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Organizado por

Clara Barzaghi
d; antologia de ensaios
Stella Z. PaternianI
André Árias Hortense J. Spillers
Sylvia Wynter
Saidiya Hartman
Fred Moten
Denise Ferreira da Silva
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Saidiya Hartman 105

Tradução
Fernanda Silva e Sousa e
Marcelo R. S. Ribeiro -

Este ensaio examina a ubíqua presença de Vênus no arquivo da


escravidão atlântica e luta com a impossibilidade de descobrir
qualquer coisa sobre ela quejá não tenha sido afirmada.Como
figura emblemática da mulher escravizada no mundo atlân
tico, Vênus evidencia a convergência do terror e do prazer na
economia libidinal da escravidão,assim como a intimidade da
História com o escândalo e o excesso de literatura. Ao escrever
no limite do indizível e do desconhecido,o ensaio mimetiza a
violência do arquivo e tenta repará-la ao descrever tão plena
mente quanto possível as condições que determinam a aparição
de Vênus e que ditam seu silêncio.
Nesta encarnação,ela aparece no arquivo da escravidão
, como uma garoía morto,nomeada em uma acusaçãojudicial
contra um capitão de navio negreirojulgado pelo assassinato
de duas garotas negras. Mas nós poderíamos tê-la encontrado
com a mesma facilidade no livro de contabilidade de um navio.

1 Saidiya Hartman,"Venus in Two Acts," in SmaüAxe,Volume 12,n.° 2,


pp.1-14.Copyright,2008,Small Axe,Inc..Ali rights reserved. Republished by
permission ofthe copyright holder,and the present publisher,Duke University
Press. www.dukeupress.edu. Uma primeira versão da tradução presente neste
volume foi revisada por Lia Sovik e publicada anteriormente como Hartman,S.
(2020).Vênus em dois atos.Revista ECO-Pós,vol. 23,n.° 3,p.12-33.
o arquivo da escravidão repousa sobre uma violência funda moldar uma narrativa que se baseia na pesquisa de arquivo, 121

dora.Essa violência determina,regula e organiza os tipos de e com isso quero dizer uma leitura crítica do arquivo que
enunciados que podem ser formulados sobre a escravidão mimetiza as dimensões figurativas da História,eu pretendia
e também cria sujeitos e objetos de poder.^® O arquivo não tanto contar uma história impossível quanto amplificar
fornece um relato exaustivo da vida da garota, mas cataloga os a impossibilidade de que seja contada.A temporalidade
enunciados que autorizaram sua morte.Todo o resto é uma condicional de "o que poderia ter sido",segundo Lisa Lowe,
espécie de ficção: donzela vivaz, vadia carrancuda, Vênus,garo "simboliza adequadamente o espaço de um tipo diferente de
ta. A economia do roubo e o poder sobre a vida, que definiram pensamento,um espaço de atenção produtiva à cena da perda,
o tráfico negreiro,fabricaram mercadorias e cadáveres. Mas um pensamento com atenção dupla,que procura abranger ^
carga, massas inertes e coisas não se prestam à representação, os objetos e métodos positivos da História e da ciência social
ao menos não facilmente? e,simultaneamente,as questões ausentes,emaranhadas e
EmLo^e YourMoíÃer tentei colocar em primeiro plano indisponíveis pelos seus métodos".*'
a experiência das pessoas escravizadas,traçando o itinerário de A intenção aqui não é tão milagrosa como recuperar
um desaparecimento e narrando histórias que são impossíveis as vidas das pessoas escravizadas ou redimir os mortos, mas
de contar.O objetivo era expor e explorar a incomensurabili- em vez disso trabalhar para pintar o quadro mais completo
dade entre a experiência das pessoas escravizadas e as ficções possível das vidas de cativos e cativas. Este gesto duplo pode
da História,ou seja,as exigências da narrativa, a substância de ser descrito como um esforço contra os limites do arquivo
temas e enredos e fins. para escrever uma História cultural do cativeiro e,ao mesmo
E como se contam histórias impossíveis? Histórias tempo,uma encenação da impossibilidade de representar
sobre garotas com nomes que deformam e desfiguram,sobre as vidas de cativos e cativas precisamente por meio do
palavras trocaâtas entre companheiras de navio que nunca processo de narração.
adquiriram qualquer reconhecimento diafite da lei e que não fo O método que guia essa prática de escrita é mais bem
ram registradas no arquivo,sobre os apelos, preces e segredos descrito como fabulação crítica."Fábula" denota os elementos
nunca proferidos porque não havia ninguém para recebê-los? A básicos da história,os blocos de construção da narrativa. Uma
comunicaçãofurtiva que pode ter se passado entre duas garotas, fábula,de acordo com Mieke Bal,é"uma série de acontecimen
mas que ninguém da tripulação observou ou relatou, afirma o tos relacionados lógica e cronologicamente que são causados e
queja sabemos ser verdade:o arquivo é inseparável dojogo de experimentados por atores. Um acontecimento é uma transição
poder que assassinou Vênus e sua companheira de navio e que de um estado a outro.Atores são agentes que realizam ações.
exonerou o capitão.E esse conhecimento não nos aproxima (Não são necessariamente humanos.)Agir é causar ou vivenciar
de uma compreensão das vidas de duas garotas cativas ou da um acontecimento".*®
violência que as destruiu e nomeou a ruína: Vênus. Nem pode ' Jogando com os elementos básicos da história e rear-
explicar por que razão,tanto tempo depois,ainda queremos ranjando-os,re(a)presentando a seqüência de acontecimentos ^
escrever histórias sobre elas. em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa,tentei
É possível exceder ou negociar os limites constitutivos comprometer o status do acontecimento,deslocar o relato
do arquivo? Ao propor uma série de argumentos especulativos preestabelecido ou autorizado e imaginar o que poderia ter
e ao explorar as capacidades do subjuntivo(um modo
gramatical que expressa dúvidas,desejos e possibilidades),ao
47 L.Lowe,"The Intímacies ofFourContinents,"in Stolev,HauntedbyEmpire.
Geographies ofintimacy inNorthAmericanHistory,p.208.
46 M.Foucault,Archaeology ofKnowledge,p. 128-129. 48 M.Bal,Narratology:Introduction to the Theory ofNarrative,p.7.

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