Janeiro, RJ : Consequência Editora, 2020.
600 p. ; 15,5 x 23cm.

Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-87145-12-9
1. Geografia. 2. Teoria. 3. Pensamento geográfico. 4. Pesquisa. I. Sposito,
Eliseu Savério. II. Claudino, Guilherme dos Santos. III. Título.

2020-3234 CDD 910


CDU 91

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410


CAPÍTULO 9

Teorias da economia política e a Geografia


Edilson Pereira Junior

Introdução

A trajetória da geografia como ciência é marcada por reviravoltas teóricas


e metodológicas, face às quais suas linhas de interpretação e seu objeto de
pesquisa são repetidas vezes revisados. Todas essas “viradas” resultam de
condições internas da própria geografia, tais como incertezas acerca dos
métodos de questionamentos, da operacionalização dos instrumentos de
análise e das abordagens mais adequadas à leitura de mundo.
Contudo, as condições externas são igualmente influentes. Milton
Santos informa, em A natureza do espaço, que a leitura de uma disciplina
acerca do mundo (neste caso, a geografia) é uma “parcela autônoma, mas
não independente, do saber geral” (SANTOS, 2017 [1996], p. 20). Desse
modo, construir os caminhos de observação de uma disciplina e definir
seu objeto de estudo passa por operações de correlação com outras dis-
ciplinas, pois o “mundo é um só”, e a leitura que vai de uma abordagem
mais delimitada a uma visão abrangente demanda operações simultâneas
e conjugadas entre um grupo de disciplinas (SANTOS, 2017 [1996]).
O que é verdade para a geografia como um campo amplo de interpre-
tação da realidade também é para seus subcampos de investigação e, neste
texto, buscamos analisar as reviravoltas presentes na subárea da geogra-
fia econômica ao longo do século XX e nas primeiras décadas do século
XXI. Tal como aponta Benko (2008), isso só é possível se considerarmos
as transformações dentro da própria geografia econômica, suas condições
internas, mas também as condições externas e suas turbulências.
No âmbito destas últimas condições, podemos dizer que elas provêm
(BENKO, 2008): 1) das mudanças nas linhas de interpretação de outras
disciplinas, em especial a economia política e a ciência econômica; e 2)
das instabilidades nas condições econômicas e sociais do mundo, a in-

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quietarem estudiosos, gerando uma percepção distinta das reformula-


ções nos principais programas de pesquisa utilizados pelas temáticas em
estudo (MARTIN, 1996).
Pensar as relações entre geografia e economia política num contex-
to de instabilidades globais é pensar as interfaces entre as categorias es-
paciais (espaço, território, região, lugar etc.) e as atividades econômicas.
Sabemos que somente muito tarde na história dessas ciências essas rela-
ções são estabelecidas e, até a publicação de trabalhos pioneiros, como
os de Johann-Heinrich von Thünen e Alfred Marshall, poucos estudos
aprofundam essa pauta. Como informam Talandier e Pecqueur (2018), a
conhecida heterogeneidade do espaço (e sua consequente dificuldade de
modelização) e as particularidades geográficas da Inglaterra (país onde
as bases dos estudos econômicos são lançadas) minimizam o papel das
superfícies espaciais e das distâncias sobre a produção e as trocas de ri-
quezas.
Porém, a despeito dessa prolongada indiferença, muita coisa muda
desde a metade do século XX e vários esforços são feitos no sentido de
articularem análises econômicas com abordagens espaciais, num movi-
mento que parte tanto de economistas quanto de geógrafos. Walter Ch-
ristaller e Paul Krugman, em contextos e décadas diferentes, são bons
exemplos de autores que realizam tais esforços.
Desde então, inúmeras questões são levantadas e vários programas de
pesquisa, desenhados. Primeiramente, os estudos em geografia econômi-
ca e em economia espacial gravitam em torno da questão da convergência
do crescimento econômico inter-regional e das razões pelas quais existe
uma hierarquia espacial de assentamentos. Ao considerarem esta pauta,
alguns trabalhos clássicos são realizados, como demonstram Alfred We-
ber e seus estudos sobre localização da atividade econômica, François
Perroux e sua teoria dos polos, Walter Isard e sua análise regional e David
Harvey e seu desenvolvimento espacial desigual.
A partir do final do século XX, sobretudo na década de 1990, o centro
do palco passa a ser dominado por estudos de casos setoriais. Segundo
Clark (2018, p. 4), este é um momento em que “a revolução quantitativa é
contornada e deslocada por um modo mais qualitativo e especulativo de
análise, na esperança de representar a extensão espacial e a diversidade
da vida econômica”. Há uma tentativa de teorizar as diferentes formas de
interdependências entre atores “ancorados” em um “território”, cujas di-
Teorias da economia política e a Geografia 273

versas formas de manifestação destacam experiências de competitividade


e cooperação, a envolverem questões de inovação e desenvolvimento tec-
nológico, num contexto de relações transescalares que associam elemen-
tos variados.
Todas essas linhas de interpretação projetam importantes experiên-
cias espaciais da atividade econômica, mas também se amparam em teo-
rias da economia política e da ciência econômica. Neste texto, procura-
mos apresentá-las e desdobrá-las, assim como buscamos estabelecer uma
relação com as dinâmicas geográficas em discussão.
Além deste item introdutório, um segundo item trata das principais
teorias em economia política/ciência econômica que legitimam um con-
junto de interpretações sobre o pensamento que analisa a geração, a troca
e as manifestações do valor. Enquanto isso, um terceiro item contempla
resumidamente as diversas abordagens de investigação espacial dos fe-
nômenos de produção, circulação e consumo; e um item final sublinha o
esforço de interação/tensão entre geografia, economia e economia políti-
ca, que no fundo corresponde a uma intensa vitalidade intelectual sobre
esses campos de discussão.
A intenção é revelar os desafios que se lançam para a geografia na
compreensão da diversidade de processos e de fenômenos econômicos
abrangentes que não podem ser negligenciados por aqueles interessados
em entender as múltiplas dimensões e as reviravoltas que impactam os
olhares sobre a espacialidade econômica.

Teorias em Economia Política

Desde quando Adam Smith (1723-1790) publica seu seminal trabalho


(A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas,
1776), com o objetivo de entender essencialmente o sentido da riqueza
das nações, o campo de estudo da economia concentra-se na investiga-
ção sobre a tomada de decisão humana em relação ao uso de recursos
escassos. Smith é apresentado à economia política pelos economistas da
Escola da Fisiocracia1 francesa, François Quesnay (1694-1774) e Turgot

1 Trata-se de uma teoria econômica desenvolvida na França, durante o século XVIII,


que imputa às terras agrícolas e ao desenvolvimento da agricultura a origem da riqueza
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(1727-1781), mas logo se opõe a eles, sobretudo ao defender a pers-


pectiva de que a riqueza dos povos se funda na divisão do trabalho e
na liberdade econômica (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013; DROUIN,
2008).
A base de tais ideias se pauta no postulado do laissez-faire, segundo
o qual uma “mão invisível”, ou uma ordem natural que não deveria ser
contrariada, permitiria a harmonia dos interesses contraditórios dos in-
divíduos. Desse modo, para Adam Smith e também para muitos outros
autores em economia política que o sucedem na Inglaterra do século XIX
– dentre eles David Ricardo (1772-1823), Thomas Malthus (1766-1834)
e os utilitaristas ingleses2 –, a busca de ambições e interesses particulares
levaria ao enriquecimento da coletividade, tendo em vista que cada indi-
víduo é incentivado a responder à demanda dos outros com o objetivo de
extrair de sua atividade o maior benefício possível.
Legitima-se uma abordagem tornada hegemônica acerca dos princí-
pios em economia política, isto é, o ser humano é visto como uma uni-
dade isolada, conduzido pelo desejo egoísta, para o qual todas as moti-
vações são comandadas pela necessidade de sentir prazer e aliviar a dor
(utilidade crescente e decrescente).
O mercado seria o ambiente onde tais indivíduos se encontrariam e
a harmonia das trocas, a especialização econômica e a divisão do traba-
lho garantiriam o equilíbrio de seu funcionamento. Como consequência,
esse mercado só poderia ser universalmente benéfico e deveria permane-
cer livre para levar a sociedade ao progresso econômico e social. De igual
maneira, a acumulação de riquezas e de capital só seria possível com o
aumento dos lucros, portanto seria necessário um esforço coletivo para
que ele não fosse comprometido.
Este conjunto de premissas e algumas de suas críticas mais contun-
dentes erguem as bases das principais correntes em economia política e
em ciência econômica desenvolvidas nos séculos XIX e XX. São elas: 1)
a ortodoxia marginalista/neoclássica; 2) a virada keynesiana; 3) a crítica
da economia política marxista; e 4) as teorias heterodoxas de Schum-
peter e Thorstein Veblen. Este item objetiva apresentá-las de maneira
resumida.

dos povos.
2 Ver principalmente Jeremy Bentham, Jean-Baptiste Say e Nassau Senior.
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A ortodoxia marginalista/neoclássica

A ortodoxia marginalista, depois conhecida como neoclássica, reforça a


mensagem transmitida pela economia política clássica e pelos utilitaristas
de que existe uma harmonia autorregulada dos mercados, fundamentada
em práticas de interesse próprio da economia e governadas por regras de
concorrência perfeita. O centro do debate prioriza o comportamento hu-
mano racional (microeconomia) e suas decisões econômicas, que serão
sempre maximizadoras de lucros (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013).
Ao completar a reflexão utilitarista, a concepção marginalista/neo-
clássica informa que a satisfação de cada necessidade requer certa quan-
tidade de um bem ou serviço. À medida que a quantidade de um bem
aumenta, reduz-se a satisfação obtida. Assim, o valor (preço) de cada
bem é dado pela utilidade proporcionada pela última unidade disponí-
vel desse bem, isto é, a “utilidade marginal” (HUNT; LAUTZENHEISER,
2013; DROUIN, 2008). O valor de um bem, então, é determinado por sua
última porção, ou seja, por sua porção menos desejável, e a maneira de
descobrir a relação entre utilidade total e utilidade marginal desse bem se
dá a partir de um cálculo infinitesimal, o que explica a presença marcante
da matemática como ferramenta de análise dessa corrente.
Segundo Eleutério (2001), a teoria neoclássica nasce em diversos paí-
ses, sob culturas econômicas diferentes, quase ao mesmo tempo, na dé-
cada de 1870. “Entre os pioneiros acham-se Carl Menger (1840-1921), na
Áustria; Léon Walras (1834-1910), na Suíça; Stanley Jevons (1835-1882)
e Alfred Marshall (1842-1924), na Inglaterra” (ELEUTÉRIO, 2001, p.
11). São autores que analisam o “indivíduo genérico”, isento de relações
sociais e que se orienta invariavelmente por suas preferências subjetivas
quando procura atender ao seu próprio interesse.
Todas as versões da teoria neoclássica partem da suposição de que
a economia é formada por “um conjunto de agentes econômicos, e que
estes são possuidores, de um lado, de preferências ou escalas de utilidade
e, do outro, de dotações de fatores, dentre as quais se incluem determi-
nadas quantidades de capital”. Então, cabe a esta corrente de pensamento
mostrar como o “mecanismo de mercado, por meio da produção, da cir-
culação e da repartição, faz um casamento ótimo ou quase ótimo entre
o emprego dos fatores e a satisfação dos consumidores” (ELEUTÉRIO,
2001, p. 12).
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Poderíamos classificar as muitas vertentes do pensamento neoclássico


em três grupos que, obviamente, não têm ideias mutuamente excluden-
tes: a) as investigações que concebem o capital como um fundo de subsis-
tência (Jevons, Böhm-Bawerk e outros); b) as investigações em que o ca-
pital é tratado como um estoque de valor (Wicksell, J. B. Clark, Marshall
etc.); e c) aquelas em que ele é considerado como um simples gênero,
constituído por uma coleção de quantidades de bens de produção com
diferentes qualidades físicas e que prestam diferentes serviços produtivos
(Walras)” (ELEUTÉRIO, 2001, p. 12).
Os desdobramentos dessa teoria nos séculos XX e XXI são muitos
e bem representativos, por exemplo, há “uma versão macroeconômica,
que se caracteriza por empregar variáveis agregadas como produto na-
cional, consumo, renda, quantidade de moeda etc., na qual entram, gros-
so modo, os fatores de produção capital, trabalho e terra” (ELEUTÉRIO,
2001, p. 12). Também há “uma versão microeconômica, em que os fatores
de produção são considerados, um a um, como quantidades homogê-
neas, e os consumidores e as firmas são agentes que tomam decisões in-
dividualmente” (ELEUTÉRIO, 2001, p. 12).
Por fim, as principais questões lançadas pela corrente econômica neo-
clássica contemporânea tendem a lidar com a divergência de opiniões em
termos dos “microfundamentos” de seus modelos. A contribuição da Es-
cola de Chicago, sobretudo com Milton Friedman, e da Escola Austríaca,
com destaque para Friedrich von Hayek, é significativa, principalmente
depois que inclinações monetaristas dessas escolas passam a exigir tra-
tamento rigoroso da macroeconomia a partir de um controle inflacio-
nário que vincula massa monetária ao volume de produção de um país
(HUNT; LAUTZENHEISER, 2013; DROUIN, 2008).
A partir de 1980, verifica-se um avanço contínuo desses fundamentos
nas escolas de formação de economistas e nos governos, e o contexto
econômico e político do mundo possibilita um pano de fundo perfeito
para este avanço. Como consequência, o presidente Reagan, nos Estados
Unidos, e a primeira-ministra Margaret Thatcher, no Reino Unido, inau-
guram um movimento de aplicação governamental dessas medidas que
se difunde rapidamente para vários países. A inflação do início dos anos
1980 seria eliminada com uma severa recessão, seguida de uma recupe-
ração, e, segundo o pensamento liberal, o que estaria por trás disso seria
o princípio neoclássico de que as estruturas e dinâmicas sociais são o
Teorias da economia política e a Geografia 277

resultado de escolhas econômicas racionais, tomadas por indivíduos au-


tônomos, com interesse próprio, agindo em mercados capitalistas livres e
com grande poder de autorregulação.
Mesmo com as turbulências causadas pela crise financeira internacio-
nal em 2008/2009 e pela epidemia da Covid-19 em 2020, testes decisivos
para os pressupostos neoclássicos, prevalecem nas escolas de economia
as concepções que acreditam na ampliação tendencial da competitivida-
de baseada em medidas como controle de inflação, abertura das econo-
mias, privatização, foco na eficiência dos mercados e desregulamenta-
ção na circulação de riquezas. São ideias que permanecem firmes e que
tendem a sustentar as linhas hegemônicas de interpretação baseadas nos
cânones do mercado livre e autorregulado.

A virada keynesiana

Diferentemente da corrente neoclássica, John Maynard Keynes (1883-


1946) ensina a considerar o sistema econômico em seu conjunto e a ana-
lisar as interações entre as diferentes grandezas da economia nacional.
Elabora uma crítica aos que acreditam na economia de mercado como
uma soma de comportamentos e estratégias individuais, realizando uma
virada teórica ao romper com alguns fundamentos liberais. As razões
para isso vêm da interpretação dos conturbados anos 1930, quando os
acontecimentos gerados pela crise econômica atingem o mundo (DROU-
IN, 2008).
Keynes é um dos intérpretes mais criativos desses acontecimentos.
Ele sai da escola de formação neoclássica de Cambridge como um dos
melhores alunos de Alfred Marshall, portanto, tem tudo para dar con-
tinuidade aos estudos sobre concorrência perfeita e autorregulação dos
mercados. Mas não é isso que acontece: a partir de várias publicações,
entre elas a sua importante obra intitulada A teoria geral do emprego, do
juro e da moeda, publicada em 1936, Keynes procura mostrar o que está
acontecendo com o capitalismo, para que se possa tomar medidas com
vistas a preservar o sistema (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013).
Um dos primeiros encaminhamentos metodológicos para tal em-
preitada é olhar a realidade pela grande dimensão, sugerindo estudos de
macroeconomia, segundo os quais a nação, e não os indivíduos e firmas
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isolados, é a realidade mais relevante. Então, a partir deste ponto de vista,


sob quais condições a nação poderia crescer regularmente? A resposta é
que este crescimento não é automático, sobretudo em função da dificul-
dade de equilíbrio entre o poder de compra das pessoas e a capacidade
de produção a partir de investimentos. Os ajustes meticulosos entre uma
dimensão e outra devem ser feitos pelos governos e bancos centrais, que,
por sua vez, necessitam gestar os problemas financeiros e monetários
(KEYNES, 1983).
Na tentativa de elucidar o problema para a depressão econômica dos
anos 1930, Keynes descobre que é impossível contrabalançar livremente
os níveis crescentes de poupança gerados pelo crescimento econômico.
Por consequência, conclui acerca de uma inabilidade dos capitalistas em
encontrar suficientes oportunidades de investimento face às instabilida-
des da economia de mercado. Com esta conclusão, ele contesta a “lei dos
mercados” de Jean-Baptiste Say, um dos pilares do pensamento neoclás-
sico, para a qual a oferta cria sua própria demanda. Keynes se inspira em
Malthus para apontar os efeitos perversos da poupança numa condição
de subemprego e inclui o seu excesso como um dos principais responsá-
veis pela crise do período em que vive (KEYNES, 1983).
A solução encontrada para este problema gera polêmica entre os or-
todoxos liberais, pois sugere que, se a poupança excede os investimen-
tos, o governo deve entrar em cena, recolhendo o excesso de poupança
mediante empréstimos e investindo o dinheiro em projetos de utilidade
social (escolas, hospitais, parques, infraestrutura etc.). Keynes diz que a
insuficiência dos investimentos é a causa da depressão, em especial por-
que eles são fatores dinâmicos na economia, capazes de assegurar o pleno
emprego e influenciar a demanda.
A hipótese rejeita o teorema neoclássico segundo o qual o mercado
tende espontaneamente para o equilíbrio e para um crescimento seguro.
Em contraponto a essa concepção, Keynes explica que, como os empre-
sários estão em busca de maximizar seu retorno monetário, não se deve
esperar que suas decisões caminhem para a geração do pleno emprego.
Muito pelo contrário, isso gera desemprego, que é o resultado de uma
demanda insuficiente de bens e serviços, e só pode ser resolvido por meio
de investimentos.
Para Keynes, somente uma política governamental anticíclica poderia
garantir as condições de pleno emprego, gerando uma taxa significativa
Teorias da economia política e a Geografia 279

de crescimento econômico por longos períodos. O capitalismo até po-


deria resolver seus problemas, desde que os governos soubessem fazer
uso de seu poder de cobrar impostos, contrair empréstimos e despender
dinheiro.
Segundo Hunt e Lautzenheiser (2013), pouco após a publicação de A
teoria geral do emprego, do juro e da moeda, Keynes debate com os críticos
vários aspectos de sua nova teoria. Contudo, devido a inúmeras obriga-
ções profissionais e atividades durante a “Segunda Guerra Mundial, bem
como seu importante papel na Conferência de Bretton Woods, que esta-
belece o regime monetário internacional para o período do pós-guerra,
ele nunca tornaria a realizar novos trabalhos significativos na área de teo-
ria econômica” (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 592).
Felizmente, para animar esse debate, há “um grupo de jovens econo-
mistas que se identificava com Keynes e que assume a tarefa de dissemi-
nar as novas ideias a partir de seus alicerces teóricos” (HUNT; LAUTZE-
NHEISER, 2013, p. 592). Destacam-se, na primeira geração de discípulos,
Joan Robinson (1903-1983), Nicholas Kaldor (1908-1986), Roy Harrod
(1900-1978) e Evsey Domar (1914-1997), que contribuem em duas áreas
de particular interesse da teoria keynesiana: os estudos sobre distribuição
e sobre crescimento econômico.
Por outro lado, uma das realizações significativas de Paul Samuelson
(1915-2009) é atenuar as diferenças entre as interpretações heterodoxas
keynesianas (macroeconomia) e a economia neoclássica (microecono-
mia), convencendo muitos economistas de que as mesmas poderiam
ser trabalhadas juntas e que não eram concorrentes (HUNT; LAUTZE-
NHEISER, 2013). Mas a reação é iminente: a partir dos anos 1970 e 1980,
um grupo de economistas conhecidos como “pós-keynesianos” (Paul
Davidson, J. A. Kregel, Hyman Minsky, Jordi Galí e Mark Gertler) refun-
dam as ideias sobre desenvolvimento econômico e, combinando as ideias
de Keynes com as de Michal Kalecki (1899-1970), Joan Robinson (1903-
1983) e Piero Sraffa (1898-1983), reafirmam o lado crítico da tradição he-
terodoxa, desta vez destacando o papel da moeda e do sistema financeiro.
Também a partir dos anos de 1980, em função de uma proeminência
dos postulados neoclássicos, a economia keynesiana passa a ser lida em
muitas escolas como um apêndice macroeconômico dos princípios orto-
doxos.
280 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

Uma virada importante viria com a crise financeira de 2008/2009 e


sua recessão prolongada em escala mundial, que reascende o debate key-
nesiano, principalmente as ideias sobre “preferência pela liquidez”, “de-
semprego voluntário” e a política fiscal/gasto público na alavancagem da
atividade econômica.
A surpreendente reação dos governos e de alguns economistas, in-
clusive neoclássicos, face à tragédia global da Covid-19, em 2020, tam-
bém recupera preceitos keynesianos clássicos, entre eles a elaboração
de políticas por parte dos governos e bancos centrais, tais como a im-
pressão de moeda e a transferência de renda a indivíduos e empresas.
Ditas como “dramaticamente necessárias” até por ortodoxos do mer-
cado financeiro, as medidas são defendidas em função do choque de
oferta e de demanda causado pela doença infecciosa e pelos esforços
para contorná-la.
Os postulados de Keynes não gozam do prestígio que tiveram no pós-
-Segunda Guerra Mundial, quando sustentaram as bases das decisões
econômicas e políticas que levaram aos trente glorieuses (BENKO, 2008;
CLAVAL, 2008;). Porém, mesmo com a defesa da ortodoxia neoclássica
nos últimos anos, que se torna paradoxalmente robusta após a crise dos
subprimes,3 o debate heterodoxo há muito não ganha tanta expressão. Os
efeitos econômicos e sociais observados pela disseminação da Covid-19
superdimensionam essa necessidade. Levará tempo até saber seu real im-
pacto nos fundamentos e nas teorias que lhe fazem oposição.

Marx e a crítica da Economia Política

Karl Marx (1818-1883) é um dos autores mais influentes dos últimos dois
séculos. A produção de seu pensamento mistura propostas filosóficas,
análises históricas/sociológicas, projetos políticos e abordagens econô-
micas, mas, obviamente, para este texto, são priorizadas as investigações
de natureza econômica, mesmo sabendo que seu sistema intelectual é um
todo integrado e em certas situações é preciso recorrer ao contexto apro-

3 “Subprime  (do  inglês  subprime loan  ou  subprime mortgage) é um  crédito  de risco
concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa
de  juros  mais vantajosa (prime rate)”. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Subprime.
Acesso em: 8 jun. 2020.
Teorias da economia política e a Geografia 281

priado desse conjunto para que algumas partes da análise não fiquem
comprometidas.
Influenciado pela filosofia alemã do começo do século XIX (sobretu-
do Hegel) e atuante nos movimentos socialistas franceses, Marx é apre-
sentado à economia política inglesa de Smith, Ricardo, Malthus e dos uti-
litaristas nesse mesmo período e propõe a ela uma crítica contundente.
Uma das principais indagações é que contradições epistemológicas des-
ses estudos impedem os economistas clássicos de observarem disfunções
intrínsecas da economia capitalista.
As ideias que sustentam o sistema intelectual de Marx evoluem ao
longo de várias obras4 e, nelas, questões relativas à natureza, às origens
e ao modo de funcionamento do capitalismo são priorizadas. Aos uti-
litaristas e a Malthus predominam críticas veementes, mas a Smith e a
Ricardo as opiniões são ambíguas. Por exemplo, apesar de ser influencia-
do pelo pensamento de Smith sobre a teoria do valor e dos lucros, Marx
discorda da analogia simples que ele faz entre a divisão do trabalho na
sociedade e a divisão do trabalho numa unidade de produção industrial.
Na teoria marxiana, a divisão social do trabalho tem um caráter uni-
versal e coletivo e está presente em todas as formas de sociedade, pois se
pauta no “valor de uso” e numa forma de trabalho considerada “útil” para
o trabalhador, que estabelece também uma relação de pertencimento
com seus resultados. Por outro lado, a divisão do trabalho numa fábrica
industrial impõe uma segmentação das atividades aos empregados, su-
jeitando-os aos ritmos de uma produtividade ascendente, regulada pelo
tempo da produção, pelo aperfeiçoamento das máquinas e pela concor-
rência no mercado, remunerando-os em função do “valor de troca” do
trabalho, ou seja, pelo nível de rendimento da reprodução da força de
trabalho (condições de subsistência) (DROUIN, 2008).
Diferente da abordagem realizada pelos economistas liberais, cuja
análise se centra no “indivíduo genérico” isento de relações sociais num
universo de trocas livres, a teoria do capitalismo de Marx se fundamenta
na relação entre homem e outros homens, ou seja, nas relações sociais.

4 Para assuntos econômicos são relevantes as discussões presentes em “Para a crítica


da economia política” (1859); nas anotações posteriormente publicadas com o título de
Grundrisse, escritas entre 1857 e 1858; e a conhecida obra intitulada O capital: crítica da
economia política (1867, vol. 1), cujos dois volumes finais foram concluídos por Engels em
1885 e 1894.
282 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

Por isso, na sua concepção, não há sentido em falar de fatores de produ-


ção separados e independentes, pois a produção, a distribuição e a cir-
culação das mercadorias são essencialmente coletivas, capazes de trans-
formar trabalho humano em mercadoria (HUNT; LAUTZENHEISER,
2013).
Em última instância, esse movimento leva a uma acumulação am-
pliada de capital, com riqueza crescente dos proprietários dos meios de
produção e consequente exploração/pobreza relativa da classe operária.
Para Marx, isso se dá porque a riqueza, na sociedade capitalista, é medida
pelo tempo de trabalho produtivo que os homens gastam na atividade
econômica ao desempenharem funções diferenciadas e complementares
(MARX, 1983). Ocorre que a diferença entre o valor criado pela força
de trabalho na forma de mercadorias e a compra dessa força de trabalho
por seu valor de troca gera um trabalho excedente não remunerado pelo
detentor dos meios de produção. A isso Marx chama de “mais-valia”, ou
seja, o sobrevalor oriundo do trabalho excedente não pago, resultado da
exploração da força de trabalho, mas também a única mercadoria cujo
valor de uso pode criar valores superiores aos necessários para produ-
zi-la (DROUIN, 2008). Tal condição só é possível porque os capitalistas
monopolizam os meios de produção e, ao mesmo tempo, impedem os
produtores diretos (os operários) de fabricarem de forma independente
os bens necessários para sua subsistência (MARX, 1983).
Consequentemente, a mais-valia pode ser dividida em “mais-valia ab-
soluta”, cuja origem emerge diretamente do trabalho não pago, e “mais-va-
lia relativa”, que decorre de maiores investimentos nos meios de produção
e, portanto, de um aumento da produtividade nos setores de produção.
Com a evolução histórica do capitalismo, a tendência é a mais-valia re-
lativa comandar os rumos da acumulação, fazendo com que o capital
constante (máquinas e equipamentos) se sobreponha ao capital variável
(trabalho humano) e desencadeie crises frequentes no sistema em função
do desenvolvimento progressivo da produtividade social do trabalho (ou
seja, o aumento da composição orgânica do capital) (MARX, 1983).
Como é possível observar, a explicação marxiana para o desenvolvi-
mento do capitalismo ganha ares de uma narrativa histórica. Desde o
surgimento do capital como uma relação social, que ocorre em função de
vários pré-requisitos históricos, até a efetivação do capitalismo monopo-
lista, que envolve alta especialização técnica e do trabalho, um conjunto
Teorias da economia política e a Geografia 283

de diferentes formas de produção é vislumbrado. Para Marx, no início do


capitalismo, a tomada forçada e sangrenta de todos os meios de produção
(acumulação primitiva) é suficiente para dar o poder aos capitalistas. Em
seguida, o autor destaca as diferentes formas de produção capitalistas que
se sucedem, enfatizando que na “manufatura” há uma divisão subjetiva
do trabalho e, posteriormente, é a negação dessa subjetividade que marca
o processo de produção na “grande indústria”. A “grande indústria”, desse
modo, suprime o trabalho individual pelo trabalho socializado e o pro-
cesso de trabalho torna-se uma necessidade ditada pelas forças produti-
vas do trabalho coletivo (MARX, 1983).
O efeito direto desse processo é a generalização do modo capitalis-
ta de produção, de tal maneira que o produto dos diferentes trabalhos
concretos só é reconhecido socialmente quando trocado por dinheiro.
Como resultado da absolutização do valor, a cooperação capitalista apa-
rece como uma divisão do trabalho na fábrica e na sociedade, onde uma
hierarquia irá separar proprietários e trabalhadores em escalas diferentes
de apropriação, salário e modo de vida.
Mesmo assim, na concepção de Marx, esse arranjo sistêmico com-
plexo e bem articulado apresenta falhas que podem levar a ajustes des-
concertantes ou mesmo ao colapso do sistema. São imperfeições ou
contradições internas, que correspondem às próprias leis de movimento
do capitalismo, definidoras de ciclos de reprodução marcados por crises
setoriais, concentração econômica, tendências à queda da taxa de lucro
e uma miséria crescente da classe trabalhadora (HUNT; LAUTZENHEI-
SER, 2013).
Tudo isso, segundo Marx, compromete a escalada incessante de acu-
mulação de capital e criam instabilidades agudas no sistema, convulsões
que são circunstâncias de sua necessidade de reprodução. As próprias leis
de movimento do capitalismo, agindo separadamente ou em conjunto,
se contrapõem à sua sobrevivência e, em algum momento, o capital será
“aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior de produ-
ção social” (MARX, 2011, p. 1034).
A esperança de Marx está na capacidade que a classe social operária,
ao mesmo tempo produtiva e oprimida, tem de se insurgir através de
uma tomada de consciência política. Isso levaria os explorados do modo
de produção capitalista a um reconhecimento de sua condição e, con-
sequentemente, à defesa de seus interesses específicos de classe. A com-
284 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

preensão de suas necessidades e a coalizão dos trabalhadores decididos


a lutar por seus objetivos face aos proprietários dos meios de produção
demarcaria um papel revolucionário ao proletariado, que redefiniria a
ordem das coisas e asseguraria a instauração de uma nova sociedade, de-
marcada pela abolição de todas as classes, pelo fim da exploração do ho-
mem pelo homem e pela coletivização dos meios de produção (MARX,
2011).
O tom radical ao anunciar a tragédia pela qual está fadada o capita-
lismo é motivo de imensa e continuada controvérsia na crítica de Marx à
economia política. De um lado, seus mais obstinados adversários, repre-
sentantes de diferentes matizes da economia burguesa, inconformados
com o destino apocalíptico dado pelo autor ao mais próspero sistema
econômico produzido pela sociedade. De outro, seus seguidores mais
dogmáticos, que difundem tais ideias na forma de um verdadeiro cate-
cismo, blindando as principais incompletudes e ambiguidades da teoria
com uma couraça ortodoxa, muitas vezes apropriada pelos partidos po-
líticos que comandam os “governos socialistas” no século XX. Entre um
extremo e outro, vários desdobramentos e interpretações, surgidos em
razão das diferentes instabilidades sentidas pelo capitalismo nos séculos
XX e XXI.
O fato é que se firma uma tradição no debate marxista, mesmo que
tais ideias tenham se apresentado de forma diversificada e controversa.
Até a primeira metade do século XX destacam-se autores como Fredrich
Engels, Karl Kautsky, Eduard Bernstein, Vladimir Lênin e Georgi Plekha-
nov, que realizam uma leitura sobre a teoria da revolução e o materialis-
mo histórico dialético; mas também é possível identificar a produção de
um “marxismo ocidental” que, através de Georgy Lukacs, Karl Körsch,
Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt – Max Horkheimer, Theodor
Adorno e Walter Benjamin –, reage ao dogmatismo inicial dessa corrente
com uma ênfase nos aspectos negligenciados da cultura, da ideologia e
da arte. A partir da Segunda Guerra Mundial até o começo do século XXI
amplia-se a diversidade interna das pautas, quando temas como filosofia
existencial, epistemologia, aspectos políticos e teoria social são prioriza-
dos. É o que mostram os trabalhos de Jean-Paul Sartre, Louis Althusser,
Nicos Poulanztas, Henri Lefebvre, Fredric Jameson, Raymond Williams,
Edward P. Thompson, Daniel Bensaïd, Antonio Negri, Michael Hardt,
Christian Laval, Pierre Dardot, entre muitos outros.
Teorias da economia política e a Geografia 285

No âmbito das discussões estritamente econômicas, a despeito de


algumas influências dogmáticas exercidas pelo stalinismo, certos enca-
minhamentos resultam em interpretações importantes para entender
a primeira metade do século XX, tais como a Teoria do Imperialismo
de Lênin e Rosa Luxemburgo. Enquanto isso, da segunda metade do
século até o início do século XXI, a pesquisa teórica revigora-se, dando
lugar a acesas discussões centradas em torno das contribuições de Paul
Baran e Paul Sweezy (que argumentam sobre as empresas multinacio-
nais, o subdesenvolvimento e os desperdícios do capitalismo); Harry
Braverman (que traça um panorama da nova degradação dos traba-
lhadores na indústria e nos serviços); Ernest Mandel (que atualiza a
crítica marxista com o seu Capitalismo tardio); Immanuel Wallerstein
(com seus estudos sobre o “sistema mundial” e o processo de expansão
global de trocas econômicas); Gérard Duménil e Dominique Lévy (que
estudam as mutações neoliberais do capitalismo durante os anos 1980-
1990); François Chesnais (que analisa o fenômeno da financeirização e
seu papel na evolução da acumulação no início do século XXI), entre
inúmeros outros.
O fato é que, como afirma Bassett (2009, p. 444), “como resultado de
tantas leituras possíveis, o marxismo torna-se mais uma família de teo-
rias com muitas vertentes, do que uma única estrutura codificada”.5 Vol-
tar a Marx é sempre um desafio pela radicalidade de suas ideias e pelas
visões controversas acerca de um sistema debilitado, mas, volta e meia,
restabelecido e novamente pronto a colapsar.
A despeito das previsões apocalípticas, a visão de dinamismo talvez
seja aquilo que contribua para a vitalidade contínua da teoria marxista,
e o certo é que essas ideias sobrevivem às muitas tentativas de diminui-
ção de seus impactos. Como resultado dos desafios e críticas, “o marxis-
mo continua a se desenvolver, seja na sua forma mais tradicional, seja
interagindo com correntes circundantes, dialogando de novas maneiras
e gerando uma variedade de formas híbridas”6 (BASSETT, 2009, p. 445).

5 Original: “As a result of such multiple possible readings, Marxism has become more a
family of theories with many strands than a single codified framework”.
6 Original: “[…] Marxism continues to develop as a living tradition, interacting with
surrounding currents in new ways, and spinning off a variety of hybrid forms”.
286 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

As teorias heterodoxas de Schumpeter e Thorstein Veblen

As três grandes linhas de argumentações teóricas precedentes são fun-


damentais em economia política há pelo menos 150 anos. Em razão da
capacidade que tem de dar respostas ao surgimento de condições e cir-
cunstâncias para uma variedade de experiências econômicas, são ampla-
mente difundidas como narrativas importantes ao longo dessas décadas.
Porém, outras explicações sobre a complexidade dos fenômenos eco-
nômicos e a variedade dos fatores capazes de implicar o crescimento e a
distribuição das riquezas são elaboradas ao longo desse período. Embora
não necessariamente se vinculem às matrizes neoclássicas, keynesianas
e marxistas, obviamente, elas sofrem influências dessas correntes. Po-
rém, constroem leituras autônomas e diferenciadas, que apontam para
direcionamentos mais específicos, reconsiderando limites e desafios das
grandes matrizes tradicionais.
Alguns desses caminhos teóricos mais alternativos são redescober-
tos no final do século XX e no começo do século XXI, sobretudo por
enfatizarem fenômenos negligenciados pela maioria dos autores clássi-
cos; fenômenos esses que assumem protagonismo no novo capitalismo
das últimas décadas. É assim que um tratamento dado para temas como
tecnologia, moeda, informação, instituições, flexibilidade, entre outros,
resgata determinadas abordagens e reativa alguns debates, estimulando
reavaliações de longo alcance.
Entre as muitas concepções que apresentam esse perfil mais heterodo-
xo, destacamos duas para serem trabalhadas neste item, quais sejam: 1) a
teoria da inovação e dos ciclos econômicos de Joseph Aloïs Schumpeter;
e 2) a teoria evolucionista de Thorstein Veblen. Elas se destacam exata-
mente pelo esforço que empenham na produção de categorias de análise
e estruturas explicativas capazes de revelar detalhes dos fenômenos eco-
nômicos não contemplados pelas correntes tradicionais.
Isso pode ser verificado, primeiramente, na teoria da inovação e dos
ciclos econômicos de Schumpeter (1883-1950). Este autor se torna mi-
nistro das finanças em seu país, a Áustria, após a Primeira Guerra Mun-
dial, mas se fixa nos Estados Unidos a partir de 1932, tendo lecionado na
Universidade de Harvard. A sua grande contribuição à teoria econômica
contemporânea está na ênfase dada à teoria dos ciclos e ao impacto cru-
Teorias da economia política e a Geografia 287

cial da inovação e da mudança tecnológica no processo evolutivo contí-


nuo do desenvolvimento da economia.
Schumpeter cunha a famosa expressão “destruição criativa” para
descrever como o crescimento econômico resulta de empreendedores e
empresas dispostos a superarem velhas tecnologias e inovar (SCHUM-
PETER, 1961, 1982). Assim, o empreendedor está na origem da inova-
ção e, portanto, é o motor da mudança econômica, diferenciando-se do
capitalista, que busca apenas reproduzir seus lucros, e do administrador,
um simples gestor dos recursos preocupado com o equilíbrio contábil. O
empreendedor foge da banalidade, desafia as barreiras do convencional
e transforma a produção, notadamente ao revolucionar uma invenção e
explorar sua possibilidade técnica inédita. Ele faz isso sem criar nenhum
meio novo de produção, mas ao utilizar de forma diferente os meios já
existentes, realizando novas combinações para chegar a resultados mais
adequados e satisfatórios (SCHUMPETER, 1961, 1982).
Segundo o autor, as inovações que resultam das novas práticas de
combinação mais vantajosas são de cinco tipos: a) as de produtos (novos
produtos que aumentam a diversidade e resultaram em melhorias quali-
tativas); b) as de processos (novos métodos de produção ou de sistemas
de transporte); c) as de descobertas de uma nova fonte de matéria-prima
ou energia (como petróleo, urânio ou energia renovável); d) as comerciais
(como novas formas de marketing ou de distribuição, como vendas pela
internet); e e) as de novos tipos de organização empresarial e econômica
(tais como a formação de uma sociedade anônima ou o estabelecimento
de um monopólio) (SCHUMPETER, 1961).
Assim, para Schumpeter, na economia capitalista, as inovações são a
fonte de crescimento e desenvolvimento, pois, ao contrário dos autores
neoclássicos que veem o processo de crescimento limitado pela “lei” dos
retornos decrescentes, ele é otimista quanto às contribuições positivas do
progresso técnico. Considera que as inovações melhoram a eficiência da
combinação produtiva, o que permite preços mais baixos e a oferta de
produtos diversificados e eficientes para um número cada vez maior de
consumidores. Isso permite um maior acesso aos produtos de diversas
naturezas e beneficia até quem não tinha como adquirir um conjunto de
bens e mercadorias antes da difusão de certa inovação (SCHUMPETER,
1982).
288 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

Também é importante perceber que, na teoria schumpeteriana, uma


inovação nunca aparece sozinha. Ela, na verdade, surge na forma de um
“grupo” ou “pacote” de inovações intercaladas, entre as quais é possível
distinguir as inovações radicais, aquelas que são decisivas e importan-
tes, e as inovações incrementais, que costumam ter efeitos secundários.
Enquanto as primeiras afetam o conjunto da economia (como o motor
a vapor, o taylorismo como organização de trabalho etc.), as inovações
incrementais são microeconômicas, ampliando uma gama de produtos
oferecidos ou relacionados a bens intermediários.
Porém, esses grupos ou pacotes de inovações não são distribuídos
uniformemente ao longo do tempo e, como um fenômeno descontínuo, o
caráter esporádico no aparecimento de empreendedores e suas inovações
podem gerar flutuações no crescimento econômico. Segundo Schumpe-
ter, num primeiro momento, a inovação apresenta seus efeitos benéficos
ao ampliar os investimentos e alimentar o crescimento econômico, mas
os ritmos dessa expansão arrefecem quando o pacote tecnológico tem
um impacto desestabilizador sobre as empresas e a geração de empre-
gos. Isso pode ocorrer em função de fenômenos como a burocratização, a
despersonalização da iniciativa individual e a incapacidade da burguesia
de acompanhar as vantagens e o dinamismo das inovações. Neste caso,
os mecanismos de rejuvenescimento do aparato produtivo continuarão
eliminando os elementos obsoletos da estrutura econômica, mas também
resultarão numa inflexão de empregos e investimentos (SCHUMPETER,
1982).
Com essa interpretação, Schumpeter dá uma contribuição importan-
te aos estudos em economia contemporânea, particularmente na leitura
dos ciclos econômicos. Para ele, a existência desse dinamismo explica a
sucessão de ciclos longos (de vários decênios, chamados de Kondratieff),
médios (de dez anos, chamados de Juglar) e curtos (de quarenta meses,
chamado de Kitchin) de desenvolvimento, que explicariam as irregula-
ridades do crescimento produtivo e a alternância de fases de expansão
e recessão da economia. As depressões econômicas resultariam da su-
perposição desses três tipos de ciclo num ponto baixo, como ocorreu na
Grande Depressão de 1929-1933, e o estímulo para o início de um novo
ciclo expansivo viria, mais uma vez, das inovações tecnológicas introdu-
zidas por empreendedores.
Teorias da economia política e a Geografia 289

Por fim, Schumpeter afirma que a estrutura de mercado monopolista


é geralmente favorável à inovação, pois a concentração econômica e fi-
nanceira seria uma maneira eficiente de responder a essa corrida compe-
titiva e irrefreada pela inovação. Com essa ideia, ele informa que a com-
petição pura e perfeita, símbolo da economia neoclássica, não é apenas
impraticável, mas também indesejável ao sistema, pois faria desaparecer
o espírito de inovação do empreendedor (SCHUMPETER, 1961).
Enquanto Schumpeter centra-se num dinamismo conduzido pela
inovação, Thorstein Veblen (1857-1929) privilegia o papel das institui-
ções na evolução da economia. Ele vive nos Estados Unidos no final do
século XIX e tem um importante papel na elaboração de uma teoria nor-
te-americana de economia política e de sociologia, sobretudo ao realizar
uma abordagem psicológica e antropológica da burguesia de seu país em
livros como A teoria da classe ociosa (The theory of the leisure class, 1899)
e A teoria da empresa (The theory of business enterprise, 1904).
Por presenciar transformações econômicas importantes em seu tem-
po, tais como a racionalização mais acentuada do processo de acumula-
ção, a administração científica do trabalho (taylorismo), a internaciona-
lização dos investimentos e a institucionalização empresarial sob a forma
de corporação capitalista, Veblen critica o crescimento da produção em
massa e da grande empresa moderna e argumenta em favor do caráter
humano dos fatos econômicos, que devem ser explicados a partir dos
“hábitos de pensamento” vigentes e da força das instituições que condi-
cionam os indivíduos (VEBLEN, 1988).
O autor acredita que a institucionalização do processo de acumulação
permite que a maioria dos capitalistas perpetue sua posição social com
uma propriedade passiva e ausente, tornando-se rentistas financeiros, en-
quanto uma minoria exerce funções administrativas na economia e na
política, agindo sempre em defesa dos interesses dos homens de negó-
cios. As consequências dessa transformação institucional é a substituição
do padrão mais antigo e independente de acumulação empresarial por
um novo modo de funcionamento econômico em que a classe de admi-
nistradores se torna mais importante para a consolidação e expansão dos
negócios (VEBLEN, 1988).
É uma linha de interpretação que também rompe com o olhar ato-
mista instituído pela corrente neoclássica em economia política. Assim,
para Veblen, além da inviabilidade metodológica da proposta margina-
290 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

lista, essa concepção produz uma abstração hedonista irreal, sustentando


um homo oconomicus, “calculadora relâmpago de prazer e dor, que oscila
como um glóbulo homogêneo de desejo por felicidade sob o impulso de
estímulos que o deslocam, mas o deixam intacto” (VEBLEN, 2018, p. 44-
45).
Em contraponto a essa visão da atividade humana em termos de
“lucro pecuniário”, Veblen argumenta que é preciso superar essa noção
a-histórica e simplista de natureza humana que explica tudo em termos
de comportamento racional, egoísta e maximizador e, em seu lugar, pen-
sar a sociedade como um organismo complexo, em declínio ou em cres-
cimento, sempre mudando e se adaptando (ou deixando de se adaptar) a
situações novas, como uma ciência evolutiva, isto é, uma teoria da evolu-
ção econômica (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013).
Na mesma linha, Veblen desmistifica as funções sociais da classe
capitalista e denuncia a exploração e a manipulação das massas pelo
“consumo conspícuo” e pela “emulação pecuniária”, conceitos que se
tornam correntes nas ciências humanas. Ele considera que as classes
conservadoras buscam desacelerar ou sabotar o processo de seleção
natural das instituições, porque são a elite social, uma classe de lazer,
que tira proveito das instituições existentes e que não tem interesse em
modificá-las.
Veblen então expõe a contradição e a ineficiência de um sistema insti-
tucional controlado pela classe voltada ao lucro pecuniário e ao consumo
conspícuo, a quem não interessa produzir bens úteis à sociedade, mas
preservar a monopolização da indústria, o controle do mercado finan-
ceiro e a formação de uma tecnocracia de economistas e engenheiros,
cuja seleção natural implementada às instituições é uma seleção de ideias
artificiais interessadas apenas em manter as opções já existentes.
O autor conclui pela necessidade de uma nova ordem social e pela ur-
gência em criar instituições eficientes, com o objetivo de fazer evoluir um
sistema econômico em prol das demandas reais dos seres humanos. Infe-
lizmente, não aprofunda tais teorias, e suas obras finais, lançadas na déca-
da de 1920, acentuam uma visão pessimista dessa evolução institucional.
Mas isso não impede que inúmeros autores desenvolvam essa perspectiva
no século XX e XXI, em especial John Rogers Commons, Walton Hamil-
ton, Clarence Edwin Ayres, Walter Neale e Geoffrey Hodgson (SALLES;
PESSALI; FERNÁNDEZ, 2018).
Teorias da economia política e a Geografia 291

Como informado, as duas teorias apresentadas neste item têm um


grande poder de persuasão nos últimos anos, exatamente por incluírem
temas e narrativas atuais e de importante uso. Como dão ênfase maior
às incertezas e às reviravoltas de manifestações, como a inovação tecno-
lógica, o papel das instituições, a difusão das informações e a crescente
desregulamentação de ações econômicas e políticas, essas concepções
acrescentam visões diferentes e um léxico conceitual novo, que auxiliam
na revisão de realidades econômicas em transformação.

Das matrizes teóricas em Economia Política às abordagens espa-


ciais da investigação econômica: a contribuição da Geografia

Os seres humanos, ao extraírem benefícios de seus agrupamentos espa-


ciais, sempre demandam compreender o funcionamento de duas forças
econômicas importantes, que são ao mesmo tempo contraditórias e com-
plementares, as forças de aglomeração e de dispersão. Relevantes para
todo o aporte da ciência geográfica, essas forças são fundamentais para a
geografia econômica, que muito cedo sente a necessidade de entendê-las
para fazer face às suas vantagens e desvantagens.
Isso faz da geografia econômica, como aponta Trevor Barnes (2009),
uma subárea da geografia, que desde o século XIX está interessada na
descrição e na explanação dos variados lugares e espaços nos quais as
atividades econômicas são realizadas. Esses estudos são feitos indepen-
dentemente das reflexões em economia política, mencionadas no item
anterior, e guardam características exclusivas da própria geografia, tais
como a capacidade de descrição dos fenômenos empíricos, a construção
de tipologias multiescalares e o significado distinto atribuído aos lugares
e à diversidade da vida econômica.
Porém, na primeira metade do século XX, as duas abordagens se en-
contram, e o diálogo estabelecido entre geografia e economia política
rende resultados profícuos, muitas vezes tornando difícil a distinção cla-
ra dos aportes realizados por cada disciplina. Isso ocorre, notadamente,
em função de compartilharem temas, inquietações e metodologias, mas
também por não se negarem a receber influências recíprocas. A relação
ganha envergadura depois da Segunda Guerra Mundial, quando políti-
cas regionais, estratégias de desenvolvimento e questões relacionadas ao
292 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

ordenamento do território afloram e se tornam centrais no debate dessas


disciplinas.
Este item recupera a evolução da geografia econômica no tratamento
de todos esses temas e avalia as relações que ela estabelece com as diver-
sas vertentes da economia e da economia política. Para isso, recuperar as
correntes do item anterior, desdobrá-las no âmbito de uma interpretação
espacial e relacioná-las com o olhar lançado pela geografia acerca das
atividades econômicas faz-se mister.

Geografia Econômica tradicional: a força da descrição


e da empiricização

Os trabalhos de Barnes (2005, 2009), Claval (2008) e Benko (2008) são


referências importantes para entender a fase inicial da geografia econô-
mica, desenvolvida ao longo do século XIX e consolidada nas primeiras
décadas do século XX. Durante esse período ela é fundada e instituciona-
lizada e produz trabalhos com características bem definidas do ponto de
vista dos temas abordados e das metodologias empregadas para análise.
Segundo Benko (2008), os geógrafos desse período, a despeito do que
estava ocorrendo com os economistas, não têm uma orientação de mé-
todo analítica e dedutiva. É desenvolvida uma geografia econômica mais
empiricamente fundamentada, interessada em contextos específicos e
conceitualmente menos rigorosa, sem formalidades abstratas e teóricas.
Na geografia econômica tradicional, os trabalhos não definem um só
conjunto de técnicas de análise. Eles são essencialmente descritivos e em-
piristas e consistem em inventários sobre a produção agrícola, industrial,
as riquezas minerais, as infraestruturas de transporte e energia e, sobre-
tudo, a circulação comercial. Também são elaboradas pesquisas sobre
países e áreas produtoras, valorizando a diversidade natural e econômica
dos lugares, a fim de realizarem estudos comparativos (BENKO, 2008).
No começo, como informa Barnes (2009), é menos uma disciplina
acadêmica que uma ramificação do projeto imperial europeu, e tem uma
função bem nítida: oferecer conhecimento geográfico prático para os mi-
litares, para a classe empresarial e para a burocracia colonial. Mas, nas
últimas décadas do século XIX, a geografia econômica assume uma fina-
lidade científica, quando estudos pioneiros são realizados.
Teorias da economia política e a Geografia 293

Na França, os ensinamentos de Paul Vidal de la Blache são impor-


tantes no sentido de apontar o papel dos agrupamentos humanos para
a divisão do trabalho, a formação de nós urbanos e a estruturação dos
sistemas de transporte (BENKO, 2008). Mas, malgrado as pesquisas de
alguns geógrafos na temática industrial, como Raoul Blanchard, Robert
Capot-Rey e Maxime Perrin – todos na década de 1930 –, a geografia
tradicional francesa não desenvolve grande número de trabalhos sob te-
máticas exclusivamente econômicas (BENKO, 2008).
Barnes (2005, 2009) informa que foi diferente no mundo anglo-sa-
xão. O autor menciona que no fim do século XIX há vários professores,
cursos e textos nas universidades dos Estados Unidos, do Reino Unido
e da Alemanha, todos empenhados em construir, primeiramente, uma
geografia econômica comercial e, mais tarde, a partir da década de 1920,
uma geografia econômica de abordagem regional.
Na geografia comercial, o destaque vai para os trabalhos de George
Chisholm (1850-1930), que tem um papel importante na abordagem da
circulação de riquezas na economia mundial. Ele nasce na Escócia, traba-
lha em Londres e escreve várias edições de livros de geografia, gazetas e
atlas. Segundo Barnes (2009, p. 316), a “partir de 1896, Chisholm passa a
complementar sua renda lecionando geografia comercial na University of
London’s Birkbeck College, usando seu famoso livro”7 Handbook of com-
mercial Geography, recheado de mapas, tabelas e descrições da realidade
econômica e geográfica mundial, no intuito de fornecer uma educação
prática e competitiva à classe empresarial britânica contra seus rivais da
Europa Ocidental, principalmente os alemães.
Posteriormente, Chisholm sugere uma geografia econômica mais
científica, que supere as limitações da geografia comercial, e o faz colo-
cando a “natureza” como agente central, argumentando que o meio pro-
duz cada área adequada exclusivamente ao exercício de um tipo particu-
lar de atividade econômica (BARNES, 2009).
Esta é uma interpretação de caráter determinista, mas ela ganha ares
racistas quando é incorporada por alguns autores norte-americanos que
trabalham com geografia econômica e desenvolvem uma visão do com-

7 Original: “From 1896, Chisholm supplemented his income by lecturing on commer-


cial geography at the University of London’s Birkbeck College using the Handbook as his
textbook”.
294 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

portamento humano fortemente submetido ao clima. O mais notório dos


geógrafos a trabalhar com esta ideia é Ellsworth Huntington (1876-1947),
de Harvard. Ele aponta claramente que a “mola mestra da civilização” e o
nível de desenvolvimento econômico dos povos são tributários do clima.
Logo, Europa e América do Norte, regiões temperadas, são condutores da
alta eficiência; e África, grande parte da Ásia e Américas Central e do Sul,
de climas tropicais e subtropicais, produzem pouca energia, dificultando
o desenvolvimento econômico (BARNES, 2009).
A reação intelectual contra esse determinismo econômico/ambiental
vem também dos Estados Unidos, quando uma linha de estudos da geo-
grafia econômica tradicional enfatiza uma abordagem regional de pes-
quisa. Esses geógrafos invertem a pauta de discussão dos assuntos eco-
nômicos tratados por Chisholm e, em vez de falarem da produção global
de mercadorias, comércio e transporte, enfatizam as interconexões da
economia local, que produzem regiões únicas e singulares.
A figura central dessa geografia econômica regional é Richard Hart-
shorne (1899-1992), que vê na unidade natural a única possibilidade de
uma manifestação de região no planeta, mas concluindo também que
“esta unidade frustra qualquer esperança de produzir uma explanação
científica generalista na geografia econômica”8 (BARNES, 2009, p. 317).
Desse modo, como as regiões geográfico-econômicas não partilham da
mesma capacidade de difusão dos fenômenos naturais, visto que cada re-
gião é detentora de uma coleção de características excepcionais, nenhu-
ma generalização é possível, e a geografia regional é “essencialmente uma
ciência descritiva que diz respeito à descrição e interpretação de casos
particulares”9 (HARTSHORNE apud BARNES, 2009, p. 317).
Além de Hartshorne, é possível destacar autores como Vernor Fin-
ch, Ray Whitbeck e Clarence Jones, que escrevem obras com o mesmo
título (Economic Geography) e classificam regiões a partir de observa-
ções que são mapeadas, tabuladas, fotografadas e listadas de acordo
com temas diversos. Assim, “com base na comparação de fatos de re-
giões distintas, as diferenças geográfico-econômicas são imediatamen-

8 Original: “That unique ness stymied any hope of producing scientific explanation and
generalization in economic geography, however”.
9 Original: “Regional geography, we conclude, is literally what its title expresses. It is
essentially a descriptive science concerned with the description and interpretation of uni-
que cases”.
Teorias da economia política e a Geografia 295

te notadas, e as particularidades brilham com suas luzes próprias” 10


(BARNES, 2009, p. 317).
Esta maneira original de fazer geografia econômica antecipa uma re-
lação importante da disciplina com outras ciências nas décadas seguintes,
especialmente a economia. Pelo uso de um esquema tipológico comum,
dividido em, por exemplo, indústrias líderes, recursos naturais, meios de
transporte e assim por diante, pela “primeira vez as regiões foram exaus-
tivamente descritas, de modo que suas diferenças e individualidades pu-
dessem ser evidenciadas através das leituras de grades tipológicas” (BAR-
NES, 2009, p. 317).11

A Economia Espacial neoclássica e a construção de uma Geografia


Econômica quantitativa

Tradicionalmente, a formulação de teorias acerca do funcionamento da


economia não deixa de contemplar a espacialidade dos mercados e os fa-
tores regionais concernentes à produção e circulação de riquezas. Desde
os séculos XVIII e XIX, isto esteve muito presente, a exemplo dos traba-
lhos de William Petty, Richard Cantillon, Adam Smith, David Ricardo,
Karl Marx, Alfred Marshall, entre outros, que abordam questões sobre as
centralidades e as interações espaciais ou as vantagens de uma localiza-
ção para obtenção de renda fundiária ou facilidade comercial e produtiva
(SOUZA, 2009).
Porém, é antes da metade do século XIX que o primeiro estudo espa-
cial de economia é realizado com mais detalhes. Ele é feito por Johann
Heinrich von Thünen (1783-1850), um proprietário de terras da Prús-
sia, na Alemanha, que, em sua obra O Estado isolado (Der Isoliert Staat,
1826), aperfeiçoa a teoria do uso dos solos agrícolas desenvolvida por
Petty e outros, e “demonstra de modo detalhado como as ligações entre
renda fundiária, custos de transporte e preços agrícolas tendem a formar

10 Original: “By typologically comparing the facts of different regions, economic geogra-
phical differences are immediately seen, and regional uniqueness shines by its own light”.
11 Original: “Once all regions were so described, their differences, and thus their indivi-
dual uniqueness, were immediately evident by reading across the typological grid”.
296 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

círculos concêntricos de usos diferenciados em torno de centros urbanos


mais povoados” (BENKO, 2008, p. 26).12
Von Thünen sugere um modelo de uso das terras por zonas, supon-
do que os agricultores produzem suas mercadorias em cada uma delas
e procuram abastecer um mercado central único, onde se encontram os
consumidores. Quanto maior a distância desse mercado consumidor e
os custos de transporte, menor a “renda de situação” e o investimento
na produção agrícola. Como consequência, formam-se vários gradientes
de renda representados por círculos concêntricos, que, do centro para a
periferia, definem áreas mais apropriadas para o plantio de certos pro-
dutos (os produtos mais caros são plantados próximo ao centro urbano)
capazes de aproveitar essa “renda de situação”.
A teoria traz uma impressionante aproximação dos estudos das espa-
cialidades econômicas com o princípio da produtividade marginal e do
equilíbrio de mercado, que consagram as pesquisas em economia margi-
nalista e neoclássica. Demarca, desse modo, a influência da corrente libe-
ral nas investigações espaciais. É claro que o modelo de von Thünen não
deixa de sofrer críticas, sobretudo pela uniformidade de suas variáveis,
tais como a ideia de que as terras têm a mesma fertilidade, as superfí-
cies são sempre uniformes, a mão de obra tem sempre os mesmos custos
e qualificação e os produtores procuram abastecer um mercado central
único.
Mas são essas críticas que levam ao aperfeiçoamento das análises em
economia espacial e resultam na produção de um conjunto de trabalhos
importantes, elaborados na Alemanha, Suécia e Estados Unidos por vá-
rios autores13 a partir da primeira metade do século XX. Como infor-
ma Benko (2008), esses trabalhos estão na origem daquilo que podemos
chamar de uma geografia econômica de caráter mais teórico, feita com
análises abstratas e que estabelecem os fundamentos das pesquisas que
desembocam, após a Segunda Guerra Mundial, na “análise espacial” e na
“ciência regional”.

12 Original: “[…] démontre de façon détaillée comment les liens entre rente foncière,
coûts de transport et prix agricoles tendent à former des cercles concentriques d’usages
différenciés des sols autour des centres de peuplement majeurs”.
13 São expressivos os nomes de Alfred Weber, August Lösch, Tord Palander, Harold
Hotelling, W. J. Reilly e G.K. Zipf, entre outros.
Teorias da economia política e a Geografia 297

Dois desses autores merecem especial atenção, Alfred Weber e August


Lösch. Seus trabalhos simbolizam abordagens acerca da inserção do ele-
mento espaço na teoria econômica, tendo priorizado as diferentes loca-
lizações das atividades, a distribuição espacial dos recursos, a eficiência
dos meios de transporte e os deslocamentos da população.
Alfred Weber (1868-1958) viabiliza uma teoria de localização indus-
trial em que a empresa procura uma situação que minimize os custos
salariais ou os custos de transportes de matérias-primas e de produtos
acabados.14 Ele supõe uma superfície espacial plana e homogênea, com
as tarifas de transporte constantes, custos de trabalho uniformes e uma
certa quantidade de fontes de matérias-primas. A partir daí descreve a
existência de fatores gerais, fatores especiais e fatores regionais de locali-
zação, que incidirão sobre a decisão final de instalação de investimentos e
influenciá-los a se aglomerarem ou a se dispersarem no espaço (SOUZA,
2009). O tratamento gráfico das regras gerais para a localização da fábri-
ca e das diversas situações possíveis resultam no célebre “triângulo de
localização” de Weber, cujos vértices representam o mercado e as fontes
de insumo para dada produção. Na construção desta teoria, o problema
maior consiste em encontrar a localização ótima da fábrica, cuja reunião
de muitos componentes define um ponto identificado como aquele onde
os custos de transportes são minimizados (BENKO, 2008).
Por sua vez, August Lösch (1906-1945) desenvolve uma teoria de re-
partição geográfica de centros de mercado e a expressa de maneira ma-
temática, sobretudo ao enfatizar o equilíbrio com que os serviços, as in-
dústrias e os consumidores se dispõem em uma rede hexagonal de áreas
de mercado. Ele analisa como uma empresa atende seu consumidor mais
distante a um determinado custo médio (de transporte, de produção etc.),
até o ponto em que o preço de seus bens ou serviços não possam mais
cobrir o de sua concorrente. São vários os conceitos que Lösch elabora
a partir desta reflexão, como o de “escala máxima” da área de mercado
atendida por uma empresa ou o “limiar”, isto é, a escala mínima que torna
econômica a oferta de um bem ou serviço. Todos esses conceitos definem
um sistema complexo que vai gerar um “equilíbrio geral de localização”,

14 Sobre um Alfred Weber teoricamente mais ambicioso e que desenha um projeto de


investigação econômica, social e cultural complexo, ao articular múltiplas dimensões da
sociedade, ver Géneau de Lamarlière (2008).
298 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

cuja expressão gráfica é o “cone da demanda de Lösch”, definidor de áreas


de mercado hexagonais, cada uma com sua influência e responsáveis pela
formação de uma hierarquia de centros urbanos (SOUZA, 2009).
Esses trabalhos legitimam uma virada importante no seio da geografia
econômica como uma subárea capaz de dar explicações de cunho mais
analítico e abstrato aos fatores de localização. Isso, gradativamente, leva
os geógrafos econômicos a abandonarem sua investigação baseada na
descrição de situações empíricas e na análise particular de uma região
como programa para suas pesquisas.
Porém, na ciência geográfica, essa virada já havia sido realizada na
década de 1930 por Walter Christaller (1893-1969), um pioneiro na apli-
cação dos estudos analíticos da espacialidade econômica. Christaller,
com seu livro Central places in Southern Germany (Die zentralen Orte in
Süddeutschland), lançado em 1933 em alemão, antecipa um movimento
importante seguido pelos geógrafos nas décadas seguintes, mesmo que o
trabalho tenha sido negligenciado no início e só em 1966 fosse traduzido
para o inglês (BRADFORD; KENT, 1987).
O autor apresenta uma teoria normativa de distribuição e hierarqui-
zação das cidades segundo os níveis de centralidade que elas oferecem.
Para isso, procura explicar a funcionalidade existente entre centros ur-
banos de diferentes tamanhos pelo comércio e prestação de serviços, e
as interações estabelecidas entre eles e a região circundante. Cada centro
se distribui espacialmente de modo a cobrir toda a região e ordena uma
hierarquia segundo o tamanho de cidades, de tal modo que suas áreas
de influência formam hexágonos regulares alinhados. A expressão grá-
fica e cartográfica da pesquisa é um destaque à parte, porque consegue
representar uma abordagem até então diferente na geografia, isto é, um
espaço supostamente homogêneo e isotrópico sob condições de concor-
rência perfeita e com agentes econômicos e consumidores convergindo
seus interesses particulares em interesse geral. Nessa representação, o cír-
culo seria a forma abstrata ideal da área de atração de um centro, mas,
ao reunir um conjunto de círculos, sobrariam espaços não atendidos pela
funcionalidade urbana, e isso fez o autor pensar na justaposição de hexá-
gonos para definir sua região econômica.
O trabalho de Christaller torna-se um clássico ao influenciar tanto
geógrafos como economistas (o próprio August Lösch é um exemplo
disso), e é possível afirmar que, após a contribuição de suas teses, pelo
Teorias da economia política e a Geografia 299

menos três inovações aos estudos da espacialidade econômica são esta-


belecidas, quais sejam: a) a modelização e a utilização de um método
hipotético-dedutivo nos estudos geográficos; b) o avanço na interdisci-
plinaridade entre geografia e economia; e c) a emergência das pesquisas
sobre racionalização da gestão na região e no território (ROBIC, 2001).
Nos anos 1950, a geografia econômica confirma sua “virada” no sen-
tido de realizar trabalhos cada vez menos descritivos, transformando-se
numa “ciência espacial”, representada por uma “revolução quantitativa”.
Na nova agenda de pesquisa, em vez dos discursos de particularidades
regionais, entra a aplicação sistemática de formas científicas generalistas
a partir do uso de rigorosas técnicas estatísticas de descrição e análise
(BARNES, 2009).
Assim, enquanto Fred K. Schaefer, com seu artigo “Exceptionalism in
Geography” (1953), e David Harvey, com seu importante livro Explana-
tion in Geography (1969), levantam todas essas questões para a geogra-
fia como ciência, a geografia econômica tem em autores como William
Garrison, Edward Ullman, Brian Berry, William Bunge, Torsten Hägers-
trand, Gunnar Törnqvist, Paul Claval, Roger Brunet, entre outros, gran-
des destaques no uso dessa teorização. Eles trabalham em importantes
centros universitários de Seattle, Iowa, Chicago, Toronto, Ohio (América
do Norte), Cambridge, Bristol (Reino Unido), Estocolmo e Lund (Suécia)
etc., que logo se tornam polos de difusão de pesquisas realizadas a partir
de encaminhamentos lógicos e quantitativos (BARNES, 2009; BARNES,
2005; WALKER, 2016).
Como aponta Barnes (2009), é possível extrair cinco características
bem definidas desse plano de investigação em geografia econômica. São
elas: a) o uso de teorias formais e modelos matemáticos, influenciados
pelos estudos neoclássicos; b) a justificação filosófica criada pela ciência
espacial, baseada no positivismo lógico, que vê apenas o conhecimento
científico como único conhecimento autêntico; c) um enfoque nas espa-
cialidades abstratas e nas localizações geometricamente definidas; d) a
predominância de análises realizadas a partir de metodologias quanti-
tativas e estatísticas; e e) o trabalho constante com o computador, única
ferramenta capaz de realizar operações como a inversão de matrizes de
entrada e saída econômica, tanto urbana quanto regional.
Depois dessa virada de método, a geografia econômica está pronta
para, na segunda metade do século XX, dialogar com outras ciências e al-
300 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

çar voos mais teóricos. Ela ganha envergadura universalista e expressa de


maneira abstrata as suas conclusões ao tornar mais prática a identificação
racional de questões econômicas espaciais.

O reforço da Geografia Econômica quantitativa e a influência


keynesiana nas políticas de planejamento

É forte, nos anos de 1950 e 1960, a aplicação de modelos e a sistema-


tização de teorias em geografia econômica a partir do uso de técnicas
estatísticas. Porém, nessas duas décadas, há um salto do ponto de vista
da fundamentação teórica que sustenta a utilização do método hipoté-
tico-dedutivo nos estudos geoeconômicos, e ele supera o problema de
explicar a localização das atividades somente pela análise de escolhas in-
dividuais voltadas à maximização dos lucros.
Ao aprofundarem suas metodologias quantitativas e utilizarem fre-
quentemente representações geométricas/abstratas, os geógrafos eco-
nômicos se convencem de que os estudos das dinâmicas espaciais não
se limitam às determinações resultantes de escolhas individuais. Assim,
passam a introduzir perspectivas que exploram as consequências coleti-
vas das escolhas de cada um e como tais consequências influenciam nos
mercados (a microeconomia), na circulação da renda, no lucro, no inves-
timento e na poupança (a macroeconomia) (CLAVAL, 2008).
Mesmo não trazendo uma mudança significativa para a abordagem
espacial econométrica, a releitura dos fenômenos demonstra o sucesso
dos postulados keynesianos na análise global do circuito econômico.
Desse modo, o pós-Segunda Guerra Mundial consolida a economia po-
lítica de Keynes como política de Estado, e os estudos da espacialidade
econômica encontram na questão da distribuição territorial das ativida-
des uma prioridade. Diferentes maneiras de elaborar modelos capazes
de racionalizarem a gestão e o planejamento do território tornam-se os
principais objetivos da geografia econômica, que avança na direção de
um duplo movimento de valorização: a do domínio teórico e a da ciência
aplicada (BENKO, 2008).
Entre os economistas, estudos importantes, realizados principalmente
na França e nos Estados Unidos, resultam em trabalhos consagrados.
Teorias da economia política e a Geografia 301

No primeiro caso, podemos citar a contribuição de François Perroux


(1903-1987), que em 1955 publica um artigo clássico, intitulado “Note
sur la notion de pôle de croissance”, no qual introduz a noção de “indús-
tria motriz” e “polo de crescimento” ao associar os conceitos de “inova-
ção” de Schumpeter e de “economias externas” de Scitowsky e deduzir
“que o crescimento econômico regional é fundamentalmente comanda-
do por empresas inovadoras que reestruturam seus campos de operações
através de circuitos de produtos e de fatores produtivos” (BENKO, 2003,
p. 709). Para Perroux, quando as empresas industriais se aglomeram em
determinada região a partir dos fatores apresentados, elas criam polos
de dinamismo diferenciado e, por meio de diferentes redes de subcon-
tratação, oferta de serviços e economias de aglomeração, exercem um
efeito significativo sobre o conjunto da economia regional. As desco-
bertas de Perroux, junto com as de Jacques Boudeville (que sistematiza
suas ideias), influenciam decisivamente as políticas de desenvolvimento
e a planificação regional, sobretudo na França, onde programas como o
Aménagement du territoire e as Métropoles d’équilibre efetivam importan-
tes rearranjos no território (CLAVAL, 2008; BENKO, 2003).
No caso dos Estados Unidos, o papel da “ciência regional” é emble-
mático. Trata-se de uma disciplina híbrida criada na década de 1950 por
Walter Isard (1919-2010) e que combina economia neoclássica, métodos
quantitativos, análise espacial, geografia humana e sociologia, oferecendo
um corpo metodológico amplo para realizar programas de desenvolvi-
mento. Face a esse leque de influências, ferramentas de análise espacial
e econométrica dialogam com bancos de dados estatísticos e com as de-
cisões dos atores sociológicos. O intuito é sempre o de identificar a loca-
lização das atividades econômicas, as redes e os sistemas de cidades e de
infraestrutura de transporte, as disparidades regionais, as interações es-
paciais e o crescimento urbano, na tentativa de melhor elaborar políticas
de planificação regional ou territorial.
Os geógrafos econômicos participam ativamente dessa virada e come-
çam a verificar se os modelos desenvolvidos pelas metodologias quanti-
tativas explicam bem a realidade espacial. Estudos sobre as localizações
das produções industriais e agrícolas são realizados, mas, sem dúvida,
são os trabalhos que destacam as redes de cidades, a infraestrutura e o
crescimento econômico urbano os que mais recebem atenção. Assim,
302 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

consolida-se na geografia econômica a “análise espacial”, que cumpre a


agenda supracitada.
Barnes (2009) menciona um exemplo bem ilustrativo, aquele que
marca um grupo de geógrafos econômicos nos Estados Unidos, conheci-
do como “cadetes espaciais”, entre os quais estão incluídos William Gar-
rison, Brian Berry, Edward Ullman e William Bunge. O grupo trabalha
na University of Washington, em Seattle, e, após se inspirarem nos textos
de Walter Isard, desenvolvem uma metodologia quantitativa que os habi-
lita a desenvolver projetos importantes, como a projeção de autoestradas
federais. Segundo Barnes, tais pesquisas permitem que esse grupo ganhe
experiência com as teorizações abstratas, os métodos quantitativos e a
programação de computadores, e, a partir de um livro-síntese, intitu-
lado Studies of Highway Development and Geographic Change (1959), é
possível encontrar “montanhas de cálculos, matrizes de dados, técnicas
estatísticas, curvas de custos, planilhas de demandas, mapas convencio-
nais revestidos de números, linhas de starburst e equações de balancea-
mento”,15 num volume nunca antes publicado pela geografia econômica
(BARNES, 2009, p. 318).
A experiência é tão promissora que o movimento ganha reconheci-
mento acadêmico e se difunde para a geografia econômica de vários paí-
ses. No Reino Unido, pela influência da obra de Peter Haggett (1965), os
britânicos aceitam rapidamente o engajamento nessa geografia econômi-
ca quantitativa da gestão do território a partir dos anos de 1960.
Na Suécia, que já havia abraçado os estudos hipotéticos dedutivos
desde os anos de 1950, a ciência regional e a análise espacial recebem
importantes colaborações, entre outros, de autores como Torsten Hä-
gerstrand e Gunnar Törnqvist. Enquanto o primeiro é conhecido por sua
contribuição à teoria da difusão da inovação e à expansão geográfica das
novas tecnologias, o último introduz a ideia de circuitos de informações
ao enfatizar o conceito de “face a face” nas trocas econômicas, que muito
influenciam as pesquisas subsequentes sobre inovação e localização das
indústrias e dos serviços (BENKO, 2008).

15 Original: “Packed with calculations, data matrices, statistical techniques, cost curves,
and demand schedules, and conventional maps overlaid with numbers, arrows, starburst
lines, and balancing equations”.
Teorias da economia política e a Geografia 303

Na França, geógrafos como Paul Claval, Roger Brunet, Yves Guer-


mond, Bernard Marchand, Pierre Merlin, Denise Pumain e Thérèse Sain-
t-Julien contribuem para difundir essa nova agenda de pesquisas, e a re-
vista L’Espace Géographique, fundada por Brunet em 1972, é um canal de
comunicação eficiente para o movimento (BENKO, 2008). Porém, não
se pode negligenciar que as obras de Jean Labasse e de Pierre George
e seus discípulos (Raymond Guglielmo, Bernard Kayser e Yves Lacoste)
também são fundamentais para entender a geografia econômica france-
sa no período. Labasse é pioneiro na construção de uma geografia dos
bancos e na abordagem regional dos fluxos de capital financeiro; e Pierre
George, com sua “geografia ativa”, realiza um monumental trabalho sobre
os mecanismos econômicos e uma tipologia de sistemas e atividades da
economia regional e mundial, muitas vezes dialogando com temas mar-
xistas. Neste contexto, o nome de Michel Rochefort é de grande relevân-
cia, em especial pelos importantes trabalhos sobre os sistemas urbanos e
o destaque que tem no aménagement regional da França (CLAVAL, 2008;
BENKO, 2008).
Por fim, esta proposta de elaboração de estudos quantitativos para
o planejamento é uma das primeiras a legitimar a geografia econômica
como uma subárea mais bem delineada no Brasil. Isso ocorre na década
de 1960, no bojo do incentivo às atividades de planejamento territorial
promovido pelos governos militares. Instituições como o Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Departamento de Geografia
da Unesp de Rio Claro (SP) são importantes centros de difusão desta
linha de pesquisa que, segundo Abreu (1994), apenas afirma, pelo uso
da matemática e da linguagem científica, uma “aplicabilidade” já pre-
tendida pela geografia brasileira desde os anos 1950. Ademais, também
no Brasil, os nomes de Manuel Correia de Andrade e Cláudio Egler
estão entre os mais relevantes quando se trata da construção de uma
geografia voltada para a gestão econômica do desenvolvimento. Manuel
Correia de Andrade é influenciado pelos trabalhos de François Perroux
e do aménagement du territoire e, além de diversos estudos empíricos,
reedita em língua portuguesa os conhecidos manuais que catalogam
as diferentes repartições das atividades econômicas através de descri-
ções e quadros estatísticos comentados (ANDRADE, 1987, 1989). En-
quanto isso, Cláudio Egler participa ativamente no desenvolvimento
de metodologias de gestão e de zoneamento econômico, sendo um dos
304 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

principais nomes no país a realizar estudos que avaliam os impactos


geoeconômicos e geopolíticos na integração regional brasileira e sul-a-
mericana.

O marxismo e a Geografia Econômica crítica

Os acontecimentos políticos e econômicos que marcam o final da década


de 1960 não parecem caber na geografia produzida pelas universidades
e pelos institutos de pesquisa e planejamento. É crescente o movimento
contracultural deflagrado a partir desse período, principalmente pelos
conflitos ocorridos em vários países decorrentes da Guerra Fria, bem
como outros fatores importantes, como a “emergência” do Terceiro Mun-
do no noticiário internacional, o “despertar” ecológico e as reivindica-
ções que contestam a contínua dominação pós-colonial na África e na
Ásia (SWYNGEDOUW, 2005).
A geografia econômica quantitativa, com seus modelos e técnicas
estatísticas, não é capaz de oferecer uma explicação plausível para esses
fenômenos. Ademais, a abordagem econômica da “ciência espacial”, mes-
mo tendo inserido concepções abstratas e universalistas às pesquisas geo-
gráficas, estava longe de resolver seus próprios paradoxos e inconsistên-
cias, além de não atender às demandas por um maior ecletismo teórico,
frequentes na história da disciplina. Entre outros problemas, é acusada
de traçar uma linha ideológica conservadora, que, além de elaborar con-
ceitos explicativos abstratos e sem relação com a realidade, buscava “na-
turalizar” as formas desiguais de correlações socioeconômicas no espaço
(SOJA, 2010; BEST, 2009; CUMBERS, 2009;).
No intuito de melhor interpretar essa politização e as diversas contra-
dições econômicas e sociais, a aproximação teórica com o marxismo se
revela um bom caminho. Nesse momento, as ideias de Marx se apresen-
tam como uma novidade para a geografia, que começa a realizar leituras
espaciais para temas como apropriação da renda fundiária e das taxas de
lucros, divisão de classes sociais e exploração nas relações de trabalho. O
pensamento geográfico é instigado a reavaliar certos problemas de pes-
quisa e desloca seu objeto em direção à crítica da economia política.
O esforço realizado por inúmeros geógrafos é o de tentar encontrar
nos escritos de Marx as relações espaciais subjacentes em suas teorias
Teorias da economia política e a Geografia 305

(COLLECTIF DE CHERCHEURS DE BORDEAUX, 1977; VAN BEU-


NINGEN, 1979). Para isso, em alguns periódicos16 de importante impac-
to sobre o pensamento geográfico, a relação entre a discussão espacial e
as obras marxistas é amplamente debatida.17
No marxismo, o debate sobre questões espaciais e regionais é enfatiza-
do pelo menos em dois momentos ao longo do século XX – a partir dos
referenciais elaborados pela Teoria do Imperialismo e pela Teoria da De-
pendência. No primeiro caso, as ideias de John Hobson, Vladimir Lênin,
Rosa Luxemburgo, Nikolai Bukhárin, entre outros, no começo do século
XX, leem o imperialismo como uma política de dominação territorial e
econômica de um país sobre outro, geralmente vinculada às necessidades
de exportações de capitais e de conquistas de fontes de matérias-primas
e mercados, quando o capital bancário e as corporações monopolistas,
inclusive por meio de guerras, repartem territorialmente suas zonas de
influência em áreas coloniais e semicoloniais.
Por sua vez, a Teoria da Dependência, de certa maneira influencia-
da por uma releitura dos teóricos do imperialismo e da noção de de-
terioração dos termos de troca, de Raúl Prebish e da Cepal (Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe), entende que os proces-
sos de reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo
impedem um desenvolvimento por etapas, como defendido pelo pensa-
mento elaborado em órgãos internacionais multilaterais no pós-Segunda
Guerra Mundial. Para os dependentistas, tais como Ruy Mauro Marini,
André Gunder Frank e Theotônio dos Santos, as condições de subdesen-
volvimento decorre da relação de subordinação entre países centrais e
periféricos na economia capitalista. Desse modo, a saída dessa condição
não se dá pela transformação de uma economia agrário-exportadora em
uma economia moderna e industrial, e sim pela superação das condições
de dependência.
Mas a leitura espacial realizada pela geografia econômica de influên-
cia marxista vai além da identificação das disparidades e contradições
nas relações econômicas entre centro e periferia em escala internacio-

16 Ver as ricas discussões publicadas nas revistas Antipode (EUA), Hérodote (França),
Espace Temps (França) e L’Espace Géographique (França) etc., nas décadas de 1970 e 1980.
17 Apesar de não ser geógrafo, a influência de Henri Lefebvre é fundamental na cons-
trução de uma abordagem marxista que revisa o conceito de espaço e seu papel-chave na
interpretação das relações em sociedade.
306 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

nal. O trabalho dos geógrafos se dá no sentido de interpretar inúmeras


experiências econômicas observadas sob o crivo de conceitos e de uma
terminologia geográfica, com resultados expressivos do ponto de vista
da abordagem de temas antes negligenciados por essa subárea de estudo.
Um destaque é a obra notável de David Harvey. Em sua trajetória in-
telectual, depois de produzir ideias que solidificam a chamada “revolução
quantitativa” (Explanation in Geography, 1969) e realizar uma evolução
interpretativa sobre a noção de justiça espacial, ao partir de formula-
ções liberais e chegar a formulações dialéticas (Social justice and the city
[1973], traduzido para o português como A justiça social e a cidade, em
1979), Harvey publica um livro emblemático de releitura do pensamento
de Marx, rompendo com alguns aspectos da teoria marxista tradicional,
em especial ao retrabalhar a ideia de crise no capitalismo e as relações
entre espaço e economia política (The limits to capital [1982], traduzido
como Os limites do capital, em 2013). Nas décadas seguintes, o autor assu-
me outra postura e, ao se libertar de algumas amarras ortodoxas, elabora
um ensaio de grande repercussão sobre modernidade e pós-moderni-
dade (The condition of postmodernity [1989], traduzido como A condi-
ção pós-moderna, em 1993), além de abrir novas reflexões na luta pelos
direitos humanos e justiça ambiental (Spaces of hope [2000], traduzido
como Espaços de esperança, em 2004) e revigorar a leitura das mudan-
ças econômicas e dos ajustes espaciais face à crise financeira e urbana do
capitalismo no começo do século XXI (A brief history of neoliberalism,
2005; The enigma of capital and the crises of capitalism, 2010 e Rebel cities,
2012, respectivamente, em português, O neoliberalismo, 2008, O enigma
do capital e as crises do capitalismo, 2011 e Cidades rebeldes, 2014).
Outra contribuição marcante para a geografia econômica crítica e de
cunho marxista vem de um grupo de geógrafos que trabalha na Grã-Bre-
tanha, no final dos anos de 1970, que revisa os conceitos de região e lugar
à luz de uma compreensão teórica responsável por relacionar acumula-
ção capitalista e estratégias aplicáveis de pesquisa e explanação empírica
(BARNES, 2009). Nesta proposta, a crítica da economia política ampara
uma metodologia conhecida como “realismo crítico”, que, segundo An-
drew Sayer, estabelece estratégias de análise e síntese ao separar estru-
turas universais, necessárias e importantes, de ocorrências contingentes,
comuns em experiências localizadas (CUMBERS, 2009). O grupo é for-
mado por Doreen Massey, Andrew Sayer, Richard Meegan, Ash Amin,
Teorias da economia política e a Geografia 307

Mick Dunford, Kevin Morgan, Ray Hudson, Jim Lewis, Robin Murray e
John Urry e fica conhecido por produzir um novo regionalismo de ten-
dência crítica, num contexto de crise econômica, desemprego e desindus-
trialização no Reino Unido (COOKE, 2009).
Doreen Massey representa bem a vanguarda desse movimento britâni-
co, sobretudo ao elaborar insights sobre geografias desiguais de desenvol-
vimento, economia política marxista, contextos empíricos particulares e,
posteriormente em seus trabalhos, um sentido humanista crítico de lugar.
Em um livro de grande importância para a geografia econômica (Spatial
divisions of labour, 1984), Massey exprime o largo contexto de desindus-
trialização e reestruturação industrial presente no Reino Unido para ar-
gumentar que o domínio das grandes corporações em diferentes setores
da economia cria diferenças ocupacionais responsáveis por produzir lu-
gares articulados a uma divisão espacial do trabalho (MASSEY, 1984). O
resultado é uma crescente tendência de as empresas concentrarem geogra-
ficamente empregos de atividades superiores de comando, pesquisa e de-
senvolvimento em lugares especializados; e empregos de nível inferior em
regiões que concentram tarefas rotineiras, como montagem final de produ-
tos. Mas os lugares e regiões, segundo a autora, não são meros destinatários
passivos das decisões de localização corporativa e, com o tempo, tendem
a reunir “camadas” progressivas de reestruturação, desenvolvendo culturas
específicas que refletem os resultados de lutas políticas e econômicas entre
diferentes grupos. Em seus textos seguintes, a partir da década de 1990,
Massey enfatiza como essas relações também são moldadas fora do local de
trabalho, na comunidade em geral, ao abordar a interação desses conflitos
com outras formas de relações sociais, por exemplo, gênero, raça, etnia, e
como o sentido e a história dessas relações reproduzem divisões e desigual-
dades em locais específicos, em função das contradições nos espaços de
trabalho, moradia, educação e diversão (CUMBERS, 2009).
Esse percurso variado de abordagens é uma outra característica dessa
geografia econômica crítica. Em sua origem, ela primeiro sofre influên-
cia direta do temário e dos conceitos tradicionais de Marx e depois se
abre a um amplo conjunto de reinterpretações. Os trabalhos seguem uma
trajetória que vai de uma leitura mais ortodoxa da teoria marxista, prin-
cipalmente nos anos de 1970 e 1980, a uma incorporação de influências
diversas de método e de análise metodológica, em especial a partir da
década de 1990.
308 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

Dois exemplos importantes podem ser citados dessa experiência he-


terodoxa da geografia econômica crítica: o da Escola da Regulação Fran-
cesa e o da Escola da Califórnia.
No primeiro caso, trata-se de um movimento de ampla repercussão na
economia política, nas ciências sociais e na literatura contemporânea que
lê os processos de desenvolvimento econômico, repercutindo de maneira
relevante na geografia. A Escola da Regulação se origina na década de
1970 de uma crítica neomarxista realizada por economistas franceses18
ao capitalismo e ganha difusão por outros países, onde vários autores de-
senvolvem seus pressupostos.19 Os regulacionistas partem da correspon-
dência entre as relações sociais de produção e um determinado domínio
tecnológico para falarem de um “regime de acumulação” e de um “modo
de regulação”, isto é, sistemas que abrangem estruturas de produção, re-
lações sociais e instituições diversas, cuja convergência é capaz de conter
os conflitos e as contradições inerentes ao capitalismo por certo período.
Eles interpretam a crise de produtividade que surge na Europa Ocidental
e na América do Norte após duas décadas de crescimento econômico
centrado na disseminação de técnicas de produção em massa, ou seja, o
fordismo e avaliam o regime de acumulação que o sucede, marcado pela
especialização produtiva flexível, formação de economias de escopo, es-
tratégia de mudança técnica rápida, organização de um sistema definido
pelo consumo e um imperativo poder das finanças no controle dos siste-
mas de regulação macroeconômicos e institucionais.
Na geografia, entre outros, os trabalhos de Georges Benko são uma
referência importante para relacionar questões espaciais e Escola da Re-
gulação. O autor privilegia as formas institucionais de coordenação entre
empresas, o tipo de relação capital/trabalho que prevalece em cada terri-
tório e as políticas de desenvolvimento na relação entre o local e o global.
A dimensão espacial enfatiza o papel das aglomerações e suas estratégias
de competitividade, com destaque para experiências em centralidades
produtivas tecnológicas, artesanais e de pequenas empresas, bem como
o poder de convergência dos centros financeiros e de serviços (BENKO,
1996).

18 Entre eles, Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz, Benjamin Coriat, André Or-
léan e Frédéric Lordon.
19 O caso de Bob Jessop é um dos mais emblemáticos.
Teorias da economia política e a Geografia 309

O segundo caso é o da Escola da Califórnia, conhecida por realizar


uma combinação entre economia política e economia evolucionista ins-
titucional, no intuito de interpretar a capacidade de inovação, a criati-
vidade e a recuperação do capitalismo norte-americano após o declínio
industrial fordista. Formada, entre outros, por autores como Allen Scott,
Richard Walker, Edward Soja, Michael Storper e AnnaLee Saxenian, a
Escola da Califórnia estuda as regiões de alta tecnologia de Los Angeles e
da Baía de São Francisco e como as indústrias cinematográfica e de ves-
tuário conseguem reescrever a geografia econômica dos Estados Unidos,
sobretudo ao produzir espaços industriais que exigem um novo léxico
de representação e explanação. Com vários estudos empíricos e teóricos,
realizados a partir dos anos 1980, eles se pautam na ideia de que o tecido
socioprodutivo do território promove e potencializa processos endóge-
nos dinâmicos de aprendizagem coletiva, defendendo que as principais
fontes da economia de aglomeração de centros produtores são as estrutu-
ras de “transação” industrial e os mercados de trabalho locais (STORPER;
WALKER, 1989).
Desde a virada do século XX para o século XXI, há também uma re-
novação frequente da influência de Marx e da crítica da economia políti-
ca nos estudos de geografia econômica. Isso ocorre, principalmente, por
causa das evidências crescentes das consequências destrutivas e desiguais
do capitalismo global não regulamentado e dominado pelas finanças, que
agem no espaço através de relações escalares cruzadas (PECK; THEO-
DORE; BRENNER, 2012). Sobre esses aspectos, um grupo amplo de au-
tores, que inclui Neil Smith, Jamie Peck, Erik Swyngedouw, Edward Soja,
Neil Brenner, Bob Jessop, Nigel Thrift, Nik Theodore e Adam Tickell,
contribui para registrar o desenvolvimento desigual e o complexo papel
da dimensão espacial nas inúmeras contradições da globalização e do ca-
pitalismo contemporâneo. Eles publicam em periódicos como Antipode,
Progress in Human Geography, Environment and Planning, International
Journal of Urban and Regional Research, Area and Development etc., onde
realizam uma renovada leitura dos processos de “neoliberalização”, pro-
pondo também formas criativas de “contraneoliberalização”, no contexto
da reestruturação regulatória do capitalismo.
Ao considerarmos o Brasil, esse recorte crítico é uma das abordagens
que mais se desenvolve em termos de geografia econômica. São trabalhos
que, apesar de terem sido publicados em pequena quantidade nas dé-
310 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

cadas de 1970 e 1980, ampliam seu potencial de divulgação e abrangem


várias pautas de pesquisa entre o fim dos anos de 1990 e as duas primeiras
décadas do século XXI. A contribuição de Milton Santos é, neste caso,
fundamental. A geografia econômica crítica é um dos principais cam-
pos de trabalho do autor, que cria ou desenvolve conceitos e linhas de
interpretação, como pode ser constatado nos estudos sobre os circuitos
da economia urbana (O espaço dividido, 1979), os circuitos espaciais da
produção (Circuitos espaciais da produção: um comentário, 1986) e sua
importante análise espacial do processo de globalização (Por uma outra
globalização, 2000). Autores como Mónica Arroyo, Denise Elias, Maria
Laura Silveira, Luiz Cruz Lima, Ricardo Castillo, Adriana Bernardes,
Márcio Cataia, Fábio Contel, entre outros, cada um desenvolvendo cam-
pos de estudo que Santos inicialmente problematiza, reafirmam a expres-
são e a continuidade desses trabalhos.
Ademais, os estudos realizados por Eliseu Sposito (ao tratar de te-
mas como estratégias econômicas, dinâmicas territoriais, eixos e redes
de produção e informação), Maria Encarnação Sposito (estudiosa das
dinâmicas econômicas em cidades médias), Sandra Lencioni (que pes-
quisa as relações entre região, metrópole, economia e reestruturação
produtiva), Leila Christina Dias (com trabalhos sobre geografia das fi-
nanças e redes financeiras) e Armen Mamigonian (ao liderar um grupo
de trabalho que aborda geografia industrial e redes de infraestrutura,
transporte e logística) são uma expressão de que a geografia econômica
crítica brasileira se firma como uma subárea de pesquisa bem estabele-
cida. Recentemente, uma rede de pesquisas dedicada ao tema, coorde-
nada a partir da Uerj e que reúne pesquisadores de várias universidades
do Brasil e da América Latina (UFG, Unesp Presidente Prudente/SP,
Uece, UFRRJ, IFF, UFF, Ufes, PUC/Chile, UNC/Argentina etc.), inti-
tulada Rede Latino-Americana de Investigadores em Espaço e Economia
(Relaee), procura, com algumas publicações e seminários, aproximar
investigações que abordem as muitas dimensões existentes na geografia
econômica.
A contribuição distintiva dos geógrafos econômicos para um campo
de estudo crítico e de influência marxista tem sido mostrar que o capi-
talismo é dinâmico, intrinsecamente contraditório e rico em mutações,
e que não pode ser trabalhado sem a sua variável política. Eles demons-
tram também, sejam seguindo versões ortodoxas ou articulando diferen-
Teorias da economia política e a Geografia 311

tes tendências teóricas, que as relações econômicas não podem ser enten-
didas se não forem implicadas em padrões desiguais de desenvolvimento
espacial.

A emergência das heterodoxias: uma diversidade de propostas

Diferentes experiências espaciais sentidas pelas atividades econômicas


e reveladas na década de 1990 invocam dilemas que redefinem o con-
junto de compreensões elaborado pela geografia. Tanto no plano teóri-
co quanto no empírico, a valorização da diversidade da vida econômi-
ca e suas manifestações subjetivas tornam‑se uma tendência aplicada às
novas pesquisas. Afirmam-se estudos mais qualitativos e especulativos,
cujas formas de investigação englobam situações inéditas, a envolver uma
agenda renovada de interpretação e um temário diferenciado, com desta-
que para assuntos ligados ao desenvolvimento tecnológico, inovações em
realidades particulares, arranjos institucionais, meio ambiente e estudos
de realidades culturais sobre gênero, religião, arte e patriarcado.
Este movimento já é antecipado pelas ciências sociais e pelo huma-
nismo pós-estruturalista desde os anos 1980 e se reflete na geografia
através da redefinição de seu objeto de estudo e pelas críticas às he-
ranças quantitativas e racionalistas da ciência. Assim, uma tendência
da disciplina às inclinações híbridas, do ponto de vista do método, se
exacerba, e a ascensão de situações geográficas tratadas de maneira he-
terodoxa se impõe.
Marcante nesta reconfiguração dos planos de pesquisa é que, ao con-
trário da relativa unidade teórica que caracteriza cada fase da geografia
econômica, a abertura dos estudos a um feixe de influências que vai de
Schumpeter a Thorstein Veblen, passando por Foucault e Alfred Mar-
shall, indica uma diversidade de propostas ainda não experimentada nas
investigações entre espaço e economia.
De forma transversal a todas essas alterações, um movimento de
valorização de estudos espaciais em ciência econômica e em economia
política é realizado por um grupo de economistas liderados por Paul
Krugman, responsável pela idealização da New Economic Geography. Na
verdade, trata-se de uma abordagem que utiliza “modelos matemáticos
para explicar como simples formas de competição imperfeita e rendi-
312 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

mentos crescentes em escala, em conjunção com uma mobilidade de fa-


tores, produzem aglomeração espacial”20 (GÉNEAU DE LAMARLIÈRE,
2014, p. 193).21
A resposta dos geógrafos a este movimento é controversa (ATIENZA;
RONDA-PUPO; PHELPS, 2019; GÉNEAU DE LAMARLIÈRE, 2014). De
um lado, alguns deles, como Gordon Clark, Maryann Feldman e Meric
Gertler, sublinham os limites da New Economic Geography, em função de
sua apreensão simplificada do real e de sua dependência de “fatos estiliza-
dos”, que ameaçam a conquista da “heterogeneidade espacial” pelo núcleo
teórico da geografia (CLARCK, 2018). Por outro, o reconhecimento dos
esforços de Paul Krugman em integrar a seus modelos hipóteses sobre a
heterogeneidade na sociedade, nas relações de trabalho e na difusão do
conhecimento, estimulam autores como Ron Martin, Peter Sunley, Nigel
Thrift, Ash Amin, Trevor Barnes e Eric Sheppard a entenderem que um
intercâmbio de ideias pode ser mutuamente benéfico (ATIENZA; RON-
DA-PUPO; PHELPS, 2019; SUNLEY; MARTIN, 2017; GÉNEAU DE LA-
MARLIÈRE, 2014; BARNES; SHEPPARD, 2010; BOSCHMA; MARTIN,
2007; AMIN; THRIFT, 2000).
Alinhados ou não à New Economic Geography, os geógrafos econômi-
cos pavimentam um caminho abrangente de influências teóricas, cujos
múltiplos encaminhamentos sustentam uma agenda de pesquisa ampla e
diversificada. Em síntese, para este item, três direcionamentos podem ser
citados: 1) a geografia econômica da “virada territorial” (BENKO, 2008);
2) a geografia econômica cultural (BARNES, 2009); e 3) a geografia eco-
nômica evolucionista (ESSLETZBICHLER, 2012).

20 Original: “[…] modèles mathématiques pour expliquer comment de simples formes


de compétition imparfaite et de rendements croissants d’échelle, en conjonction avec une
mobilité des facteurs, produisent de l’agglomération spatiale” (GÉNEAU DE LAMAR-
LIÈRE, 2014, p. 193).
21 O sucesso da New Economic Geography entre os economistas é indiscutível. Este cam-
po de estudo ganha expressão nos anos 2000, com Paul Krugman recebendo o Prêmio
Nobel de economia em 2008, e seus periódicos de divulgação, tais como Journal of Eco-
nomic Geography e Economic Geography, sendo classificados pela Web of Science entre os
10 principais periódicos de economia e geografia no mundo. Ademais, em 2008, o Banco
Mundial publica o relatório World Development Report: Reshaping Economic Geography,
documento que reafirma essa linha de abordagem e lhe dá reconhecimento político (GÉ-
NEAU DE LAMARLIÈRE, 2014).
Teorias da economia política e a Geografia 313

A chamada “virada territorial” (BENKO, 2008) envolve geógrafos e


economistas e ganha expressão após as transformações decorrentes da
crise econômica dos anos 1970, sobretudo nas tradicionais regiões ma-
nufatureiras dos Estados Unidos e da Europa. Eles dão uma resposta à
emergência de novos espaços e setores industriais surgidos como alterna-
tiva à crise de antigos padrões de localização e produtividade. Em geral,
convergem na importância dada às iniciativas locais de desenvolvimento
e à valorização do papel de atores políticos territoriais como agentes de
mudança econômica. Essa experiência abrange não só esquemas de re-
partição e coordenação de tarefas produtivas, mas projetos de eficácia
empresarial que atingem progressivamente as relações humanas e o ter-
ritório. Resultam, dessa articulação, as concentrações de empresas resul-
tantes de iniciativas locais em áreas de dimensões reduzidas, onde certas
relações de cooperação garantem o acesso à informação e ao desenvolvi-
mento tecnológico de toda uma rede, seja a partir de contratos temporá-
rios entre fornecedores e contratantes ou a partir de associações empresa-
riais ligadas a institutos tecnológicos e a centros de pesquisa. Para Benko
(2008), as nuances desta abordagem podem ser traduzidas pelas ideias
de três escolas que se desenvolvem paralelamente a partir da década de
1980, quais sejam: a) um grupo de estudiosos italianos que concentra
suas pesquisas na experiência de regiões industriais emergentes, conheci-
das como Terceira Itália, dentre os quais se destacam Bagnasco, Becattini
e Brusco; b) os pesquisadores que se organizam para interpretar os Meios
Inovadores (Millieux Innovateurs), como Philippe Aydalot (AYDALOT,
1986), na França, culminando no debate que alimenta os estudos da Es-
cola da Proximidade, com autores como Bernard Pecqueur, André Torre,
Jean Benoît Zimmermann, Jean-Pierre Gilly, entre outros (BOUBA-OL-
GA; GROSSETI, 2008); e c) a própria Escola de Geografia da Califórnia,
citada no item anterior, que também apresenta autores responsáveis por
lerem o dinamismo da indústria de alta tecnologia nos Estados Unidos
pela ótica territorial, entre os quais Michael Storper é o mais conhecido.
Enquanto isso, o segundo direcionamento destaca a geografia eco-
nômica cultural, que critica as formas racionalistas de teorização geo-
gráfica, seus métodos exacerbadamente empíricos e a definição clara de
um objeto de pesquisa que parece muitas vezes engessar a realidade. Em
contraposição a essas visões, defende que as mudanças fundamentais no
capitalismo do fim do século XX e começo do XXI permitem que os li-
314 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

mites da relação entre cultura, lugar e economia não só se estreitam, mas


deixam de existir (BARNES, 2009). Desse modo, culturas econômicas se
manifestam no espaço de forma híbrida, heterogênea, múltipla e articu-
lada a diversas esferas, como a social e a ambiental, e devem ser enxerga-
das para além dos dualismos e hierarquizações da ciência convencional
(GIBSON-GRAHAM, 1996). A teoria, então, é concebida mais como um
vocabulário, no intuito de alcançar novos fins e superar a limitação de se
constituir apenas como um espelho do objeto investigado, o que impli-
ca o uso de metodologias humanistas autoconscientes e um retrabalho
de todo um conteúdo disciplinar. São muitos e relevantes os textos pro-
duzidos por esta linha de abordagem, principalmente em língua inglesa,
entre os quais podemos citar os trabalhos de J.K. Gibson-Graham, que
tratam das representações familiares do capitalismo como uma estrutu-
ra obsoleta e ao mesmo tempo estratégica para a resistência do sistema;
de Linda McDowell, sobre gênero e sexualidade em estudos de caso das
práticas de banqueiros na City de Londres; de Susan Hansen e Geraldine
Pratt, sobre o mercado de trabalho feminino em Massachusetts; de Erica
Schoenberger, sobre o comportamento e as péssimas decisões de geren-
tes sêniores de grandes corporações como uma cultura das firmas; e de
Andrew Leyshon e Nigel Thrift, quando discutem a fabricação e o gasto
de dinheiro em centros financeiros internacionais (GIBSON-GRAHAM,
2012; BARNES, 2009).
O terceiro direcionamento aborda a geografia econômica evolucio-
nista, que analisa as trajetórias de empresas e os mecanismos de inovação
para compreender as dinâmicas regionais (ESSLETZBICHLER, 2012).
A teoria evolucionista na geografia defende a ideia de que a forma e a
evolução das paisagens econômicas não podem ser entendidas sem dar
a devida atenção às várias instituições sociais que moldam a economia,
com ênfase no “conjunto de regras, normas, convenções, costumes e in-
tervenções que medeiam e apoiam a produção econômica, a acumulação
e o consumo”22 (MARTIN, 2005, p. 77). É comum salientar o papel da
variedade das relações, da dinâmica dos hábitos e da incerteza e otimi-
zação local, sempre analisando estes temas à luz de uma racionalidade
limitada. Como informa Essletzbichler (2012), para estudar a evolução

22 Original: “The ensemble of the rules, customs, norms, conventions, and interventions
which mediate and support economic production, accumulation, and consumption”.
Teorias da economia política e a Geografia 315

dos lugares e das regiões na geografia econômica evolucionista é preciso


considerar um processo coevolutivo e multiscalar, em que a evolução em
uma escala geográfica é vinculada e influenciada, mas não determina-
da, pela evolução em outras escalas. Essa perspectiva multiescalar sugere
que não existem entidades fundadoras formando os blocos básicos da
evolução, pois “empresas, regiões, estados e entidades supranacionais
são internamente heterogêneas e portadoras de informações específicas
em escala (rotinas, costumes, cultura e sistema jurídico)” (ESSLETZBI-
CHLER, 2012, p. 187).23 A teoria da economia evolucionista é uma das
que mais recebem adeptos em geografia econômica, assumindo posições
que variam em função de suas relações com outras correntes teóricas, a
exemplo da path dependence, de Ron Martin, Peter Sunley, Andy Pike e
Andrew Cumbers; da “teoria da complexidade” de Eric Sheppard; e do
“darwinismo generalizado” de Jürgen Essletzbichler. Todos eles enfati-
zam diferentes momentos do processo evolutivo institucional e destacam
que a diversidade e as questões normativas requerem mais atenção neste
direcionamento de pesquisa do que em qualquer outra investigação já
realizada em geografia econômica.
Não é possível pensar todas essas experiências de uma geografia eco-
nômica heterodoxa que conecta uma gama diversificada de epistemolo-
gias em circulação, sem uma forma de consenso ou tolerância. Esta talvez
seja a característica marcante desta diversificada linha de estudo, que uni-
fica divergências e pratica um pluralismo que pode ser sintetizado na for-
ma de um único movimento. Ele não ocorre sem tensões internas, mas,
com certeza, se fortalece ao produzir novas formas de conhecimento.

Considerações finais

A experimentação e a vivacidade são as características que perseguem


a geografia econômica como uma subárea de estudos abrangentes e de
temário pertinente para a atualidade. As razões para isso são particu-
larmente duas: 1) as instabilidades de método sentidas pela disciplina,

23 Original: “Firms, regions, states, and supranational entities are internally heteroge-
neous and carriers of scale-specific information (routines, customs, culture, and legal sys-
tem)”.
316 TEORIAS NA GEOGRAFIA. AVALIAÇÃO CRÍTICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

que historicamente é marcada por uma sucessão de abordagens domi-


nantes; e 2) a relação estabelecida com outras disciplinas, especialmente
a economia e a economia política, sendo mesmo um desafio dialogar (e
divergir) com outros campos sem o risco de se submeter a uma apro-
priação de temas ou a uma indesejada transformação teórica.
Quanto ao primeiro aspecto, a referida instabilidade parece ser a tô-
nica da geografia econômica, pois a subárea é caracterizada pela falta de
um progresso teórico generalizado e, como informa Barnes (2009), ela
parece mais um palimpsesto, onde engajamentos de método permane-
cem parcialmente visíveis, não completamente apagados, e continuam a
contribuir para a forma presente da disciplina, sem que as novas aborda-
gens retomem e aprimorem as ideias contidas nas abordagens anteriores.
Assim, de uma geografia econômica descritiva empirista surgida no
século XIX e que resiste até a primeira metade de século XX, chega-se à
análise espacial nos anos 1950-1970, posteriormente à geografia econô-
mica crítica nos anos 1970-1980, à abordagem territorial e regulacionista
nos anos 1980-1990 e à virada cultural, em sintonia com uma geografia
econômica evolucionista, desenvolvidas entre o fim do século XX e as
primeiras décadas do século XXI.
Paradoxalmente, a despeito da relativa unidade de método que ca-
racteriza a agenda de pesquisa até os anos de 1970, as últimas décadas
revelam abertura a um amplo conjunto de influências teóricas, que mui-
tas vezes dialogam e trabalham simultaneamente. Como já informado, o
consenso e a tolerância, bem como o debate crítico como recurso para o
avanço das abordagens, podem fortalecer a subárea e auxiliá-la na produ-
ção de novas formas de conhecimento.
Em segundo lugar, do ponto de vista da relação estabelecida com ou-
tras disciplinas, especialmente a economia e a economia política, nota-se
que desde a segunda metade do século XX esses diferentes campos es-
tão cada vez mais abordando temas e questões afins. Porém, apesar das
convergências, das trocas de influências e de compartilharem um temá-
rio razoavelmente próximo, o trabalho não é feito de forma similar nem
apresenta o mesmo propósito.
É um fato incontestável que a geografia econômica sofre influências
das teorias clássicas da economia e da economia política, a exemplo do
marginalismo, do keynesianismo, do marxismo e de posturas heterodo-
xas, como as de Schumpeter e de Thorstein Veblen, e um dos propósitos
Teorias da economia política e a Geografia 317

deste texto é demonstrar isso. Mas este texto também revela que a geo-
grafia econômica não absorve simplesmente essas influências sem criti-
cá-las ou adaptá-las, e o que é mais relevante: os geógrafos não aceitam a
abstração estilizada e a inclinação quantitativa analítica, comuns aos eco-
nomistas, sem que a elas não possa ser dado um tratamento qualitativo.
Na relação entre as disciplinas, desse modo, seguem os reconhecimen-
tos, mas também as trocas de acusações. Por um lado, a geografia econô-
mica insiste em apontar os limites e as simplificações dos trabalhos reali-
zados pelos economistas (as tensões entre os geógrafos e a New Economic
Geography de Paul Krugman é o capítulo mais recente dessas discordân-
cias). De outro, os economistas reclamam da falta de clareza metodológica,
da ausência de rigor e da confusão presente na convivência entre diversas
abordagens aleatórias.
Estudos recentes confirmam o aumento da complexidade e a frag-
mentação entre as comunidades de geógrafos e de economistas (ATIEN-
ZA; RONDA-PUPO; PHELPS, 2019) e mostram que, apesar de existirem
espaços de diálogo e pluralismo, estes são periféricos. É possível dizer en-
tão, aproveitando a metáfora dos autores, que as “pontes” que articulam
as “zonas de negociação” não têm sido resistentes às “turbulências das
águas” (ATIENZA; RONDA-PUPO; PHELPS, 2019).
Mas, se entre as mudanças recentes sentidas pela geografia econômi-
ca – o fato de ser hoje menos masculina e menos anglo-saxã, com sua
expansão para a Ásia (BARNES, 2009) – for incluída a possibilidade de
um debate sem medo de seus assuntos com a economia (nos termos da
própria geografia, sem permitir uma apropriação indesejada dos enca-
minhamento teóricos ou das escolhas políticas), é provável que a intensa
vitalidade intelectual atribuída ao diálogo entre essas disciplinas seja ple-
namente efetivada.

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