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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ( C I P )

(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, S P , BRASIL)

McGrath, Alister E., 1953-


Teologia sistemática, histórica e filosófica : uma introdução a teologia
cristã/ Alister E. McGrath ; [tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes].
-- São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

664 p. ; 160x230 cm

Título original:_ Christian theology : an introduction


Bibliografia.

1. Teologia - Histórica 2. Teologia doutrinal 3. Teologia filosófica


4. Teologia sistemática
I. Título.

05-3334 CDD-230

Índices para catálogo sistemático:


180 FONTES E MÉTODOS

e isoladas. Hoje, o debate foi mais além, levantando questões a respeito da" arquitetura acabavam por r
da teologia" - ou seja, questões voltad,as, por exemplo, à relação existente entre os Reforma do séct
estudos bíblicos e a teologia sistemática, ou entre essa última e a teologia pastoral. a teologia às Esc
Com isso em mente, podemos agora nos dedicar à análise da arquitetura da Assim, a te
teologia, à medida que levamos em consideração seus vários componentes. extensão dessa e
estar preparadc
A arquitetura da teologia modernos sobre
exemplo, é imp
Etienne Gilson, certa vez, comparou os grandes sistemas da teologia escolástica
chegar a um cc
a "catedrais da mente." Essa imagem é poderosa, no sentido de que dá uma idéia
bíblicos nesses
de permanência, solidez, organização e estrutura - qualidades que os escritores
querigmática en
desse período tinham em alta conta. Talvez a imagem de uma grande catedral do
estudos contem
período medieval, arrancando suspiros de admiração em grupos de turistas
teologia filosófo
carregados de máquinas fotográficas, pareça fora de contexto nos dias de hoje;
importância vi
parece que o máximo que muitos professores universitários de teologia podem
hermeticament<
esperar atualmente é nada mais do que uma tolerância paciente. No entanto, a
aos avanços oco
idéia da teologia como algo ligado a uma estrutura continua a ser relevante. Pois a
e aos estudos so
teologia é uma disciplina complexa, que reúne uma série de áreas relacionadas
umas às outras, em uma espécie de aliança por vezes incômoda e problemática.
Algumas delas são destacadas a seguir.
A expressá<
Estudos bíblicos sistemática da t
duas correntes
A fonte fundamental da teologia cristã é a Bíblia, que representa uma prova
primeira correi
das bases históricas do cristianismo, tanto pela história de Israel, quanto pela vida,
educacionais ot
morte e ressurreição de Jesus Cristo. (Observe que as expressões paralelas "as
mental de apn
Escrituras" e "a Bíblia", assim como "escritura!" e "bíblico" são sinônimas para os
cristã, normalrr
propósitos da teologia). Como freqüentemente se destaca, o cristianismo gira em
segunda corre.
torno da fé em uma pessoa Qesus Cristo), e não da fé em um livro (a Bíblia).
pressupostos m
Entretanto, as duas coisas encontram-se intimamente relacionadas.
conhecimento
Historicamente, não sabemos praticamente coisa alguma a respeito de Jesus
abord a g em é ei
Cristo, além do material histórico contido no próprio Novo Testamento. Portanto,
maior preocup:
ao tentar lidar com a questão da identidade e do significado de Jesus Cristo, a
Em seu pe
teologia cristã é forçada a lidar com o texto que transmite informações a seu respeito.
acordo com as
Como resultado disso, a teologia cristã encontra-se intimamente vinculada à ciência
começando co1
da crítica e da interpretação bíblicas - ou em outras palavras, com a tentativa de
clássicos para 1
avaliar a nítida natureza histórica e literária dos textos bíblicos e de compreendê-
documentos. (
los.
obra de Pedro 1
A importância dos estudos bíblicos para a teologia é fácil de ser demonstrada.
uma compilaçã
O surgimento da pesquisa bíblica humanista, no início da década de 1500, revelou
nos anos de 11
uma série de erros de tradução nas versões latinas, existentes naquele período, da 11
sentenças ") , e
Bíblia. Em conseqüência disso, houve pressão crescente no sentido de que fosse
de Agostinho.
feita uma revisão de algumas das doutrinas cristãs existentes, que se baseavam em
Essas citaç
bíblicas que certa vez lhe serviram como fundamento, mas que agora
trata da Trinda
A s preliminares 181

peito da "arquitetura acabavam por revelar algo bastante diferente. É plausível a alegação de que a
io existente entre os Reforma do século XVI tenha representado uma tentativa de alinhar, novamente,
a teologia pastoral. a teologia às Escrituras, após um período de considerável afastamento.
;e da arquitetura da Assim, a teologia sistemática é dependente dos estudos bíblicos, embora a
:omponentes. extensão dessa dependência seja objeto de controvérsias. Portanto, o leitor deve
estar preparado para encontrar, neste livro, alusões aos debates acadêmicos
modernos sobre as funções histórica e teológica da Bíblia. Para citar apenas um
exemplo, é impossível compreender a evolução das cristologias modernas, sem
t teologiaescolástica
chegar a um consenso .quanto a, pelo menos, alguns dos avanços dos estudos
leque dá uma idéia
bíblicos nesses dois últimos séculos. É possível defender que a abordagem
:s que os escritores
querigmática em relação à teologia, desenvolvida por Rudolf Bultmann, reúne os
grande catedral do
estudos contemporâneos sobre o Novo Testamento, a teologia sistemática e a
grupos de turistas
teologia filosófica (em especial o existencialismo). Isso exemplifica um ponto de
) nos dias de hoje;
importância vital: a teologia sistemática não opera em um compartimento
de teologia podem
hermeticamente fechado, isolada de outros movimentos intelectuais. Antes, reage
nte. No entanto, a
aos avanços ocorridos em outras disciplinas (especialmente em relação à filosofia
ser relevante. Pois a
e aos estudos sobre o Novo Testamento).
: áreas relacionadas
,da e problemática. Teologia sistemática
A expressão "teologia sistemática" veio a ser entendida como "a organização
sistemática da teologia". Mas o que significa a expressão "sistemática"? Surgiram
duas correntes principais em relação ao significado desse termo. Conforme a
>resenta uma prova
primeira corrente, o termo significa "algo organizado com base em interesses
1, quanto pela vida,
educacionais ou explicativos". Em outras palavras, significa a preocupação funda-
ssões paralelas "as
mental de apresentar uma visão clara e organizada dos principais temas da fé
) sinônimas para os
cristã, normalmente conforme o modelo do credo apostólico. De acordo com a
ristianismo gira em
segunda corrente, o termo pode significar "algo organizado com base em
Lm livro (a Bíblia).
pressupostos metodológicos". Isto é, as idéias filosóficas acerca de como adquirir
1adas.
conhecimento determinam a forma como o material está organizado. Essa
a respeito de Jesus
abordagem é especialmente relevante no período moderno, no qual houve uma
,tamento. Portanto,
maior preocupação a respeito do método teológico.
, de Jesus Cristo, a
Em seu período clássico, o objeto da teologia era geralmente organizado de
ações a seu respeito.
acordo com as linhas propostas pelo credo apostólico ou pelo Credo Niceno,
:vinculada à ciência
começando com a doutrina de Deus e terminando com a escatologia. Modelos
com a tentativa de
clássicos para uma sistematização da teologia são fornecidos por uma série de
: e de compreendê-
documentos. O primeiro grande manual da teologia ocidental encontra-se na
obra de Pedro Lombardo, Four books o f the sentences [Quatro livros de sentenças],
le ser demonstrada.
uma compilação realizada na Universidade de Paris, no século XII, provavelmente
ia de 1500, revelou
nos anos de 1155 a 1158. Em sua essência, a obra é uma coleção de citações ( ou
1aquele período, da
"sentenças"), extraídas em geral de escritores patrísticos e, mais especificamente,
:ntido de que fosse
de Agostinho.
ue se baseavam em
Essas citações foram organizadas por tópicos. O primeiro dos quatro livros
1to, mas que agora
trata da Trindade; o segundo, da criação e do pecado; o terceiro, da encarnação e
182 FONTES E M TODOS

da vida cristã, e o quarto e último livro, sobre os sacramentos e os últimos dias. A teologia história
Redigir comentários a respeito dessas sentenças tornou-se uma prática comum históricas em que as idé
para teólogos medievais como Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scotus. A Seu objetivo é desvenda
obra Summa theologiae, de Tomas de Aquino, que data de um século mais tarde, por exemplo, que não fc
resumiu toda a teologia cristã em três partes, empregando princípios similares primeira vez, adquirido
àqueles que foram adotados por Pedro Lombardo, ao mesm,o tempo em que Também demonstra, p
atribuiu maior ênfase às questões filosóficas (em particular àquelas levantadas por teologia latino-americ:ai
Aristóteles) e à necessidade de conciliar as diferentes perspectivas dos escritores socioeconômico da regi
patrísticos. - como o liberalismo e
Dois modelos diferentes foram propostos na época da Reforma. Do lado teologia.
luterano, Filipe Melancton escreveu Loci communes [Lugares comuns], em 1521. Dizer que o crisàa.i
Essa obra forneceu uma síntese, organizada por tópicos, dos principais aspectos valores pertencentes a S(
da teologia cristã. As institutas da religião cristã, de João Calvino, é geralmente essa observação é tremt
considerada como a obra de maior influência da teologia protestante. A primeira teologia, um elemento t
edição foi lançada em 1536, e sua edição final, em 1559. A obra divide-se em a seus fundamentos. fa:
quatro livros: o primeiro trata da doutrina de Deus; o segundo, de Cristo como como cristãs, podem ai
mediador entre Deus e a humanidade; o terceiro, da questão referente ao tomar secular. Um exemplo d
posse da redenção; e o último, da vida da igreja. Entre as outras obras mais recentes de que Deus não é cap.
e importantes da teologia sistemática, que adotam abordagens semelhantes, gregos. Os primeiros te<
encontra-se a densa obra de Karl Barth, Church dogmatics [Dogmática da igreja]. nesses círculos, não a
No período moderno, questões metodológicas assumiram uma importância profundamente arrai g a
maior, fazendo com que a questão do prolegomena (vide p. 187) passasse a ser O estudo da hist1
relevante. Christian faith [Fé cristã], de F. D. E. Schleiermacher, produzida de instrumento para a co
1821 a1822, é um exemplo de uma obra moderna de teologia sistemática que é que:
bastante influenciada por essas preocupações. Sua organização é determinada pelo 1 Certas idéias fora.I
pressuposto de que a teologia diz respeito à análise da experiência humana. Assim, nalmente, erros s:i
Schleiermacher, de forma notória, põe a doutrina da Trindade no final de sua 2 A evolução da tec
teologia sistemática, ao passo que Aquino a põe no início. corrigidos.
Teologia histórica Portanto, o estuc
para o fato de quão fa
A teologia possui uma histólia. Essa é uma percepção facilmente neglige ciada,
própria época" (Alasd
em especial por aqueles que apresentam uma inclinação mais filosófica. A teologia
passado! Com bastan'
cristã pode ser considerada como tentativa de compreensão dos recursos básicos
passam de reações ini
da fé, feita à luz daquilo que cada época considera como os melhores métodos.
história nos alerta tai
Isso significa que circunstâncias locais possuem um forte impacto sobre as
modo alarmante com
proposições teológicas. A teologia cristã considera-se universal, quanto ao que se
se repetir. Ninguém
refere a seu interesse pela aplicação da ação redentora de Deus a todos os períodos
É por essas razõe:
da história. Contudo, também se caracteriza por sua particularidade, como
o máximo de inform:
experiência da obra redentora de Deus vivida dentro de culturas específicas, a qual
Com bastante freqüê1
é moldada, portanto, pelas percepções e limitações de pessoas que buscam, por
tivesse começado ont1
sua vez, viver o evangelho em um contexto particular. Portanto, a universalidade
em que nos enconrra
do crisàanismo é complementada, em vez de refutada, por sua aplicação particu-
questões.
lar.
As preliminares 183

A teologia histórica é o ramo da teologia que busca investigar as circunstâncias


históricas em que as idéias se desenvolveram ou foram especificamente formuladas.
Seu objetivo é desvendar a ligação que há entre contexto e teologia. Ela demonstra,
por exemplo, que não foi por acaso que a doutrina da justificação pela fé tivesse, pela
primeira ve:z, adquirido uma importância fundamental ao final do Renascimento.
Também demonstra, por exemplo, como o conceito de salvação, encontrado na
teologia latino-americana da libertação, está intimamente relacionado ao contexto
socioeconômico da região. Esclarece a forma como as tendências culturais seculares
- como o liberalismo e o tradicionalismo - encontram seus equivalentes na área da
teologia.
Dizer que o cristianismo normalmente absorve, de forma inconsciente, idéias e
valores pertencentes a seu contexto cultural parece ser algo bastante óbvio. Contudo,
essa observação é tremendamente importante. Aponta para o fato de que existe, na
teologia, um elemento transitório ou condicional que não é necessário, nem inerente
a seus fundamentos. Em outras palavras, certas idéias que normalmente foram tidas
como cristãs, podem acabar se revelando meras idéias importadas de um contexto
secular. Um exemplo clássico é o conceito da impassibilidade de Deus - isto é, a idéia
de que Deus não é capaz de sofrer. Essa era uma idéia sólida nos círculos filosóficos
gregos. Os primeiros teólogos cristãos, ansiosos por conquistar respeito e credibilidade
nesses círculos, não a contestaram. Como resultado disso, essa noção tornou-se
profundamente arraigada na tradição teológica cristã.
O estudo da história do cristianismo põe a nossa disposição um poderoso
instrumento para a correção das visões estáticas da teologia. Ele permite-nos ver
que:
1 Certas idéias foram formadas sob circunstâncias bastante específicas e, ocasio-
nalmente, erros são cometidos.
2 A evolução da teologia não é algo irreversível; os erros do passado podem ser
corrigidos.
Portanto, o estudo da teologia histórica é subversivo, à medida que aponta
para o fato de quão facilmente os teólogos se deixam desviar pelas "imagens de sua
própria época" (Alasdair Maclntyre). Isso, porém, não é algo que esteja restrito ao
passado! Com bastante freqüência, tendências teológicas modernas também não
passam de reações inconscientes a tendências culturais passageiras. O estudo da
história nos alerta tanto em relação aos erros cometidos no passado, quanto ao
modo alarmante com que são repetidos no presente. "A história se repete. Tem de
se repetir. Ninguém a escutaria da primeira vez" (Woody Allen).
É por essas razões que a presente obra tem por objetivo fornecer a seus leitores
o máximo de informação sobre o panorama histórico dos temas contemporâneos.
Com bastante freqüência, as questões teológicas são conduzidas como se a polêmica
tivesse começado ontem. Uma maior compreensão sobre como chegamos ao ponto
em que nos encontramos hoje é algo essencial para um debate substancial dessas
questões.
184 FONTES E MllTODOS

Teologia pastoral

Nunca é demais enfatizar que a atual posição de fé global ocupada pelo
cristianismo não se deve à atuação das faculdades de teologia ou aos departamentos
de religião. Existe uma forte dimensão pastoral no cristianismo, que geralmente
não se encontra adequadamente refletida nas discussões teológicas acadêmicas.
N a verdade, muitos estudiosos já alegaram que a teologia latino-americana da
libertação representa uma correção, há muito devida, da tendência excessivamente
acadêmica da teologia ocidental, introduzindo um ajuste saudável na direção da
aplicabilidade social. D e acordo com essa perspectiva, a teologia é vista como algo
que oferece modelos para a ação transformadora, e não como reflexão puramente
teórica.
N o entanto, essa tendência acadêmica é recente. O puritanismo é um exemplo
excelente de um movimento que posicionou a integridade teológica lado a lado
com a prática pastoral, acreditando que uma coisa era incompleta sem a outra. f u
obras de indivíduos como Richard Baxter e Jonathan Edwards estão repletas da
crença de que a teologia encontra sua verdadeira expressão no cuidado pastoral e
no nutriménto das almas. Mais recentemente, essa preocupação em assegurar que
a teologia encontrasse sua expressão no cuidado pastoral levou a um renovado
interesse em relação à teologia pastoral. Esse desdobramento é retratado neste
livro, que é escrito a partir do pressuposto de que muitos de seus leitores, assim
como seu autor, estejam interessados em trazer a plenitude dos recursos críticos da
teologia cristã para a esfera do ministério pastoral.

Teologia.filosófica
A teologia é uma disciplina intelectual autônoma, que se preocupa com muitas
das questões que têm intrigado a humanidade desde os primórdios da história.
Existe um Deus? C o m o é ele? Por que existimos? Questões deste tipo são feitas
tanto fora quanto dentro da comunidade cristã. & s i m , de que forma essas reflexões
se relacionam? C o m o as discussões cristãs acerca da natureza de Deus se relacionam
àquelas que se desenvolvem no seio da tradição filosófica ocidental? Existe ·algum
ponto em comum? A teologia filosófica volta-se para aquilo que se pode chamar
de empenho para "encontrar o ponto em comum" entre a fé cristã e as demais
áreas da atividade intelectual. Os Cinco Caminhos de Tomás de Aquino (isto é, os
cinco argumentos em defesa da existência de Deus) são freqüentemente citados
como exemplo da teologia filosófica, pois neles é possível observar argumentos ou
considerações não-religiosas, , conduzindo a conclusões teológicas.
A o longo deste livro, analisaremos algumas das áreas nas quais as reflexões
filosóficas tiveram um grande impacto sobre a teologia cristã. Entre os exemplos,
incluem-se a análise patrística sobre a natureza de Deus, marcadamente influenciada
pela filosofia greco-clássica; os argumentos de Tomás de Aquino em defesa da
existencia de Deus, influenciados pela física aristotélica; a cristologia de escritores
d o século X I X , como D . F. Strauss, que se baseia em uma compreensão hegeliana
roc:esso histórico; e a abordagem cristológica existencial desenvolvida por
As preliminares 185

Rudolf Bultmann. Em cada um desses casos, um sistema filosófico é visto como


instrumento ou parceiro de diálogo no desenvolvimento de uma teologia. Muitos
teólogos atuaram com base no pressuposto de que a filosofia fornece um alicerce
seguro, sobre o qual é possível se construir a teologia.
No entanto, deve-se destacar que existe uma corrente dentro da teologia cristã
que tem criticado intensamente as tentativas de utilização de filosofias seculares
em assuntos relacionados exclusivamente à teologia. Tertuliano levantou essa
questão no século II: "Que relação há entre Atenas e Jerusalém? Ou entre a
Academia e a igreja?". Mais recentemente, a mesma reação de crítica pode ser
notada nos escritos de Karl Barth (vide pp. 144-5), em que se encontra a alegação
de que utilizar a filosofia dessa forma tornava a auto-revelação de Deus fundamen-
talmente dependente de uma filosofia específica, comprometendo, portanto, a
liberdade de Deus.
Espiritualid de ou teologia mística
O termo "espiritualidade" conquistou ampla aceitação, em um passado ainda
recente, como a forma preferida para designar os aspectos relativos às práticas
devocionais de uma religião e, mais especificamente, aqueles aspectos voltados às
experiências individuais dos fiéis. Entre os termos mais antigos, ainda encontrados
na literatura acadêmica em relação a esse aspecto da teologia, há a utilização das
expressões "teologia espiritual" e "teologia mística". O uso da expressão "mística"
para referir-se à dimensão espiritual da teologia (em contraste com uma dimensão
puramente acadêmica) remonta ao tratado On mystical theology [Sobre teologia
mística], escrito no início do século VI por Dionísio, o Areopagita. Os termos
modernos "espiritualidade" e "misticismo" remontam ambos à França do século
XVII, de forma mais específica aos círculos um tanto elitistas da alta sociedade
li g a da à fi g u ra de Mad.une de Guyon. f u expressões francesas spiritualité e mysticisme
eram ambas usadas em relação ao imediato conhecimento interior do divino ou do
sobrenatural, sendo aparentemente tratadas quase como sinônimas na época. Desde
esse período, ambos os termos foram resgatados e postos novamente em uso, embora
alterações em suas associações tenham levado a um certo grau de confusão quanto
ao significado preciso, havendo alg u n s escritores sugerido que ambos eram apenas
maneiras diferentes de falar sobre um relacionamento pessoal autêntico com Deus,
ao passo que outros sugeriram que o misticismo deve ser entendido como um tipo
especial de espiritualidade, que enfatiza particularmente o aspecto de uma experiência
pessoal, direta e imediata com Deus. Muitos escritores atuais têm evitado o uso do
termo "misticismo", por acreditar que tenha se tornado um termo confuso e de
pouco utilidade. Portanto, preferiu-se o termo "espiritualidade" dentre muitos outros
que são encontrados nos documento.5 mais antigos, entre os quais se incluem os
termos "teologia mística", "teologia espiritual" e "misticismo."
A espiritualidade, com freqüência, é contraposta a um enfoque puramente
acadêmico, objetivo ou impessoal em relação à religião, que somente identifica e
enumera as principais crenças e práticas de uma religião, não tratando da forma
186 foNTES E MIÔTODOS

como os adeptos dessa religião experimentam e praticam sua fé. O termo resiste a
uma definição mais precisa, em parte devido•à variedade de sentidos com que é
empregado e em parte devido à controvérsia, existente na comunidade acâdêmica
especializada nessa área, quanto à forma como termo deva ser utilizado. Contudo,
fica claro que se entende a espiritualidade, de modo geral, como algo relacionado
a uma experiência com Deus e à transformação de vidas resultante,dessa experiência.
Assim, a espiritualidade está ligada ao viver uma experiência com Deus e à vida de
oração, assim como à ação daí derivada; no entanto, ao mesmo tempo, não pode
ser concebida isoladamente, desvinculada dos dogmas teológicos que representam
os fundamentos para essa vida.
Thomas Merton (1915-1968), um monge trapista que teve grande influência
sobre a espiritualidade moderna, no final do século X X , deixa claro esse ponto.
Ele afirma que existe um vínculo bastante próximo entre teologia e espiritualidade,
que deve ser declarado e reconhecido para o bem de ambas:
A contemplação, longe de opor-se à teologia, representa, na verdade, o resultado
natural de seu processo de aperfeiçoamento. Não devemos separar o estudo da
verdade revelada por Deus da experiê cia contemplativa dessa verdade, como se
fossem dois fatos completamente distintos. Ao contrário, ambos representam
simplesmente os dois lados da mesma moeda. A teologia dogmática e a mística,
ou a teologia e a espiritualidade, não devem ser postas em duas categorias
mutuamente excludentes, como se o misticismo fosse apenas para mulheres
piedosas e o estudo teológico voltado somente para homens práticos, porém,
lamentavelmente, carnais. Essa separação enganosa calvez seja a explicação para
muito do que, na verdade, está faltando tanto à teologia quanto à espiritualidade.
Ambas pertencem, contudo, uma à outra. A menos que estejam unidas, não há
fervor , nem vida, nem valor espiritual na teologia; assim como não há conteúdo,
nem sentido, nem um propósito seguro na vida contemplativa.
Merton, portanto, forja um vínculo entre as duas disciplinas e aponta que a
separação artificial de ambas apenas contribui para seu mútuo empobrecimento.
A o mesmo tempo em que existe um consenso em torno da idéia de que a
espiritualidade representa um aspecto importante da teologia cristã, em que uma
crescente atenção tem sido dedicada ao ensino e à pesquisa dessa disciplina nos
seminários cristãos, a questão sobre como exatamente se dá essa interação entre
teologia e espiritualidade tem sido objeto de intensa discussão, em décadas recentes.
Embora essa discussão esteja além do escopo deste livro, pode ser facilmente
encontrada em qualquer obra introdutória de boa qualidade, na área de espiri-
tualidade cristã.

A questão do prolegomena
Qualquer pessoa que esteja começando a estudar uma matéria nova enfrenta
o mesmo drama: Por onde começar? Parecem existir tantas maneiras de abordar
assun. os como a filosofia, as ciências naturais e a teologia que uma certa confusão
As preliminares 187

sobre esse ponto seja talvez inevitável. Para a teologia, a questão sobre o ponto
inicial de seu estudo tornou-se conhecida como a "questão do prolegomena." A
palavra grega prolegomena pode ser traduzida por "prefácio" - em outras palavras,
aquelas coisas que devem ser ditas antes de iniciar o estudo da teologia.
A questão sobre qual seja o ponto de partida a ser adotado é relevante não
somente para a teologia, mas também para uma série de outras matérias relacionadas
a ela. Um claro exemplo disso está na apologética, a disciplina que objetiva a
defesa argumentativa do cristianismo perante aqueles que não são cristãos. Por
exemplo, os apologistas do século II (escritores como Justino Mártir, por exemplo,
cuja preocupação apologética voltava-se à conquista de ouvintes sérios, pertencentes
ao grupo de pessoas mais cultas que se opunham ao cristianismo) fizeram um
esforço tremendo para encontrar experiências e crenças que fossem comuns a
cristãos e pagãos. Acreditavam que, partindo desse ponto, poderiam demonstrar
como o cristianismo havia se estruturado a partir dessas idéias e experiências
comuns, complementando-as.
Desde a época do Iluminismo, no entanto, a questão do prolegomena adquiriu
uma importância especial. Antes que a teologia pudesse analisar o conteúdo da fé
cristã, era necessário demonstrar, em primeiro lugar, como é possível que al g u ém
saiba algo sobre Deus. Discutir como é possível saber algo sobre Deus veio a se
tornar, no mínimo, tão importante quanto discutir o que sabemos sobre Deus.
Por outro lado, o fenômeno da crescente secularização, na Europa e nos Estados
Unidos, significava que os teólogos não mais poderiam assumir que suas audiências
tivessem qualquer simpatia pela fé cristã. Por conseguinte, muitos teólogos
consideraram de vital importância encontrar algum ponto de partida comum,
que possibilitasse aos pagãos perceberem a natureza da fé cristã.
Dentre essas abordagens, que procuraram ancorar a teologia cristã nas
experiências básicas da existência humana, as que são descritas a seguir apresentam
especial relevância.
F. D . E. Schleiermacher alegava que uma característica comum a toda
experiência humana era "o sentimento de absoluta dependência". A teologia cristã
expressava e interpretava essa emoção humana básica como "um sentimento de
dependência de Deus," relacionando-a às doutrinas cristãs do pecado e da salvação.
Paul Tillich desenvolveu um "método de correlação" (vide p. 140), fundamen-
tado em sua crença de que os seres humanos faziam certas "perguntas fundamentais"
de caráter existencial. "Ao empregar o método da correlação, a teologia sistemática
atua da seguinte forma: analisa a condição humana, a partir da qual as questões
existenciais surgem, demonstrando que os símbolos presentes na mensagem cristã
são as respostas para essas questões."
Karl Rahner chamou a atenção para a necessidade básica do ser humano de
transcender as limitações da natureza humana. Os seres humanos têm consciência
de haver sido criados para algo mais do que são agora, ou para algo maior do que
jamais poderiam esperar alcançar por suas próprias forças. A revelação cristã fornece
esse "algo mais" para o qual aponta a experiência humana.
188 FONTES E MÉTODOS

Entretanto, essas abordagens (em particular aquela criada por Schleiermacher


e seus adeptos posteriores) provocaram reações de hostilidade. A mais significativa
delas encontra-se na escola da neo-ortodoxia (vide pp. 144-145) , que protestava
contra aquilo que acreditava ser uma redução da teologia às necessidades humanas,
ou o aprisionamento da teologia dentro dos limites de alguma filosofia da existência
humana.
Barth declarou que a teologia cristã não era, em sentido al g u m , dependente da
filosofia humana, mas antes autônoma e auto-sustentável. Deus era perfeitamente
capaz de revelar a si mesmo, sem precisar da ajuda do ser humano. A palavra
prolegomena não deveria ser entendida como "as coisas que precisavam ser ditas
antes que a teologia se tornasse possível". Antes, deveria ser vista como "as coisas que
deveriam ser ditas em primeiro lugar em termos de teologia" - em outras palavras, a
doutrina da Palavra de Deus.
Portanto, há pouco consenso na teologia cristã quanto a essa questão. Tem
havido uma certa tentação no sentido de considerar que a filosofia seja, de alguma
forma, capaz de proporcionar uma base segura sobre a qual se possa construir a
teologia - demonstrando-se uma certa preferência em relação a Kant, Hegel e
Whitehea d. Isso significa, inevitavelmente, que a credibilidade devotada a essas
teologias está diretamente vinculada ao destino intelectual das filosofias às quais
estão ligadas.
Questões metodológicas têm dominad o a teologia moderna, ao menos em
razão do desafio proposto pelo Iluminismo, no sentido de que fossem estabelecidas
bases confiáveis para o conhecimento. No entanto, segundo a observação feita
por Jeffrey Stout, da Universidade de Princeton: " A preocupação metodológica é
como o ato de limpar a garganta, durante um discurso: só vai até o ponto em que
você começa a perder sua audiência". Assim, tem havido uma reação contra essa
preocupa ção metodoló gica contemp orânea, especialm ente em meio ao pós-
liberalismo (vide pp. 157-60). Escritores como Hans Frei, George Lindbeck e Ronald
Thieman n têm defendido que a fé cristã é como uma língua: ou você fala·ou não
fala. O cristianismo é visto como uma opção em um contexto pluralista, sem que
haja necessidade alg u m a do apelo a critérios universais ou a princípios arg u m entativos.
Para aqueles que se opõem ao cristianismo, essa fé representa nada mais do que algo
que se degenerou em uma espécie de fideísmo - isto é, um sistema que se justifica
por meio de seus parâmetros internos, sem que haja necessidade de ser compartilhado
ou aprovado pelos demais.

Compromisso e imparcialidade na teologia


Até que ponto os teólogos devem ser "comprom etidos" com a fé cristã?
Expressando essa questão de uma forma bastante direta: a teologia cristã pode ser
ensinada por alguém que não seja cristão? O compromisso com a fé cristã é um
'-requisito es.sencial para qualquer pessoa que queira ensinar ou estudar a teologia
. ;:),

.::.ssa.questão tem sido extensamente debatida dentro da tradição cristã.

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