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ANTOLOGIA
DOS
SANTOS PADRES
Paginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos
4? e d iç ã o (revista)
PREFACIO
O A u to r
IN TR O D U Ç Ã O
OS PADRES DA IGREJA
1 Cf. B. Stu der , em Mysterium sdutis, tr., Ed. Vozes, 1/3, p. 90.
2 Commonitorwm, c. 3 ( “magistri probabiles*); cf. c. 27 ( “beati Patres”): P.L.
50, 641, 676.
3 Obra póstuma, o De locis apareceu em Salamanca em 1563 e valeu a M.
Cano o título de “oai da metodoloeia teolóeica”.
10 INTRODUÇÃO
4 DS 1507; 3007.
5 DS 3831.
6 DS, Ind.: Augustinus.
OS PADRES DA IG REJA 11
I. COLEÇÕES
M ig n e , Patrologiae Cursus Completus\ Série latina (P.L .); série grega (P.G .)
Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (CSEL): publicação da Academia de
Ciências de Viena, 186 6 ...
Die grieschischen christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte: publicação
da Academia de Ciências de Berlim, 1 8 9 7 ... (GCS)
Corpus Christianorum, edição da Abadia de St. Peter, em Steenbrugge, 1 9 5 3 ...
(CCL: série latina; CCG: série grega)
Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, Louvain, 1 9 0 3 ... (CSCO)
Bibliothek der Kirchenväter, Munique, 1 9 3 1 ...
Sources Chrêtiennes, Paris, 1 9 4 1 ... (S.C.): cerca de 200 volumes aparecidos, geral
mente em edição bilíngue (original e trad. francesa)
Na “Biblioteca de Autores Cristianos” (BAC) têm sido editados muitos volumes
com obras de Padres, com tradução espanhola
Ancient Christian Writers, trad. ingl., ed. Quasten e Plumpe, Washington (A .CW .)
Etc.
II. FLORILÉGIOS
Rouet de Tournel, Enchiridion Patristicum, 1965 (23* ed.)
R o uêt de J o u r n e l e D u t il l e u l , Enchiridion Asceticum, 1958 (5* ed.)
C. K ir c h , Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae, 1960 (8; ed.)
R. S ierra B ravo, Doctrina social y económica de los Padres de la Iglesia. Colección
general de documentos y textos, Madri, 1967
A. H am m a n , Guia practica de los Padres de la Iglesia, tr., Buenos Aires, 1969
Etc.
J. V ives , Los Padres de la Iglesia (seleção até Sto. Atanásio), Barcelona, 1971
D. C asagrande , Enchiridion Marianum Biblicum Patristicum,.- Roma, 1974
S. A lvarez C ampos , Corpus Marianum Patristicum, Burgos, 1? vol., 1970
A. H e il m a n n -H. K raft , La teologia dei Padri. Testi dei Padri latini, greci, orientali,
scelti e ordinati per temi, tr. ital., Roma, 1975, 5 vols.
III. PATROLQGIAS
F. C ayré, Patrologie et Histoire de la Théologie, Paris, 1947, 3 vols.
J. Q u asten , Patrologia, tr. ital,, Ed. Marietti, 3 vols. (o 3? saiu em 1978); em tr.
esp., BAC, só saíram os 2 primeiros vols.
B. A lta ner e A. St u ib e r , Patrologia, tr. bras., Edições Paulinas, S. Paulo, 1972.
3 T t 3,1.
4 D t 32,15.
5 Is 3,5.
CARTA AOS 'CORINTIOS 19
7 T t 3,1.
8 Gn 1,26s.
9 Gn 1,28.
CARTA AOS CORÍNTIOS 21
ia SI 33,1.
CARTA AOS CORÍNTIOS 25
sacia os famintos,
liberta os prisioneiros,
reergue os débeis
encoraja os pusilânimes!
Que todos os povos te reconheçam
como único Deus,
a Jesus Cristo como teu Filho,
a nós como teu povo e as ovelhas de teu rebanho.
Nm 16,22.
DIDAQUÉ (OU DOUTRINA) DOS DOZE APÓSTOLOS
1 O texto grego acha-se editado, por exemplo, por J. P. Audet, La Didachè. Ins-
tructions des Apôtres, Paris, 1958.
30 DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS
Mas também foi dito, sobre este ponto: molhe-se de suor a es
mola nas tuas mãos, até que saibas a quem a dás.
V II
IX
2 M t 7,6.
3 Maranathá: invocação, em aramaico, significando “Senhor, vem!” (cf. ICor
16,22).
32 DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS
X IV
XV
4 Cf. Ml 1,11,
SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA
( t c. de 110).
Inácio foi em Antioquia o 3? Bispo. Seus escritos indicam ter conhecido pes
soalmente os apóstolos s. Paulo e s. João. Cerca do ano 110, sob o imperador Trajano,
foi preso como cristão e conduzido a Roma para ser julgado. De caminho, ao aportar
em Esmirna e Trôade, dirigiu cartas às comunidades cristãs de Roma, £feso, Magnésia,
Trales, Filadélfia e Esmirna, bem como ao bispo são Policarpo. Em Roma consta ter
sido martirizado no Coliseu, conforme era seu vivo desejo.
Suas Cartas são consideradas jóias da literatura cristã mais antiga. Caracteriza-as
uma ardente piedade para com a pessoa de Jesus Cristo, Deus e homem, cuja carne e
sangue são, na eucaristia, remédio de imortalidade. Na Carta aos esmirnenses aparece,
pela primeira vez, a expressão “Igreja católica". Para santo Inácio, o bispo é, na igre
ja local, o centro da ortodoxia e o ministro dos sacramentos. A Igreja de Roma é a
que tem no mundo “a presidência da caridade".
Texto bilíngüe em BAC 65, S.C. 10.
5 lTs 5,17.
6 Cl 1,23. _ . „
7 Por Éfeso, encruzilhada no caminho do Oriente a Roma, tinham necessaria
mente que passar os que iam dar testemunho de Cristo em Roma, sendo assim
levados para Deus.
CARTA. AOS EFÉSlOS 37
que quis tudo o que existe, segundo a caridade de Jesus Cristo, nosso
Deus; à Igreja que preside, na região dos romanos, digna de Deus, ve
nerável, bem-aventurada, louvável, digna de triunfo; a essa Igreja pura,
posta na presidência da caridade, seguidora da lei de Cristo e
adornada com o nome de Deus, — saúde, em nome de Jesus Cristo,
Filho do Pai. Aos que aderem pela carne e pelo espírito a todo man
damento do Senhor, a vós que vos tornastes definitivamente repletos
com a graça de Deus e purificados de todo elemento estranho, desejo
uma alegria abundante e santa em Jesus Cristo nosso Deus.
À força de orações, alcancei a graça de ver vossas santas 55
faces. E recebi mesmo mais do que pedira pois, acorrentado no
Cristo, tenho a esperança de ir saudar-vos, se a vontade divina
me der a graça de chegar ao fim. O começo está bem orientado;
possa eu obter a graça de entrar sem impedimento na posse de mi
nha herança.
Temo porém que a vossa caridade me seja prejudiciall. Pois, se
para vós é fácil fazer o que quiserdes (interceder ou não por mim),
para mim é difícil chegar a Deus, se não tiverdes compaixão de mim.
Na verdade, não vos quero ver agradando aos homens mas a 56
Deus, como de fato desejais. De minha parte jamais terei oportuni
dade como esta para chegar a Deus; nem vós tendes obra melhor a
fazer do que simplesmente vos calardes. Pois, silenciando a meu res
peito, serei uma palavra de Deus, mas se vos deixais levar pelo amor
a minha carne, serei apenas uma voz qualquer. Nada melhor podeis
fazer por mim do que deixar que eu seja sacrificado a Deus, enquanto
está preparado o altar do sacrifício. Então, reunidos num só coro na
caridade, cantareis ao Pài, em Jesus Cristo, por ter julgado o bispo
da Síria digno de ser enviado do Oriente para o Ocidente. É belo,
com efeito, ir do ocaso do mundo até ao seio de Deus, e ter nele o
meu levante.
Nunca tivestes inveja de ninguém e ensinastes os outros a não 57
tê-la. O que quero é justamente a prática do que ensinastes. Pedi
para mim apenas a força interior e exterior, para que não só eu
seja chamado cristão mas de fato o seja. Pois se me mostrar real
mente cristão, merecerei também ser chamado, e quando tiver desapa
recido do mundo, então serei de fato fiel a Cristo. Nenhuma osten
tação é boa. Jesus Cristo mesmo nosso Deus, mais se manifesta quan
do agora está oculto no Pai. Quando o cristianismo é odiado pelo
mundo, o que importa realizar não é mostrar a eloqüênda da palavra,
mas a grandeza da alma.
Escrevo a todas as Igrejas e informo-lhes que morro livre- 58
mente por Deus, se contudo não me impedirdes disso. Rogo-vos:
> 24 de agosto.
42 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA
com ele, e assim será se tudo for feito no nome de Jesus Cristo. Para
associar-me à sua paixão tudo suporto, vindo-me dele, homem per
feito, a minha força.
Não o conhecendo, alguns o renegam, ou melhor, são por ele 69
renegados. Tais pessoas são antes advogados da morte do que da
verdade. Não se deixaram persuadir pelas profecias, pela lei de Moi
sés, nem mesmo pelo Evangelho ou pelos sofrimentos de cada um
de nós. Pois a nosso respeito pensam o mesmo que sobre Jesus Cristo.
Realmente, que proveito me traz alguém que me louva, mas blasfema
meu Senhor, negando ter ele assumido a carne? Quem negar isto re
nega-o totalmente e carrega consigo seu cadáver. Quanto aos seus
nomes, sendo de incrédulos, não os acho dignos de serem aqui escritos.
Quisera nem mesmo recordar-me deles enquanto não se convertam à
fé na paixão, que é nossa ressurreição.
Ninguém se iluda, ainda que sejam os habitantes do céu, os 70
anjos gloriosos, os príncipes visíveis ou invisíveis, se não crerem no
sangue de Cristo não escaparão ao julgamento. “Quem puder com
preender compreenda” 5. Ninguém sé tome orgulhoso de sua própria
situação; pois a fé e a caridade, é que são tudo, e a elas nada se
antepõe. Atentai bem aos que professam doutrinas alheias à graça de
Jesus Cristo, que veio a vós; vede quanto a sua conduta se opõe
ao Espírito de Deus. Não se preocupam com a caridade, com as
viúvas, os órfãos, os oprimidos, os prisioneiros ou os libertos, com
os famintos ou os que têm sede.
Eles se abstêm da eucaristia e da oração, porque não confessam 71
ser a eucaristia carne do nosso Salvador Jesus Cristo, carne que
sofreu por nossos pecados e que o Pai, em sua bondade, ressuscitou.,^
Ora, os que em suas contestações recusam o dom de Deus, somente ]
encontram a morte. Melhor lhes seria celebrar a eucaristia, para te
rem parte na ressurreição. Convém, pois, que deles vos afasteis e não
converseis a seu respeito, em particular ou ém público. Prestai atenção
aos profetas e em particular ao Evangelho, onde vemos manifestar-se
a paixão e cumprir-se a ressurreição. Fugi das divisões, como fontes
de males.
Segui ao bispo, vós todos, como Jesus Cristo ao Pai. Segui ao 72
presbítero como aos apóstolos. Respeitai os diáconos como ao pre
ceito de Deus. Ninguém ouse fazer sem o bispo coisa alguma concer
nente à Igreja. Como válida só se tenha a eucaristia celebrada sob
a presidência do bispo ou de um delegado seu. A comunidade se
reúne onde estiver o bispo e onde está Jesus Cristo está a Igreja
católica. Sem a união do bispo não é lícito batizar nem celebrar a
5 M t D ,12.
44 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA
Bispo de Esmirna, s. Policarpo foi uma personalidade muito estimada por seus
contemporâneos. Conforme depõe santo Irineu, fôra discípulo direto de são João Evan
gelista. Em 155 vemo-lo em Roma, a tratar com o Papa Aniceto de diversos assuntos
eclesiásticos, especialmente a data da celebração pascal. Combateu os hereges da época,
sobretudo Marcião. Em 156 foi condenado à fogueira. O relato de seu martírio, feito
por testemunha ocular, é o mais antigo documento que temos no gênero e que também
publicamos a seguir, depois da Carta de Policarpo aos cristãos de Filipos.
Texto bilíngüe em: BAC 65, SC 10.
5 2Cor 4,14.
* lP d 3,9.
7 M t 7,2; Lc 6,36-38.
8 Lc 6,20; Mt 5,3-10.
9 lTm 6,10.
10 lTm 6,7.
n G1 6,7.
48 SÃO POLICARPO
12 2Tm 2,12.
13 lP d 2,2.
H lC or 6,9s.
W Pt 3,4.
16 Rm 14,10-12.
17 ljo 4,2s.
1« lP d 4,7.
CARTA AOS FIL1PENSES 49
Que Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e este mesmo eter- 82
no pontífice, o Filho de Deus, Jesus Cristo, vos edifique na fé, na
verdade e em toda mansidão, sem ira, na paciência, lcnganimi-
dade, tolerância e castidade; e ainda vos dê parte entre os seus
santos, e a nós convosco, assim como a tcdos os que estão sob o
céu e ainda virão a crer em nosso Senhor Jesus Cristo e em
seu Pai, que o ressuscitou dos mortos. Orai por todos os santos.
Orai pedindo pelos governantes, e pelos magistrados e príncipes, as
sim como pelos que vos perseguem e odeiam, e pelos inimigos da
cruz, a fim , de que o vosso fruto seja manifesto em tudo, para ser
des perfeitos nele.
Vós me escrevestes, junto com Inácio, pedindo que, se alguém for
à Síria, leve também vossa carta. Não deixarei de fazê-lo, se tiver
ocasião favorável, quer vá eu mesmo, quer alguém que pòssa mandar
em meu nomé e no vosso.
Remeto, conforme pedistes, as cartas de Inácio, tanto as que
nos mandou como outras que tínhamos conosco. Vão presas a esta
carta. Podeis tirar das mesmas grande proveito, pois estão cheias de •-
fé, de paciência e dessa perfeita edificação que leva a nosso Senhor.
Quanto a vós, partidpai-me tudo que souberdes:'de certo sobre
Inácio e os que estão com ele.
Escrevi esta por Crescente, que já vos recomendei e agora mais
uma vez recomendo. Viveu conosco de modo irrepreensível e creio
que outro tanto fará ho meio de vós. Tende também por recomendada
a sua irmã, quando aí chegar. Permanecei incólumes no Senhor Jesus
Cristo, em estado de graça, vós e todos os Vossos. Amém.
50 SÃO POLICARPO
1 F1 2,4.
2 ICor 2,9.
0 MARTÍRIO DE SÃO POLICARPO 51
5 22 de fevereiro.
6 2 horas da tarde.
HERMAS
( t c. 160)
Hermas era irmão do papa s. Pio I, sob cujo pontificado compôs, em Roma, a
obra comumente chamada Pastor, onde narra as “revelações” que julgou receber.
O livro, em estilo apocalíptico, consta de 5 Visões, 12 Mandamentos e 10 Semelhan
ças. Nas primeiras Visões, a Igreja aparece como uma senhora, a exortar os cristãos
a uma última penitência antes da volta do Senhor. A partir da 5- Visão, Hermes
recebe instruções de um anjo, vestido como pastor sempre com exortações à con
versão e satisfação pelos pecados cometidos■após o batismo.
O PASTOR
* * *
A P O L O G IA 1
100 Eu, ó rei, por graça de Deus vim a este mundo e, depois de
considerar o céu, a terra, os mares, o sol e tudo o m ais,, admirei a
ordem do mundo. Compreendi, com efeito, que o mundo — e tudo
o que nele há — é movido necessariamente por outro, e entendi ser
Deus quem o move, o qual nele está escondido e lhe é oculto. Uma
coisa é clara: o que move é mais poderoso que o movido. Indagando
como seja esse que tudo move, uma coisa também me é clara: não
ser ele compreensível em sua natureza. Mesmo a investigação da rea
lidade de sua direção não me ajuda nesse entendimento, pois ninguém
pode compreendê-la.
Apesar disso, posso dizer desse mcvente do universo, o Deus dé
todas as coisas, que ele tudo fez pelo homem. E então é evidente
a conveniência disto: que o homem tema a Deus e não aflija o
homem.
Posso dizer, em seguida, que Deus é ingênito, não feito, na
tureza constante, sem princípio ou fim, imortal, perfeito e inefável.
Dizer perfeito significa a inexistência de qualquer defeito, a ausência
de qualquer necessidade nele, e ao contrário a necessidade que dele
têm todas as coisas. Dizê-lo sem princípio significa afirmar que
tudo o que tem princípio tem igualmente fim e é corruptível.
101 Ele não tem nome: o que tem nome é sempre coisa criada. Não
tem figura, não se compõe de membros: o composto é sempre
coisa criada. Não é macho nem fêmea; o céu não o circunscreve,
l O texto é apresentado aqui segundo a versão siríaca, tida como mais autêntica,
na base da tradução espanhola que se acha em Padres Apologistas Griegos, BAC,
n? 116, 1954.
APOLOGIA 63
sendo por ele circunscrito, como aliás tudo que é visível e invisível.
Não tem adversário, nada podendo ser mais forte que ele. Não sente
ira nem rancor; quem se poderia erguer centra ele? Não tem erro ou
esquecimento — em sua natureza — pois é todo sabedoria e entendi
mento, e por ele subsiste o que subsiste. Não pede sacrifício, libação,
coisa alguma do que se vê: nada pede ao homem, ao passo que todos
devem recorrer a ele.
Assim, tendo expresso sobre Deus o que nosso entendimento pode 102
dizer, passemos agora ao gênero dos homens, e vejamos quais os que
participam da verdade, quais os que dela se apartam. Uma coisa
é clara a vós, ó rei: as estirpes de homens, neste mundo são quatro:
os bárbaros e os gregos, os judeus e cs cristãos. Os bárbaros atribuem
a origem de sua raça à sua religião de Crono, Rea e demais deuses.
Os gregos, a Helen, q u e . dizem descender de Zeus. De Helen foi
gèrado Eolc e Xuto; em seguida o resto da família, de Inaco e Fo-
reneu; e enfim, de Dánao — egípcio — de Cadmo e de Dionísio.
Os judeus, por seu turno, consideram a erigem de sua estirpe a
partir de Abraão, que gerou Isaac, do qual nasceu Jacó e que por
sua vez gerou doze filhes. Emigraram estes da Síria ao Egito, onde
foram chamados raça dos hebreus, em razão do nome de seu legis
lador; e depois foram chamados judeus.
Já os cristãos contam o princípio de sua religião em Jesus Cristo,
chamado Filho de Deus Aliíssimo. Dizem que Deus desceu do céu,
tomando e assumindo a carne de uma virgem hebréia2, habitando na
filha do homem o Filho de Deus. Isso é ensinado pelo Evangelho,
que — assim é chamado entre eles — primeiramente foi pregado,
e encerra um poder que compreendereis se o lerdes.
Portanto, esse Jesus nasceu da estirpe dos judeus; cedo teve v
doze discípulos, para levar a efeito certa economia sua. Fci crucificado 1
pelos judeus, morreu e foi sepultado. Afirma-se que^depcis de três
dias ressuscitou e subiu ao céu. Saíram então seus doze discípulos
pelas várias partes do mundo ensinando a grandeza dele com toda
humildade e modéstia. Eis por que os que ainda hoje crêem naquela
pregação são chamados e conhecidos como cristãos.
2 No te x to g re g o : “ d e um a s a n ta V irg e m ” .
64 ARISTIDES DE ATENAS
A reunião eucarística 1
Nós, depois de ter assim lavado 1 o que creu é aderiu à nossa 104
doutrina, o conduzimos até onde se encontram os que se chamam
irmãos, a fim de elevarmos fervorosas preces em comum por nós
mesmos, pelo que acaba de ser iluminado e por todos os demais
dispersos pelo mundo, suplicando que, uma vez conhecida a verdade,
tenhamos a graça de ser homens de boa conduta e observantes dos
mandamentos, para alcançarmos a vida eterna.
Terminadas as orações, damos mutuamente o ósculo da paz.
Apresenta-se, então, a quem preside aos irmãos, pão e um vaso de
água e vinho, e ele tomando-os dá louvores e glória ao Pai do universo
pelo nome de seu Filho e pelo Espírito Santo, e pronuncia uma longa
ação de graças em razão dos dons que dele nos vêái. Quando o pre
sidente termina as orações e a ação de graças, o povo presente aclama
dizendo: Amém.
1 S. Justino acabava de discorrer sobre o Batismo.
Nossa religião aparece mais sublime que todo ensinamento huma- 107
rio, pela simples razão de que o Verbo inteiro, que é Cristo, se ma
nifestou por meio de nós, fez-se corpo, razão e alma.
; Forque tudo qué de bom disseram e acharam os filósofos e le
gisladores fci por eles elaborado segundo a participação que tiveram
ho Verbo, pela investigação e pela intuição. Mas como não conhece
ram ao Verbo inteiro, que é Cristo, se contradisseram também com
freqüência entre si. E os que antes de Cristo tentaram — na medida
de suas forças humanas — investigar e demonstrar as coisas de um
medo conforme ao Vérbo, foram levados acs tribunais como ímpios
e amigos de novidades. O que mais se empenhou entre eles, Sócrates,
foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que introduzia «•,, .
novos deuses, por não reconhecer os que a cidade cultuava. Mas a J
verdade é que, expulsando da república a Homero e aos outros
Çpetas, ensinou os homens a rechaçarem os maus démônios que co
meteram as abominações referidas pelos poetas, ao mesmo tempo que
os exortou ao conhecimento de Deus — para eles desconhecido —
per meio da investigação racional, dizendo: aAo Pai e artífice do
universo não é fácil de se achar, nem depois que o achamos é fácil
dizê-lo: a todos” h Foi isso justamente o.que nosso Cristo fez por sua
própria virtude. Porque a Sócrates ninguém deu crédito, até que deu
a vida pela doutrina, mas a Cristo, que em parte foi conhecido por
Sócrates ;— ele era e é o Verbo que está em tudo, foi ele quem peles
profetas predisse o porvir e que, fazendo-se de nossa natureza, por
si mesmo nos ensinou essas coisas — a Cristo, dizíamos, não só deram
crédito filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas to
talmente ignorantes, as quais souberam desprezar a incerteza, o medo1
grandes sábios, que foram para nós como um forte muro filosófico
e um apoio seguro?
— Não me importo, disse ele, se Platão ou Pitágoras, ou qual
quer outro pense assim. Pois a verdade é esta; e nela poderás instruir-te.
A alma ou é a vida cu tem vida. Se é a vida, há de fazer outra
coisa viver, e não a si mesma, como o movimento antes move a
um outro que a si mesmo. No entanto, ninguém há de negar que a
alma vive; mas se vive, não vive porque seja a própria vida, mas
porque participa da vida. O ser por participação difere daquele do
qual participa. A alma participa da vida porque Deus quer que ela
viva. Portanto, se alguma vez Deus quiser que não viva, deixará de
participar da vida. A alma não é propriamente a vida, como Deus é.
Como o homem, que não aparece sempre c mesmo (pois nem sem
pre o corpo está junto à alma, mas quando se torna necessário rcmpe-
-se esta harmonia, a alma abandona o corpo, e o homem já não exis
te) assim também a alma: quando for necessário que já não exista,
há de abandoná-la o espírito vital e deixará de existir, voltando no
vamente para onde foi tirada.
— Q)m que mestre poder-se-á doravante aprender, pergunto, se
nem ao menos esses disseram a verdade?
— Existiram, muito antes de todos estes que se dizem filósofos, 120
uns homens felizes e justes, aos quais Deus amava. Falaram movidos
pelo Espírito divino, e predisseram acontecimentos futuros que agora
se realizaram. Nós os chamamos Profetas. Eles foram os únicos a
contemplar a verdade e anunciá-la aos homens. Ninguém os fazia te
mer, ninguém os confundia. Nunca foram vencidos pela ambição.
Limitavam-se a dizer o que haviam visto e ouvido, cheios do Espírito
Santo. Os seus escritos foram conservados até hoje, e quem os con
sulta aprende muito no que diz respeito aos princípios, aos termos
e a todas as outras questões que um filósofo tem de tratar, inas des-
de que creia neles. Quando falavam não faziam uso de demonstração
filosófica, pois na qualidade de testemunhas fidedignas da Verdade
estavam acima de toda demonstração. Porém os fates que acontece
ram e continuam a acontecer obrigam-nos a acreditar no que disseram,
ainda que disso fossem dignos já pelos milagres que realizaram, e por
que davam glória ao Deus, Pai e Criador de todas as coisas, anuncian
do aos homens o Cristo, seu Filhó e enviado. Milagres tais nunca
fizeram nem hão de fazer cs falsos profetas, cheios de espírito da
mentira e da imundície, se bem que ousem produzir alguns fenôme
nos prodigiosos para aterrar os homens, e glorificar os espíritos do
mal e cs demônios.
Tu, porém, antes de tudo, pede que te sejam abertas as portas 121
da luz, porque só pede perceber e compreender estas coisas aquele
a quem Deus e seu Cristo concederam a inteligência.
Depois de me ter dito todas estas coisas e ainda muitas outras
que não posso repetir por faltar-me tempo, deixou-me o ancião, reco-
76 SÃO JU S T IN O
122 Dize-me: — Não foi Deus que proibiu, por Moisés, fazer-se
imagem ou representação do que há no céu ou na terra? E no entanto
ele mesmo fez Moisés fabricar no deserto a serpente de bronze e a
pôr como sinal, por meio do qual se curavam os que tinham sido
mordidos pelas serpentes. E não vamos dizer que Deus seja culpado
de injustiça. Ele estava anunciando um mistério: o de que destruiria o
poder da serpente, responsável pela transgressão de Adão. Anunciava
a salvação para os que crêem naquele que estava figurado pelo sinal,
isto é, naquele que havia de ser crucificado e os livraria das morde
duras da serpente: das más ações, idolatrias e iniqüidades. Do contrá
rio, explicai-me por que Moisés erigiu como sinal a serpente de
bronze e ordenou fosse olhada pelos que eram mordidos, ficando eles
curados. E isso depois de proibir a fabricação de qualquer imagem.
Então, outro (interlocutor) dos que tinham vindo no segundo
dia, assim falou:
— Tens razão e não podemos achar outra explicação. Eu mes
mo perguntei muitas vezes a nossos rabinos sobre isso e nenhum sou
be explicá-lo. Continua, pois, tua exposição e a escutaremos como
a revelação de um mistério, porque até os ensinamentos dos profetas
podem ser desnaturados.
Prossegui:
— Assim como Deus mandou estabelecer c sinal da serpente de
bronze e não tem culpa nela, assim há na Lei a maldição contra os que
morrem crucificados e, não obstante, ela não recai sobre o Cristo de
Deus, por quem Deus salva todes os que cometeram ações dignas de
maldição.
DIÁLOGO COM TRIFÃO 77
Não foi por acaso que Moisés, quando Or e Aarão lhe susten- 124
tavam as mãos, se deixou ficar nessa postura até a tard e2. Pois o
Senhor também ficcu até a tarde sobre o lenho da cruz, tendo sido
ao entardecer que o sepultaram, e depcis ressuscitou, ao terceiro
dia.
Foi isto expresso pela boca de Davi: “Minha voz clamou
pelo Senhor e ele me ouviu de sua santa montanha. Adormeci e dor
mi, em seguida me acordei, pois o Senhor me protegeu” 3. Também
por boca de Isaías foi dito de que modo ele devia morrer: “Eu
estendi minhas mãos sobre um povo incrédulo e contraditor, sobre
gente que não andava no bom caminho” 4. De sua futura ressurreição,
1 D t 2 1 ,2 3 . 2 E x 1 7 ,1 2 . 3 SI 3,5s.
diz o mesmo Isaías: “Seu túmulo foi retirado do meio dos homens” 5
E ainda: “Darei os ricos em troca de sua m orte” 6. ,
Em outras passagens, Davi fala da paixão e da cruz numa mis:
tericsa comparação: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, com
taram todos os meus ossos. Eles me observaram e contemplaram!.
Dividiram entre si minhas vestes e lançaram sorte sobre minha túni
ca” 7. Com" efeito, quando o crucificaram, perfuraram com cravpf
suas mãos e pés, repartiram suas vestes, tiraram sorte sobre as que
queriam escolher. ,n
Este Salmo pretendeis, em vossa cegueira, que não se aplique iip
Cristo, e não vedes que jamais em vosso povo se chamou rei
alguém cujas mães e pés tenham sido transpassados, morrendo neste
mistério — refiro-me à crucifixão — senão unicamente Jesus. rA
................ .................................................................................................................................................................................................. ;-.l
125 Vou, pois, demonstrar-vos que todo este Salmo foi dito em 're
lação a Cristo, retomando alguns trechos. Suas palavras iniciâiá*
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” anunciaraüd
desde os tempos antigos o que seria dito por Cristo. Com efeito;;
ao ser crucificado, ele bradou: “Meu Deus, meu Deus, por que;:tó |
abandonaste? ” 8 E as palavras seguintes aludem também ao qu^’-ell
haveria de realizar: “Longe de minha salvação as palavras dé niêtiS
pecados. Meu Deus, clamo de dia e não me ouvis; durante a nòitl
— e é coisa que não ignoro” 9. Foi assim que na noite em que ia;áêl
crucificado, tomando consigo três de seus discípulos, dirigiu-sé;Í|
monte das Oliveiras, situado junto ao templo de Jerusalém é $1
orou, dizendo: “Pai, se possível, passa de mim este cálice”. E poqiqp:
depois prosseguiu em sua oração: “Não seja feito ccmo eu quéfõ|
mas como tu queres” 10, mostrando em tudo isso ser homem passíveis
E para que ninguém objetasse: “então ignorava que haveria de so
frer! ” acrescenta-se no Salmo: “e é coisa que não ignoro”. Da mésj
ma forma, Deus nada ignorava ao perguntar a Adão onde estava, òü
a Caim onde estava Abel, apenas querendo envergonhar cada um pe
lo que fizera e para que até nós chegasse a consignação de tudo;
nas Escrituras; assim também Jesus manifestou não sua ignorância,
mas a dos que pensavam que ele não fosse o Cristo e supunham que
morreria e permaneceria na região da morte como homem comum.
O que segue: “Entretanto, tu habitas em teu santuário, ó glóm
de Israel!” 11 significava que ele haveria de realizar coisas dignas dé
4 h 65,2.
? I s 5 7 ,2 .
6 I s 5 3 ,9 .
7 SI 2 1 .
8 Cf. M t 27,46; Mc 15,34.
9 SI 21,2-3. Na tradução da Bíblia de Jerusalém: “durante a noite, e não há
silêncio para mim”.
10 M t 2 6 ,3 9 . l i SI 2 1 ,4 .
DIÁLOGO COM TRIFÃO 79
SOBRE A PÁSCOA
(S.C. 123)
O pecado do homem
(47-56)
Nova e terrível tomcu-se a ruína dos homens sobre a terra. Eis 131
o que lhes aconteceu: foram tiranizados pelo pecado, e levados a
lugares dé concupiscência, para viverem assaltados por prazeres insa
ciáveis, pelo adultério, a fornicação, a impureza, os maus desejos, a
ccbiçà, ós homicídios, o derramamento de sangue, a tirania da mal
dade e da injustiça. Era o pai lançando a espada contra o filho, o
filho erguendo a mão contra o pai, o ímpio golpeando a lactante, o
irmão ferindo seu irmão, o hospedeiro injuriando o hóspede, o
amigo assassinando seu amigo, o homem degolando o semelhante.
Todos se transformaram na terra em homicidas, fratricidas, parrici
das, infanticidas. . . '
E com isso exultava o Pecado: colaborador da Morte, prece- *
dia-a nas almas dos homens e preparavá-lhe como alimento os cor
pos mortos. Imprimia em toda alma sua marca, para fazer morrer os
que a traziam.
Toda carne, pois, caiu sob o pecado,
e todo corpo sob a morte.
Toda alma foi arrancada de sua morada de carne
e o que foi tirado da terra se dissolveu na terra,
o que foi dado por Deus se encarcerou no Hades.
Estava destruída a bela harmonia,
desfeito o belo corpo.
O homem dividido sob o poder da morte,
estranha desgraça a aprisioná-lò:
Era arrastado como cativo pelas sombras da morte,
jazia abandonada a imagem do Pai.
Eis a razão por que se cumpriu o mistério da Páscoa
no corpo do Senhor.
84 M ELITÃ O DE SARDES
O triunfo de Cristo
(100-105)
Entre as roais antigas Atas de mártires está a Carta das igrejas de Lião e Viena
na Gália) às igrejas da Ásia e Frigia, sobre a perseguição ocorrida em Lião em
77-176. A Carta está conservada na História eclesiástica de Eusébio e constitui admi
rável documento do espírito dos antigos mártires.
A perseguição foi de uma violência tal neste país, a raiva dos pa
gãos tão grande centra os santos, e nossos bem-aventurados mártires
sofreram tanto, que nós não saberíamos encontrar as palavras neces
sárias para vos fazer uma descrição completa do que ocorreu. Pois
fei ccm todas as forças que entrou em ação o adversário, o diabo, pre
parando assim um futuro reino nos infernos, onde possa desenca
dear sua violência. Por toda parte esteve induzindo os seus ao combate
centra os servidores de Deus. Não somente nos rechaçaram das casas,
dos banhos e da praça pública, mas nos proibiram de aparecer em
qualquer parte.
Entretanto, a graça de Deus lutou por nós, afastando do perigo
os tímidos e opondo ao adversário colunas sólidas da fé, capazes
de resistir sem vacilar e de fazer voltar contra eles todo o choque do
Maligno. Os defensores caminharam para o martírio e tiveram de su
portar ultrajes e suplícios, mas não se detiveram por tão pouco,
apressaram o passo para o Cristo e revelaram ao mundo que os so
frimentos daqui de baixo nada são em comparação à glória que nos
espera lá no alto.
Primeiramente suportaram valentemente as brutalidades da mul
tidão. Foram batidos, insultados, importunados. Seus bens foram
pilhados, atiraram-lhes pedras, encarceram-nos juntos. Eles suportaram
ATAS CO SEU M ARTÍRIO 89
tudo que uma populaça desenfreada quisesse fazer sofrer a odiosos ini
migos. Em seguida fizeram-nos subir ao fórum. Lá, o tribuno e os
magistrados da cidade os interrogaram perante todos, e eles, confes
sando sua religião, foram aprisionados, esperando a chegada do go
vernador.
Quando este chegou, fê-los comparecer a sua presença e então 136
ficaram sujeitos às crueldades habituais contra os cristãos. Ora, um
de nossos irmãos, Vetius Epagathus, estava presente. Homem im
pregnado de amor divino e de caridade, e tão perfeito que, apesar de
sua juventude, merecia o elogio dirigido ao sacerdote Zacarias: “an
dou segundo as ordens e os preceitos do Senhor, e sua vida foi sem
mácula”. Sempre pronto a devotar-se pelos outros, cheio de zelo ao
serviço de Deus, possuía o ardor do Espírito. Um homem desta têmpera
não pôde suportar tantas ilegalidades no processo dos cristãos. Num
cúmulo de indignação, ele reclamou c direito de tomar a palavra,
para defender seus irmãos e provar que entre nós não há impiedade,
nem negação de Deus. Mas as pessoas que rodeavam o tribunal lan
çaram clamores centra ele — era um homem muito conhecido —
e o governador rejeitou seu pedido, embora tão legítimo. Perguntou-
-lhe somente se era cristão. Ele, então, com voz forte, proclamou
ser cristão. O governador uniu-o ao número de mártires. Ele pensava
que seria o “paráclito” des cristãos, mas na verdade trazia consigo o
Paráclito, o Espírito de Zacarias. Havia-o demonstrado muito bem nes
se excesso de caridade com que arriscara a própria vida para sal
var seus irmãos.
Era e ainda é um verdadeiro discípulo de Cristo, que segue o
Cordeiro onde ele for.
A partir deste momento, estabeleceu-se uma cisão entre os cris- 137
tãos. Uns pareciam prontos para o martírio; cheios de ardor, corí-"*
fessaram sua fé até ao fim. Mas viu-se que não estavam nem
prontos, nem exercitados; débeis ainda, não podiam sustentar o es
forço de um grande combate. Uma dezena deles falhou. Isso nos
causou profunda tristeza, grande dor, e quebrou o entusiasmo dos
outros que não tinham sido ainda presos e que, ao preço de mil
perigos, assistiam aos mártires sem deles se afastar. Nós fomos então
todos tomados de viva angústia, na incerteza que planava sobre a
confissão dos seguintes. Os suplícios que se lhes infligiam deixavam-
-nos sem pavor, mas, enquanto a coisa não chegava ao fim, nós
temíamos as deserções.
Entrementes, as prisões continuavam todos os dias, e os que
eram dignos vinham preencher as lacunas deixadas pelos apóstatas.
Foi assim que se encontraram reunidos na prisão todos os cristãos
fervorosos das duas Igrejas, os principais sustentáculos da religião em
nossos países. Foram presos, também, alguns pagãos, servidores dos
nossos, pois o governador havia dado ordem oficial de procurar-nos
a todos. Essas pessoas, por influência pérfida de Satanás, tomaram-se
90 OS M ÁRTIRES DE LIÃO
Após todos estes martírios, no último dia dos embates indivi- 147
duais, Blandina fei levada de novo com Pcnticus, um jovem de uns
quinze anos. Cada dia, faziam-nos vir ao anfiteatro para lhes mostrar
os suplícios dos outros. Queriam forçá-los a jurar pelos ídolos. Sua
resistência calma e o desprezo que testemunhavam aos deuses pagãos
levantaram contra eles o furor do povo, que foi implacável ante a ju
ventude do rapaz e perdeu todo respeito pelo sexo de Blandina.
Sujeitaram-nos a horrores e fizeram-nos passar por todo o ciclo dos
suplícios. Entre golpes, esforçavam-se per fazê-los jurar contra Deus,
mas não conseguiram. Ponticus era encorajado por sua irmã, e os
pagãos percebiam que ela o exortava e estimulava. Ele suportou
bravamente todas as torturas e entregou a alma.
e ainda cabeças cortadas com corpos mutilados. Tudo isso ficou ali
por muitos dias, sem sepultura, guardado por soldados. Entre os pa
gãos, uns ralhavam e rangiam os dentes contra os mártires: gostariam
de poder fa2ê-los sofrer ainda. Outros escarneciam caçoando dos
mortos e glorificavam seus ídolos por terem assim castigado aos
cristãos. Alguns, mais moderados e aparentemente tocados por um
pouco de compaixão: “Onde está seu D eus?” “De que lhes há ser
vido a religião que eles amaram mais que sua vida?” Eram assim di
versas as reações.
Entre nós reinava grande luto: não podíamos inumar os corpos.
Impossível contar com a noite. O dinheiro não seduzia os guardas e
nossos rogos não os comoviam. A vigilância nãc relaxava, como se
houvesse grande proveito em privar nossos mortos de sepultura.
Era filósofo em Atenas. Autor da Súplica pelos cristãos, apologia oferecida em tom
respeitoso a Marco Aurélio e seu filho Cômcdc; e do tratado Sobre a ressurreição
dos mortos.
Seu estilo é agradável e procura ser acolhedor em relação à cultura grega.
Pensamento filosófico e teológico superior ao dos outros apologetas. Textos impor
tantes sobre as relações das Pessoas divinas.
Ed. em grego e espanhol: BAC, 116.
não pode ser circunscrito num lugar, que só pode ser atingido pelo
espírito e pela razão, que está envolto de luz, de beleza, de espírito
e forças inenarráveis, por quem o universo foi criado e ordenado, por
quem o mesmo é conservado, mediante o Verbo que está com ele.
Eis o que mostrei claramente.
Reconhecemos também, com efeito, um Filho de Deus. E não 154
se ache ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Pois não é
da mesma forma como vossos poetas o imaginam, ao falarem de deu
ses que são como os homens, não é assim que pensamos nós sobre
Deus Pai ou sobre o Filho. O Filho de Deus é Verbo do Pai em idéia
e em poder. Tudo foi feito por meio dele, sendo um o Pai e o Filho.
O Filho está no Pai e o Pai no Filho, por unidade e poder do espírito,
e assim o Filho de Deus é espírito e verbo de Deus.
Se em vossa inteligência superior, quereis examinar o que sig
nifica o Filho, di-lo-ei em poucas palavras. O Filho é o primeiro re
bento do Pai, não que seja criado — pois desde o começo Deus,
que é eterno espírito, tinha em si o Verbo, era eternamente racional
— mas porque procede (de Deus), ao contrário das coisas materiais
que foram inicialmente sem qualidades e oriundas de terra inerte,
as mais espessas misturadas às mais leves, de maneira a haver para
elas uma idéia e uma energia. O Espírito profético está também de
acordo com este raciocínio, pois diz ele: “O Senhor me constituiu
princípio de seus caminhos para as suas obras” 2.
Na verdade, o Espírito Santo, que age através dos que falam 155
em profecias é, dizemos, uma emanação de Deus, de quem brota e
em quem reentra como um raio de sol.
Como, portanto, não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus
os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo,
ensinando ser único seu poder e sua distinção na ordem? 4
Nossa doutrina teológica aliás não pára aí, pois acrescentamos
existir uma multidão de anjos, ministros que Deus Criador e organi
zador do mundo, através do Verbo que dele procede, repartiu e or
denou a fim de se ocuparem com os elementos, os céus, o mundo,
o seu conteúdo e a sua harmonia.
Entre nós encontrareis por certo muita gente simples, artesãos, 156
velhinhas. . . que, se pela palavra não são capazes de argumentar
em favor de sua religião, mostram ccm as obras a boa escolha
que fizeram. JÉ gente que não se aplica a decorar discursos, mas
pratica boas ações: não ferem quem os fere, não levam aos tribunais
2 Pr 8,22.
100 ATENÁGORAS
O matrimônio cristão
(ibid., c. 33)
O aborto
( i b i d c. 35)
3 Vê-se nesta concepção um rigorismo que não tem apoio na tradição da Igreja.
4 Mc 1 0,11 e p a r a le lo s .
SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA
( t após 181)
5 Aparece aqui, pela primeira vez na literatura cristã, a palavra Trindade ( “Triás” )
aplicada a Deus. O fato, porém,' de Teófilo u sá -la como um termo corrente, sem ne
c e s s id a d e d e e x p lic a ç ã o , fa z p e n s a r q u e n ã o e r a seu autor.
Sabedoria. No quarto tipo está o homem, que precisa da luz; temos
assim Deus, Verbo, Sabedoria, Homem. Eis por que no quarto dia
foram criados os luzeiros.
A disposição dos astros sugere a economia e dispensação dos
justos, dos religiosos, dos que seguem a lei e os preceitos de Deus.
Os astros de primeira grandeza, os mais brilhantes, são como os
profetas, permanecendo sem se desviarem, sem mudarem de posição.
Os astros de categoria inferior quanto ao brilho são tipos do povo
dos justos. Quanto aos que mudam de posição e vão de um para
outro lugar, os chamados planetas, são tipos dos homens que se afas
tam de Deus, abandonando suas leis e seus profetas.
167 Dir-me-ás: “Pretendes que não se deva situar a Deus num deter
minado lugar; como dizes então que ele passeia no paraíso? ” 67 Es
cuta-me: o Deus e Pai de todas as coisas não é localizável, pois não
há local onde não esteja; mas o Verbo, pelo qual criou todas as coisas,
e que é seu poder e sua sabedoria, revestiu-se da figura do Pai e
Senhor universal, e foi ele que veio ao paraíso sob a figura de Deus,
entretendo-se com A dão8. Pois a própria Sagrada Escritura nos en
sina que Adão dizia ter ouvido sua v e z 9. Que outra voz seria senão
o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Não no sentido em que
os poetas e mitógrafos dizem que filhos de deuses nascem de có
pulas, mas segundo o que a verdade manifesta sobre o Verbo, que
existe sempre imanente no seio de Deus.
6 Em s. Teófilo, como em sto. Iteneu (cf. C o n tra H e r., 4,20), o Espírito Santo
é dito a Sabedoria.
7 Gn 3,8.
8 Está aqui uma deficiência na concepção de s. Teófilo (e de outros apologetas),
a idéia de que a transcendência do Verbo é menor do que a do Pai, de sorte que
só ele pode aparecer.
9 Gn 3,10.
Antes que algo fcsse feito, ele o tinha como seu conselheiro, 168
aquele que é sua inteligência e seu sentimento. E quando Deus de
cidiu realizar tudo o que havia deliberado, engendrou externamente
esse Verbo 101, como primogênito antes de toda criatura, sem por isto
ficar privado do Verbo mas sim engendrando-o e permanecendo sem
pre em conversação com seu Verbo. Daí o ensinamento das Sagradas
Escrituras e de todos os inspirados, entre os quais João, quando
diz: — “no princípio era o Verbo; e o Verbo estava em Deus” n .
Ele mostra que no princípio só havia Deus e que nele estava o Verbo.
Depois acrescenta: “E o Verbo era Deus; tudo foi feito por meio de
le e sem ele nada foi feito”. O Verbo, portanto Deus, e nascido de
Deus. E cada vez que o Pai universal o quer, envia-o a determinado
lugar; lá ele se acha, se faz ouvir e ver, como um enviado, em de
terminado lugar.
uma lei não só divina, mas humana, a da submissão aos pais na sim
plicidade e inocência. Se as crianças devem submeter-se aos pais,
quanto mais ao Deus e Pai universal! E não é normal que as crian
ças tenham pensamentos acima de sua idade; os pensamentos devem
crescer com a idade.
175 Os cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pe
la língua, ou pelos costumes. Não habitam cidades próprias, não
se distinguem por idiomas estranhos, não levam vida extraordinária.
Além disso, sua doutrina não encontraram em pensamento ou cogita
ção de homens desorientados. Também não patrocinam, ccmo fazem
alguns, dogmas humanos. Mas, habitando, conforme a sorte de
cada um, cidades gregas e bárbaras, é acompanhando os usos locais
em matéria de roupa, alimentação e costumes, que manifestam a
admirável natureza de sua vida, a qual todos reputam extraordinária.
Habitam suas pátrias, mas ccmo estrangeiros. Participam de tu
do como cidadãos, mas tudo suportam como estrangeiros. Qualquer
CARTA A DIOGNETO 111
terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Ca
sam-se e procriam, jamais lançam fora o que geraram. Têm a mesa
em comum, não o leito. Vivendo na carne, não vivem segundo a
carne. Na terra vivem, participando da cidadania do céu. Obe
decem às leis, mas as ultrapassam em sua vida. Amam a todos,
sendo por todos perseguidos. Desconhecidos, são assim mesmo con
denados. E quando entregues à morte, recebem a vida. Na pobreza,
enriquecem a muitos; desprovidos de tudo, sobram-lhes os bens.
São desprezados, mas no meio das desonras senterc-se glorifica
dos. Difamados, mas justos; ultrajados, mas benditos. Injuriados,
prestam honra. Fazendo o bem, são punidos como malfeitores; casti
gados, rejubilam-se como revivificados. Os judeus hostilizam-nos como
alienígenas, os gregos os perseguem, mas nenhum de seus inimigos
pode dizer a causa de seu ódio.
Para resumir numa palavra, o que é a alma no corpo, são os 176
cristãos no mundo: ccmo por todos os membros do corpo está di
fundida a alma, assim os cristãos por todas as cidades do universo.
Habita a alma no corpo, mas não procede do corpo; assim os cristãos
habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível é
enclausurada num corpo visível: os cristãos, conhecidos enquanto
estão no mundo, têm uma religião que permanece invisível. A carne
odeia a alma sem ter recebido injúria, mas apenas porque ela não a
deixa gozar os prazeres; aos cristãos odeia o mundo sem ter sido
injuriado por eles e só porque renunciam aos prazeres. A alma ama
o corpo e os membros que a odeiam; também os cristãos amam os
que os odeiam.
A alma está encerrada no corpo, mas é ela que o sustenta.
Os cristãos, per sua vez, estão encerrados no mundo como num cár-
cère; mas são eles que o sustentam. A alma habita um tabernáculo’ .
mortal. Os cristãos peregrinam através de bens corruptíveis, na expec- *■
tativa da celeste incorruptibilidade.
Maltratada quanto a alimentos e bebidas, a alma se aperfeiçoa;
também os cristãos, afligidos por castigo, cada dia mais aumentam
em número. Deus coloccu-os num posto tal que não lhes é lícito
desertar.
Não foi, como já disse, invenção terrestre o que se lhes trans
mitiu; nem julgam ter sob sua vigilante guarda uma concepção mortal.
Não lhes foi confiada a dispensação de mistérios humanos.
Mas foi o próprio Deus invisível, verdadeiramente Senhor e Cria- 177
der de tudo, que do alto dos céus colocou entre cs homens a Ver
dade, o Logos santo e incompreensível, e o inseriu firmemente nos
seus corações. Não, como pode alguém conjecturar, enviando aos
homens algum ministro, anjo, ou principado, algum daqueles que go
vernam as coisas terrenas ou dos que têm a seu cargo o cuidado das
coisas celestes, e sim mandando o próprio Artífice e Autor de tudo,
aquele por meio de quem criou as coisas e encerrou o mar nos
112 CARTA A DIOGNETO
qüidade, mas preparava este, de justiça; a fim de que nós, que ou-
trcra fôramos, em razão de nossas obras, demonstrados indignos da
vida, fôssemos agcra feitos dignos pela benignidade de Deus; e nós
que evidenciáramos ser impossível ir por nós mesmos ao reino de
Deus, nos tornássemos disso capazes na potência de Deus.
E quando se consumou o auge da nossa iniqüidade e ficou bem
patente que o estipêndio desta, castigo e morte, era iminente, veio
o tempo que Deus preestabelecerá para manifestar, de então por
diante, a sua bondade e força. Õ sublime humanidade e caridade de
Deus! que não nos odiou nem perdeu, nem se vingou, mas, pelo
contrário, foi paciente. Suportou-nos ccm misericórdia, e os nossos
pecados tomou-os ele mesmo, entregando como preço da nossa reden
ção o próprio Filho, o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus,
o justo pelos injustos, o incorruptível pelps corruptíveis, o imortal
pelos mortais. Que outra coisa efetivamente poderia cobrir os nos
sos pecados senão a sua justiça? Em quem era possível que fôssemos
justificados, nós, iníquos e ímpios, a não ser unicamente no Filho de
Deus? 0 doce substituição, ó imperscrutável disposição, ó benefício
imprevisto, ser a injustiça de muitos recoberta em um só Justo e a
justiça de um só justificar a muitos injustos. Tendo, pois, demonstra
do, no tempo anterior a incapacidade de nossa natureza para alcan
çar a vida e agora, ao contrário, tendo manifestado o Salvador capaz
de salvar até o que não era possível, quis, por ambas as coisas, que
tivéssemos fé na sua benignidade e o tomássemos como tutor, pai,
mestre, conselheiro, médico, pensamento, luz, honra, glória, fortaleza,
vida, e nos despreocupássemos do que comer ou à é como nos vestir.
Se também aspiras a esta fé e a recebes, trata primeiro 1 de conhe- 180
cer o Pai. Deus realmente amcu com caridade os homens. Por causa
deles fez o cosmos, submetendo-lhes todas as coisas da terra; deii-
-lhes razão, inteligência, só a eles permitiu còntemplá-lo nas altu
ras, formou-os à própria imagem, enviou-lhes seu Filho unigénito,
prcmeteu-lhes o reirio dos céus, que dará aos que o amam. Que
gáudio, pensas, te encherá quando o conheceres? Ou quem assim te
amcu primeiro? Amando-o, porém, serás imitador da sua benignidade.
Não te admires de poder o homem tornar-se imitador de Deus.
Pode-o, querendo Deus. De fato, não é o oprimir o próximo, nem o
querer mais do que os mais fracos, nem enriquecer, e violentar os
inferiores, que constitui a felicidade. Nem tão pouco pode alguém
com ações imitar a Deus: tais coisas estão fora da sua grandeza.
Mas aquele que toma sobre si o ônus do próximo, aquele que de
seja, no que é superior, beneficiar a quem menos possui, e sub-
ministra aos necessitados o que possui, recebido de Deus, torna-se
deus dos beneficiados e é imitador de Deus.
Então verás, ainda na terra, que Deus reina nos céus. Come
çarás a falar os seus mistérios. Amarás e admirarás os que são tortu
rados por não quererem renegar a Deus. Condenarás a impostura e o
erro do mundo quando tiveres compreendido que o verdadeiro viver
está no céu e, desprezando aquilo que aqui parece morte, temeres a
morte real, reservada para os condenados ao fogo eterno, que atormen
tará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Então admirarás os
que suportam pela justiça o fogo momentâneo e os considerarás fe
lizes, quando tiveres compreendido tal fogo.
Não me entretenho com coisas estranhas, nem faço pesquisas
absurdas, mas, feito discípulo dos apóstolos, torno-me doutor das
gentes, subministrando dignamente o que me foi entregue, aos que se
fazem discípulos da verdade. Quem, com efeito, retamente instruído
e gerado pelo Logos amigo, não se esforçará por aprender claramente
tudo que foi manifestado aos discípulos? Foi a estes que c Logos,
quando apareceu e livremente falou, revelou tais coisas, incom
preendido pelos infiéis, mas pregando aos discípulos que, achados
por ele fiéis, conheceram os mistérios do Pai. Por esta causa, Deus
enviou o Logos, para se revelar ao cosmos. E este, desprezado pelo
povo escolhido, anunciado por meio dos apóstolos, foi crido pelas
gentes. Ele é que, existindo desde o princípio, apareceu como novo,
como tal foi achado, e renasce sempre novo no coração dos santos.
Ele, o sempiterno, que hoje é chamado Filho, pelo qual é enriquecida
a Igreja e, como graça divina, se multiplica nos santos, dando inteli
gência, abrindo os mistérios, anunciando cs tempos, exultando sobre
os fiéis, dando aos que procuram observar os juramentos da fé ul
trapassando as tradições dos pais.
E agora o temor da lei é celebrado com cânticos, a graça dos
profetas é conhecida, afirma-se a fé dos Evangelhos, a tradição dos
apóstolos é mantida e exulta a graça da Igreja. Se não hostilizares
essa graça, saberás quando o Logos fala por meio dos que escolheu,
quando lhe apraz. Pois, de tudo aquilo que nos foi revelado, impeli
dos pela vontade imperativa do Logos, fomos levados a dizer com fadi
ga, tcrnamo-nos co-participantes convosco pela caridade.
SANTO IRENEU
(t c. de 202)
Natural da Asia Menor e discípulo de são Policarpo, foi 'bispo de Lião, na Gália.
Interveio junto aos papas Eleutério e V ítor no que tange à : repressão da heresia mon-
tanista e na querela sobre a comemoração da Páscoa.
Grande adversário do gnosticismo, escreveu a Refutação da falsa Gnose (obra co-
mumente chamada Adversus Haereses) e também a Demonstração da Preparação Apostó
lica, obra esta descoberta em 1907 numa tradução armênia. Fragmentes ainda de cartas
suas foram conservadas por Eusébio.
Segundo são Gregório de 1'ours ( t 594), santo Ireneu terá morrido mártir.
É considerado o “príncipe dos teólogos cristãos”, no sentido cronológico de pri
meiro.
Em seus escritos salientam-se vários pontos: a importância atribuída à Tradição
■apostólica oral; o primado da Igreja de Roma (fundada por Pedro e Paulo); a dou
trina da "recapitulação” da humanidade pecadora, em Cristo, o segundo Adão. De
grande interesse a sua Cristologia. Como são Justino (e depois Tertuliano) Ireneu se
refere a Maria como à nova Eva, diferente da primeira por sua obediência à palavra de
Deus, o que a tornou “causa de salvação* para o gênero humano.
Excelente edição crítica está aparecendo na coleção “Sources Chrétiennes”, 100,
152, 153, 211 (livros I I I , IV e V do Adv. Haer.). Em S.C. 62: tradução francesa da
D e m o n stra ç ã o , do armênip; em A.C.W., 16, tradução inglesa.
CONTRA AS HERESIAS
1 Lc 10,16.
2 Cf, lTm 3.15.
Não se pode dizer que tenham pregado antes de possuírem o
“conhecimento perfeito” 3, como alguns afirmaram audaciosamente
presumindo até corrigir os apóstolos. Porque depois que Nosso Senhor
ressurgiu dos mortos e foram os apóstolos revestidos da força do
alto pela vinda repentina do Espírito Santo, ficaram eles repletos
de dons e tiveram o “conhecimento perfeito”. Desde então parti
ram “até os extremos da terra”, proclamando a boa nova dos bens
que Deus nos ènvia e anunciando aos homens a paz do céu: eles
possuíam, todos igualmente e cada um em particular, o Evangelho
de Deus.
183 Mateus precisamente, entre os hebreus, e também em sua pró
pria língua, fez aparecer uma forma escrita de evangelho, ao tempo
em que Pedro e Paulo evangelizavam e fundavam a Igreja em Roma.
Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro,
nos transmitiu igualmente por escrito a pregação de Pedro. Da mes
ma forma Lucas, o companheiro de Paulo, consignou em livro o evan
gelho pregado por este. Enfim João, o discípulo do Senhor, o mesmo
que reclinou sobre seu peito, publicou também o Evangelho durante
a estadia em JÉfeso.
184 Ora, todos estes nos legaram a seguinte doutrina: um só Deus,
Criador do céu e da terra, anunciado pela Lei e pelos Profetas; e
um só Cristo Filho de Deus.
Quem não lhes dá assentimento despreza os que tiveram parte
com o Senhor, despreza o próprio Senhor, despreza enfim o Pai;, e
assim se condena a si mesmo, pois resiste e se opõe á sua salvação
— e é o que fazem todos os hereges.
Quando estes são arguidos a partir das Escrituras, põem-se a
acusar as próprias Escrituras: os textos estão corrompidos, são apó
crifos, não concordam, é impossível achar neles a verdade se se
ignora a tradição. Porque — (prosseguem dizendo) — essa verdade
não foi transmitida por escrito e sim de viva voz, conforme disse
Paulo: “Nós falamos da Sabedoria entre perfeitos, não da sabedoria
deste m undo” 4.
185 Tal sabedoria é a que cada um pretende ter achado por si
mesmo, quer dizer, é o fruto de sua imaginação, tanto que eles
não veem inconveniente em atribuí-la ora a Valentirio, ora a
Marcião, ora a Cerinto, Basílio ou qualquer outro que contesta
(a Igreja) sem ter dito uma só palavra salutar. Cada um deles chega
ao cumulo de “se pregar a si mesmo” 5 ao falsear a regra da
verdade.
3 Os gnós ticos pretendiam que esse "conhecimento perfeito” faltara aos Apóstolos
ou, se foram iniciados nele, não o transmitiram a todos mas somente a alguns, de mo
do secreto.
4 lCor 2,6. Texto eleito da Gnose.
5 Cf. 2Cor 4,J>
CONTRA AS HERESIAS 117
8 Texto célebre, que comporta toda uma literatura. Ver S.C., vol. 34. p. 414ss.
Em latim: "Ad hanc enim ecdesiam, propter pctentiorem prindpalitatem, necerse est
omnem convenire ecclesiam, — hoc est eos qui sunt undique fideles, — in qua sem-
per, ab his qui sunt undique, conservata est ea quac est ab apostolis Tr adi tio ”.
9 Cf. 2Tm 4,21. ■
10 Ireneu nos conserva aqui um documento de grande valor: a lista dos bispos de
Rema desde s. Pedro. Seu contemporâneo Hegesipo também se refere a uma lista de
pontífices romanos (cf. Eusébio, Hist. eccl., IV, 22,2), a qual se reencontra em Júlio
Africano (c. de 221). Outra fonte se acha na Crônica de Hipólito (séc. I I I ) .
CONTRA AS HERESIAS 119
1? Rm 5,8-10.
14 Rm 8,34.
15 Rm 6,9.
16 Rm 8,11.
17 Santo Ireneu alude aqui às diversas e mitológicas concepções que os gnósticos
tinham sobre Jesus Cristo.
18 Is 11,2.
19 Is 61,1.
CONTRA AS HERESIAS 123
20 M t 1 0 ,2 0 .
21 M t 28,19.
22 J1 3,1-2.
23 SI 50,13.
24 L c 2 3 ,2 1 .
124 SANTO IR EN EU
197 Para mostrar aos discípulos ser ele próprio o Verbo a quem se
deve o conhecimento do Pai, e para censurar a pretensão judaica de
possuir a Deus sem admitir o seu Verbo, pelo qual Deus é co
nhecido, dizia o Senhor: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai e
ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser
revelar” h É o que está escrito em Mateus, também em Lucas e em
Marcos; João emitiu esta passagem. Mas os que pretendem saber mais
que os apóstolos, modificam o texto da seguinte forma: “Ninguém
conheceu o Pai senão o Filho, nem o Filho senão o Pai, e aquele a
quem o Filho quiser revelar”; e explicam no sentido de que o verda
deiro Deus não foi por ninguém conhecido antes da vinda de nosso
Senhor: o Deus pregado pelos profetas não seria, dizem eles, o Pai
de Cristo.
1 C f. J o 4 ,1 0 .
2 ICor 12,11.
3 Tr 2 ,1 3 .
1 M t 1 1 ,7 ; L c 1 0 ,2 2 . A q u e p assa g em d e M c e s ta r ia a lu d in d o I r c n c u , a se g u ir?
CONTRA AS HERESIAS 125
A s “m ãos* de Deus *
(liv. IV. 7,4: P.G. 7, 991; S.C. 100)
2 “Agnitio enim Patris est Filii manifestado: omnia enim per Verbum manifestan-
tur”.
1 E x 3,7-8.
126 SANTO IR EN EU
por aqueles que são a uma vez sua Progenitura e suas Mãos, a saber,
o Filho e o Espírito, o Verbo e a Sabedoria, aos quais por sua vez
ministram, submissos, todos os anjos.
A criação do homem
(liv . I V , 14,1-2: P .G . 7 , IOIOs; S .C 1 0 0 )
201 N o com eço. . . não foi porque necessitasse do homem que Deus
plasmou Adão, e sim para ter alguém no qual depusesse seus bene
fícios. Pois não só antes de Adão, mas antes de toda a criação, o
Verbo glorificava o Pai, embora permanecendo n ’Ele, e era glorificado
pelo Pai, consoante a palavra: “Pai, glorifica-me com a glória que
eu tinha junto de ti antes que fosse feito o mundo” l .
Nem foi tampouco porque necessitasse de nossos préstimos que
nos mandou segui-lo, mas para nos proporcionar a salvação. Porque
seguir o Salvador é participar da salvação, como seguir a luz é par
ticipar da luz. Quando alguém está na luz, não a faz luzir mas é ilu
minado e abrilhantado por ela; nada lhe confere, beneficia-se por ela
e por seu clarão. Da mesma forma no serviço de Deus: a D eus nada
se confere, ele não precisa do serviço dos homens; estes, sim, que o
servem e o seguem, dele recebem a vida, a incorruptibilidade e a
glória eterna. Ele lhes dá seus benefícios porque o servem e porque o
seguem, sem nada receber em troca, pois é perfeito e sem carência.
Se Deus solicita o serviço dos homens é para poder — Ele, bom e
misericordioso — conceder seus benefícios aos que perseveram em
servi-lo. Deus de nada precisa, mas o homem precisa da comunhão
de Deus: a glória do homem é perseverar no serviço de D e u s12.
Por isto dizia o Senhor aos discípulos: “não fostes vós que me
escolhestes, mas eu que vos escolhi” 3, indicando não o glorificarem eles
por estarem seguindo-o, mas serem glorificados por seguirem o Filho
de D eu s. . .
Assim, D eus, desde o começo plasmou o homem em vista de
seus dons. Escolheu os patriarcas, em vista de sua salvação; for
mou um povo, para ensinar-lhe em sua ignorância a seguir a Deus;
foi preparando os profetas para habituar o homem, sobre a terra, a
portar o seu Espírito e a ter comunhão com Deus. Ele, que de nada
necessita, oferecia comunhão aos que dele necessitavam. Aos que lhe
eram agradáveis ia desenhando, como arquiteto, c edifício da sal
vação; aos que não enxergavam, no Egito, se fazia de condutor;
aos turbulentos, no deserto, doava uma Lei, perfeitamente adaptada;
aos que ingressavam na boa terra, proporcionava a conveniente heran
ça; enfim, aos que se voltavam para seu Pai, presenteava com um
1 Jo 17,5.
2 “In quantum enim Deus nullius indigens, in tantum homo indiget. Dei commu-
nione. Haec enim gloria hominis, perseverare ac permanere in Dei servitute”.
5 Jo 15,16.
CONTRA AS HERESIAS 127
Não se pede conhecer a Deus segundo sua grandeza, pois é im- 202
possível mensurar o Pai. Mas, segundo seu amor — e este nos con
duz a Deus por seu Verbo — cs que lhe obedecem aprendem sem
pre que existe um grande Deus, Criador por si mesmo de todas
as coisas.
Ora, entre estas estamos nós com o nosso mundo. Portanto,
também nes e tudo que o mundo encerra, femos feites por Ele. É
o que diz a Escritura: “Deus plasmou o homem do limo da terra,
insuflando-lhe um sopro de vida” i. Não foram os anjos que o fizeram
ou plasmaram — cs anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus!
— nem qualquer outro ser fora do verdadeiro Deus, qualquer potên
cia distante do Pai universal. Nem Ele teria necessidade desses para
realizar o que em seu íntimo predestinara fazer, como se acaso não
tivesse suas próprias mãos! Sim, desde sempre há junto dele o Verbo
e a Sabedoria, o Filho e o Espírito, pelos quais e nos quais fez
tedas as coisas, livremente, com toda independência. Foi aos mesmos
que o Pai se dirigiu, dizendo: “façamos o homem à nossa imagem e
semelhança” 2. Fci, pois, per si mesmo que temou a substância das
criaturas, o modelo das coisas feitas, a figura das coisas que foram or
denadas . . .
Já temos mostrado que o Verbo, isto é, o Filho, esteve sempre 203
com o Pai. Mas também a Sabedoria, o Espírito, estava igual
mente junto dele antes de toda a criação, conforme dito per boca de
Salomão: “Deus pela Sabedoria fundou a terra, preparou c céu pela
Inteligência; por sua Ciência brotaram os abismos e as nuvens distila
ram o orvalho” 3. . .
Assim, não há senão um só Deus, que pelo Verbo e pela Sabe
doria tudo fez e harmonizou. É ele o Criador, e o que fixou este
mundo para o gênero humano. Ignoto, por sua grandeza, a todos os
seres que fez — não havendo quem tenha perscrutado sua elevação
— é porém sempre conhecido, segundo seu amor, graças àquele
por meio de quem criou o universo: seu Verbo, nesso Senhor Jesus
Cristo, aquele que nos últimos tempos se fez hemem entre os homens,
para reunir c fim ao Princípio, o homem a Deus.
4 Lc 1,71.
5 I.c 1,74-75.
6 E x 3 3 ,2 0 .
7 Lc 18,27.
CONTRA AS HERESIAS 129
veito. Pois onde há composição, há melodia; onde há melodia há pre
visão dos mementos; onde há previsão há bom proveito.
O Verbo se tornou assim o dispensador da graça do Pai para o 205
proveito dos homens, em vista dos quais realizou grandes “econo
m ias”, mostrando Deus aos homens e apresentando o homem a Deus,
salvaguardando a invisibilidade do Pai, a fim de não vir o homem
a desprezar a Deus, a fim de ter sempre para onde progredir. E
ao mesmo tempo tornando-lhes Deus visível pelas múltiplas “econo
mias”, impedindo-os de se privarem totalmente: d ’Ele e de perde
rem até a existência. Porque a glória de Deus é o homem vivo,
e a vida do hemem é a visão de Deus. Se já a revelação divina através
da criação dá a vida a todos os seres que vivem sobre a terra, quanto
mais a manifestação do Pai pelo Verbo não dá a vida aos que vêem
a Deus!
1 M t 2 6 ,2 8 .
* Ml 1,10-11.5
Mas, porque é o nome de seu próprio Filho — que Ele fez nascer
homem — declara-o seu. Como um rei que tivesse gravado o retrato
do filho, dizendo ser seu próprio retrato — por ser de seu filho e
por ter sido o gravador — assim ocorre com o nome de Jesus
Cristo, que através do mundo é glorificado na Igreja: o Pai declara
seu, pois é de $eu Filho e porque ele mesmo o gravou quando o con
signou para a salvação dos homens ( . . . ) .
208 Portanto, a oblação da Igreja, que o Senhor prescreveu fosse ofe
recida por todo o mundo, é reputada sacrifício puro e agradável jun
to de Deus. Ele não precisa de nosso sacrifício, mas quem o ofe
rece se terna honorificado pela dádiva que oferece, quando é aceita.
Pòis pela dádiva se manifestam a honra e a veneração que tributamos
ao Rei, esta dádiva que o Senhor nos quer ver oferecendo com toda
simplicidade e inocência: “se levares tua dádiva diante do altar”,
ensina ele, “e te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa-a
ante o altar e vai primeiro reccnciliar-te com o irmão; depois virás e
a oferecerás” 3. Importa oferecer a Deus as primícias de suas criatu
ras, como dizia Moisés: “não te apresentarás ao Senhor teu Deus
com as mãos vazias” 4. Expressando-lhe reconhecimento por meio das
coisas que ele mesmo concedeu, o homem receberá a honra que
promana dele ( . . . ) .
As assembléias dos hereges não fazem a oblação que convém.
Uns dizem haver outro Pai, distinto do Criador; e então, oferecendo-
-Ihe dons extraídos de nosso mundo criado, supõem-no ambicioso de
bens alheios! Para outros, nosso mundo resulta de uma queda, de
uma ignorância e de uma paixão; e então, oferecendo os frutos dessa
ignorância, paixão e queda, pecam contra seu próprio Pai e o ul
trajam mais do que lhe rendem graças!
209 Aliás, como terão a certeza de que o pão eucaristizado5 é o corpo
do Senhor, e o cálice seu sangue, se não o dizem Filho do Autor
do mundo, seu Verbo, aquele pelo qual a árvore frutifica, as fontes
jorram, a terra produz a erva, a espiga e o trigo?
Como haverão de pretender então que a carne está destinada
à corrupção e não participará da vida, a carne nutrida pelo corpo do
Senhor e por seu sangue? Mudem seu modo de pensar! Quanto a
nós, nossa idéia concorda com a Eucaristia e a Eucaristia vem confir
má-la, pois oferecemos a Deus o que é seu, proclamando ao mesmo
tempo a comunhão e união entre a carne e o Espírito: da mesma
forma que o pão terreno, após receber a invocação de Deus, já não
é pão comum, mas Eucaristia, constituída de duas coisas, uma terres
tre e outra celeste, também nossos corpos, que participam na Euca
ristia, não são mais corruptíveis, possuem dentro deles a esperança
da ressurreição.
3 M t 5,23-24.
4 D t 1 6 ,1 6 .
5 N o te x t o g re g o : “ to n e u c h a ris te th é n ta á r to n ” .
CONTRA AS HERESIAS 131
6 Pr 19,17.
7 M t 25,34-36.
i Q 1,14.
132 SANTO IR EN EU
3 2Cor 12,9.
4 J o 1 4 ,1 1 .
CONTRA AS HERESIAS 133
cidade” 910. Por toda a parte a Igreja anuncia a verdade: ela é o can
delabro de sete luzes lu que transporta a luz de Cristo.
Os que abandonam a pregação da Igreja acusam de ignorância os
santos presbíteros, não percebem que muito mais vale ser homem sim
ples, mas religioso, do que filósofo sutil, mas blasfemo e atrevido.
Assim são os hereges ao pretenderem descobrir algo além da verdade.
Os que adotam as doutrinas heréticas acima referidas seguem cami
nhos vários, múltiplos, inseguros; não tendo as mesmas sentenças
acerca das mesmas coisas, são ccmo cegos conduzidos per cegos, e irão
cair merecidamente na cova da ignorância, aberta sob seus pés:
estão sempre procurando sem jamais encontrarem a verdade.
Convém evitar suas sentenças e precaver-se atentamente pa- 217
ra não ser por eles incomodado; convém refugiar-se na Igreja e ser
educado em seu grêmio, nutrido com as santas Escrituras do Se
nhor. Pois a Igreja está plantada neste mundo como o Paraíso.
“Comereis do fruto de toda árvore do Paraíso” 11, diz o Espírito
de Deus; isto é: comei de toda Escritura do Senhor, não co
mais, porém, com um senso mais elevado do que convém nem vos
envolvais nas dissenções dos hereges, que pretendem possuir o co
nhecimento do bem e do mal, lançando sobre Deus, que os criou,
suas ímpias proposições. Pretendem compreender acima da medida
da compreensão. Diz o Apóstolo: “não saber mais do que con
vém, mas saber com prudência! ” 12 para não sermos expulsos do
Paraíso da vida por comermos de um conhecimento como o dos
hereges, que prova mais do que convém. Nesse Paraíso o Senhor
coloca os que ouvem seu preceito, “recapitulando em si tudo o que
existe no céu e sobre a terra” 13. As coisas do céu são espirituais,
as da terra estão na medida do homem. A todas elas o Senhgr
recapitulou em si mesmo, unindo ao Espírito o homem, colocando o*
Espírito no homem. Tornou-se assim a Cabeça do Espírito e fez do
Espírito a Cabeça do homem, o Espírito em quem vemos, ouvimos e
falamos.
9 Sb 9,15.
10 Ap 2,1.
11 Gn 2,16.
12 Rm 12,3.
13 Cl 1,20.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA
(t c. d e 2 1 5 )
T i t o F lá v io G e m e n t e n a s c e u p ro v a v e lm e n te e m A te n a s , p o r v o lta d e 1 50. C o n v e r
t i d o a o c r is tia n is m o , v ia jo u p e la I tá lia , S ír ia , P a le s tin a e fix o u -se e m A le x a n d ria , o n d e
fo i a lu n o d o fa m o s o P a n te n o , a q u e m s u c e d e u c o m o p ro f e s s o r a p a r ti r d e 2 0 0 .
D u r a n t e a p e r s e g u iç ã o d e S e tím io S e v e ro ( 2 0 3 ) , d e ix o u o E g ito , p a s s a n d o à S íria
e Á s ia M e n o r , o n d e m o r r e u a n te s d e 2 1 5 .
S u a g r a n d e e m p re s a fo i t e n ta r a a lia n ç a d o p e n s a m e n to g re g o co m a fé c r is t l . " C o
m o a L e i fo r m o u o s h e b r e u s , a filo so fia fo r m o u o s g re g o s p a r a o C r is to ” . É u m d o s
p r im e ir o s d o u to r e s q u e fiz e ra m “ te o lo g ia ” . D e s u a s o b ra s te m o s a Exortação aos gregos
( o u Protréptico, o b r a d e a p o lo g ia ) , o Pedagogo ( in s tru ç õ e s c a te q u é tic a s ) , as Tapeçarias
( o u Stromata, s o b r e v á r io s a s s u n to s ) e tc . S e u Hino ao Cristo Salvador, co m o q u a l d á
c o n c lu sã o a o Pedagogo, é d o s m a is b e lo s p o e m a s d a a n tig u id a d e c ris tã . S e p e la fo r m a
s e i n s p ir a n a l i te r a t u r a g re g a clá ssic a, te m u m fu n d o e s s e n c ia lm e n te b íb lic o , r e to m a n d o
o te m a , d e s e n v o lv id o n o liv ro , d o V e rb o d iv in o co m o e d u c a d o r d o s fiéis.
E d iç õ e s e m g re g o e fr a n c ê s : S .C . 7 0 , 1 0 3 , 2 , 3 0 , 3 8 , 2 3 , 158.
1 C o s tu m e , r o tin a . G r a n d e o b s tá c u lo p a r a a c o n v e rs ã o ao c r is tia n is m o e r a , e n tr e o s
g re g o s , u m a a t i t u d e c o n s e rv a d o ra , a p e g a d a aos h á b ito s m e n ta is d e su a tra d iç ã o : “ n ã o
é ra z o á v e l m u d a r u m h á b i t o q u e n o sso s p a is n o s t r a n s m itir a m ” (c f. Protréptico,
ccp. 1 0 ).
2 Odisséia, 12.
3 Ib id .
EXORTAÇÃO AOS GREGOS 137
4 C f. H e s ío d o , Trav.
5 A lu s ã o ta lv e z a U lis s e s p r e s o a o m a s tro d o n a v io a o ap ro x im a r-se d a ilh a d a s
S e re ia s , m a s o s im b o lis m o é o d a C ru z d e C ris to .
6 l C o r 2 ,9 .
7 E u r í p e d e s , Bacch.
8 Ez 18,23.32; 33,11.
9 S e m e ie : D i v in d a d e g re g a , a m a n te d e Z e u s , d o q u a l te v e D io n ís io .
10 Mênades cu “possessas”, mulheres dedicadas ao culto de Dionísio.
H IN O AO CRISTO SALVADOR1
(P.G. 8, 681-683; S.C. 158)
1 T ra d u çã o d e D . M a r c o s B a rb o sa .
SOBRE A SALVAÇÃO DOS RICOS
( P .G . 9 , 6 0 3 -6 5 2 )
Os que fazem discursos elogiando os ricos devem ser tidos por 224
aduladores, penso eu, pois afetam pagar caro o que não merece
agradecimento; e além disto, por ímpios e insidiosos. ímpios, por
que a honra que se deve a Deus — o único perfeito e bom, “de
quem tudo provém, por meio de quem tudo existe, para o qual tudo
é ” 1 — prestam-na a homens pecadores e postos sob o juízo de Deus.
Insidiosos, porque agem como se já não bastassem as riquezas para
desvanecer seus possessores, corrompê-los e desviá-los, como se fosse
preciso inebriá-los ainda com novos louvores. Levam-no assim a
menosprezar tudo que não sejam as mesmas riquezas, de onde lhes
está vindo sua honra.
Como diz o provérbio, ateiam lenha ao fogo, ajuntam luxo ao lu
xo, acrescentam uma carga à riqueza, novo peso ao peso, quando o
melhor seria diminuir o gravame da enfermidade, tantas vezes mor
tal! Pois é assim que se segue a humilhação ao que antes foi exalta
ção, conforme a palavra divina123.
De minha parte, penso melhor ajudar os ricos com razões e
meios que lhes facilitem a salvação. Primeiro, suplicando isso a Deus;
segundo, curando suas almas ccm a graça do Salvador, iluminando-as
e condúzindo-as à posse da verdade. Somente quem chega à verda
de, e ao mesmo tempo a traduz nas boas obras, conseguirá o galardão
da vida eterna. Ora, a oração, que há de durar até o último dia da
vida, pede uma alma robusta e serena, e a ação requer uma disposição
boa e constante, que há de estender-se a todos os mandamentos do
Salvador.
Apesar disto, talvez não seja tão simples, mas antes completa, 225
a razão por que a salvação pareça mais difícil aos ricos do que ao$
pobres. Uns, com efeito, ouvem com simplicidade a palavra do Salva
dor: “é mais fácil o camelo passar pelo fundo de uma agulha do que
o rico entrar no reino dos céus” \ e chegam a desesperar de si,
como se já não pudessem obter a vida eterna, entregando-se então
cada vez mais ao mundo, apegando-se à vida presente como se fosse
única, apartando-se cada vez mais do caminho para a outra vida, sem
averiguar a quem interpela o Salvador ou de que maneira o impossível
para os homens é possível para Deus. Outros entendem ccrretamente
a palavra do Senhor, mas se descuidam das obras salvíficas e não
se preparam devidamente para alcançar o que esperam. Refiro-me
sempre aos ricos que conhecem o Salvador e sua gloriosa redenção.
Não me refiro aos que desconhecem a verdade.
1 Rm 11,35.
2 M t 2 3 ,1 2 .
3 M t 1 9 ,2 4 .
Ora, os que amam a verdade e igualmente a seus irmãos, os
que não atacam petulantemente os ricos chamados à fé, nem tam
pouco os lisonjeiam gananciosamente, convém que primeiro lhes ti
rem com boas razões todo desespero e lhes expliquem os oráculos do
Senhor, os quais não excluem a herança do reino celeste aos que
obedecem os mandamentos. Convém, em segundo lugar, recordar-lhes
que seu temer é irrazoável e que, se desejarem, o Senhor os acolherá
de bom grado. Mas será preciso também iniciá-los misticamente na
maneira pela qual, com obras e disposições de espírito, se soergue á
esperança, sempre na suposição de que não lhes está fechada a salva
ção e de que não se lhes abre sem esforço. Se usássemos de uma
comparação, diríamos acontecer aqui o mesmo que entre os adetas.
Entre estes, quem desespera de vencer e obter o prêmio já
nem se inscreve entre os concorrentes. De outro lado quem tem uma
boa esperança, mas não se impõe os devidos exercícios, também fica
sem o prêmio e sua esperança falirá.
226 Semelhantemente, quem possui muitas riquezas da terra não
se tenha por excluído dos galardões do Senhor, desde que seja fiel
e compreenda a magnificência da bondade de Deus; nem de outro
lado espere cingir-se com a coroa da imortalidade se não se exercita e
combate, se não se cobre de pó e suor. Submeta-se ao Verbo como
ao diretor dos exercícios, a Cristo como ao presidente do certame.
O regime alimentar a que se há de sujeitar seja o Novo Testamento
do Senhor. Os exercícios, os mandamentos divinos; a boa forma,
as disposições interiores: a caridade, a fé, a esperança, o conheci
mento da verdade, a moderação, a mansidão, a misericórdia, a mo
déstia. Desta sorte, quando a trombeta der o sinal da carreira e da
saída deste mundo, do estádio desta v id a4, apresente-se vencedor,
com boa consciência, ante o presidente dos jogos, digno de retornar
à Pátria, ecroado e aclamado pelos anjos.
Que o Salvador, pois, nos conceda expor a verdade salutífera a
nossos irmãos, primeiro naquilo que diz respeito à própria esperan
ça, depois no que diz respeito ao que leva a ela. Ele dá a "graça aos
que precisam e ensina aos que desejam aprender, destrói a ignorân
cia e dissipa o desespero, na maneira mesma como introduz seus dis
cursos sobre os ricos, discursos que são interpretativos de si pró
prios. Com efeito, nada como ouvir novamente as palavras do Evan
gelho, as quais nos perturbaram porque as temos escutado de maneira
errônea5.
4 C f. l C o r 9 ,2 4 .
3 Clemente insere aqui a passagem do jovem rico: Mc 10,17-31.
vedor sobre a salvação, ao Mestre sobre a síntese de sens ensinamentos,
à Verdade sobre a verdade, à Imortalidade sobre a imortalidade, à
Palavra sobre a palavra do Pai, ao Perfeito sobre o perfeito descan
so, ao Incorrupto sobre a verdadeira incorrupção. Formula-se ao Se
nhor uma pergunta sobre aquilo mesmo pelo que ele descera ao
mundo, e que constituía o objeto de seu ensino: a vida eterna. Ora,
como Deus, ele sabia o que ia ser perguntado e qual a resposta que
ele próprio, ao interrogar por sua vez, haveria de receber. Quem,
mais do que ele, era profeta dos profetas e senhor de todo espírito
profético? Quando o chamam bom, faz desta palavra a ocasião para
começar o ensinamento, levando o discípulo ao Deus bom, primeiro
e único dispensador da vida eterna, da vida que o Filho comunica,
recebida do Pai.
Assim, o maior dentre os ensinamentos sobre a vida eterna de- 228
ve ser imediatamente impresso na alma, a saber: o reconhecimento
do Deus eterno, a compreensão de que Deus é o primeiro, o supremo,
o único, o bom. O princípio inabalável e fundamental para a vida,
é a ciência de Deus, do Deus eterno que nos doa o eterno, do Ser
do qual tudo recebe o ser e a permanência no ser. A ignorância de
Deus é a morte. O conhecimento de Deus, o relacionamento com ele,
seu amor: eis a única coisa que é vida.
A primeira recomendação que Jesus faz a quem busca a verdadei
ra vida é a de conhecer àquele que ninguém conhece, exceto o Fi
lho e exceto quem recebe a revelação do F ilho6. Trata-se portanto
de conhecer a grandeza do Salvador e a nova graça, a qual sendo
dada pelo Filho, supera a dada pelo servo, conforme diz o Apóstolo:
“a lei nos foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade por obra
de Jesus Cristo " 7. Realmente, se a lei de Moisés fosse capaz de pro
porcionar a vida, teria sido inútil a descida do Salvador, sua paixão
por nossa causa, seu itinerário percorrido do nascimento ao fim. E
inútil teria sido que o jovem rico, após ter observado desde cedo*
todos os mandamentos, se viesse a prostrar ante ..outra instância para
solicitar o prêmio da vida imortal.
Ele não só cumprira a Lei, mas a cumprira desde a infância. ..
Que há de especial se a velhice não se entrega ao pecado? O lutador
admirável é o que, desde o verão da existência, se mostra amadure
cido como se já vivesse precocemente a idade provecta. Contudo,
por grande que fosse tal lutador, estaria bem consciente de que, se
quanto à justiça nada lhe faltava, quanto à vida tudo lhe faltava.
E então pede-a ao único capaz de concedê-la. Quanto à Lei, estava
seguro desde muito tempo; ei-lo porém súplice ante o Filho de Deus.
De uma fé passa a outra. Como alguém que não se sente seguro na
barca da Lei, como o viajante que navega, ele busca o Salvador.
6 M t 1 1 ,1 7 .
7 Jo 1,17.
229 Jesus não o repreende, por não ter de fato cumprido toda a Lei,
antes o ama e felicita por seguir fielmente a instrução recebida. En
tretanto, no que concerne a vida eterna, declara-o imperfeito, por
não ter realizado o que a perfeição requer. Operário da Lei, sem
duvida, mas ainda deficiente quanto à vida eterna. Ninguém con
testa que a Lei era boa, pois “o mandamento é santo” 8, no sentido
de uma função de pedagogia e de instrução prévia9, a caminhar pa
ra a culminânçia da lei de Jesus e para a graça. Mas a plenitude da
Lei é Cristo, que justifica todo o que crê. E Jesus, não sendo escra
vo, não faz escravos mas filhos, irmãos, co-herdeiros seus, todos os
que cumprem a vontade de seu Pai.
“Se queres ser perfeito” 10: logo, ainda não o era, pois o perfeito
não se aperfeiçoa. E disse divinamente “se queres”, indicando a
faculdade de livre arbítrio daquele com quem falava. Ao homem,
enquanto livre, cabia a escolha; a Deus cabe dar, como Senhor e
Juiz que é. Ele dá aos que querem, se esforçam e pedem, a fim de
que sua salvação brote deles mesmos. Deus não força a ninguém, a
violência lhe é inimiga. Ele atende aos que buscam, dá aos que pedem,
abre aos que batem à porta 11.
Assim, se queres, se realmente, sem te enganares a ti mesmo,
queres obter o que te falta, “uma coisa te falta”, a única coisa que
permanece, aquilo que é bom e está acima da Lei, o próprio dos que
vivem.
Infelizmente o jovem que desde a infância observava a Lei, e
tão alto proclama sua observância, não foi capaz de comprar a única
coisa própria do Salvador, para assim chegar à desejada vida eterna.
E retirou-se triste, pesaroso pelo mandamento daquela vida que viera
suplicar.
230 Ora, que o moveu à fuga e o fez deixar o Mestre, deixar a sú
plica, a esperança e os esforços já iniciados? A palavra “vende tudo
o que tens”! E que quer dizer ela? Não o que levianamente pensam
alguns. O Senhor não nos manda lançarmos fora os bens e nos afas
tarmos de toda riqueza. O que ele deseja é desterrarmos da alma
os vãos juízos sobre as riquezas, a cobiça desenfreada, a avareza, as
solicitudes, os espinhos do século, que sufocam a semente da verda
deira vida.
Não é grande façanha, digna de emulação, carecer dos bens mas
não ter a tendência para a vida eterna. Se o caso fosse este, os que
nada possuem, os destituídos de todo auxílio, que diariamente passam
mendigando pelos caminhos, sem conhecimento de Deus e de sua jus-
tiça, seriam, pelo simples fato da extrema indigência, os mais fe
lizes e amados por Deus, os únicos que alcançariam a vida eterna.
Aliás, nem é novidade o renunciar às riquezas em prol dos necessi
tados e pobres, pois também isto foi feito por muitos antes da vinda
do Salvador: por uns, com o fim de se dedicarem às letras e por amor
da sabedoria morta; per outros, com o fim de obtenção da fama
e da vã glória: Anaxágoras, Demócrito, C rates.. .
Portanto, que diz o Senhor como coisa nova, própria de Deus,
como única coisa que vivifica e difere do que não salvou antes os
homens? que nos indica e ensina o novo homem, o Filho de Deus?
Não nos manda o que simplesmente dá na vista e outros já fizeram,
mas algo maior, mais divino e mais perfeito, aí significado, a saber:
desnudarmos a alma das paixões, arrancarmos e projetarmos longe
o que é alheio ao espírito. Eis o ensinamento próprio do crente, eis
a doutrina digna do Salvador! Assim, os que antes do Senhor depre
ciaram os bens exteriores, sem dúvida abandonaram e perderam suas
riquezas, mas as paixões de suas almas, penso eu que ainda as au
mentaram. Porque, imaginando terem feito algo de sobre-humano,
vieram a cair na soberba, na petulância, na vã glória e no menosprezo
dos demais.
Como então haveria o Salvador de recomendar aos que irão viver 231
para sempre algo nocivo à vida, que ele santamente promete? Pode
acontecer que alguém, embora renunciando ao peso dos bens e rique
zas, mantenha o desejo de tudo isso na alma. Desprendeu-se dos bens
mas ao sentir falta deles e ao desejá-los de novo, está duplamente
atormentado: por tê-los deixado e por desejá-los. Porque na ver
dade é impossível carecer do necessário e não estar preocupado para
obtê-lo; mas com isto o espírito se desvia das coisas mais importantes.
Quão mais proveitoso é o contrário! Possuir, de um lado, o
suficiente, não ter que angustiar-se para procurá-lo, e de outro lado
poder ajudar aos que precisam. Se ninguém tivesse nada, como have-i
ria comunhão de bens entre os homens? Não é claro que essa dou
trina do abandono de tudo iria contrariar outros ensinamentos do
Senhor? “Fazei amigos com as riquezas da iniqüidade, a fim de que
quando precisardes vos recebam nos eternos tabernáculos” 12. “Tende
tesouros nos céus, onde as traças e a ferrugem não os consomem nem
os ladrões podem roubar” 13. Como dar de comer ao que tem fome,
de beber ao que tem sede, vestir o nu, acolher o desamparado —
coisas todas que devem ser feitas sob a ameaça do fogo eterno e das
trevas exteriores — se não se tem com que fazê-lo?
Ademais, o próprio Senhor, hospedando-se na casa de Zaqueu e 232
Mateus, que eram ricos e publicanos, não lhes ordena desfazerem-se
das riquezas, mas — impondo um justo juízo e rechaçando a injus-
12 Lc 16,9.
13 Mt 6,19.
uça — termina por dizer: "hoje veio a salvação a esta casa, porque
também este homem é filho de Abraão” 14. Elogiava assim o uso das
riquezas, enquanto mandava que servissem à comunicação — a dar
de beber ao que tem sede, de ccmer ao faminto, à acolhida do pere
grino, à vestiçlo do nu. Se não é possível obviar a tais necessidades
sem haveres, e se o Senhor ordena o despcjamento dos haveres,
está então mandando que se dê e não se dê, se dê de comer e não
se dê de ccmer, etc., o que seria absurdo pensar.
Portanto,' não há que abandonar os bens capazes de ser úteis a
nosso próximo. Aliás as posses se chamam “bens” porque com elas
se pode fazer o bem, e foram previstas por Deus em função da utili
dade dos homens. São coisas que aí estão, destinadas, como matéria
ou instrumento, ao bom uso nas mãos de quem sabe o que é um
instrumento. Se se usa o instrumento com arte, ele vale; do contrário,
não presta, embora sem culpa disto.
Instrumento assim é a riqueza. Se usada corretamente, presta
serviço à justiça. Se usada incorretamente, serve à injustiça. Por na
tureza está destinada a servir, não a mandar. Não há que acusá-
-la do que não lhe cabe, isto é, do não ser nem boa nem má. A
riqueza não tem culpa. Toda a responsabilidade cabe ao que pode
usá-la bem ou mal, conforme a escolha que estabelece, isto é, se
gundo a mente e o juízo do homem, ser livre e capaz de manejar
por próprio arbítrio o que recebe em mãos. O que importa destruir
não são as riquezas, mas as paixões da alma que impedem o bom
uso das mesmas. Tornado bom e nobre, o homem pode empregá-las
bem e generosamente. Assim, a renúncia a tudo que possuímos, a
venda de todas as posses, há de ser isto entendido nõ sentido das
paixões da alma.
M L c 1 9 ,9 .
ORÍGENES
(c. 184-254)
i Rxq 1,20.
alto e a degustar, e de certo modo entender, o que é celeste através
do que é terrestre.
Deus reproduziu a imagem das coisas celestes nas da terra,
dando a estas certa analogia ccm aquelas, a fim de as tornar mais
compreensíveis em sua multiplicidade e em seu significado. O mes
mo Deus, que fez o homem “à sua imagem e semelhança” 2 parece
ter querido dar também às outras criaturas uma semelhança com cer
tos arquétipos celestes. E a semelhança é tanta que mesmo o grão
de mostarda, “a menor de todas as sementes” 3, tem seu analogadc no
reino dos céus, e então, por essa lei natural que o faz a menor das
sementes (mas capaz de se tom ar maior que as outras árvores, abri
gando nos ramos os pássaros do céu), ele representaria para nós não
só uma realidade celeste mas todo o reino dos céus.
234 Neste sentido é possível que as outras sementes terrestres en
cerrem igualmente analogias e sinais das coisas celestes. E se isso é
verdadeiro para as sementes, deve sê-lo também para as plantas,
e se é verdadeiro para as plantas, deve sê-lo para os ani
mais, aves, répteis ou quadrúpedes. É lícito pensar ainda o seguin
te: a mostarda não é apenas análoga ao reino dos céus por causa dos
pássaros que abriga em seus ramos, mas encerra outra imagem, a da
perfeição da fé ( “quem tem uma fé grande como um grão de mos
tarda poderá dizer a esta montanha: desloca-te, e ela se deslocaráH:
é possível, portanto que as outras realidades também não se limitem
a manifestar de uma única maneira a figura e a imagem das realidades
celestes; será de várias maneiras que elas serão imagens e fig u ras.. .
Assim podemos pensar que os outros seres, sementes, plantas,
raízes, animais, que estão ao serviço das necessidades dos homens,
encerrando, além disso, a figura e imagem do mundo invisível,
têm essa função de elevar a alma e conduzi-la à contemplação das
coisas celestes. É talvez isso o que quer dizer o porta-voz da divina
Sabedoria, quando se exprime assim: “Foi ele quem me deu a ver
dadeira ciência de todas as coisas, que me fez conhecer a constituição
do mundo e as virtudes dos elementos, o começo, o fim e o meio dos
tempos, a sucessão dos solstícios e a mudança das estações, os ciclos
do ano e as posições dos astros, a natureza dos animais e os instintos
dos brutos, o poder dos espíritos e os pensamentos dos homens, a va
riedade das plantas e as propriedades das raízes; tudo que está escon
dido e tudo que está aparente eu conheço” 4.
Mostra-se-nos assim, sem sombra de dúvida, que tudo que se
vê está em relação com algo de oculto, isto é: cada uma das reali
dades visíveis é um símbolo e nos reporta a uma correspondente rea
lidade invisível.
2 G n 1 ,2 7 .
3 M t 1 3 ,3 1 ss.
4 Sb 7,17-21.
Acaso esta passagem da Escritura não explica e esclarece a ques- 235
tão de que nos ocupamos? O escriba da divina sabedoria diz, no
fim de sua enumeração, ter adquirido a ciência “de tudo que está
escondido e de tudo que está aparente”.
Ora, é impossível ao homem conhecer algo das realidades in
visíveis e ocultas se não percebe sua imagem e analogia nas coisas
visíveis; assim, creio que aquele que fez tudo ccm sabedoria deu a cada
uma das espécies criadas a capacidade de encerrar uma lição, um
ensinamento sobre as coisas invisíveis e celestes, a fim de que o es
pírito humano pudesse servir-se delas como de degraus para se elevar
ao entendimento espiritual e encontrar nas coisas celestes o prin
cípio das terrestres. Então, instruído pela sabedoria de Deus, poderá
igualmente declarar: “ tudo que está escondido ou aparente eu co
nheço”.
1 l R s lO ^ s s ,
2 Ef 2,14.
150 ORÍGENES
Ela “visitou o palácio que ele havia construído”, isto é, segura
mente, os mistérios de sua encarnação, sendo sua humanidade a “ca
sa” que “a sabedoria construiu”. E ela viu “os manjares da mesa de
Salomão”, esses manjares, penso, dos quais fala c Senhor quando
diz: “meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e reali
zar suas obras” 3.
“Viu os apartamentos de seus servos”, isto é, sem dúvida, a
hierarquia eclesiástica com suas funções, episcopal e sacerdotal. “Viu
igualmente o serviço de seus oficiais”, isto é, a ordem dos diáconos
que servem na santa liturgia. Não deixou de observar “seus unifor
mes”, os quais penso serem as vestes com que Cristo recobre os des
tinatários destas palavras: “vós todos que vos batizastes no Cristo,
vós vos revestistes do Cristo” 4.
237 Havia ainda “os copeiros”, que me parecem ser os doutores,
que distribuem a palavra de Deus ao povo e preparam a sagrada
doutrina como um vinho que “regozija o coração” de seus ouvintes.
Ela pôde ver “cs holocaustos” de Salomão, isto é, os mistérios
das súplicas e das preces dos fiéis. Tudo isso pôde ver no palácio
do Príncipe da Paz, que é o Cristo, ela, a rainha, “negra, mas bela”.
Estupefata, então declarou: “Era tudo verdade, o que tinha
ouvido em meu país, sobre ti e tua sabedoria!” Mas foi por causa
da palavra, na qual reconheci a Palavra da verdade, que vim ter
contigo. Sim, todas as palavras ouvidas em meu país, da boca dos
sábios deste mundo e des filósofos, não eram a verdade. Só é verdade
essa Palavra que está em ti.
Perguntar-se-ia, porém, como é que a rainha pôde dizer ao rei:
“Eu não cria no que eles me diziam”. Pois não teria vindo ao Cristo,
se não tivesse dado crédito a eles.
O problema talvez possa ser resolvido assim: “Eu não cria no
que eles me diziam”, porque não apoiava minha fé sobre eles, que
me falavam de ti, e sim sobre ti mesmo; não cria em homens,
mas em ti, Deus meu. Deles posso ter aprendido alguma coisa, mas
foi a ti que eu vim.
3 To 4 .3 4 .
4 G 1 3 ,2 7 .
COMENTÁRIO AO EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO 151
8 I C o r 1 2 ,2 8 .
9 J o 9 ,1 .
10 M t 2 3 ,8 .
« 2 C c r 5 ,1 9 .
12 J o 1 ,2 9 .
13 Mt 1,1.
M Mc l.i.
15 Jo 13,25.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE MATEUS 153
trou sua divindade de modo tão absoluto como João que lbe fez
dizer: “eu sou a luz do m undo” 16, “eu sou o caminho, a verdade
e a vida” 17, “eu sou a ressurreição” 18, “eu sou a porta” 19, “eu
sou o bom pastor” 20 e, no Apocalipse, “eu sou o alfa e o ômega,
o começo e o fim, o primeiro e o últim o” 21.
É preciso dizer, pois, que de todas as Escrituras os evangelhos 242
são as primícias e, entre os evangelhos, as primícias são o evange
lho de João, cujo sentido ninguém pode captar se não se reclinou
sobre o peito de Jesus e se não recebeu de Jesus a Maria por mãe.
E, para ser outro João, é preciso tornar-se tal que, como João,
se ouve designado por Jesus como sendo o próprio Jesus. Ora, se
gundo aqueles que têm dela uma opinião sã, Maria não tem outro
filho senão Jesus; portanto, quando Jesus disse a sua mãe: “Eis
aí teu filho” 22 e não: “Eis, esse homem é também teu filho”, é
como se lhe dissesse: Eis aí Jesus, a quem tu geraste. Com efeito,
quem quer que tenha chegado à perfeição “não vive mais, porém
Cristo vive nele” 23 e, se Cristo vive nele, dele é dito a Maria: Eis
aí teu filho, o Cristo.
Será necessário dizer que entendimento seja necessário para se
interpretar dignamente a palavra depositada nos tesouros frágeis
da linguagem comum, a letra que todos lêem, a palavra tornada
sensível e que todos pedem ouvir? Para se entender esse Evangelho
é preciso poder-se dizer com a verdade: “Nós temos a mente de
Cristo, e é assim que conhecemos as graças de Deus”.
A casa de Jesus
CONTRA CELSO
(Ü v . 4 ,1 -6 ; P .G , 11, 1 0 2 8 -1 0 3 6 ; S .C .- 1 3 6 )
Nos três livros precedentes, santo amigo Am brósiol, expus com 246
pormenores o que me veio à mente em resposta ao tratado de Celso.
Passo agora a um quarto livro, visando as objeções que se seguem e
escrevendo-o depois de orar, por Cristo, a Deus. Sejam-me conce
didas palavras como as de Jeremias, quando o Senhor lhe falava:
“eis que pus minhas palavras, como fogo, em tua boca e te estabe
leci sobre as nações e os reinos, para arrancares e demolires, para
3 SI 5 0 ,5 .
4 lCor 13,12.
1 Gn 1,27.
2 ljo 3,2.
1 V e r a tr á s , p á g . 151 n o t a 1.
156 ORÍGENES
arruinares e destruíres, para edificares e plantares” Ia. Preciso de pala
vras capazes de arrancar as idéias contrárias à verdade, de toda alma
iludida pelo tratado de Celso ou por idéias semelhantes às suas.
Preciso também de conceitos capazes de demolir as falsas sentenças
e as pretensões do edifício de Celso, semelhante ao dos que diziam:
“vamos construir uma cidade e uma torre cujo ápice atinja o céu!” 2
Preciso de unia sabedoria que destrua as potências altaneiras que
se elevam “contra o conhecimento de D eu s” 3, que destrua a potência
da empáfia de Celso elevada contra nós. Mas, não devo limitar-me
a arrancar e destruir esses erros, devo plantar, no lugar do que foi
arrancado, a plantação do campo de D e u s4, devo construir, em lugar
do destruído, o edifício de Deus e o templo da divina glória. Por
isso devo orar ao Senhor, dispensador dos dons mencionados em
Jeremias, a fim de que me conceda palavras aptas para erguerem o
edifício de Cristo, para implantarem a lei espiritual e as respectivas
palavras dos profetas.
247 D evo sobretudo estabelecer, contra as presentes objeções de
Celso ( seguintes às que já vim os) como foi realmente predito o
advento de Cristo. Na verdade, ele se volta ao mesmo tempo contra
os judeus e contra os cristãos: os primeiros, que recusam estar rea
lizada a vinda do Cristo mas ainda a esperam; os segundos, que
professam ser Jesus o Cristo predito. Afirma ele: "eis a pretensão de
certos cristãos e dos judeus: um Deus, ou Filho de Deus, conforme
uns desceu, conforme outros descerá sobre a terra para julgar seus
habitantes: um intento tão mesquinho que não são necessárias muitas
palavras para refutá-lo”.
Ele parece falar com exatidão quando diz que não só alguns
judeus, mas todos creem que alguém descerá sobre a terra; ao passo
que apenas certos cristãos dizem já ter descido. Ele quer indicar aqui
os que estabelecem, por meio das Escrituras judaicas, a vinda de Cristo
já realizada, ao mesmo tempo que insinua a existência de seitas que
negam ser o Cristo Jesus a pessoa profetizada5.
Já deixei claro anteriormente, da melhor maneira possível, que o
Cristo tinha sido profetizado; por isto não voltarei às inúmeras provas
deste ponto, para evitar repetições. Mas vê que se ele tivesse querido,
com lógica ao menos aparente, derrubar a fé nas profecias e na vinda
futura ou passada do Cristo, devia citar as profecias a que nós, cristãos
ou judeus, recorremos nos debates. Poderia assim, ao menos aparente
mente, afastar da adesão a elas e da fé em Jesus Cristo os que se sen
tissem atraídos por seu caráter supostamente enganoso. Porém, seja
Ia J r l ,9 s .
2 Gn 11,4.
1,4.
3 2Cor 10,5.
4 l C o r 3 ,9 .
3 R e fe rê n c ia às s e ita s g n ó s tic a s ; c f. I, 49.
CONTRA CELSO 157
6 M t 1 0 ,6 ; 1 5 ,2 4 .
7 M t 2 1 ,4 3 .4 1 .
158 ORÍGENES
conveniente, por que não por imediatamente outra questão, calcada so
bre a afirmação de Celso: Seria impossível a Deus criar, por sua onipo
tência uma humanidade desnecessitada de reforma, desde logo virtuosa
e perfeita, sem a existência da menor malícia? Concepção capaz de
seduzir a gente simples e ignorante, mas não quem examina a natu
reza das coisas! Pois destruir a liberdade da virtude é destruir sua
própria essência. O assunto se prestaria a um estudo especial. Os
gregos trataram dele em livros sobre a Providência. Jamais subscreve
riam a proposição de Celso: “Ele conhece mas não reforma, e ser-lhe-ia
impossível reformar por seu poder divino”. Eu mesmo diversas ve
zes tratei do assunto, da melhor maneira que pu d e8. E as divinas
Escrituras o demonstram aos que podem compreendê-las.
Retorquiríamos contra Celso o que ele mesmo nos objeta, a nós
e aos judeus: — Então, meu caro, o supremo Deus conhece, ou não, o
que se passa entre os homens? Se admites que há um Deus e uma
Providência, como teu tratado permite v e r 9, necessariamente ele co
nhece. E se conhece, por que não reforma? Não será preciso explicar
por que, conhecendo, ele não reforma? Tu que em tua obra não te
mostras epicurista, pois indicas reconhecer a Providência, não te dás
ao trabalho de dizer por que Deus, conhecendo tudo que se passa
entre os homens, não cs reforma e não os livra do mal por seu poder
divino. N ós, porém não nos acanhamos de dizer que ele envia inces
santemente ministres que reformam os homens. (É por um dom de
Deus que se acham na humanidade as doutrinas incitadoras das mais
altas virtudes).
Ora, entre os ministros de Deus há diferenças: alguns pregam
em toda a pureza a doutrina da verdade e.realizam uma perfeita
reforma: tais foram Moisés e os profetas. Mas, superior à obra de
todos, está a reforma operada por Jesus, que quis curar não apenas
cs habitantes de um canto da terra, e sim, enquanto delê dependia, os
do mundo inteiro, pois veio como “Salvador de todes os ho
m ens” 10.
250 Mas depois temos outra dificuldade do prezadíssimo Celso. N ão
sei por que razão, ele nos argüi sobre o qué diríamos: “Deus em pessoa
descerá sobre os hom ens”. Seguir-se-ia, segundo ele, que “Deus aban
dona seu trono”. Ignora a potência de Deus, ignora que “o Es
pírito do Senhor enche o universo, e que, unindo todas as coisas,
sabe tudo c que se diz! ” 11 Celso não consegue compreender a pala
vra: “porventura não preencho eu o céu e a terra?” 12 Não vê que,
segundo a doutrina dos cristãos, todos nós temos em Deus “a vida, o
movimento, o ser” 13, segundo ensinou Paulo aos atenienses. Então,
CONTRA CELSO 159
14 J o 1,1-2.
TERTULIANO
(t c. 220)
C a rta g in ê s , h o m e m g r a n d e m e n te c u lto , e r a a d v o g a d o e m R o m a q u a n d o , p o r
v o lta d o a n o d e 1 9 5 , se c o n v e rte u a o c r is tia n is m o , p a s s a n d o d e s d e e n tã o a s e r v ir
à Ig r e ja em C a rta g o , c o m o z e lo so c a te q u is ta . A o q u e p a re c e , p e r m a n e c e u s e m p re
le ig o . E m 2 0 7 ro m p e u co m a Ig r e ja , a d e rin d o à h e re s ia d e M o n ta n o .
In te lig ê n c ia p e n e t r a n t e , m a s c a rá te r e x a lta d o e in tra n s ig e n te , T e r tu lia n o é a u to r
d e o b r a s p o lê m ic a s, e x p o s ta s d e fo rm a ló g ica, em e s tilo e x tre m a m e n te o rig in a l e la tim
b r i l h a n t e , q u e à s v e z e s m a is d e s lu m b ra m d o q u e c o n v e n c e m . C o m b a te u in ic ia l
m e n te o p a g a n is m o e o ju d a ís m o , d e p o is o g n o stic ism o , o m o d a lis m o e, p o r fim a
Ig r e ja C a tó lic a .
S e u s e s c rito s m a is im p o r ta n te s sã o : Apologético, Prescrição contra os hereges,
Contra Marcião, Contra Praxéias ( o n d e , p e la p rim e ira v e z é u s a d a a p a la v ra “ T r i n i t a s ” ) ,
O testemunho da alma. O u t r a s o b ra s v ersam s o b re te m e s m o ra is e a sc ético s. D o p e
r í o d o m o n ta n is ta são : Sobre a pudicidade, Sobre o manto, e tc .
M o d e r n a e d iç ã o c r ític a : C C L I . I I Tertulliani Opera (1 9 5 3 -1 9 5 4 ).
« APOLOGÉTICO m
OU “DEFESA D OS CRISTÃOS CONTRA OS G E N T IO S”
( C a p . 1: P .L . 1, 3 0 6 -3 1 7 )
D A PRESCRIÇÃO D OS HEREGES
(XIII-XV, XVII, XIX, XX: P.L. 2,31-38; S.C 46)
A re g ra d a f é
I Mc 1032.
DA PRESCRIÇÃO DOS HEREGES 163
serem igrejas. É por isso mesmo que serão consideradas como apostó
licas, na medida em que forem rebentos das igrejas apostólicas.
É necessário que tudo se caracterize segundo sua origem. Assim,
essas igrejas, por numerosas e grandes que pareçam, não são outra coisa
senão a primitiva Igreja apostólica da qual procedem. São todas primi
tivas, todas apostólicas e todas uma só. Para atestarem sua unidade, co
municam-se reciprocamente na paz, trocam entre si o nome de irmãs,
prestam-se mutuamente os deveres da hospitalidade: direitos todos
estes regulados exclusivamente pela única tradição de um mesmo
sacramento.
A partir daí, eis a prescrição que assinalamos. Desde o momento 260
em que Jesus Cristo, nosso Senhor, enviou os apóstolos para pre
garem, não se podem acolher outros pregadores senão os que Cristo
instituiu. Pois ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem
o Filho tiver revelado. Ora, não se vê que Cristo tenha revelado
a outros senão aos apóstolos enviados à pregação, e exatamente à
pregação do que lhes tinha revelado.
É qual a matéria da pregação, isto é, o que lhes tinha revelado
o Cristo?
Aqui ainda assinalo esta prescrição: para sabê-lo é necessário ir às
igrejas fundadas pessoalmente pelos apóstolos, por eles instruídas
tanto de viva voz quanto pelas epístolas depois escritas.
Nestas condições, é claro que toda doutrina em acordo com
a dessas igrejas apostólicas matrizes e fontes originárias da fé de
ve ser considerada autêntica, pois contém o que tais igrejas re
ceberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus.
A o contrário, toda doutrina deve ser pré-julgada como provenien
te da mentira se se opõe à verdade das igrejas dos apóstolos, jj e
Cristo e de Deus. i
Resta, pois, demonstrar que nossa doutrina, cuja regra formula
mos acima, procede da tradição dos apóstolos e, por isto mesmo, as
demais precedem da mentira. N ós estamos em comunhão com as igre
jas apostólicas, se nessa doutrina não difere da sua: eis o sinal da
verdade.
“CONTRA PR A X É IA S”
(c c . 1-2; P .L . 2 , 1 7 7 -1 8 0 )
1 P ra x é ia s te r i a s id o h e r e g e m o d a lís ta . D is tin g u ia e m J e s u s o e le m e n to h u m a n o
( " o F iJ h o ” ) e o d iv in o ( “o P a i " ) . E m J e s u s , p o is , o P a i n a sc e u e p a d e c e u . D a í o
n o m e d e p a trip a s s ia n is m o d a d o à h e re s ia .
166 TERTUUANO
263 E assim, após certo tempo, um Pai que nasceu, um Pai que
sofreu, o próprio D eus onipotente, é anunciado como Jesus Cristo.
N ós contudo, como sempre, e tanto mais agora (porque melhor ins
truídos pelo Paráclito, que introduz em toda a verd a d e)7, crendo
2 M t AX
3 IbítL; cf. SI 91,lis.
4 .To 8 ,4 4 .
3 P ra x é ia s t e r ia s id o a p r is io n a d o p o r c a u sa d a fé.
ó A lu s ã o a o p a p a V í t o r (1 9 2 - 2 1 9 ). E le , n u m p rim e iro m o m e n to , te ria m o s tr a d o
s i m p r t ia p a r a c o m o m o v im e n to m o n ta n is ta , q u e p r e s u m ia p o s s u ir as g ra n d e s re v e la ç õ e s
d o P a rá c lito .
7 J o 16,15.
A RESSURREIÇÃO DA CARNE 167
A RESSURREIÇÃO D A CARNE
(c. 12; P.L. 2, 856$)
Ergue teu olhar aos exemplos oferecidos pelo divino poder! O 265
dia morre transformando-se em noite e submergindo nas trevas.
A ALMA
(c. 58; P.L. 2, 795s)
O B A T ISM O 1
(c c . 1, 2 , 6 , 2 0 : P .L . 1, 1 3 0 5 -1 3 0 9 , 1 3 1 4 s, 1 3 3 2 ; S .C . 3 5 )
268 Não é na água que recebemos o Espírito Santo6. Mas ali pu
rificados, somos preparados, pelo ministério do Anjo, para receber
Vós, pois, benditos, esperados pela graça de Deus, vós que saís do 269
santíssimo banho do novo nascimento, e pela primeira vez estendeis
as mãos juntam ente com os irmãos e diante de vossa mãe (a Igreja),
pedi ao Senhor, como dom especial de sua graça, a abundância dos
carismas! “Pedí e recebereis” 8, disse ele. Aliás, já buscastes, já achas
tes, já batestes à porta e já vos foi aberta. Peço-vos então uma
coisa: lembrai-vos ainda, quando orardes, de Tertuliano pecador.
7 A idéia subjacente é a de que fora da Igreja não pode haver verdadeito batismo,
uma posição que será comum entre os autores africanos do século III. O papa sto.
Estêvão porém (254-257) definirá a validade do batismo conferida por hereges: cf.
Dz 46s.
s Mt 7,7.
SANTO HIPÓLITO
(c. 160-235)
Embora seus dados biográficos sejam confusos, consta ter sido discípulo de santo
Ircneu e se ter tomado célebre na Igreja de Roma, onde Orígenes o ouviu pregar.
Adversário de Calixto, chefiou um cisma, quando este foi eleito papa. Acusava o
papa de sabelianismo (heresia sobre a Santíssima Trindade) e de laxismo em doutrina
moral. Mais tarde, reconcUicu-se com a Igreja e morreu mártir, sendo sepultado de
medo honroso pelo papa Ponciano. Seus discípulos lhe erigiram uma estátua onde ins
creveram o catálogo (incompleto) dé suas ebras.
Escreveu Philosophuménq, Syntagma e outras obras anti-heréticas, entre as quais
o fragmento “Contra Noeto", de combate ao modalismo; escritos exegéticos (foi .o 1?
exegeta cristão, de grande valor e influência); escritos litúrgicos, entre os quais a Tra
dição apostólica, Onde retrata os uses litúrgicos de Roma no início do século I I I (c.
218): ordenações, catecumenato, batismo e confirmação, jejuns, ágapes, eucaristia, ofí
cios e horas de oração, sepultamento etc.
N.B.; H á hoje quem distinga o exegeta e o autor das obras polêmicas. Foi lançada
até a hipótese de três diferentes personagens, distinguindo-se então dois “polemistas":
o bispo, autor do “Contra Noeto” e do “Syntagma", e o autor dos “Philosophumena”,
que seria também o personagem da estátua do Latrão. Ver a respeito a obra coletiva,
“Ricerche su Ippolito", Institutum Patristicum Augustinianum, Roma, 1977.
Edições: S.C. 11, -4, 27; P. Nautjn, Hippolyte. Contre les hérestes. Fragment. Et.
et êd. critique, Paris, 1949; Pbilosopbumena, tr. de A. Siouville, Paris, 1928.
TRADIÇÃO APOSTÓLICA
(S .C 11)
270 Sejaí ordenado bispo quem for irrepreensível e tiver sido eleito
per todo o povo. Uma vez designado e aceito por tedos, reúna-se
o povo juntamente com o presbitério e os bispos presentes, no do-
minge. Com o consentimento de todos, imponham os bispos sobre
ele as mãos, permanecendo imóvel o presbitério. Mantenham-se todos
em silêncio, orando em seu coração pela descida do Espírito. A.
seguir, um dos bispos presentes, instado por todos, impondo a mão
• sobre o que é ordenado bispo, reze dizendo:
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias
e Deus de toda consolação, que habitas as alturas e baixas o olhar
para o que é humilde, tu, que conheces todas as coisas antes de
nascerem, tu que deste as leis da tua Igreja pela palavra da tua
TRADIÇÃO APOSTÓLICA 173
graça, elegendo desde o princípio a raça dos justos de Abraão, cons
tituindo os chefes e os sacerdotes; tu, que não deixaste sem adminis
tração o teu santuário; tu, que, desde o início dos séculos te
aprouveste em ser glorificado neste que escolheste, derrama agora a
força que vem de ti — o Espírito de chefia que deste a teu Filho
querido, Jesus Cristo, e que ele concedeu aos santos apóstolos, os
quais constituíram por toda parte a tua Igreja, teu Templo, para glória
e louvor perpétuo do teu nome.
Pai, que conheces os corações, concede a este servo, que es
colheste para o episcopado, apascentar teu santo rebanho e de
sempenhar irrepreensivelmente diante de ti o primado do sacerdó
cio, servindo-te noite e dia. Concede-lhé tornar incessahtemente pro
pícia a tua face, oferecer as oblações da tua santa Igreja e, com
o espírito do sacerdócio superior, ter a faculdade de perdoar os
pecados segundo a tua ordem, distribuir os cargos segundo o teu pre
ceito; dissolver quaisquer laços, segundo o poder que deste aos
ápóstolos; ser do teu agrado pela brandura e pureza de coração,
oferecendo-te um perfume agradável; per teu Filho Jesus Cristo,
pelo qual a ti a glória, o poder e a honra — ao Pai e ao Filho, com
o Espírito Santo na santa Igreja, agora e pelos séculos dos séculos.
Amém.
A Eucaristia
(cap. 4)
CONTRA N O E T O 1
(c. 10-11)
de sua Sabedoria; por seu Verbo cria, por sua Sabedoria or
dena. Ele criou, pois, como quis, porque era Deus. Mas como chefe,
conselheiro e ministro da criação, engendrou o Verbo. Esse Verbo,
que ele tinha em si e que era invisível ao mundo criado, torna-o
visível. Enunciando-o primeiro como voz e gerando-o luz de luz, emi
te-o como Senhor para a Criação: sua própria Inteligência. E esta, que
era inicialmente visível semente a ele e invisível ao mundo criado,
torna-a visível, a fim de que o mundo, vendo-a, possa ser salvo
graças a tal manifestação.
Desta forma houve um C utro em relação a Deus. Mas dizendo
Outro não digo dois Deuses; penso numa luz produzida por uma
luz, na água que sai de uma fonte, num raio que emana do sol.
A potência é uma, vem do ser que é tudo. O Pai é tudo e é dele
que vem a potência que é o V erbo4. O Verbo é a Inteligência que,
aparecendo no mundo, se manifestou como Filho de Deus. Tudo
vem dele; só ele procede do Pai.
PHILOSOPHUMENA
(liv. X, 30-33; G.C.S. 26, 285-292)
A verdadeira doutrina
4 SiivajAiç1 Aó-foç-.
178 SANTO HIPÓLITO
gerações, emitindo predições cuja verdade é fácil de se demonstrar
— não só quando se dirigiam aos contemporâneos, mas mesmo quan
do profetizavam eventos seguintes, na série das gerações. Quando
falavam de coisas passadas, lembravam-nas aos homens; falando de
coisas presentes, visavam sacudi-los da negligência; predizendo o
futuro, atemorizam-nos a nós que vemos cumprirem-se coisas preditas
de longe e assim aguardamos os eventos anunciados para o futuro.
277 Tal é a nossa crença, ó homensí Não nos deixamos levar
por vãs palavras, por movimentos súbitos do coração ou pela elo-
qüência de belos discursos, embora saibamos não ser incrédulos an
te as palavras inspiradas pelo poder divino.
Todas essas prescrições Deus as dava ao Verbo e o Verbo se
fazia ouvir promulgando-as. Pela mediação dos profetas pretendia
desviar o homem da desobediência. Sem visar reduzi-lo à escravidão
pela força e a coação, interpelava sua liberdade para uma opção vo
luntária. Ora, esse Verbo o Pai enviou mais tarde para falar, não
mais através de um profeta — ele não queria que o Verbo fosse ape
nas como que subentendido por meio de obscuras pregações ■
e sim para se manifestar claramente acs (nossos) olhos9. Deus -—
afirmc-o — o enviou a fim de que o mundo fosse tocado de espanto
e confusão à vista daquele que já não ditava mais ordens por boca
de profetas, que já não atemorizava a alma pela aparição de um anjo,
mas pessoalmente se fazia presente e falava10.
Sabemos que esse Verbo assumiu corpo de uma- Virgem; que
portou em si o velho homem dando-lhe um novo modo (de ser);
que percorreu as diversas idades da vida para se tom ar presente a
toda idade e propor a todos os homens, como alvo a ser atingido,
o homem que está nele. A fim de mostrar, por seu exemplo, que
Deus nada criou de mau e que o homem é livre, capaz de querer
e de não querer, senhor de escolher isto ou aquilo.
278 Sabemos que esse homem é feito da mesma massa que nós; se
não o fosse, em vão nos proporia a lei de imitá-lo como mestre. Se
esse hcmem fosse de outra substância, como me haveria de comandar,
a mim que sou fraco por natureza, para agir comc ele? Onde estariam
sua bondade e justiça? Não, para indicar que não era diferente de
nós, suportou a fadiga, quis sofrer a fome, não recusou a sede, repou
sou e dormiu, aceitou o padecimento, sujeitou-se à mcrte, e manifes
tou sua ressurreição. Em tais diferentes circunstâncias, ofereceu como
primícias o homem que está nele (sua humanidade) a fim de não te
desencorajares no sofrimento mas, reconhecendo-te homem, esperares,
também tu, o que p Pai deu a esse homem.
Eis a verdadeira doutrina sobre a Divindade, ó gregos e bárbaros,
caldeus e assírios, égípcios e líbics, índios e etíopes, celtas, latinos se-
li Cf. lC or 13,12.
METÓDIO DE OLIMPO
(•&. III)
Ncda de predso conhecemos sobre a biografia deste autor. Teria sido bispo de
Olimpo, na Lícia, conforme antigos documentos. Deixou, de qualquer modo, diversas
obras nas quais se vê que combateu o espiritualismo exegético de Orígenes, cuja
influência porém sofreu. Seu escrito mais importante, conservado em original grego,
é O Banquete (ou Diálogo sobre a virgindade), inspirado, quanto à forma, no Simpósio
de Platão.
“BANQUETE”
(c. 16; P.G. 18, 168, 172; S.C. 95)
i M t 5,13.
SOBRE A UNIDADE DA IGREJA 183
* M t 16,18$.
6 Aqui começa o famoso capitulo 4 desta obra de sio Ciprianõ. A partir dos di
ferentes manuscritos existentes chega-se a uma dupla versão do mesmo, que apresen
tamos em duas colunas (cf. M. Bévenot, °St. Cyprian’s de Unitate chap. 4 in the Light
of the manuscripts", in Analecta Gregoriana, X I , Roma, 1937; e também a tradução
de P. de Labriolle, apresentada na Coleção "Unam Sanctam”, Cerf, 1942). Umas das
versões insiste mais que a outra no primado do papa. Serão ambas genuínas, isto é,
provenientes de sio Ciprianõ em ocasiões diferentes? A resposta não é fácil.
7 To 21,16.
8 j o 20,21-23.
SOBRE A UNIDADE DA IGREJA 185
9 Ct 4,8.
w Ef 4,4-6.
186 SÃO CIPRIANO
nho, um profano, um inimigo. Não pode ter Deus por Pai quem
não tem a Igreja por Mãe. Se alguém se pôde salvar, dos que figuram
fora da arca de Ncé, também se salvará o que estiver fora da
Igreja. O Senhor nos admoesta e diz: “Quem não está comigo está
contra mim, e quem não ajunta comigo, dispersa” 11. Torna-se ad
versário de Cristo quem rompe a paz e a concórdia de Cristo; aquele
que noutra parte recolhe, fora da Igreja, dispersa a Igreja de Cristo.
O Senhor diz: “Eu e o Pai somos um ” n -y está ainda escrito do Pai,
do Filho e do Espírito Santo: “E estes três são um ” 13. Quem crê
nesta verdade fundada na certeza divina e adere aos mistérios celes
tiais não abandona a Igreja ou dela se afasta, por causa da diversi
dade das vontades que se entrechocam. Quem não mantém esta unida
de também não mantém a lei de Deus, a fé no Pai e no Filho, não
conserva a vida nem a salvação.
287 Este sacramento da unidade, este vínculo da concórdia, que une
inseparavelmente, está indicado no Evangelho pela túnica de nosso Se
nhor Jesus Cristo que não foi dividida nem rasgada: dentre os que
disputavam por sorte a veste de Cristo vestiria o Cristo quem a
recebesse íntegra e a possuísse cómo túnica incorruptível e indivi
sível. A Escritura divina declara dizendo: “ Quanto à túnica, porém,
como erá sem costura, tecida numa só peça, disseram entre si:
Não a rasguemos, decidamos por sorte de quem será” 14. Ela tra
zia a unidade vinda do alto, isto é, do céu, do Pai e que não
pode ser quebrada por quem a recebe ou a possui, sendo ganha
inteira, inseparavelmente radicada em sólido fundamento. Quem
rasga ou divide a Igreja de Cristo não pode possuir a veste de Cristo.
Por outro lado, enfim, quando Salomão estava para morrer e seu
reino havia de ser dividido, o profeta Aquias dirigiu-se no campo
ao rei Jeroboão, com as vestes cindidas em doze trapos, dizendo: “Tira
para ti dez destes trapos pois diz o Senhor: ‘Eis que divido o reino
nas mãos de Salomão, dar-te-ei dez cetros, dois hão de ficar com ele
em vista de Davi meu servo, e de Jerusalém, cidade santa onde colo
carei meu nome’ ” 15.
O profeta Aquias rasgou suas veste porque deviam ser divi
didas as doze tribos de Israel. Como, porém, o povo de Cristo não
pode ser dividido, sua túnica, tecida e coerente, não é dividida pelos
que a possuem; íntegra, conjunta e indivisível, mostra a concórdia
do povo que se revestiu do Cristo. No mistério e no sinal da veste a
unidade da Igreja foi manifestada.
288 Quem há tão ímpio e perverso, tão enlouquecido pelo delírio da
discórdia que julgue poder, que ouse dividir a unidade de Deus, a
A-OR4ÇÃO DO SENHOR 187
D o livro sobre
A ORAÇÃO D O SENHOR
(P.L. 4, 541-555)
16 Jo 10,10.
17 ICor 10,1.
18 Ef 4,2s.
19 Js 2,18s.
20 Ex 12,46.
1 Jo 1,1ls.
188 SÃO CIPRIANQ
Pai que está no céu, indica também, por suas primeiras palavras da
vida neva, que renunciou ao pai terreno e carnal, que reconhece
o Pai que principiou a ter no céu. Pois está escrito: “Quem diz a seu
pai e a sua mãe, não os conheço, e a seus filhos, não sei quem sois,
este guardou os teus preceitos e conservou o teu testamento” 2. Tam
bém o Senhor ensinou que não devemos chamar a ninguém “pai”, na
terra, porque só existe para nós um Pai que está nos céus. E respondeu
ao discípulo que fizera menção do pai falecido: “Deixa aos mortos
que sepultem os seus m ortos” 3. Ele havia dito que o seu pai estava
morto, contudo o Pai dos crentes vive.
2 Dt 33,9.
3 M t 8,22.
4 lSm 2,30.
5 lC or 6,19.
6 Lv 20,26; Pd 1,16.
A ORAÇÃO DO SENHOR 189
7 ICor 6,9s.
* Mt 25,34.
9 M t 2639.
10 Jo 638.
190 SÃO CIPRIANO
Se o Filho esteve atento no cumprir a vontade do Pai, quanto
mais deve estar o servo em relação ao Senhor. São João nos exorta
igualmente, em sua epístola, a cumprir a vontade do Pai: “Não ameis
o mundo, nem ó que está no mundo. Se alguém ama o mundo, a ca
ridade do Pai não está nele. Pois tudo qúe está no mundo é concupis
cência da carne, concupiscência do mundo. O mundo passará, e igual
mente a sua cbncupiscência; aquele, porém, que cumprir a vontade
de Deus permanece eternamente * 11. Os que quisermos permanecer
eternamente devemos, pois, cumprir a vontade do eterno Deus.
Ora, a vontade de Deus é a que Cristo praticou e ensinou.
Humildade na vida, estabilidade na fé, veracidade nas palavras, justiça
no agir, misericórdia nas obras, disciplina nos costumes, não saber
injuriar, tolerar a injúria recebida, manter a paz ccm os irmãos, que
rer a Deus com todo o coração, amando-o como Pai e temendo-o
ccmo Deus; nada prepor ao Cristo, porque ele também nada pre-
pôs a nós; aderir inseparavelmente à sua caridade, unir-se à sua
cruz ccm firmeza e fé e, quando houver luta por seu nome e
honra, manifestar na palavra e constância, com que o confessarmos
diante dos juízes, a firmeza de nosso combate; manifestar enfim na
morte a paciência pela qual somos coroados. Isso é ser co-herdeiros
de Cristo, isso é praticar o preceito de Deus, isso é cumprir a von
tade do Pai!
Pedimos que seja feita a vontade do Pai assim na terra como no
céu, pois em ambos cs casos está em jogo nessa segurança e sal
vação. Possuímos um corpo da terra e um espírito do céu, somos a
um tempo terra e céu. Oramos para que em ambos, corpo e
espírito, seja feita a vontade de Deus. Na verdade, há luta entre a
carne e o espírito, e essa discórdia diária àçarreta-nos embaraços para
fazer o que queremos. D e um lado o espírito procura o que é celeste,
o divino; de outro lado a carne cobiça o secular, o terreno. Por isso
pedimos que pelo auxílio de D eus se estabeleça a harmonia entre
ambos, que graças à sua vontade, realizada na carne e no espírito,
seja salva a vida per ele renascida.
n l jo 2,159$.
A ORAÇÃO EO SENHOR 191
faz nascer o sol sobre bens e maus, chover sobre justes e in
justos) — seguindo o conselho de Cristo, cramos e pedimos numa
única prece pela salvação de todos. Assim como a vontade de Deus
foi feita no céu, isto é, em nós — que pela fé nes tornamos céu —
assim se faça também na terra, isto é, nos que ainda não crêem, que
ainda são terrenos pelo primeiro nascimento a fim de começarem a ser
celestes pelo renascimento na água e no Espírito.
Prosseguindo, dizemos: “O pão nosso de cada dia nos dai 295
hoje”. Podemos tomar este pedido tanto no sentido espiritual como
no literal, pois os dois modos de entender servem divinamente à
nossa salvação. O Cristo é o pão da vida, e este pão não é de todos,
é nosso. E assim como dissemos Pai nosso, porque é Pai dos que
entendem e crêem, dizemos também pão nosso, porque é pão para
aqueles que comçm o seu corpo. Pedimos que este pão nos seja dado
diariamente a fim de que, estando no Cristo e recebendo diariamente
a eucaristia ccmo alimento de salvação, não venhamos a ser sepa
rados do Corpo de Cristo e tornar-nos alguma vez proibidos de par
ticipar do pão celeste, afastados da comunhão, por causa de algum
grave pecado. Ele próprio disse: “Eu sou o pão que desci do
céu. Se alguém comer do meu pão viverá eternamente. E o pão que
eu darei é a minha carne para a vida do mundo” 12. Dizendo viver
eternamente quem comer deste pão, fica evidente que viverão sempre
os que pertencem ao seu corpo e recebem a eucaristia, pelo direito
da comunhão, ao mesmo tempo que se passa a temer que alguém seja
s.éparado do corpo de Cristo e afastado da salvação, pela interdição
de participar do pão. Devemos orar para que tal não aconteça, como
ele mesmo nos adverte: “se não comerdes a carne do Filho dc homem
e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” 13. Por isso
pedimos que o pão nosso, isto é, Cristo, nos seja dado diariamente.t
Vivendo nele, não nos afastaremos de seu corpo e de sua santificação.
Pode-se, na verdade, interpretar de cutra maneira estas pala- 296
vras. Pode-se entender que nós, que renunciamos ao século e rejei
tamos as suas riquezas e pompas, pelà fé da graça espiritual, não
peçamos senão o alimento indispensável para o nosso sustento, con
forme a palavra do Senhor: “Quem não renunciar a tudo que
possui, não pode ser meu discípulo” 14. Quem, portanto, seguindo
a palavra do Mestre, renunciou a tudo e começou a ser discípulo de
Cristo, deve pedir o alimento para o dia que passa e não estender os
seus desejos em longos pedidos. Assim ele preceituou, dizendo: “Não
penseis no dia de amanhã, porque o dia de amanhã trará os seus
cuidados. Basta a cada dia a sua própria pena” 15. Assim, o discípulo
de Cristo, proibido de preocupar-se com o dia de amanhã, pede ape-
192 SÃO CIPRIANO
nas o alimento de cada dia. Aliás, seria estranho e contraditório pe
dirmos que o reino de Deus venha a nós em breve e ao mesmo
tempo cuidarmos de viver no mundo mais longamente. Também o
Apóstolo aconselha, fortalecendo e consolidando nessa fé e esperança:
“Nada trouxemos para este mundo; e nada, na verdade, podemos
levar. Se temos o que comer e vestir, estejamos contentes; Os que
desejam enriquecer, caem na tentação, nc laço e em muitos desejos
nocivos que lançam o homem ria perdição e na morte. Com efeito, a
raiz de todos os males é a cobiça; por ela alguns se afastaram da fé
e acarretaram para si muitas dores” tó.
297 Esta doutrina ensina, não só que as riquezas devam ser despre
zadas, mas que são perigosas, achando-se nelas a raiz dos males que
afagam e enganam, por disfarces e seduções, a cega mente humana.
Daí, Deus ter respondido ao rico insensato que pensava nos seus
bens terrenos e se vangloriava da abundância dos seus frutos:
"Insensato, esta noite ainda, entregarás a tua alma; para quem
ficará o que preparaste?” 17 Alegrava-se o insensato com seus fru
tos na noite em que ia morrer, preocupava-se com a abundância de
alimento no momento em que a vida já se afastava.
O Senhor ensina, ao contrário, tornar-se perfeito e íntegro
quem vende tudo o que possui e dá aos pobres. Prepara este seu
tesouro no céu. Diz o Senhor que só pode segui-lo e imitar a
glória de sua paixão quem não está ligado por interesses parti
culares e então, pronto e sem empecilhos, está livre para acompanhar
com a própria pessoa a doação já feita dos bens. Em preparação para
isso aprenda-se a orar dessa maneira e a descobrir assim como se
deve ser.
W íTm 5,7ss.
17 Lc 20,20.
1« M t 18,32.
A ORAÇÃO DO SENHOR 193
w ljo 1,8.
20 M t 7,2.
21 M t 6,14.
22 Dn 1,1-2.
23 Is 12,25s.
24 lRs 1,14.
25 Jó 1,12.
26 To 19,11.
27 Mt 26,41.
CARTA SOBRE O MARTÍRIO 195
Trecho de uma
CARTA SOBRE O M ARTÍRIO
(P.L. 4, 251-256)
y l j o 4,4.
196 SÃO CIPRIANO
a dedicação dos seus soldados, conforme a palavra do Espírito Santo
no salmo: “Preciosa aos olhos do Senhor a morte de seus justos” 2.
Preciosa a morte que compra a imortalidade com o preço de sangue,
e recebe uma recompensa pela perfeição da virtude. Cristo deve ter
ficado alegre, d e , o protetor da fé, que lutou e venceu nos seus
servidores, e dá aos que crêem o que eles desejam adquirir! Presen
ciou seu comSate, sustentou, fortificou e animou seus soldados e
arautos, pois já uma vez venceu a morte por nossa causa e sempre
triunfa em nós. “Quando fordes entregues”, disse d e , “não pensds
no que havds de dizer, pois na hora vo$ será dado o que falar;
não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai falará em
v ó s” 3.
A presente luta deu prova disto. Uma palavra cheia do Espírito
Santo foi emitida por boca de um mártir, naquele momento em que
o felicíssimo Mapálico dizia ao procônsul, ao ser torturado: “amanhã
hás de ver o combate!”
E o que ele disse, atestando o vigor de sua fé, o Senhor cum
priu, pois o servo de Deus foi coroado após a sua luta c elestia l.. .
É este o combate de que ncs fala o bem-aventurado Paulo e no qual
devemos competir para obter a coroa incorruptívd. . . 4 É o combate
predito pelos profetas, proporcionado pelo Senhor, realizado pelos
apóstolos e, com o qual, Mapálico desafiou o procônsul, em seu no
me e no dos companheiros. E não faltou à promessa. Enfrentou o
combate que prometera, recebendo a merecida palma.
Meus votos são os de que todos os outros sigam este mártir fe
liz e seus companheiros de fé resoluta, pacientes na dor, vitoriosos
no suplído; a fim de que a perfeição da virtude e o prêmio celeste
unam os que uniram a confissão e a passagem pelo cárcere; a fim de
que enxugueis, com vosso júbilo, as lágrimas da Igreja, que chora
o malogro e a desgraça de muitos outros; a fim de que vosso exem
plo possa persuadir outros a se manterem firmes na fé. Se fordes
chamados à linha de frente, se raiar o dia de vossa luta, combatei
varcnilmente, dentes de fazê-lo sob os olhos do Senhor, e de che
gar à sua glória por meio da confissão de seu n o m e .. .
2 SI 115,15.
3 Mt 10,19s.
4 Cf. lCor 9,24s.
NOVAÇIANO
(t C. 257)
Em Roma, onde era presbítero, foi o primeiro teólogo que escteveu em latim,
pois os precedentes escreviam em grego. Fez-se sagrar bispo em 251, por ocasião
de um movimento dsmático, de cunho rigorista, o qual, pàtrocinado por seu nome,
se estendeu à Gália, África e ao Oriente, com prolongamentos até o século VI.
Mesmo os adversários de Novaciano reconheceram em seu tempo seu preparo cultural,
onde se nota grande influência de Tertuliano. Segundo o historiador Sócrates, morreu
mártir provavelmente durante a perseguição de Valeriano. Sua obra principal chama-se
De Trinitate, composta provavelmente antes de 251.
Edições críticas no Corpus Christianorum, ser. latina, IV (Turnhout, 1971); tam
bém na coleção Corona Patrum, Turim, 1975, com introdução e notas de V. Loi.
D o livro
SOBRE A TRIN D A D E
(cc. 14-16; P.L. 3, 936-944)
A divindade de Cristo
Persiste o herege em duvidar que Cristo seja Deus, embora ele 304
o tenha demonstrado por tantos fatos e asserções que estão na Es
critura. Se Cristo é apenas homem, como então, ao vir a este mmv
do, “veio para o que era seu ” l , ao passo que o homem não fez ?
nenhum mundo? Se Cristo é apenas homem, como se diz na Escritura
que “o mundo foi feito por meio d ele”, enquanto não se diz que o
mundo tenha sido criado por meio do homem, mas que este foi cria
do depois do mundo?
Se Cristo é apenas homem, como não descende apenas da estirpe
de Davi, sendo “o Verbo que se fez carne e habitou entre nós” 2?
D e fato, embora o primeiro homem não provenha de estirpe alguma,
nem por isto foi formado pela união do Verbo e da carne, não é o
Verbo feito carne que habitou entre nós.
Se Cristo é apenas homem, como então “aquele que vem do
céu dá testemunho do que viu e ouviu” 3, ao passo que nenhum
homem veio do céu, onde não poderia ter nascido? Se Cristo é ape
nas homem, como se afirma que as realidades visíveis e invisíveis,
os tronos, as potestades e as dominações foram criadas por meio
198 NOVACIANO
dele e n e le 4, se não puderam ser feitas por meio de um homem
as potências celestes, que deviam existir antes do homem?
Se Cristo é apenas homem, como é invocado presente em toda
parte, ao passo que poder estar presente em todo lugar não é pro
priedade natural do homem e sim de Deus? Se Cristo é apenas ho
mem, como nas> orações se invoca um homem como mediador, enquan
to invocar um homem é sabido ser ineficaz para obter a salvação?
Se Cristo é apenas homem, por que se coloca nele a esperança, ao
passo que nas Escrituras se diz ser maldita a esperança posta no
homem? Se Cristo é apenas homem, por que não é lícito renegá-lo
sem ruína para a alma, enquanto na Escritura se afirma que o pe
cado cometido contra o homem pode ser perdoado?
Se Cristo é apenas homem, como João Batista lhe dá testemunho
dizendo: “aquele que vem após mim foi feito antes de mim porque
existia antes de m im ” 5, ao passo que Cristo, como homem, tendo
nascido depois de João, não poderia ser-lhe anterior, só o podendo
ser enquanto Deus?
Se Cristo é apenas homem, como “aquilo que faz o Pai, fá-lo
igualmente o Filho” 6, se o homem não pode realizar obras semelhan
tes às obras celestes de Deus? Se Cristo é apenas homem, como “da
mesma forma que o Pai possui em si a vida, também deu ao Filho
possuí-la em s i” 7? Pois o homem não pode possuir em si a vida
segundo o exemplar de Deus Pai, não possui a eterna glória, é feito
de matéria sujeita' à: m orte..
Se Cristo é apenas homem, como afirma: “eu sou o pão da vida
eterna, eu que desci dò céu” 8? Um homem não pode ser pão de
vida, sendo mortal, nem pode ter descido do céu, não existindo no
céu a fragilidade da matéria. Se Cristo é apenas homem, como diz
que “ninguém jamaiy viui o Pài, senão aquele que é de Deus, e que
por isto viu a D eus” 9? Pois, se Cristo é apenas homem, não pôde
ter visto a Deus, ao qual nenhum homem pode ver. Se, porém, vem
de Deus, viu-o, e assim fez-nos compreender ser mais do que um
homem: viu a Deus!:
Se Cristo é apenas homem, por que diz: “e se vísseis o Filho
do homem subir onde estava antes” 10? Ora, ele desceu do céu; exis
tiu, então, no céu, desde que para lá retomou aq subir. Se foi envia
do pelo Pai celeste, certamente não é só homeih, pois, como disse
mos, não teria, vindo do céu. Enquanto homem, não existiu lá, mas
sim para lá subiu onde não estivera antes. D e lá desceu, ao contrário,
o Verbo de D eus, o qual lá esteve, o Verbo — repito — e também
SOBRE A TRINDADE 199
Deus, por meio do qual foram feitas todas as coisas, sem o qual nada
foi feito. Portanto, não um homem desceu do céu, mas o Verbo divi
no, Deus.
Se Cristo é apenas homem, como afirma ele: “mesmo se dou 306
testemunho de mim mesmo, meu testemunho é verdadeiro, pois sei
de onde vim e para onde vou; vós ignorais donde vim e para onde
vou; vós julgais segundo a carne” 11. Eia! também aqui afirma que
retornará para lá de onde atesta ter vindo antes, ter sido enviado
do céu. Desce de cnde veio, e regressa ao lugar de onde desceu. Se
Cristo fosse apenas homem, não teria vindo de lá, nem partiria para
lá de onde não veio ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como afirma: “ sois daqui de baixo, eu
sou lá de cima; vós seis deste mundo, eu não sou deste mundo” 12? Se
todo homem é deste mundo — e por isto Cristo está neste mundo
— será talvez ele apenas homem? Absolutamente não. Considera o
que diz: “eu não sou deste m undo”. Acaso estaria mentindo, pois
seria deste mundo, se fosse apenas homem? Se não mentia, não é
deste mundo; portanto não é apenas homem, não sendo deste mundo.
E para não deixar obscuro quem era, acrescenta expressamente de
onde era: “eu sou de cima”, isto é, do céu, onde não pode chegar o
homem, que não foi feito no céu. É pois Deus, sendo de cima, não
deste mundo, embora de certo modo seja também deste mundo, pelo
fato de não ser somente Deus, mas também homem. Assim como
não é deste mundo segundo a divindade do Verbo, é deste mundo
segundo a fragilidade do corpo assumido; pois é homem unido a
Deus, Deus conjugado ao homem ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como diz ele: “Saí de D eus e vim ” 13?
quando se sabe que o homem foi feito por Deús, hão que tenha saído
de Deus. Se o homem não saiu de Deus, o Verbo divino — eTei
sim — saiu de Deus, e a respeito dele foi escrita a palavra: “ meu
coração emitiu uma Palavra boa” 14. Porque ele é de Deus, está
junto de Deus; mas porque não saiu de Deus sem finalidade, justa
mente per isto fez todas as coisas, conforme a palavra: “ todas as
coisas foram feitas por meio dele e sem ele nada foi feito” 15. É ele
o Verbo pelo qual tudo foi criado. “E o Verbo”, continua a Escritura,
“era Deus”: Deus portanto procedeu de,Deus, se o Verbo procedente
é Deus.
Se Cristo é apenas homem, como diz: “quem guardar minha 307
palavra não verá a morte para sempre” 16? Não ver jamais a morte,
que é senão a imortalidade? Mas a imortalidade está associada à di
vindade, pois imortal é a divindade. A imortalidade é fruto da divin-
U To 8,14.
200 NOVACIANO
dade. Tcdo homem, ao contrário, é mortal, e dele não pode provir
a imortalidade. Entretanto, “quem guardar minha palavra”, afirma
Cristo, “não verá a morte para sempre”. Portanto, o Verbo divino
confere a imortalidade, e através dela a divindade. Se não pode obter
a prestação da imortalidade para outrem, quem é mortal, e se esta
palavra diz que,C risto nos confere a imortalidade, então certamente,
não será somente homem ( . . . )
308 Se Cristo é apenas homem, como afirma: “ antes de Abraão eu
sou” 17? Nenhum homem pode ser anterior àquele do qual descen
de; não pode ocorrer que algo seja anterior ao que lhe dá origem. Mas
Cristo diz ser anterior a Abraão, embora descenda de Abraão. Por
tanto, ou ele mente e engana, se, descendente de Abraão, não existiu
antes de Abraão, ou não engana, sendo também Deus, que existiu
antes de Abraão ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como diz: “conhecereis as minhas ove
lhas e as minhas ovelhas me seguirão; e lhes dou a vida eterna, de
sorte que jamais perecerão” 18? Tcdo homem mortal está preso à lei
da mortalidade, não pode conservar-se eternamente, e com maior
razão não poderá conservar a outrem eternamente ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, que significa o que diz: “eu e o Pai
somos uma só coisa” 19? De que modo “eu e o Pai somos uma só
coisa”, se ele não é Deus e Filho, o qual, por esta razão, pode dizer-
se “uma só coisa” com Deus, enquanto dele nasce, e dele procede;
sendo portanto Deus? Quando os judeus ouviram a afirmação julgaram-
-na blasfema — pois Cristo se proclamava Deus — e quiseram ape
drejá-lo. Ele porém repeliu os adversários com o exemplo e testemu
nho da Escritura. “ Se a Lei”, disse, “chamou deuses os homens aos
quais foram dirigidas as palavras, e a Escritura não pode falhar,
como dizeis que blasfema aquele que o Pai consagrou e enviou a este
mundo, porque disse: eu sou filho de Deus” 20? Com estas palavras
não negou ser Deus; pelo contrário, confirmou. Com efeito, desde
que são simplesmente chamados deuses aqueles aos quais foram diri
gidas as palavras de Deus, com maior razão é Deus aquele que a
todos supera. Contudo, refutou Cristo de maneira adequada a odiosa
blasfêmia atribuída, explicando sua exata relação com Deus: ele
quer ser tido como Deus de tal modo que seja o Filho e hão o
próprio Pai. Disse, por isto, ter sido enviado, e assinalou ter reali
zado muitas obras da parte do Pai, querendo ser tido como
o Filho, não como o Pai. E na última parte de sua refutação fez
menção do Filho, não do Pai, dizendo: “vós dizeis que blasfemo por
que disse: eu sou Filho de Deus”? Desta forma, relativamente à
acusação de blasfêmia, afirma-se o Filho, não o Pai; relativamente
SOBRE A TRINDADE 201
21 Jo 11,26.
22 A linguagem de Novaciano é aqui incorreta. Deveria dizer somente que o
Parádito, que procede do Pai, procede também do Filho, o qual neste sentido (não
cronolóaico nem de dignidade) lhe é anterior.
23 Jo 173.
24 Jo 173-
SANTO ATANÁSIO
( t 373)
Do livro
CONTRA OS PAGÃOS
(P.G. 25, 76-90; S.C. 18)
Mas quem é então esse Criador? Eis o que importa indicar e 313
dizer, pcis a ignorância disto poderia fazer-nos cair numa impiedade
semelhante à precedente. Penso, porém, que ninguém hesita a este
respeito. Se nossa exposição mostrou não serem deuses aqueles dos
quais falam cs poetas, se conseguirmos convencer de erro os que
divinizam a criação, e se, de modo geral, demonstramos ser a idolatria
dos pagãos simplesmente impiedade e irreligião, faz-se necessário, já
que tais deuses foram derrubados, que a religião verdadeira esteja
entre nós, que o Deus ao qual adoramos e pregamos seja o único
verdadeiro Deus, o Senhor da criação e o Demiurgo de toda substân
cia. Quem é ele, senão o totalmente Santo, aquele que está acima de
toda substância criada, o Pai de Cristo, que como um excelente piloto,
por sua própria sabedoria e em sua própria Palavra, que é o Crista,
204 SANTO ATANÁSIO
nosso Senhor e Salvador, governa e ordena o universo para a nossa
salvação, e age como bem lhe parece? Este mundo é muito bom,
realmente, tal como foi feito e nós o vemos, pois Deus o quer assim,
e ninguém duvida disso. Se a criação se movesse sem razão, se o
universo fosse conduzido pelo acaso, poder-se-iam perfeitamente pôr
em dúvida nossas afirmações. Mas como o mundo foi produzido com
ra 2ão, sabedoria e ciência, estando ornado de toda beleza, é preciso
que aquele que o preside e o organizou não seja outro senão o Verbo
de Deus.
314 E não falo do verbo que foi misturado a cada uma das cria
turas, inserido nelas, e que alguns chamam o verbo seminal, inani
mado, incapaz de raciocinar oú de pensar, agindo unicamente graças
a uma arte extrínseca e com a ciência daquele que o inseria na cria
tu r a 1. Não penso também no verbo dos seres racionais, composto de
sílabas, e que se faz ouvir no ar. Falo do próprio Verbo do Deus
bom do universo, Deus vivo e atuante, diferente de todos os seres
produzidos e de toda a criação, único Verbo do bom Pai, o qual
organizou este universo e o iluminou por sua providência. Sendo
o bom Verbo, foi ele quem dispôs a ordem das coisas, que adaptou
os contrários entre si, constituindo uma grande harmonia. Foi ele
que, potência de Deus e sabedoria de D eus12, fez o giro do céu,
suspendeu a terra e, sem que ela se apóie sobre algo, a mantém
por sua própria vontade. Pela luz que dele recebe, o sol ilumina a
terra e a lua recebe a medida de sua claridade. Por ele, a água é
suspensa nas nuvens, as chuvas orvalham a terra, o mar guarda seus
limites, a terra se cobre da verdejante coma de inúmeras plantas.
E se algum infiel pusesse em dúvida tais afirmações, questionando se
o Verbo de Deus existe, mostrar-se-ia louco ao duvidar do Verbo de
Deus, pois tudo o que vê subsiste pelo Verbo e pela Sabedoria
de Deus, nada subsistindo se não foi produzido por um Verbo divino,
como o dissemos.
Esse Verbo, pois, não é, como o verbo humano, composto de
sílabas, é a imagem absolutamente semelhante do Pai. Os homens,
compostos de partes saídas do nada, têm também um verbo com
posto e inconsistente. Mas Deus é, e não é composto; também seu
Verbo é, e não é composto, é o Deus único e unigénito, o Deus
bom procedente do Pai como de boa fonte, aquele que ordena e
sustenta o universo.
315 A causa pela qual o Verbo, o Verbo de Deus, veio até as cria
turas, é verdadeiramente admirável, e mostra que não conviria fos
sem as coisas de outro modo como são. A natureza das coisas, con
siderada em si mesma, e enquanto brotada do nada, é fugaz, frágil,
mortal; mas o Deus de todas as coisas é por natureza bom e exce-
lente, e ele ama os homens. Um ser bom não teria inveja de ninguém;
assim também ele não recusa a ninguém o ser, querendo que todos
sejam, pára poder mostrar-lhes seu amor. Vendo que por si mes
ma a natureza criada se esvai e se dissolve, para evitar isso, para
evitar que tudo volte ao nada, ele, após ter tudo criado por seu
eterno Verbo, após ter dado o ser à criação, não a abandona ao
impulso e às flutuações naturais, capazes de aniquilá-la: em sua bon
dade, por seu Verbo que também é Deus, governa e mantém toda a
criação.
A s conveniências da Encarnação
y jo i4,ii.
206 SANTO ATANÃSIO
todos, a fim de que não vivêssemos mais para nós, mas para aquele
que por nós morreu e ressuscitou, nosso Senhor Jesus Cristo” l.
Lemos ainda: “nós vemos aquele que foi posto um pouco abaixo dos
anjos, Jesus, coroado de glória e honra por causa dos sofrimentos de
sua morte, a fim de que assim, pela graça de Dèus, sua morte apro
veite para todos os homens” 12. A seguir, a Escritura indica por que
318 nenhum outro, àenão o Verbo de Deus, se devia encarnar: “convinha
que aquele, para quem tudo é e por quem tudo é, desejando levar
um grande número de filhos à glória, aperfeiçoasse pelo sofrimento o
autor da salvação deles” 3. Por aí se indica não caber a outro, mas
ao Verbo de Deus, que tinha feito no princípio os homens, reerguê-
-los da corrupção que os atingira. Se o Verbo assumiu um. corpo, foi
para oferecê-lo em sacrifício em prol dos corpos semelhantes ao seu —
o que também ensinam as Escrituras: “como os filhos participam da
carne e do sangue, ele participou dessas mesmas coisas, a fim de des
truir por sua morte o demônio, que tinha o império da m orte” 4.
Pois, pelo sacrifício de seu corpo, ele acabou com a lei que pesava
sobre nós, renovou para nós o princípio da vida, dando-nos a espe
rança da ressurreição. Antes, foi por causa dos homens que a morte
dominou sobre os homens; agora, pela encarnação do Verbo de Deus
ela foi destruída, pois ressurgiu a vida, como diz o Apóstolo, porta
dor de Cristo: “por um homem veio a morte, e por um homem a
ressurreição dos mortos; da mesma forma que todos morrem em
Adão, em Cristo todos serão vivificados” 3. Já não mais morremos
como condenados, e sim como os que irão despertar; aguardamos a
ressurreição universal, que a seu tempo nos mostrará o Senhor Deus,
aquele que a criou e no-la concede. Eis a primeira razão da Encarnação
do Salvador.
A recriação do homem
1 2Cor 5,14-15.
2 Hb 2,9.
3 Hb 2,10.
4 Hb 2,14-15.
3 ICor 15,21-22.
SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO 207
1 Esta passagem foi transcrita pelo papa Adriano I, em carta referente ao culto
das imagens e lida no 2? Concílio de Nicéia (787): cf. Mansi, X II, 1067 c.
2 Lc 19,10.
3 Jo 3,5.
210 SANTO ATANÁSIO
por tua Reverência e p er causa do desprezo, da audácia satânica dessa
gente, redigi a presente carta, do medo que pude, esperando que a
completes no que talvez falte, com tua sabedoria, e se realize assim
a refutação da ímpia heresia.
324 Quanto aos arianos, inicialmente, tem-se que essa opinião não
é estranha a eles. Pois uma vez que negaram o Verbo de Deus, é
natural que vociferem também contra seu Espírito. Por isto não será
preciso dirigir-lhes refutações em acréscimo às feitas precedente
mente 5.
325 Quanto aos que erram sobre o Espírito, convirá proceder de cer
to “modo” — como diriam eles mesmos 6 — no propósito de res
ponder-lhes. Poderíamos espantar-nos de seu disparate: não querem
que o Filho de Deus seja uma criatura — e nisto pensam correta
mente — mas então como suportam ouvir que o Espírito do Filho é
uma criatura? Se, em razão da unidade do Verbo com *o Pai, não
querem que o Filho seja uma das coisas chegadas à existência, mas
pensam, com razão, ser ele o artífice 7 das obras (divinas), por que
então ao Espírito Santo, que possui com o Filho a mesma unidade
que este com o Pai, chamam criatura? Por que não reconheceram
que, se não separando do Pai o Filho, salvaguardam a unidade de
Deus, separando do Verbo o Espírito já não salvaguardam mais a
única divindade da Trindade, mas a dividem, inserindo-lhe uma na
tureza estranha, de outra espécie, e acarretando assim igualdade
ccm as coisas criadas? Além disto, tal concepção não apresenta a
Trindade como uma realidade única, mas como constituída de duas
diversas naturezas, se difere, conforme pensam, a substância do Espíri
to. Que idéia de Deus há de ser esta, formada de Criador e criatura?
Ou bem já não há Tríade, mas Díade com uma criatura, ou, se há
Tríade, como de fato há, por que põem entre as criaturas, que vêm
abaixo da Tríade, o Espírito da Tríade? Tal seria, mais uma vez, di
vidir a T rindade8.
Funesta a respeito do Espírito Santo, sua doutrina também não
é boa a respeito do Filho, pois se aqui fosse correta, sê-lo-ia igual
mente a respeito do Espírito, que procede do Pai e que, sendo pró
prio do Filho, vem dado por este a seus discípulos e a todos cs que
crêem nele. Desta forma desgarrados, não poderão enfim ter uma
fé sadia a respeito do Pai, porque os que resistem ao Espírito —
como dizia o grande mártir E stêvão 9 — negam o Filho, e negando
o Filho já não têm o Pai.
Por que todo esse desvario? Em que lugar das Escrituras acha- 326
ram a designação de anjo dada ao Espírito? Não é preciso que
repita agora o que já disse alhures. Ele foi chamado Consolador, Es
pírito de filiação, Espírito de Deus, Espírito do Cristo. Em parte
alguma, anjo, arcanjo, espírito ministrante — como o são os anjos;
ao contrário, é ele mesmo ministrado por Gabriel, que disse a Maria:
“o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com
sua sombra” 10*. Se as Escrituras não chamam o Espírito um anjo,
que excusa invocam aqueles tais para dizerem tal temeridade? Mes
mo Valentim, que lhes inspirou a nefasta idéia, dava distintamente
a um o nome de Paráclito e a outros o de anjos, ainda se atribuindo
a todos a mesma “idade” 11
10 Lc 1,35.
n Conforme o gnóstíco Valentim, quando o Paráclito foi enviado, foram envia
dos também os anjos da mesma idade. Di-lo sto. Atanásio em passagem anterior
desta carta, aqui suprimida, talvez apoiado em sto. Ireneu (Contra Her. I. 4,5).
12 T t 3,10.
212 SANTO ATANÁSIO
Divindade. Deus não é como o homem para ousarmos pesquisar coisas
humanas a seu respeito.
328 Aquele que não é santificado por outro, nem apenas participante
da santificação, mas de cuja santidade participam as criaturas e se
tornam santificadas, como seria um dentre as criaturas, da mesma
forma que os que dele participam? Para afirmá-lo seria preciso dizer
que também o Filho, por meio de quem todas as coisas foram feitas,
é uma dessas coisas feitas.
O Espírito é chamado vivificante, pois a Escritura diz: “Aquele
que ressuscitou a Jesus Cristo dentre os mortos, vivificará também
vossos corpos mortais por meio de seu Espírito, que habita em vós” 13.
O Senhor é a vida em si e “o autor da vida”, conforme P ed ro 14;
ora, o mesmo Senhor dizia: “a água que eu darei ao fiel se tornará
nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”, e “ele dizia
isto do Espírito, que deveriam receber os que creem nele” D. As
criaturas são vivificadas pelo Espírito; como então se aparentam a
Ele, que não tem a vida por participação, mas é fonte de participação
e vivifica as criaturas? Como poderia ser do número das criaturas,, vi
vificadas nele pelo Verbo?
Do Tratado
“ SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE”
(extrato do livro V III)
(PX. 10, 240-249)
A unido entre o Pai e o Filho
4 Jo 17,20.
“ sobre a santíssim a tr in d ad e ” 215
5 G1 3,27.
jamos todos um só pela concórdia das vontades.. . Terá acaso a
própria Palavra ignorado a significação das palavras? Não saberá
a Verdade dizer coisas verdadeiras? Falou estultamente a Sabe
doria? Aquele que é a Força terá sido incapaz de dizer o que
queria? Ora, ele falou, enunciando os puros e verdadeiros mis
térios da fé evangélica. Nem se limitou a falar para só mostrar,
mas ensinou à nossa fé nestas palavras: “que todos sejam um
só; assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles também
sejam um em nós”. O pedido do Cristo é, primeiro, “para que todos
sejam um só”; em seguida, mostra o modelo da unidade a seguir,
nestas palavras: “assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que
eles sejam também um em nós”. Ccmo o Pai está no Filho e o
Filho no Pai, assim todos sejam um no Pai e no Filho, segundo o
modelo e a forma da sua unidade!
335 Mas porque só ao Pai e ao Filho compete a unidade por natureza
(pois Deus não pode ser de Deus, nem o Unigénito provir do Pai
eterno, senão na sua original natureza), assim também, para que
se ressalve ao Filho a sua essência de origem e se reconheça à sua
divindade a mesma verdade da Fonte de onde ela procede, eis que
o Senhor, solícito em dissipar toda dúvida à nossa fé, se apressa
a ensinar-nos nas citadas palavras a natureza dessa absoluta unidade.
Segue-se, pois: “a fim de que o mundo creia que tu me enviaste”.
O mundo vai crer na missão do Filho, se todos os que crerem nele
forem um no Pai e no Filho.
E como serão, logo acrescenta: “e eu lhes darei a glória que tu
me deste”. Pergunto então se glória é o mesmo que “vontade”.
Vontade é inclinação da mente, glória é reflexo ou dignidade da na
tureza. Logo, o que o Filho deu aos seus fiéis não é vontade, mas
glória, aquela que ele recebeu do Pai. Se, com efeito, tivesse dado
não glória, mas vontade, já nossa fé não teria prêmio, pois estaria
obrigada por uma vontade prefixada e não livre 6. A doação da glória
constitui o bem indicado nas palavras que se seguem: “para que
sejam um como nós o somos”. É para que sejam todos um, que
a glória por ele recebida do Pai é dada aos crentes. São todos
um só na glória concedida, pois não é outra a que ele dá senão
a que ele recebe, nem para outro fim é dada senão para que todos
sejam um. E, como pela glória dada pelo Filho aos fiéis, todos são
um, pergunto como há de ter o Filho uma glória menor do que
a do Pai, se aos próprios crentes a glória do Filho eleva à uni
dade da glória do Pai. Som o aspecto da esperança humana, a palavra
do Senhor será talvez insólita, mas seguramente não é infiel. Pois,
embora fosse temerário esperar isso, seria irreligioso deixar de crer
6 Sto. Hilário não quer negar que a fé seja um dom de Deus, o que, aliás,
expressamente afirma em outros lugares deste mesmo tratado (como, por ex., 1.
V III, n. 30). Aqui só afirma, sem entrar em maiores distinções, que a fé supõe
vontade livre.
" sobre a santíssim a trindade 217
7 Jo 17,22.
® “Fisicamente”, isto é, não apenas afetivamente.
218 SANTO HILÁRIO DE POITIERS
come a minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele” 9.
Quanto à verdade da carne e do sangue, não há lugar para dúvida:
é verdadeiramente carne e verdadeiramente sangue, como vemos,
pela própria declaração do Senhor e per nossa fé em suas pala
vras. Esta carne, uma vez comida, e este sangue, bebido, fazem
que sejamos também nós um em Cristo, e o Cristo em nós. Não
é isto verdade? Não o será para os que negam ser Jesus Cristo ver
dadeiro Deus! Ele está, pois, em nós por sua carne e nós nele, e
ao mesmo tempo o que nós somos está com ele em Deus.
338 Jesus mesmo atesta quão realmente estejamos nele pelo mis
tério da comunhão de sua carne e sangue, dizendo: “o mundo
já não me vê; vós, porém, me vereis, pois eu vivo e vós vivereis;
pois eu estou no Pai e vós em mim, e eu em vós” 10. Se tencionou
referir-se apenas a uma unidade de vontade, por que estabeleceu
esta graduação e ordem na consumação da unidade? Não foi se
não para que se cresse que ele está em nós pelo mistério dos
sacramentos, como está no Pai pela natureza da sua divindade, e
nós nele, por sua natureza corporal. Ensina-se, portanto, que pelo
nosso Mediador se consuma a unidade perfeita, pois enquanto nós
permanecemos nele, ele permanece no Pai, e, sem deixar de permane
cer no Pai, permanece também em nós, e assim nós subimos até
à unidade do Pai! Ele está no Pai fisicamente, segundo a origem
de sua eterna natividade, e nós estamos nele fisicamente, enquanto
também está em nós fisicamente.
Quão real seja esta unidade em nós, atesta-c, dizendo: “Quem co
me a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim é eu ne
le” 11. Só aquele no qual o Senhor estiver poderá estar nele. Ele
somente assume a carne daquele que o receber.
Já tinha o Senhor ensinado antes o mistério desta perfeita uni
dade, ao dizer: “Assim como me enviou o Pai, que vive, e eu vivo
pelo Pai, o que comer a minha carne também viverá por mim” 12.
Ele vive, pois, pelo Pai e do mesmo modo como vive pelo Pai nós
vivemos por sua carne.
Toda comparação, realmente, se emprega para determinar a for
ma que se quer dar a entender. Seu fim é fazer-nos atingir uma reali
dade segundo o modelo proposto.
339a Esta é, pois, a causa de nossa vida: que, por sua carne, tenha
mos o Cristo em nós. Nós somos corporais, mas destinados a viver
por ele segundo a mesma condição em que ele vive pelo Pai. Se,
portanto, vivemos por ele, fisicamente, segundo a carne, isto é, al
cançando a natureza de sua carne mesma, como é que ele não
tem fisicamente o Pai, segundo o espírito, se é pelo Pai que ele
“SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE" 2X9
vive? Vive realmente pelo Pai; sua origem por geração não lhe con
fere uma natureza diversa, e é pelo Pai que é o que é, nunca se
separando por qualquer dissemeíhança sobrevinda. Por sua geração
tem em si o Pai na força da mesma natureza.
Se quisemos recordar tudo isto foi porque os hereges, afirman
do mentirosamente uma simples unidade moral entre o Pai e o Filho
usavam o exemplo de nossa própria unidade com Deus. Para eles,
era como se, unidos ao Filhó e ao Pai por mero vínculo de obséquio
e vontade religiosa, estivéssemos excluídos de qualquer comunhão
física pelo sacramento da came e do sangue. Ora, a verdade é que,
pela comunicação da própria honra do Filho e pela existência do
próprio Filho em nós por sua carne, e de nós nele, de modo corpo
ral ;e inseparável, se tem de professar o mistério de uma unidade
real e verdadeira.
EUSÉBIO DE CESAREIA
(t c. de 340)
HISTORIA ECLESIÁSTICA
(liv. II, c. 23; P.G. 20, 208s)
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA
(liv. III, c. 39; P.G. 20, 296-300)
“O s escritos de Papias 9
4 At 1,23.
224 EUSÉBIO DE CESARÉIA
Assim, Marcos não errou escrevendo conforme se lembrava. Seu pro
pósito, com efeito, não era senão o de nada deixar de lado do
que tinha ouvido, e nada falsear naquilo que reportava”.
Eis o que Papias conta de Marcos. Sobre Mateus, diz: “Mateus
coligiu, pois, em língua hebraica as palavras (os logia) e cada um
os interpretou como foi capaz”.
O mesmo Papias se serve de testemunhos tirados da 1* Epístola
de João e P de Pedro. Expõe também outra história a respeito
da mulher acusada de muitos pecàdos diante do Senhor, a que se
alude no Evangelho segundo os hebreus, j
Era necessário que acrescentássemos isto ao que havia sido dito.
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
(t 3M )
IV CATEQUESE MISTAGOGICA
lCor 11,23s.
M t 9,15 8
V CATEQUESE M ISTAGÓGICA
A celebração eucarística
(P.G. 33, 1109-1128; S.C. 126)
2 SI 25,6.
3 M t 5,23s.
4 Rm 16,16; lCor 16,20.
3 lP d 5,14.
QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 229
8 Is 52,3.
9 Rm 6,12.
10 SI 102,20.
11 Mt 15,17.
12 Hb 3,13.
QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 231
14 Edo 34,9.
15 Tg 1,2.
16 SI 65,10-12.
17 SI 30,9.
232 SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
rear não o pão e o vinho, mas o corpo e o sangue de Cristo dos
quais eles são o sinal.
357 Ao te aproximares, não o faças com as mãos estendidas nem
com cs dedos separados. Faze com a esquerda como um trono
no qual se assente a direita, que vai conter o Rei. E, no côncavo da
palma, recebe> o corpo de Cristo, respondendo: “Amém”. Com se
gurança, então, depois de santificados teus olhos pelo contato do
santo corpo, recebe-o, cuidando para nada perderes. Porque senão,
seria como se perdesses um de teus próprios membros. Dize-me,
com efeito: se alguém te oferecesse palhetas de ouro, não as tomarias
com cuidado, velando para nada perderes em prejuízo teu? Deixarás,
então, de te esforçares para que nada tombe do que é muito mais
precioso que o ouro e as pedras preciosas? 18
Depois de teres comungado do corpo de Cristo, achega-te tam
bém ao cálice de seu sangue. Não estendas as mãos, mas, inclinado,
em postura de adoração e de respeito, dizendo “amém”, santifica-te,
tomando também dò sangue de Cristo. E enquanto os teus lábios
estiverem ainda umedecidcs, toca com as mãos o sangue e com
ele santifica cs olhos, a fronte e os outros sentidos. Depois, aguar
dando a oração, dá graças a Deus que te fez digno de tão grandes
mistérios.
Conservai invioláveis estas tradições, guardai-as sem falha. Não
vos aparteis da comunidade, não vos contamineis pelo pecado para
não vos privardes dos mistérios sagrados e espirituais. Que o Deus
de paz vos santifique totalmente e que o vosso corpo, alma e espírito
sejam guardados íntegros para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo,
a quem a glória, honra e poder, com o Pai e o Espírito Santo, agora
e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
De nobre e santa família da Capadócia. Entre outros parentes, seus irmãos Gre-
gório (de Nissa) e Pedro são venerados como santos. Sua avó Macrina, discípula de
são Gregório Taumaturgo, exerceu decisiva influência sobre súa formação. Frequentan
do as escolas superiores de Cesaréia, Constantinopla e Atenas, tomou-se íntimo amigo
de são Gregório Nazianzeno. Brilhante carreira se lhe abria à frente, mas preferiu
tomar-se monge. Depois, ordenado sacerdote, dedicou-se à cura de almas e rigorosa
ascese. Em 370 foi chamado ao episcopado, na sede de Cesaréia, e como metropolita
da província da Capadóda. -
Nà atividade pastoral criou um grande hospital para indigentes, e foi assim um dos
mais antigos organizadores dessa forma de caridade cristã.
Combateu o arianismo e o apolinarismo, resistindo ostensivamente ao imperador
Valente, ariano.
Conhecido como “o romano entre os gregos”, pela precisão e clareza de sua
doutrina, distingiihi-se pelo que escreveu sobre a Santíssima Trindade, sendo sua
a fórmula -três hipóstases e uma essência”. E o autor de um Comentário ao Hexaé-
meron ( = obra dos 6 dias, Gênesis), de Sermões e de duas Regras monásticas.
Algumas obras em edição bilíngüe, na col. SC., 17, 17 bis, 26, 160; Lettres,
tr. dè Y; Courtonhe, collection des Universités de France, 3 tomos, Paris, 1966, etc.
PROFISSÃO D E FÉ - -
(P.G . 31, 675-692)*
* Uma tradução francesa foi publicada >r L. Lèbe osb, em St. Basile. Les règles
mordes ei portrdt du chrétien, ed. Mare >us, 1969, 3847.
1 Cf. 4,2.
2 Rm 10,10.
234 SÃO BASÍLIO
de Deus” \ Ele nos fez capazes — e por causa de vós — de ser
mos ministros da Nova Aliança, “não da letra, mas do espírito” 4.
Ora, bem o sabeis, é próprio do ministro guardar íntegro e in
tato o depósito que lhe confiou o bom Mestre, em favor de seus
companheiros. Per conseguinte, o que aprendi da Escritura inspirada
devo igualmente comunicar-vos, procurando atender a vossas necessi
dades e agradar a Deus. Entretanto, se o próprio Senhor, em quem
o Pai pós seu agrado5, em quem estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e da ciência ó, e que, após ter recebido do Pai todo poder
e julgamento7, afirma: “Ele me prescreveu o que devo dizer e ensi
nar , e também: “o Espírito não fala de si mesmo, mas diz o que
ouviu” 9, com muito mais razão devo eu pensar e agir em nome de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Durante longo tempo em que precisei combater as heresias, à
medida que brotavam — o que fazia seguindo o exemplo de meus
predecessores — achei preferível adaptar-me ao desvio provocado pelo
demônio e usar, para reprimir ou confundir as blasfêmias proferi
das, expressões correspondentes a elas, ora umas, ora outras, segun
do as necessidades dos fracos, e às vezes mesmo expressões que
não eram bíblicas, embora não estranhas ao sentido correto das
Escrituras.
Mas agora, para atingir nosso objetivo presente, o meu e o
vosso, achei conveniente ficar na simplicidade da pura fé, e dizer-
-ves — cedendo à vossa exigência no Cristo — o que aprendi da
Escritura divinamente inspirada. Evitarei, pois, termos e palavras que
não estiverem literalmente na Escritura, ainda que exprimissem
o mesmo pensamento dela. O que for alheio à letra e ainda contiver
um sentido diverso do que se acha na pregação des santos, afastare
mos totalmente como estranho e incompatível com a sadia fé.
359 A fé é, pois, um assentimento dado sem reserva ao que se ouve
dizer, na convicção de ser verdadeiro tudo o que foi proclamado na
graça de Cristo.
Abraão a possuía, segundo está atestado: “ele não hesitou em
sua fé, mas manteve-se firme nela. e deu graças a Deus, persuadido
de que é poderoso para cumprir o que prom eteu” 10. Se pois o Se
nhor é digno de fé em suas palavras n , se todos os mandamentos
são seguros, confirmados nos séculos dos séculos, realizados na ver
dade e na justiça12, é manifestamente uma fraqueza da fé e prova
PROFISSÃO DE FÉ 235
48 Lc 11,52.
49 G1 1,8.
50 Mt 7,15.
51 2Ts 3,6.
52 EÍ 2,20.
53 íTs 5,23s.
240 SÃO BASÍLIO
Novo Testamento, esforçar-nos-emos por condensar em regras sumá
rias para o fácil entendimento de todos, notando para cada regra
o número dos capítulos correspondentes da Escritura, seja do Evan
gelho, seja do Apóstolo, seja dos Atos, a fim de que o leitor de cada
regra, percebendo por acaso o número inscrito ao lado, procure pes
soalmente a Escritura e encontre o texto sobre o qual está baseada
a regra escrita.
Na verdade, teria gostado de colocar também ao lado as refe
rências correspondentes ao Antigo Testamento, mas premido pela
necessidade — pois os irmãos me urgem o cumprimento de uma
velha promessa -— lembrei-me do que foi dito: “Dai ocasião ao sá
bio e ele será mais sábio” 54. Assim, cada qual terá uma boa ocasião
de ir ao Antigo Testamento e certificar-se por si mesmo da con
cordância dos textos da Escritura inspirada, mesmo se, para aqueles
que têm fé e estão convencidos da verdade das palavras do Senhor,
uma só dentre elas já bastasse. Eis por que também pensamos não
ser necessário, mesmo para o Novo Testamento, citar todos os textos,
mas apenas alguns55.
54 P r 9,9.
55 S e g u e m e n t ã o 8 0 “ R e g ra s m o r a is ” .
J J o 4 ,2 4 .
“SOBRE O ESPÍRITO SANTO” 241
1 H ip ó s ta s e : o s u b s is te n te d is tin to , a “ p e s s o a " .
2 M o n a r q u ia : p a la v ra e q u iv a le n te a m o n o te ís m o , n o c o n te x to p a trís tic o .
3 “Teologia” tem o sentido aqui de doutrina referente à Divindade.
4 “Pessoa” treduz prósopen.
'SOBRE O ESPÍRITO SANTO1 243
5 A p a la v r a “ P a rá c lito * ( = a d v o g a d o ) d e sig n a n o 4 ’ e v a n g e lh o o E s p í r i t o S an
t o e n a 1? C a r ta d e s. J o ã o ( 4 .6 ) o C r is to ce le ste . O c o n te x to d e s. B a s ílio s u g e re a
p ro c e s s ã o d o E s p í r i t o a p a r t i r a o P a i e d o F ilh o , coroo ig u a lm e n te o s u g e re sto . A ta-
n á s io e m e s c rito s q u e i n s p ir a r a m s. B a s ílio (c f. B . P r u c h e , Basile de Césarée,
Traité du Saint-Esprit, c o l. “ S o u rc e s C h ré tie n n e s * , v o l. 17, p . 1 9 6 ).
6 M l 1 ,6 .
7 M t 1 2 ,3 1 .
« Q 1,15.
9 M t 1 1 ,2 7 .
w l C o r 12,3
244 SÃO BASÍLIO
mas no Espírito. “Deus é Espírito e os que o adoram devem adorá-
-lo em espírito e verdade” n , como ainda está escrito: “em tua luz
veremos a luz” 112. Por outras palavras: na iluminação do . Espírito
veremos “a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem ao mun
d o ” 13. É em si mesmo que o Espírito mostra a glória do Filho
único e é em si mesmo que concede aos verdadeiros adoradores o
conhecimento' de Deus.
O . caminho do conhecimento de Deus vai portanto do Espírito,
que é um, ao Filho que é um, ao Pai, que é um e, em sentido inverso,
a bondade essencial, a santidade natural, a dignidade régia provêm do
Pai, pelo Unigénito, até o Espírito. É assim que confessamos as
hipóstases sem ferir a doutrina da monarquia.
11 Jo 4,24.
12 5>1 35,10.
13 Jo 1,9.
SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
(329-390)
1 São Basílio, que sempre fora amigo de são Gregório, apesar da diversidade de
temperamento, quis atraí-lo para seu mosteiro, situado no Ponto, às margens do rio
íris. Lá esteve tão Gregório durante algum tempo, mas depois, achando que não po
dia deixar seus velhos pais, regressou a Nazianzo. Trocou então com Basílio várias
cartas a propósito de tua estada no mosteiro. Reproduzimos duas dessas cartas, escritas
pouco antes do ano de 361 e nas quais se entrevê a face humana — e não apenas
rcbrenatural — da profunda amizade desses dois santos. Na primeira Carta, Gregório
ironiza a respeito do local, que Basílio descrevera de modo entusiástico. Na segunda
não esconde o quanto lhe agradaria levar vida de monge na comunidade de Basílio.
Ver: Grêgoire de Nazianze. Poèmes et Lettres, íntr., seleção, trad. e notas de P.
G allay, Lyon, 1941. Do me'mo autor: St. Grêgoire de Nazianze. Lettres, 2 vol., publ.
pele Assoe. Güilhaume Budé, Paris, 1964.
246 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
Quanto a mim, admiro tua terra do Ponto, ccm seu céu escuro,
terra que parece de exílio: penhascos erguidos por sobre as cabeças,
feras bravias que aparecem para atormentar, desertos pedregosos,
cavernas de r a to s .. . a isso dais por aí os belos nomes de lugar de
meditação, mosteiro, escola. . . Essas florestas de plantas selvagens,
essa coroa de >montanhas escarpadas que em vez de coroar aprisionam
a gente, essa atmosfera acanhada, esse sol que se deseja em vão e
apenas surge como através de uma chaminé — ó cimérios do P onto2*,
que não estais condenados somente a uma noite de seis meses mas,
como se diz de certos povos, jamais viveis um instante sem obscuri
dade, sendo vossa existência como uma longa noite ininterrupta, uma
“sombra da m orte” para falarmos com a E s c r itu r a M a s quero ainda
elogiar aquela estrada tão estreita (aonde leva ela? ao Reino ou ao
Hades? Não sei, em atenção a teu nome admitamos que leva ao
Reino) 4; e ainda, no meio de todo o v o sso .. . (como direi? men
tirei, dizendo o vosso Éden, ccm uma fonte aberta em quatro partes
para irripar a terra?) . . . o vosso deserto seco e árido, que só um Moi
sés poderia fertilizar batendo com a vara na rocha! Realmente, por toda
parte, quando não há rochas o que há são barrancos, e quando não
são barrancos são espinheiros, e quando não são espinheiros são pre
cipícios. . . O camiimo que passa por cima, ladeado de abismos e
em declive nos dois lados, obriga os passantes a se encolherem é
caminharem com muita cautela. . . Em baixo atroa o rio, que é para
vós aí o calmo Estrimão de Anfípclis5 — só que nele os peixes não
nadam mais que as pedras, e não se espraia para formar um lago,
terminando em rem oinhos.. . Que amador das palavras altissonantes
és tu e que arquiteto de novos nomes! Esse rio é enorme, assustador,
seu estrépito abafa a salmodia cantada lá no alto. Nada são, em
comparação a ele, as Cataratas e Catadupas6, a ressoar noite e dia.
É tão impetuoso que não se pede atravessá-lo, tão lodoso que não
se pode beber sua água; de bom mesmo só tem isto: não leva de
roldão a casa quando se enfurece em torrentes e tempestades!
Eis nossas impressões sobre essas ilhas onde vivem os fortunados
que s o is .. . E tu não venhas gabar-te agora das anfratuosidades lu
nares que mais estrangulam do que protegem, na subida da montanha;
nem das massas rochosas, que ameaçam as cabeças fazendo viver vida
de Tântalo; nem das brisas passageiras ou dos vapores do solo,
irritantes, que despertam quem desfalece; nem das aves que cantam,
sim, mas de fome, e esvoaçam, mas na solidão. Dizes que se vai a
2 O s c im é r io s te r i a m s id o , c o n fo rm e a le n d a , u m p o v o q u e h a b ito u n a s tre v a s :
c f. Odisséia, c a n t o X I , 14 ss.
y S l. 2 2 .4 .
4 J o g o d e p a la v ra s e n t r e o n o m e d e B a s ílio e a p a la v ra re in o ( “ b a s ilé ia ” ) .
5 S ão G r e g ó r io a lu d e à c a r t a d e sã o B a s ílio n a q u a l o r i o Í r i s e r a c o m p a ra d o a o
Estrimão.
6 Referência às cachoeiras do rio Nilo.
DUAS CARTAS A SÃO BASÍLIO 247
IX
7 J6 29,9.
8 A lu s ã o a o p lá ta n o que X e rx es m andou r e c o b rir d e o u ro , pot c a u sa de sua
b e le z a .
9 Nm 17,8-10.
248 SÃO GREGÓRIO NÁZIANZENO
380 Se houve tempo em que não existisse o Pai, houve em que não
existisse o Filho. Se houve tempo em que não existisse o Filho,
houve em que não existisse o Espírito. Se o Um existe desde o prin-
2 " P h l e g e t o n ” = d o d o in fe r n o , n a l i te r a tu r a a n tig a .
3 O u t r a i n t e r p r e ta ç ã o : " M e u s s o fr im e n to s s ã o ta is q u e , p a r a me l i b e r ta r d e le s,
a c e i t a d a v e r i m p u n id o s o s m a u s ” .
I p I N T O DISCURSO TEOLÓGICO 251
1 A t 1 3 ,2 .
2 E f 4 ,3 0 .
3 Jo 15,26.
(JÜÍNTO PISCURSO TEOLÓGICO 253
Mas ora! dir-se-á talvez, òs gregos não admitem, conforme seus 385
melhores filósofos, também uma só divindade — da mesma forma
que no gênero humano uma só humanidade — e não obstante
falam de vários Deuses, da mesma forma que dos muitos homens?
Acontece que neste caso o que é comum só é único enquanto con
siderado pelo pensamento, distinguindo-se os indivíduos uns dos ou
tros e estando divididos pelo tempo, pelas paixões e pelas próprias
faculdades.
254 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
386 Houve duas grandes mudanças, que também se chamam dois Tes
tamentos e, por sua importância, dois terrem otos4: uma, a mudança
do culto dos ídolos para a Lei, outra a passagem da Lei para o Evan
gelho. E há ainda um terceiro terremoto anunciado pela Escritura,
o da passagem desta vida para a futura, totalmente livre de movimen
to e agitação.
Aconteceu porém algo de semelhante nos dois Testamentos. O
quê? O fato de que não vieram de um só impulso. E por quê? Seria
interessante sabê-lo: para que não fôssemos violentados mas levados
pela persuasão! Realmente, o que não é voluntário não dura, como
vemos em exemples da natureza. O que é voluntário, isto sim é tan
to mais duradouro e firme. E assim difere o que vem da força tirâ
nica e o que vem da divina benignidade. Deus não quis, de modó
algum, impor seus benefícios, quis dá-los aos desejosos de merecê-los.
Procedendo como pedagogo e médico, foi eliminando alguns ritos an
tigos, parcialmente admitindo outros, com a tolerância de quem sabe
temperar e adoçar seus remédios. Não é fácil deixar-se de uma
vez o que se prezou durante longo tempe! Por isto a Lei ini
cialmente manteve os sacrifícios, abolindo os ídolos; depois manteve
a circuncisão, abolindo os sacrifícios; e enfim, por mudanças gra
duais chegaram ao Evangelho os que primeiro tinham passado de
pagãos a judeus e depois de judeus a cristãos. Veja-se o testemunho
de Paulo, que primeiro praticava a circuncisão e as purificações, mas
adiante dirá: “se ainda eu prezasse a circuncisão por qüe haveria de
ser perseguidor? ” 5 Cedeu à prática antes de chegar à perfeição.
387 A partir daí pode-se entender o que se passou com a doutrina
sobre a Divindade. Também neste caso ocorreu uma mudança, em
bora não pela abolição do que foi revelado antes e sim por acesso
progressivo a uma perfeição maior. A coisa se deu do seguinte modo.
O Antigo Testamento manifestou claramente o Pai e obscuramente
o Filho. O Novo manifestou o Filho e obscuramente indicou a di
vindade do Espírito. Hoje o Espírito habita entre nós e se dá mais
claramente a conhecer.
Porque teria sido inseguro pregar abertamenté o Filho antes de
ser reconhecida a divindade do Pai; ou, antes de ser reconhecida a
divindade do Filho, impor-se, por assim dizer, a do Espírito Santo.
Poder-se-ia temer que, como as pessoas sobrecarregadas de alimentos
ou postas de súbito ante a luz do sol, fôssemos prejudicados por
aquilo que ainda não podíamos suportar. Era muito melhor que,
por adições parciais e, como diz Davi, per ascensões de glória em
glória, brilhasse progressivamente o esplendor da Trindade.
Por isto, penso eu, o Espírito se comunicou aos discípulos de
maneira singular e adaptando-se à capacidade de cada um; no início
4 Alusfo ao terremoto de monte Sinai, quando foi dada a Lei (Ex 1 9 ,1 8 s)e ao
do Calvário (M t 27,51). Em seguida se alude ao do fim do mundo (Hb 12,26).
5 G1 5,11.
tàtôÜRSO SOBRE O AMOR AOS POBRES 255
6 Jo 14,16s.
7 J o 1 4 ,2 6 .
* J o 16,7 .
9 Jo 16,8.
10 Jo 16,12; 14,26.
256 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
dos céus. E orai comigo para que minha palavra vos possa alimentar
ricamente, repartindo entre vós o pão espiritual, fazendo-vos chover
alimento do céu, como Moisés 1, e nutrindo com alguns poucos pães
milhares de pessoas, como o fez Jesus, o verdadeiro Pão, o Autor da
verdadeira vid a2.
389 Pois bem, gostaria de ir ao assunto discorrendo sobre as virtu
des, tentando determinar aquela que sobrepuja as demais e ganha en
tre todas a palma da vitória. Tarefa aliás não fácil, como não seria
fácil ir escolher num jardim, cheio de perfumadas flores, a mais bela
e suave: ora uma, ora outra, haveria de solicitar nosso olhar, nosso
olfato, convidando-nos a apanhá-la incontinenti. Penso entretanto
que possa abordar o assunto fazendo as seguintes comparações.
Bela coisa são a fé, a esperança e a caridade, as “três" de que
fala o Apóstolo. Como é bela a fé veja-se em Abraão, justificado por
e la 3. Come é bela a esperança veja-se no exemplo de Henoque, o
primeiro a invocar o nome do Senhor4, e depois na multidão dos
justos que sofreram por causa da mesma esperança. Quão bela seja
a caridade atesta-o Paulo, pronto para padecer até gravemente por
causa de sua caridade pelo povo de Israel5; atesta-o sobretudo o
próprio Deus, cujo nome é Caridade!
Bela coisa é a hospitalidade, como vemos no exemplo de Ló
de Sodoma, não porém sodomita pelos costumes; e no de Raab, a
meretriz, que não o era pela intenção, pois foi elogiada e salva por
sua hospitalidade6.
Belo é o amor fraterno, como atesta Jesus, que não apenas se
dignou chamar-se nosso irmão, mas também quis sofrer por nosso
amor.
Bela coisa é a humanidade: veja-se outra vez Jesus, que além
de preparar o homem para todas as obras boas7, adicionou-lhe a ima
gem exemplar das coisas belas e celestiais, e além disto se fez, ele
próprio, homem.
Bela é a paciência e por isto ele não somente recusou as legiões
de anjos contra os perseguidores que vinham prendê-lo, não só re
preendeu a Pedro por desembainhar a espada, mas curou a orelha do
soldado ferido. E o mesmo faria Estêvão, discípulo de Cristo, orando
pelos que o apedrejavam8.
Bela coisa é a mansidão, como vemos em Moisés e Davi, elogia
dos por ela mais que tu d o 9, e como vemos no seu Mestre, aquele
1 E x I 6 ,1 4 s ; cf. SI 7 7 ,2 5 .
2 Mt 14,15ss; Jo 6,35.
3 Gn 15,6.
4 Gn 4,26.
3 Rm 9,3.
6 J s 2 ,l s s .
7 E f 2 ,1 0 .
8 At 759.
9 Nm 12,3; SI 131,1.
DISCURSO SCBRE O AMOR AOS POBRES 257
que não discute nem grita, cuja voz não se ouve nas praças, e que
não resiste aos que o prendem.
Bela coisa é o zelo. Vemos em Finéias, que atravessou com
lança a madianita e o israelita 10, a fim de desagravar Israel; ou como
vemos nos que após ele disseram: “ tive ardente zelo do Senhor” 11,
“tenho per vós um ciúme de Deus” 12, “o zelo de tua casa me de
vera” 13. Diziam-no e sentiam-no.
Bela é a mortificação do ccrpo, e por isto Paulo se mortificava 14,
atemorizando, com o exemplo de Israel, os que confiam em si mes
mos e se entregam ao corpo. Jesus mesmo jejuou e assim venceu
ao tentador 15.
Bela é a oração e a vigília, e por isto o Senhor vigiou e orou
antes de padecer. Bela a castidade e a virgindade, e por isto Paulo
dita leis a respeito, emitindo um juízo justo sobre a relação entre
p matrimônio e a virgindade. Por isto também Jesus quis nascer
de uma Virgem, honrando a geração, porém mais ainda a virgindade.
Bela é a abstinência, e asçim Davi, quando teve em poder a água
da cisterna de Belém, não quis beb er10, para não satisfazer à própria
necessidade às custas do sangue alheio.
Belas coisas são o deserto e a tranquilidade, como nos ensinam
o Carmelo de Elias, o deserto de João, c monte ao qual se retirava
Jesus pata estar em silêncio consigo mesmo 17. Bela é a frugalidade,
que se vê em Elias hóspede da viúva 18, em João coberto de peles
de camelo, e em Pedro alimentando-se de tremoços comprados por
um vintém.
Bela a humildade, cujos exemplos seriam numerosos, e antes de
todos estaria o do Salvador e Senhor, que se humilhou assumindo a
forma de servo 19, apresentou a face aos perseguidores, foi contado >
entre os malfeitores 10, ele que tira o pecado do mundo, e enfim se
comportou como um serve, lavando os pés dos discípulos.
Bela coisa a pobreza, ó desprezo do dinheiro, atestado por
Zaqueu e sobretudo por Cristo. Zaqueu, quando Cristo entrou em
sua casa, por pouco não renunciava ao que tin h a21. E Cristo definiu
com isto a perfeição ao jovem rico22.
io N m 2 5 ,7 .
n l R s 1 9 ,1 4 .
12 2Cor 11,2.
13 SI 68,10.
14 lCor 9,27.
15 M t 4 ,l s s .
16 2Sm 23,15.
17 Mt 14,23.
18 l R s 17,9 .
19 F1 2.6.
20 I s 5 0 ,6 .
21 Lc 19,8.
22 Mt 19,21.9
27 Rm 8,17.
28 lP d 2,9.
29 T t 2,14.
30 Is 53,4;
DISCURSO SGBRE 0 AMOR AOS POBRES 261
Imitemos a suprema e primeira lei de Deus, que faz chover so- 39$
bre os justos e os pecadores, que faz nascer o sol para todos. Ele
abriu para todos cs animais terrestres a terra, com suas fontes, rios
e bosques; deu de graça os ares às naturezas aladas, deu a água . aos
peixes, deu a todos cs primeiros elementos da vida, não dominados
pelo poder, não circunscritos pela lei, não separados por fronteiras.
Não; todos esses elementos de vida ele os propôs em aberto e de
mode farto, para que nada faltasse, honrando assim, pela igual-
262 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
dade da dádiva a igualdade da natureza, e mostrando ao mesmo tem
po a riqueza de sua própria bondade.
Já os homens, mal acabam de enterrar ouro, prata, vestes supér
fluas, pedras preciosas, ou coisas do gênero, e que são sinais da
guerra e da tirania primitiva, eis que já se erguem soberbos para
negar a misericórdia aos infelizes, mesmo parentes. Nem sequer com
o supérfluo querem ajudar ao necessitado — ó tolice e maldade!
Deveriam pelo menos considerar que a pobreza e a riqueza, o que
chamamos liberdade e a escravidão, e outras coisas semelhantes, se
introduziram tardiamente na linguagem humana, à maneira de fra
quezas comuns, em conseqüência da maldade e como invenções desta.
Mas no princípio, como diz a palavra evangélica, não foi assim 31.
Aquele que criou o homem no princípio e o deixou livre, submetido
apenas à lei do mandamento, fê-lo rico entre as delícias do Paraíso. E
o mesmo quis para todo o gênero humano, através da semente
do primeiro homem. A liberdade e a riqueza seriam a observância
do mandamento; a verdadeira pobreza e escravidão, sua transgressão.
Foi depois que se introduziram na vida a inveja e as contendas,
depois que a astuta tirania da serpente nos foi atraindo cada vez
mais pelas insídias do prazer, armando os mais audazes contra os mais
fracos, e então rompeu-se a unidade da linguagem comum, a avareza
amputou o que havia de nobre na natureza, assumindo a lei como
auxiliar do poder. Considera a igualdade primitiva, não a distinção
posterior, não a lei dc hcmem poderoso, mas a do Criador. Ajuda,
conforme tuas forças, a natureza, honra a liberdade primigênia, res
peita a ti mesmo, cobre a desonra de tua linhagem, socorre a enfer
midade e ajuda a indigência.
Tu, robusto, ajuda o enfermo; tu, rico, ajuda o necessitado. Tu,
que não caíste, ajuda ao que caiu e está atribulado; tu, que estás ani
mado, ajuda ao desalentado; tu, que gozas de prosperidade, ao que
sofre na adversidade. Dá graças a Deus por seres um dos que podem
fazer o benefício e não um dos que necessitam recebê-lo; agradece por
não teres que olhar as mãos alheias como outros olham para as
tuas. Não sejas rico apenas p o t tua opulência, mas por tua piedade,
não só pelo ouro mas pela virtude (e até, somente pela virtude!).
Faz-te estimar pelo teu próximo sendo melhor que ele, faz-te um
deus para o infeliz, imitando a misericórdia de Deus.
31 Mt 19,8.
32 Rm 12,8.
DISCURSO SOBRE O AMOR AOS POBRES 263
33 Is 48,6.
34 Ibid. 8.
35 GI 2,9ss.
36 Alusão ao discurso de Jesus sobre o Juízo final: M t 25.
37 Lc 736.
3« Jo 12,3.
tfA CRIAÇÃO DO HOMEM" 265
Eis per que o homem é trazido por último na criação, não que
seja relegado com desprezo à última categoria, mas porque, desde seu
nascimento, convinha que fosse b rei de todos esses domínios. Um
bom dono de casa não introduz seu convidado senão após ter arruma
do tudo para a refeição, arranjado e decorado suficientemente a casa
e a mesa; então, pronta a ceia, traz o convidadç. Da mesma forma,
aquele que, em sua infinita riqueza, é o hospedeiro de nossa natu
reza, decora antes a morada com belezas de toda espécie e prepara este
grande festim com iguarias variadas, e só então introduz o homem
para confiar-lhe, não a aquisição de bens ainda futuros, mas o gozo
do que já se lhe oferece. Assim, criando-o, Deus lança um du
plo fundamento para a mistura do divino ao terrestre, e faz que,
por essa dupla característica, o homem tenha naturalmente uma dupla
fruição: a de Deus, por sua natureza divina; a dos bens terrestres,
pela sensação, que é da mesma ordem desses bens.
Precisamos também considerar que, ao pôr cs fundamentos do 399
universo e de suas partes constitutivas, o poder divino realiza co-
mõ que de improviso suas obras, ordenando simplesmente que
venham à existência. Para a formação do homem, ao contrário,
há antes uma deliberação e, segundo a descrição da Escritura,
Uffi plano é estabelecido previamente pelo Criador, determinando
0 ser vindouro, sua natureza, o arquétipo donde ele trará a finali
dade, o gênero de atividade, o exercício de suas potencialidades. A
Escritura considera tudo isso antecipadamente, como que mostran
do nó homem uma dignidade anterior a seu nascimento. Com efeito,
ele recebe o comando do mundo, antes mesmo de existir: “Deus diz”,
conforme as palavras de Moisés, “façamos c homem à nossa imagem
e semelhança; que ele governe os peixes do mar, os animais da terra,
OS pássaros dos céus, os viventes e toda a terra”.
Coisa espantosa! O sol foi criado sem uma deliberação prece-:
dente; O céu também. E nc entanto nada os iguala na criação. São
maravilhas,' mas para cuja criação uma palavra é suficiente. A Es
critura não indica de onde vêm, nem como surgem. É assim que cada
coisa em particular, o éter, os astros, o ar, o mar, a terra, os ani
mais, as plantas, e todos os seres, vêm, por uma palavra, à existência.
Somente para criar o homem o Autor do universo se adianta com
circunspecção: prepara inicialmente a matéria que o comporá, confi
gura-a à beleza de um arquétipo, depois, segundo a finalidade que
lhe compete, compõe-lhe uma natureza conforme com ele e relativa
às atividíades humanas, que ém seu divino plano lhe prefixou!
Os artistas terrenos imprimem aos instrumentos a forma corres- 400
pendente ao uso que deles farão. Assim também o melhor dos artistas
fabrica nossa natureza como uma criação adaptada ao exercício da
realeza. E pela superioridade devida à alma, e até pela aparência do
ccrpo, ele dispõe tudo de tal maneira que c homem esteja apto ao
exercício de um poder régio. Esse caráter régio, com efeito, que o
266 SÃO GREGÓRIO DE NISSA
eleva muito acima das outras condições, a alma espontaneamente o
manifesta por sua autonomia, por sua independência, pelo fato de,
em sua conduta, ser ela dona de seu próprio querer. D e que é
próprio tudo isto, senão de um rei?
Acrescentai ainda que sua criação à imagem da natureza divina
mostra precisamente ter ele desde o princípio uma natureza régia.
De accrdo 'ccm o uso comum, cs retratistas dos príncipes, além
da representação dos traços, exprimem a dignidade real pelas vestes
de púrpura e confeccionam uma imagem tal que nos leva a . dizer:
“é o rei”. Assim a natureza do homem, criada para dominar o mun
do, devido a sua semelhança ccm o Rei universal, foi feita como
umà imagem viva que participa do Arquétipo pela dignidade e pelo
nome: a púrpura não a envolve, não há cetro ou diadema para
significar sua dignidade (o próprio Arquétipo não os tem ), mas em
lugar de púrpura ela está revestida da virtude, a mais real das ves
tes; em lugar de cetro, ela tem o apoio de uma feliz imortalidade;
em lugar de diadema real, traz uma coroa de justiça, de sorte que
tudo nela manifesta sua dignidade régia, por sua exata semelhança
com a beleza do Arquétipo.
401 A beleza divina não é o resplendor externo de uma bela apa
rência; ela consiste na indizível bem-aventurança de uma vida per
feita. Assim como os pintores, ao representarem uma personagem
sobre a tela, arranjam as tintas e cores segundo a natureza do tema
que pretendem retratar, imaginai igualmente aquele que nos modela:
as cores, quanto à sua beleza, são aqui as virtudes que ele deposita
e faz florir em sua imagem para manifestar o poder que lhe per
tence. A variada gama de cores postas nessa imagem, e que re
presentam verdadeiramente a Deus, nada tem a ver com o verme
lho, o branco ou outra mistura de cores, com o negro que serve
a escurecer as sobrancelhas e os olhos, e cuja dosagem certa põe em
relevo a sombra cavada pelos traços; nada tem com o que os
pintores pudessem inventar. Em lugar de tudo isto, pensai na pu
reza, na liberdade espiritual, na bem-aventurança, no afastamento
de todo mal, e em tudo o mais que pode formar em nós a seme
lhança ccm a Divindade. Foi com tais cores que c Autor de sua
própria imagem desenhou nossa natureza.
Se considerais outros caracteres da beleza divina, vereis que
também quanto a eles se conserva uma semelhança na imagem que
nós somos. A Divindade é Espírito e Verbo: “N o com eço”, de fa
to, “era o V erbo”. E segundo Paulo, os profetas “têm o Espírito
de Cristo” falando neles. Ora, a natureza humana não está longe des
tes atributos: em vós mesmos, vedes a razão e o pensamento, imita
ção daquele que é em verdade Espírito e Verbo.
Deus é ainda Amor e fonte de amor. João, o sublime, diz:
“c amor vem de D eus” e “Deus' é amor”. O modelador de nossa
natureza pôs também em nós essa característica: “N isto, diz ele, com
“oração catequética ” 267
efeito, todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros”. Portanto, se o amor está ausente, todos os traços da
imagem em nós se tornam deformados.
A Divindade, enfim, tudo vê, tudo ouve, tudo perscruta. Vós
também, pela vista e pelo ouvido, percebeis as coisas e pelo pensa
mento podeis examinar e perscrutar o universo.
1 Is 9,5.
270 SÃO GREGÓRIO DE NISSA
DA “V ID A DE M OISÉS”
(P.G . 44, 368b; S.C. 1 bis)
O maná
407 Outra coisa que não se deve deixar passar sem refletir: depois
da travessia do mar, depois que a água se faz doce durante a viagem
(símbolo do progresso na virtude), depois do delicioso período em
que cs hebreus encontram as fontes e as palmeiras, e são desseden-
tados junto à rocha, começam a faltar as previsões trazidas do Egito.
Nessa situação, carentes de todo alimento estranho, chega-lhes do
céu um alimento a uma vez variegado e o mesmo. Sua aparência é
sempre a mesma, mas as qualidades são várias, “adaptando-se a cada
um conforme seu desejo” 1.
Que aprendemos disso? As purificações pelas quais devemos
purificar-nos da vida egípcia e estranha, esvaziando a alma de todo
alimento impuro, preparado por estranhos, para podermos receber
2 Is 7,14; Mt 1,23.
3 Ex 3,2.
"VIDA DE M OISÉS” 271
com alma pura o sustento que desce do céu. Este sustento, não é o
trabalho da terra que o semeia e produz para nós, é um pão que se
: obtém pronto e sem labor: desce do céu e é encontrado sobre o solo.
Percebes qual o verdadeiro manjar figurado por tal episódio. O pão,
descido do céu, não é algo de incorpóreo: como haveria de nutrir
nosso corpo algo de incorpóreo? £ um pão corpóreo. Mas a matéria,
de que consta, não se produz pela semeadura e pelo trabalho do
homem; a terra, sem sofrer mudança alguma, se vê coberta do divi
no alimento, feito para os famintos. O mistério da natividade virginal,
eis o que está ensinado antecipadamente por tal milagre! O pão,
não produzido pela terra, é pois o Verbo, que adapta seu efeito às
disposições dos que o recebem, graças à diversidade de suas quali
dades. .Realmente, ele sabe ser não só pão, sabe tornar-se carne,
legume, e tudo que desejem os que o recebem: ensina-o Paulo, o
idivino apóstolo, o qual nos oferece em suas obras esse alimento,
jtornando sua própria palavra carne sólida para os perfeitos, legume
para ps fracos, leite para os que são como criancinhas.
r , O que a história (bíblica) relata sobre o maná é instrutivo para 408
a vida espiritual. Ali, cada um pode recolher a porção que lhe interessa,
sem que a diferença de vigor dos que recolhem acarrete excesso ou
deficiência no satisfazer às suas necessidades. Com isto, penso eu,
um conselho vem dado de modo geral aos que procuram sua subsis
tência nas coisas materiais: não exceder os limites das próprias neces
sidades, saber que há apenas uma medida para todos no uso dessas
coisas, e ela é o sustento quotidiano. Se te serves de mais do que o
necessário, teu ventre não irá ultrapassar sua capacidade, não poderá
dilatar-se com o excesso. Assim, como diz a história (bíblica), aquele
qúe tomava a mais não levava vantagem, pois não tinha onde pôr
ò supérfluo; e o que tomava menos não ficava frustrado, pois tomava
segundo a medida de sua necessidade. '
Quanto aos que deixam de reserva o supérfluo, lemos na his
tória que este se estragava: a Escritura brada assim aos ambiciosos
que o excedente das necessidades, acumulado por instinto de ente-
souramento, se transformará no dia seguinte, isto é, na vida futura,
em verme para séu possuidor. Quem me lê compreende facilmente:
o verme aqui designa aquele outro que não acaba e que alimenta a
concupiscência.
Ficava sem estragar-se apenas o que se reservara para o sábado. 409
Percebemos um conselho, o de usarmos de liberdade na aquisição das
coisas que não sofrem a corrupção e elas se tornarão úteis para nós
quando, após esta vida de preparação, isto é, após a morte, estiver
mos na impossibilidade de adquirir mais. Com efeito, o dia anterior
ao sábado é, na realidade, conforme o nome indica, preparação
( parasceve) do sábado: a parasceve é a vida presente, durante a
qual nós armazenamos os bens da vida futura, na qual nenhuma das
atividades atualmente possíveis se exercerá: agricultura, comércio, vida
272 SÃO GREGÓRIO DE NISSA
militar etc. Nós viveremos então num lazer perfeito de todas estas
atividades, recolheremos os frutos das sementes que tivermos plan
tado durante a vida atual, incorruptíveis se tiverem sido boas semen
tes, perecíveis e miseráveis se tiverem sido assim os frutos dos tra
balhos atuais. “Quem semeia no Espírito, diz a Escritura, recolherá
do Espírito a vida eterna; quem semeia na carne recolherá da carne
a corrupção” 2. Mas só a preparação do que é bom vem chamada
propriamente parasceve, e é sancionada como tal pela Lei, que deixa
de lado os bens incorruptíveis; para estes não há parasceve, nem a rea
lidade nem o nome. Pois não merece dizer-se preparação o que sé
termina na privação dos bens, merece dizer-se falta de preparação.
Portanto, a história prescreve aos homens a única preparação, a que
consiste nas boas obras, deixando tacitamente supor, aps capazes de
entender, que existe outra preparação. Ocorre aqui algo de semelhante
com o alistamento militar: o comandante do exército começa por dar o
soldo, depois dará o sinal para a guerra. Assim também os soldados
engajados na luta pela virtude recebem inicialmente seu místico soldo,
e só depois se engajam na guerra contra os estrangeiros, já então sob
a conduta de Jesu s3, sucessor de Moisés.
2G L 6,8.
3 Jesus, em hebraico, é o mesmo nome que Josué, o sucessor imediato de Moisés.
i G1 1,16.
“ vida de s. gregório taumaturgo* 273
tempo que, pelo encanto da face e de todo o seu aspecto, um gran
de poder. Aterrorizado com a visão, Gregório ergueu-se do leito para
melhor averiguar o que seria e por que razão ocorria. A aparição,
porém, tranqüilizou-o, dizendo com voz branda ter vindo por ordem
divina a fim de revelar a verdade da fé a respeito dos assuntos
que estavam sendo controvertidos e postes em dúvida. Recobrou
élè o ânimo ao ouvir estas palavras e passou, com um misto de ale
gria e espanto, a fitar o ancião, o qual em seguida estendia a mão em
sinal de lhe mostrar o que aparecia do outro lado. Acompanhando
ccm o olhar esse gesto, viu Gregório nova aparição, distinta da pri
meira: alguém, em figura feminina, de aspecto mais excelente e su
blime que o da condição humana. Mais uma vez atemorizou-se, e
afastando o clhar, que não pedia suportar a visão, hesitava cabisbaixo
sobre o sentido da cena, maravilhosa sobretudo pela luz que irradiava,
cerno se fôra um facho aceso, na escuridão da noite. Impedido de
enfrentá-la ccm os olhos, limitava-se a escutar o que falavam as duas
figuras. Conversavam a respeito do assunto doutrinário sobre o qual
ele mesmo estivera questionando. Da conversação recebia então um
verdadeiro conhecimento da doutrina da fé e além disto certificava-se
de quem eram os dois interlocutores, pois se chamavam um ao outro
pelo próprio nome. Ouviu que a figura feminina exortava o evange
lista João a expor e explicar ao jovem bispo o mistério da verdadei
ra piedade, e ouviu que ele dizia estar pronto a atender, com todo
o gosto, à Mãe do Senhor. Depois, feita a explicação de maneira mui
to apropriada e bem definida, tudo desapareceu ao olhar de Gregó
rio, que imediatamente se pôs a redigir a instrução recebida. Foi
baseado nela que fez mais tarde sua pregação na igreja e deixou aos
pósteros o legado de uma doutrina aprendida do alto e, em confor
midade com a qual, o povo daquela cidade pôde ficar imune de to^a
heresia, até o dia presente. Ora, as palavras desse místico ensinamen-*
to são as seguintes:
Tríade perfeita, que não está dividida nem alienada pela glória>
pelà eternidade, pelo reino. Nada há pois que seja criatura ou servo
na Tríade, nada de adventício, que antes não existisse e depois fosse
ali introduzido. Jamais faltou o Filho ao Pai, ou o Espírito ao Filho.
Sem mudança e alteração, é sempre a mesma Triade" 2
2 O texto deste "Cíedõ*’ se âchá tatnb^m em P.G. 10, 984; cf. RJ,, 611.
PRUDÊNCIO
(348 e. 405)
H IN O DA M A N H A 1
(P.L. 59, 785-796)
Ó noite, ó treva, ó nuvens, Pois surge o dia, e todos 412
não mais fiqueis aqui; entregam-se ao labor:
já surge a doce aurora, juízes e operários,
ò Cristo vem: parti! artista ou professor.
H IN O DA E P IF A N IA 1
(P.L. 59, 901ss)
1 Mq 6,3.
2 Jr 2,5.
3 O bispo refere-se a uma calamitosa tempestade ocorrida dias antes, por motivo
da qual se tinham feito procissões e súplicas na célebre igreja dos Apóstolos em
Constantinopla.
280 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
6 Pr 6,28.27.29.
■ SERMÃO “ CONTRA OS ESPETÁCULOS” 283
7 2T s 3,14.
.O SACERDÓCIO 285
O SACERDÓCIO1
(Trechos dos livros 2 e 3: P.G. 48, 631-633; 642s)
1 Este tratado clássico sobre o sacerdócio, uma das peças pastorais mais impor
tantes da patrística, é apresentado sob a forma de diálogo entre João Crisóstomo e
certo Basílio.
2 Jo 21,15.
286 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
425 O sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está ehtre as
coisas do céu. E com razão. Não foi homem, anjo, arcanjo, ou
qualquer outra potência criada, foi o próprio divino Paráclito quem
assim dispôs: que seres ainda permanecendo na carne exercessem es
se ministério dos anjos. Seria preciso que o sacerdote fosse tão
puro como se estivesse no céu, colocado entre os anjos. Recor
de-se a majestade das cerimônias no sacerdócio hebraico, o te
mor reverenciai, o santo terror que inspirava, todo aquele con
junto de campainhas de ouro, romãs de púrpura, pedras preciosas a
brilharem sobre o peito e espáduas do sumo sacerdote, sua mitra, seu
diadema, a longa túnica, a lâmina de ouro, enfim o Santo dos
Santos e o silêncio profundo que lá havia. Todas essas exterioridades
eram pouco em comparação aos mistérios da lei da graça, e o Apóstolo
disse justamente que o brilho do primeiro sacerdócio nada era ao
lado da glória supereminente do segundo 5. Realmente, quando vês
o Senhor imolado sobre o altar, e o sacerdote a inclinar-se sobre a
vítima, em profunda oração, e os circunstantes com os lábios enru-
becidos pelo precioso sangue, pensas estar ainda entre os homens e
sobre a terra? Não te parece antes teres sido transportado subitamente
para o céu e ali, banidos os pensamentos carnais, contemplares com
a alma pura as coisas celestes? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aque
le que se assenta junto do Pai, nesse momento se deixa segurar
3 Mt 24,45.
4 Ibid. 47.
5 2Cor 3,10.
AS BEM-AVENTURANÇAS 287
AS BEM-AVENTURANÇAS
(Trechos da Homilia XV sobre Mateus: P.G. 57, 223-228)
1 Mt 28,20.
2 Is 66,2.
AS BEM-AVENTURANÇAS 289
3 H b 12,14.
4 2Cor 8,5.
HO M ILIA SOBRE A 1? EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 291
1 lCor 4,1.
292 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
2 íb id .
? At 3,12.
4 At 14,15.
* M t 1 9 ,2 7 .
6 I C o r 1 5 ,1 0 .
7 ICor 4,7.
« ICor 15,31.
HOM ILIA SOBRE A V EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 293
“aos outros", pensando que tu mesmo o queres: Deus manda que se
jam consideradas tuas as coisas confiadas a ti em benefício dos irmãos.
Os bens alheios se tornam tua propriedade quando os distribuis ao
próximo. Se ao contrário os usas em teu benefício, ei-los tornados coisa
dos outros. D o momento em que te serves deles de modo egoístico,
como a dizerv “é justo que minhas riquezas sejam gastas exclusivamen
te para meu uso e consumo”, digo-te que tais riquezas já não são
tuas, pertencem aos outros. Porque são bem comum e seu usufruto
compete igualmente a teu próximo. Da mesma forma que são comuns
o sol, o ar e a terra, isto é, todas as coisas.
Com o uso dos bens ocorre o mesmo que com o corpo: cada
membro pode desempenhar a própria função somente se se acha unido
ao conjunto; desde que determinado órgão se separe, passa a ficar
privado da própria capacidade.
Para explicar-me com maior clareza: se o alimento corpóreo desti
nado a todos cs órgãos fosse dado apenas a um deles, se tornaria inútil
para o mesmo, pois não poderia ser assimilado e produzir qualquer
efeito; se porém o organismo inteiro é alimentado, cada órgão se
beneficia tanto quanto o conjunto. Não de outra forma acontece com
as riquezas: se pretendes gozá-las sozinho, já as perdeste porque não
receberás recompensa; se ao contrário repartes com outros sua posse,
serão mais tuas e te proporcionarão verdadeiro lucro.
Não vês que as mãos tomam o alimento, a boca o mastiga e o
estômago o recebe? Ora, diria o estômago: “se fui eu que recebi o ali
mento, vou retê-lo para m im”? Nem tu fales deste modo a respeito
. de teus bens! Cabe a quem recebe riquezas distribuí-las aos outros.
Da mesma forma que o estômago adoece quando retém os alimentos,
danificando o organismo, também é doença para os ricos reter
para si o que possuem; seu comportamento causará danos a si e aos
outros. O olho recebe a totalidade da luz, mas não a retém, e
ilumina com ela todo o corpo. Não lhe cabe, como olho, reservar-se
unicamente toda a luz. O nariz, embora capte os perfumes, não os
retém, remete-os ao cérebro, ao estômago, em proveito do homem
todo. Os pés caminham por si, mas para que o corpo se mova por
meio deles. Também tu deves abster-te de reservar para teu uso o que
te foi concedido, pois prejudicarias a todos, principalmente a ti mesmo.
439 Os exemplos poderiam tirar-se de outras fontes. O serralheiro, sé
quisesse lucrar sozinho ao trabalhar, se prejudicaria e prejudicaria
as demais atividades. O mesmo vale do sapateiro, do lavrador, do
moleiro, de todos que pretendam excluir os outros dos benefícios
de seu trabalho.
E que dizer dos ricos? Pois também os pobres poderiam preju-
dicar-vos, se imitassem vossa avareza, levando-vos em breve tempo
à miséria e à ruína, caso recusassem prestar-vos seu trabalho necessá
rio: por exemplo, se o lavrador sonegasse seu produto, se o marinheiro
não entregasse a mercadoria das viagens, se o soldado não combatesse
H O M ILIA SOBRE A V EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 295
H IN O SOBRE O PARAÍSO
(Hino 11)
O ar do Paraíso
é a fonte de prazer
onde Adão bebia
na juventude.
Era um ar como seio de mãe,
que o nutria na sua infância.
Adão era então muito belo,
irradiante de alegria.
O desprezo da ordem o fez velho,
triste, decaído,
e o fez carregar da velhice
o peso de miséria.
Bendito seja aquele que exaltou Adão
e o fez tornar ao Paraíso.
Nem o frio malfazejo
ou o calor ardente
conheceu o Paraíso,
cheio de bênção e prazer,
porto das alegrias,
reunião de todas as delícias,
H IN O SOBRE 0 PARAÍSO
O sopro do Paraíso
suaviza o amargor
de nossa existência.
Desce para atenuar
a maldição pesante sobre a terra.
H IN O SOBRE O PARAÍSO
Concede-me, 6 Bondade,
descobrir a graça do Paraíso,
esse tesouro de fragrâncias,
esse celeiro de perfumes,
cujo sopro me sacia a fome.
É perfume que dá alimento
a cada ser em seu tempo.
Quem o aspira rejubila
e esquece o próprio pão.
Lá está a mesa do Reino!
Bendito quem a pôs no Paraíso!
SANTO EPIFANIO
<t 405)
Grande batalhador contra heresias. Natural da Palestina, homem culto, foi supe
rior de uma comunidade monástica em Eleuterópolis (Jfudéia) e depois bispo de
Salamina, na ilha de Chipre. O zelo o levou a excessos, como na luta contra o origenis-
mo, que considerava a pior das heresias. Foi hostil ao culto das imagens. Escreveu,
entre outras obras, Ancoratus (ou “a fé bem ancorada”), Panarion ( “Caixa de re
médios”) onde se encontram citações de obras perdidas de diversos autores, num
elenco de oitenta “heresias”.
,5 Ed. crítica em GÇS, 3 vols.
C A M IN H O REAL
(Haer. 59, c. 12s: P.G. 41, 1036s)
l Jo 19,26.
OS ÚLTIMOS TEMPOS DA VIRGEM MARIA 305
A anunciação e a visitação
“E entrando onde ela estava, disse-lhe o anjo: Salve, cheia dé
graça! O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres! Ela,
porém, quando o viu, turbou-se com sua presença
Reconhece a Virgem por seus costumes, reconhece a Virgem 453
por seu pudor, reconhece a Virgem no oráculo, reconhece no misté
rio. É próprio de uma virgem estremecer e perturbar-se com a pre
sença de um homem, temer falar com homem. Aprendam as mulheres
a imitar este pudor. Sozinha no interior da casa, apenas um anjo
haveria de encontrar aquela que homem algum veria; só, sem com
panhia; só, sem testemunha, a fim de não se macular no trato com
as demais; é um anjo quem a saúda. Aprendei, ó virgens, a evitar a
dissipação das palavras; Maria temia até mesmo a saudação de um
anjo.
"E ficou a cogitar que saudação seria aquela”. Perturbou-se, 454
receiou, acautelou-se, por lhe causar admiração a estranha fórmu
la de uma benção que antes jamais ouvira, que jamais lera. Era
exclusivamente para Maria que se reservava esta saudação. Com
308 SANTO AMBRÓSIO
razão é dita, somente ela, “cheia de graça”, pois só ela obteve a graça
que nenhuma outra merecera, a de ficar repleta pelo Autor da graça.
Enrubeceu Maria como também Isabel, e vejamos que relação
existe entre o pudor da mulher casada e o pudor da Virgem:
aquela enrubecia por ter motivo; esta, por seu pudor. Em Isabel
tem-se uma atitude de pudor, na Virgem a graça do pudor é au
mentada. '
"Disse, porém, Maria ao anjo-. — Como se fará isso, se não co
nheço varão?”
Pareceria aqui, se não se observasse atentamente, que Maria não
acreditou. Seria lícito julgar incrédula a eleita para gerar o Filho
unigénito de Deus? Mas ccmo Zacarias, não crendo, seria condenado
por seu silêncio, e Maria, igualmente não crendo, seria exaltada pela
infusão do Espírito Santo? Já considerando a prerrogativa da ma
ternidade, não se iria pensar assim, pois à maior dignidade se devia
reservar mais fé.
Todavia, nem convinha a Maria deixar de crer no anjo, nem
usurpar temerariamente mistérios divinos.
Não era fácil conhecer o mistério oculto há séculos em Deus,
que nem as potências angélicas podiam conhecer. Contudo, não
negou sua fidelidade, não recusou a missão, mas acomodou o afeto e
prometeu o assentimento. Pois quando disse: “Como se fará isso?”
não duvidava do que ia acontecer, indagava apenas o modo como acon
teceria. E quanto é mais prudente sua resposta do que a do sacerdote!
Ela disse: “Como se fará isto?” Ele respondera: “Como entenderei
isto? ” Ela já trata do assunto, ele ainda duvida da notícia. Nega-se ele
a crer, pois diz não saber, e como que procura ainda outro teste
munho para o que é proposto à sua fé; ela promete cumprir o
que lhe é anunciado, não duvida de que se realizará, pergunta ape
nas de que modo possa realizar-se. Pois assim se lê: “Como se
fará isto, se não conheço varão? ” É que primeiro devia ser notificada
(a geração admirável e inefável) para nela se poder crer. Uma
virgem dando à luz é sinal de mistério divino, não algo de humano.
Enfim, “recebe para ti o sinal: eis que a Virgem conceberá e dará
à luz um filho” K Maria lera isso, crendo que aconteceria. Mas de
que modo? Não o lera, pois não tinha sido revelado, ao profeta.
O mistério de uma missão tão grande haveria de ser proferido por
boca angélica e não humana. Eis que hoje pela primeira vez foi ou
vido: “o Espírito Santo descerá sobre t i ”. Alguém o ouviu e creu.
455 Enfim, diz ela: "Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim, se
gundo a tua palavra”.
Vede que humildade, vede que devoção! Diz-se escrava do
Senhor a que é eleita para ser sua Mãe. Não se exaltou com
a inesperada promessa. Dizendo-se imediatamente escrava não requeria
i Is 7,14.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO LUCAS 309
2 SI 126.
312 SANTO AMBRÓSIO
Deus, desde que seja imaculada e isenta de vícios, guardando com
intangível pudor sua castidade. Toda a alma assim, engrandece
ao Senhor como a alma de Maria, que enalteceu o Senhor, como o
espírito de Maria, que exultou em Deus seu Salvador. Com efeito,
o Senhor realmente é engrandecido, conforme se lê em outro lugar:
“engrandecei o Senhor comigo!” 3 Não que lhe possa ser algo acres
centado, mas porque em nós é engrandecido.
Cristo é a imagem de Deus; e se a alma fizer algo de justo oü
religioso, engrandece a imagem de Deus à cuja semelhança foi criada.
Enaltecendo-o, torna-se mais sublime por participar da grandeza dele,
e parece exprimir a sua imagem com a cor esplendorosa dos bons
atos e o zelo da virtude. A alma de Maria, porém, engrandece ao
Senhor e seu espírito exulta em Deus, porque Maria, devotada em
alma e espírito ao Pai e ao Filho, venera com piedoso afeto o Deus
único de quem tudo depende, o único Senhor, por quem tudo é.
Verifica-se em Maria que quanto mais excelente é a pessoa,
tanto mais rica a sua profecia.
Não por acaso Isabel profetiza antes do nascimento de João,
e Maria antes da geração do Senhor. Já preludiam os esboços de
salvação do gênero humano. Assim como o pecado começou pelas
mulheres, também os bens começaram pelas mulheres; para também
elas deporem suas obras femininas e renunciarem a toda fragilidade;
e para que a alma, que não tem sexo, como Maria que não tem
pecado, imite zelosamente seu exemplo de castidade.
462 "Maria permaneceu com ela três meses; e voltou para sua casa”.
Com razão se faz constar que santa Maria desempenhou o seu
ofício de caridade durante um místico número. Não ficara todo esse
tempo só por causa do parentesco com Isabel, mas para o aprovei
tamento do grande profeta. Porque, se à sua simples entrada na casa
de Zacarias se seguira um benefício tão grande que o menino exultou
no seio materno e a mãe se encheu do Espírito Santo, que bens não
julgaremos advieram da presença tão prolongada de santa Maria?
O profeta era santificado, e, como bom atleta, exercitava-se no
seio materno. Preparava-se, na verdade, para um renhido combate.
SOBRE OS M ISTÉRIO S1
(P.L. 16, 405ss; S.C. 25)
3 SI 33.
1 Nos séculos II-III o termo “mysterium” designava muitas vezes o mesmo que
“sacramento”.
SOBRE OS MISTÉRIOS 313
2 De acordo com a disciplina “do arcano”, geralmente a explicação dos ritos era
feita durante ou após a realização dos mesmos, não antes.
3 M c 7 ,3 4 .
4 R e fe rê n c ia ao b a tis té r io .
5 O s tr ê s g ra u s d a h i e r a r q u ia : d iá c o n o , p re s b íte r o e b is p o .
6 Ml 11,7.
7 Bispo.
8 2Cor 4,18.
* R m 1 ,2 0 .
314 SANTO AMBRÓSIOI
ao menos nas minhas obras” 101. Crê, portanto, estar ali presente a di
vindade. Crês na sua ação e não crês em sua presença? Como ha
veria a ação se não houvesse presença?
465 Considera quanto é antigo o mistério, prefigurado desde a ori-
gem do mundo. No princípio, quando Deus criou o céu e a terraj
“o Espírito pairava sobre as águas” 11. Acaso aquele que pairava
sobre as águas, nelas não atuava? Mas por que digo: atuava? Np
que se refere à presença, pairava. Então, pairando não atuava? Re
conhece que atuava na formação do mundo, pois diz o profeta: “Pe-,
la palavra do Senhor foram firmados cs céus e pelo sopro de sua boca
todo o seu exército” 12. No testemunho profético apóiam-se, portanto,
ambas as afirmações: Moisés diz que o Espírito pairava; Davi, qué
atuava.
Mais um testemunho. Ccrrompera-se toda a carne, por suas ini-
qüidades. “Meu Espírito — diz o Senhor — não permanecerá no
homem, pois é carne” 13. Deus mostra assim que a graça espiritual
se afasta da impureza carnal e da mancha do pecado grave. Queren
do, pois, reparar o que se corrompera, Deus mandou o dilúvio p
ordenou ao justo Noé que entrasse na arca. Ao cessar a chuva, sol
tou este primeiro um corvo, que não mais voltou; soltou então
um a pomba que, conforme se lê, regressou com um ramo de olivei
ra 14. Vês a água, o lenho e a pomba, e duvidas do mistério?
Na água mergulha a carne, para ser purificada de seu pecado.
Sepulta-se ali todo pecado. No lenho foi pregado o Senhor Jesus,
quando sofreu por nós. Na figura da pom ba— conforme aprendeste
em o Novo Testamento — desceu o Espírito Santo, que te infunde
a paz na alma, a serenidade no espírito. Do pecado é figura o cor
vo, que sai para não mais voltar, se em ti conservares a observân
cia e forma da justiça.
Um terceiro testemunho te é dado pelo Apóstolo: “Nossos pais
estiveram todos sob a nuvem, atravessaram o mar e na nuvem
e no mar foram batizados” 15. E o próprio Moisés diz em seu cân
tico: “Enviaste teu Espírito e o mar os cobriu” 16. Observas que,na
travessia dos hebreus já foi prefigurado o batismo: ali pereceu o
egípcio e o hebreu foi salvo. Que aprendemos diariamente neste
mistério, senão que a culpa é submergida, o pecado destruído, mas
a piedade e a inocência permanecem seguras? Ouves que nossos
pais estiveram sob a nuvem, a boa nuvem, que aliviou o ardor
das paixões carnais. A boa nuvem dá sombra aos que são visitados
pelo Espírito Santo. Ela baixou sobre a Virgem Maria e a virtude
10 Jo 10,38.
11 G n 1,2.
12 SI 32,6.
13 Gn 6,3.
14 Gn 8,7ss.
15 lCor 10,2.
16 Ex 15,10.
i SOBRE OS MISTÉRIOS 315
j . / ‘ Já te foi dito que não cresses apenas no que vias, para não 466
pensares, talvez: "Então é este o grande mistério, que ‘os olhos
hão viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração do homem
conheceu?’ 21 Vejo águas, como as que sempre vi; acaso têm a vir
tude de purificar? Tantas vezes mergulhei na água sem ser purificado!”
Por isso mesmo reconhece que sem o Espírito a água não
purifica!
Leste que se unem no batismo três testemunhas: a água, o
sangue e o E spírito22; se tirares uma delas não subsiste o sacramen
to: dó batismo. Que seria a água sem a cruz de Cristo? Elemen
to,; comum, sem qualquer efeito sacramental. De outro lado, sem a
água -não haverià sacramento da regeneração: “Se alguém não re
nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” 23.
Crê o catecúmeno na cruz do Senhor Jesus e por ela é marcado;
mas se não for batizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Sánto não pede receber a remissão dos pecados nem haurir o dom
da graça espiritual.
25 SI 28,3.
26 j z 6,21.
27 lRs 18,38.
28 Mt 18,20.
29 O batismo era administrado por imersão.
30 SI 50,9.
31 Ex 12,22.
32 Mt 17,2.
33 Is 1,18.
SOBRE OS MISTÉRIOS 317
35 si 22,5.
36 I b i d . I s .
37 I b i d . 4 s .
38 Ex 16,13.15.
39 ICor 11,9.
40 H b 7,8.
41 Ap 22,18.
318 SANTO AMBRÓSIO;
O dom que recebeste não é portanto algo de humano, é di
vino sacramento, revelado por aquele que abençoou a Abraão, o
pai da fé, cujas ações e graças tu admiras.
471 Está provado assim serem mais antigos os mistérios da Igreja;
Reconhece agora como são mais valiosos. Realmente, é admirável
que Deus tpnha feito chover maná para nossos pais, que os tenha
alimentado diariamente com pão do céu. Por isso foi dito: “o homein
comeu o pão dos anjos” 42. Entretanto, apesar desse pão que recebiam;
morreram todos no deserto. O alimento que tu recebes, ao contrário,
sustenta para a vida eterna, pois é o pão vivo que desceu do céu;
todo o que dele comer não morrerá eterhamente; é o corpo de
C risto43.
Então qual dos dois é mais excelente: o pão dos arijos otl
a carne de Cristo, que é o corpo da Vida? Aquele maná vinha do
céu; este está acima do céu; aquele era do céu, este é do Senhor
dos céus; aquele era sujeito à corrupção, se guardado para o dia
seguinte; este é absolutamente incorruptível e quem o saborear relb
gicsamente jamais experimentará a corrupção.
Para os judeus jorrou água da pedra44, para ti o sangue de
Cristo. Por breve tempo a água os dessedentou; o sangue te lava
para sempre. Bebe o judeu e ainda tem sede; tu, após beberes, não
poderás mais ter sede. Aquilo se passava em figura, isto na rea
lidade.
472 Se o que admiras é sombra, quão grande não será o que já é
admirável em sua sombra. Ouve: é sombra o que aconteceu com
nossos pais. “Bebiam”, diz a Escritura, “da pedra que os acompa
nhava; a pedra, porém, era Cristo. Entretanto, da maioria deles não
se agradou Deus, pelo que sucumbiram no deserto” 45. Estas coisas
ocorreram para ncs servir de figura. Conheceste o que é mais ex
celente, porque a luz vale mais que a sombra, a verdade mais que
a figura, o corpo do Criador mais que o maná do céu.
Talvez digas: — É outra coisa o que vejo; como me afirmas
que recebo o corpo de Cristo?
473 É o que ainda nos resta provar. Quantos exemplos podemos
utilizar! Vamos provar que isso é assim, não por obra da natureza, mas
em razão da bênção que consagra, sendo maior a virtude da consa
gração do que a da natureza, pois pela consagração até a natureza
se transforma.
Moisés segurava uma vara. Atirou-a ao chão e transformou-se
em serpente46. Pegou a serpente pela cauda e ei-la voltando ao que
SOBRE OS MISTÉRIOS 319
era. Vês que pelo podef do profeta mudou duas vezes a natureza da
serpente e da vara?
Deslizavam os rios do Egito na límpida correnteza de suas
águas. Subitamente dos veios, provenientes das fontes, começou a
brotar sangue47 e já não havia água potável nos rios. De novo,
pela oração do profeta, cessou o sangue e reapareceu a limpidez
das águas.
Cercado estava, de todos os lados, o poyo hebreu: de um lado
os egípcios lhe interceptavam a passagem, de outro o mar o detinha.
Ergueu Moisés a vara e a água se dividiu, congelando-se como se
fosse muralha de modo qüe entre as ondas surgisse um caminho de
passagem 48.
O rio Jordão, contrariando a ordem natural, passou a retro
ceder em direção a fonte de onde m anava49. Não foi evidente a
mudança ná natureza tanto das ondas daquele mar como do curso
desse rio?
^ _ Sofria sede o povo dos patriarcas. Moisés tocou o rochedo e
jorrou água da pedra. Não atuou a graça além do que faz a natu
reza, fazendo que o rochedo vertesse uma ágüa que não possuía?
y O lago Mara era tão amargo que o povo não podia desse-
dentar-se ali. Lançou Moisés um lenho na água e esta, unida à
graça ali infundida, perdeu o natural amargor 50,
No tempo do profeta Eliseu, aconteceu a um dos filhos dos
profetas que escapou o ferro de seu machado e começou a afundar.
Atendendo aos rogos do que sofrera o prejuízo, Eliseu mergulhou o
cabo de madeira e o ferro veio à tona d’água51. Fato também
superior à natureza, pois o ferro é naturalmente mais pesado que
a água*
Notamos nisso tudo ser a graça mais forte que a natureza,^ 474
embora se trate ainda da graça derivante da bênção de um profeta!
Se tão poderosa foi a bênção humana para transformar a natureza,
que diremos da própria consagração divina, na qual operam as pala
vras do próprio Senhor e Salvador? Pois o sacramento que recebes
é confeccionado com a palavra de Cristo. Se tanto pôde a palavra
de Elias, que fez descer fogo do céu 5253, não terá poder a de Cristo
para mudar a natureza dos elementos? A respeito das coisas do
universo leste que: “Ele disse e foram feitas; ordenou e foram cria
das” 55. Ora, se a palavra de Cristo pôde criar do nada o que não
existia, não poderá mudar elementos já existentes naquilo que não
47 Ex 7,20s.
4« Ex 14,20*.
4? Js 3,16.
50 Ex 15,23ss.
51 2Rs 5,5s.
52 lRs 18,38.
53 si 148,5.
320 SANTO AMBRÓSIO
eram? Não é menor poder dar aos seres nova natureza dò que
mudá-la!
475 Mas, por que usar de argumentos? Sirvamo-nos de exemplos,
confirmemos a verdade do mistério pelo exemplo da Encarnação.
Porventura o nascimento de Jesus foi precedido do processo na
tural? Se investigarmos a ordem, a mulher gera por união com
o homem. É portanto evidente que a Virgem gerou acima da or
dem natural. Ora, o corpo que consagramos nasceu da Virgem; por que
buscas a ordem no corpo de Cristo, quando acima da natureza nasceu
da Virgem o Senhor Jesus? Foi verdadeira a carne de Cristo, crucifi
cada e sepultada; por que não será verdadeiramente de sua carne
este sacramento?
O próprio Senhor Jesus clama: “ Isto é o meu corpo” 54. Antes
da bênção das palavras celestes, uma espécie é designada, depois
da consagração é corpo o que vem designado. Ele afirma estar no
cálice o seu sangue. Antes da consagração é uma coisa, depois
ela se chama sangue. E tu dizes: “Amém”, a saber, “é verdade”. Õ
que a boca prefere, o íntimo da alma também confesse; o que a palavra
significa, sinta-o o coração.
476 Cristo alimenta sua Igreja com estes sacramentos que fortale
cem a substância da alma, e vendo-a crescer na graça, assim lhe fala:
“Quão belos são teus seios, minha irmã e esposa! Tornaram-se mais
belos que a vinha! O aroma de tuas vestes supera todos os perfumes!
Teus lábios, ó esposa, são como favo a destilar, o mel e o leite
estão sob a tua língua e a fragrância de teus vestidos é como ò
bálsamo do Líbano. És um jardim fechado, minha irmã e esposa, um
jardim cerrado, uma fonte selada” 55. Por estas palavras indica que em
ti deve o mistério permanecer selado, isto é, não deve ser violado
pelas obras da vida má ou pelo adultério da castidade, não deve ser
divulgado a quem não compete, não deve ser difundido entre gente
perversa através da excessiva conversação. Precisas guardar bem
tua fé, para que permaneça imaculada a integridade da vida e do
silêncio.
Conservando a profundeza dos mistérios, a Igreja afasta de si
as procelas dos grandes ventos e convida à suavidade da graça pri
maveril; ciente de que seu jardim não pode desagradar a Cristo,
chama seu Esposo com estes termos: “Levanta-te, ó Aquilão, e vem,
ó tu que és o vento do meio-dia, sopra por todo o meu jardim e
faz difundirem-se meus aromas!” 56 “Venha meu irmão a seu jardim
e coma o fruto de suas macieiras!” 57 Ele possui árvores boas e
frutíferas, que banham as raízes na torrente da Fonte sagrada e se
propagam através de bons frutos, com c germe de uma fecundidade
« M t 26,26.
55 Ct 4,10ss.
56 Ibid. 16.
57 C t 3 ,1 .
SOBRE OS MISTÉRIOS 321
» Ct 5,1.
» Mt 2536.
«o Ct 5,1.
61 SI 33,9.
62 lCor 10,3.
63 Lm 4,20.
64 lP d 2,21.
65 si 103,15.
66 M t 1,18.1
A Efi NA IMORTALIDADE
' (P.L. 16, 1373-1375)
479 Não devemos chorar a morte dos entes queridos. Não é certo
lamentar-se como particular desgraça o que se sabe atingir a todos.
Seria desejar subtrair-se ao destino geral, não aceitar a lei comum,
não reconhecer a igualdade de natureza, seguir os sentimentos carnais
e ignorar a finalidade do corpo. Haverá algo mais tolo do que desco
nhecer o que se é, querer parecer o que não se é? algo de menos
inteligente do que, sabendo o que deve acontecer, não lograr su
portá-lo quando acontece? A própria natureza nos interpela e n o a:r e
tira da dor com um modo de consolar que lhe é todo próprio. De-
fato, não há sofrimento tão profundo, tormento tão acerbo que não
ache algum lenitivo. E é a natureza que o oferece aos homens, pre
cisamente porque são homens, ela desliga seu espírito da dor, mes
mo nas situações mais tristes e lutuosas. Houve povos, dizem, qüè
se afligiam com o nascimento de um homem, ao passo que celebra
vam festivamente sua partida. Isto não é totalménte destituído dé
significado, pois acreditariam dever lamentar os que se põem ao
leme do barco em mar tempestuoso, como é a vida; pensariam, ao
contrário, não ser errado alegrar-se com cs que escapavam às bor
rascas da vida. Mesmo nós, cristãos, esquecemos o dia do nasci
mento de nossos santos e festejamos o de seu retorno à pátria.
De acordo com a ordem natural, portanto, não é justo dar
excessivo lugar ao pesar, se não se deseja reclamar uma especial ex
ceção ao curso da natureza, recusando-se a sorte comum. A morte,
com efeito, é comum a todos, sem distinção de pobres e ricos. E em
bora tenha vindo ao mundo por culpa de um só homem, passou a
todos, a ponto de devermos considerar autor da morte o que foi
princípio do gênero humano. Mas igualmente por obra de um só
veio para nós a ressurreição! Não há então que desejar subtràir-nos
ao flagelo trazido pelo primeiro, para assim podermos obter a
graça do segundo. Cristo, diz a Escritura, veio para recuperar o
que estava perdido, a fim de reinar deste modo não só sobre os
vivos mas também sobre os mortos. Em Adão nós caímos, fomos
expulsos do paraíso e morremos: como poderá o Senhor reconduzir-nos
a si se não nos encontra em Adão? Neste nós decaímos sob o poder
do pecado e da morte, em Cristo nos tornamos justificados. A morte
é um débito comum; todos devemos suportar-lhe a paga. . .
. A FÉ NA IMORTALIDADE 323
O mais erudito dentre os Padres latinos é são Jerônimo, chamado “vir trilinguis”,
por seu amplo conhecimento do latim, grego e hebraico, e também “Doutor bíblico”,
por suas pesquisas no campo da Sagrada Escritura.
Nascido na Dalmácia, educou-se em Roma, cnde se familiarizou com os autores
clássicos. Atraído pelo ideal monástico e ascético, peregrinou à Palestina e lá viveu
alguns anos como eremita. Em 379 recebeu o presbiterado das mãos de Paulino, bispo
de Antioquia. Esteve pouco depois em Constantinopla, onde foi ouvinte de são Gre*
gório Nazianzeno e amigo de são Gregório Nisseno. De 382 a 383 morou em Roma,
como secretário do papa Dâmaso, por cuja ordem encetou a revisão da versão itálica
da Sagrada Escritura, trabalho do qual resultou finalmente a chamada Vulgata. Àó
mesmo tempo, propagava o ideal ascético, principalmente num círculo fervoroso de
mulheres da nobreza romana, entre as quais Marcela, Paula e Eustochium, e com
batia os maus costumes do clero. Em 385 regressou à Palestina, passando antes pòf
Alexandria, onde ouviu as conferências de Dídimo, o Cego. Na Palestina fixoü-sè
em Belém, na direção de um mosteiro, lá passando 34 anos de intensa produção li
terária e participando das controvérsias origenista e pelagina. Morreu a 30 de setem
bro de 420.
Na figura de são Jerônimo sobressaem a austeridade e o temperamento veemen
te, a dedicação ímpar aos estudos bíblicos, o amor à Igreia e à Sé de Pedro.
Obras: a revisão da Vetus latina e a tradução do Antigo Testamento a partir
dos textos hebraico e aramaico; outras traduções (de Orígenes, cuja doutrina com
bateu; de Eusébio, Dídimo etc.); obras exegéticas; obras polêmicas (Contra Helvtdio,
Contra Joviniano, Contra Vigilância etc.); Homilias e Cartas sobre temas doutrinários
e ascéticos.
Ed. moderna: CCL, t. CLXX-CLXXII A. Em tradução francesa: St. Jérôme. Let-
tres, 8 vols., Coll. des llniv. de France, 1949-1963.
A s três Hipóstases
481 O Oriente está debilitado pela antiga fúria dos povos, e desfaz
fibra por fibra a túnica do Senhor, inconsútil e tecida de cima
abaixe. As raposas assolam a vinha de Cristo, de maneira que entre
as cisternas rotas e sem água1 é difícil atinar onde está a “fonte
selada e o horto fechado"2. Pareceu-me, portanto, que devia correr, a
consultar a Cátedra de Pedro e a fé proclamada pela boca apostólica,
pedindo alimento para minha alma, dali mesmo onde em outra ocasião
recebi a veste de Cristo.
CARTA A DÂMASO, PAPA 325
3 M t 24,28.
4 O “Santo do Senhor” era expressão que designava a sagrada eucaristia, a qual
os Pastores das diferentes igrejas se enviavam reciprocamente, em sinal da comunhão
na fé.
5 São três nomes em relação com o cisma antioqueno do século IV.
6 Antes de ser consagrada pelo I Concílio de Constantinopla (381), a expressão
“três hipóstases” parecia significar, em algumas áreas, o mesmo que “três substâncias”.
Daí a repugnância de são Jerônimo quanto z seu uso (no ano 376).
326 SÃO JERÔNIMQ.
também naqueles termos, pois há nas sílabas não sei que peço
nha. Replico exdamandò: Quem não confessar três hipóstases ou
três “entópóstata”,. isto é, três pessoas subsistentes, seja excomunga
do! Mas em seguida, porque não retenho de memória estes vocábu
los, julgam-me herege.
Ora, se alguém, entendendo por hipóstásis a usia ( = essência),
nega que nas três Pessoas há uma só "hipóstásis”, é alheio a Cristo.
Com esta confissão me assinalo como cativo da verdade junto a vossa
Santidade.
483 Tomai uma decisão, rogo-vos. Não temo confessar três hipós
tases, se assim o mandardes. Mas componha-se então um Símbolo
novo em lugar do de Nicéia, e confessemos, nós católicos ortodoxos,
a fé com as mesmas palavras que os arianos!
Toda a escola secular dos filósofos não entende por “hipósta-
sis” outra coisa que "usia”. Digam-me, pois, por favor, quem ousa
rá falar sacrilegamente em três substâncias? Uma só é a natúrezà
de Deus, a qual tem verdadeiro ser; porque o que subsiste e tem
ser por si, não o tem de outrò mas o ser é seu e próprio. As
demais coisas criadas não são, ainda que pareçam ser. Porque em
algum tempo não existiram; e o que em algum tempo não foi, ou
tra vez pode não ser. Somente Deus, que é eterno, isto é, sem
princípio, tem verdadeiro nome de essência. Portanto, falando a
Moisés na sarça, disse:. “Eu sou Aquele que sou”. E Moisés disse:
“Aquele que é me enviou”. Havia então anjos, céu, terra e máteS;
ora, por que se apropria Deus a si mesmo enfaticamente o nome
comum de essênda? Ê porque somente sua natureza é perfeita è
nas três Pessoas subsiste; uma só divindade, a qual tem verdadeiro
ser, e uma só natureza,, dê: medo que quem disser que há três
seres, isto é, três hipóstases' ou usias, com o pretexto de piedade
está afirmando três:, naturezas. Por que, então, nos separamos de
Ário com a parede (das. palavras), se estamos unidos a ele pelò
erro? Junte-se, pois, Ursino a Vossa Beatitude e Auxêncio a Am-
brósio! 7 Os. corações religiosos dos povos não devem beber tal sá-
crilégic! BasteMiQs dizer que há* uma subístânda e três pessoas sub
sistentes, perfeitas,, iguais e coeternas! Não se fale de três “hipós
tases”, e mantenha-se uma só. Ê de suspeitar-se quando em um
mesmo sentido diferem as palavras. Baste-nos a vontade de fé, como
expusemos. Se st Vossa Beatitude parece acertado que digamos “três
hipóstases ”,, juntamenter com - as: devidas interpretações, não o recusa
rei. Mas creia-me que: há’ peçonha escondida sob c mel e que o anjo
de Satanás se transfigurou em anjo de luz. Eles explicam o significa
do do termo “hipóstásis”; quando eu digo, porém, que creio o que
eles me declaram, jplgam-me herege. Pára que se aferram tão ansio-
A PAULINO, PRESBÍTERO
(P.L. 22, 542-543; 548-549)
(Trecho da carta LH I)
Sobre o estudo das Escrituras
« Ag 2,12.
* Dt 32,17.
6 SI 1.3.
7 Dn 12,3.
8 At 9,15.
9 Is 54.
10 Jo 1.1.
A- PAÜLINO, PRESBÍTERO 329
(pela qual elas têm seu ser). Tudo isso entendemos perfeitamente de
Cristo.
Isso não soube Platão e ignorou-o o eloqüente Demóstenes. 487
“Vou destruir, diz o Senhor, a sabedoria dos sábios e reprovar a
prudência dos prudentes” 11. A verdadeirá sabedoria destruirá a falsa.
A pregação da Cruz parece loucura: porém, com tudo isto, ensina
são Paulo a “sabedoria entre os perfeitos” u , digo “sabedoria não
deste século nem de seus príncipes, que são destruídos”, mas "sa
bedoria de Deus”, escondida em mistério, predestinada antes de to
dos os séculos 13. A sabedoria de Deus é Cristo, porque Cristo é vir
tude de Deus e sabedoria de D eu s14. Esta sabedoria está escondida
em mistério e ele, que estava escondido em mistério, foi predesti
nado e prefigurado na Lei e nos Profetas 15. Por isso os profetas se
chamam “os videntes”, pois viam aquele a quem os demais não
viam 16. Abraão viu seu dia e encheu-se de gozo ao vê-lo17. Ao pro
feta Ezequiel estavam abertos os céus, que permaneciam fechados
áõ povo pecador. O rei Davi diz: “Tirai, Senhor, o. véu de meus
olhos, e considerai as maravilhas de vossa Lei!” 18 Porque a Lei é
espiritual e assim tem necessidade de revelação, para ser entendida,
é para que, com rosto descoberto, contemplemos a glória de D eu s19.
No livro do Apocalipse mostra-se um livro selado com sete
selos. Se o dais a um homem letrado, para que o leia, responder-
-vos-á: “Não posso lê-lo, pois está selado” 20.
Quantos há, hoje em dia, que crêem saber as letras; mas têm
sélàdo o livro e não o podem abrir, se não o abre aquele que tem
a chave de Davi, “e abre e ninguém fecha, fecha e ninguém abre!”
Nos Atos dos Apóstolos212 o santo eunuco, ou melhor, varão
(porque com este nome o distingue a Escritura), foi interrogado
por Filipe, enquanto lia o profeta Isaías: “Porventura entendes <o
que lês?” E ele respondeu: “Como hei de entendê-lo se ninguém
me ensina?”
19 2Cor 3,18.
20 Ap 3,7.
21 At 8,27.
22 Horácio, Epist. II, 1,115: •'Scribimus indocti, doctíque poemata, passim”.
330 SÃO JERÔNIMO,
quer pessoas presumem entender a Escritura, esmiuçam-na e até a
ensinam antes de aprendê-la.
H á os que organizam círculos de mulherzinhas, alteiam a so
brancelha, soltam grandes palavras e tratam das Escrituras Sagra
das como filósofos. Outros — que vergonha! — aprendem de mu
lheres o que hão de ensinar a homens e, como se não bastasse,
explicam adiànte o qué eles não entendem.
Não quero falar de meus colegas que, se acaso vêm das letras
profanas ao estudo das santas Escrituras, compõem grandes discur
sos para gosto do povo, e qualquer coisinha que falam tem por Lei
de Deus. Não se dignam saber o que em verdade pensaram os pro
fetas ou os apóstolos, mas ainda a seu próprio sentido adaptam
à força testemunhos incongruentes. Como se fosse grande coisa, e
não maneira viciosíssima de ensinar, depravar as sentenças e capri
chosamente torcer a Escritura. Não temos, talvez, o espetáculo das
centenas de imitadores de Homero e Virgílio? Não poderíamos
dessa maneira chamar cristão a Virgílio (sem Cristo), porque es
creveu aqueles versos que dizem: “Já volve a Virgem, já volvem
os reines de Saturno: E uma nova Prole é enviada do alto céu?” 23
E o outro, onde diz o pai ao filho: “Tu, filho, és minha força, so
mente tu és grande potência”, ainda com palavras que recordam a
nosso Salvador na Cruz: “Tais coisas dizia, relembrando, e estava
fixo e pregado?” 24
Mas estas são coisas de criança e semelhantes áo jogo dos
charlatães de feira: ensinar o que não sabem ou, para dizer mais
claramente, nem sequer sabem que não sabem.
23 Virg.: IV, 6: “Iam redit et Virgo, redeunt Satumia regna, iam nova Pro
génies coelo demittitur alto”.
24 Virg., I, 664: “Talia praestabat memorans, fixusque manebat”.
25 lCor 14,19.
A PAUONO, PRESBÍTERO 331
26 2Cor 8,18.
27 Cf. Gc., D e in v e n t. I; 8.
SANTO AGOSTINHO
(354-430)
DAS “CONFISSÕES”
(Liv. V III, cap. 12: PX . 32, 761-764)
Sua conversão
492 Quando, meditando profundamente, arranquei do mais íntimo
toda a minha miséria, e a juntei perante meu coração, levantou-se
imensa tempestade numa torrente de lágrimas.
DAS “CONFISSÕES” 333
Sermão:
“N A V IG ÍL IA D A PÁSCO A”
(P.L. 38, 1087s)
4 Ef 3,20.
1 2Cor 11,27.
2 ljo 2,15.
“na vigília da páscoa” 335
3 Ef 6,12.
4 2Cor 5,19.
5 SI 130,12.
336 SANTO AGOSTINHO
Sermão:
“SOBRE A RESSURREIÇÃO DE CRISTO,
SEGUNDO SAO MARCOS”
(PX. 38, 1104-1107)
1 SI 87.
“sobre a ressurreição de cristo ” 337
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que
^•desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside
ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém,
sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: “Por que estás
v a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas
.descer, na qual nada encontrarás!”
Que responderias a tal conselheiro? “Procuro ouro”. Ele te diria:
“Não nego que exista 9 que desejas, mas nãó existe onde o pro
curas”.
" Assim também, quando dizes: “Quero ser feliz”. Boa coisa 493
queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo,
igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua
; niorte: vindo de outros páramos, que achou aqui senão o que
existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo
• 'jdo. que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve
:& fel. Eis o que encontrou em tua morada.
. ^Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à
v mesa dos anjos, onde d e mesmo é o pão. Descendo até cá, e
# tantos males recebendo de tua cda, não só não rejeitou a tua
: piesa, mas prometeu-te a sua.
v È que nos diz ele?
, “Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não
recusei os males da vossa”.
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, dá-lo-á. Pro
meteu-nos sua. vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofere
ceu-nos a sua morte. Como se dissesse: “À minha mesa vos con-
yido. Nela ninguém morre, n d a está a vida verdadeiramente feliz,
nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia pára*
onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai
e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade co
migo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não
quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a
minha m orte”.
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, mor
ramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo
pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quan
do chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a
viver com aquele que por nós morreu.
340 SANTO AGOSTINHO
Do livro
A DOUTRINA CRISTA
(1. 2, cc. 21, 23: P.L. 34, 3 ls)
Astrologia e superstição
i Sb 13,9.
“SOBRE A CORREÇÃO E A GRAÇA* 341
Caríssimo irmão Valentino e vós que com ele servis a Deus! 502
Depois de ter lido a carta que vossa caridade me enviou por
meio do irmão Floro e dos que vieram com ele, dei graças a Deus
por ter conhecimento de vossa paz no Senhor, de vossa concórdia
342 SANTO AGOSTINHO
na verdade, de vosso fervor na caridade. O inimigo tentou subverter
alguns dentre vós, mas Deus misericordioso, em sua admirável bòm,
dade, fez reverter a tentação em progresso para seus servos, de
sorte que o inimigo não conseguiu prejudicar quaisquer dentre
vós, dando ainda ocasião para alguns se instruírem mais per
feitamente. Assim, não tenho necessidade de volver às questões su-
ficientemenfe debatidas no livro que vos enderecei e cuja acolhida»
por parte de vós, se atesta na resposta enviada. Não penseis, porém;
que uma só leitura baste para que o conheçais. Se quiserdes dele
tirar proveito, procurai relê-lo, a fim de conhecerdes exatamente á
natureza das dificuldades consideradas e para ás quais se nos propõe
uma autoridade não já humana, mas divina, da qual não nos de
vemos apartar, se quisermos chegar aonde almejamos.
O próprio Senhor não apenas nos mostra que mal devamos
evitar e que bem devamos praticar — é isso o que pode a letra da
Lei — mas também nos ajuda a evitar o mal e fazer o bem —
algo de que ninguém é capaz sem o espírito da graça: faltando esta;
a lei só serve para fazer culpados e levá-los à perdição. Por isto
diz o Apóstolo: “A letra mata, o espírito vivifica” 1.
Quem, pois, usar legitimamente a lei, aprende nela o mal e o bem;
e não se fiando em suas próprias forças refugia-se na graça, a
fim de poder evitar o mal e praticar o bem. E quando é que
o homem recorre à graça senão quando seus passos são dirigidos
pelo Senhor, de modo que deseje os caminhos do Senhor? Donde
segue que já o desejar o auxílio da graça é começo da graça»
conforme diz o salmista: “eu disse: comecei agora e esta mudança
me vem da destra do Altíssimo” 2. É preciso confessar, pois, que
nós temos um livre arbítrio para fazer o mal e o. bem; mas ao
fazermos o mal, somos livres quanto à justiça e servos do pecado;
ao passo que para fazer o bem não somos livres senão quando li
bertados por Aquele que disse: “se o Filho vos libertar, então se
reis verdadeiramente livres” \ E não de modo tal que, uma vez liber
tados do domínio do pecado, já não necessitemos dq auxílio do Liber
tador, mas sim ouvindo dele a palavra: “Sem mim nada podeis fa
zer” 4, será preciso que digamos ainda: “ Sede meu socorro, não me
abandoneis” 5.
503 Esta fé, sem dúvida a verdadeira, a fé dos profetas e dos
apóstolos, a fé católica, alegro-me de a ter encontrado também em
nosso irmão Floro; e assim, são antes os que não o compreenderam
que devem ser corrigidos; mas penso que com o auxílio de Deus eles
já tudo compreenderam.
'"SOBRE a correção e a graça” 343
: Sim, a graça de Deus, dada por Jesus Cristo nosso Senhor, deve
ser bem compreendida; só por ela os homens são libertos do mal,
e sem ela não fazem absolutamente qualquer bem, seja por pensa
mento, seja pela vontade ou pelo amor, seja pela ação. Ela não
é somente uma indicação que lhes dá a conhecer o que convém,
mas um auxílio que lhes dá realizar com o coração o que conhecem.
Era esta infusão de uma boa vontade e obra que o Apóstolo pe
dia para aqueles aos quais dizia: *rogamos a Deus que não façais
nada de mal, não a fim de parecermos provados nós mesmos, mas
para que realizeis o que é bom ” 6.
Quem poderá ouvir isso sem despertar para o reconhecimento de
que ao Senhor nosso Deus devemos tanto o evitar o mal como o
fazer o bem? Pois o Apóstolo não diz: “exortamos, ensinamos,
advertimos, repreendemos”, mas: “rogamos a Deus que não façais
nada de mal, e sim realizeis o que é bom ”.
E todavia ele lhes falava fazendo também tudo isso: exortava,
ensinava, advertia, repreendia, mesmo sabendo que tudo isso, feito
externamente, na ação de plantar e regar, de nada valeria, se não rece
asse- secretamente o incremento daquele que tivesse ouvido sua
prèce. Como disse o Doutor das nações: “Não é quem planta
pu quem rega que vale, pois Deus dá o crescimento” 7.
Não se iludam, porém, os que dizem: “Por que se nos prega 504
e se nos ordena de evitar o mal e o praticar o bem, se não somos nós
que o fazemos, se é Deus que nos dá o querer e o fazer?” Com
preendam antes, se são filhos de Deus, que o Espírito de Deus
os move para que façam o que devem, e quando o fizerem dêem
graças àquele por quem foram movidos. São, com efeito, movidos
para agir, não para nada fazer; e se lhes prega o que devem fazer
para que, ao procederem como convém, isto é, com o amor ~e<
deleite da justiça, se alegrem de ter recebido do Senhor esse prazer
de verem a terra frutificar. E quando não fizerem o bem, seja não
p fazendo de modo algum, seja não o fazendo por amor, rezem para
receber o que ainda não receberam. . . Pois que terão sem rece
berem? Ou que têm, que não receberam?
“Mas nesse caso”, dizem eles, “que nossos superiores se conten- 505
tem de nos ordenar o que devemos fazer e de rezar para que o faça
mos, mas não nos repreendam nem nos interpelem se não o fizermos”.
Orà, tudo isso eles devem fazer, pois os doutores da Igreja, que
foram os apóstolos, tudo isso faziam: prescreviam o que devia ser
feito, repreendiam se não era feito, e oravam para que fosse feito.
Ordena o Apóstolo, quando diz: “ Que todas as vossas obras sejam
realizadas no am or” 8. Repreende quando diz: “Já é de toda maneira
6 2Cor 13,7.
7 ICor 3,7.
8 ICor 16,14.
344 SANTO AGOSTINHO
uma falta vossa, a de terdes processos uns contra os outros. Por
que não sofreis vós, antes, uma injustiça? Por que não tolerais*
antes, o dano? Mas vós mesmos fazeis a injustiça, e vós mesmos
despojais os outros — e isto contra os próprios irmãos! Não sabeis,
que os injustos não possuirão o reino de Deus? ” 9 Escutemo-lo
enfim quando ora: “Que o Senhor vos faça crescer e abundar-ma
caridade uils para com os outros ” 10, Ele ordena que se tenha á
caridade, corrige quando não se tem a caridade, ora para que traria
borde a caridade. O homem, aprende no preceito o que deves ter;
aprende na correção que és culpado de não o ter; aprende pela oração
que deves receber o que desejas ter.
6 lCor.13,12.
7 Eclo 18,6.
8 l j o 4,8.16.
346 SANTO AGOSTINHOS^
isso vejamos mais familiar e facilmente, na fraqueza de n o s s o ®
telecto. ■■
Eis-me, por exemplo, eis-me que busco. Quando amo algo, há;
então três ccisas: eu, aquilo que amo e o amor. Pois não amo
o amor, se não me amo, que amo; não há amor onde nada é amad&
Eis, portanto, três coisas: o que ama, o amado e o amor.
Mas quê dizer quando só me amo a mim mesmo? Não serão
duas então as realidades: o que amo, e o amor? Pois quando alguéôi
se ama a si mesmo, quem ama e o que ama Se identificam, como se
identificam também o amar e o ser amado. . . Quando se diz quç
alguém se ama e é amado por si mesmo, repete-se a mesma coisa
duas vezes. Não são, pcis, duas realidades: amar e ser amado, como
tampouco são duas coisas diferentes o amante e o amado. O amor,
porém, e o objeto amado permanecem ainda aqui duas realidades di&
tintas. Porque se alguém se ama a si mesmo não é o amor, a não ser
que seja amado o amor. Uma coisa é amar-se a si mesmo e outra amar
seu amor. Não é amado o amor se não quando algo se ama: quando
nada se ama nãc há amor. Por conseguinte, quando alguém se ama a si
mesmo, há duas realidades nela: o amor e o objeto amado. E ; então
o que ama e o que é amado são uma coisa só. Assim, não. parke
correto dizer-se que onde há amor há três coisas. :
Prescindamos, nessa consideração, dos múltiplos elementos cons
titutivos do homem, e a fim de esclarecer enquanto possível estas
matérias consideremos apenas a mente. . *
509 A mente, ao amar-se a si mesma, evidencia duas coisas: a
própria mente e o amor. Ora, que é amar a si mesma, senão um
ardente desejo de gozar da presença do eu? E quando quer ser
como é, a vontade é igual à mente, e o amor igual ao amante. E sç
o amor é substância, certamente não é corpor mas; espírito; e á
mente também é espírito, não corpo. Contudo; a mente e o amor
são um espírito, não dois espíritos; uma essência, não duas essên-,
cias; e no entanto, o amante e o amor, ou ^ dizendo de outro
modo — o amor e o que se ama são duas realidades que formam
certa unidade. E ambas dizem uma relação mútua: o amante diz
relação ao amor e o amor ao amante. O que ama, ama por amor,
e o amor pertence a alguém que ama. Ora, a mente e o espírito
são termos essenciais, não relativos. Nem pelo fato de serem mente
e espírito do homem, existem como mente e espírito. Abstraí do
homem o que o constitui, sua ligação ao corpo; abstraí o corpo,
permanece a mente e o espírito. Abstraí pcrém o amante, já não
existe o amor; abstraí o amor, evola-se o amante. Portanto, en
quanto dizem relação mútua, são duas realidades; consideradas em
si, cada uma é espírito e as duas são o mesmo e único espírito;
cada uma é mente e as duas são uma única mente.
510 Mas então, onde vamos encontrar uma trindade? Concentremos
de novo nossa ação e imploremos o eterno Esplendor para que ilumi-
íSpBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE 347
l(e:,nossas trevas e vejamos em nós, na medida que nos for concedida,
a imagem de Deus.
%,y> A mente não pede amar-se se não se conhece, pois como ha
veria de amar o que ignora? É insensatez pensar que ela se ame
>a partir de um conhecimento genérico ou específico, pelo qual se
sàbe semelhante às outras mentes. Como pode a mente conhecer
íoutra se se ignora a si? Não se diga que ela se ignora e conhece
$s demais, como o olho corpóreo vê os outros mas não pode ver-se
•4 /si. Vemos com os olhos da carne os corpos, mas os raios que
emitem e tocam cs objetos que nós contemplamos não os podemos
fazer refletir e retornar-se sobre eles, a não ser que se olhe em
espelho. Essas explicações são objeto de sutis e obscuras discussões,
até que se demonstre se as coisas são assim ou não. Mas, de qual
quer modo, essa força que permite a nossos olhos verem, seja ela
irradiação ou outra coisa — não é com os olhos que podemos vê-la;
ç com o espírito que buscamos e, se possível, que compreendemos a
sjia explicação. Assim, se a mente coleta, pelos sentidos corpóreos
O! conhecimento que tem das; realidades corpóreas, o conhecimento
4'ue ela tem das realidades incorpóreas colhe por si mesma. Logo,
ela- se conhece por si mesma, sendo incorpórea. Porque se não
sê conhece não se ama.
Ora, assim como são. duas coisas, a mente e seu amor, quando 511
ela se ama, também são duas coisas a mente e seu conhecimento,
quando se conhece. Portanto, a própria mente, seu amor e seu co
nhecimento são três coisas, mas as três coisas são uma só.
E quando são. perfeitas, são também iguais. Pois se a mente
se ama menos do que é, como, por exemplo, se limita o amor de
si r ao grau de amor que merece seu corpo, então peca, sendo mais
que o corpo, e seu amor não é perfeito. Se aò contrário o amor
que ela tem por si ultrapassa a medida e chega a amar-se com
oi amor que se deve a Deus, então peca gravemente, pois ela é
incomparavelmente menor que Deus, e seu amor não é perfeito.
Mais perverso e iníquo todavia é seu pecado se ela ama seu corpo
com o amor que deve a Deus.
Igualmente não é perfeita se seu conhecimento é menor que
aquilo que é conhecido, e que é plenamente conhedvel. Mas se é maior,
então é porque a natureza que conhece é superior à conhecida,
assim como é maior o conhecimento do corpo que o próprio corpo
conhecido. O conhecimento, na verdade, é vida na razão de quem
conhece, ao passo que o corpo não é vida. E a vida, qualquer que
seja, é sempre maior que o corpo, não em massa mas em força.
Se a mente, porém, se conhece a si mesma, não é superada
por seu conhecimento, pois é ela que conhece e ela que é conhecida.
E se se conhece toda, sem nada mais, seu conhecimento se lhe torna
igual, não sendo de outra natureza que o tira, ao se conhecer. Quan
do se experimenta toda, sem nada mais, não é inferior nem superior
■ 'M
348 SANTO AGOSTINH$|
a seu conhecimento. Logo, foi com razão que dissemos serem essaS}
três coisas iguais quando são perfeitas. n
512 A mesma reflexão nos leva ainda a pensar, na medida do põs-.;
sível, que essas duas coisas coexistem na alma e aí se desenVpjM
vem numa espécie de involução mútua, de sorte a se deixarem per/;
ceber e enumerar a título de substância, ou por assim dizer, 'de
essência; elas não estão aí como num substrato, à maneira como-':’á
cor, a figura ou qualquer outra qualidade ou quantidade estão num"
corpo, la is propriedades não excedem o substrato no qual estão.
Tal cor, tal figura, são as de tal corpo e não podem ser as de
outro. Já a alma, pelo amor com que se ama, pode amar algó
diverso de si. Ela igualmente não se conhece apenas a si, mas; a
muitas outras coisas. Portanto, o amor e o conhecimento não são
inerentes à mente como a um substrato, mas aí estão, como a pró
pria mente, a título de substância. Mesmo quando os dizemos dè
um modo relativo, relacionando-os reciprocamente, cada um não
deixa de permanecer em sua própria substância. Não é como a cot
e o objeto colorido, que são relativos um ao outro, no sentido
de que a cor está no objeto colorido sem ter em si sua própíia
substância: o objeto colorido é substância, a cor está numa substância;
Seria antes como no caso de dois amigos, que são também dois
homens, portanto, duas substâncias; quando os designamos com o
título de homens, isto não implica nenhuma relação, ao contrário
de quando os designamos como amigos.
513 Assim, a mente que ama e conhece é substância, seu conheci
mento é substância, seu amor é substância; mas a mente que ama
e seu amor, a mente que conhece e seu conhecimento, são termos
relativos, como o são entre si pessoas amigas; ao contrário, a mente
apenas ou o espírito não implicam por si relações, como tampouco
pessoas amigas, enquanto pessoas humanas. Resta, porém, que ami
gos podem separar-se; já a mente que ama e seu amor, a mente
que conhece e seu conhecimento, não podem separar-se. É verdade
que também os amigos, mesmo separados corporalmente, são mo
ralmente inseparáveis, enquanto amigos, mas pode acontecer que
um venha a odiar o outro, deixe de ser seu amigo, sem que este
saiba, continuando a amá-lo. Porém se cessa o amor com o qual a
mente se ama, ela então cessa de amar; se cessa o conhecimento
ccm o qual se conhece, ela então cessa de se conhecer. Como não
há cabeça sem corpo que a sustente; a cabeça e o corpo sendo
termos relativos, e ao mesmo tempo substâncias, pois ambos rea
lidades físicas; mas não havendo cabeça não haverá mais corpo
para sustentá-la. M as. . . poder-se-ia cortar a cabeça e separá-la do
corpo, o que seria impossível nas coisas da alma.
514 Há corpos absolutamente indivisíveis; entretanto, se não cons
tassem de partes não seriam corpos. A parte é, pois, um termo
relativo ao todo, toda parte é parte de um todo e o todo o é por
Ip fô Ê 1A SANTÍSSIMA TRINDADE 349
$UâS partes. Mas parte e todo, sé são corpos, não se dizem somente
ejç um modo relativo, pois existem substancialmente. Não poderia
Ser então que a mente fosse como o todo, e o amor com que se
;Jtma, ou o conhecimento com que se conhece, fossem como suas par
tes, que em conjunto comporiam o todo? Não poderiam ser três
partes iguais, das quais o todo seria a soma?
úb Ora, nenhuma parte abrange o todo do qual é parte; e no en
tanto a mente se conhece toda inteira, isto é, perfeitamente, seu
conhecimento penetra todo seu ser, e quando se ama perfeitamente 515
seu amor penetra todo seu ser.
y > Não poderia ser então como com á água, o vinho e o mel,
que compõem uma única bebida? Cada um dos líquidos se acha
vertido no conjunto, permanecendo três coisas (pois não há uma
porção da bebida que não as contenha; os líquidos não estão ali
justapostos como na mistura de água e óleo, e sim intimamente
■fusionados; todos são substâncias e todo o líquido não é, de certo
modo, senão uma substância feita de três). Uma conclusão assim
í$q vale sobre a coexistência da mente, de seu conhecimento e de
seu! amor?
f ,i Não, pois a água, o vinho e o mel não são de uma única subs
tância, embora sua mistura se torne a única substância da bebida.
Ao contrário, as três realidades da alma, ccmo não pertenceriam à
mesma substância, se é a alma que se ama, a alma que se conhece
e se a união das três realidades é tal que, amada ou conhecida, a
alma não o é por alguma dessas duas outras realidades? Todas as
três são, pois, necessariamente de uma única e mesma essência, e se
aí estivessem como fundidas numa mistura, não lograriam ser três
ou estar em relação mútua. Se de um só e mesmo ouro se fazem
três anéis semelhantes e encadeados entre si, eles estarão em relação
mútua pelo fato de serem semelhantes (todo semelhante é seme*
lhante a algo), há uma tríade de anéis num único ouro, mas se os
fundimos numa só massa, desaparece totalmente a tríade; e falaremos
não só de um ouro, como quando havia três anéis, mas de um
ouro que já não está em três realidades. Mas naquelas três realidades
da mente, quando a mente se conhece e se ama, permanece uma
trindade: a mente, o amor, o conhecimento, e não há aí mistura
nem confusão. Cada uma está em si e apesar disso está cada uma
toda inteira nas outras todas inteiras, cada uma nas duas outras,
as duas outras em cada uma. Portanto, todas em todas.
A mente está em si mesma, pois quando se fala dela, se fala 516
dela em si; mas considerada quando conhece ou é conhecida ou é
conhecível, passa a ser relacionada a seu conhecimento; ou quando
amando, amada ou amável, passa a ser referida em relação ao amor
com o qual se ama. E o conhecimento, embora se refira à mente
que conhece ou é conhecida, contudo também é dito conhecido ou
conhecente em relação a si mesmo: o conhecimento, com efeito,
350 SANTO AGOSTINHO;
com o qual a alma se conhece, não é desconhecido de si mesmp;
E o amor, embora se refira à alma que ama, é também amor em ter
lação a si mesmo, de modo que está também em si, pois também o
amor é amado e não pode ser amado senão pelo amor, isto é, por si
mesmo. Assim, cada uma dessas realidades está em si mesma. \
São porém presentes umas às cutras. A mente que ama está
em seu amor, o amor no conhecimento da mente que ama, e o co
nhecimento na mente que conhece. Cada uma está nas outras duas.
A mente que se conhece e se ama está no seu conhecimento e no
seu amor; o amor da mente que se ama e se conhece está na
mente e em seu conhecimento; e o conhecimento da mente que se
conhece e se ama está na mente e em seu amor, porque ela se amá
enquanto conhecente, e se conhece enquanto amante. For conseguin
te, as duas outras estão também em cada uma; a mente que se conhece
e se ama está com seu conhecimento no amor e com seu amor nò
conhecimento; o amor e o conhecimento estão simultaneamente ná
mente que conhece e se ama.
Vimos acima como cada uma está toda inteira nas outras (ten
das inteiras) quando a mente se ama toda, se conhece toda, conhece
seu amor inteiro, ama seu conhecimento inteiro. Isto ocorre quando
essas três realidades são perfeitas em relação a si mesmas. Assim, essas
três realidades são estranhamente inseparáveis umas das outras; e to
davia cada uma delas, tomada à parte, é substância, e todas em con
junto são uma só substância ou uma só essência, apesar de, toma
das relativamente, se deverem dizer opostas umas às cutras.
520 Senhor Deus nosso, cremos em ti, Pai, Filho e Espírito Santo,
A Verdade não teria dito: “ide, batizai .a todos os povos no nor
me do Pai e do Filho e do Espírito Santo” V ;se não fosses T rin
dade. Nem nos ordenarias, Senhor Deus, que fôssemos batizados; no
nome de alguém que não fosse o Senhor Deus. Nem. seria dito
com voz divina: “ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um uniço
D eus” 123, se não fosses uma Trindade tal que fosses também um
único Senhor Deus. E se tu, Deus Pai, fosses q mesmo que o Filho,
teu Verbo, Jesus Cristo, o mesmo Dom que é o Espírito Santo,
não leríamos nas Escrituras da verdade: “enviou Deus seu Filho” j;
nem tu, ó Unigénito, dirias do Espírito Santo: “o Espírito que,; ©
Pai enviará em meu nome” 4, e “Aquele que eu vos enviarei da
parte do P ai” 5. i - ví
Dirigindo a esta regra de fé minha intenção, enquanto pude,
enquanto me fizeste poder, prccurei-te, desejei ver pelq intelecto aqui
lo em que creio, e muito discorri e muito trabalhei. ..
Senhor Deus meu, única esperança minha, ouve-me, não acon
teça que, fatigado, já não te procure, mas sim procure eu sempre
ardentemente a tua face. Tu dás as forças de procurar, tu que me
fizeste achar-te, e mais, me deste a esperança de achar-te. Diante de
ti estão minha firmeza e minha fraqueza: conserva aquela, cura esta.
Diante de ti estão minha ciência e minha ignorância: onde me abriste,
recebe-me ao ingressar; onde me fechaste, abre-me ao bater. Lembre-
-me eu de ti, conheça-te a ti, ame-te a ti. Faze-me crescer e reforma*
-me por inteiro.
521 Sei que está escrito: “em muitas palavras não foges do pe
cado” 6. Mas, oxalá, só pregando teu verbo e te louvando falasse eu!
Não só fugiria do pecado, mas conquistaria um bom merecimento,
ainda que muito falando! Pois também não terá preceituado aquele
homem, a quem amaste, um pecado a seu filho e irmão na fé,
quando lhe escreveu, dizendo: “prega a palavra,; insiste oportuna e
1 M t 2 8 ,2 0 .
2 D t 6 ,4 .
3 To 3,17; G1 4,4; etc.
4 Jo 14,26.
5 Jo 15,26.
6 P r 1 0 ,1 9 .
| av“CIDADE DE DEUS* 353
ihoportunamente *. Acaso se poderia dizer não ser muito falar, se se
trata de pronunciar tua palavra, não apenas oportuna, mas até ino
portunamente? Mas na verdade jamais seria demasiado aquilo que
séria necessário.
o Livrai-me, ó Deus, da multidão de palavras que padeço em
meu íntimo, em minha alma, miserável em tua presença, mas refu
giada em tua misericórdia. Quando calam minhas palavras, não ca
íam meus pensamentos. E se só pensasse eu no que te agrada, não
te rogaria que me livrasses desta multidão de palavras. Mas meus
pensamentos são muitos, bem os conheces, pensamentos humanos e
vários. Dá-me não consentir neles e se alguma vez me deleitam,
dá-me rechaçá-los e não demorar-me em seus afagos. Jamais exer
çam sobre mim seu poderio ou pesem em minhas ações. Com tua
proteção seja meu julgamento seguro e minha consciência esteja ao
abrigo de seu influxo.
"o Falando o Sábio sobre ti, no livro conhecido como Eclesiástico,
disse: “muitas coisas proferimos sem jamais acabar; seja a conclusão
de nosso discurso: Ele é tudo” 7.
Quando, pcis, chegarmos a ti, cessarão muitas coisas que dis
semos, sem entender, e tu sozinho permanecerás tudo em todos, e
então cantaremos sem fim uma só coisa, louvando-te na unidade e
tornados também unidos em ti.
Senhor Deus único, Deus Trindade, o que disse nestes livros, de
teu, reconheçam-no os teus; o que neles disse de meu, perdoa-me
Senhor, e perdoem-me os teus. Amém.
D A “C IDADE DE D E U S”
(liv. X, cc. 3, 4, 5: PX . 41, 280-283)
7 Eclo 43,29.
1 Cf. Rm 1,21.
2 M t 22,37-40.
3 Ex 22,20.
V DA “ cidade de deus ” 355
; S ó a D e u s s e o f e re c e o s a c rifíc io
4 SI 15,2.
5 SI 50,18-19.
de se pensar que foram desejados pelo mesmo Deus ou aceitáveis,;'
em nós, ao invés daquilo que neles se sinaliza.
Por isto se diz em outra passagem de um salmo: “Se tivesse fo-(
me, eu não te diria, pois meu é o orbe da terra com tudo o que l
tem; acaso comerei carne de tcuros ou beberei sangue de cabri?
tos ? ” 6 Por outras palavras: ainda que me fossem necessárias estas.,
coisas não as pediria a ti pois estão em meu poder. Em seguida, acres-
centando o que elas significavam, diz: “imola a Deus um sacrifício, de
louvor, cumpre teus votos para com o Altíssimo e invoca-me no dia
do perigo: eu te livrarei e tu me glorificarás” 7.
Também se lê em outro profeta: “Cem que me apresentarei aq
Senhor, inclinando-me ao Deus do céu? Apresentar-me-ei com holo
caustos, com bezerros criados? Aceitará o Senhor um milhar de car?
neiros ou dez mil medidas de óleo? sacrificar-lhe-ei pela minha culpà
o meu primogênito, o fruto de minhas entranhas por meus próprios
pecados? Já te foi dito, ó homem, o que convém, o que o Senhor
reclama de ti: que pratiques a justiça, que ames a bondade, e que an
des com humildade diante do teu D eus” 8. Nestas palavras do prof
feta estão bem distintas e separadas duas coisas: Deus não exige aque
les sacrifícios por si mesmos, exige os sacrifícios que eles expressam^
526 Igualmente na carta aos hebreus está escrito: “Não negligencieis
a benefíciência e a liberalidade, porque de tais sacrifícios é que Deus
se agrada” 9. Daí se tem que naquele texto: “quero a misericórdiá
antes que o sacrifício” 10*, deve-se entender a preferência de Deus, de
um sacrifício sobre outro — pois o que todos chamam sacrifício é ò
sinal do verdadeiro sacrifício. A misericórdia é um verdadeiro sa
crifício; por isto se disse o que citamos há pouco: “dé tais sacrifícios
é que Deus sé agrada”. 1V
Todas as prescrições divinas, portanto, e tão variadas, que sé
leem a respeito dos sacrifícios no ministério do tabernáculo e do tem
plo, tendem a significar o amor de Deus e do próximo: “destes dois
mandamentos dependem a Lei e os profetas” 11.
O v e rd a d e iro e p e r f e it o sa c rifíc io
527 Assim, pois, o verdadeiro sacrifício é toda obra feita para unir
mos a Deus em santa aliança, isto é, relativa à meta daquele bem
que p o d e. fazer-nos yerdadeiramente felizes12. Então, mesmo a mi-
6 SI 49,12-13.
7 Ibid., 14-15.
« Mq 6,6-8.
9 H b 13,16.
10 Os 6,6.
n M t 22,40.
12 “Proinde verum sacrifidum est omne opus, quod agitur, u t sancta sodetate
inhaereamus Dco, relatüm sdiicet ad ilium finem boni, quo veraciter beati esse possi-
mus".
|pA" "CIDADE DE DEUS" 357
I
: pór causa de Deus, não é sacrifício,
13 Eclo 30,24.
14 Rm 12,1.
15 Rm 12,2.
16 SI 72,28.
358 SANTO AGOSTINHO^'
o agradável, já que o sacrifício total somos nós mesmos, acrescenta?
“Em virtude do dom que recebi, digo a cada um de vós, que naq
se tenha por mais do que deve ter-se, e sim que se considere coití;
moderação, segundo a medida de fé que Deus distribuiu a cada qüàlf
Porque no corpo, sendo um, há muitos membros e nem todos têrij
a mesma função; assim também nós, embora muitos, formamos^
unidos a'C risto, um só corpo, e em relação aos demais cada quáív
é membro, mas com dons diferentes, segundo a graça que Deus nòá
concedeu” 17. É este o sacrifício dos cristãos: “unidos a Cristo, f o r
mamos um sÓ corpo”. Este é o sacramento do altar, tão conhecido
dos fiéis, que a Igreja celebra assiduamente, e no qual se manifeSta
a si como oferecida, naquilo mesmo que oferece.
“A CIDADE D E D E U S” , ,
(1. XIV, cap. 28: PX . 41, 436) d.
A s d u a s c id a d e s ;. vás,
17 Rm 12,3-6.
1 SI 3,4.
2 SI 17,2.
3 Rm 1,21.
4 Ibid. 22.
“a cidade de deus ” 359
“A CIDADE DE DEUS”
(Iiv. X IX , 13: PX . 41, 640)
A paz: “ o rd in a ta c o n c ó r d ia "
Trecho -da *•
CARTA ti* 189,
dirigida a Bonifácio, ura militar
(PX . 33, 856)
A g u e rra e a [p a z
5 íbid. 25.
6 lCor 15,26.
360 SANTO AGOSTINH^
>az. Sê, pois, pacífico, mesmo na guerra, e vela por que a tua vitótiàf
Íeve os que derrotas ao bem da paz.
“Bem-aventurados os pacíficos”, diz o Senhor, “porque serãò
M
i M t 5,9.
4S0MENTÁKIO ao evangelho DE SÃO JOÃO 361
Mas não é a única coisa que devemos considerar nos milagres
de Cristo. Perguntemos aos próprios milagres o que eles nos dizem
de Cristo: se soubermos compreendê-los, veremos que eles têm a sua
linguagem.
./'■ Cristo é o Verbo de Deus, e todo ato realizado pelo Verbo é para
nós uma palavra.
Já notamos, pela narração feita no evangelho, a grandeza deste
milagre, a multiplicação dos pães. Investiguemos agora a sua pro
fundeza. Não nos deleitemos apenas com a aparência exterior do
fato, perscrutemos seu segredo, pois o fato externo tem alguma
coisa de íntimo.
- Vemos, contemplamos, alguma coisa de grande, de sublime, e de
inteiramente divino, pois só Deus o pode realizar, e então, pela
consideração da obra, somos levados a louvar o autor. Se víssemos,
ém qualquer parte, uma carta muito bem escrita, não nos bastaria elo
giar o copista que desenhou as letras com tanta beleza e perfeição,
mas deveríamos ler o que elas exprimem. Da mesma forma, quem
observa o fato, agrada-se com sua beleza, e admira seu autor; mas
quem compreende o sentido faz por assim dizer a sua leitura. Uma
coisa é ver uma pintura, contentar-se com ver e louvar esse trabalho.
Já o mesmo não se dá ccm uma carta, pois somos convidados a ler
ò que ela diz. Quando vês uma carta e não a sabes ler, perguntas:
“que está escrito aqui?” Já vês algo, e todavia ainda perguntas.
E aquele a quem pedes o entendimento do que vês te mostrará algo
toais. Ele tem um poder de visão, tu tens outro. Será que não vês
cómõ ele os caracteres? E, no entanto, não conheces como ele os
siíiâis. Vês e admiras; ele vê, admira e com preende.. .
9 lTm 1,5.
10 M t 22,40.
11 Jo 15,17.
12 G1 5,22.
364 SANTO AGOSTINIS
A PREDESTINAÇÃO DO S SANTOS
(cc. 10 e 15: P.L. 44, 974s. 981s)
1 Ef 2,9s.
2 Is 45 (seg. os LXX).
3 Rm 1,28.
4 G n 17,4s.
5 Rm 4,Í6.
IpiÉDÊSTINAÇÃO DOS SANTOS 365
:{<m . . -
V- J e s u s C r i s t o , e x e m p la r s u p r e m o d a p re d e s tin a ç ã o
6 Rm 4,21.
7 A palavra "homem” significa aqui, conforme se vê pelo contexto, o mesmo
que "natureza humana”, embora não no sentido genérico desta expressão.
8 Rm 9,20.
366 SANTO AGOSTtt
imprudência: “por que ouço isto: ó hcmem, quem és tu?-. poisjÊ
sou o que estou escutando, isto é, homem — como o é aquderttqj
quem estou falando — por que não hei de ser o mesmo que ;elçi"
Pela graça de Deus ele é tãc grande e tão perfeito! E por que éc!
diferente a graça, se a natureza é igual? Certamente, não existe
Deus acepção de pessoas9: quem seria o louco, já nem digo o cristã^,
que o péhsasse?
i Fique manifesta, portanto, para nós, naquele que é nossa cabè||
ça, a própria fonte da graça que se difunde por todos os seus utiãjjp
brcs, conforme a medida de cada um. Tal é a graça, pela qual se.cftó
cristão um homem desde o momento em que principia a crer; e,;$l
mesma pela qual o homem unido ao Verbo, desde o primeiro rncí-t
mento seu, foi feito Jesus Cristo. Fique manifesto que essa grâça|
é do mesmo Espírito Santo, por obra de quem Cristo nasceu e por;;
obra de quem cada homem renasce; do mesmo Espírito Santo, por!
quem se verificou a isenção de pecado naquele homem e por qué%;
se verifica em nós a remissão dos pecados.
Deus, sem dúvida, teve a presciência de que realizaria tais coisas^!
É esta a predestinação dos santos, que se manifesta de modo .maM
eminente no Santo dos santos; quem poderia negá-lo, dentre os que en?§
tendem retamente os ensinamentos da verdade? Pois sabemos qj$!
também o Senhor da glória foi predestinado, enquanto homem tor-J
nado Filho de Deus. Prcclama-o o Doutor das Gentes no começo ide?
suas epístolas: . “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para
apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus, que Ele de antemão]
havia prometido por meio dos profetas, nas santas Escrituras, acerçàS
de seu Filho, o que nasceu da estirpe de Davi segundo a carne e fo i
constituído Filho de Deus, poderoso segundo o Espírito de santfc
dade desde sua ressurreição entre os m ortos” 10. Jesus foi, portanto)
predestinado: aquele que segundo a carne haveria de ser filho,.de
Davi seria também Filho de Deus poderoso, segundo o Espírito dá
santificação — pois nasceu do Espírito Santo e da Virgem. ( /
A ajuda reciproca
1 SI 125,5.
"•Mi'
<ÍQ&i
Natural da Gália, exercera importantes cargos civis até que foi batizado, era
391. Vendeu então seus bens, distribuindo-os aos pobres, sendo seguido, na com
versão, por sua esposa Terásia, com a qual passou a viver vida eremitica. Ordenado
presbítero, em 394, tornou-se em 409 bispo de Nola. : ■!i€
Obras: Cânticos e Cartas.
SERMÃO '/-'i
(P.L. Cl, 344ss) v
1 Pr 14,31 e 16,5.
[Se rm ã o 369
2 Pr 19,17.
3 M t 13,45.
4 G1 2,10.
* Um 6,7.
6 l C o r 4 ,1 7 .
7 Lc 19,21; cf. M t 25,14ss.
8 Mt 25,29.
370 SÃO PAULINO DE NOLA
pobre talvez que muitos pobres, tendo por única fortuna duas moe
das; mais rica, entretanto, na alma que todos os ricos, avara dos
tesouros celestes, esperando unicamente os benefícios da recompen
sa eterna, entregou tudo que possuía dessa fortuna que sai da terra
e para ele retorna9. Deu o que tinha, para possuir o que não via;
deu o corruptível, para adquirir a imortalidade. Esta pobre não fez
pouco caso ^da economia disposta e ordenada por Deus, acerca do
crédito futuro. Por isso, o Prcvisor não se esqueceu dela e, como juiz
do mundo, já antecipou a sua sentença. Elogiou no Evangelho a quem
iria coroar no juízo futuro.
544 Emprestemos a Deus dos seus próprios dons. Nada possuímos
sem auxílio, uma vez que nem existir podemos sem sua vontade.
Que poderemos considerar como nosso, se por uma dívida especial e
imensa nós mesmos não somos nossos? Pois nãò só fomos feitos
por Deus mas também resgatados10. Alegremo-nos, porque fomos
resgatados por um grande preço, isto é, pelo sangue do próprio
Senhor. Por esse preço deixamos de ser vis e venais, pois liberdadé
mais vil que a escravidão é ser liberto da justiça; e o que é liberto
desse modo é serve do pecado e escravo da morte. Tributemos ao
Senhor os seus próprios dons, sim, demos a ele, (pois é ele quem
recebe em todo pobre), demos a ele com alegria, e recebamos dele
ccm júbilo. Arrombemos as portas do céu com as nossas boas obras,
pois nosso Senhor, único Deus e único bom, não deseja receber do
zelo avarento, e sim do afeto generoso. Que não há de possuir aquele
que foi o doador de tudo? Que não possuirá aquele que possui os
próprios possuidores? Os ricos todos estão nas suas mãos, mas a sua
imensa justiça e sua bondade querem fazer entre si, com os seus pró
prios dons, uma troca de dons: de modo que te dá a matéria da be
neficência, porque é bom, e produz em ti o mérito, para que recebas
dignamente, porque é justo.
545 O tesouro de seus bens está aberto, as riquezas de sua bondade
estão expostas, de modo que todos podem tirar livremente quanto
quiserem, mas ninguém deve esperar passivamente. Foi para isto que
nos fez o bom Senhor e santo Pai: para que, por nosso bem, sejamos
bons. Ccm efeito, de que bem exterior precisaria quem é em si mes
mo a bondade e felicidade? Assim, enquanto depende dele, “quer que
todos os homens sejam salvos” M, pois ama em todo homem a sua
própria obra. Ele te cumulará de copiosas riquezas, se tu mesmo não
te fizeres avaro e ciumento com as coisas que Deus fez tuas, não
para que te sejam uma causa de morte, mas o preço da vida. O imen
sa bondade de Deus! Quer receber por empréstimo o que ele mesmo
distribuiu. Quer tornar-se devedor de suas próprias dádivas, para
poder pagar-te os juros do teu empréstimo.
9 Cf. Mt 12,43.
10 ICor 6,20.
n lTm 2,4.
SERMÃO 371
15 Lc 12,19.
16 Jo 1235.
17 Mt 25,21.
1« Tm 3,15.
372 SÃO PAULINO DE NOLÀ
pensos à tua chegada, olham em torno para ver se te descobrem.
Para ti se levantam as súplicas e os desejos dos pobres e enfermos.
Cuida que tão piedosos sentimentos não sejam forçados a transformar-
-se, mudando-se as preces em ameaças; que a penúria dos que não
socorreste não levante contra ti o clamor que há de irritar e ferir
o Pai dos órfãos, o julgador das viúvas, o Deus que se compadece dos
pobres 19\ "
548 Se te amas, não te ames somente a ti, porque tal seria o amor
da iniqüidade. “Quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma, pois a ple
nitude da lei é o amor do próximo” 20. Todo homem é irmão dè
seu próximo pela natureza. Cuida igualmente de ti e do pobre.
Cuidando do que é útil aos outros e não só a ti, imitarás o imitador
do Cristo e farás com que Deus cuide de ti ainda com mais solicitu
d e s21. Vê por que crime a avareza e a soberba te afastam daqueles
a quem Deus te uniu em sua obra. Dá de comer ao que tem fome,
para não temeres no dia mau a ira do que há de vir. “Bem-aventura
do o que se preocupa com o pobre e o necessitado* pois o Senhor
o salvará no dia m au” 22. Trabalha, irmão, e cultiva esta região de tua
terra para que produza abundante colheita, dé grãos bem granados,
e te dê com juros o fruto cem vezes multiplicado de tua semênte 2\
Para o desejo e a busca de tal posse e de tal negócio, a avareza é
santa e salutar; possui esse patrimônio que te rende cem vezes mais
e acumula bens eternos para ti e teus herdeiros. Eis a grande ê
preciosa posse, que não onera o possuidor secular, e com rendas eter
nas o enriquece; dela jorra, como leite e mel, o mais suave des licores*
não a custo extraído dos úberes, e sim oferecendo-se aos agricultores
como rio borbulhante.
549 Entretanto, caríssimos, não só para procurardes os bens eter
nos, mas também para evitardes inúmeros males, deveis praticar no
presente a justiça. Precisamos de grande auxílio, de grande proteção
e do amparo de muitas e incessantes orações. Nosso adversário não
descansa. Como inimigo vigilante, está em volta, pronto para des
truir-nos, cercando nossos caminhos, explorando-lhes cuidadosamen
te a entrada e a saída. Arremessa-se, como inseparável companheiro,
insinuando-se entre nossos pés, a fim de nos ferirmos, descuidados,
nas asperezas do caminho. Por isso está escrito: “H á caminhos que
parecem retos aos homens, mas cujos fins conduzem ao inferno” 24.
Se, confiante no caminho plano, ou incauto no escorregadio, vieres
a tombar, ele surgirá sem perda de tempo, para aprisionar o qué
caiu e nada omitirá para te despedaçar e devorar. Por isso sê cauto
SERMÃO 373
' munho de sua inocência? “Não temas, Maria, pois achaste graça
. aiante de D eu s”.
A Virgem acolheu em seu seio o Verbo divino, o qual, desde 552
; a eternidade, coexistia com Deus. Fez-se grandioso templo da Divin
dade, ela, morada humilde e humana. Aquele que não podia ser
contido na pequenez do corpo humano, ei-lo na estreiteza do ven-
fre virginal. “Eis que conceberás no ventre”. Bastaria ter dito: “con
ceberás”; por que acrescentou: “no ventre”? Para indicar ser real
• ar concepção, não aparente; para atestar que o nascimento seria
real, não fictício; para demonstrar que assim como Cristo, enquanto
Deus, procede do verdadeiro Deus, enquanto homem tem um corpo
mar que Cristo tomou um corpo etéreo e apenas tenha aparentado
que é fruto bendito de verdadeira concepção. É, pois, herético afir-
a forma de homem. “Eis que conceberás no ventre e darás à luz um
filho, ao qual chamarás Jesus"'.
Em hebraico, “Jesus” significa “Salvador”. Com razão, pois, 553
túdo está salvo na Virgem, quando ela gerou o Salvador de tudo.
“Chamá-lo-ás Jesus”. Porque com este nome é adorada a majestade
augusta da divindade; tòdos os que habitam os céus, os que povoam
a terra, os que gemem nas profundezas do inferno prosternam-se
aiite esse nome e o adoram. Ouvi as palavras do Apóstolo: “Ao
nome de Jesus se dobrará todo joelho, no céu, na terra e nos in
fernos” 1. É o nome que deu vista aos cegos, ouvido aos surdos,
curou os coxos, deu fala aos mudos, vida aos mortos, libertou os
possessos do demônio. Mas se o nome é tão sublime, quanto não
o será o poder de seu dono? O mesmo anjo diz quem seja aquele que
detém esse nome: “Ele será chamado Filho do Altíssimo”. Vede:
d que a Virgem concebe não é germe da terra, mas do céu.
A Virgem deu à luz e seu filho é o Filho de Deus! Portanto,^os
que pretendem encontrar algo de apenas humano nesse nascimento es
tão injuriando ao Altíssimo!
“E o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai, e reinará eter- 554
namente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim ”. São pala
vras que o herege procura toldar em favor de seu erro. “Eis, diz
aqui, é o anjo quem fala: o Senhor Deus lhe d a r á .. . Então, não é
maior aquele que dá do que aquele que recebe? E o que recebe,
ácaso já possuía o que recebe?”
Nós, porém, irmãos, escutemos tais palavras do anjo, não co
mo os pérfidos hereges, mas como verdadeiros fiéis; sejam-nos fun
damento para a fé, não pretexto para o erro. “O Senhor Deus lhe
dará”. Que Deus? O próprio Verbo, que era, no princípio, D e u s2.
A quem dará? Ao que se fez carne e habitou entre nós. Ouçamos
ao Apóstolo, que diz: “Deus estava em Cristo, reconciliando o mun-
1 H 2,11.
2 Jo 1,1«.
SEDÚLIO
(séc. V )
Célio Sedúlio era presbítero e compôs, em língua simples e viva, poemas sobre-
temas da História sagrada, entre os quais 2 hinos do Breviário Romano: A solis ortus
cardine (Natal) e Crudelis Herodes Deutn (Epifania).
H IN O 1
(P.L. 19, 753-770) ^ \
D IÁ L O G O SOBRE A ENCARNAÇÃO
(P.G . 75, 1217ss)
lCor 2,4.
380 SÃO CIRILO DE ALEXANDRÍA^
que chama as coisas a existirem e nascerem! É ele a Vida, procedente^;
da Vida, que é Deus Pai, o qual, como sabemos, o é na realidade, 1|
existe em própria hipóstase. Nem simplesmente se revestiu de uma4;
carne privada de alma racional: foi verdadeiramente gerado por umaí:
mulher, mostrou-se homem, assumindo a fcrma de servo, ele, o \
Deus Verbo, cceterno e coexistente com o Pai; e assim como é |
perfeitp em sua divindade, assim o é na sua humanidade, constituin- \
do um só Cristo, Senhor e Filho, nãc apenas por justaposição da *
divindade e da carne, mas pela conexão paradoxal de dois elementos -\
completos, a humanidade e a divindade, num único e mesmo ser. ;
— Quem, pois, foi gerado pela santa Virgem? o homem ou o i
Verbo procedente de Deus?
— Eis aí o erro, o pecado, contra todas as conveniências e
contra a verdade! Não me vás dividir ou separar o Emanuel em um
homem e um Deus Verbo, não mo faças um ser de dupla persoha-:
lidade. Porque senão estaremos incorrendo numa afirmação conde-;
nada pela Sagrada Escritura, não estaremos pensando corretamente;
Eis, na verdade, o que diz um dos discípulos de Cristo: “Quantd
a vós, caríssimos, lembrai-vos do que foi predito pelos apóstolos
de nosso Senhor Jesus Cristo, quando vos falavam: nos; últimos
tempos virão impostores, que viverão segundo suas ímpias paixões,
homens que semeiam a discórdia, homens sensuais que não têm o
Espírito” 2. ’ ^
— Então não se deve introduzir divisão alguma?
— Não. E sobretudo não se devem afirmar dois seres após a
união, pensando cada um em separado. É precise reconhecer que
a mente considera certa diferença entre as naturezas: a divindade
e a humanidade não são, seguramente, a mesma coisa; mas ao mes
mo tempo que tais conceitos, há de se admitir a fusão das duas
numa unidade.
559 Assim, ele nasceu de Deus Pai enquanto Deus, da Virgem en
quanto homem. Esplendor derivado do Pai, acima de toda palavra
e de todo pensamento, o Verbo é dito também gerado por uma
mulher, pois, descendo à humanidade, tornou-se o que não era; não
para ficar nesse aniquilamento, mas para que o creiamos Deus, mes
mo quando se manifestou na terra seb uma forma como a nossa;
não simplesmente habitando no homem, mas tornando-se, ele mes
mo, homem por natureza, e conservando sua própria glória. Assim,
esses dois elementos tão distantes de qualquer consubstancialidade,
separados por incomensurável diferença, a humanidade e a divindade,
Paulo os vê unidos num só, em razão da Economia, indicando que
dos dois se constituiu um só Cristo, Filho de Deus: “Paulo — disse
ele — servo do Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, segregado
para o Evangelho de Deus, cutrora prometido pelos profetas nas san-
2 Jd 17-19.
/ÜÍÁLOCO SOBRE A ENCARNAÇÃO 381
3 Rm 1,1-4.
4 2Cor 4,5.
5 ICor 2,2.
6 SI 2.
382 SÃO CIRILO DE ALEXANDRl/^l
de procurar matar-me — a mim que vos disse a verdade. I s s ^
Abraão não fez"
Paulo, por sua vez, escreve: “Foi ele que, nos dias de sua vidjf:;
mortal, ofereceu preces e súplicas, acompanhadas de um grand§,/
brado e de lágrimas, àquele que o poderia salvar da morte, e ifoí
ouvido per sua reverência. Embora Filho, aprendeu pelo sofrimento/ '
o que significa obedecer” 8. | /
561 Diremos, então, que Cristo é puro homem, em nada superiof;,
ao que nós somos? ^ :
■— Não, nlo sé diga assim! ;
— Ele, a sabedoria e o poder de Deus, admitiremos que te-j
nha descido a tal grau de fraqueza a ponto de temer a morte e â
ponto de suplicar ao Pai a salvação? Tiraremos ao Emanuel o p rt
vilégio de ser a Vida, por natureza? Ou estaremos falando correta/
mente ao reportar à humanidade e à limitação da natureza seme
lhante à nossa as expressões menos honrosas, percebendo ao mes;
mo tempo a glória sobrenatural que lhe vem dos traços de s ú a d £ :
vindade, compreendendo que o mesmo é, a uma yez, Deus e homem//
ou antes, Deus feito homem? ,
— Como assim, diz-me? j
— Venha testemunhar entre nós o ilustre Paulo, de quem são
estas palavras: “É da sabedoria que falamos aos perfeitos, naowdé
uma sabedoria deste mundo nem dos príncipes deste m undo/ con
denados a perecer. Falamos da sabedoria de Deus, m isterio sae se-
creta, que nenhum dos príncipes deste mundo conheceu. Porque sé
a tivessem conhecido não teriam crucificado ao Senhor da glória ” 9:
E ainda: “Esplendor da (divina) glória e figura da (divina) subs
tância, ele mantém o universo com o poder de sua palavra. Depois
de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da
Majestade divina no mais alto dos céus, tão sublimado acima dos
562 anjos, quanto excede o deles o nome que herdou” 10. De fato, ser
e chamar-se “Senhor da glória” não está muito acima e além de toda
criatura, sujeita à mudança? E omito o que se refere à espécie
humana, que é bem menos importante: são aqui mencionados os
anjos, as potestades, os tronos, as dominações, são mencionados até
os sublimes serafins, reconhecendo-se que estão muito aquém desse
sublime Esplendor, o que é claro ao menos para quem não traz o
espírito corrompido. Tais privilégios, verdadeiramente extraordiná
rios, são apanágio da natureza que reina sebre o universo.
Ora, como o Crucificado poderia tornar-se Senhor da glória?
O Esplendor do Pai, a imagem de sua substância, o que sustenta o
universo per sua palavra poderosa, ei-lo dito feito superior aos an-
9 Í gd^2,6-8.
JO H b 13-4.
mGoMentário ao evangelho de são joão 383
kjÒs: penso que só porque assumira antes uma condição inferior à
idéies, aparecendo como homem. Está escrito, com efeito: “aquele
, que foi rebaixado um instante sob os anjos, Jesus,nóso vemos
coroado de glória e de honra, por causa da morte quesofreu”11.
Apartaremos então o Verbo, nascido de Deus Pai, da transcen-
rdência que lhe cabe por sua essência, da exata semelhança com esse
j„Pai^ quando o vemos inferior em glória aos anjos, na situação humil-
íde que lhe trouxe a Economia?
— Não, por certo. Não penso que se deva separarcompleta-
gínente o Verbo de Deus das fraquezas humanas apóssua união com
carne, nem despojar da divina glória o elemento humano, se se
jplga e se confessa estar este no Cristo. Alguns perguntarão, con-
iíjtudo, bem o sabes: mas quem é então Jesus Cristo? o homem
nascido da Virgem ou o Verbo nascido de Deus?
; rt>, ■— Francamente, é tolice estender-nos inutilmente na resposta 563
; á, um vãó palavreado. Ccntento-me em dizer que é perigoso e cul
pável separar em dois, pondo cada um à parte, o homem e o Verbo:
llj^Èconomia não o admite, a Escritura inspirada clama que Cristo
í é um. Quanto a mim, digo que nem o Verbo divino sem a humani
dade, nem o templo nascido da mulher, enquanto não está unido
ao Verbo,, devem ser chamados Jesus Cristo. Por Cristo se entende o
Verbo procedente de Deus, unido à humanidade. Superior à huma
nidade enquantoD eus, por natureza, e Filho. Inferiorizado à glória
fdigna.de Deus, enquanto homem. Por isso, ora disse ele: “quem me
viu;, viu o P ai” 12, “eu e o Pai somos um ” 13; ora disse, ao contrário:
: “meu Pai é maior do que e u ” 14, Não é menor do que c Pai en
quanto lhe é idêntico em substância, é seu igual sob todos os as
pectos, mas se diz menor em razão do que tem de humanç. As
Sãgradas Escrituras o pregam também assim, ora como inteiramçnte
homem, sem mencionar sua divindade, ora como Deus, sem nada
dizer de sua humanidade. Não erram, por causa da conjunção dos
dois elementos na unidade.
n Hb 2,9.
u jo 14,9.
13 Jo 10,30.
14 Jo 14,28.
->84 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA ;
564 Podemos ver claramente nestas palavras aquilo que foi predij-
to por Isaías profeta: “Manifestei-me aos que não me buscava#;
fui encontrado pelos que não me procuravam. Eu disse: ‘Eis-mer
aqui’, a uma nação que não invocara meu nome, e estendi minhas
mãos todo o dia para um povo infiel e rebelde” Desnudando
toda a palavra e como que despojando-se de todo véu, m o s tr a i
Jesus aos israelitas, dizendo-lhes: “eu sou o pão da vida” Saiba#
portanto, se querem imunizar-se contra a corrupção e livrar-se da
ameaçadora morte, fruto da prevaricação, que devem aproximar-se
daquele que os pode vivificar, daquele que destrói a corrupção <e
vence a morte: este proceder é análogo ao que se dá na vida natural:.
Em seguida, argumentando eles que o maná fora dado =aói
pais no deserto, disse-lhes que não receberam o pão descido reàb
mente dc céu, isto é, o Filho, e estabeleceu uma comparação efitifè
q tipo e a verdade, a fim de reconhecerem que aquele pão não
descera do céu, mas era um pão natural, como o m ostra a expérienv
cia. Vossos pais e vossos maiores, diz, comendo o maná atend&m
às necessidades naturais do corpo, refaziam sua vida temporal;
trindo diariamente a carne com ele, mal escapavám à morte imédiá-
ta. Demonstra-se com evidência que aquele pão não era vefdadèiíà-
mente do céu pelo fato de não contribuir em nada para a incorrupçlò
dos que o comiam. O Filho porém é verdadeiramentè o pão da vidà,
pois se mostram mais fortes que os grilhões da morte cs qu!é
ao menos uma vez dele participaram e, participando, como qúe se
misturaram a ele. Já anteriormente dissemos que o maná devé
ser considerado uma imagem e sombra do Cristo, um simples sihal,
e que de fato não é o pão da vida. r.
565 O Salmista corrobora de certo medo nossa sentença quando exí
clama: “Deu-lhes o pão do céu, o homem comeu o pão dos anjos” .
À primeira vista parece que esta palavra do profeta se aplica a ísraeí.
Mas não é assim; ela antes de tudo nos pertence. Não seria tolo
e insensato julgar que os santos anjos, que estão no céu, e possuem
natureza incorpórea, possam comer um alimento grosseiro, e necessi
tem, para a conservação da vida, do que este corpo terreno exige?
Não é difícil conceber que por serem espíritos requerem um
alimento espiritual e intelectual. Como pois está dito que aos an
tepassados dos judeus foi oferecido o pão dos anjos? Como pode o
profeta proclamar isto sem mentir? Sem dúvida porque, sendo o
maná tipo e figura de Cristo, que tudo sustenta e conserva no ser,
alimenta os anjos e vivifica a terra, o profeta atribui à sombra o que
dizia da realidade. Os ouvintes, porém, sabendo que os santos anjos
não podem partilhar do alimento terreno, afastariam a rude e gros-1
1 Is 65,1-2.
2 SI 77,25.
I êomentário ao evangelho de SÃO JOÃO 385
3 Cf. Rm 6,10.
4 F1 3.1.
5 To 14,22.
* Cf.. Rm 8,29.
7 Hb 2,14.
8 SI 39,7-9.
9 Is 53,5.
10 lP d 2,24.
11 To 17,11.
12 Ibid. 19.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO JOÃO 387
13 Jo 5-29; Mt 25,46.
14 Jo 3,36.
388 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA
Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: — Quando entrardes na;
terra para a qual vos conduzo, e comerdes o pão dessa terra, sepa*
rareis uma porção do Senhor, as primícias de vossa massa. O pão
segregado será vossa oferta, oferta pela eira; oferecê-lo-eis como;
primícias de vossa massa e dá-lo-eis ao Senhor como oferta por vossa
descendência” 15. Em enigma, pois, como que sob a espessa veste da
letra, estava a figura; de algum modo porém previa o verdadeiro pão
descido do céu, o Cristo, que dá a vida ao mundo. Repara que, feito
homem, nosso semelhante, ele é como que as primícias de nossa massa
que foi segregada, e oferecida a Deus Pai. Tendo-se tornado primogênito
dentre os mortos, tornou-se também o primeiro na ressurreição uni
versal e, assim subiu aos céus. Foi assumido do meio de nós,
da descendência de Abraão, como diz Paulo, foi oferecido por todos
e para todos, a fim de vivificar a todos 16, como primícias oferecidas
a Deus Pai.
570. Ele, a luz verdadeira, concedeu esta mesma graça a seus dis-r
cípulos dizendo: “vós sois a luz do mundo” 17. Sendo o pão
que tudo vivifica e a tudo sustenta no ser, recorreu de novo, ao
simbolismo, e, na sombra da lei, figurou pelos doze pães o santo
colégio dos apóstolos. Assim fala no Levítico: “O Senhor falou a
Moisés dizendo: ‘Ordena que os filhos de Israel tragam para a luz
óleo puro de olivas espremidas a fim de que a lâmpada arda con
tinuamente diante do véu no tabernáculo do testemunho’. E. ajun
tou então: ‘Apanharás farinha fina e farás com ela doze pães; cada
pão será de dois décimos. Tu os colocarás em duas pilhas, seis
pães sobre a mesa pura diante do Senhor. Sobre eles colocarás in
censo puro e sal, e estes pães serão a memória do que se ofereceu ap
Senhor’ ” 18. A lâmpada ardente no tabernáculo santo diante do véu;
já o dissemos que é são João, que era alimentado com óleo purís
simo, isto é, com o brilho do Espírito.
571 Grande honra, para mim, elevar a voz ante tão ilustre assem
bléia de veneráveis Padres. Meu ânimo, profundamente penalizado
pela ímpia blasfêmia de Nestório, suspirava pela celebração deste
Concílio, cheio de harmonia e de encantos, concílio angélico, celes-
15 Nm 15,18-21.
i<s Hb 2,16.
17 M t 5,14.
1* Lv 24,1.7.
* Scbre a autenticidade desta famosa homilia msriana ver Altaner, P atro lo g ia ,
Edições Paulinas, p. 290.
DISCURSO PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO 389
« Is 52,7.
* Jo 1427.
10 Jr 17,11.
11 SI 117,9.
12 SI 19,8.
13 SI 118,46.
392 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA
quem será tudo que armazenaste?” 14 Tua queda, <5 Nestório, foi
maior que tua soberba. Tu, perverso, nascido de estirpe impura, fo£
te precipitado no abismo mais profundo da blasfêmia, desprezando i©
grande Apóstolo, vaso de eleição, voz da Igreja, incenso evangélico e
celeste, fonte odorífica; aquele que, levando cartas de perseguição,
foi derrubado pela luz do céu no caminho de Damasco, aprendendo'
a escrevê-las tão formosas, confirmando ccm elas o mundo na fé da
Trindade consubstanciai, de um só Senhor, de um só batismo; de
um só Pai, um só Filho, um só Espírito Santo; da substância inser
parável e simplicíssima; da divindade incompreensível do Senhor
Deus de Deus, Luz de Luz, Esplendor da Glória, que nasceu de
Maria Virgem, conforme o anúncio do Arcanjo: “Ave, cheia de graça,
o Senhor é contigo, o Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude
do Altíssimo te cobrirá com sua sombra, e por isso o santo que dé
ti nascer será chamado Filho de Deus vivo” 15. Não somente o sabe?
mos pelo arcanjo Gabriel; também Davi, no vaticínio que cant$
diariamente a Igreja, nos diz: “O Senhor me disse: és meu filho;
no dia de hoje te gerei” 16. Já o sábio Isaías, filho do profeta Amós,
profeta nascido de profeta, o predissera: “Eis que a virgem conceberá,
e dará à luz um filho e seu nome será Emanuel, que significa DeuS
conosco” 17. .,
Se não queres crer nos profetas, nos apóstolos, no arcanjo
Gabriel, imita ao menos teus companheiros de petulância, os de
mônios, que gritaram horrorizados: “Que temos de comum contigo,
Jesus, filho de Deus? Antes do tempo vieste a atormentar-nos?” 18
Se, então, o próprio demônio disse: “ antes do tem po”, eis que agora,
por fim, chegou em t i . . .
575 Goisa tremenda e assombrosa! Os demônios, com seu pai1;
o diabo, chamam Filho de Deus o que nasceu de Maria Virgem;.
Nestório reduz a um mero homem o Filho de Deus; e, com a com
versão que nesciamente imagina, inventou perverter e enganar o
piedosíssimo imperador, servo e amigo da fé ortodoxa, e> junta?
mente com ele, as esclarecidas e santas rainhas. . . Foram, porém;
estéreis seus esforços. Repartiú acs homens sedentos de ouro o
dinheiro dos pobres, crendo poder assim impugnar a verdade, mas
sua própria ambição de lucro nefandó o fez naufragar miseravelmente»
Naufragou no porto, por não jogar as âncoras da fé. Submerso em
males, tornou-se teatro de tragédia, para o mundo inteiro. Contava,
sim, persuadir os cultores da piedade, por não entender em sua
mente entenebrecida, a doutrina dos pais, apóstolos, evangelistas e
arcanjos; tentava estabelecer na terra uma religião ímpia e malfazeja.
M Lc 12,18.
15 Lc 1,35.
16 SI 2,7.
17 M t 1,23.
1« 2Cor 10,4.
plÜSCURSO PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO 393
, Mas não nos colheu de surpresa, nem desarmados contra seu intento
I ímpio e blasfemo. Não estava nossa esperança vinculada às forças
| militares, nem ao poder e brilho do ouro, e assim c combatemos,
cpcndo-lhe as santas Escrituras, divinamente inspiradas. Nessas armas
f não são carnais cu terrenas, mas espirituais e celestes, como predisse
o apóstolo são Paulo.
: . Ninguém, porém, ao ouvir-nos dizer estas palavras, julgue que 576
: nos alegramos com sua desgraça! Ao contrário: quando caíste ao
fundo de tua blasfêmia, estendemos-te a mão através de cartas; e se
; insististe em contumácia, foi desprezando nossas advertências. Tes
temunha disso é Celestino, santíssimo arcebispo de todo o orbe,
Pai e Patriarca da grande cidade de Roma, o qual diretamente te
escreveu, exertando-te a que desistisses de tua inconcebível blas
fêmia. Desobediente para com ele, tu te vangloriaste e te envaide
ceste na insensatez. Convertido em inovador do mundo, perturbaste
a .paz das quatro partes da terra; e por tua causa foi necessário que
todos os santos se congregassem aqui, à custa de mil fadigas.
Pór isso Deus te destituirá de teu sacerdócio, te privará da sabe
doria dos Padres, e serás afastado da cidade imperial e do trono
pontifical, que injustamente obtiveste.
“Por isso, os justos verão e temerão, rir-se-ão de ti e dirão:
eis um homem que não tomou a Deus como seu defensor, mas
preferiu esperar nas riquezas, e se ensoberbeceu em sua vaidade” 19.
Todos, porém, os que formos seguidores da verdade do Evangelho,
permaneceremos, como disse o profeta, “como a oliveira fértil na ca
sa de Deus” 20, glorificando a Deus Pai todo-poderoso, a seu Filho
unigénito, que nasceu de Maria, e áo vivificante Espírito Santo,
que se comunica a todos a vida; submissos aos fidelíssimos imperado
res, honrando as rainhas, discretas e santas virgens, e pedindo que
a rainha desposada tenha sucessão e persevere em sua piedade para
com Deus e em seu amor à fé ortodoxa de Cristo Jesus, nosso Se
nhor, a quem se deve glória pelos séculos dos séculos. Amém.
w SI 51,8.
20 Ibid., 10.
JOÃO CASSIANO
(t C. 360-435)
Não se tem certeza sobre o local de seu nascimento. Recebeu formação religiosà
num mosteiro de Belém e viveu vários anos entre os monges do Egito. Ordenado
diácono por são Joio Crisóstomo, em Constantinopla, e presbítero pelo papa Ihp^
cêncio, em Roma. Fundou em Marselha, por volta do ano de 415, dois mosteiros^
um masculino e outro feminino. Seus escritos versam sobre espiritualidade monástica,
tendo grandemente contribuído para difundi-la no Ocidente. São Bento os recomendou
expressamente na Regra. Verdade é que cm alguns se nota o erro semipelagiano quan
to à relação entre a graça e o livre-arbítrio: assim, na XIII Conferência.
Obras: Instituições monásticas; Conferências dos Padres (contendo entrevistas
com cs mais célebres anacoretas do Egito); livros sobre a encarnação, contra o nesv
tcriankmo.
Na conferência que apresentamos a seguir, como aliás em outras obras de Cassianó;
nota-se a influência de Evágrio Pôntico: cf. S. Marsili, Ciovanni Cassiano ed Evagrio\
Pontico, Col. “Studia anselmina”, Roma, 1936.
tação ou até traição. Cansado enfim com nossas súplicas, ele tomou
! a palavra.
Toda arte e disciplina, disse, tem seu escopo ou objetivo, e
■também sua meta ou fim, em vista do qual a pessoa que a exerce
aceita alegremente uma série de trabalhos, riscos e prejuízos.
. . Veja-se o agricultor: enfrentando sol, chuva e geada, aplica-se
- infatigavelmente em arar a terra, sujeitando a gleba indócil a seii
instrumento, sempre fiel ao objetivo que te'm em mente e que é
extirpar espinhos e ervas daninhas, tornar a terra fina e móvel co
mo areia. Ele sabe que de outra sorte não atingiria sua meta, a de
uma colheita abundante, que lhe permita viver ao abrigo da neces
sidade e aumentar seus haveres. A gente o vê esvaziar os celeiros
cheios de sementes para depositá-las com ingente labor nos sulcos
do solo: a visão da futura messe o torna insensível à perda presente.
Também os que fazem comércio. Não temem incorrer nos aza
res do mar e de outros perigos. Com as asas da esperança voam
para o lucro, que é a sua meta.
Igualmente ainda os que seguem a carreira das armas. Arden-
: tés de ambição, o longínquo perfil das honrarias e do poder os faz
: insensíveis aos perigos e às mortes nas suas empresas, e nem
i: incômodos, nem guerras logram abatê-los, em razão do que espe
ram obter no futuro.
Não se passa de outra maneira em nòssa profissão. Ela também
tem seu objetivo e Sua meta, em vista da qual sofremos todos cs
làbóres que ocorrem, sem nos deixarmos abater, ou até com alegria;
os jejuns e a fome não nos fatigam; achamos prazer nas longas vi
gílias; a leitura assídua e a meditação das Escrituras não nos abor
recem; o trabalho incessante, a nudez, a privação de tudo, o próprio
horror desta infinita solidão, nada disso nos atemoriza.
Foi esta mesma finalidade, sem dúvida, que vos levou a ter 578
em menor conta o amor de vossos pais, o solo pátrio, as delícias
do mundo, para atravessardes tantas terras e virdes buscar a com
panhia de gente como nós, rude e ignorante, perdida entre os hori
zontes desolados deste deserto. Qual é, dizei-me, o objetivo e qual
a meta que vos levaram a suportar de bom grado tantas provações?
Ora, persistindo ele em indagar de nosso sentimento, acaba
mos por responder-lhe que era em vista do reino dos céus que con
sentíramos em suportar tudo isso.
Muito bem, replicou ele; foi argutamente que respondestes no
que diz respeito à meta. Mas o objetivo mais imediato que, visado
sempre, vos permitirá atingí-la, qual será ele? Pois é isso que se
precisa conhecer antes de tudo!
Nós confessamos com simplicidade nossa ignorância.
Prosseguiu então: — Toda arte, como já disse, e toda disciplina
requerem primeiramente um escopo, isto é, uma intenção da alma,
396 JOÃO CASSIANO
1 Rm 6,22.
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS 397
2 h 3,13-14.
3 ICof 13,3.
SAO VICENTE DE LÉRINS
( t C. 450)
COM ONITORIO
(PX . 30, 639SS)
O critério da fé
própria Igreja Católica deve-se procurar a todo custo que nos ate
nhamos ao que em toda parte, sempre e por todos se creu pois isto
é própria e verdadeiramente católico, como o diz a índole mesma do
vocábulo, que abarca a globalidade das coisas.
Ora, cbte-lo-emos se seguirmos a universalidade, a antigüida-
de, o consentimento. Pois bem, seguiremos a universalidade se pro
fessarmos como única fé a que é professada em todo o orbe da
terra, pela Igreja inteira; a antigüidade, se não nos afastarmos do
sentir manifesto de nossos santos Padres e antepassados; o consen
timento, enfim, se na mesma antigüidade recorrermos às sentenças
e resoluções de todos ou quase todos os sacerdotes e mestres.
Que fará um cristão católico, ao ver que uma pequenina parte 583
da Igreja se desgarra da comunhão universal da fé? Que há de fazer
senão preferir a saúde do corpo à gangrena de um membro cor
rompido?
E se o contágio da novidade se esforça por devastar não já
uma partezinha, mas a universal Igreja? Neste caso, todo seu afã
será aderir à antigüidade, que não pode estar sujeita aos enganos de
uma novidade.
E se na mesma antigüidade se descobre o erro de duas ou três
pessoas, ou talvez de alguma cidade ou província? Então nos esfor
çaremos a todo custo para cpor à temeridade ou ignorância de uns
poucos, os decretos, se houver, de algum concílio universal, celebrado
por todos na antigüidade.
E se, enfim, ao surgir uma questão, não tivermos nenhum
destes auxílios ao alcance? Então nos desdobraremos para investi
gar e consultar as sentenças des maiores, comparando-as entre si,
mas só as sentenças dos que, embora vivendo em lugares e tem
pos diversos, tenham perseverado na fé e comunhão da mesma
Igreja Católica, tenham sido Considerados mestres dignos de crédito*
e o que eles, não um ou dois somente, mas todos, em consenti
mento unânime, abertamente, repetidamente, persistèntemente, tive
rem sustentado, escrito, ensinado; isso é também o que se há de
crer, sem dúvida alguma.
SÃO LEÃO MAGNO
( t 461)
Ê o papa mais eminente dos primeiros séculos. Em 440, quando foi eleito ao
supremo pontificado, pesadas dificuldades ameaçavam a Igreja e o Império romano.
No Oriente, grassava a heresia monofisita; no Ocidente, os povos bárbaros ameaçavam
o Império. Homem à altura das exigências do tempo, consolidou o primado pontifí:
d o e deu nitidez aos enundados ortodoxos da fé. Condenou o pseudo-sínodo armado
pelos moncfisitas em Éfeso (449), trchando-o de “latrocínio”. Em Calcedôniaj no
famoso Concílio Ecumênico celebrado em 451, sua Carta ao patriarca Flaviano, sobrè
as duas naturezas de Cristo, foi aclamada pelos seiscentos bispos presentes:, “Pedro
falou por boca de Leão”. Em 452, em Mântua, conseguiu desviar de Roma a Átila',
r d dos hunos, e em 455 obteve de Genserico certa moderação rio saque da tídadè. ;
Deixou-nos Certas e Sermões, sendo que estes são obras-primas dá antiga teologia
e eloqüênda cristã.
Edições dos Sermões: S.C. 22, 49, 74.
Em português: col. “Fontes da Catequese” (3 vols.).
1 Is 53,8.
2 Jo 1,14.
SERMÃO NO NATAL DO SENHOR 401
3 Mt 1 3 ( c f . I s 7 ,1 4 ) .
4 To 14,38.
5 To 10,30.
6 F1 2,6.
7 J o 1 0 ,3 0 .
8 G1 4 ,4 .
9 Jo 1,3.
402 SÃO LEÃO MAGNO
antes sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por
comiseração tardia que Deus remediou a situação do homem, mas
desde a Criação do mundo instituíra uma e mesma causa de sal
vação, para todos. A graça de Deus, que justifica os santos, foi au
mentada com o nascimento de Cristo, não foi simplesmente principia
da. E esse mistério da compaixão, esse mistério que hoje já enche o
mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que todos os
que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que
os que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bon- 588
dade divina para conosco que, para nos chamar à vida eterna, não
apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a própria
Verdade nos apareceu, visível e corpórea. Não seja, portanto, com
alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do
Senhor. Celebrá-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um
de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos
unidos, cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício
uma peça discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito San
to, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim,
como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, também nós nos
tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e tem
plos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz: “Glorificai e
trazei a Deus no vosso corpo” 101. Apresentando-nos o exemplo de
sua humildade e mansidão, o Senhor comunicá-nos aquela mesma
força com que nos remiu, conforme prometeu: “Vinde a mim,
vós todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos re
confortarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que
sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas
almas” 11.
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero,
da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja
glória queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos condu
za às suas promessas quem em sua grande misericórdia é pode
roso para apagar nossos pecados e completar seus dons em nós,
Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos
séculos. Assim seja.
10 iCor 6,20.
11 Mt 11,28s.
404 SÃO LEÃO m a g n o ;
12Cor 6,2.
SERMÃO SOBRE À QUARESMA 405
2 Mt 5,6.
406 SÃO LEÃO MAGNO. ^
At 2,1-4.
G n 1,2
408 SÃO LEÃO MAGNO
3 Jo 16,12-13.15.
SERMÃO SOBRE PENTECOSTES 409
4 Mt 12,32.
5 ICor 12,3.
6 ICor 12,4-6.
410 SÃO LEÃO MAGNO;
naquele mesmo tempo em que tudo que era inocência, pudor ;ié í
liberdade padecia sob o império de Nero, cujo furor inflatnado .,
por graves vícios o ia precipitando àquela torrente de insânia da pti- ■}■
meira perseguição geral ao nome cristão. Como se pela morte doS
santcs a graça de Deus se pudesse extinguir! Para estes, ao cotr-
trário, a morte era o máximo dos ganhes, trazendo com o fim desta . •
vida caduca a felicidade eterna. É preciosa, sim> a morte, aos olhos, ;
do Senhor; nem pode ser destruída por gênero algum de crueldade
601 a religião fundada pelo sacramento da cruz de Cristo. A Igreja
nãc diminui pelas perseguições, mas cresce; e o campo do Senhór
se reveste de searas mais copiosas quando germinam multiplicados
os grãos, um a um tombados. Esta a razão por que são milhares
os mártires a atestarem quão grande descendência fizeram nascer
estes dois preclaros grãos da semente divina. Com seus inúme
ros mártires, êmulos do triunfo dos apóstolos, cercou-se nossa: urbe
de povos ruivos, que a coroam com um diadema de honrosas
gemas. O seu patrocínio, caríssimos, que Deus preparou para nós;
em exemplo para nossa paciência e em confirmação para a nossa fé, é ,
motivo de alegria para nós, na comemoração genérica de todos òs san
tos; mas em honra dos nossos dois patriarcas, escolhidos pela graça
de Deus para ocuparem, entre os demais membros da Igreja, um
cume tão alto, quais os luzeiros de dois olhos gêmeos, em honra
deles com maior júbilo ainda devemos regozijar-nos! Seus: méritos
e virtudes excedem qualquer palavra. Nada julguemos neles diverso
ou maior, pois foram iguais na eleição, semelhantes nos labores e
no fim.
E conforme o que nós mesmos já temos experimentado e nqssqs
antepassados comprovaram, cremos estar sempre ajudados pelas ora
ções destes especiais padroeiros, em todos os trabalhos desta vida,
para assim obtermos a misericórdia de Deus e sermos reerguidos da
depressão de nossos pecados, pelos méritos dos apóstolos.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence, com o Pai
e o Espírito Santo, um único poder e divindade, pelos séculos dos
séculos. Assim seja.
SÃO BENTO DE NÜRSIA
(c. 480-547)
Sobre sua vida escreveu são Gregório^ Magno (no livro 2? dos Diálogos) dentro,
pcrém, de um gênero literário onde é difícil determinar o que seja estritamente his
tórico. Natural de Núrsia, na Ümbria, Bento estudava Direito em Roma, quando
sentiu o apelo de consagrar a vida a Deus. Partiu para Enfide e depois Subiaco,
para lá viver como anacoreta, tornando-se depois superior de várias comunidades
monásticas. Mais tarde seguiu para o monte Cassino, fundando a célebre Abadia
local e escrevendo r. Regra dos mosteiros. Discute-se a relação entre este documento
e outro, conhecido como Regula Magistri, também do século VI, de autor desconheci
do; Segundo alguns, baseia-se esta na de Bento, segundo outros a relação é inversa
— tese esta que se toma hoje mais comum.
Da Regra beneditina disse s. Gregdrio: “notável pelo discernimento e clara
na linguagem" (Dial. II, 36). Realmente, tornou-se o principal código de vida mo
nástica do Ocidente, tendo sido amplamente copiada, traduzida e comentada duran
te a Idade Média e até aos nossos tempos.
Através de inúmeros discípulos, que evangelizaram grande parte da Europa
(do Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda à Polônia), o espírito de são Bento, re
sumido ccmumente .no lema "ora et labora”, exerceu uma grande influência na Histó
ria. da Igreja e da civilização. Pio XII chamou a Bento “Pai da Europa” e Paulo
VI proclamou-o “Patrono da Europa" (24-X-1964).
Edição crítica da Regra em S.C. 181..
4 SI 47,10.
i ljo 4,1.
REGRA DOS MOSTEIROS 415
Natural do Vêneto, Itália, fixou residência em Poitiers, onde foi ordenado pres
bítero e se fez capelão da comunidade monástica de santa Radegundes. Mais tarde
tornou-sé bispo da cidade. Seu renome de poeta valeu-lhe amplo relacionamento com
os intelectuais do tempo. Pela forma sua poesia é antiga, mas pelo fundo já
revela o espírito medieval. Autor de célebres hinos, que até. hoje pertencem à
liturgia romana, como os dedicados à Paixão do Senhor e à Virgem Maria (Vexilla
regis, Patíge lingua, Quem terra, pontus, aethera), e de numerosos outros poemas
reugiosos.
“PANGE, L IN G U A ” 1
( P .L . 88,88)
1 Não se confunda este hino com outro, de mesmo título, composto por santo
Tomás de Aquino, em honra do Santíssimo Sacramento. Ambos foram incorporados
à Liturgia. A tradução é de D. Marcos Barbosa.
“VEXILA R E G IS” 1
(P.L. 88, 95s)
De nobte estirpe romana, (oi prefeito de Roma quando ainda muito moço.
Em 575 deddiu-se à vida monástica, transformando o palácio paterno no mos
teiro de santo André. Fundou ainda seis outros mosteiros em propriedades suas na
Sicília.
O papa Pelágio II forçou-o, porém, pouco mais tarde, a deixar a paz claustral
e ir para Constantinopla, na qualidade de “apocrisiário” ( = núncio apostólico). Em
585, regressando a Roma, tornou à austera vida monástica como abade de santo André.
Em 590, quando morreu o papa, foi eleito seu sucessor, dando início a um dos mais
notáveis pontificados da História. Foi quem empreendeu a evangelização da Inglaterra,
para lá enviando monges missionários, entre os quais sto. Agostinho de Cantuária.
Reformou o rito da Missa e promoveu, em várias “escolas”, o canto litúrgico, desde
então chamado “canto gregoriano". Assinava-se “servus servcrum Dei” e freqüente-
mente tinha pobres à mesa.
Obras: 854 Certas, de importância histórica; o Livro da Regra pastoral, verdadei
ro catedsmo da arte de governar as almas; Comentário ao livro de Jó (Mordia)-,
Homilias; Diálogos (o II livro dos quais conta a vida de são Bento); o Sacramenta-
rium gregorianum (Missal); etc.
Na col. S.C., t. 52: M ordes sur Job.
9 Ez 34,18.
10 Os 5,1.
11 Mt 18,6.
422 SÃO GREGÓRIO MAGNO
mente eles caíssem no inferno, ao menos sofreriam penas mais su
portáveis.
613 O que acabamos de expor visa demonstrar quão grave seja o
peso do governo das almas, a fim de que não ousem assumi-lo os
que não forem aptos para isso. Tornar-se-ia causa de própria perdi
ção o que se procurasse por avidez de honraria. Assim, diz são
Tiago: “Não queirais, muitos dentre vós, fazer-vos mestres, irmãos
m eus” 12. E o próprio Mediador entre Deus e os homens não quis
possuir um reino na terra, ele, que ultrapassando em ciência e in
teligência as hierarquias angélicas mais sublimes, é rei dos céus
desde antes dos séculos. Consta na Sagrada Escritura que, “sabendo
Jesus que viriam para levá-lo e fazê-lo rei, fugiu sozinho outra,
vez para o m onte” 13. Quem poderia com mais razão desejar go
vernar os homens, do que ele que os havia criado? Mas, tendc-se
encarnado não apenas para remir-nos por sua Paixão e sim também
para ensinar-nos com seus exemplos, quis dar-nos aqui um modelo,
desdenhando ser rei e sofrendo, ac contrário, de modo voluntário,
o martírio da cruz, recusando os esplendores que se lhe ofereciam,
e abraçando as dores de uma morte ignominiosa, para que seus dis
cípulos aprendessem a menosprezar as glórias do mundo, a não te?
mer cs opróbrios humanos, a renunciar aos eventuais afagos da vida!
Estes últimos geralmente corrompem o coração mediante o or
gulho, ao passo que os opróbrios purificam mediante a dor, ele
vam a alma, obrigam o homem a esquecer-se a si mesmo, não a
voltar-se para si. As comodidades acabam por destruir as boas obras,
os opróbrios ajudam a desentranhar os defeitos mais inveterados.
Não é raro ver-se que o coração se amolda à disciplina na escola
da adversidade, e ao contrário se deixa levar à soberba em meió
aos esplendores das honrarias, que acompanham os encargos de go
verno. Assim, vemos Saul, que inicialmente se dizia indigno dá
glória, depois, colocado à frente do reino, mudou e, ambicionando
os aplausos populares e a ostentação, separou-se de quem o havia
ungido r e iH. Também Davi, antes submisso em todos os seus atos
à vontade do Criador, mal se viu livre da tribulação, tornou-se
cruel a ponto de fazer matar o marido de Betsabé, deixou de ser
clemente como antes, chegando a realizar a matança de um inocen
te. Antes, renunciara a vingar-se de seu perseguidor, preso entre
suas mãos, e depois, ei-lo que manda matar o mais leal de seus sol
dados, além de prejudicar o exército com as fadigas da guerra.
Seguramente tais pecados o teriam apagado dentre o número dos
eleitos não fôra o arrependimento com que chorou suas desgraças.
12 Tg 3,1.
13 Jo 6,15.
34 ISm 10,22; 15,30.
HOMILIA PARA O QUARTO DOMINGO DO ADVENTO 423
1 Jo 1,19-28.
2 Mt 17,12.
3 Lc 1,17.
424 SÃO GREGÓRIO MAGNO
9 Is 5,21.
M Rm 12,16.
11 lSm 15,17.
12 2Sm 6,22.
: DOS “ DIÁLOGOS' 427
: í DOS “D IÁ L O G O S ”
(liv. 1,1: P.L. 77, 149s)
A v id a c o n te m p la tiv a
D O S “D IÁ LO G O S "
(liv. 2, cap. 37: P.L. 66, 202)
A m o rte d e Sã o B e n to
620 No mesmo ano em que devia partir desta vida, Bento anun
ciou o dia de sua santíssima morte a alguns discípulos que com ele
viviam e a outros que moravam longe. Aos presentes acrescentou que
guardassem em silêncio o que ouviram, e aos ausentes ainda deu a
saber o sinal que se produziria para eles quando à alma se lhe apar
tasse do corpo.
Seis dias antes da morte, mandou abrir a sepultura. Pouco
depois, atacado de febre, começou a ser atormentado por violenta
temperatura. Como dia a dia se agravasse o mal, no sexto dia fez-se
levar ao oratório pelos discípulos e aí muniu-se para a partida, com
a comunhão do corpo e do sangue do Senhor. A seguir, apoiando
nos braços dos discípulos os membros enfraquecidos, ficou de pé com
as mãos elevadas para o céu, e entre palavras de oração exalou o úl
timo suspiro.
Na mesma data, foi comunicada a dois irmãos, des quais um
estava no mosteiro e outro distante, igual visão: ambos viram um
caminho forrado de tapeçarias e coruscante de luzes, estendido desde
a cela de Bento até o céu, em direção do oriente. No alto, estava um
homem de venerando e resplandecente aspectc, que lhes perguntou de
quem era a estrada que viam: eles confessaram que ignoravam; en
tão lhes disse: “Este é o caminho pelo qual Bento, o amado do
Senhor, subiu ao céu". Assim aconteceu que, como os discípulos pre
sentes viram a morte do santo varão, também os ausentes dela tiveram
conhecimento, pelo sinal que lhes fora prenunciado.
Foi sepultado na capela de S. Jcão Batista, que ele próprio cons
truíra após ter derribado o altar de Apoio. E na mesma gruta de
Subiaco em que primeiro habitou, ainda hoje refulge em milagres,
quando a fé dos suplicantes o exige.
SANTO ISIDORO DE SEVILHA
( t 63.6)
Tido em geral como “o último Padre do Ocidente”, fora bispo de Sevilha desde
601. Em 633 dirigiu o IV Sínodo de Toledo. Escritor erudito, fecundo, exerceu notá
vel influência na Idade Média através de sua obra enciclopédica, cs 20 livros das
E tim o lo g ia s , onde se armazenam os principais conhecimentos profanos e religiosos de
sua época. Escreveu também tratados exegéticos, dogmáticos, ascéticos e litúrgicos.
L IV R O SÉTIM O D AS E T IM O LO G IA S
(P.L. 82, 263-267)
1 At 4.25.
430 SANTO ISIDORO DE SEVILHA
porque ele salvará seu povo ” 2. Como Cristo significa Rei, assim
Jesus significa Salvador. Portanto não foi um rei qualquer que nos
salvou, mas o rei Salvador; e este vocábulo de Salvador, embora
pudesse tê-lo a língua latina (como quando quis a teve), antes não
o tinha.
Emanuel, em hebraico, significa Deus conosco, porque Deus
nasceu da yirgem e revestiu a carne de nossa mortalidade para nos
abrir o caminho do céu. Os nomes que se referem à substância da
divindade são Deus e Senhor. Diz-se Deus, por sua consubstancialida-
de com o Pai; diz-se Senhor, pelo domínio sobre as criaturas.
Diz-se Deus e homem, porque Verbo e carne. Daí também ser
dito gerado duas vezes, pois o Pai o gerou na eternidade, sem
mãe e a Mãe o gerou sem pai no tempo.
Unigénito chama-se ele segundo a excelência da divindade, na
qual não teve irmãos; Primogênito, segundo a humanidade assumi
da, pela qual teve irmãos na adoção da graça.
622 Homoúsios ao Pai diz-se pela unidade de substância; usía signi
ficando essência, e hómos, a mesma, e conseqüentemente o vocábulo
significa consubstanciai, conformè a Escritura: “o Pai e eu somos
uma mesma coisa”, isto é, somos consubstanciais. Embora esta pa
lavra não se ache nas Escrituras, ao tratar-se da Trindade há razão
para ser usada. Como aliás tampouco se diz nas Escrituras “ingênito
do P ai”, e ninguém duvida que seja preciso dizer-se e confessar-se
o Cristo assim. “Homoúsios” se diz pela semelhança de substância;
porque tal é Deus, tal é sua imagem, invisível Deus, invisível sua
imagem.
Princípio chama-se, porque dele derivam todas as coisas, e ante$
dele nada existiu.
Fim, porque se dignou nascer e morrer no fim dos tempos*
e também porque se reservou o Juízo Final, e ainda a ele dirigimos
nessas obras como a um fim, não havendo além dele finalidade ul
terior a que possamos referi-las.
Boca de Deus chama-se porque é seu Verbo, e como pelas
palavras se conhece a língua que as prefere, assim, em lugar de
Verbo, dizemos Boca de Deus, porque o costume é que as palavras
se profiram oralmente.
Verbo se diz, porque o Pai tudo fez e ordenou por ele. Verdade,
porque não engana, mas cumpre suas promessas. Vida, porque nos
criou. Imagem, por sua semelhança de identidade com o Pai. Figura,
porque na forma de servo refletiu, com. suas obras e virtudes, a ima
gem e imensa grandeza do Pai. Mão de Deus, porque por ele se fi
zeram todas as coisas; e Mão direita, porque fez a totalidade da
criação. Braço, porque tudo sustenta. Virtude, porque comunica
todo o poder do Pai, contém, rege e governa o céu, a terra e todas
2 Mt 1,21.
LIVRO SÉTIMO DAS ETIMOLOGIAS 431
Jo 1 0 J0
Jo 14,28
> ICor 2,8.
SANTO ILDEFONSO DE TOLEDO
(617-667)
Mcnge e abade no mosteiro des santos Cosme e Damião, nos arredores de Tole
do, e mais tarde bispo da cidade. Sua obra principal, Sobre a virgindade de Santa
Maria, contra três infiéis, valeu-lhe a designação de “campeão da Virgem", na peça de
mesmo título de Lope De Vega. Característico é o estilo dos sinônimos, multiplica
dos ao extremo. Entre outras obras deve ser assinalado ainda o De viris Ülustribus,
série de biografias de importância para a história eclesiástica espanhola.
Oração
Da 1* centúria1
2 Is 6,5.
438 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR
3 2Cor 7,8.
CENTÚRIAS SOBRE A CARIDADE 439
42. Quem àma a Deus leva sobre a terra uma vida angélica, no
jejum, nas vigílias, no canto dos salmos e na oração, julgando bem a
toda gente.
43. Quem aspira por uma coisa, luta para adquiri-la. Ora, mais
que tudo de bom e desejável é Deus; que ardor não deveria ser
o nosso para adquirir esse bem em si e desejável!
44. Não manches a carne por más ações, não sujes a alma por
maus pensamentos, e a paz de Deus descerá sobre ti, trazendo-te a cari
dade.
47. Quem não obteve ainda a ciência de Deus, fruto da cari- 628
dade, se orgulha com os bons atos, realizados segundo Deus. Mas
quando for julgado digno dela, dirá com profunda convicção as pa
lavras do patriarca Abraão, ao ser gratificado pela manifestação divi
na: “eu não sou mais que terra e cinza” 4.
48 . Quem teme a Deus possui a humildade por constante
companheira: graças aos pensamentos que ela inspira, chega ao amor
e reconhecimento para com Deus. Ela lhe recorda como outrora vi
veu segundo o século, recorda suas quedas, as tentações experimen
tadas na mocidade, como o Senhor o livrou de tudo isso e o fez
passar, da existência sujeita às paixões, a uma vida segundo Deus.
Então, juntamente com o temor, invade-o o amor, e ele não cessa
de dar graças, com profunda humildade, ao Benfeitor e Guia de nossa
vida.
Da 2* centúria
4 Gn 19.27.
440 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR
5 SI 9,4.
CENTÚRIAS SOBRE A CARIDADE 441
Da 4* centúria
7 SI 41,14.
SÃO JOÃO DAMASCENO
(c. 675-749)
É o último dos Padres da Igreja grega. Monge no mosteiro de São Sabas, em Je-
rusrJém, dedicou-se, após sua ordenação presbiteral, à pregação e aos estudos, tendo
composto um manual de Teologia, Fonte do conhecimento, que se tornou clássico na
Idade Média. Redigiu ainda escritos polêmicos, especiaímente sobre o culto dás
imagens, um comentário às Epístolas de são Paulo, textos ascéticos, várias Homílias
e hinos litúrgicos. Inspira-se nos grandes Padres gregos.
Ed. em grego e francês: S.C. 80 ( "Homélies sur la nativité et la dormition").
Quem ama ardentemente alguma coisa costuma trazer seu no- 635
me nos lábios e nela pensar noite e dia. Não se me censure, pois,
se pronuncio este terceiro panegírico da Mãe de meu Deus, como
cíerenda em honra dé sua partida. Isso não será favor para ela
mas servirá a mim mesmo e a vós, aqui presentes — divina *e santa
assembléia —- como um manjar salutar que, nesta noite sagtada,
satisfaça nosso gosto espiritual. Estamos sofrendo, como sabeis, de
penúria de alimentos. Assim, improviso a refeição; se não é suntuosa
nem digna daquilo que no-la inspira, possa ao menos acalmar-nos
a fome. Sim, não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisa
mos de sua glória. Um ser glorificado, que glória pode receber
ainda? a fonte da luz, como será iluminada ainda? É pois para nós
mesmos que fazemos a coroa. “Vivo eu, diz o Senhor, e glorificarei
os que me glorificam” 1.
O vinho agrada sem dúvida, é deliciosa bebida, e o pão ali
mento nutritivo: um alegra, o outro fortifica o cotação do homem2.
Mas que existe de mais suave do que a Mãe de meu Deus? Ela
cativou meu espírito, ela reina sobre minha palavra, dia e noite sua
imagem me é presente. Mãe do Verbo, dá-me de que falar! FUha de
444 SÃO JOÃO DAMASCENO
mãe estéril, toma fecundas as almas estéreis! Eis aquela cuja festa
celebramos hoje em sua santa e divina Assunção.
Acorrei, pois, e subamos a montanha mística. Ultrapassando as
imagens da vida presente e da matéria, penetrando na treva di
vina e incompreensível, ingressando na luz de Deus, celebremos o
seu infinito poder. Aquele que, de sua transcendência superessencial
e imaterial', desceu ao seio virgíneo para ser concebido e se encar
nar, sem deixar o seio do Pai; aquele que através da Paixão mar
chou voluntariamente para a morte, conquistando pela morte a imor
talidade e voltando ao Pai; ccmo n lo pôde ele atrair ao Pai sua
Mãe segundo a carne? como não elevaria da terra ao céu aquela
que fora um verdadeiro céu sobre a terra?
636 Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu,
se fez visível e conversou entre õs homens 3, ei-la que sobe, pelos
degraus da morte, da terra ao céu.
Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias, trouxera o pão celeste
da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos céus, e para
a Pcrta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas do céu.
Hoje, da Jerusalém terrestre, a Cidade viva de Deus foi conduzi
da à Jerusalém do alto; aquela que concebera como seu primogê
nito e unigénito o Primogênito de tcdá criatura e c Unigénito do
Pai, vem habitar na Igreja das primícias4; a arca do Senhor, viva
e racional, é transportada ao repouso de seu F ilho5.
As portas do paraíso se abrem para acolher a terra portadora
de Deus, onde germinou a árvore da vida eterna, redentora da deso
bediência de Eya e da morte infligida a Adão. É o Cristo, causa da
vida universal, quem recebe a gruta escondida, a montanha não
trabalhada, donde se destacou, sem intervenção humana, a pedra que
enche a terra.
Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação
do Verbo, veio repousar em túmulo glorioso, como em tálamo nup
cial, para de lá se elevar até a câmara das núpcias celestes, onde reina
em plena luz com seu Filho e seu Deus, deixando-nos também como
lugar de núpcias seu túmulo sobre a terra. Lugar de núpcias, esse
túmulo? Sim, e o mais esplendoroso de todos, a refulgir não por
revérberos de ouro, de prata ou de gemas, porém pela divina luz, ir
radiação dc Espírito Santo. Proporciona, não uma união conjügal aos
esposes da terra, mas a vida santa às almas que se prendem pelos
laços do Espírito, proporciona uma condição junto de Deus, melhor
e mais suave que outra qualquer.
637 Seu túmulo é mais gracioso do que o Éden: neste, sem querer
mos repetir tudo o que lá se passou, houve a sedução do inimigo,
DORMIÇÂO DA MAE SANTÍSSIMA DE DEUS 445
6 Gn 3,19.
7 Ex 15,20.
446 SÃO JOÃO DAMASCENO
8 O Autor passa a aludir aqui a certa tradição, segundo a qual Nossa Senhora, ao
morrer em Jerusalém, teve à sua volta os apóstolos, para lá encaminhados por inspi
ração divina (História eutimíaca, inserida extensamente na I I Homilia de são João
Damasceno sobre a Assunção).
9 O Autor pensa no “Hieroteu”, apresentado como mestre de Dionísio em seü
livro Os nomes divinos (P.G. 3, 681-684). A obra de são João Damasceno contém
muitas alusões ao “corpus dionisianum”.
»o D t 32,48$.
DCRMIÇÃO DA MÃE SANTÍSSIMA DE DEUS 447
Pág.
7 Prefácio da segunda edição
9 Introdução — Os Padres da Igreja
15 Subsídios bibliográficos
46 São Policarpo
46 Carta aos filipenses
50 Carta circular da igreja de Esmirna
56 Hennas
56 O Pastor
62 Aristides de Atenas
62 Apologia
65 São Justino
65 Da primeira Apologia (Cap. 65-67)
67 Da segunda Apologia (Cap. 10 e 13)
68 Diálogo com Trifão (início)
76 Diálogo com Trifão
80 Melitão de Sardes
80 Sobre a Páscoa
88 Os Mártires de Lião
88 Atas do seu martírio
96 Uma antiga inscrição
98 Atenágoras
98 Suplica pelos cristãos
102 São Teófilo de Antioquia
102 Dos “Livros a Autólico”
147 Orígenes
147 Do comentário ao Cântico dos Cânticos
149 Do comentário ao Cântico dos Cânticos
150 Comentário ao evangelho segundo são João
153 Comentário ao evangelho de Mateus
154 Comentário ao evangelho de Mateus
155 Sobre os princípios
155 Contra Celso
160 Tertuliano
160 “Apologético” ou “Defesa dos cristãos contra os gentios”
162 Da prescrição dos hereges
165 “Contra Praxéias”
167 A ressurreição da carne
168 A alma
169 O batismo
197 Novaciano
197 Sobre a Trindade
ÍNDICE GERAL 455
275 Prudêncio
275 Hino da manhã
276 Hino da Epifania
277 Hino para antes da refeição
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