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Considerações sobre um Ato Falho na impressão xilográfica

Considerations about a Faulty Act in woodcut printing

André Magnago Alves


Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa

João Wesley de Souza


Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo:

Relato sobre um acaso ocorrido no processo de criação do autor que o conduziu a um avanço
técnico/imaginativo na xilogravura. O surgimento de um fato, não programado, dentro de um processo
previsível gerou contradições internas, que associamos a um ato falho, promovem dito avanço. O
trânsito entre pólos conceituais ligados ao conceito derridiano de diferença nos conduz a uma dialética
entre surpresas técnicas e conceituais surgidas como rastros desses trânsitos entre uma área de
conhecimento já dominada que se surpreende e antagoniza com fenômenos surgidos na criação
artística.

Palavras-chave: Ato falho; Alargamento da xilogravura; Inovação técnica; Xilogravura.

Abstract:

Narrative abording an haphazard event occurred at the author's creation process,which led him to a
woodcut technical/imaginative advance. The emergence of an unplanned event within a predictable
process generated internal contradictions, which we associate with a failed act, promote this progress.
The transit between conceptual poles linked to the Derridian concept of difference, leads us to a dialectic
between technical and conceptual surprises arising as traces of these transits between an already
dominated area of knowledge that is surprised and antagonized with phenomena arising in artistic
creation.

Keywords: Faulty act; Enlargement of the woodcut; Technical innovation; Woodcut.


Introdução

“Não existe criação artística sem acaso. Mas será que existem acasos na criação?”
(OSTROWER, 1995). Esta é uma pergunta profunda e é um grande desafio respondê-la com
abrangente certeza. A interrogativa formulada pela artista e teórica da arte, Fayga Ostrower, é
pertinente aqui porque o presente esforço textual busca investigar justamente um “acaso”
ocorrido dentro do processo de criação que abordaremos. Nos ocuparemos com a investigação
sobre a natureza de tal acaso porque o consideramos relevante, posto que: percebemos novos
fatos técnicos e conceituais em seus desdobramentos e acreditamos que podemos obter maior
compreensão sobre os meandros dos processos de criação artística nas artes visuais,
relacionados ao conceito de Ato Falho.
Caberia aqui lembrar que o processo de criação que abordaremos é uma experiência
conduzida pelo presente autor dentro do campo da gravura – diga-se, área de militância,
ininterrupta há mais de quinze anos. No entanto, mesmo se tratando de um evento ocorrido no
âmbito particular do sujeito autor, compreendemos que o “acaso” que estamos aludindo seja
similar aos inúmeros “incidentes fortuitos” narrados por Ostrower (1995) em Acasos e criação
artística. A epígrafe extraída do livro da autora citada no começo desta escrita, pode nos parecer
paradoxal ao primeiro olhar, mas logo se decifra quando avançamos na leitura do seu texto e
nele encontramos a seguinte explicação:

Nunca se trata, então, de acontecimentos aleatórios, no sentido de estarem


relacionados com a pessoa que os percebeu. Antes, pelo contrário, devemos
entender que, embora jamais os acasos possam ser planejados, programados
ou controlados de maneira alguma, eles acontecem às pessoas porque de certo
modo, já eram esperados. Sim, os acasos são imprevistos, mas não são de todo
inesperados - ainda que numa expectativa inconsciente. (OSTROWER, 1995,
p. 4).

Entendemos que para Ostrower (1995) a ideia de “acasos que são imprevistos, mas que
não são inesperados” e a admisão da existência de uma “expectativa inconsciente” que aguarda
por imprevistos e acabam por acusar a participação do inconsciente do sujeito-autor nas ações
que o mesmo realiza durante o processo criativo. Desta forma, o este sujeito-autor é levado-o a
reconhecer e introduzir a ideia de diferença no processo de criação que conduz por vias distintas
as do pensamento racional consciente. Até este ponto, o que chamamos de diferença nada mais
é do que as novidades (dissemelhanças) que surgem “ao acaso” no processo de criação, ou seja,
algo que pode ser percebido na comparação entre as proposições estéticas criadas pelo sujeito-
autor antes e depois de um fato não programado.
Entretanto, para o caso xilográfico que o presente esforço monográfico objetiva
registrar, adotaremos um conceito de diferença mais radical, uma vez que, o que nos levou
associar o fato não programado a um ato falho foi justamente a observação das próprias
contradições internas que se estabelecem a partir deste Fenômeno1. Como nos pareceu, não são
somente dissemelhanças, mas alternância entre elaborações estéticas formais, casuais e
antagônicas que confluem para um sistema de oposições - o que engendra trânsito de um polo
conceitual a outro e aos saltos entre a previsibilidade projetual e a incorporação do acaso no
processo criativo. Por fim, trataremos desse rastro deixado por esses deslocamentos que
correspondem ao aprendizado que um sujeito-autor pode adquirir na experiência entre polos
distintos de conhecimentos e onde a produção acaba promovendo o alargamento dos limites
formais, técnicos e das posibilidades imaginativas desta mídia gravada.

1. O Ato Falho no Processo de Criação Artística

Antes de avançarmos com o relato do caso xilográfico, buscaremos definir


razoavelmente os conceitos de inconsciente e de ato falho. É sabido que em finais do século
XIX, o termo inconsciente recebeu de Sigmund Freud um sentido diferente dos preexistentes;
Freud o situou acima e para além da consciência - ele abandona as acepções que apontavam
para uma supraconsciência ou para um subconsciente - e confere-lhe um sentido de “instância
a que a consciência já não tem acesso, mas que se revela à ela através do sonho, dos lapsos, dos
jogos de palavras, dos atos falhos, etc” (ROUDINESCO, 1998). Foi o mesmo Freud quem
definiu o fenômeno psíquico que chamamos de ato falho, em 1901, em A psicopatologia da
vida cotidiana - livro no qual demonstra em diversos exemplos que é preciso relacionar os atos
falhos aos motivos inconscientes de quem o comete para melhor compreendê-los. Em uma
definição curta: o ato falho é o “ato pelo qual o sujeito, a despeito de si mesmo, substitui um
projeto ao qual visa deliberadamente por uma ação ou uma conduta imprevista”
(ROUDINESCO, 1998).
Em sua área de origem, na psicanálise, um ato falho se equivaleria e seria levado em
conta como “um sintoma, na medida em que é um compromisso entre a intenção consciente do
sujeito e seu desejo inconsciente” (ROUDINESCO, 1998). Todavia, transportar um conceito
de uma área para outra não é simples, e assim, nos encontramos novamente impedidos de chegar

1
Fenômeno aqui entendido como um novo conhecimento gerado dentro da própria experiência, desde então, um
conceito situado dentro do arcabouso teórico da Fenomenologia.
ao relato que objetivamos porque não saberíamos o que fazer com ele. A solução para tal
impasse seria a escolha de um caminho por uma vereda já trilhada. Sendo assim, um grupo de
artistas visuais de Vitória (Espírito Santo), intitulado Ato Falho, apresenta a seguinte
possibilidade em seu livro de título homônimo, publicado em 2022:

[...] um Ato Falho no âmbito das artes visuais buscaria investigar, tirar partido
e mostrar como tais lapsos e extravasamentos imaginativos se expressam
através das imagens artísticas. Estes conteúdos insubordinados, estes saberes
recalcados e escondidos no inconsciente dos artistas, que escapam às vezes,
sem querer, estas subjetividades embutidas nas obras de arte, é o que buscam
explicitar [...] (SOUZA, 2022, p.13).

Seguindo a abordagem conduzida pelos artistas do grupo Ato Falho, começaremos o


relato buscando tirar partido do ato falho que percebemos, a fim de encontrarmos conteúdos e
saberes que estavam recalcados no inconsciente do sujeito-autor em questão.
Ainda em seu contato inicial com a gravura, o presente autor almejava aprender o que
lhe parecia o essencial: a xilogravura tradicional, utilizando a tábua de madeira como matriz,
os formões, a tinta preta e o papel branco para obter a imagem impressa. Seu projeto pessoal,
traçado deliberadamente, entretanto, era uma decisão de certo modo despeitosa à sugestão dada
por seu professor que, por sua vez, o estimulava à experimentação de materiais inusitados.
Apesar disso, obstinado, este sujeito-autor seguiu com seu plano até ser afligido por um
esquecimento que o levou a não obter com a devida antecedência os materiais necessários e,
assim, viu inviabilizando o que havia programado. Em uma última tentativa de encontrar tacos
ou refugos de madeira em sua residência foi que este sujeito-autor encontra uma vassoura
danificada que preservava sua haste cilíndrica intacta. Nasce de imediato uma ideia que, a
despeito da obstinação inicial, substitui o que era visado deliberadamente por uma solução
imprevista, diferente do projeto inicial - tal substituição é o que associamos a um ato falho.
Nas imagens adiante (figuras 1 e 2) podem ser observados os primeiros resultados
obtidos pela diferença criada pelo ato falho dentro do processo criativo: a substituição na
xilogravura das matrizes tradicionais (planares) pelas matrizes cilíndricas (espaciais),
confeccionadas a partir de seções da haste do cabo de vassoura esculpidas e entalhadas.
Figura 1. SEM TÍTULO - Magnago, Xilogravura, 2006, Suporte, 37 cm x 27 cm. Fotografias André Magnago
Alves. Vitória, Brasil. 2022. (Fonte: coleção do autor)

Figura 2. SEM TÍTULO - Magnago, Matrizes cilíndricas entalhadas em madeira, 2006, 53 cm e 33 cm,
respectivamente. Fotografias André Magnago Alves. Vitória, Brasil. 2022. (Fonte: coleção do autor)

Tendo como base o relato apresentado no fim do capítulo anterior, cogitamos que
podemos identificar nos artefatos expostos acima (Figuras 1 e 2) saberes necessários para a
confecção de ditos objetos que antes estavam recalcados no inconsciente do presente autor.
Salienta-se assim, como tópico de nosso interesse a descoberta/extravasamento de uma nova
capacidade de conceber a criação de imagens que depois de tomar uma decisão diferente dentro
do processo de criação - ou melhor dizendo, depois de optar pelo que conscientemente já havia
rechaçado, ou ainda, ao se desprender do interesse pela xilogravura tradicional e ao aderir a
experimentação de novos materiais. Desenhar, gravar e imprimir a partir de uma matriz
xilográfica não planar, foram capacidades desenvolvidas na medida em que a imaginação do
sujeito desta experiência, avançava de um sistema tradicional de impressão para um outro não
tão ortodoxo, ou seja, um sistema mais próximo do campo experimental.
Todas as diferenças que a influência do fato não programado propiciou no interior do
processo criativo que abordamos, não se demonstram como simples dissemelhanças. As vemos,
bem mais, como contradições, como alternâncias entre elaborações estéticas formais, casuais e
antagônicas que confluem para um sistema de oposições. Até aqui lidamos com referências
conceituais contrárias como: Programado e Não Programado; Tradicional e Experimental;
Planar e Espacial. Para darmos conta de operar tais contrários optamos por utilizar o conceito
derridiano de diferença (différance2), posto que é um sentido de diferença mais radical que o
sentido grego da palavra, ou latino. A noção que encontramos para este conceito em Jacques
Derrida exprime, por exemplo, a “diferença entre o mundano e o não-mundano, o fora e o
dentro, a idealidade e a não-idealidade, o universal , e o não-universal, o transcendental e o
empírico, etc. (DERRIDA, 1975)” ou seja, conceitos opostos e dispostos como teses e antíteses.
Desta forma, a influência do ato falho engendrou a diferença entre matriz planar e matriz
espacial. Tais conceitos podem ser explicados da seguinte maneira: a matriz planar na
xilogravura é a tábua de madeira que pressiona o suporte para carimbá-lo com apenas uma das
suas superfícies e, por suas outras superfícies não terem nenhuma participação na criação da
estampa a ser gravada, a definimos como planar ou mera frontalidade; diferentemente, a matriz
espacial (cilíndrica) toca o suporte com toda sua extensão, dando voltas ao ser rolada e, por
isso, a denominamos espacial.
Caso desejemos dar mais que uma volta com a matriz cilíndrica sobre o suporte,
criaremos, de imediato, outra Diferença, desta vez, entre os conceitos de reprodução
fragmentária e reprodução contínua. A definição de reprodução fragmentária aponta para a
própria finalidade da xilogravura enquanto imagem técnica: a multiplicação da estampa, gerada
pelo repetido contato de impressão entre a matriz planar e diferentes fragmentos de suporte,
produzindo diversos exemplares idênticos, separados e autônomos. O conceito de reprodução
contínua, por sua vez, gera uma imagem que é fruto de sua própria repetição sobre um único
suporte e acaba produzindo “quase monotipias”. Outro exemplo de reprodução contínua pode

2
Neologismo derivado da palavra francesa différence em que se substituiu com um ‘a’ a segunda letra ‘e’ do
nome, causando assim alteridade gráfica e semelhança fonética, dotando-a um caráter polissêmico.
ser observado na xilogravura Aparição e em sua matriz geradora (Figuras 3 e 4), datadas de
2022.

Figura 3. APARIÇÃO – Magnago, Xilogravura, 2022, Suporte, 202 cm x 32 cm. Fotografia de Jocimar Nalesso,
Vitória, Brasil. 2022. (Fonte: Acervo de imagens do Grupo Ato Falho)

Figura 4. SEM TÍTULO - Magnago, Matriz cilíndrica entalhadas em madeira, 2020, 27 cm. Fotografia de
Jocimar Nalesso, Vitória, Brasil. 2022. (Fonte: Acervo de imagens do Grupo Ato Falho)

A reprodução contínua é um procedimento pouco comum na arte contemporânea e é


dela que derivou o que, de fato, nos pareceu inédito no caso xilográfico relatado. Com a
superfície entalhada da matriz cilíndrica passando seguidas vezes sobre o papel até o
esvaziamento, quase total, da tinta impregnada nela, foi possível criar figuras imbricadas das
na estampa, de tal forma que: um mesmo elemento representado pode dar duas ou mais voltas
entorno do cilindro de madeira (a matriz) sem cobrir a si mesmo. Tal sistema de imbricação das
figuras é possível porque, antes do serviço de entalhe, há um esforço projetual no desenho que
por meio de esquemas e cálculos, causa a impressão de que as representações, de alguma forma,
podem se deslocar com alguma liberdade dentro das faixas impressas geradas – como pode ser
observado na abaixo fotografia de um detalhe da xilogravura Aparição (Figura 5). Algumas
linhas vermelhas aplicadas sobre a foto servem de marcação ilustrativa que facilita a observação
cada volta completa que a circunferência do cilindro de madeira realizou sobre o papel ao
imprimí-lo.

Figura 5. DETALHE – detalhe da xilogravura Aparição (Figura 3). Fotografia de Jocimar Nalesso, Vitória,
Brasil. 2022. (Fonte: Acervo de imagens do Grupo Ato Falho)

Considerando este percurso textual desenvolvido até aqui, e amparados nos conceitos
que extraimos desta experiência, podemos então dizer que: os trânsitos empreendidos pelo
sujeito-autor entre conceitos opostos na experiência da diferença corresponde ao seu próprio
aprendizado que se adquire no desenvolvimento do processo criativo. Esta conclusão estaria
fundamentada no mesmo conceito de diferença que adotamos. Para Derrida a diferença
engendraria a ideia de rastro (trace3), que seria como um vestígio, ou o que sobra para a
imaginação do sujeito da experiência após a travessia de um pólo imaginativo a outro. Como
podemos observar na seguinte frase do livro Gramatologia, de 1967, “E a diferença, nós a
experimentaremos progressivamente, não é pensada sem o rastro (DERRIDA, 1975).” Assim,
nos parece que o presente sujeito-autor não pode mais ser o mesmo depois de experimentar a
reprodução fragmentada (procedimento tradicional) e a reprodução contínua (procedimento
experimental). De um ponto de vista fenomenológico, o sujeito ficaria impregnado pela
experiência da Diferença e levaria consigo os vestígios de novos conhecimentos deixados pelo

3
substantivo francês que se refere a marcas deixadas pela passagem ou por uma ação de um ser ou de um objeto.
Rastro, aqui entendido como Fenômeno gerado dentro da própria experiência. Compreendemos
também que o rastro pode ser pensado como síntese ou harmonização da diferença, algo que
surge de um diálogo entre dois extremos e que se desenvolve no aparato sensível do sujeito:
“Estas oposições somente têm sentido a partir da possibilidade do rastro (DERRIDA, 1975).”
Neste sentido poderíamos dizer que: quando experimentamos uma mídia, já tradicional,
e exaustivamente dominada, com um certo grau de liberdade perceptiva, com um olhar
esgarçado pela diminuição de conceitos pré estabelecidos, um universo novo de possibilidades
se abre diante de nós. Tal alargamento da experiência técnica, conceitual e imaginativa sobre a
xilogravura, germinada dentro do reconhecimento e admissão de um Ato falho, constitui se ao
final, no próprio objeto que colocamos em questão neste esforço monográfico.

6. Referências

DERRIDA, Jacques, Gramatologia. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro, tradutores.


São Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1995.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998.
SOUZA, João Wesley (org.). Ato Falho. Vitória. Edição dos autores, 2022.
SOUZA, João Wesley. Prospecção e Construção Poética – Considerações sobre algumas
possíveis vertentes do processo de criação em artes. In: Primeira Jornada de Pesquisadores em
Artes, 2015, São Paulo, Anais [...] PPGIA – UNESP: São Paulo, 2015, p. 9 – 31.

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