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Teorias na geografia
Avaliação crítica do pensamento geográfico
CONSEQUÊNCIA
© 2020, dos autores
Conselho editorial
João Rua
Alvaro Ferreira
Ruy Moreira
Carlos Walter Porto-Gonçalves
Marcelo Badaró Mattos
Marcos Saquet
Timo Bartholl
T314
Teorias na Geografia: avaliação crítica do pensamento geográfico / organi-
zado por Eliseu Savério Sposito, Guilherme dos Santos Claudino. - Rio de
Janeiro, RJ : Consequência Editora, 2020.
600 p. ; 15,5 x 23cm.
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-87145-12-9
1. Geografia. 2. Teoria. 3. Pensamento geográfico. 4. Pesquisa. I. Sposito,
Eliseu Savério. II. Claudino, Guilherme dos Santos. III. Título.
Introdução
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dos povos.
2 Ver principalmente Jeremy Bentham, Jean-Baptiste Say e Nassau Senior.
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A ortodoxia marginalista/neoclássica
A virada keynesiana
Karl Marx (1818-1883) é um dos autores mais influentes dos últimos dois
séculos. A produção de seu pensamento mistura propostas filosóficas,
análises históricas/sociológicas, projetos políticos e abordagens econô-
micas, mas, obviamente, para este texto, são priorizadas as investigações
de natureza econômica, mesmo sabendo que seu sistema intelectual é um
todo integrado e em certas situações é preciso recorrer ao contexto apro-
3 “Subprime (do inglês subprime loan ou subprime mortgage) é um crédito de risco
concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa
de juros mais vantajosa (prime rate)”. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Subprime.
Acesso em: 8 jun. 2020.
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priado desse conjunto para que algumas partes da análise não fiquem
comprometidas.
Influenciado pela filosofia alemã do começo do século XIX (sobretu-
do Hegel) e atuante nos movimentos socialistas franceses, Marx é apre-
sentado à economia política inglesa de Smith, Ricardo, Malthus e dos uti-
litaristas nesse mesmo período e propõe a ela uma crítica contundente.
Uma das principais indagações é que contradições epistemológicas des-
ses estudos impedem os economistas clássicos de observarem disfunções
intrínsecas da economia capitalista.
As ideias que sustentam o sistema intelectual de Marx evoluem ao
longo de várias obras4 e, nelas, questões relativas à natureza, às origens
e ao modo de funcionamento do capitalismo são priorizadas. Aos uti-
litaristas e a Malthus predominam críticas veementes, mas a Smith e a
Ricardo as opiniões são ambíguas. Por exemplo, apesar de ser influencia-
do pelo pensamento de Smith sobre a teoria do valor e dos lucros, Marx
discorda da analogia simples que ele faz entre a divisão do trabalho na
sociedade e a divisão do trabalho numa unidade de produção industrial.
Na teoria marxiana, a divisão social do trabalho tem um caráter uni-
versal e coletivo e está presente em todas as formas de sociedade, pois se
pauta no “valor de uso” e numa forma de trabalho considerada “útil” para
o trabalhador, que estabelece também uma relação de pertencimento
com seus resultados. Por outro lado, a divisão do trabalho numa fábrica
industrial impõe uma segmentação das atividades aos empregados, su-
jeitando-os aos ritmos de uma produtividade ascendente, regulada pelo
tempo da produção, pelo aperfeiçoamento das máquinas e pela concor-
rência no mercado, remunerando-os em função do “valor de troca” do
trabalho, ou seja, pelo nível de rendimento da reprodução da força de
trabalho (condições de subsistência) (DROUIN, 2008).
Diferente da abordagem realizada pelos economistas liberais, cuja
análise se centra no “indivíduo genérico” isento de relações sociais num
universo de trocas livres, a teoria do capitalismo de Marx se fundamenta
na relação entre homem e outros homens, ou seja, nas relações sociais.
5 Original: “As a result of such multiple possible readings, Marxism has become more a
family of theories with many strands than a single codified framework”.
6 Original: “[…] Marxism continues to develop as a living tradition, interacting with
surrounding currents in new ways, and spinning off a variety of hybrid forms”.
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8 Original: “That unique ness stymied any hope of producing scientific explanation and
generalization in economic geography, however”.
9 Original: “Regional geography, we conclude, is literally what its title expresses. It is
essentially a descriptive science concerned with the description and interpretation of uni-
que cases”.
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10 Original: “By typologically comparing the facts of different regions, economic geogra-
phical differences are immediately seen, and regional uniqueness shines by its own light”.
11 Original: “Once all regions were so described, their differences, and thus their indivi-
dual uniqueness, were immediately evident by reading across the typological grid”.
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12 Original: “[…] démontre de façon détaillée comment les liens entre rente foncière,
coûts de transport et prix agricoles tendent à former des cercles concentriques d’usages
différenciés des sols autour des centres de peuplement majeurs”.
13 São expressivos os nomes de Alfred Weber, August Lösch, Tord Palander, Harold
Hotelling, W. J. Reilly e G.K. Zipf, entre outros.
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15 Original: “Packed with calculations, data matrices, statistical techniques, cost curves,
and demand schedules, and conventional maps overlaid with numbers, arrows, starburst
lines, and balancing equations”.
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16 Ver as ricas discussões publicadas nas revistas Antipode (EUA), Hérodote (França),
Espace Temps (França) e L’Espace Géographique (França) etc., nas décadas de 1970 e 1980.
17 Apesar de não ser geógrafo, a influência de Henri Lefebvre é fundamental na cons-
trução de uma abordagem marxista que revisa o conceito de espaço e seu papel-chave na
interpretação das relações em sociedade.
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Mick Dunford, Kevin Morgan, Ray Hudson, Jim Lewis, Robin Murray e
John Urry e fica conhecido por produzir um novo regionalismo de ten-
dência crítica, num contexto de crise econômica, desemprego e desindus-
trialização no Reino Unido (COOKE, 2009).
Doreen Massey representa bem a vanguarda desse movimento britâni-
co, sobretudo ao elaborar insights sobre geografias desiguais de desenvol-
vimento, economia política marxista, contextos empíricos particulares e,
posteriormente em seus trabalhos, um sentido humanista crítico de lugar.
Em um livro de grande importância para a geografia econômica (Spatial
divisions of labour, 1984), Massey exprime o largo contexto de desindus-
trialização e reestruturação industrial presente no Reino Unido para ar-
gumentar que o domínio das grandes corporações em diferentes setores
da economia cria diferenças ocupacionais responsáveis por produzir lu-
gares articulados a uma divisão espacial do trabalho (MASSEY, 1984). O
resultado é uma crescente tendência de as empresas concentrarem geogra-
ficamente empregos de atividades superiores de comando, pesquisa e de-
senvolvimento em lugares especializados; e empregos de nível inferior em
regiões que concentram tarefas rotineiras, como montagem final de produ-
tos. Mas os lugares e regiões, segundo a autora, não são meros destinatários
passivos das decisões de localização corporativa e, com o tempo, tendem
a reunir “camadas” progressivas de reestruturação, desenvolvendo culturas
específicas que refletem os resultados de lutas políticas e econômicas entre
diferentes grupos. Em seus textos seguintes, a partir da década de 1990,
Massey enfatiza como essas relações também são moldadas fora do local de
trabalho, na comunidade em geral, ao abordar a interação desses conflitos
com outras formas de relações sociais, por exemplo, gênero, raça, etnia, e
como o sentido e a história dessas relações reproduzem divisões e desigual-
dades em locais específicos, em função das contradições nos espaços de
trabalho, moradia, educação e diversão (CUMBERS, 2009).
Esse percurso variado de abordagens é uma outra característica dessa
geografia econômica crítica. Em sua origem, ela primeiro sofre influên-
cia direta do temário e dos conceitos tradicionais de Marx e depois se
abre a um amplo conjunto de reinterpretações. Os trabalhos seguem uma
trajetória que vai de uma leitura mais ortodoxa da teoria marxista, prin-
cipalmente nos anos de 1970 e 1980, a uma incorporação de influências
diversas de método e de análise metodológica, em especial a partir da
década de 1990.
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18 Entre eles, Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz, Benjamin Coriat, André Or-
léan e Frédéric Lordon.
19 O caso de Bob Jessop é um dos mais emblemáticos.
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tes tendências teóricas, que as relações econômicas não podem ser enten-
didas se não forem implicadas em padrões desiguais de desenvolvimento
espacial.
22 Original: “The ensemble of the rules, customs, norms, conventions, and interventions
which mediate and support economic production, accumulation, and consumption”.
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Considerações finais
23 Original: “Firms, regions, states, and supranational entities are internally heteroge-
neous and carriers of scale-specific information (routines, customs, culture, and legal sys-
tem)”.
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deste texto é demonstrar isso. Mas este texto também revela que a geo-
grafia econômica não absorve simplesmente essas influências sem criti-
cá-las ou adaptá-las, e o que é mais relevante: os geógrafos não aceitam a
abstração estilizada e a inclinação quantitativa analítica, comuns aos eco-
nomistas, sem que a elas não possa ser dado um tratamento qualitativo.
Na relação entre as disciplinas, desse modo, seguem os reconhecimen-
tos, mas também as trocas de acusações. Por um lado, a geografia econô-
mica insiste em apontar os limites e as simplificações dos trabalhos reali-
zados pelos economistas (as tensões entre os geógrafos e a New Economic
Geography de Paul Krugman é o capítulo mais recente dessas discordân-
cias). De outro, os economistas reclamam da falta de clareza metodológica,
da ausência de rigor e da confusão presente na convivência entre diversas
abordagens aleatórias.
Estudos recentes confirmam o aumento da complexidade e a frag-
mentação entre as comunidades de geógrafos e de economistas (ATIEN-
ZA; RONDA-PUPO; PHELPS, 2019) e mostram que, apesar de existirem
espaços de diálogo e pluralismo, estes são periféricos. É possível dizer en-
tão, aproveitando a metáfora dos autores, que as “pontes” que articulam
as “zonas de negociação” não têm sido resistentes às “turbulências das
águas” (ATIENZA; RONDA-PUPO; PHELPS, 2019).
Mas, se entre as mudanças recentes sentidas pela geografia econômi-
ca – o fato de ser hoje menos masculina e menos anglo-saxã, com sua
expansão para a Ásia (BARNES, 2009) – for incluída a possibilidade de
um debate sem medo de seus assuntos com a economia (nos termos da
própria geografia, sem permitir uma apropriação indesejada dos enca-
minhamento teóricos ou das escolhas políticas), é provável que a intensa
vitalidade intelectual atribuída ao diálogo entre essas disciplinas seja ple-
namente efetivada.
Referências
AMIN, Ash; THRIFT, Nigel. What kind of economic theory for what
kind of economic geography? Antipode, v. 32, n. 1, p. 4-9, 2000.
ANDRADE, Manuel C. de. Espaço, polarização e desenvolvimento: uma
introdução à economia regional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1987.
ANDRADE, Manuel C. de. Geografia econômica. São Paulo: Atlas, 1989.
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