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Ficha Catalográica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

S237 Santos, José Henrique de Freitas; Riso, Ricardo


Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas afri-
canas na encruzilhada brasileira / José Henrique de Frei-
tas Santos, Ricardo Riso. – Rio de Janeiro: Kitabu, 2013.

400p.; 14 x 21 cm

ISBN 978-85-67445-00-7

1. Crítica Literária 2. Teoria Literária 3. Literaturas


Africanas I. Título II. José Henrique de Freitas Santos II.
Ricardo Riso

CDD 890
CDU 82.091
José Henrique de Freitas Santos
Ricardo Riso

AFRO-RIZOMAS
na diáspora negra
as literaturas africanas na encruzilhada brasileira
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APRO-
PRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DOS AUTORES.

PROJETO EDITORIAL José Henrique de Freitas Santos e Ricardo Riso


EDITORAÇÃO Vanessa Bomim
PROJETO GRÁFICO
CAPA Pintura de Ricardo Riso, “Afro-Risomas: They´ll see how beauti-
ful I am”. Acrílico sobre papel. 114 x 226 cm
REVISÃO DE TEXTO José Henrique de Freitas Santos, George Mário
do Espírito Santo Amorim, Maiana Lima Teixeira e Ricardo Riso

KITABU LIVRARIA NEGRA Ltda.


www.kitabu.com.br
kitabulivraria.wordpress.com kitabulivraria@gmail.com
Twitter e Facebook: Kitabu Livraria
DIREÇÃO EDITORIAL Fernanda Felisberto
Copyright © Kitabu Editora, 2013

Coletivo Literário OGUM’S TOQUES NEGROS


ogumstoques.com
ogumstoques@gmail.com
Facebook: Ogum’s Toques

Impresso no Brasil
Agradecimentos

Este livro contou com o precioso apoio de Fernanda Felisberto e Heloí-


sa Marconde da Kitabu Editora; do Coletivo Literário Ogum’s Toques Ne-
gros: Guellwaar Adún, Mel Adún, José Carlos Limeira, Lívia Natália, Eduardo
Oliveira, Odú Comunicações, dentre outros; de Marciano Ventura, da Ciclo
Contínuo, parceiro fundamental para a logística editorial; dos pesquisadores
colaboradores participantes ou não que visualizaram e compartilharam as po-
tências múltiplas dos afro-rizomas para o campo das Literaturas Africanas (de
Língua Portuguesa) aplicadas ao/no Brasil.
Aos familiares e amigos que acompanharam nossas angústias e anseios,
entenderam nossas ausências e prestaram o incentivo necessário para darmos
continuidade à tessitura desta obra.
Um agradecimento especialíssimo para a Drª Moema Parente Augel que
com sua experiência e observações quase que diárias tanto contribuíram para
o desenvolvimento da obra. Sua empolgação com o projeto deste livro e tantas
palavras de incentivo serviram como ios condutores para tecermos essa trama
textual com coragem e certeza que estávamos fecundando outros caminhos.
Este livro não seria o mesmo sem a sua presença intensa durante a sua confec-
ção. Nossos sinceros agradecimentos.
“Eu me organizando posso desorganizar
Eu desorganizando posso me organizar”
(Chico Science & Nação Zumbi)

“I, too, sing America.

I am the darker brother.


hey send me to eat in the kitchen
When company comes,
But I laugh,
And eat well,
And grow strong.

Tomorrow,
I´ll sit at the table
When company comes.
Nobody´ll dare
Say to me,
“Eat in the kitchen”,
hen.
Besides,
hey´ll see how beautiful I am
And be ashamed, -

I, too, am America”
(Langston Hughes)

‘Nous sommes de ceux qui refusent d’oublier. Nous sommes de ceux


que refusent l’amnésie même comme méthode.’
(Aimé Césaire)

“Emancipate yourselves from mental slavery


None but ourselves can free our minds”
(Bob Marley)
Sumário

APRESENTAÇÃO
Henrique Freitas e Ricardo Riso ............................................................ 11

PREFÁCIO
Moema Parente Augel .......................................................................... 17

AS LITERATURAS AFRICANAS NA ENCRUZILHADA: TEORIA, CRÍTICA E OU-


TRAS TENSÕES
Dez-a-ios epistemológicos para as Literaturas Africanas no Brasil
Henrique Freitas ................................................................................... 41

Contribuições de um romance angolano para a educação etnicorracial e


descolonizadora do branco brasileiro
Jesiel Oliveira Filho .............................................................................. 59

Para além de Ibérias e Américas: a emergência das Literaturas Africanas


em Língua Espanhola
Amarino Queiroz ................................................................................. 71

A lírica menor: por uma Teoria da Literatura das Literaturas Africanas de


Língua Portuguesa
Lívia Natália ......................................................................................... 89

CORPO, ESCRITA E MERCADO – DILEMAS DA AUTORIA E DA REPRESENTA-


ÇÃO FEMININAS
Ler as mulheres das ilhas: línguas, identidades e poderes nas margens do
mar da poesia – da aventura à tragédia
Eurídice Furtado Monteiro .................................................................. 103

Percepções sobre a intimidade e o corpo feminino na literatura poética


da Guiné-Bissau
Miguel de Barros ................................................................................. 131

Múltiplas paragens do corpo intelectual: poéticas da diferença em Mel


Adún, Ana Paula Tavares e Esmeralda Ribeiro
Lívia Natália ....................................................................................... 143

Escritoras africanas negras e seu acolhimento pelo mercado editorial bra-


sileiro: rastros afro-anglófonos, francófonos e lusófonos
Fernanda Felisberto ............................................................................ 163
AFRO-RIZOMAS: AS MULTIPLICIDADES DESIERARQUIZANTES
A Coleção Nana & Nilo: uma imagem do pensamento afroperspectivista
para a literatura infantil
Renato Noguera ................................................................................. 177

Afro-rasuras: Que Negro é esse nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa?


Ricardo Riso ....................................................................................... 195

A “lei da solidariedade” ou o gesto para a profanação do saber: um con-


tributo para pensar a condição étnico-racial brasileira
Lucilio Manjate .................................................................................. 221

PARA ALÉM DO CONCEITO DE LUSOFONIA


Topologias de pertenças na obra de Francisco José Tenreiro: entre a ide-
ologia negritudinista e a mátria insular
Inocência Mata ................................................................................... 239

Amílcar Cabral na poética crioula de Eneida Nelly


Dejair Dionisio ................................................................................... 263

Percepções e contestações: leituras a partir das narrativas do narcotráico


na música rap da Guiné-Bissau
Miguel de Barros e Patrícia Godinho Gomes ...................................... 275

Morro da Maianga: da poesia e da tradução cultural


Abreu Paxe ......................................................................................... 283

REENCENAÇÕES LITERÁRIAS E ESPELHOS AFRICANOS


A Literatura de São Tomé e Príncipe no Brasil: Francisco José Tenreiro, presente
Amarino Queiroz ................................................................................ 303

Retratos de Luanda em cenários literários


Maria Nazareth Soares Fonseca .......................................................... 319

Renascimento literário e a produção infanto-juvenil moçambicana: pala-


vras que pulsam
Maria Anória de Jesus Oliveira ........................................................... 337

Orfandade identitária e alegada (im) pertinência de uma poesia de negri-


tude crioula: discursos da crioulitude e síndromas de orfandade identitária
José Luis Hopffer Almada .................................................................... 355

Organizadores .................................................................................... 393

Colaboradores ..................................................................................... 395


11

Apresentação

“Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento,


mas ninguém chama violentas as margens que o
comprimem”
Bertold Brecht

A Lei 10.639/2003 se constituiu como um marco


fundamental para os estudos referentes às histórias
e culturas afro-brasileira e africanas no Brasil, por
instituí-los como compulsórios na educação formal
no país. Mesmo ante a obviedade de que jamais al-
cançaremos efetivamente uma educação brasileira se
o conhecimento que produzimos não for atravessado
pelos saberes africanos, afro-brasileiros e indígenas (a
Lei 11.645/2008 amplia esse debate incluindo como
obrigatório também o ensino de história e cultura in-
dígenas nas escolas), foi necessária a força de lei para
que o Brasil começasse a “integrar” em suas malhas
oiciais, pelo menos a partir de políticas governamen-
tais e não governamentais mais amplas, a diferença
que o constitui e pode torná-lo, para além das dispo-
sições geopolíticas do Estado moderno, na diáspora
negra, na diversidade que o forma, aquilo que é.
Nestes dez anos da 10.639/2003, tivemos conquis-
tas signiicativas inegáveis, dentre as quais destacamos
quatro que interessam mais diretamente a este livro: a
implementação e a consolidação das ações airmativas
nas instituições públicas de ensino superior em todo o
Brasil, abrindo margem agora para a importante pau-
ta da pós-permanência qualiicada (corresponde ao
estágio em que a pós-graduação é uma das metas de
formação para os jovens sob os auspícios dessa lei); o
surgimento de muitos cursos de extensão, graduação
e pós-graduação stricto e lato sensu, disseminando
esses saberes africanos e negro-brasileiros em todo
território nacional; o crescimento exponencial de pu-
blicações que tratam dos temas abordados pela referi-
da lei, instituindo um segmento relevante do mercado
editorial e, por im, o fortalecimento, embora não ain-
da com a intensidade de que gostaríamos, do campo
dos estudos das literaturas africanas e afro-brasileira.
Atuando em universidades, na condição de pes-
quisadores, grupos de pesquisa, departamentos que
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trabalham com as literaturas africanas e afro-brasilei-


ra, núcleos e programas de pós-graduação que discu-
tem a temática, qual foi a nossa resposta ao chama-
do da lei, ao fazermos o balanço, depois destes dez
anos, para além de dissertações, teses e indicações de
livros para os vestibulares? Que exercício autocrítico
izemos para pensar este indispensável campo do co-
nhecimento?
Na área da História, para contemplar a África em
sua complexidade, intelectuais como Joseph Ki-Zerbo
entendiam que era fundamental um abalo epistemo-
lógico, já que os saberes e o próprio tempo africano
eram obliterados desde o método, desde as fontes,
desde as ferramentas utilizadas para se forjar a Histó-
ria. Daí, tem-se investido na validação das fontes orais
e se está produzindo uma inteligibilidade estratégica
sobre elas, redimensionando a África na “Crônica
Universal” realizada pela Europa. Nesse sentido, em
que medida ao menos desconiamos que o aparato te-
órico, crítico e metodológico que nos foi legado preci-
saria também sofrer esse abalo no campo dos estudos
literários?
O livro Afro-rizomas na diáspora negra: as lite-
raturas africanas na encruzilhada brasileira, entre
os mil platôs de Deleuze/Guattari e o saber não dialé-
tico (Paradigma Exu), de que nos fala em seus livros
o ilósofo Eduardo Oliveira, expresso no signo da en-
cruzilhada, nasce exatamente das inquietações ante os
questionamentos aqui postos.
Os afro-rizomas subvertem a inluência colonial
portuguesa e rejeitam também a lusofonia como ope-
rador mito-monológico para a constituição das litera-
turas do Brasil e dos países africanos de língua portu-
guesa, reconigurando as relações em jogo através de
outras redes como os diálogos Sul-Sul. O termo afro
que rasura a acepção de rizoma, acompanha a ressig-
niicação da diáspora, no sentido de Hall (2011) e Gil-
roy (2012), procurando construir espaços simbólicos
não necessariamente mapeados, mas que se colocam
criticamente contra uma colonialidade do poder e do
saber que reduz o texto literário a todos os perigosos
centramentos que anulam a diversidade. Com isso,
intentamos pensar caminhos possíveis para contem-
plar as pluralidades que desterritorializam as certezas
no campo das literaturas africanas ante uma estrutura
que é patriarcal, grafocêntrica, capitalista e branca,
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responsável também pelo racismo epistêmico1 atuan-


te em nosso país.
Afro-rizomas inclui uma multiplicidade de arti-
gos, envolvendo trocas coletivas descontínuas, des-
centralizadas, dispersas, incorporando múltiplas
áreas para compreender a expansividade do texto li-
terário, enquanto linguagem do/no corpo, no graiti,
no rap, na oralitura, em formas às vezes não usuais...
Entretanto, podemos demarcar alguns momentos que
sedimentam a proposta que aqui se apresenta em for-
ma de livro.
O título deste livro que ora apresentamos – Afro-
rizomas – não é uma novidade, pois já se conigura-
vam como afro-rizomas a dissertação de mestrado de
José Henrique de Freitas Santos sobre a obra de Chico
Science, publicada no formato livro em 2006, em que
foi trabalhada a noção de sampler; o surgimento do
blog de Ricardo Riso, no ano de 2007, já enunciava
1
Tais ações conigu-
ram-se como racismo
uma condição afro-rizomática com a proposta de di- epistêmico a partir da
vulgar, através de resenhas e artigos, outros nomes perspectiva de Renato
Noguera, ao consider o
das literaturas africanas de língua portuguesa. Sinto- processo de coloniza-
mática a atuação do blog Kukalesa, de Jesiel Oliveira ção do continente afri-
Filho, referência obrigatória para pesquisadores des- cano e o total descrédito
dos europeus quanto
sas literaturas. A materialização do grupo de trabalho aos saberes tradicionais
literalmente intitulado de Afro-Rizomas, coordenado das diferentes etnias afri-
por Maria Nazaré Lima, Jesiel Oliveira Filho e José canas, desconsiderando
suas ilosoias e costu-
Henrique de Freitas Santos, durante o Congresso de mes, estereotipando-os
2010 da ABRALIC (Associação Brasileira de Litera- e menosprezando-os.
(NOGUERA, 2011).
tura Comparada), foi um momento-chave para o for-
talecimento e a aproximação efetiva e afetiva também
de pesquisadores com essa perspectiva da diferença.
O ano de 2011 mostrou-se especial para a consoli-
dação das redes de pesquisadores dispersos pelo país,
uma vez que Lívia Natália, Amarino Queiroz, Mel
Adún, Guellwaar Adún, José Henrique de Freitas San-
tos, Jesiel Oliveira Filho, Ricardo Riso e pesquisadores
africanos de diversos países encontraram-se no II Xirê
das Letras, Congresso Internacional organizado pelo
Departamento de Letras da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), na cidade de Xique-Xique, interior
baiano. Naquele mesmo ano, Ricardo Riso publica duas
antologias de poesia, uma cabo-verdiana e outra mo-
çambicana. No ano seguinte, escritores e pesquisadores
negros de Brasil e Moçambique, inclusive Ricardo Riso,
Lucílio Manjate e Fernanda Felisberto, encontraram-se
no Wanasema. 2012 marcou o início das atividades da
14

página Ogum’s Toques na rede social Facebook, e do


blog do mesmo nome assinado por Guellwaar Adún,
com a intenção de divulgar literatura negro-brasileira e
demais literaturas negras da diáspora e da África, bem
como também com o intuito de formação de público
leitor para essas literaturas. Parte das pessoas mencio-
nadas acima constitui desde então o coletivo literário
Ogum’s Toques. A partir daí, atividades externas come-
çaram a acontecer, como o evento Ogum’s Toques do/a
Escritor/a, também com atuação política em defesa dos
representantes da literatura negro-brasileira através de
Nota de Repúdio denunciando a ausência de escritores
negros, com exceção única de Paulo Lins, na seleção de
autores para a Feira do Livro de Frankfurt, edição 2013.
Esses foram alguns dos antecedentes que contri-
buíram para fortalecer o conceito de afro-rizomas
entre os organizadores e articulistas deste livro que,
para além da trajetória exposta, acumulada com par-
ticipações em congressos e seminários, prefácios e
posfácios de livros de autores africanos, buscou agru-
par, oferecer o reconhecimento e dar visibilidade para
os pesquisadores espalhados pelo Brasil e oriundos
dos cinco países africanos de língua portuguesa que,
através de uma rede intensa de diálogos, têm-se ocu-
pado em pensar os diversos entraves e caminhos para
a expansão das literaturas africanas no Brasil, con-
templando possibilidades ainda pouco exploradas.
Ressaltamos que a atuação coletiva desses pesquisa-
dores é desierarquizada em intertrocas realizadas com
frequência para discutir diversos temas, assim como
autorreferente, uma vez que as citações mútuas para
construção dos artigos são uma prática comum nes-
te grupo: vamos ajudando um ao outro a pensar nas
questões que consideramos importantes para o cam-
po. Desta maneira, nessa troca e compartilhamento,
amplia-se a visão restrita resultante de uma orienta-
ção eurocêntrica de enquadramento das literaturas
africanas e da literatura negro-brasileira, a partir de
outros referenciais epistemológicos e de produtores
literários que fazem da experiência com a linguagem
a ininterrupta desestabilização das certezas impostas
por uma ideologia hegemônica – ideologia que se
quer homogênea e formatada em grandes grupos re-
presentantes de enormes coletividades, asixiando as
diferenças e as identidades plurais dos diversos gru-
pos étnico-raciais, em especial, dos negros.
15

A opção editorial neste livro em não uniformizar


a variedade linguística diatópica aqui expressa dos
autores (são falantes da língua portuguesa em pelo
menos seis países distintos, de regiões ainda mais di-
versas), tem a ver com o convite aos leitores ao exer-
cício crítico da epistemologia afro-rizomática do lin-
guajamento (o tema será explorado devidamente no
primeiro artigo da obra). Assumimos aqui a paixão e
os riscos desta opção que consideramos fundamental
para que a diferença, sobretudo essa tão visível, tão
orgânica que é a linguística, nos abale, nos (de)(trans)
forme, nos desaie.
Por im, com perspectivas diversas, mas com um
io condutor bastante nítido, a questão racial, este Afro-
Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas africanas
na encruzilhada brasileira propõe a reunião de de-
zenove pesquisadores de catorze instituições compro-
metidos com as linhas investigativas que tensionam o
cânone, desvelam tramas que diicultam a circulação
de outras bases epistemológicas, contestam leituras
redutoras que não potencializam discussões para con-
templar o conteúdo da lei 10.639/2003 e suas diretrizes,
apresentam novas linhas teóricas, apontam ausências
no mercado editorial, reivindicam outras literaturas
africanas e investem no encruzilhamento da literatura
negro-brasileira com as literaturas africanas, dentre ou-
tras questões.
Afro-Rizomas na Diáspora Negra: as literaturas
africanas na encruzilhada brasileira é a primeira ação
editorial, e não é mera coincidência que o livro saia sob
a chancela da Kitabu Editora, que contempla exata-
mente este grupo de pesquisadores negros, convidados
pelo reconhecido mérito de suas investigações e pela
disposição política em atuar de forma descentralizada
nesta rede que vamos tecendo por entre oceanos, dis-
postos à autocrítica e a desaiar-nos e desiar-nos para
pensar no devir das literaturas africanas no Brasil.

Nossos votos de uma boa leitura.


Com a palavra, nossos autores.

Os organizadores
17

Prefácio
O livro Afro-rizomas na diáspora negra é o resul-
tado do trabalho conjunto de uma plêiade de autores,
originários de diferentes recantos do vasto conjunto
constituído pelos países que izeram parte do império
colonial português. São dezenove artigos enfeixados
dentro de um amplo leque temático pertencendo,
como os próprios articulistas, igualmente a diversas
áreas do conhecimento e tendo como denominador
comum a consciência das múltiplas raizes de que é
composto o legado histórico espalhado pelo mundo,
instrumentado pela língua portuguesa.
A idealização e organização do projeto editorial
são de responsabilidade dos professores e críticos
literários Ricardo Riso (UCP/IPETEC) e Henrique
Freitas (UFBA), antecedidas por um concerto de es-
forços e de iniciativas articulados por um punhado
de jovens, imbuídos de energia emancipatória e de
idealismo: o grupo Ogum’s Toques Negros, liderado
por Guellwaar Adún. A edição está a cargo da Kitabu
Livraria Negra, agora com a sua estreia como Editora.
Ogum’s Toques Negros é um coletivo literário, do
qual fazem parte Guellwaar Adún, (pseudônimo de
Marcos Gonçalves da Silva), Mel Adún, Ricardo Riso,
Henrique Freitas, José Carlos Limeira, Lívia Natália,
entre outros, e que apresenta regularmente em seu site
e na rede social Facebook textos de autores menos e
mais conhecidos, tanto afro-brasileiros como africa-
nos. O coletivo literário tem também atuação política.
Atento à discriminação racial, participa de campanhas
e atos políticos contra o genocídio da juventude negra
e atua contra o epistemicídio, como por exemplo di-
vulgando em larga escala uma Nota de Repúdio contra
a seleção de autores brasileiros para a Feira do Livro de
Frankfurt de 2013. Neste corrente ano passou a pro-
porcionar o encontro do público soteropolitano com
agentes da literatura negro-brasileira no evento deno-
minado Ogum’s Toques do/a Escritor/a – apresentando
tanto autores já consagrados, nomes históricos como
Éle Semog, José Carlos Limeira, Abelardo Rodrigues,
Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, como jovens es-
critores (até o momento Cidinha da Silva e Elizandra
Souza). Um dos projetos mais recentes do grupo é a
atividade editorial, sendo a concepção de Afro-Rizomas
seu primeiro resultado.
18

O blog de Ricardo Riso, pseudônimo de Ricardo Sil-


va Ramos de Souza, existe desde 2007, aberto primei-
ramente para, entre outras motivações, divulgar autores
africanos de língua portuguesa, resenhar livros de auto-
res não publicados no Brasil, passando a realizar noites
de autógrafo com autores africanos (João Tala e Tânia
Tomé) e a divulgar títulos, dentre outros, da União dos
Escritores Angolanos e da editora Artiletra (Cabo Ver-
de), ambas atividades em parceria com a Kitabu Livraria
Negra. Em 2011, organizou duas antologias de poesia –
uma de Cabo Verde e outra de Moçambique – com a
apresentação de autores que pouco circulam no Brasil,
publicadas na revista digital África e Africanidades.
Esses jovens não se intimidaram em arriscar o con-
lito epistemológico que inevitavelmente teriam que en-
frentar, agindo à margem das instâncias acadêmicas e
das editoras consagradas, e estão entregando ao público
ledor este Afro-Rizomas, testemunho da multidimensio-
nalidade do diálogo Sul-Sul, afrontando de certo modo o
status quo, ousando reformular padrões de transforma-
ção social e “desconstruir ajustamentos discriminatórios
e preconceituosos”, como se expressou Florestan Fer-
nandes, sustentados por ideias euro/brancocentradas,
construindo práticas sociais alternativas, “pedagogias da
descolonização e da diversidade”, para usar uma coloca-
ção de Muniz Sodré, aspirando a uma redeinição das
estruturas sociais em que o espaço, voltado para o setor
negro, seja reconhecido e encontre vez e voz.
É uma iniciativa primeira, no campo editorial, a
apresentação ao público ledor de tão numerosa cole-
ção de ensaios sobre a literatura negro-brasileira da
autoria de estudiosos negro-brasileiros (são onze arti-
gos!), numa visão desde dentro, alguns dos quais tam-
bém aqui tratam de diferentes aspectos das literaturas
de países africanos. Da mesma forma, é algo inovador
que ensaístas africanos se ocupem com textos de au-
toria negro-brasileira.
É uma constatação generalizada que, mesmo com
a vigência das leis 10.639/2003, e 11.645/2008 o ensino
da literatura afro-brasileira é quase ignorado, sendo bem
menos conhecida que a também pouco divulgada litera-
tura africana. São muitas as omissões nessa magra ofer-
ta onde se deixam de lado nomes e questões relevantes
para a sua produção, onde as diiculdades por que passa
a iniciativa que contrabalance essa desigual relação tem
sua razão de ser, uma vez que esses escritores e intelec-
tuais negros não fazem parte dos meios hegemônicos,
colocados às margens do tecido social. A perpetuação de
19

uma estética branqueadora vem omitindo, silenciando,


tanto pela falta de sistematização de seu estudo, quanto
por entraves em sua divulgação e pelo limitado mercado
editorial, os vínculos com essa literatura especiicamente
negra e visceralmente brasileira.
A produção literária negro-brasileira incomoda e
desestabiliza o divulgado conceito de identidade bra-
sileira una e coesa, tornado indiscutível pela força da
repetição, através de lugares comuns que se desejam
verdadeiros, tais como “somos todos brasileiros” e “a
literatura é uma só”.
Como airmou Boaventura de Sousa Santos em
Pela mão de Alice, o genocídio que acompanhou reite-
radamente a expansão europeia foi responsável também
por um epistemicídio: “eliminaram-se povos estranhos
porque tinham formas de conhecimento estranho e
eliminaram-se formas de conhecimento porque eram
sustentadas por práticas sociais e povos estranhos.” Esse
epistemicídio ocorreu sempre que se pretendeu subal-
ternizar, subordinar, marginalizar ou ilegalizar experi-
ências e grupos sociais que podiam constituir ameaça à
expansão hegemônica e capitalista. Tal violência é con-
siderada, comenta o autor de Pela mão de Alice, um dos
grandes crimes contra a humanidade, causando indizí-
vel devastação na convivência comunitária, nos povos
e grupos alvejados. Apesar de não ser completamente
novo, pois sempre se registraram reações pautadas em
revalorizar ideias, atitudes e comportamentos não hege-
mônicos, numa opção pelos saberes sepultados e pelas
experiências e vivências oprimidas, marginalizadas, su-
bordinadas, as reações contra tais iniciativas raramente
são acompanhadas de aplauso ou reconhecimento pelas
esferas dirigentes ou pelas elites.
A possibilidade de uma comunicação horizontal en-
tre diferentes mentalidades e posturas, sem hieraquia de
valores, numa aceitação igualitária e democrática, tem
sido inadmissível no campo das decisões institucionais e
do discurso identitário brasileiro, embora a horizontali-
dade, segundo aquele pensador português, seja a condi-
ção indispensável da concorrência entre conhecimentos:
Ao se escolher para Afro-Rizomas o diálogo Sul-
Sul, através da troca e da parceria entre afro-brasilei-
ros e africanos da comunidade lusofalante, mas não
luso-descendentes, os organizadores foram levados
pela consciência de querer reverter séculos de silen-
ciamento, de invisibilidade; de um apagamento que
impossibilitou – e ainda diiculta – o diálogo entre
negros brasileiros e negros africanos.
20

Sei muito bem que não é nova a colaboração en-


tre estudiosos brasileiros e africanos. O intercâmbio é
dinâmico e cada vez mais abrangente – falo do campo
dos estudos literários que melhor conheço. A excelen-
te e vasta fortuna crítica que se pode arrolar no Brasil
atesta o interesse de ambos os lados e seus positivos
resultados. Em novembro deste ano de 2013, vai acon-
tecer o V Congresso Internacional de Professores de
Literaturas Africanas que é, ao mesmo tempo, o I En-
contro da Associação Internacional de Estudos Literá-
rios e Culturais Africanos – AFROLIC – que se fundou
justamente para encorajar e irmar tais intercâmbios.
Não receio, entretanto, em dar o nome de silencia-
mento e de entrave ao fato dos afro-brasileiros serem ig-
norados e praticamente jamais convocados para encon-
tros que se fazem cada vez com mais assiduidade entre
estudiosos brasileiros e escritores africanos. Até agora,
são raras – não desejo airmar que inexistam – as obras
em que a presença de articulistas africanos e afro-brasi-
leiros se entrelace, em que as duas partes dialoguem na
mesma publicação, sentem-se à mesma mesa de discus-
são e de debate. Existem, sim, antologias, e excelentes,
com poemas ou contos de ambos os lados do Oceano;
existem estudos, e excelentes, de literatura comparada
cotejando autores negro-brasileiros e moçambicanos,
angolanos, guineenses, cabo-verdianos, são-tomenses.
Mas, no campo do ensaismo africano- negro-brasileiro,
Afro-Rizomas é pioneiro. Está rompendo a asixia que
descartou a possibilidade do mútuo conhecimento, que
inviabilizou a parceria nas comunidades argumentativas.
Afro-Rizomas conta com a presença de autores
angolanos, cabo-verdianos, guineenses, são-tomense,
moçambicano e afro-brasileiros. Os articulistas não se
limitam a um só núcleo temático, mas reúnem rele-
xões e análises multidisciplinares e é gratiicante de
constatar o mútuo interesse entre os estudiosos de
ambas as margens do Atlântico, muitas vezes dentro
do âmbito da literatura comparada.
O livro está dividido em cinco eixos temáticos dos
quais o primeiro, de natureza mais teórica, trata de
críticas e tensões que envolvem o estudo das literatu-
ras africanas: As literaturas africanas na encruzilhada:
teoria, crítica e outras tensões.
Abre essa primeira parte a contribuição de Henri-
que Freitas, docente da Universidade Federal da Bahia,
Dez-a-ios epistemológicos para as literaturas africanas
no Brasil. Um texto ousado e altivo, um texto neces-
sário e convincente onde o autor alista uma dezena de
21

questionamentos e relexões desconstruindo certos


fundamentos em que se baseiam os estudos das litera-
turas africanas no Brasil (e não só), alertando para o
perigo do reducionismo e da aceitação acrítica das pre-
missas eurocêntricas das teorias literárias e comparati-
vistas centradas no estudo da literatura africana escrita
em português. O autor apresenta dez desaios, de na-
tureza teórica e metodológica, “que se colocam a par-
tir do segundo decênio do séc. XXI para as literaturas
africanas no Brasil, a im de que seus estudos escapem
à perigosa colonialidade do poder e do saber”, entre esses
tópicos desaiantes, contam-se a teoria e a crítica literá-
ria, o cânone africano no Brasil; a questão da oralidade
e da escrita na tessitura iccional; o corpo como texto; o
desaio das línguas nacionais; a defesa por um conceito
de afro-rizoma; as literaturas africanas como devir.
Jesiel Oliveira, também professor da UFBA, dis-
corre nas suas “Contribuições de um romance angola-
no para a educação etnicorracial e descolonizadora do
branco brasileiro” sobre as diiculdades que a camada
hegemônica tem de aceitar a ascenção dos segmentos
afro-brasileiros na sociedade, refutando a veemência
crítica de certos articulistas. Ao lado disso, trata da
posição contrária que preconiza o reconhecimento do
Outro como fonte para aprendizados que estimulem
a “invenção de outras possibilidades humanas”, assim
como a vitalidade criativa e emancipadora que pode re-
sultar da interação dialógica entre as diferenças, como
é o caso de, entre outros muitos, Muniz Sodré. Esse co-
nhecido professor e pensador preconiza com insistên-
cia “a superação das práticas de ensino-aprendizagem
que reproduzem imaginários legitimadores de relações
discriminatórias, paternalistas, exotizantes, ou de de-
fensiva tolerância perante a alteridade.” No presente
artigo, a relexão do autor sobre a contribuição da lite-
ratura angolana, para uma tomada de consciência dos
conlitos raciais no Brasil, é desenvolvida a partir do
romance Yaka, de Pepetela, onde “adquirem contornos
precisos as práticas e signiicações através das quais se
articulam autoritariamente, nas relações entre brancos
e negros, intimidade e tutelagem, sincretismo e alie-
nação, engendrando os equilíbrios assimétricos entre
identiicação e exploração que também caracterizam as
relações interraciais no Brasil”.
Amarino Queiroz, professor da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Norte (UFRN), nos transporta
Para além de Ibérias e Américas, com uma contribui-
ção importante e indispensável sobre a emergência das
22

literaturas africanas de língua espanhola, quando faz o


mapeamento dos espaços onde o espanhol é a língua
de expressão para escritores que se reconhecem como
representantes de minorias esquecidas e mesmo muitas
vezes perseguidas em vários enclaves norte-africanos
tais como no Saara Ocidental, em campos de refugia-
dos saarauis em Tinduf, Argélia, inclusive na República
da Guiné Equatorial, país onde o espanhol igura como
idioma oicial, sem esquecer o arquipélago das Caná-
rias nem o território constituído pelas cidades de Ceuta
e Melilla, enclavadas na costa mediterrânea de Marro-
cos. Amarino Queiroz se esmera em traçar um panora-
ma amplo e elucidativo, com abundância de citações da
produção poética de autores praticamente desconhe-
cidos entre nós, dando a conhecer diferentes aspectos
dessas literaturas esquecidas que são igualmente um
instrumento de resistência face à perseguição política
dessas populações minoritárias, oferecendo um aporte
pioneiro para os estudos comparativistas.
Lívia Natália, professora de Teoria da Literatura
da UFBA, é uma das jovens poetisas baianas da nova
geração que alora em Salvador, trazendo novas pers-
pectivas para a literatura negra feminina e ostentando
uma sólida bagagem teórica. Ela comparece em Afro-
Rizomas com duas contribuições ensaísticas, a primei-
ra das quais tem como título A lírica menor: por uma
teoria da literatura das literaturas africanas de língua
portuguesa, onde a autora historia brevemente a evo-
lução da literatura angolana, defendendo a ideia que a
literatura toma para si uma função que ultrapassa os
limites da estética para enredar-se na mensagem po-
lítica de liberdade: “sobre o texto literário deposita-se
a força de deslocamento do poder opressor e de abalo
dos lugares marcados”. Detém-se na obra poética de
Ana Paula Tavares, festejada poetisa angolana, que
tem sua escrita marcada pela relexão sobre o femini-
no a partir de um poderoso investimento na potência
deslocadora e inventiva da escrita da história pela po-
esia, como Lívia Natália se expressa. Com referência à
lírica menor, lembro a relexão de Deleuze e Guattari
onde airmam que os escritores, ao utilizarem trans-
gressoramente a língua oicial, subvertendo a sintaxe
e emprestando-lhe um visual próprio, estão tomando
uma postura política de rebelde independência, de cla-
ra contestação e de distanciamento anticolonialista, na-
cionalizando o instrumento herdado, praticando uma
literatura menor, isto é, criando uma literatura capaz de
subverter, na produção literária, a língua “maior” que
23

é a língua do dominador (e do segmento dominante),


veriicando-se uma orgulhosa postura que ressalta a di-
ferença e que procura seu próprio espaço.
O segundo módulo enfeixa ensaios que se ocupam
com Corpo, Escrita e Mercado – Dilemas da autoria
e da representação femininas, com quatro textos de
muita originalidade.
Lívia Natália comparece mais uma vez com Múlti-
plas paragens do corpo intelectual: poéticas da diferença
em Mel Adún, Ana Paula Tavares e Esmeralda Ribeiro,
e contribui com um paralelo entre três poetisas, uma
baiana, outra angolana e uma paulista, três espaços lite-
rários e estéticos muito diversos, embora com o deno-
minador comum da insubmissão às regras preestabele-
cidas pelas instâncias que gerenciam o aparato teórico
vigente, não preparado para aceitar vozes dissonantes.
A articulista aqui aborda com eiciência um as-
pecto teórico sumamente instigante: a problemática
da noção de representação, confrontada com “a circu-
lação dos discursos” que se regulam por “mecanismos
de exclusão, censura e interdição, a mecânica constru-
ída para silenciar a diferença” e “a alteridade incômo-
da”. Os exemplos apresentados reforçam a descons-
trução do instrumental analítico utilizado pela crítica
literária estabelecida, ao mesmo tempo em que ilus-
tram como as assim chamadas “poéticas da diferen-
ça” dizem respeito a textos literários que investem em
uma construção estética que destoa do estabelecido
no cânone e daquilo que é tacitamente reconhecido
como belo”. A tecitura poética de Mel Adún, Esmeral-
da Ribeiro e Ana Paula Tavares são exemplos admi-
ráveis “daquelas nas quais se apresentam as deman-
das das minorias, e se organizam em torno da lírica
contemporânea escrita por mulheres negras, na qual,
a escolha temática, as opções estéticas e até a seleção
vocabular apontam para o peril de mulher que inte-
ressa ver representada”.
A cabo-verdiana Eurídice Furtado Monteiro, em
seu artigo Ler as mulheres das ilhas: línguas, identidades
e poderes nas margens do mar da poesia – da aventu-
ra à tragédia, traz uma abordagem crítica e muito in-
formativa sobre a poesia feminina, examinando tanto
a poética como a trajetória das poetisas. Começa in-
formando que, “tal como acontece no Brasil, a elite
intelectual caboverdiana apregoa a ausência do racis-
mo no arquipélago”, e documenta com o exemplo de
diferentes poemas, essa airmação. Desde os primór-
dios da literatura ‘insular’ e especiicamente na poesia,
24

já se registrava uma produção elaborada por mulheres


ainda nos tempos coloniais, e essa presença foi e é ex-
tremamaente marcante e representativa. Ao longo de
sua análise, a autora julgou importante reconsiderar
tanto a pressão do sistema estético-literário, cultural
e ideologicamente excludente num meio pequeno,
como também a opressão estrutural e histórica numa
sociedade marcadamente desigual, “sendo que a lógi-
ca de exclusão se estriba numa matriz de dominação,
pela combinação das dimensões, entre outras, de gé-
nero, classe ou região”. Emprestando especial relevo às
poetisas, a articulista destaca-lhes a importância, pois
“elas equacionam e articulam, de modo crítico ou coni-
vente, a identidade nacional e a identidade de género,
guindando também, para o debate público, algumas
das questões menos abordadas, como sejam as relações
de género construídas com base em desigualdades, e
abrangendo problemáticas sempre actuais, tais como a
violência doméstica, a prostituição das mulheres, a ma-
ternidade na adolescência, o peso da herança cultural,
a família, a subversão cultural, a loucura, a sexualidade,
as migrações, a exclusão política ou a (in)submissão no
amor”. O artigo nos põe em contacto não apenas com
as mais conhecidas e celebradas vozes caboverdianas,
como Vera Duarte ou Dina Salústio, mas também com
muitas outras, destacando a obra e a postura emancipa-
tória de Eneida Nelly, já referenciada no artigo de De-
jair Dionisio como “fulgurante poetisa”, jovem talento
que aos 24 anos se suicidou, e que deu voz em seus
poemas escritos na língua caboverdiana, às mulheres
mais humildes e mais discriminadas, desfazendo “ a
ponte que ilusoriamente insistia em separar a sabedo-
ria popular do saber escolar, a tradição do cosmopoli-
tismo ou as duas línguas do património cultural cabo-
verdiano”, tendo também denunciado em seus versos
a desigualdade entre as mulheres de diferentes classes
sociais ou regiões do arquipélago. Através dessa poesia
emancipatória e rebelde, as duas imagens opostas das
mulheres caboverdianas é possível reconhecer por um
lado, as badias do interior da ilha de Santiago, numa
evocativa referência à tradição santiaguense, às revoltas
campesinas e ao passado de escravatura; por outro, as
mulatas do Mindelo, na ilha de São Vicente, ecoando a
“doçura de Mindelo” e a sedução da “miss perfumada”.
Miguel de Barros, sociólogo da Guiné-Bissau, é pes-
soa de múltiplos talentos e igualmente múltiplas ativida-
des. Aqui nos contempla com seu artigo Perceções sobre
a intimidade e o corpo feminino na literatura poética da
25

Guiné-Bissau, tema ainda pouco encontrado na literatu-


ra da Guiné-Bissau. Ao buscar algumas das multifaces
da mulher guineense, tal como ela é focalizada pelo eu
enunciador, não seria possível deixar de levar em con-
ta, mesmo que supericialmente, o ângulo do amor e da
sensualidade. Embora no discurso literário guineense o
desnudamento do sentimento amoroso não ultrapasse
muito a contenção romântica e “bem comportada”, é na
produção poética onde melhor alora a subjetividade,
e o texto é o território onde o perscrutar das emoções
mais íntimas se manifesta, quando a voz poética reivin-
dica para si mesma o espaço da palavra e da expressão de
seus sentimentos e quando a sensualidade e a volúpia se
fazem notar em muito belas metáforas. Ao lado da inten-
ção de transmitir, através do discurso textual, uma men-
sagem reivindicatória e crítica, estão insinuando-se cada
vez mais frequentemente, entre os poetas guineenses,
vozes que avançam para além da simples emotividade,
quando, até bem pouco tempo, mal ousavam exteriori-
zar conissões de suas pulsões eróticas.
Na Guiné-Bissau, e não apenas lá, “moral e bons
costumes” impostos pelo colonizador reprimiram
historicamente o sexo e sua linguagem, perdurando
nas cabeças internamente colonizadas e continuando
a ter a Europa como o modelo civilizatório a seguir.
“A sexualidade foi censurada pela sociedade estabeleci-
da, pela escola e pela religião”, como airmou o poeta
brasileiro Cuti, em seu ensaio sobre o erotismo na po-
esia negro-brasileira; e o tom repressor que norteia es-
sas instituições faz da linguagem relacionada ao sexo
algo pesado, assustador, camulado em expressões
cientíicas ou jocosas (CUTI, 2000).
Sendo claro que a literatura guineense sofre a inlu-
ência de condicionamentos gerais da literatura ocidental,
segundo Cuti (pseudônimo de Luiz Silva), ainda há pa-
lavras proibidas de adentrar a poesia que, para alguns,
constitui um verdadeiro santuário da linguagem, distan-
te da fala cotidiana. [...] Velado, um peso de moralismo
seleciona vocabulário e temas“ (ibidem). Daí a grande
importância da ousadia e da sinceridade de Huco Mon-
teiro, poeta que só escreve na língua guineense, violando
as regras da “lógica do império”, liberando-se das amar-
ras da censura e da autocensura e enfrentando as con-
venções sociais. O poeta, numa postura griótica, assume
uma atitude transgressora, tirando o véu da hipocrisia.
Ao se passar em revista a produção literária guineen-
se contemporânea, em especial a do século XXI, tem-se
a grata surpresa de se veriicar uma presença mais ex-
26

pressiva de publicações literárias de autoria feminina.


Além de comentar a poesia do eu enunciador masculi-
no, o articulista exempliica seus argumentos com versos
de Odete Semedo, Saliatu da Costa, Filomena Embaló.
Fernanda Felisberto, professora da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), uma das pro-
prietárias da Kitabu Livraria Negra/Editora, faz um es-
tudo comparativista entre poetisas anglófonas, francó-
fonas e lusófonas, um inventário preliminar das obras
literárias publicadas por escritoras negras africanas,
apresentando as obras afro-anglófonas, francófonas e
lusófonas presentes no mercado editorial brasileiro. A
articulista chega à conclusão de que o mercado editorial
brasileiro desconhece praticamente a que os editores
estão obrigados pela lei 10.639/03, uma vez que a publi-
cação de autores afro-brasileiros se faz muito escassa, o
mesmo acontecendo com escritoras dos diferentes pa-
íses do continente africano, pois os livros que aqui nos
chegam, embora numericamente de algum volume, se
restringem a um punhado de nomes, quase todos de
africanos do sexo masculino e luso-descendentes.
O terceiro módulo do livro em pauta tem como
subtítulo abrangente Afro-rizomas; as multiplicidades
desierarquizantes, com três contribuições, a primeira
das quais é do professor brasileiro Renato Noguera,
da UFRRJ, intitulada A coleção Nana & Nilo: uma
imagem do pensamento afroperspectivista para a lite-
ratura infantil. Trata-se do relato de uma experiência
excepcional, digna de seguidores.
Renato Noguera é professor da UFRRJ e autor de
literatura infantil, atuando como pesquisador de aná-
lise e produção de recursos didáticos e paradidáticos
para o ensino de ilosoia. Noguera é autor da Coleção
Nana & Nilo, algo inédito no Brasil. Filósofo que é, o
autor segue um veio ilosóico denominado afrocen-
trismo, um conceito não geográico, um construto do
conhecimento; basicamente, explica ele, ser um afri-
cano é ser uma pessoa que participou dos quinhentos
anos de resistência à dominação europeia. Deve-se
enfatizar que afrocentricidade não é uma versão ne-
gra do eurocentrismo, condenando inclusive a valori-
zação etnocêntrica às custas da degradação das pers-
pectivas de outros grupos.
A Coleção Nana & Nilo, criação de Renato Nogue-
ra, é “um projeto de escrita para (com) crianças visan-
do descortinar aventuras que possam revelar múlti-
plas perspectivas culturais, principalmente de matriz/
motriz africana”
27

O projeto Nana & Nilo não se restringe à literatura,


envolve uma gama ampla de plataformas, além da cole-
ção de livros, site interativo, DVDs musicais, e também
cursos de formação continuada para docentes da educa-
ção infantil e os primeiros anos do ensino fundamental.
O artigo é amplamente ilustrado e vai encantar crianças
e adultos pelas engraçadas e instrutivas estórias, pela ori-
ginalidade da concepção e beleza das ilustrações.
Ricardo Riso, pseudônimo de Ricardo Silva Ra-
mos de Souza, comparece neste volume como autor de
Afro-rasuras: que negro é esse nas literaturas africanas
de língua portuguesa? no qual traça um mapeamento
diacrônico dos principais movimentos no Ocidente
organizados por lideranças negras inconformadas
com o comportamento das sociedades dominantes
que, desde os tempos da escravatura têm procurado
invibilizar ou sufocar as identidades dos diferentes
grupos afro-descendentes, numa luta pela valorização
da identidade negra na diáspora.
Começando com o principal divulgador do pan-
africanismo, William Edward Burghardt Du Bois, se-
guido pelo jamaicano Marcus Garvey, com milhões
de seguidores pelo mundo, e fundador do jornal Ne-
gro World, ambos precursores da Harlem Renaissance
ou Black Renaissance, e da Negritude.
O Harlem é um bairro nova-iorquino onde a po-
pulação negra vivencia menor discriminação racial,
“favorável para valorização e celebração das manifes-
tações culturais e políticas negras” e cujo mais conhe-
cido representante é o poeta Langston Hughes.
A Negritude, movimento literário, cultural, de claras
conotações políticas, iniciado em França por Aimé Cé-
saire, defendendo a airmação identitária negra, alertan-
do para a situação desigual do negro na diáspora e para
a luta contra o colonialismo e desenvolvendo um ataque
ideológico contra o humanismo ocidental. Suas bases
ideológicas irão inluenciar o pensamento independen-
tista nos países africanos, sobretudo os que viviam na
diáspora, assim como em Portugal, onde a Casa dos Es-
tudantes do Império, em Lisboa, passa a ter fundamental
importância por acolher nas décadas 1940/50 universi-
tários como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo
Mondlane, Vasco Cabral, entre outros.
Ricardo Riso se refere à primeira coletânea de es-
critores africanos de língua portuguesa, a pequena an-
tologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953),
com seis poetas que internalizam as temáticas da
Negritude a saber: Alda do Espírito Santo, Agostinho
28

Neto, António Jacinto, Francisco José Tenreiro, Noé-


mia de Sousa e Viriato da Cruz .
O autor inaliza seu minucioso estudo com o sub-
capítulo “Afro-rasuras”, onde se refere a escritores
contemporâneos de diferentes países africanos cons-
tituintes da comunidade dos que têm o português
como língua oicial mas que muitas vezes priorizam as
línguas étnicas, abrindo “rasuras” na poética dessas li-
teraturas africanas em língua portuguesa, o que signi-
ica, segundo Stuart Hall, repensar e buscar “políticas
culturais da diferença, de lutas em torno da diferença,
da produção de novas identidades e do aparecimento
de novos sujeitos no cenário político e cultural”.
Lucilio Manjate, professor da Universidade Eduar-
do Mondlane, Moçambique, é autor de ‘A lei da soli-
dariedade’ ou o gesto para a profanação do saber: um
contributo para pensar a condição étnico-racial brasilei-
ra. Trata-se aqui de um artigo diretamente ligado ao
momento atual, pretendendo ser, como o autor mesmo
expressa, “um contributo” de um professor estrangei-
ro, moçambicano, falando a nossa língua e partilhando
com os brasileiros a situação de ex-colonizado, casual-
mente em visita e participante de eventos culturais no
ano 2011 no Brasil. Um arguto olhar de fora que ana-
lisa sem predisposição, a situação de “profanação” dos
saberes da alteridade negra brasileira, discriminada e
subalternizada pela dominância branca.
Esclarecendo que foi levado a certas relexões a
partir da “Nota de Repúdio” recém emitida por um
grupo de ativistas negro-brasileiros por ocasião de
um ato escancarado de preconceito e desrespeito à
intelectualidade negra do nosso país, o articulista de-
clara que pretende “discorrer sobre as possibilidades
de uma “lei da solidariedade” como antídoto para essa
miopia do Poder”. E para isso deverá apoiar-se, funda-
mentalmente, nos conceitos “epistemicídio”, proposto
por Boaventura de Sousa Santos, e “comparatismo de
solidariedade”, de Benjamim Abdala Jr.
Manjate comenta que os efeitos que a lei 10.639/2003
pretendia alcançar não foram colmatados. O espírito
dessa lei deveria ser o que determina que o Brasil ganhe
a consciência de uma omnisciência histórica e cultural
também negra, que diariamente se junta a todos os ou-
tros saberes, do branco, do índio e do mulato. E o pro-
fessor moçambicano conclui: “Percebe-se que estamos
perante um exemplo lagrante de um epistemicídio em
relação à História e à Cultura não apenas negras, não
apenas afro-brasileiras, mas brasileiras.”
29

Como exempliicação prática do exercício da “lei de


solidariedade” e seus efeitos, lança mão de três autores,
oriundos de três diferentes países, cujas produções tex-
tuais se coadunam em parte ao sentido dessa teoria: Lí-
via Natália, com seu livro Água Negra, o moçambicano
Nelson Saúte, no livro Maputo Blues, e do também mo-
çambicano Rui Knopli, no livro Mangas Verdes com
Sal, cujos títulos podem funcionar, desde já, como me-
tonímias de um etos particular, mas também universal.
O quarto módulo da presente publicação tem
como título Para além do conceito de lusofonia, e é
aberto pela pesquisadora são-tomense Inocência
Mata com um artigo sobre as Topologias de pertenças
na obra de Francisco José Tenreiro: entre a ideologia
negritudinista e a mátria insular.
Francisco José Tenreiro, o mais insigne intelectu-
al são-tomense da “Geração de Cabral”, tem sua per-
sonalidade, sua obra, seus saberes e viveres dissecados
com sentimento e eiciência pela sua conterrânea e sem
nehuma dúvida grande admiradora. A autora distingue
as especiicidades polifônicas e policromáticas do ilustre
são-tomense: o poeta insular, amante da terra e da gente
de seu chão, poeta metropolitano, homem do mundo,
transitando nas duas vias de seu hibridismo e sua ambi-
valência; o enunciador lírico ou irônico, o negritudinista
e o neo-realista, exímio tanto nos temas de predominân-
cia da airmação cultural de uma insularidade africana
quanto na reivindicação do solo pátrio; o homem das
letras, o político, o cientista, geógrafo, historiador e so-
ciólogo. Seu vasto e multifacetado labor reitera ter sido
Francisco José Tenreiro um intelectual cuja obra poética,
ensaística e cientíica é testemunho de uma época.
Quando faleceu, aos 42 anos, “já havia deixado
uma marca indelével nos movimentos culturais e in-
telectuais que, nos anos 40-50-60 fermentou na capi-
tal do Império entre os africanos das colónias portu-
guesas de África e portugueses que pugnavam contra
a ditadura do Estado Novo (ainda que nem sempre
contra o colonialismo)”, informa Inocência Mata.
A articulista airma ainda que, dentre os escritores
que o antecederam ou dele foram contemporâneos, é
Tenreiro que inaugura “a escrita de intenção literária de
temática e “condição” são-tomenses” que “vai revelan-
do que o espaço físico e a natureza, na sua exuberância
e na sua magniicência, [...] passam a constituir lugares
socioculturais e históricos denunciando, pela diferen-
ça, que o que se produzia era uma literatura de motiva-
ção são-tomense e não de gestação são-tomense.
30

Inocência Mata encerra seu artigo com um estudo


sobre dois poetas da atualidade, Fernando de Macedo
e Conceição Lima que, cada um a seu modo, pela ili-
grana da arte poética, tornam visíveis outros segmen-
tos da nação são-tomense.
Dejair Dionisio, da Universidade de Cabo Verde, ce-
lebra a igura do grande líder da libertação nacional em
Amílcar Cabral na poética crioula de Eneida Nelly, não
sem antes deter-se longamente na narrativa das pressões
que o povo sofreu sob o jugo colonial, a violência da in-
vasão, travestida na palavra imigração, com a submissão
e dominação dos grupos nativos, alijando-os da sua cul-
tura e da sua identidade. Nesse contexto de submissão,
perseguição, aliciamento e disfarçada revolta, avulta
a igura inconteste do grande líder Amílcar Cabral. O
articulista comenta que ainal não se presta a todos os
autores e autoras do país a pecha da discriminação inter-
na, da preferência pelos valores europeus em detrimento
dos africanos, e nem sempre vale a airmação que a poe-
sia cabo-verdiana deu “as costas a África”, exempliican-
do pela obra poética de Eneida Nelly que, mesmo não
sendo a única a escrever na língua caboverdiana, é um
dos seus expoentes, tomando tal atitude por questões de
convicção, de identidade e de posicionamento político,
recusando a língua do colonizador.
Essa recusa se relete também em muitos outros
escritores e o articulista lembra as palavras de Gilber-
to Freyre que, ao visitar o arquipélago, observou estar
Cabo Verde mais próximo do Brasil do que de Portugal.
Através da leitura da lírica da jovem poetisa Enei-
da Nelly, a referência ao herói “se transigura pela voz
poética de enaltecimento e signiicação de doação de
Amílcar Cabral para a libertação do seu povo e de-
núncia da violência do que foi guerra colonial”, tema
longamente abordado no início deste ensaio, de utili-
dade para o conhecimento da história de Cabo Verde
e suas repercussões no Continente.
Os guineenses Miguel de Barros e Patrícia Godinho
Gomes escreveram juntos o artigo Percepções e contesta-
ções: leituras a partir das narrativas sobre o narcotráico
na música rap da Guiné-Bissau, um fenômeno cultural
recente entre jovens da camada urbana sobretudo de
Bissau e que atesta uma improvisação poética de sur-
preendente vitalidade e criatividade. Partindo da cons-
tatação da conturbação moral e psicológica ocasionada
pela desarticulação política presente desde o conlito
armado de 1998/1999 provocando profundas brechas
nas estruturas sociais, administrativas, políticas, os
31

autores pretendem neste artigo analisar os efeitos da


propagação do narcotráico no país, com a consequen-
te expansão do crime organizado, face à ineicácia das
estratégias de combate por parte das instituições, ao
mesmo tempo em que apresentam o resultado de uma
pesquisa de campo que documenta “formas inovado-
ras de construção de resistências através da emergência
de um movimento contestatário na cidade de Bissau,
resultado da articulação entre os músicos rap e a utili-
zação das rádios, o que contribuiu para dar visibilidade
às denúncias da sociedade civil sobre o fenómeno de
narcotráico na Guiné-Bissau.”
Como em outros países onde esse gênero musical-
narrativo é exercitado, são muitos os temas abordados,
sempre numa linguagem pitoresca, muito rápida e enga-
jada; os autores detectaram os seguintes temas ou narra-
tivas: narrativa da denúncia, narrativa da rota do narco-
tráico, narrativa do protesto, narrativa do desassossego,
narrativa da ação. A língua guineense é a usada pelos
artistas, o que provoca um grande impacto e colabora
para a difusão das mensagens veiculadas, potenciando a
disposição à manifestação de protesto e insatisfação face
aos muitos problemas que abafam a população.
Abreu Paxe, escritor e crítico literário angolano,
atualmente doutorando na Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo – PUC-SP, traz uma contribuição
com o título Morro da Maianga: da poesia e da tradução
cultural, onde analisa o poema, “Noites de luar no Mor-
ro da Maianga”, de Mário António, autor também an-
golano, não sem antes proceder a uma exaustiva análise
das muitas possibilidades de tradução e de compreen-
são do topônimo Maianga, suas ligações de signiicado
com o kikongo, o kimbudu e as implicações culturais
da tradução desse vocábulo para o português.
O quinto e último módulo tem com título Reence-
nações literárias e espelhos africanos. Amarino Quei-
roz retoma aqui uma vertente das literaturas africanas
que lhe é muito cara, A literatura de São Tomé e Prín-
cipe no Brasil: Francisco José Tenreiro, presente.
Convencido que, para “esboçar uma história da
literatura nacional”, é inevitável a “compreensão da
própria trajetória histórica do país”, o articulista ela-
bora uma relativamente breve, mas necessária nar-
rativa do desenrolar da colonização do Arquipélago.
Dá ênfase à questão linguística e ao relacionamento
com o Brasil e lança mão de importantes referências
bibliográicas, introduzindo a contribuição inestimá-
vel de Francisco José Tenreiro não só como poeta mas
32

como autoridade abalizada nas questões históricas de


seu país que, no longo poema Romance de Seu Sil-
va Costa, “sintetiza, com reinada ironia, a realidade
sócio-cultural de São Tomé e Príncipe, valendo-se da
memória dos diferentes ciclos econômicos de explo-
ração agrária vivenciados pela ex-colônia, ao mesmo
tempo em que torna evidente, também para os brasi-
leiros, uma experiência por demais conhecida”.
Depois de lembrar que a intensiicação da produ-
ção de cana-de-açúcar no Brasil ocasionou a decadên-
cia dessa fonte econômica no Arquiélago, Amarino
Queiroz refere-se à posterior introdução do plantio de
cacau nas terras são-tomenses, sob condições de gran-
de e cruel exploração dos trabalhadores por parte dos
senhores coloniais, gerando reiterada tensão social. Tal
como o “episódio de Pindjiguiti”, um protesto de esti-
vadores na Guiné-Bissau, despoletou uma revolta que
se tornou o marco para a tomada de conscientização
do povo guineense e para o início da reação articulada
contra o regime colonial, o episódio conhecido como
massacre de Batepá representou o “ponto crucial” da
insatisfação na ilha de São Tomé quando na localida-
de de nome Batepá, a 4 de fevereiro de 1953, alegan-
do uma suposta rebelião tramada pelos naturais, um
pelotão militar usou da força das armas provocando a
reação imediata do grupo, potencializando a violência
e resultando na “morte de mais de mil pessoas em me-
nos de uma semana. Vários foram os registros literários
que se reportaram à memória deste fato, incluindo-se
aí desde a poesia de Alda Espírito Santo e Conceição
Lima até o romance do escritor Manuel Teles Neto, Re-
talhes do Massacre de Batepá. Concretizado em versão
cinematográica pelas mãos do diretor angolano Or-
lando Fortunanto, além de Angola e São Tomé e Prín-
cipe o ilme de longa-metragem envolve uma parceria
inanceira e artística com o Brasil”.
A insatisfação popular e a tensão política evolui-
ram durante a década dos 60, para recrudescer e radi-
calizar-se, ocasionando em 1972, “paralelamente aos
outros movimentos que se organizavam nas demais
colônias portuguesas, a criação do Movimento de Li-
bertação de São Tomé e Príncipe – MLSTP”, seguido
da contra-reação de Portugal, “reforçando também o
aparelhamento de sua polícia política, a PIDE”. Como
nos demais territórios sob o calcanhar português, de-
pois da Revolução dos Cravos, 1974, o ano seguinte
festejou as independências das ex-colônias, com a
proclamação oicial das independências nacionais de
33

Moçambique (25 de junho), Cabo Verde (7 de julho),


São Tomé e Príncipe (12 de julho) e Angola (11 de no-
vembro). A Guiné-Bissau, pátria de Amílcar Cabral,
tinha a todas antecedido, com a declaração unilateral
de independência, em 24 de setembro de 1973.
Embora os primeiros registros literários são-to-
menses remetam aos poemas em forro de Francisco
Stockler, Caetano da Costa Alegre (1864-1890) é ge-
ralmente considerado o primeiro poeta nacional de
língua portuguesa, “calcadas na poesia de tradição
oral, valendo-se ora de forma lírica, ora satiricamente,
de questões relativas à diferença racial, (...) aos costu-
mes cristalizados numa sociedade colonial assentada
sobre a hipocrisia e a segregação, ou, ainda, às relações
hierárquicas de poder na experiência entre o metro-
politano e o colonizado, o mandatário e o subalterno.”
Amarino Queiroz lembra que as festividades pelas
comemorações relativas aos 90 anos de Francisco José
Tenreiro coincidiram com as celebrações dos 35 anos
de independência do país, em 2010, acentuando que
no Brasil ainda não são frequentes os estudos sobre
a literatura do Arquipélago. O articulista passa então
a uma oportuna revisão da fortuna crítica em torno
dessa literatura, com ênfase na produção brasileira,
arrolando inclusive teses de doutorado e dissertações
de mestrado. A tônica da análise crítica dessa produ-
ção recai naturalmente sobre aquele que é considera-
do o mais importante escritor são-tomense, Francisco
José Tenreiro. Amarino Queiroz, observa, porém, que
“os estudos tenreirianos no Brasil parecem privilegiar
a trajetória humanística do autor, concentrando-se
na apreciação crítica de sua obra poética, mas des-
cuidando, talvez, a dimensão que lhe conferiram as
outras áreas do conhecimento pelas quais transitou.”
Concluindo, o articulista expressa seu desejo e sua
esperança de que, essa literatura que contou com no-
mes tão relevantes e onde, passados os tempos mais
graves de conturbações sociopolíticas, avultam nomes
como Albertino Bragança, Sacramento Neto, Frede-
rico Augusto dos Anjos, Aíto Bonim, Fernando de
Macedo, Maria Olinda Beja ou Conceição Lima, entre
tantos outros, venha a ser mais conhecida e prestigia-
da nos estudos africanistas brasileiros.
Maria Nazareth Soares Fonseca, professora aposen-
tada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge-
rais (PUC Minas), faz um mergulho no passado para
nos trazer o olhar do fora, o olhar do forasteiro que
chega talvez desavisado, talvez cheio de expectativa, a
34

esse recanto do continente africano e encontra Luanda,


primeiro um povoado sem importância, aos poucos
tomando contornos de cidade e de empório. Por muito
tempo, o exotismo e o mistério das terras distantes des-
pertaram a fantasia, a imaginação, a cobiça do mundo
civilizado através de narrativas de viajantes, mercado-
res ou marinheiros. Desde o século XVI, fundada por
navegadores portugueses em 1576, com o nome de vila
de São Paulo de Luanda, chamada de “a cidade dos sol-
dados”, “cidade feitoria”, cidade acampamento”, sobre-
nomes que mostram a impressão que se tinha à primei-
ra vista e as funções que a ela na época se atribuía. E
vão-se acumulando relatos sobre aspectos geográicos,
sobre a terra e a gente dos lugares distantes, desvelando
costumes, exaltando a natureza, criticando o que não se
enquadrava no horizonte do narrador.
Já no século XVI havia a divisão entre a cidade alta e a
cidade baixa, tal como em Salvador. Na segunda década
do século XIX, o viajante Douville admira-se por estar
a cidade encravada em rochedos, estendendo-se como
em aniteatro, as ruas bem alinhadas e largas, impondo
a admiração. A cidade ostentava a riqueza advinda do
lorescente tráfego negreiro. O viajante chama ainda a
atenção para as “quitandeiras”, vendedoras enfeitadas de
anéis, correntes, braceletes de ouro. Ele informa também
sobre o comércio dessas mulheres, negras mais velhas e
muito ricas, vestidas com “muito gosto” e cobertas por
correntes e anéis de ouro. A Luanda observada por Silva
Corrêa se expressava em umbundo e seus espaços eram
ocupados pela multidão de escravos que transitava pe-
las ruas da cidade, em oposição às senhoras (brancas ou
não) que viviam encerradas em casa.
No inal do século XIX, esclarece a professora Na-
zareth, “a cidade de Luanda era ainda “uma pequena
urbe habitada por comerciantes e funcionários” e o
comércio, os negócios, as exportações não ofereciam
abrigo aos que “impelidos pelos mais nobres ideais”,
buscavam “um estádio mais elevado da sua evolução”.
Os textos selecionados por Gerald Moser e publi-
cados na coletânea Almanach de lembranças - 1854 -
1931, em 1993, são da maior importância e a consulta
a essa obra é fundamental para se possa conhecer al-
gumas produções literárias de escritores que viveram
em Luanda ou que trouxeram para os seus textos da-
dos de uma época em que a cidade de Luanda era o
principal centro de comércio em Angola.
Além das obrigatórias descrições da paisagem,
muito autores referem-se a usos e costumes locais, e
35

são numerosas as passagens literárias com referência


a mulher negra, a maioria das vezes de forma positiva,
“linda, mimosa e bela”. O fato da escassez de mulheres
europeias facilitou o contacto com as naturais do lu-
gar, sendo frequentes as famílias mestiças.
Segundo Nazareth Fonseca, “de certa forma, a po-
lítica implantada por Norton de Matos, em Angola,
atendia à arquitetura do mundo colonial que intenta-
va construir “um mundo cortado em dois”, com clara
distinção entre a zona habitada pelos colonizadores e
a habitada pelos colonizados, regidas “por uma lógica
puramente aristotélica, como bem acentua o martini-
quense Frantz Fanon. O êxito da compartimentação
permitirá que se acentue, “uma altercação biológica
na sociedade mas também econômica” com “a che-
gada e ixação de um grande número de europeus” , a
partir dos anos 1930, o que fará com que o elemento
negro vá sendo marginalizado, observação feita pelo
professor Fernando Augusto Albuquerque Mourão,
em A sociedade angolana através da literatura.
Sempre lançando mão de textos literários, a arti-
culista vai acompanhando a evolução e a decadência
da capital. Refere-se por exemplo ao conto de Luandi-
no Vieira, “As fronteiras de asfalto”, do livro A cidade
e a infância, que teve sua primeira edição em 1960.
“O conto encena as divisões existentes na cidade em
que a cor da pele passa a ser o código seguido para a
distribuição dos espaços na cidade de Luanda. O as-
falto e a rua de terra, metaforicamente, assumem os
signiicados dos conlitos vividos no espaço urbano”,
inclusive a velada denúncia ao colonialismo, apresen-
tando a cidade dividida em duas.
E a articulista conclui seu mapeamento airmando
que, “a partir do momento em que se fortalecem as
ações contra a presença do colonizador em Angola e
em África, é possível identiicar, no espaço da literatu-
ra, uma tendência de recuperação dos traços africanos
de Luanda. A literatura assume a memória dos bairros
populares, mercados, largos e monumentos, evoca as
representações presentes no imaginário luandense e
busca reconstruir feições da cidade descrita por viajan-
tes e historiadores e cantadas por poetas e iccionistas”.
A professora brasileira Anória Oliveira, da Univer-
sidade do Estado da Bahia (UNEB), traz um aspecto
pouco estudado na fortuna crítica das literaturas africa-
nas: a publicação de livros destinados ao público infantil
e juvenil. Seu artigo sobre o tardio começo da literatura
para crianças e jovens em Moçambique, Renascimen-
36

to literário e a produção infanto-juvenil moçambicana:


palavras que pulsam, apresenta os resultados de uma
exaustiva caminhada pela produção cultural em Mo-
çambique, as diiculdades que as guerras independen-
tistas e os conlitos subsequentes representaram, oca-
sionando uma sensível lacuna nessa produção. Tendo
reunido um corpus de cerca de sessenta obras, informa
que as primeiras publicações datam do inal dos anos
setenta, mostrando também os esforços dispendidos, a
partir da década de 1990, para preencher esse quase va-
zio, referindo-se então a um verdadeiro “renascimento
literário” para aquele setor. Procura fazer um mapea-
mento da oferta, procedendo a uma análise de alguns
dos títulos, da produção literária não só pela temática
como, também, pelos papéis atribuídos aos persona-
gens, detectando nos textos as funções, ações e espaços
sociais em que foram situados.
Observa também que a produção literária desti-
nada às crianças e jovens no Brasil e em Moçambi-
que segue percursos distintos, dentro das respectivas
conjunturas sócio-históricas. “Se, aqui, nos anos 70 e,
principalmente nos anos 80, houve a eclosão da refe-
rida produção no mercado livresco, em Moçambique
essa evolução” foi bem mais modesta. A autora infor-
ma, como uma amostra de colaboração entre os dois
países, que o escritor Ziraldo foi chamado a Maputo,
para “treinar moçambicanos na arte de escrever e de-
senhar para crianças”. Essa produção para o público
não adulto, embora sendo tão recente, é abundante e
conta com uma entusiástica aceitação, registrando-se
anualmente um grande número de novas publicações.
José Luis Hopfer Almada encerra Afro-Rizomas
com um pertinente, revelador e extenso artigo Or-
fandade identitária e alegada (im) pertinência de uma
poesia de negritude crioula: discursos da crioulitude e
síndromas de orfandade identitária. Poeta e ensaísta,
Almada destaca-se pelo olhar apurado e rigoroso,
repleto de minúcias e informações, acerca da já mais
que secular literatura cabo-verdiana de língua portu-
guesa. O competente trabalho desenvolvido posicio-
na-o como nome obrigatório para os pesquisadores
da literatura do Arquipélago. No seu longo artigo, Al-
mada conduz o público ledor a instigantes relexões
acerca da “desvalorização simbólica e repressão histó-
rica das manifestações culturais de matriz afro-negra
e da componente negra da crioulidade cabo-verdiana,
escassos são os traços de africanidade e de negritu-
de na poesia cabo-verdiana da época anterior à Nova
37

Largada”. Para o pesquisador brasileiro, é um tema


praticamente ignorado, uma vez que o predomínio/
fascínio das análises da poesia cabo-verdiana estão
concentrados na inluência do modernismo brasilei-
ro, mais precisamente o pasargadismo de inspiração
em Manuel Bandeira, na poesia, e nos romances re-
gionalistas na prosa; sobre a geração da revista Cla-
ridade, a partir dos anos 1930, um macrotema que
perpassa a literatura do país, porém que não pode ser
alçado como se fosse monotemático, reduzindo e des-
respeitando a pluralidade temática e estético-formal
da literatura de Cabo Verde.
O artigo de Almada possui o mérito de reavaliar-
mos a produção poética do país, assim como as dispu-
tas identitárias para airmação da nação crioula, o que
exige esforço do pesquisador para descobrir outros
referenciais que não estão distantes, devido às suas im-
portantes obras e personalidades literárias em diferentes
momentos das letras. Cabe a pergunta: o que conduz a
ostracizar partes das obras de determinados autores, já
que foram elementos essenciais nas suas atuações como
cidadãos e seres políticos do tempo em que viveram? Por
isso, a pertinência deste artigo ao apresentar o celebra-
do nativista Pedro Cardoso e a sua postura atenta aos
movimentos pan-africanistas que vinham da diáspora.
Almada recorda ainda, como uma conirmação, que Tei-
xeira de Sousa, quando entrevistado por Michel Laban,
mencionou Cardoso como o “Langston Hughes” cabo-
verdiano. A transcrição do poema “Ode à África”, ainda
que seja uma visão idealizada e estigmatizada por certo
assimilacionismo, torna um bom exemplo da ação desse
intelectual, cronista em vários jornais em que utilizava o
heterônimo Afro, com destaque em especial sua coluna
“A Manduco”, no conhecido jornal da época de mesmo
nome (O Manduco).
Outros momentos essenciais para a presença da
negritude crioula na poesia cabo-verdiana encon-
tram-se no pós-Segunda Guerra, com a criação dos
partidos nacionalistas e da proeminente igura de
Amílcar Cabral. Com esse grande líder, condutor da
união para libertação de Guiné e Cabo-Verde, o per-
tencimento africano dos cabo-verdianos passa a ser
exaltado, tendo como destaque nomes como Onési-
mo Silveira, sendo também de leitura fundamental o
seu “Consciencialização da literatura caboverdeana”;
mas, é com Mário Fonseca que se encontra uma po-
esia de forte cariz pan-africano, já na efervescência
dos anos 1960 e das guerras nas então colônias por-
38

tuguesas. Como exemplo, o articulista cita o poema


“Eis-me aqui África”, do “continente meu/ tão perto
do arquipélago/ (...) ínsula prisão”.
Almada também destaca a produção em língua
cabo-verdiana, tendo em Kaoberdiano Dambará o seu
momento de enorme visibilidade durante a década de
1960, com o livro “Noti” (edição do PAIGC, 1966) que,
“segundo T. T. Tiofe, representa ‘a primeira tentativa em
livro de falar de Cabo Verde numa perspectiva africa-
na”. Esse ensaísta e poeta, um dos heterônimos de João
Manuel Varela, é responsável por “O Primeiro Livro de
Notcha” que “constitui o primeiro livro de emersão poé-
tica total na História de Cabo Verde e de dissecação das
raízes escravocratas da sociedade cabo-verdiana”.
O longo estudo de José Luis Hopfer Almada apre-
senta um importante inventário de autores de língua
portuguesa e língua cabo-verdiana que dialogam com
perspectivas da negritude em suas obras, inclusive o
próprio ensaísta enquanto poeta, o que torna seu artigo
de extrema relevância para ampliar os olhares sobre a
poesia cabo-verdiana e seus aspectos identitários como
nação crioula e o seu componente afro-crioulo.
Chegando ao im dessa rápida caminhada por en-
tre os diferentes capítulos de Afro-rizomas, só me resta
desejar ao público ledor uma boa e proveitosa leitura.

Moema Parente Augel


AS LITERATURAS AFRICANAS
NA ENCRUZILHADA:
TEORIA, CRÍTICA E OUTRAS
TENSÕES
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 41

DEZ-A-FIOS EPISTEMOLÓGICOS PARA AS


LITERATURAS AFRICANAS NO BRASIL
Henrique Freitas

Iká kó dógba – Os dedos não são iguais1


(Mãe Stella de Oxóssi)

Em matéria de religião,
estou como Nietzsche,
(embora não precise dele para nada)
só acredito
num deus
que dance.
(Jorge Siqueira)

O mundo se despedaça outra vez e, como já adver- 1


Esse micro-texto ioru-
tira Chinua Achebe, o inimigo não é mais simples- bano foi compilado na
mente o Outro colonial personiicado: sua geograia, obra Ówe publicado pe-
sua gramática, seu logos, mais que uma prótese iden- la yalorixá da comunida-
de-terreiro Ilê Axé Opô
tiicável, tornou-se duplamente uma eiciente bússola Afonjá e hoje membro
de nós (como nó de uma rede e também como pro- da Academia de Letras
nome pessoal); suas perversões normalizadoras, ago- da Bahia, Mãe Stella
de Oxóssi. Neste livro,
ra entranhadas como o estranho freudiano, íntimo e o provérbio é acom-
familiar, a qualquer gesto de afro-rasura nos ameaça panhado da seguinte
com suas incertezas e falsas profundidades, cerceando interpretação proposta
por ela: “Respeitar a
os riscos necessários que precisamos sempre correr, própria individualidade
para que as Literaturas Africanas no Brasil se tornem, é o primeiro passo para
intempestivamente, aquilo que são: devir. o aprendizado e respei-
to da individualidade
Nesse sentido, traremos, a seguir, sob a forma de alheia” (OXÓSSI, 2007).
tópicos, como ios aparentemente soltos que vão se en- 2
Aníbal Quijano e Walter
trelaçando, dez desaios (teóricos, metodológicos e críti- Mignolo, pensando em
especial a condição da
cos) que se colocam a partir do segundo decênio do séc. América Latina em seus
XXI para as Literaturas Africanas no Brasil, a im de que textos, articulam o con-
o campo escape à perigosa colonialidade do poder e do ceito de colonialidade do
poder e colonialidade do
saber2 sempre à espreita para docilizar no mesmo a di- saber, a im de corrigir o
ferença proliferante e interminável dos textos africanos. conceito de poder disci-
plinar foucaultiano. Para
isso, evidenciam que
os dispositivos panópti-
1. Imagens e miragens da lusofonia africana cos do Estado Moderno
ramiicam-se em uma
estrutura mundializada,
Se o importante estudo formal das literaturas africa- derivada da relação co-
nas passa a ocorrer nos centros universitários brasileiros lonial, colocando como
de maneira mais sistemática no último quartel do século centro do poder-saber a
Europa e estabelecendo
XX, a partir de derivações importantes que ocorrerão no uma relação de centros/
campo dos estudos portugueses no Brasil (sob a rubrica periferias. A moderni-
de produções ultramarinas, coloniais ou de textos de ex- dade torna-se, assim,
42 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

um projeto de dupla pressão lusitana), o desaio do século XXI é escapar a essa


governamentalidade ju-
rídica: primeiro, através importante estratégia que foi potência no momento de
da tentativa interna dos emergência dos estudos das africanas no País, mas hoje,
Estados-nação de con- sob este e novos signos como o da lusofonia, converge
trole das identidades por
meio da promoção de
para perigosos monologismos teleológicos que reence-
políticas de subjetiva- nam Portugal como origem, centro e parâmetro desde
ção; segundo, por meio a etimologia. A própria noção de literatura restringe-se,
da governamentalidade
exercida de forma exó-
nesta lógica, a uma experiência artística especíica de
gena pelas potências letramento formal em língua europeia, promovida pela
hegemônicas “do siste- empresa colonial e mítica portuguesa.
ma-mundo moderno/co-
lonial, em sua tentativa
Além de um gradativo processo de instituciona-
de assegurar o luxo de lização e autonomização do campo, traduzido em
matérias-primas da pe- Setores e Departamentos especíicos de Africanas
riferia para o centro”. Os
dois processos integram
nas Instituições de Educação Superior, como loci
uma espécie de dinâmi- voltados exclusivamente a elaboração de saberes que
ca estrutural. (LANDER, deem conta dos desaios aqui expostos, necessário se
2005)
faz tensionar os perigosos centramentos (logocentris-
mo, etnocentrismo, falocentrismo, eurocentrismo,
grafocentrismo, dentre outros) que comprometem o
desenvolvimento de uma epistemologia liminar. Nes-
te contexto, é preciso forjar os saberes nas margens e
para as margens, a im de dar vazão nas africanas às
dobras que, em termos discursivos, não são abarcadas
como a possibilidade de pensar estas literaturas em
outras redes que não a da escrita lusófona.
Eduardo Lourenço, mesmo na condição de uma
espécie de teórico da lusofonia com diversas obras so-
bre o tema, aponta o caráter messiânico do destino
que Portugal traçou para si e como esse imaginário
ainda funciona como máquina problemática do mun-
do lusitano, produzindo as imagens e miragens inscri-
tas num Tempo português singular:

Vamos para o século XXI em carruagem-cama,


indiferentes às tragédias do mundo e às nossas
próprias. Os problemas caem-nos em casa já resol-
vidos. É o mundo que tem problemas não nós. Os
portugueses que não pensam assim não são bons
portugueses. Nunca o foram. Só a proteção e a
glosa da nossa identidade mística lhes interessam.
Como heróis de cavalaria em segundo grau, sujeitos
de uma história virtual, entraremos no século XXI.
E com ele, queiramo-lo ou não, na história real, a
nossa, de pequeno povo e sonhos compensatórios,
para que não nos demos conta disso. Será o im do
nosso tempo português e o começo do tempo de Por-
tugal, um país como os outros a contas nunca certas
com o tempo. Quer dizer, com a rugosa essência da
realidade. (LOURENÇO, 2001, p.108-109)
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 43

A lusofonia não se constitui nem para os portugue-


ses interessados em um processo efetivo de autognose
como um operador funcional, portanto utilizá-la para
pensar as literaturas africanas sem rasurá-la, sem pô-
la em suspenso, é extremamente perigoso. Mesmo com
esse gesto de deslocamento em torno da lusofonia, as
implicações fugidias que ela impõe produzem, por um
lado, uma extemporaneidade para a cultura portuguesa
de recalque de seus traumas históricos e de sua condi-
ção periférica (não semi-periférica!) na Europa, e, por
outro, a nostalgia da rearquitetura imperial de si em
outras bases, oferecendo-se como eixo de poder-saber
do Outro como risco constante à alteridade que nós,
falantes da língua portuguesa fora de Portugal, somos.
Alfredo Margarido, em a Lusofonia e os lusófonos:
novos mitos portugueses (2000), aponta a lusofonia como
pensamento-eixo da CPLP (Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa) que visa a legitimar explicitamente
a hegemonia do pensamento social português através
de um projeto missionário neocolonial, agora calcado
na língua. Ele critica a visão etnocêntrica da existência
da alteridade no discurso lusófono apenas a partir do
“encontro histórico” com Portugal que passaria assim a
conferir uma dada historicidade ao outro, suprimindo
na retórica um elemento-chave desse processo: a inva-
são e as violências dela derivadas. A lusofonia, sob sua
ótica, funciona como ferramenta biopolítica de um ra-
cismo de Estado que apagou o passado opressor para
recuperar a hegemonia, mantendo as perigosas distân-
cias etnicorraciais, recaindo, em especial, sobre os imi-
grantes uma perversa reordenação simbólica de ordem
imperial: “doce paraíso de dominação linguística que
constitui agora uma arma onde se podem medir as pul-
sões neocolonialistas que caracterizam aqueles que não
conseguiram ainda renunciar à certeza de que africanos
só podem ser inferiores” (MARGARIDO, p. 71). Basta
acrescentar o termo “brasileiros” ao lado de africanos
na observação de Margarido e teremos um quadro mais
exato dos problemas sobre que ele discorre.
Nem angústia da inluência, nem parricídio inó-
cuo em relação a Portugal: é preciso desaiar-nos no
estudo das literaturas africanas a não cedermos às
pulsões de torná-las repositório clínico da psicanálise
mítica do destino português, nem na lusofonia, nem
em nenhum outro (pré)conceito, reconhecendo os di-
álogos possíveis que como potência elas nos trazem,
em especial nos luxos que constituíram a diáspora
africana no mundo, ainda pouco explorados.
44 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

2. A teoria e a crítica literárias das africanas


A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza
(Sérgio Vaz)

Assim como a História oral negro-africana foi res-


ponsável, nas iguras de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-
Zerbo e outros intelectuais, por forjar uma inteligibili-
dade para que a oralidade fosse privilegiada no campo
da História a im de conectar a África com o seu tem-
po e narrá-la como epígono da história do Homem, a
contrapelo, portanto, da ideia de apêndice da Europa
constante na pretensa História Universal, a teoria e a
crítica literárias contemporâneas voltadas às literaturas
africanas têm o desaio de dar conta, mutatis mutandis,
do mesmo processo. A indissociabilidade da ética, da
estética e do discurso de muitos textos africanos, pela
sua expressão em diferença, põe em xeque uma dada
abordagem do texto literário calcada em aparatos con-
ceituais tradicionais, reduzindo-os ou condicionando-
os a enquadramentos que provocam distorções para a
apreensão da icção, do drama ou da lírica africanas.
Categorias herdeiras de uma experiência formalis-
ta e/ou estruturalista calcadas em sistemas (a própria
noção de sistema literário), bem como as dicotomias
fundadas na dobra discursiva dentro e fora: autor, lei-
tor, narrador, personagem, dentre outros; ou de uma
tradição marxista superestrutural e infraestrutural que
a tudo explica, no seu ímpeto (supra)histórico, alicer-
çada ainda em dialéticas conformadoras de uma tensão
produtiva, culminam em simulacros perigosos para o
entendimento de um texto forjado em culturas nas
quais, muitas vezes, a ecologia humana não pode dis-
tinguir, pela cosmogonia que a deine, as dimensões:
social, pedagógica formal, política, cultural, religiosa.
Ainda que repouse como fetiche na abordagem
tradicional das literaturas africanas a ênfase em sua
importância social, como retórica reincidente que
concorre para o esvaziamento de um labor formal em
outras vias, é importante produzir uma inteligibili-
dade sobre a estética que atravessa o fazer literário e
está vinculada a todas as dimensões já citadas. Igno-
rar estas particularidades não é ceder apenas à força
da colonialidade do poder e do saber, mas provocar
um epistemicídio ao reduzir tudo aquilo que escapa
à semelhança à exatamente sua força de mímica. Um
exemplo breve para exempliicar as discussões reali-
zadas é a classiicação corrente dos romances A le-
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 45

cha de Deus (2011) e O mundo se despedaça (2009) de


Chinua Achebe como icções de fundação nigerianas
(fundam o quê? Que Nigéria, se eles operam na re-
cusa em funcionar como marco monumental celebra-
tório de uma geopolítca danosa à dinâmica cultural
existente?), sem a desconiança crítica de que isso fere
o exercício literário do autor que conecta seu texto à
vasta rede ancestral das tradições que os ratiica an-
tes da pretensa tutela de qualquer olhar externo como
civilização complexa, dotada de práticas culturais e
literárias seculares da etnia ibo, portanto para além de
disposições geopolíticas coloniais e pós-coloniais gra-
focêntricas avassaladoras que operariam com o aval
missionário na chave do apagamento dessa outridade.

3. O cânone africano no Brasil


Se Palmares não vive mais,
faremos Palmares de novo.
(José Carlos Limeira)

No Brasil, com o aval ou a conivência (silenciosa)


institucional, um cânone etnocêntrico, grafocêntrico,
falocêntrico e luso-africano instituiu-se, perigosamen-
te, no campo das literaturas africanas, em contraponto:
à complexidade das malhas literárias africanas; às leis
10.639/2003 e 11.645/2008, apesar de parecer parado-
xal, já que nem como corpo, nem como discurso nas
entrevistas, há um empoderamento da cultura negro-
africana e afro-brasileira, das conquistas que represen-
tam as Ações Airmativas, da mencionada força de lei
que faz com que os textos desses mesmos escritores
africanos circulem amplamente no mercado editorial
brasileiro; por im, como contraponto à diferença que
ainda interroga essa pequena lista recorrente e exclusi-
va de escritores homens, já avalizados pela crítica euro-
peia, não negros (nem como corpo, nem como discur-
so), de apenas dois países africanos, quando a África
entra na cena literária no Brasil e a Academia tem uma
grande responsabilidade nesse processo.
As listas de obras para os vestibulares; as princi-
pais Feiras e Festas literárias brasileiras; os programas
nacionais de livro didático; a menção à África literária
nos livros paradidáticos; os autores privilegiados nos
programas de disciplina da graduação e pós-gradua-
ção, irrefutavelmente, produziram um rígido cânone
das literaturas africanas no Brasil que tem invisibiliza-
46 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

do uma produção artística continental nos nossos im-


portantes exercícios do ver para além dessa verdade.

4. Continuum oralidade e escrita na tessitura


iccional
A escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é a
fotograia do saber, mas ela não é o saber em si. O
saber é uma luz que está no homem. É a herança de
tudo o que nossos ancestrais puderam conhecer e que
nos transmitiram em germe, exatamente como o ba-
obá, que já está contido em potência em sua semente.
(Tierno Bokar)

Apesar de se falar muito sobre a relação oralidade e


escrita africanas nos textos críticos, há dois fatores que
precisam ser destacados: o primeiro é o risco da dico-
tomização dogmática que fere a lógica linguística do
continuum e interpenetração entre oralidade e escrita
(MARCUSCHI, 2005), em vez de funcionarem sim-
plesmente como opostos; segundo, os gêneros literá-
rios orais, mesmo quando apontados nas análises, não
entram para serem efetivamente estudados no campo.
Isso oblitera a percepção das literaturas africanas que se
perfazem e ganham amplitude na contemporaneidade
esgarçando a noção de literário, dentre outras expres-
sões, como no rap africano - literatura negro-africana
multimodal3 oriunda das ruas já conectada desde a for-
ma com a sua dimensão diaspórica, mas que sequer é
vista com suspeição pela crítica, acerca do seu estatuto
literário. Isto vale também para os provérbios e outras
formas orais. Ou seja, pelo exposto, vê-se que a oralida-
de validada na práxis dos estudos críticos das literatu-
ras africanas é apenas a mimetizada nos textos escritos.
Sobre os provérbios, Mãe Stella de Oxóssi, Iyalo-
rixá que dirige a comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô
Afonjá, em artigo publicado no Jornal A Tarde em 9 de
julho de 2011, na contramão dos estudos tradicionais
da língua portuguesa e também dos estudos literários
(o escritor Abreu Paxe é outro crítico que investe na
exegese dos provérbios, a im de, neste caso especíico,
reivindicar peremptoriamente seu estatuto ancestral li-
terário), enfatiza a importância deles para as sociedades
africanas e também para a educação formal brasileira,
uma vez que são instrumentos condensadores de uma
sabedoria secular que pode ser explorada, inclusive nas
salas de aula. Ainda sobre a questão linguística, Amadou
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 47

Hampâté Bâ também adverte para potência da oralida-


de em suas mais diversas manifestações, para além até
de um código linguístico, ao se contemplar outros sons/
ruídos que constituem a performance comunicacional,
principalmente quando esta envolve a produção de uma
arte não alicerçada exclusivamente na escrita.

5. O corpo como texto


Jogando uma pedra ontem, ele matou o pássaro hoje.
(Oriki de Exu)

...ilosofar sobre o corpo não é o bastante, sejam


os corpos dos partícipes das religiões de matriz
africana, ou mesmo sobre o corpo dos orixás... É
preciso ilosofar desde o corpo e reconhecer que o
corpo é ilosoia encarnada e cultura, e literatura 3
Para Kress e Van Leuwe-
em movimento (OLIVEIRA, 2007, p.57). en (2001), as linguagens
só se realizam através
Sem corpo, as literaturas africanas são amputadas, da constituição de tex-
já que, nas cosmovisões africanas, ele congrega múl- tos multimodais. Dessa
forma, as diferentes mo-
tiplos signiicados, sendo a base da interação entre os dalidades semióticas de
seres. O corpo se apresenta ainda como ancestral, isto representação e comu-
é, como uma anterioridade, já que ancestral nem sem- nicação (visual, sonora,
táctil, dentre outras) têm
pre é o mais velho em termos etários. potencialidades e limita-
A ética, a estética, o conteúdo e a forma gravitam ções de origem cultural
dessa maneira num xirê de sentidos. O tambor, outro e histórica para produzir
signiicados. Cada uma
elemento literário referenciado em muitos textos africa- das modalidades, nas
nos, torna-se ele mesmo poesia suplementar do griotis- suas especiicidades,
mo dos poetas africanos, conforme observa Hampâté contribuiria com a inter-
pretação do leitor.
Bâ, em Amkullel o menino fula (2003), mas também dos
poetas afro-diaspóricos do canto-falado, que através de
suas estratégias mnemônicas tecem as tradições, por
meio da poesia dub e do rap, por exemplo, de acordo
com as relexões de Amarino Queiroz (2007).
Paul Zumthor em Introdução à poesia oral (1997)
airma que a privação dos tambores pode mesmo fazer
ruir uma tribo, por isso muitos povos escravizados na
América foram proibidos de usá-los tão logo os senho-
res perceberam que havia uma gramática da resistência
extremamente eiciente que era ininteligível e ao mesmo
tempo perigosa para a manutenção da empresa colonial.
Para Zumthor,

a percussão constitui estruturalmente uma lin-


guagem poética. Manipulado como é a regra, de
forma expressiva, o som do tambor se enriquece
de feitos de intensidade, de conotações melódi-
48 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

cas, que às vezes lhe permitem, como entre os


Iorubá ou os Akan, revezar com o canto no de-
correr da performance. É nesse sentido que privi-
legia a memória. Ele constitui uma tradição oral
especíica e privilegiada no seio da tradição: ele
vence a distância, estendendo-se por 5, até 20Km;
sobretudo abole o tempo, protegendo suas investi-
das (ZUMTHOR, 1997).

É por isso que o poeta José Craveirinha clama ao


“Deus dos homens” como expressão máxima de sua
lírica multimodal no poema Quero ser tambor publi-
cado em Karingana ua karingana (1982):

Oh! deixa-me ser tambor, só tambor!

6. O real em paralaxe na produção africana


A Teoria dos gêneros literários sempre se ocupou
do texto pensando-o a partir de categorizações, ora
mais dogmáticas, ora mais luidas, mas opondo-o
sempre a um real homogêneo, tomado a priori a par-
tir sempre do princípio monológico de verdade, sem
desconiar que, como o texto literário, o real também
pode ser pensado a partir de gêneros, tarefa que, além
de tensionar os conceitos de mímese, de verossimi-
lhança, dentre outros, abre margem para outras pers-
pectivas teóricas e comparativas.
Nos estudos africanos e negro-brasileiros, o real
é o último repositório, ainda intocado, da coloniali-
dade de um saber logocêntrico que aprisiona a teoria
e a crítica voltada às literaturas e culturas africanas e
afro-americanas.
Deslocamos todas as outras coisas, mas, a noção
de real, seja nos estudos especíicos ou contrastivos
aparece como algo dado, não como algo que pode ser
vazado a partir de uma teorização que, por exemplo,
o pense em gêneros. Outra questão que retomamos
é em que medida categorias como narrador, perso-
nagem, dentre outras, sobretudo da forma como a
conhecemos, nos servem nos estudos africanos e
negro-brasileiros, quando temos à nossa disposição
operadores riquísssimos como a noção de griot (uti-
lizada por um conjunto de pesquisadores e que pode
ser pensado literalmente como categoria narrativa),
encruzilhada, dentre outros, que vem aparecendo no
campo. Aliás, talvez aquilo que Eduardo Oliveira cha-
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 49

ma de Paradigma Exu seja o eixo para abalarmos esse


real que igura monoliticamente colonizado e coloni-
zante como produtor de experiências teórico-críticas.
Apoiados por FANON (2008), acreditamos que
talvez esta seja uma de nossas últimas trincheiras
na descolonização mental crítica, que atenta a este
a priori, desaia o real como profundidade, apresen-
tando-o como superfície discursiva que se imiscui do
outro lado da esfera iccional como naturalmente seu
oposto: eis a armadilha.
É preciso descolonizar o real, livrando-o da descon-
iança alegórica. E aqui não pensamos este real como co-
lado a nenhuma ideia de essência, verdade ou profundi-
dade: todas essas muletas da representação, esse espelho
disforme no qual somos sempre a falta ou o excesso, já
que não há ajuste completo neste jogo de imagens.
A biograia nada convencional publicada no Bra-
sil sob o título de FELA, esta vida puta, do músico-
virtuose nigeriano Fela Kuti, escrita pelo intelectual
negro-diaspórico de nacionalidade cubana radicado na
Bahia, Carlos Moore, forja-se em observância a esse real
multifacetado da cosmogonia africana no qual estava
imerso o inventor do afrobeat. Além de uma rede po-
lifônica de textos em diferença (entrevistas, narrativas
dos encontros com Fela, trechos epistolares), o texto
biográico com sua estrutura dialógica, mas, ao mesmo
tempo, potencialmente fragmentada, é um “monólogo
iccional” na voz do espírito da mãe de Fela, Funmilayo
Ransome-Kuti. A exemplo de um quadro do pintor sur-
realista belga René Magritte, esta parte da obra intitulada
Afa-Ojo (Aquela que comanda a chuva) parece carregar
a inscrição “Isto não é icção”, vez que sua veracidade
real-iccional transpõe na escrita de Shawna Davis (é ela
a responsável por esta parte da biograia e não Carlos
Moore, que franqueia a palavra a Davis para que o texto
se encene), uma das dimensões mais fortes da biograia
de Fela: a relação extrema que teve com sua mãe, mesmo
depois da morte física de sua progenitora. As interações
constantes que Kuti revela ter com ela, inclusive mate-
rializando-se na chuva, não são tratadas como devaneio
do artista, ou como uma dimensão mística-folclórica de
sua personalidade, vez que Moore e Davis sabem que os
mortos integram como partícipes legítimos a esfera da
vida comunitária na cosmogonia na qual boa parte dos
nigerianos estão inseridos.
Há uma diferença radical entre representar e re-
viver continuamente de forma literal a experiência
como na esfera do real aqui apontada. Ademais o real
50 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

em paralaxe aponta para uma mudança relacional


constante tanto do “objeto” quanto do “ponto de vis-
ta” numa múltipla afetação nos exercícios do ver, eis
outro de nossos desaios.

7. Estudos encruzilhados: literatura negro-


brasileira e literatura africana
Laroyê! 4

A Literatura Comparada e/ou os Estudos Con-


trastivos serviram como eiciente chave para trazer as
literaturas africanas para a cena educacional brasilei-
ra, em um momento no século XX que nem sempre
se tinha à disposição espaços acadêmicos especíicos
para esta discussão, mas agora é preciso revisitá-los.
4
Saudação a Exu! Isto deve ser feito, no intuito de se veriicar em que
medida, ante a urgência que se coloca no Brasil e na
África acerca da visibilidade do texto e do corpo ne-
gro-brasileiro e africano, os estudos literários podem
contribuir para o não apagamento físico e simbólico
dessa diferença etnicorracial nos circuitos literários
de prestígio, como vimos ocorrer recentemente na
Feira Literária de Frankfurt 2013 (dentre setenta es-
critores, o governo brasileiro indicou apenas um es-
critor negro e um índio para integrar a relação dos
selecionados e inanciados pelo Estado). A validação
do texto negro seja africano seja brasileiro é desaiado
nesta perspectiva a escapar à tradicional veriicação
do reluxo de experiências estéticas e discursivas eu-
ropeias para só aí se aferir alguma qualidade literária.
Se linguistas como Makoni e Meinhof (2006)
propõem a revisão do conceito de língua em África,
suspeitamos que o de literatura, calcado nesta mesma
língua produto de uma colonialidade do poder/saber,
também precisa ser revisto.
As leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que instituem o
estudo de história e cultura africanas e afro-brasileiras
no Brasil e no caso da última também a história e cultu-
ras indígenas, nos convocam a tensionar as literaturas
africanas no Brasil exatamente pela clivagem recusada
por uma tradição crítica no país e por escritores luso-
africanos, luso-tropicalistas, mestiço-discursivos: a
questão etnicorracial. O argumento de que esta é uma
questão delicada demais para pensar em África, ou que
não é algo relevante para pensar no texto literário afri-
cano, cai por terra na contemporaneidade com a abor-
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 51

dagem cada vez mais incisiva e fundamentada de escri-


tores e escritoras africanos que carregam inscritos no
corpo essa diferença, e, nesse sentido, suas abordagens
buscam tensionar não só o cânone africano na Áfri-
ca, mas o cânone etnicorracial brasileiro expresso na
cultura brancocêntrica que igura como hegemônica e
traduz-se também na (in)visibilização do negro na lite-
ratura e em posições de prestígio no País, contribuin-
do, de forma negativa, para as representações do negro
moçambicano, conforme aponta Paulina Chiziane:

Para nós, moçambicanos, a imagem do Brasil


é a de um país branco ou, no máximo, mestiço.
O único negro brasileiro bem-sucedido que re-
conhecemos como tal é o Pelé. Nas telenovelas,
que são as responsáveis por deinir a imagem que
temos do Brasil, só vemos negros como carrega-
dores ou como empregados domésticos. No topo
[da representação social] estão os brancos. Esta é
a imagem que o Brasil está vendendo ao mundo”,
criticou a autora, destacando que essas represen-
tações contribuem para perpetuar as desigual-
dades raciais e sociais existentes em seu país.5
(CORREIO DA BAHIA, 17/04/2012)

Os estudos encruzilhados (estudos comparados


negros que se perfazem no conlito, tomando a in-
coerência, o paradoxo, a tensão como força motriz)
apontam como potência para uma arqueo-genealogia
do saber na literatura ainda a ser explorada: Lima Bar-
reto, Solano Trindade, Oswaldo de Camargo, Miriam
Alves, Abelardo Rodrigues, Conceição Evaristo, José
Carlos Limeira, Éle Semog, Cuti e outros e outras es-
critorxs negro-brasileirxs estão à nossa espera para
pô-los em diálogo com a África Negra, investimento
de toda uma vida de intelectuais como Joseph Ki-Zer-
bo e Abdias do Nascimento. Os estudos encruzilha-
dos propõem uma dinâmica constante de abalo à nor-
malização do campo, já que a ilosoia do paradoxo
que rege Exu é o logos da encruzilhada. Exu por sua
vez impregna todos os seres vivos,

ele é o princípio de individuação que está em


tudo e a tudo empresta identidade. É o mesmo
que dissolve o construído; aquele que quebra a
regra para manter a regra; aquele que transita
pelas margens para dar corpo ao que estrutura o
centro; é aquele que inova a tradição para asse-
gurá-la (OLIVEIRA, 2007. p.54),
52 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

dessa forma “mantém um equilíbrio dinâmico


baseado no desequilíbrio das estruturas desse mesmo
sistema ilosóico-ético” (Idem).

8. Linguajamentos: o desaio das línguas na-


cionais
[...]o linguajamento é o momento no qual uma “lín-
gua viva” (como diz Anzaldúa) se descreve como
um estilo de vida (“un modo de vivir”) na interseção
de duas (ou mais) línguas. Nesse ponto tornam-se
evidentes as diferenças entre o bilíngue e o bilinguis-
mo, entre a política linguística e linguajamento: o
bilinguismo não é um estilo de vida, mas uma habi-
lidade. (MIGNOLO, 2003. p. 358-359)

5
Para Makoni e Meinhof (2006), não se pode deixar
Fonte: http://www.cor-
reio24horas.com.br/noti- de reconhecer a função colonialista da L.A. (Linguís-
cias/detalhes/detalhes-1/ tica Aplicada), como tem sido feito em relação a seu
artigo/novelas-brasilei- papel na própria deinição do que se considera como
ras-passam-imagem-de-
pais-branco-critica-escri- línguas na África. E essa crítica não cabe apenas a L.A.
tora-mocambicana/ A justiicativa da predileção pelas línguas europeias
como fator geopolítico de uniicação nos países africa-
nos em um contexto pós-colonial é refutado veemente-
mente por: escritores como Wole Soyinka que veem no
gesto um ímpeto neo-colonial, ainda que não se quei-
ra propor a interdição da língua europeia (a questão é
como em meio a muitas possibilidades linguísticas se
constrói um regime de verdade em que apenas o uso
da língua europeia pode destensionar as complexas
relações que atravessam muitos países africanos no
período pós-colonial e, em alguns casos, pós-guerra
civil também); por críticos literários e acadêmicos que
interrogam o campo dos estudos literários africanos
em torno das línguas nacionais como Amarino Quei-
roz, Fernanda Felisberto e Ricardo Riso, bem como
por sociolinguistas interessados nas relações de poder
na linguagem como Florence Carboni e Mário Maestri
que tem um importante trabalho, não especiicamente
sobre a África, mas sobre essas estratégias de domina-
ção linguística que naturalizam hierarquias, intitulado
A linguagem escravizada (2005). É chegada a hora do
desaio de se contemplar as literaturas africanas em ou-
tras línguas europeias (inglês, espanhol, francês, dentre
outras), mas sobretudo nas línguas nacionais, pois, se o
campo das literaturas africanas no Brasil não for capaz
de dar conta desta tarefa, terá falido em seu compro-
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 53

misso ético e crítico de escapar ao etnocentrismo e lo-


gocentrismo que se instaurou na área: à deriva, na Nau
que Ícaro toma de empréstimo a Odisseu, terá como
único destino possível um sonho: a Ítaca Portuguesa.
Pelas questões aqui expostas, a escritora guineense
Odete Semedo em seu livro de poemas No Fundo do
Canto (2007), não abdica da escrita em crioulo para
alguns textos que integram o livro, acompanhados
da tradução para o português, como recurso estético,
discursivo e pedagógico para que a diferença linguís-
tica local vaze sua escrita, derramando em sua lírica,
um convite contínuo à aprendizagem na relação Eu/
Outro, como nos mostra no poema Bu Tcholonadur
(O teu mensageiro):

BU TCHOLONADUR

Ka bu larsi 6
De acordo com Walter
pertu mi Mignolo o linguajamen-
rasta stera bu sinta to, ato de pensar e escre-
ver entre as línguas que
N odjau ku rosu iridu também recebe o nome
de bilinguajamento ou
na mostra foronta pluringuajamento, se es-
bu na ianda tabelece como condição
pes ka na iangasa tchon princeps para a ocor-
rência do pensamento
liminar (produção epis-
Pertu mi temológica no limiar,
bu puntan n kontau no limite, nas margens,
puntan pa moransa di kasabi a partir de uma perspec-
pidin pa n mostrau tiva subalterna).
kaminhu sin susegu
kurba di sufrimenti
paki ami i bu tcholanadur

Ka bu ndjutin
pertu mi
ka bu djubi e larma
ku na rian na rostu
nin ka bu puria nha kombersa
pa e nha fala tirmidu
dibedjisa semprenti

Pertu mi
ka bu larsi
bin...
sinta, paki storia ka kurtu
(SEMEDO, 2007. p. 23)

No linguajamento6 poético de Semedo, vamos


ecoando as vozes que vão proliferando a diferença
54 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

linguística em África e se o português até aqui foi a


verdade normalizada em língua, é preciso ouvir com
atenção o que nos diz a poeta nos últimos versos:
“aproxima-te de mim / não te afastes / vem... senta-te
que a história não é curta”.

9. Por um conceito de afro-rizoma

As literaturas africanas de língua portuguesa e afro-


brasileira derivam de relações diversas que perpassam
não só a experiência colonial lusitana, mas a noção de
diáspora, o processo de (re)invenção das tradições e a
constituição de redes afro-rizomáticas que foram teci-
das internamente e para além-mar, a im de autogerir
as identidades através das quais Angola, Moçambique,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Por-
tugal e Brasil representam-se e são representados na
produção literária contemporânea escrita em língua
portuguesa e também em outras línguas.
O rizoma é um modelo genealógico da epistemolo-
gia de Deleuze e Guatari (1995). Adaptado da botânica
em que os brotos de determinadas plantas podem tor-
nar-se em qualquer ponto talo, ramo ou raiz, com auto-
nomia em relação a sua localização arbórea, empresta
sua forma luida e descentrada ao sistema epistemo-
lógico em que não há proposições que se sobrepõem,
nem dicotomias fechadas. Para Deleuze e Guattari, a
estrutura do conhecimento não deriva, por meios lógi-
cos, de um conjunto de premissas, mas sim se elabora
simultaneamente a partir de todos os pontos em para-
laxe. Mas, a estrutura rizomática não é necessariamen-
te volátil ou instável, mantém linhas de relação entre
conceitos que dialogam. Exije, porém, que qualquer
modelo de ordem possa ser modiicado: a organização
dos elementos não segue hierarquias - com uma base
ou raiz dando origem a múltiplos ramos -, mas, pelo
contrário, qualquer elemento pode afetar outro.
Se o rizoma opera a partir de uma lógica descen-
trada, pela qual não é possível demarcar sua origem de
forma unilateral, nem tampouco pensá-lo a partir de
uma teleologia, os afro-rizomas constituem-se como
uma reversão da perspectiva que toma exclusivamen-
te a inluência colonial lusitana como determinante
para a emergência das literaturas no Brasil e nos países
africanos de língua portuguesa, reconigurando, desta
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 55

forma, as relações em jogo. O termo afro, neste contex-


to, é ressigniicado pela perspectiva da diáspora, que,
de acordo com HALL (2003) e GILROY (2001), não
se refere apenas à dispersão dos povos africanos pelo
mundo, mas, principalmente, à construção de um novo
espaço simbólico no qual a reversão da condição su-
balterna imposta pela escravização africana é realizada
continuamente em campos como a música, a literatu-
ra e a produção cultural. Desta forma, assim como a
literatura afrobrasileira soergue-se historicamente no
Brasil airmando uma estética negra em diálogo com a
África, a partir do tensionamento de um cânone insti-
tuído que invisibiliza as produções e as representações
negras, as literaturas africanas de língua portuguesa
emergem também como escritas de si para além de
uma circunscrição geopolítica, através de uma tessitura
que opera entre tradições e modernidades, entre o local
e o global, sem furtar-se a avaliar os projetos nacionais
reservados aos países africanos.
Ora, nesta dinâmica, a constituição da ideia de na-
ção no período “pós-colonial” tanto no Brasil como
nos países africanos de língua portuguesa contará com
a importante contribuição da literatura no processo de
invenção das tradições nacionais (HOBSBAWN, 1984)
e de construção de identidades através das quais se re-
presentem o povo no intuito de que a imagem forjada
não seja mero relexo do Outro lusitano colonial. Os
luxos dispersos que vão atando e desatando os nós
transnacionais de uma rede que não se encerra no
Estado-nação e, na contemporaneidade, expande-se
através dos mercados editoriais, de ações governamen-
tais, da iniciativa individual de escritores e leitores, bem
como da ampliação de sítios e blogues na internet sobre
autores e textos iccionais portugueses, africanos e bra-
sileiros. A conformação de uma rede literária que passa
a operar nas coletâneas, nas resenhas e em produções
críticas sobre obras enfrenta o desaio de contemplar,
na narração da nação nestes territórios, a alteridade
que põe em xeque os valores etnofalogocêntricos.
A experiência afro-rizomática dissemina-se lin-
guajando a diáspora negra em expressões literárias
convencionais e não convencionais, como na já citada
poesia dub, no slam, na polirritmia da black eletronic,
nas paredes-pontes futuristas suporte de uma litera-
tura afro-graiti que sequer ainda mensuramos em
nossas páginas da crítica.
56 Afro-rizomas na diáspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira

10. As literaturas africanas como devir ou con-


siderações inais para que as africanas tor-
nem-se, nietzscheanamente, o que são
A biopolítica, de acordo com Michel Foucault,
consiste nas práticas governamentais que buscam ra-
cionalizar a saúde, a higiene, a natalidade, longevidade,
a mortalidade e as raças, regulando o corpo coletivo
identiicado como população, através de um poder
que atua sobre esses dados privilegiados “produzindo
a vida” para alguns, e, ao mesmo tempo, “deixando
morrer” programaticamente a outros, ocultando-se,
apesar de tudo, sob um discurso de fatalidade. Devi-
do a essa arquitetura perversa do biopoder, as escritas
africanas no Brasil devem reivindicar para si a sua di-
mensão biopolítica exatamente através da escritura do
corpo africano e negro-brasileiro nas malhas de seus
respectivos textos que desnaturalizam tudo aquilo
que se projeta de forma aparentemente acidental nos
noticiários, nos boletins de ocorrência, batidas e blitzes
policiais na invenção de um cotidiano cordial da con-
vivência racial brasileira. Se a identidade se forma e se
transforma na representação, como airma Stuart Hall,
a literatura é trincheira estética, mas também ética,
contrária ao racismo de Estado expresso no biopoder
que anula os corpos negros (e) africanos, seja no ex-
termínio literal ou simbólico quando as línguas nacio-
nais, a diversidade literária, a condição de escritor(a),
o mercado editorial, a possibilidade do diálogo com a
diferença, tudo isso é cerceado.
Por, isso, os dez-a-ios epistemológicos aqui apon-
tados são quimera biopolítica, porque podem operar
em favor daquilo que a África pode tornar-se no Bra-
sil como devir do que somos, não como ixidez, mas
como força intempestiva: no tempo, contra o tempo
e em favor de um tempo vindouro. Neste sentido, as
literaturas africanas no Brasil não devem se constran-
ger em também ser texto nas encruzilhadas com o
Harlem Renaissence, com a Negritude, o Pan-africa-
nismo, a literatura negro-brasileira e outras possibili-
dades de trânsito que escapem ao epistemicídio e ao
racismo epistêmico que nos amputam como potência.
As literaturas africanas na encruzilhada: teoria, crítica e outras tensões 57

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