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NOTAS

DiEGo Viana
Jornalista, doutorando no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH/
USP (Diversitas). Professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
artigo

De pleonasmo a paradoxo
Olha isso! Fabio F. Storino
Doutor em Administração Pública e Governo
A política esteve na origem dos conceitos e práticas da educação. Mas o afastamento
das duas noções indica que algo mudou de lugar – seja em uma, seja em outra
Governo como plataforma

P
arece até um paradoxo falar so de generalização de ideais democrá-

E
em educação política, quando ticos foi simultâneo aos esforços para
m um país que ainda não foi capaz
justamente foi de olho na polí- universalizar a educação, sem falar
de cumprir agendas do século XIX
tica que se desenvolveram as nas inúmeras utopias pedagógicas cri-
(saneamento básico, habitação
primeiras ideias sistemáticas de educa- ticadas por Arendt. Se a democracia é
etc.), nós, brasileiros, tendemos a depo-
ção. crer que os jovens devam ser educa- o regime em que todos têm voz, então
sitar sobre os governos a expectativa de
dos surgiu como contraste com outras todos devem estar preparados para se
resolver muitos de nossos problemas.
formas de preparar para a vida adulta: o pronunciar. Para tanto, é preciso estar
Ouvi narrativas similares no semestre
treinamento, o aprendizado e, sob cer- a par dos assuntos mais determinantes
em que morei nos Estados Unidos, mas
tos aspectos, o adestramento. Desde para os destinos da comunidade. isso
os americanos esperavam soluções vin-
isócrates e Protágoras, a perspectiva de exige educação, ou melhor: formação,
das do setor privado. E por que não de
participar da política e de conduzi-la es- no sentido que o linguista alemão Wil-
nós, cidadãos?
teve na origem do conceito e das práticas helm von Humboldt atribuía ao termo
Jennifer Pahlka, fundadora e diretora
de educação, a tal ponto que uma expres- Bildung, que combinava “ciência objetiva
executiva da iniciativa Code for America,
são como “educação política” poderia ter

TERENCE S. JONES/ WIKIMEDIA COMMONS


e formação subjetiva”.
uma rede de geeks que visa o desenvolvi-
sido um pleonasmo.
mento de soluções abertas para a admi-
mas, ao fim e ao cabo, essas duas no- O MERCADO ENTRA EM CENA
nistração pública (como uma hackathon
ções estão tão afastadas na nossa men- o ponto de Arendt está em entender claro que um terceiro elemento tam-
de mais longa duração), vê a possibilidade
talidade que o próprio afastamento pode que alguém é educado para poder fazer a bém atuou na universalização da educa-
de governos se tornarem “plataformas”
ser tomado como um sintoma de que algo política, e não para que a política se faça ção: o avanço acelerado dos processos
para a emergência de uma cidadania ati-
mudou de lugar, seja na política, seja na nela. isso faz toda a diferença. Tomar o produtivos, que exigiam e continuam
va, engajada na solução dos problemas
educação. Hoje, se falamos em educação, tempo de formar um menino na pólis, en- exigindo trabalhadores cada vez mais
de sua cidade (ver sua palestra TED em
no mais das vezes pensamos nas penosas sinando-lhe retórica, lógica, geometria, qualificados. A ideia corrente de que a
on.ted.com/JPahlka). semanas feito por voluntários da socieda- são construções mais concretas, onde as
etapas que levam ao diploma e, do diplo- só valeria a pena se tivesse um propósito educação é uma etapa preparatória para
Cita como exemplo um aplicativo de civil, muitas vezes resultando em uma pessoas de fato nascem, vivem e morrem
ma, ao trabalho. educar-se é estar aten- mais ambicioso do que preparar para o o mercado de trabalho pode ser expli-
móvel desenvolvido por um membro do solução tecnicamente superior e, o que é (ver seu TED em on.ted.com/Barber). Mais
to à empregabilidade. o que o mercado trabalho ou transmitir a tradição. cada em termos humboldtianos como
projeto para a cidade de Boston, que con- muito importante, aberta, podendo ser importante: nelas as pessoas estão mais
espera de um bom profissional desta ou A função do pedagogo e do sofista separação entre a “ciência objetiva” e
vidava os moradores da cidade a “adotar” copiada e modificada por outros governos próximas de seus representantes eleitos,
daquela área? Pois é isso que vou estudar. era formar aqueles que, na ágora de a “formação subjetiva”, mas excluindo
hidrantes próximos à sua casa, retirando para atender a suas especificidades. inclusive fisicamente. É talvez nas cidades,
usamos o termo “educação” para desig- Atenas e suas congêneres, debateriam essa segunda categoria.
a neve de sua volta no inverno. A solução Soluções como essas não tratam da portanto, que esteja o maior potencial de
nar algo que outrora mereceria o nome e determinariam os rumos da cidade, do Por outro lado, também se pode lan-
se multiplicou, tendo sido adotada em terceirização das responsabilidades dos o governo servir como plataforma para
de treinamento ou aprendizado. coletivo. Daí surge a noção de paideia, çar um convite à reflexão com uma hipó-
Honolulu em relação às sirenes de alerta governos para sua população. Muitas uma cidadania ativa.
Hannah Arendt, em A Crise da Educa- que até hoje dá nome a escolas mundo tese bem diferente. o desejo de quem se
de tsunamis (que às vezes têm suas bate- vezes ocorre o contrário: facilitam a co- Se governos forem capazes de ativar
ção, um ensaio de 1954, debate o que na afora e virou título da obra-prima do fi- dedica anos a fio à educação para atuar
rias roubadas), Seattle fez o mesmo em brança pela população de ações de seus e engajar esse espírito comunitário de
época se percebia como queda na quali- lólogo alemão Werner Jaeger. no mercado de trabalho tem algo em
relação a suas bocas de lobo (que ento- governos, aumentando a responsabiliza- seus cidadãos, fazendo com que grades e
dade da educação nos euA. ela estabe- Nessa lógica, educar é formar, ou comum com o ideal da formação que dá
pem de folhas no outono), e várias outras ção destes. Quando a solução prescinde muros, que hoje separam vizinhos, sejam
lece que o problema não é saber “por que seja, produzir um cidadão, um membro subsídios à atuação política.
cidades adaptaram essa mesma solução. de intervenção estatal, faz com que os gradativamente substituídos por praças
Joãozinho ainda não sabe ler”, mas como da comunidade política, capaz de atuar Trata-se de uma modalidade de
Ainda que não houvesse outra ra- habitantes percebam que também são e outros espaços públicos que os unam
a educação prepara a próxima geração na definição dos rumos da sociedade. abertura para a esfera do comum e da
zão, iniciativas como a Code for America corresponsáveis por sua cidade. em torno de soluções para os problemas
para entrar em um mundo de adultos. Ao A paideia formava não mais que as al- interação; um arremedo, que seja, da
poupam os bolsos dos contribuintes. Um Como argumenta Benjamin Barber, au- cotidianos, tornará não apenas seu tra-
dizer que a política não deveria orientar a tas classes, os proprietários, únicos de vida pública. isso leva a crer que o modo
processo de licitação de soluções de TI tor de If Mayors Ruled the World (Se os pre- balho mais fácil (por ampliar o número de
educação, mas ser uma arena daqueles quem se esperava que fizessem política. de participação no coletivo, hoje, não vai
pode levar anos e custar milhões de reais, feitos comandassem o mundo), enquanto parceiros em uma causa comum), como
que foram educados, a filósofa se atra- Aos demais, treinamento, adestramen- muito além do mercado em si.
comparado ao trabalho de alguns dias ou estados e países são abstrações, cidades melhor a vida na cidade.
ca com uma série de utopias políticas to, aprendizado. o mesmo vale para o en- com isso, seríamos levados a crer
estreitamente ligadas à pedagogia, que sino do trivium e do quadrivium, as artes que a atuação no mercado tomou por
acreditavam poder melhorar o mundo liberais da idade média e do Renascimen- completo o lugar da atuação política. Se
simplesmente melhorando a formação to. Quem passava por essa experiência for assim, não deveria surpreender a di-
das crianças. essa ilusão, ela diz, é o me- não era artesão ou camponês. ficuldade em educar, ou formar, para a
lhor caminho para a doutrinação. Assim, não é por acaso que o proces- participação pública.

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