Você está na página 1de 9

3 mensagem está, por sua vez, codiÍicada no Novo Testamento como

Escritura Sagrada. Todos os desênvolvimentos ulteriores se ba§eiam


PARA T]M MODELO FEMINISTA na revelação de Deus na Escritura, e a igreja verdadeira nunca se
desviou da tradição apostólica.2 Contudo, semelhante construção
DE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA ideológica dos primórdios primitivos cristãos não sepodemais aceitar
cientificamente e destrói teologicamente a auto-identidade de mulhe-
res cristãs que, segundo esse retrato retocado da evolução cristã
primitiva, foram membros mas não líderes dentro da igreja.
Os estudos histórico-críticos provaram que, esta compreensão
se uma reconstrução feminista da história não mais pode tomal historicista e unilateral da evolução primitiva cristá, é uma constru-
textos patriarcais pelõ seu valor de fachada, mas deve interpretáJos ção teológica posterior. Por isso, os exegetas tentaram substituí-la por
criticamente em pãrspectiva feminista, a noção de história como 'ío outros modelos históricos e quadros teóricos que possam tornar mais
que aconteceu realmente" torna-se problemática. Se bem que os i-+telrgívgl a diversidade de pensamento e vida no cristianismo pri-
estudiosos já abandonaram largamente essa noção, ela ainda domina mitivo. Mas, embora os exegetas concordem que Jesus não deixou um
na instruçáo religiosa, nos livros dogmáticos e nas aÍirmaç_ões eclesi- plano detalhados paraa organizaçáo daigreja eque aidade apostólica
ásticas. Aforça piicológica do fundamentalismo deriva-se da compre- está longe de ser "um só coração e uma só alma", variam considera-
ensão da Bíbiia como ielato acurado da vontade de Deus.lAssim, a velmente sua reconstrução da evolução real do cristianismo primitivo.
certezabíblica baseia-se não só numa compreensão teológica antiqua- Questões referentes à importância histórica dos doze, à instituição da
da e equivocada da revelação bíblica, mas também numa compreen- ceia eucarística e do batismo, à relação entre carisma e oÍício, à
sao hiiioricista equivocadà do que afinal é a Bíblia. Como um relato diferença entre "entusiasmo" apocalíptico e gnóstico, à justaposição
histórico do ministério de Jesus ou da vida das igrejas primitivas, os de paulinismo e catolicismo primitivo, ao tema de tradição apostólica
escritos bíblicos não nos contam como realmente ocorreram as coisas, e heresia, assim como também ao problema da autoridade e do
mas como se entendeu sua relevância religiosa. signiÍicado dos primórdios primitivos cristãos para os cristáos de hoje
Nossa compreensão dos primórdios primitivos cristãos costuma todas largamente discutidas e receberam diversas respostas.
ser monolíti.a. E"tá bastantó determinada pelos Atos dos Apóstolos, - sãoEssas discussões acadêmicas têm demonstrado que não existe
que desenha um movimento contínuo desde a comunidade primitiva umaúnicamaneira de conceber as origens do cristianismoprimitivo.a
de Jerusalém, fundada em Pentecostes até à missão universal de Mas à medida que essas discussões estáo limitadas ao círculo exotérico
Paulo, que tem o seu clímax com sua chegada em Roma, o centro de estudiosos, muitas mulheres são ainda vítimas de uma historiografia
político ão mundo greco-romano. As epÍstolas paulinas são entendi- e teologia monolíticas. Somente mediante não-abandono do trabalho
àas não tanto comofonteshistóricas querefletemuma situação cristã intelectual e insistência em discussão aberta de todos estes temas,
primitiva muito mais rica de aspectos e carregad.a de tensões, mas geralmente reservados aos peritos seja o estudioso ou o sacerdote
ãomo tratados teológicos que expõem e defendem a doutrina da -
justificação pela fé. 2. Ver, p.
ex., Miguens, Manuel, Church Ministries in New Testament Times, Christian
" A.o-prã"orão bíblico-historicista dos primórdios primitivos do Culture Pres, Arlington
- Va., 1976.
3. Ver esp. Brown, Ro,ymond E., Biblical Reflections on Crises Facing tàe Church, Paulist
cristianisào, ainda prevalece em muitos manuais e na consciência i19 Press, Nova York, 1975, para rejeigáo crítica desse conceito.
muitos -cristãos e te-ólogos. Segundo essa compreensáo, Jesus insti- 4.Verespecialmente a discussãoem estudos acadêmicos alemães:Lührmann,D., Erwâgungen
fruiü a igreja, ordenou os doze e determinou as formas institucionais zur Geschichte des Urchristentums, in: EvTh 32 (1972) 452-467; Blank, J., Probleme einer
Geschichte degUrchrist€ntums, in:UnaSanctaS0 (1975)26L-286;Paulsen, H.,ZwWissenschaÍL
da igTeja. os apóstolos continuaram a missão e a obra de Jesus, e sua von Urchristentum und der alten Kirche ein methodischer Versuch, in: ZNW 68 (1977)200-
-
230; Brox, N., Fragen zur Denkform der Kirchengeschichtswissenschaft, in: Zeitschrift fiir
L, Barr, James, T]ne Funtlomentalist Unclerstanding of Scripture, in: Concilium 138 (1980) Kirchengeschichte90 (L979) 7-22; e a obra de Bozmgartner, H. M., Ifuntinuitât und Geschichte:
70-74. Zur Kritik und Metakritk der historischen Vernunft, Suhrkamp, Frankfurt, 1972.

94 95
androcêntrica em nossa comum história. Uma re-criação intelectual
_,seremoscapazesdesuperarocaráterelitistadosestudosacadê. dos primórdios do cristianismo primitivo, que busque tornar inteligí-
micos e da igreja. vel o passado, deve parüir de uma historiografia androcêntrica que
Damesmaformaquet'odaboahistória'ahistóriadocristianismoseu não pode fazer justiça à informação de nossas fontes, ou seja, ao fato
pr#;t";-d"p""4" a"1*"ência de uma "visão unificadora"''Em
meia reitera os de que as mulheres foram agentes paúicipantes nas igrejas cristãs
e
liwo história e teoria social, Gordon Leff volta primitivas. Enfim, semelhantes quadros teóricos adequados à
.rliãrlãr p"". fãã niúria desta natureza: objetividade histórica historiografia feminista devem não apenas elucidar o que significou
íá, *"ri.te em "-.ratos ou dados ,,puros,,, mas na inter-relação entre a para as mulheres tornar-se membros e líderes ativos no cristianismo
do intérprete' Os
ft;r*';á" colhida d"s fo.rtet "ã ü.ao unificante umjúzo primitivo, mas também iluminar o significado histórico de envolvi-
historiadores cotetam ioaa documentação disponível, fazem mento ativo das mulheres nos primórdios do cristianismo primitivo.
tle um quadro razoâvel.
sobre o sêlluso ."-"ío ããã".ru*-rr" derrtro O recente interesse acadêmico pelo mundo social dos primórdios
desde a documentação como
i;,il; os historiadores raciocinam experiência'.Na tentativa de cristãos, é uma destas tentativas renovadas de encontrar modelos e
oposta a eventos acessíveis a nossa reconstrução histórica. Buscando as condições sociais e as pessoas
tornar o passado i"tãfigí"ã, o historiaãor deve ir o historiador
parl além dos
líderes do movimento cristáo primitivo, estes estudos buscam ir dos
eventos em ato d"':L;:.di"çãâ i"t"1"ttoal"'
Ao fazê-lo'
*atravessia do Rubicão por textos bíblicos a seus contextos sociais. Ao fazê-lo, eles continuam a
mostra deimediato p-ãr q"", por exem,plo, pesquisa do Sitz ím Leben de formas e escritos tradicionais, que têm
q-ue signiÍicou para César
César foi revelant" i.rr=á óàshridadã e o sido parte da história da pesquisa das tradições conduzidas pelos
deve ter um
í"", "o"temporâieos,,.6'para fazê-1o, o historiador que seja a um estudos do Novo Testamento nos últimos quatro decênios deste
"á".a- úti.o ã" r"iãráo"ia e deve construir ummodelo século.
Jo i"*po um modelo comparativo e ideal' Depois de quase sessenta anos em que se foca I i zaram predominante
temas teológico-querigmáticos, os estudos acadêmicos reassumiram
pergaminho ou nas ruínas de
... as letrae numa rocha ou num pedaço de na última década suas pesquisas do contexto e matriz social das
acadêmico não fornecem por
rima a*leia mediãud oo rro* traiado de um tradições e dos ensinamentos do cristianismo primitivo. Boa parte dos
que o historiador comcça o seu
si mesmos mais ao que o§ dad'os com estudos do Novo Testamento nos últimos cinqüenta anos buscou
seja' o que ele I s.ic I admite
--"i;-i * fato
trabalho; e, pt"ã f",a=ú" histórico' ou
totlo um aparato crítico e identificar os y_{rios gtupos e as várias tendências no cristianismo
ter sido o tic t t" de utilizar
"*o-
a" r"üçao, interpolaçáo erejeição-que depende p-rimitivo por seus sisteáas de credos e dópoiÀ aboidá:iããiffiíilõõ
interpretativo
de inferência ,pà"t a observaçáo, e iue, óm decorrência, jamais pode
"íJação, modelo doutrinal dualista de ortodoxia e heresia. Assim, por exemplo,
""-ã
ir além de alto eruu d" probabüdade'? N se reçonheceu que os escritos de Paulo ou os evangelhos, só se
poderiam entender quando se indagasse plenamente o seu Sitz im
Semelhanteindagaçáodemodelosteóricosequadrosheurísticos Leben, mas a crítica da redação tendia acaractertzar este em termos
participaçáo=qT
não deve, porém,;;"d'"t de vista a questão da de sistemas de credo das comunidades cristãs. $rgumentava-se, pois,
Po.sso, iddos os motlelôs que Paulo insistia na ordem criatural da participação das mulheres
mulheres no, p"i*ír&oúrimitivos cristãos.
na comunidade, ao passo que os seus "opositorei" em Corinto erem
*imlj*líÍ:ixílm:'"tt:
também da maneira com que sáo capááes aeintegrar
t##ã:ãJ,:üü:;::
estainÍormação,
"entusiastas do Espírito", ou tinham uma teologia "gnostizante" que
qégava as diferenças criaturais entre honiêm e mulher.
que transforme historiografia O estudo do 4q-undo social do cristianismoprimitivo busca substi-
;;; aã tuf sórte
úAr" "n"."g""ô tuir este modelo dualistá de sistemas opostos de credo, reconstruindo
S,Heinz,G.,DasProblemderKirchenent'stehúnginderileustschenpmtestantischenTheologie
19?4, frisa os pressupostos
des 20. Júrhuna"*, n 6ie;iil""*rd.ããsio,ti"n +, Grunewald, cristãos primitivos'
8. Para recensão da literaüura pau\na, cÍ. Ellis, F. Forla, Paul and his Opponents: Trende in
primórtlios
teológicos subjacentes às válas recorritruçO"r
de Research,in:iVeusner, J., ed.,Christianity,JundaismandOtherGreco-EomanCults: Studies for
Àüal thãotv' Douuledav' Nova York' 1971' p' 111' Morton Smith, Brill, Leiilen, 1975, 1264L1298.
6.Leff, Goritan,gi"t"tit"ã
7. Ib.' P. 14'
97
96
o assentamento sociossociológico das fontes e tradições cristãs primi- Inícios cristã.os primitiaos: os deserdad.os e os rnargino,is
tivas. Ao passo que âs abordagens de crÍtica das formas e da redação
focalizam a atenção nos ensinamentos e escritores cristãos primitivos Os estudos sociais dos inícios cristãos primitivosls utilizam lar-
construindo os contextos socioculturais do judaísmo e do helenismo gamente o tipo sociológico ou modelo abstrato de "seita", no sentido de
romano como backgrounds, estes estudos buscam desviar esta tornar inteligÍvel as origens do cristianismo primitivo. Parecem ter
focalízaçáo para a vida e o comportamento dos cristãos primitivos. alcançado um consenso de que o movimento de Jesus na Palestina é
Fazendo perguntas tais como: O que signiÍicava tornar-se cristã para melhor entendido como um grupo "sectário".
uma mulher judia ou para uma mulher ro_mana? que efeitos tinha
para suas relações sociais? que ruptura signifrcava com referência a Seguindo W. Stark, Robin Scroggs aplicou a tipologia da seita da
família ou o círculo de amigos de uma mulher? por que mulheres se maneira mais credível aos inícios do cristianismo primitivo para
juntavam ao grupo cristão primitivo?,e o conceito tradicional de mostrar que "a comunidade chamada à existência porJesus realiza as
cristianismo primitivo e o seu "background" cultural vêm abaixo. características essenciais da seita religiosa".la Pode-se mostrar que o
grupo deJesus realiza as sete características de uma seita.15 Começou
Torna-se necessário um novo quadro teórico, um quadro que possa
com um protesto (L) rejeitando a visão de realidade tida por evidente
captar a intêração dinâmica dos primórdios cristãos primitivos e seus
pelo "establishment" judeu (2). Como uma comunidade igualitária e
assentamentos sociológico-culturais.
não hierarquicamente organizada (3), oferecia amor e aceitacão a
Os estudiosos do mundo social do cristianismo estão, pois, em todos os que se lhe ajuntavam, especialmente os marginalizados (4).
busca de novos modelos heurísticos integrativos, não para estabelecer Como associação voluntária (5), o grupo de Jesus exigia total
uma "teoria de mestre da evolução cristã primitiva", mas para devotamento (6). IJma vez que nem todas as seitas são adventistas, o
conseguir um "incremento de imaginação histórica".lo Em recensão seu caráter apocalíptico mostra que o movimento de Jesus teve suas
de literatura recente sobre o tópico, John Gager recomendou distin- principais raízese seu principal apoio entre os deserdados e os pobres
guir entre o termo social enquanto "designa a sociedade e a ordem sofredores (7). Duas assunções metodológicas feitas por Scroggs são
social" e "a descrição dos dados sociais revelantes" por um lado, e o importantes: em primeiro lugar, ele náo distingue entre o Jesus
termo sociológico enquanto "a série completa de teorias e hipóteses histórico, os ouvintes do Jesus histórico e a comunidade mais primi-
explanatórias... referentes às explanações de fatos sociais" por outro tiva porque, falando sociologicamente, ambos os grupos são basica-
Iado.11 Embora essa distinção no nível prático venha abaixo, na mente o mesmo. Em segundo lugar, desenvolve o seu argumento em
reconstrução dá história cristã primitiva, como o documenta a re- termos de um grupo camponês antes que um grupo urbano empobre-
censão que Gagerfaz de Malherbe e Grant. Esposando a discussão de cido, porque a maioria das tre_dições sinóticas refletem um assenta-
seu próprio modelo teórico para "explicar" fatos sociais, a pessoa não mentoagrário. Por isso, Scrog§§ftisa que o termo seita náo deve ser
fornece uma descriçáo objetiva de dados sociais, mas simplesmente se enteídido como termo contrário a igreja, mas como termo contrário à
refreia da articulação de seu próprio quadro teórico e d.e interesses.l2 sociedade mais larga, o "mundo". Neste sentido, o movimento de
Jesus era um moümento contracultural.
9. Mas essas questões náo se costumam encontrar nas diversas propostas para areconstrução
social dos primórdios cristãos primitivos. Isso pode também ser devido ao inconsciente
androcentrismo dos modelos e arcabouços sociológicos. Ver esp.Smith, Dorothy, A Sociology for 13. Ver esp. os ensaios de recensáo de Srnità, J., Social Description ofEarly Christianity, in:
Women:TheLineofFaust,in:ThePrismasofSex,pp. 135-187;Crould,Meredith,TheNewSociology, Religious Studies Review 2 (1975) 19-26;Harrington, D. J., Sociological Concepts and the Early
in: Signs 5 (1980) 459-467; Epstein, Cynthio Fuclrs,Women in Sociological Analysis: New Church: A Decade of Research, in: Theological Studies 41 (1980) 181,-190; Scroggs, Eobin, The
Scholarship Versus Old Paradigms, in: Soundings 64 (1981) 485-498. Sociological Interpretation of the New Testament: The Present State of Research, in: NTS 26
L0.Meehs,Wayne,4-,TheSocialWordof Early Christianity, in: Bulletinofthe Council onthe (1980) 164-179; Rodd, Cyill 5., OnApplying a SociologicalTheoryto Biblical Stuües, in: JSOT
Study ofReligion 6 (1975) 5. 19, (1981) 95-106.
l1-. Gager, John G., Religious Studies reüew 5 (1979) L74-1.80.175. L4. Scroggs,8., The Earliest Christian Cmmunities as sectarian Movement, in: Neusner, J.,
L2.Yer Gewalt, Dietich, Neutestamentliche Exegese und Soziologie, in: EVTh 31 (1971) 97- Christianity, Judaism and Other Cults, 2.-23.
99; e os ensaios hermenêuticos emDallmayr, Fred.R., eMcCarthy, Thomas A., Understanding tS.Cf.Rudolph.Kurf, WesenundStruktur derSekte: Bemerkungenzum StandderDiskussion
and Social Inqüry, University of Notre Dame Pres, Nohe Dame, L977. in Religionswissenschafb und- soziologie, in: Kairos 2l (1979) 24L-254.

98' 99
Ao passo que a tipologia de Scroggs é um tanto generalizada, S. centros urbanos do mundo greco-romano.l8 Mas essa distinção torna-
R. Isenberg e John Gager tentaram independentemente especificar se a base da reconstrução social de Gerd Theissen.leO modelo socio-
o caráter sectário do grupo de Jesus como um movimento milenarista. Iógico de Theissen é fundamentalista e se apóia, para sua reconstrução
Isenberg propôs que os fariseus, os essênios e outros grupos na do movimento de Jesus, primariamente sobre análise conflitual. Mas
Palestina greco-romana estavam buscando acesso ao poder religioso aopasso que sua análise domovimento deJesus está"baseiadanuma
de várias formas, porque se sentiam bloqueados em seus meios, o teoria sociológica de conflito", ele advoga, para a reconstrução dos
*uma
inícios cristãos primitivos numa sociedade urbana helenista,
culto do templo ou da úorcí.16 Esses grupos milenaristas
quais o movimento de Jesus - entre os
se desenvolveram segundo o padrão teoria sociológica de integração". No assentamento helenista, a ênfase
-
seguinte: um sentido de privação, uma avaliaçáo concreta de suas principal se colocou na vida das comunidades locais, cujos membros
novas crenças sobre o poder religioso, o aparecimento de um profeta lÍderes pertenciam a "classes mais privilegiadas". Essas comunidades
milenarista durante este processo, e finalmente consolidação ou existiam em cidades e não estavam em oposição aos valores de sua
dissoluçáo. Segundo Isenberg, o Mestre de Justiça de Qumran, assim sociedade. "Patriarcalismo de amor" é a maior caracterização de sua
como também Jesus e Paulo, foram semelhantes profetas milenaristas atmosfera religioso-social.
que reclamavam poder religioso fora dos canais normais de poder no Jesus tinha"chamado à existênciaum úovimento de carismáticos
judaísmo. ambulantes", mas nâo fundou comunidades locais. Estes carismáticos
Igualmente, Gager diz que os inícios cristãos primitivos mostram ambulantes plasmaram as tradições de Jesus e o seu ethos radical.
os quatro traços de movimentos milenaristas: a promessa do céu na Caracterizam-se por não terem casa, não terem famflia, por renunci-
terra nb futuro imediato; a reversão e o fracasso da presente ordem arem à posse e por deixarem de se defender. Como os filósofos cínicos
social; a terrífica liberação de energia emocional em comportamento ambulantes, os carismáticos cristãos primitivos "parecem ter levado
extático; uma breve duração de vida do movimento; e, o que é mais uma existência vagabunda" e ter escolhido o papel de marginalizados.
importante, o papel central do líder ou profeta carismático. Sua A base organizatória e econômica, para este movimento de pregado-
ênfase sobre o profeta milenarista concede papel central para-.fgpus res itinerantes, era fornecida pelos simpatizantes locais que perrna-
e para o caráter apocalíptico de tradições cristãs primitivas. Por isso, neciam dentro das estruturas sociais do judaísmo.
Gager retém que o cristianismo primitivo era um.movimento de
EIes eram menos obviamente a incorporaçáo do novo elemento que tinha
deserdados e sem priviléglo. Ele harmoniza esta assunção com a
emergido dentro do cristianismo mais primitivo, e uma variedade de
observação de Plínio de que o cristianismo tinha atraído pessoas "de obrigações e laços os confundia na situação antiga. Eram antes os
todo nível social" mediante introduzir o conceito de "privação relati- carismáticos ambulantes que passaram adiante o quemais tarde haveria
va".17 A categoria de pessoas sem privilégios inclui, pois, também de tomar forma independente como crietianismo.20
pessoas "alienadas" e "descontentes", entre os quais estariam intelec-
tuais, mulheres, estrangeiros, provincianos ou antigos escravos, que Devem-se levantar alguns pontos críticos. Na interpretação de
não precisam ser economicamente pobres. Ao passo que Isenberg Theissen, os seguidores de Jesus não eram pobres, deserdados ou
situa o carátnr milenarista do movimento de Jesus na privação e na alienados, como pretenderam Scroggs e Gager. Ao invés, escolhiam
busca de poder religioso, Gager o localiza na busca de poder social. renunciar às suas posses, ao passo que aos simpatizantes locais, que
Contudo, Gager não distingue entre o movimento de Jesus na
lS.Vertambémos artigos derecensãodaobrade Gaget:Bortlett,D., JohnG. Gaget's'Kingdom
Palestina e as comunidades missionárias cristãs primitivas nos and Community': A Summary and Response, in: Zygon 13 (1978) L09-L22; Smith, J', Too Much
Kingdom,TooLittleCommunity,ib.,pp.l2S-130;eThacy,D., ATheologicalResponseto'Kingdom
1-.6.Isenberg, SheldanR., Millenarism in Greco-Roman Palestine, in: Religion 4 (1974) 26-46; and Communit/, ib., pp, 131-135.
PowerthroughTemple andTorahinGreco-RomanPalestine,in:Neusner, Christianity,Judaism
e: L9. Theissen, G., Sociology ofEarly Paleetinian Christianity, Fortrees, FiladéIfia, 1978; e a
and Other Calts, 2.24-52. coleção, que está sendo pubücada, de seue ensaios sobre Corinto, The Social Setting ofPauline
L7, Gager, John G., Kingdom and Communiüy: Itle Social Word of Early Christianity, Christianity: Essays on Corinth, Fortress, FiladéIfia, 1982.
Prentice-Hall, Englewood Cliffs-NJ, 1975, pp. 95s. Z}.Theisse4 Early Palestinian Chústianity, p. 8.

100 101
não o faziam, se atribuía status cristão "secundário". Contudo, tlma maram as tradições de Jesus. Sua pretensão de que o movimento
análise cuidadosa, feita por W. Stegemann, da base textual de cristão nos centros urbanos do mundo greco-romano é integrativo e
Thejssen mostrou que os seguidores mais primitivqs de Jesus náo não conÍlitivo precisa ser averiguado por análise sociológica que
escolhiamum status s.gcial diferente, "os marginalizados", mas viviam aplica a mesma análise conÍlitual à documentação sobre estas co-
um ethos religioso diferente.2l A imagem cínica dos discípulos de munidades. ----:--\
Jesus é mais tarde prevalente, e especialmente na interpretaçáo de 1. A análise de Meek dq"cfis-t-i-ani.srnopaulinoiparece indicar uma
Lucas. Sua rejeição de'Tamília e posses" era recompensada com uma ambigiiidade fundamental nas cartas paulinas: por um lado, a comu-
nova relação de parente, a comunidade (Mc L0,30). Não se deve deixar nidade cristãéentenüda como seitaescatológica, comforte senso dos
de ver que semelhante rejeição da famflia é para Q náo uma nonna confins do grupo, mas, poroutro lado, éuma"seita abertainteressada
ascéticá, mas urgente necessidade por causa do ódio que a confissáo em não ofeáder os de foramas atraí-Ios à suamens agem".zaÉquestão
de Jesus evocava (Mt 10,35). ainda aberta, portanto, seo movimentocristão primitivo urbano éum
O próprio !]qg-!gse:r catactertzaraantes os que apoiavam os caris- tipo diferente de seita, ou acentua diferentes aspectos do mesmo tipo,
máticos ambulaniós, boúo "aqueles que se encontravam às margeas ou está em transição de um tipo a outro. O seu caráter de protesto
da sociedade", ao passo que os transmissores das tradições de Jesus conflitual com referência ao *mundo" greco-romano não se pode
eram considerados como os "na camada mais baixa da sociedade'zz. eliminar, contudo, por definiçáo.
Mas no seu liwo ele os caracteriza exclusivamente em termos de "seu 2. A ubicação sociológica do grupo de Jesus deve suas classifica-
relacionamento complementar" com os carismáticos,z3para reter sua ções a Weber e TYoeltsch, embora ela modifique suas classifrcações.
distinção entre o radicalismo ético do movimento de Jesus e o Ademais , deve-se manter em vista quq seita ou -49ç[nÍÍjq4J-o mile4grisJa,
patriarcalismo de amorintegfativo das comunidades cristãs nomun- é uma ç_pssiÍiga-ção_eue descrey-e.re1açõep típicas e 4ão p3-$igulgr"gs
ào helenístico. Contudo, é pieciso frisar que esta diÍbiênçano-etlres entre socieclãde e religião. De mais a mais, Yinger inttiôoü'ôÀpõãàl-
primitivo cristão pode muitobem ser produzida pelaforma escolhida À mente três fraquezas do sistema desenvolvido por Troeltsch, e estas
por Theissen de análise sociológica (análise de conÍlito para a Pales- \, se devem ter em mente na reconstrugão dos primórdios cristãos
lina; integração para os centros helenísticos). Aliteratura apologética primitivos. Ele argumenta que uma tipologia dicotômica não permite
primitiva cristã, assim como também ataques pagáos a cristãos ainda as muitas misturas e nuances do mundo real. Igreja e seita não se
parecem perceber a relação do cristianismo primitivo com sua socie- deveria entender, pois, como opostas, mas como pontos de limites
ãade em termos de conflito, mesmo durante o século segundo. num contínuo com pontos intermediários entre elas. Além disso,
Troeltsch não discutiu adequadamente as condições em que vários
convergem pa classiÍicação sociológica_dos-primórdios cristãos mais tipos de organizações religiosas podiam mais provavelmente ocorrer.
primitivos nà Patestirra;cOmo umtipo de movimento sectário "agres- EnÍim, para descrever a série completa dos dados, devem-se acrescen-
ãivo', "rôvoiricionaiiô"ou milenarista. Contudo, somente Gager inclui tar três critérios: (a) o grau em que o grupo religioso é inclusivo de
as comunidades cristãs missionárias mais primitivas nesta descrição, membros da sociedadei (b) a extensão em que o grupo aceita valores
ao passo que Scroggs não as discute, e Theissen retém que elas eram e estruturas da sociedade; e (c) o contexto em que uma organizaçáo
estruturalmente múto diferentes dos radicais itinerantes que plas- integra numerosas unidades e cria uma burocracia.26
5 3. As três análises do movimento de Jesuq pa_rqgem subliú_ar o
21. stegemann, w., \lYandenadikalismus im urdrristenhrm? Historisdre und theologische -,t caráter afamiliar ou antifafriliar dos grupos c"istãos mais primitivos.
Auseinandersetaungmit einer interegsantes Thes e,it:Schottroff,W. eStegemonn,l{., Der Gott
der Kleinen Leute: §ozialgeschichtlidre Bibelauslegung, vol. 2, Neues Testament, Kaiser,
Munique, 1979, pp. 94-120. 24.Meeks,Wayne,4-,SinceThenYouNeerlto Go OutoftheWorld: Group BoundariesinEraly
22. Th"itt"o,- G,, Itinerant radicalism: The Tradition of Jesus saúngs from the Perspective Christianity, in:Ryan,T.J,,ed,, CriticalHistoryandBiblicalFaith: NewTeetamenüPerspectives,
ofthesocioloryofliterature,in;GothDatd,N. K,ewire,A.c.,TheBibelandLiberation: Poütical College Tlreology Society, Villanova
- Pa., 1979, pp.4-29t22.
and Social Hermeneutics, Radical Religion Reader, Berkeley, 1976, pp. 84-93:89. 2í.Yinger, J. Miítoz, The Scientific Study of Religion, Macmillan, Nova York, 1970, pp. 251-
23. Theissen, Early Palestinian Christianity' p. 22. 28L:257.

702 103
\
\

de "heresias". Parece reter que sua práxis não continuou (pelo menos
Ç Parece que este aspecto fornece um ponto útil de entrada para a neste ponto) o ethos milenarista do movimento cristão mais primitivo,
análise do papel de mulheres neste movimento. Contudo, embora embora em capítulo posterior ele rejeite a visão tgotógt91 tradicional
"
todos os estudiosos se interessem, de uma forma ou de outra, pela de heresia como desvio do ethos ortodôxo cristãô.
questão sobre que aspecto tornar-se e ser cristão (comum) no século Ao discutir a constituição social do cristianismo primitivo Gager
primeiro, nenhum deles levanta a questão sobre que aspecto tinha aceita, porém, o consenso entre os clássicos sobre a questão social que
para uma mulher na Palestina, ou para uma mulher judia em rá contrária a esta assunção de expectativa de vida breve para a seita.
Corinto, ou para uma rnulher gentia na Galácia, juntar-se ao movi- Este consenso retém que, por um lado, "por mais de duzentos anos o
mento cristão prirnitivo. cristianismo foi essencialmente ummovimento no meiódos priv-ilegi-
ados'i ô, por óutro lado,'isuâ átraçâóêntre estes grupos dependeu de
considerações quer sociais quer ideológi.qu"." Assim, as condições .,
Consolidaçã,o e inatitucionalizaçã.o: Patriarcalismo d.e annor sociais e a atração do cristianismo primitivo corno protexto sectário
contra a ordem social existente não mudaram por mais de duzentos
Embora sociólogos e antropólogos difiram largamente em sua anos.
classiÍicação e descrição do tipo sectário, concordamvirtualmente que Passando de uma análise milenarista para uma análise
um breve tempo de vida é inerente ao tipo sectário e ao movimento werberiana, Gager levanta a questão da consolidação e do sucesso
milenário. Contudo, não é bastante claro porque alguns movimentos do cristianismo. De início reafirma que o desenvolvimento do cristi-
rÍúlenaristas desaparecem completamente depois de sua prlmeira anismo primitivo não se conforma bem com o de um movimento
expansão de entusiasmo, ao paÀso que outros persistem e vivem de sectário milenarista, visto que suas tendências antinomistas e
difeíentes formas. Gager aÍirma, por isso, categoricamente que o carismáticas persistiram por um tempo bastante longo. Ele observa
cristianismo sobreviveu, mas não como um culto milenarista,26 e que a consolidação de oÍício e estruturas ocorreu somente na segunda
pergunta: "O que aconteceu de errado com o cristianismo primitivo, metade do primeiro século, e mesmo, então, teve resistência ativa de
de tal sorte que ele náo apenas sobreviveu à falha de suas profecias muitas pessoas. Somente nos inícios do século segundo, encontramos
iniciais mas o fez de maneira espetacular?"2? escritores cristãos primitivos insistindo em ofício local estruturado
As implicações hermenêuticas deste julgamento.sociológico são (veja as Pastorais, Inácio, I Clemente). Contudo, ele não discute se
explicitadas em sua discussão de GI3,28. Ele 1ê esta aÍirmaçáo como estes escritos são descritivos do oÍício eclesiástico ou se sáo textos
"o protótipo de ética milenarista" e continua a explicar: prescritivos que defendem um só tipo de liderança sobre os outros.
A liderança primária dos profetas e sua eliminação deve ser inda-
r'" À luz da postura radical de Paulo, tal como Be expressa nesta e noutras gada aqui.
passagens, pode parecer irôrüô que a linha principal do cristianismo ComWeber, Gager retém que a sobrevivência de toda comunidade
tenha enfim escolhido excluir as mulheres de todos os papéis cultuais religiosa está na "transição de nenhuma regra a novas regras" e nos
importantes e tenha citado no processo com freqüência á autoridade de pede que aceitemos isso como "uma lei fundamental". Por isso, não
Paulo. Mas dizer que as igrejas falharam em traduzir o seu programa na
podemos "lamentar a rotinização do entúsiasmo primitivo, que carac-
realidade é insistir no óbvio. Pois movimentos milenaristas falham por
definiçáo, e os que sobrevivemfazem-no sob circunstâncias essencialmente terizatodos os movimentos carismáticos ou milenaristas na segunda
novas.28 geração e às vezes antes".3O Ademais, rotinização de carisma não
signif;ca sua eliminação. Na medida em que os inícios primitivos
Ele concede gue grupos cristãos, como o montanismo e o cristãos carismáticos são codificados no corpo de Escritura, as ten-
marcionismo, "levaram avante o ideal primitivo", mas rotula a estes tativas de renovar a igreja institucional pode apelar à memória
26. Goger, Kingdom and Communiüy, p.21. 29.1b., p.96.
27. Ib., p.37. 30.1ó., p. 67.
28. Iá., p.35.

105
L04
amor ofereceu um padrão integrador diverso: o igualdade básica um atraído poderosamente pelo cristianismo, como eu, considerará isso
como uma façanha.38
interna de todos "em Cristo", sendo mantidas as diferenças e hierar-
quias sociais básicas na ordem poiítica e ec1esia1.36
Concluindo: O modelo sociológico dominante para a reconstrução
Theissen resume sua visão do desenvolvimento cristáo primitivo: dos primórdios cristãos primitivos explica o processo de gradual
Se alguém acompanha a transmissão dos ditos de Jesus no cristianismo
patriarcali zaçáo eclesial, que acarreta o desenvolvimento historica-
primitivo, três formas sociais da fé cristã primitiva ficam manifestas: mente necessário do carisma ao ofício, do paulinismo ao catolicismo
radjçalismo itinerante, patriarcalismo de amor, e radicalismo gnóstico. primitivo, do ethos radical milenarista a um "establishmenf,'cristão
Nelas sáo vistos os três tipos cujo desenvolvimento Tloeltsch acompanha privilegiado, do movimento radical de Jesus dentro do judaísmo a um
por toda a históiiá do cristianismo: p-eita, igreja estabelecida e patriarcalismo de amor integrativo dentro das comunidades urbanas
espiritualismo. O ethos do radicaiismo itinerante repetidamente viera à henelistas, das estruturas carismáticas igualitárias do inÍcio e a
vida em movimentos do tipo de seitas tais como o.montanismo, ascetismo ordem hierárquica da igreja constantiniana. Diversamente do modelo
itinerante sírio, os monges mendicantes da idade média e a ala esquerda de ortodoxia-heresia, este quadro interpretativo *êg justiÍica o pro-
da reforma" O radicalismo gnóstico expressou-se periodicamente em
grupos indiüdualistas e místicos dentro e fora da igreja. Mas devemos
cesso de p_atriarcalizaçáo da igreja primitiva por razões têoló-gicas,
agradecer ao patriarcalismo de amor pela instituição permanente da mas arguúenta em favor dele em termos de fatores sociológicos e
igreja. Com êxito e sabedoria ele temperou o radicalismo cristão primitivo políticos.
suficientemente, de tal sorte que a fé cristá se tornou um estilo de vida que
pôde ser praticado coletivamente.sT
Aaaliaçã.o crítieo
Ele concede que estepatriarcalismo de amorfoi representado com
mais violência do que o amor para com os que discordavam; no en- Uma avaliação crítica d.as reconstruções sociológicas da história
tanto, ele o declara uma necessidade social e histórica para a sobre- cristã primitiva precisa apontar três problemas metodológicos.
vivência do cristianismo. Expressando-o de maneira cruel: A igeja" 1. Ao reco,nstruir o movimento de Jesus, os estudiosos parecem
não está construída sobre profetas e apóstolos, que como carismáticos desenvolver o modelo heurístico de movimento de "seita ou
peitencem à tradição "radical", mas sobre o patriarcalismo de amor, milenarismo" sobre e contra "o mundo" e a cultura total, ao passo que
ou seja, n-as costas de mulheres, esc avos e das classes inferiores. Não em sua descrição da consolidação do movimento cristáo primitivo,
só a histórià é escrita pelos ganhadores, mas é também feita por eles. parece que avulta generosamente o modelo de seita-igreja. Semelhante
O juízo de Theissãn é rãpetido por Elaine Pagels, que lolaHza a desvio teórico pode ser justificado, mas não é refletido criticamente.
luta entre os gnósticos e os ortodoxos, sociologicamente, como uma Em recensão dos resultados das reconstruções sociológicas de
luta entre "aquelas pessoas que indagam sem descanso e que fizeram Theissen, Leander Keck propôs, por isso, inserir a noção de ethos na
um caminho solitário de autodescoberta, e o arcabouço institucional discussão. Ele defrne ethos como'(termogestdltico, reunindo em si as
que ofereceu à grande maioria das pessoas sanção religiosa e orien- práticas e hábitos, assunções, problemas, valores e esperanças do
tação ética para suas vidas diárias". Se bem que difira de Theissen no estilo de vida de uma comunidade".se Sugere, pois, que devemos
seu modelo heurÍstico sociológico, está de acordo com sua avaliação: reconceitualizar nossa compreensão do "background" e "influências"
culturais do cristianismo primitivo.aoPor exemplo, a maioria dos li-
Se o cristianismo se mantivesse multiforme, poderia ter desaparecido da vros sobre as mulheres no cristianismo primitivo discutem num
história, juntamente com dúzias de cultos religiosos rivais da antiguidade. primeiro capÍtulo o "background" ou contexio cultural dos primórdios
Creio que devemos a sobrevivência da tradição cristá à estrutura
orgarizatírra e teológica que a igreja emergente desenvolveu. Qualquer 38. Pagels, Elaine,The Gnostic Gospels, Random House, Nova York, 1979, p. L42,
l9,Keck,Leond,erE, Ethos On the of Early Christianians, in: JAAR 42(1974)435-4522440.
36.Ib.,p.272. 40. Kech,.L, E, Ethos and Ethics in the New Testamert,in:Gaffncy,Jamcs, org., Essays in
37 . Theissen, Itineranü Eadicalism, p. 91. Moraliüy and Etlics, Paulist Press, Nova York, pp. 29-49:33.

108 109
cristãos primitivos, apontando o status e o papel das mulheres na É preciso perguntar se a existência de discípulas mulheres
itinerantes de Jesus pode-se explicar em referência à situação rural
Grécia, no helenismo, em Roma ou no judaísmo. Fazem-no a fim de
da Palestina, se essa existência pressupõe abandonar o etos cultual
mostrar que, se bem que o slgtus das mulheres cristãs primitivas
delineado por Neusner, ou se se deve a uma interação de sociedade
estivesse condicionado patriarcalmente, era contudo muito melhor do
que o das mulheres na Grécia ou judias.
rural e de um etos não-cultual plasmado por Jesus e seus seguidores.
Levantar essa questão leva, de mais a mais, a uma redefinição do
Pensando em termos do ethos de um grupo, Keck sugere, nos desvio social que ocorreu entre Jesus e Paulo" Parece que este desvio
Ievaria não a perguntar pelas influências e pelo "background" cultural não se deveria localizar na oposição entre meio rural e cidade, entre
em grupos cristãos primitivo$, mas a levantar a questão até que ponto aldeias rurais e centros urbanos, mas deveria, ao invés, ser identificado
os pregadores primitivos cristãos se impunham ao ethos do povo. O como um desvio em horizontes culturais.
ethos helenista já estava em existência e o ethos cristão emergente era Ao passo que o ethos de reforma de Jesusrse articula no conte;to ,
àlemento estranho. A esta altura, Keck parece abandonar a distinção de sociedade, cultura e religião judaicas, o de Pâulô se articula no
entre ethos e cultura que fizera em artigo anterior. Contudo, parece contexto do helenismo romano e tem anseios missionários. A interação
crucial definira interação entre o ethos de grupos emergentes e o ethos entre cultura e subcultura, ethos dominante e ethos emergente, é,
da cultura estabelecida. Em outros termos, uma vez que os cristãos portanto, muito diferente para Jesus e Paulo. Essa interaçáo produ-
não depunham completamente o seu arcabouço de mentalidade cultu- ziu diferentes formas de estilo de vida cristã (ou ethos) não apenas
ral em sua conversão, deviam integrá-la com a nova identidade dentro do judaísmo como também nos contextos greco-romanôs. Ao
pessoal e de grupo que é plasmada pelo ethos do grupo. usar a categoria analítica, proposta por Keck, de ethos, é necessário
,
Contrapondo Jesus e Paulo, Keck tenta mostrar como estas duas cuidado para não deixá-lo degenerar no conceito teórico uniÍicante de
pessoas plasmaram o ethos de duas comunidades cristãs bastante umcentro devidaoperativo da análise de sociologia do conhecimento.
diferentes. Jesuô'buscou renovar e reformar uma comunidade velha, O termo qtilo de uidaparece estar menos sujeito a semelhante com-
ao passo que Paulo estava nq processo de criar uma nova. Por isso, a preensão equivocada, pois que pode ser concebido não só em termos
mensagem de "Jesus" não se impunha no ethos de seus ouvintes da de uma pluralidade de visões integrativas do mundo, mas também em
mesma forma que o fazia o evangelho de Paulo. "Jesus tentava termos da real vida e práxis dos cristãos primitivos. As diferenças
pur!.flcq um ethos, Paulo tentava plasmar um novo", que, depois de culturais entre, por exemplo, Ásia Menor, Síria ou Roma e sua
Paulo, tornou-se gradualmente a característica do ethos cristão.alComo interação com o movimento cristão emergente geraram diferentes
piofeta, Jesus reformava o judaísmo, ao passo que Paulo fundava a estilos de vida comunitários.
igreja cristã. 2. A aÍirmação de "necessidade histórica" e "sucesso" são catego-
Mas, metodicamente, a proposta de Keck não distingue suficien- rias de abordagem derivadas de nossa própria experiência. Seme-
temente entre diferentes estllos de vida cristã, mas fala do ethos dos thante abordagem equipara avaliação sociológica com teológica. Pa-
cristãos primitivos. Ao fazer assim, não deixa espaço para o ethos de rece que nestes estudos o conceito sociológico de "sucesso" tornou-se
o ponto deArquimedes de avaliações teológicas. O ingrediente essen-
missionários e comunidades pré- ou não-paulinos, e tambémpara os
diversos assentamentos das tradições de Jesus. Por um lado, 2Cor cial de semelhante sucesso define-se diferentemente por diferentes
parece indicar que os opositores de Paulo, os assim chamados super- estudiosos mas ainda monoliticamente. Retêm implicitamente que,
§ de ponto de vista político-sociológico,'a patriarcalizaçáo gradual do
apóstolos, também viviam os seus estilos de vida itinerante nas y§
movimento cristáo primitivo era inevitável. Se é que as comunidades
cidades; mas, por outro lado, as tradições de Jesus foram provavel- § cristás deviam crescer, desenvolver-se e sobreviver historicamente,
mente escritas em centros urbanos para gente das cidades. Ademais, §
deviam ter adatado e assumido as estruturas institucionais patriar-
Keck não indaga se a reforma deJesus dojudaÍsmo eratão radical em
cais de sua sociedade.
suas implicações que gerou a articulacão de um novo ethos.
Está implicado que a institucionalização do movimento cristão
41. Ib., pp. 36-37.
primitivo igualitário-carismático devia levar à patriarcalização das

110
t 111
funções de liderança eclesial ou seja, à exclusão de mulheres de LJma vez que semelhante r;rodelo interpretativo pressupõe e está ba-
cargo eclesiástico ou à redução-de suas posições a posições suÉordina- seado na igualdade detodos os criàtãos, poderia chamar-se femil4sta,
das, femininas e marginais. Quanto mais o movimento cristão primi- g. Os estudos do mundo social do cristianismo primitíü õ-p."ga
tivo se tornouinstitucionalizado, tantomais mulheres cristãs deüam um estilo de vida afamiliar e antifamiliar, como o conceito-chave
ser excluÍdas de liderança e oficio eclesiásticos. Elas eram (elegadas ,. analítico para o movimento d.e Jesus, e o patriarcalismo como o
a grupos marginais sem força, ou tinham de se conformar com os conceito-chave analítico para as comunidades cristãs primitivas no
estereótipos femininos da cultura patriarcal. Por exemplo, o ofício mundo greco-romano. Mas não ocorreu nenhuma análise crítica ou
patrístlco de viúva e diaconisa devia limitar-se ao serviço de mulhe- reflexão sistemática sobre estes conceitos. Uma avaliação qrítica -
res, e finalmente desapareceu da história. De mais a mais, essâs" feminista deve, pois, frisar qge a patriarcalizaçáo progressiva de
funções de liderança não mais podiam ser exercidas por todas as eertos segmentos do mõvimento cristão primitivo merece ulieriõr
mulheres, mas somente por aquelas que superaram sua feminilidade indagacão. A delineaçáo histórico-socioiógica da gradüal
escolhendo pennanecer virgens. patriarcalização do cristianismo primitivo, que teve diferentes passos
Essa abordagem do desenvolvimento cristão primitivo parece e formas em diferentes lugares e gmpos, não prova a necessidade
descrever acuradamente as conseqüências e os acidentes da histórica e a justeza teológica de semelhante evolução: rião reclama
patriarcalizaçáo gradual da igreja cristã. Contudo, ela não reflete justifrcação teológica mas avaliação teológica feminista.
sobre suas próprias pressuposições teológicas androcêntricas, pois Essaavaliação teoló_gica feminista dos dinamismos patriarc alizan-
deixa devero fato de que ahistória do cristianismo primitivo é escrita tes presentes na história cristã primitiva tornou-se ainda mais com-
desde a perspectiva dos ganhadores históricos. Em sua maior parte, plexa ao se qoastatar que a história crff primitiva não pode se equi-
a história e a teologia cristãs oÍiciais refletem os segmentos da igyeja, parar a priori com a cultura patriar-çl.dominante, mas é, ao invés, a
que venceram neste processo de patriarcaliÍação e o legitimaram de um grupo emergente não ainda reconhecido pela sociedade e reli-
teologicamente com a formulação do cânon. A medida que o modelo giáo dominantes. Um rgqjelo--tcóripo para reconstruir a história cristá
polí_tico-sociológico de abordagem apresenta a eliminação das mulherep primitiva de mulheres deve, pois, fazerjusiiça ao fato de que as mulhe' \
de ofício eclesiástico e sua marginalizaçáo numa igreja patriarcal res cristãs primitivas como mulheres faziam parte de um grupo su!-
como uma necessidade histórica, justifica o processo de institucio- merso, econ'Lo cristã,s faziamparte de um grupo emergente que ainda"
nalizaçáo patriarcal como a forma sociológica de igreja unicamente não era reconhecido pela sociedade e cultura patriarcais dominantes.
possível e historicamente viável.a2
Tanto o modelo teológico androcêntrico como os rpodelos soci*,oló-
gicos patriarcais, para reconstruir a vida e a comunidade primitivas O problemo dohietória d.as mulheres
cristãs, pressupõe que o processo da patriarcalízaçáo da igreja era
historicamente inevitável. Retêm que teologia e práxis primitivas Na década passada, mulheres historiadoras aúicularam o pro-
cristás, que reconheciam mulheres como cristãos e discípulos iguais, blema teórico de como ir do texto androcêntrico a contexto histórico e
, .1., eramou"heréticas"ou"carismáticas",e,emconseqüência,não viáveis como escrever introduzindo as mulheres na história.$ Estudiosas da
teológica e historicamente. Nenhum destes modelos podem conceber
43. Ver, p. ex,,Bcnncr,LoisW.,Writing,üIomen's History, lll,l'Raab, T. K e&otfurg,.B. L, the
uma igreja cristá em que mulheres sejam iguais a varões. Por isso, é FamilyinHistory, Haraer& Row, NovaYork, L97l;Carrol,BercníceA-, org.,übnrat:rngWomen's
metodologicamente necessário desafrar esses modelos interpretativos, History:TheoreticalandCriticalEssays, Universityof[IünoisPress, Urbana, 1976:.Dauís,Natalie
para reconstruir o cristianismo primitivo e buscar novo modelo que Zenon,Woaen'a HistoryinTransition, in: FeminigtStudies 3 (1976) 83-103;Eorabotham, Sheila,
possa integrar tanto as tradições igualitárias como as tradições Hidden from History: Recliscovering Women in History from the lTth Century to the Present,
Random llouse, Nova York, 1976, esp. a introdução para a eilição americana, pp. x-:rxxxüi; SÉlor,
patriarcais "heréticas" e "ortodoxas" em sua perspectiva própria. Kathryn,Forul*velsofWomen'sHistory,in:McGuigan, D, G., org.,NewBesearchonWomen,vol.
3, University of Michigan Press, Ann Arbor, 1977, pp. ?-L0;Iewis, Janz, Wonen Inst and Found:
42. Ver também meu artigo: lfou are not to be called Father': Early Christian History in a The ImpactofFeminismonHistory,i*Spendcr, Dalc, otg,,Merfe SüualiesModified: The Impact
Feminist Perspective, in: Gross Currents 39 (1979) 301-323: esp.312-315. of Feminism on tàe Academic Disciplines, Pergamon Preas, Oxford/l.Iova York, 1981, pp. 73-82.

113
!t2

Você também pode gostar