deveria poder ver as almas dos mortos. Seu pai a vê como possuída e chama um especialista em exorcismo. Quando ela vê uma chance de escapar, ela foge para um circo próximo, onde sua vida é virada de cabeça para baixo.
Booker Ward é conhecido por muitos nomes. Assassino. Aberração. O
homem tatuado. Ele desistiu da própria vida até que ela entrou na vida dele. Agora, ele está percebendo que pode haver um futuro para ele ainda, se ele puder descobrir uma maneira de convencê-la a amar um monstro.
Agora ele deve convencê-la de que a vida dela é dela. Se ela deseja se tornar um ato de circo, ela pode e ele a ajudará.
A segunda lição, é que o amor é liberdade e pode superar todas as coisas.
—A Deus seja dada a glória, das grandes coisas que Ele fez. Suas vozes elevaram-se nas vigas da igreja. Homens e mulheres em sintonia, louvando o Todo-Poderoso com tudo o que tinham neles. O anjo purificaria suas almas. —Ele amou tanto o mundo que nos deu seu Filho, que nos deu sua vida em sacrifício pelo pecado. Irene olhou para um homem no banco da frente. Sua cabeça estava inclinada para trás, os olhos fechados, o sol filtrando através dos vitrais além dele. Por um segundo, seu rosto estava coberto de barras azuis e verdes quando o prado retratado no vidro refletia sobre ele. —E abriu o portão da vida para que todos pudessem entrar. Então o sol mudou e lançou sombras vermelhas no rosto do homem. Irene apertou as mãos com mais força na frente dela, a voz caindo para nada mais do que um mero sussurro enquanto cantava com os outros. Ele não percebeu o que estava acontecendo com ele? Que a luz havia mudado e ele estava banhado em sangue vermelho enquanto estava sentado no banco da igreja? Uma névoa escura se materializou atrás dele, uma forma que ela reconheceu e queria ir embora. Os lábios de Irene tremeram e seus dedos começaram a tremer quando a névoa escura chegou à frente e tocou uma mão esquelética na cabeça do homem. Seus cabelos se ergueram levemente quando o espírito pegou um fio e o deixou cair. Uma nuvem passou sobre o sol, e o homem foi banhado em verde novamente. A névoa escura desapareceu com o movimento. Irene abaixou o queixo, fechou os olhos com força e sussurrou uma suave oração que ninguém mais ouviria. Eles estavam cantando muito alto. Eles não saberiam que ela estava sussurrando orações repetidas vezes, implorando a Deus que a ajudasse quando soubesse que essas criaturas estavam vindo para ela. —Irene. — A voz ofegante sussurrou em seu ouvido. —Irene. —Perdoe-me pai, porque eu pequei. — Ela sussurrou, apertando as mãos com tanta força que elas ficaram brancas com a pressão. —Irene, olhe. —Eu não quero olhar. —Você tem que olhar. E ela olharia. Ela sempre olhava, não importava o quanto a fizesse sentir que sua alma estava condenada. Lentamente, ela abriu os olhos e olhou para baixo. O piso de madeira gasto estava cheio de pessoas sentadas exatamente onde ela estava. Os bancos desconfortáveis a machucavam nas costas, mas o pai disse que era isso que ela deveria sentir. Desconforto significava que ela estava se concentrando em Deus. Os sapatos sensíveis em seus pés eram pretos, e a cor escura derretia nas sombras como se fossem feitas da mesma. Então ela viu - a mudança da escuridão sob o banco na frente dela. As mãos rastejaram para fora das sombras e colocaram cada dedo cuidadosamente no banco abaixo, como se algum cadáver se arrastasse por baixo. O órgão bateu com o hino e sacou uma última nota longa que ecoou com seu gemido. A mãe de Irene deu uma cotovelada nela. —Pare com isso. — Ela assobiou. —Chega, filha. Se ela pudesse parar, Irene o faria. Ela teria parado na primeira vez que viu uma alma sair de um cemitério e abraçar um ente querido chorando na lápide. Ela teria parado aos oito anos quando viu um demônio agachado no teto, olhando-a com olhos vermelhos. —Irene. — A voz veio novamente, persuadindo-a a responder mesmo quando sabia que estava errado. Ela soltou um suspiro longo e baixo. —Vá embora. — Ela sussurrou para a voz em seu ouvido. —Vá embora por favor. —Não. — Respondeu a voz sussurrante. Os tremores pioraram. Ela se inclinou para a frente, cotovelos nos joelhos e afastou as mãos. Irene se concentrou na sujeira embaixo das unhas, sujeira que ela sabia que vinha da sepultura da qual a criatura havia se arrastado recentemente. Pregos estalaram contra os bancos e depois as mãos recuaram por baixo. —Irene — Sua mãe retrucou. —Limpe essa expressão do seu rosto, sua garota tola. Seu pai está falando. O pai dela. O pastor. O homem que deveria ter notado que sua filha era atormentada por demônios desde tenra idade. Ele deveria tê-la salvado há muito tempo, mas ele sempre disse que ela estava tentando chamar atenção. Como se ela precisasse. Todos em St. Martinville já sabiam quem ela era. Eles esperavam que ela fosse essa bonequinha perfeita, o tipo de pessoa que brilhava de dentro para fora. Como ela deveria fazer isso quando demônios sussurravam em seus ouvidos? Ela estremeceu quando sentiu uma mão tocar seu ombro. Irene não precisou olhar para ver a pele fina e com veias azuis que se estendia sobre os dedos ósseos e esqueléticos. Ela viu as mãos tantas vezes. Rastejando debaixo de sua cama à noite, arranhando o chão e agora sussurrando para ela olhar embaixo do banco. Basta dar uma olhada. Ver o que aconteceria quando ela finalmente olhasse seu demônio nos olhos. —Irene. — Sua mãe sussurrou, desta vez claramente significando negócios. —Olhe para o seu pai quando ele estiver falando! Soltando um gemido silencioso, ela olhou para ele e forçou os olhos a permanecerem abertos. Ele estava orgulhoso e alto no pódio. Seu cabelo loiro estava bem aparado, seu terno preto perfeitamente pressionado. O pai dela era um homem bonito, todos diziam isso. Com sua mandíbula forte, penetrantes olhos azuis e ombros quadrados. Ninguém sabia como ele conseguiu encontrar uma esposa que parecia quase exatamente como ele. Sua mãe era alta, loira e pernuda. Exatamente a esposa que um pastor como ele precisava. Eles criaram uma filha que era quase albina. A pele pálida de Irene rivalizava com a dos cadáveres que via andando ao seu redor. Seus cabelos brancos davam uma aparência fantasmagórica, embora fossem seus olhos quase amarelos, descoloridos de quase todas as cores, que faziam as pessoas evitá-la. Suas narinas se abriram quando a primeira alma subiu ao palco com o pai. Ele estava morto recentemente, ela assumiu. Esse fantasma se parecia muito com o menino Parson que havia morrido em um acidente de carro há duas semanas. Ele virou a cabeça, mostrando a pele aberta e quebrada do rosto onde a janela havia quebrado seu crânio. Joshua não aparentava estar bem após o acidente. Seus pais nem conseguiram deixar o caixão aberto por causa dos danos causados. Agora, Irene sabia exatamente o que havia acontecido. Mais espíritos se juntaram ao pai. Eles o cercaram com assobios de nojo e raiva. Eles não acreditavam nas palavras dele. A morte não tinha sido um presente, não para eles. Eles estavam presos aqui, deslizando pela vida e apodrecendo em espírito e forma física. As sobrancelhas dela se enrugaram de medo e a respiração veio em suspiros curtos. Um espírito sem um braço alcançou seu pai, passando a mão com apenas dois dedos nas costas. O tecido de seu casaco mudou, e ele gaguejou como se soubesse que algo o havia tocado. Algo não natural. Algo que ele alegava não ser real, mas ela os via. Irene olhou de volta para as mãos, a cortina de seus cabelos brancos caindo na frente do rosto. Ela não deixaria que eles a controlassem. Eles eram apenas espíritos, e ela era uma criatura viva. Ela tinha o poder de Deus ao seu lado, e eles não podiam forçá-la a fazer o que ela não queria. —É isso que você pensa? — A criatura sussurrou em seu ouvido. —Irene, você sabe que eu posso fazer você fazer o que eu quiser. Quando choramingou novamente, sua mãe lhe deu uma cotovelada forte, murmurando sobre crianças insolentes que precisavam de atenção. Mas ela não queria atenção! Irene só queria que alguém a ouvisse quando dissesse que havia uma voz em sua cabeça. O tipo de voz que ela não conseguia fazer desaparecer, não importa quantas vezes ela disse que não queria ouvir. Ela não queria ouvir o que tinha a dizer. —Olhe para cima, Irene. —Não. — Ela sussurrou. —Olhe para cima e me veja. Havia realmente uma escolha? Irene sabia o que aconteceria se não olhasse para cima. Os outros espíritos pulariam para tentar convencê-la também. As mãos voltariam a sair debaixo dos bancos, e todos convergiriam para ela, cambaleando na direção dela com as mãos estendidas, querendo que ela ouvisse o que eles tinham para lhe dizer. Mandíbula tremendo, braços e ombros tão tensos que ela sentiu como se seu corpo estivesse congelado, ela olhou para cima. Uma névoa escura se formou atrás de seu pai. Mais escura que a noite, tão escura que absorveu o brilho à sua volta, puxando a luz das velas para sua grande massa. Ondas de sombras ondulavam em torno dele. E no fundo da escuridão, dois olhos amarelos a encaravam. A voz ecoou pela igreja, uma voz que somente ela podia ouvir. —Corra, Irene. — Dizia. A escuridão passou pelas palavras, uma escuridão que fez o coração de Irene doer e sua respiração se transformar em suspiros frenéticos. —Eles vêm buscá-la. — Alertou o espírito. Ela se endireitou abruptamente, os calcanhares estalando no chão. O som fez o pai parar no sermão e encará-la diretamente. Não foram os olhos do pai que ela viu, mas os olhos que ficaram vermelhos como o demônio atrás dele. —Sinto muito. — Ela ofegou. —Eu não estou me sentindo bem. Irene deu meia-volta e correu da igreja. Ela não inalou até sair das portas, descer as escadas e sair para a rua. Finalmente, ela ofegou com ar fresco que encheu seus pulmões com o doce aroma de magnólias. Ela estava segura aqui fora. A salvo de todas as criaturas que viviam na igreja, que se arrastavam para fora de seus túmulos, sussurrando mensagens e pensamentos que eles queriam que ela ouvisse. A salvo de seu pai e de seus olhos vermelhos como sangue. A Sra. Howard caminhou em direção a Irene, seu cabelo escuro perfeitamente enrolado em um coque que a fazia parecer particularmente estranha. Ela empurrava um carrinho azul pela rua onde seu novo bebê provavelmente estava descansando. Ela só dava um passeio com a criança quando o bebê estava dormindo. —Olá, minha querida. — A Sra. Howard deu-lhe um olhar estranho, depois olhou de volta para a igreja. —Você não deveria estar lá dentro? Sim. Mas ela não iria admitir que havia fugido da igreja como se o próprio diabo estivesse correndo atrás dela. Ela torceu as mãos no vestido amarelo pálido que sua mãe colocou nela esta manhã. Parecia horrível para ela, e Irene se odiou no espelho quando viu o reflexo. A cor a fazia parecer doentia, lançando uma névoa amarela em seu corpo. Ela estava pendurada em seu corpo magro, porque sua mãe sempre quis que ela fosse criança. A saia caia de seus quadris finos, enquanto a blusa em forma de coração ficava aberta se ela se mexesse demais. —Não estou me sentindo bem. — Ela murmurou, tentando não olhar a mulher nos olhos. Então ela viu o marido da Sra. Howard pairando atrás dela, os olhos vazios tentando vislumbrar o filho. —Oh, coitadinha. Ouvi dizer que você não estava indo bem. — Ela estendeu a mão e deu um tapinha no ombro de Irene. —Corra para casa então. Voltarei e deixarei sua mãe saber o que aconteceu. —Obrigada. — Ela sussurrou e depois correu para longe. A casa deles não estava longe da igreja. Seu pai alegava que um bom pastor nunca se afastava muito do rebanho. Era uma casa pitoresca, simples e branca, com uma grande varanda envolvente. Ela odiava isso. O edifício era como uma prisão, cheia de almas de todos os pastores que vieram antes dele. Aqueles que não receberam permissão para entrar no céu, mas tiveram a entrada negada no inferno. Eles sussurravam palavras de ódio em seus ouvidos. Dizendo que ela era uma bruxa, uma criatura que nunca deveria ter sido autorizada a permanecer em locais tão consagrados. Ofegando um soluço, ela correu para a varanda e bateu a porta com força. Não havia tempo para bater educadamente. Ela tentou abrir a boca e gritar por socorro, mas sua respiração irregular a deteve. As vozes das almas seguindo seus passos estavam atrás dela, e ela não conseguia pensar. Ela não podia ouvir nada além deles e, Deus, ela queria se afastar deles. —Me ajude. — Ela rezou enquanto tentava abrir a porta. —Por favor. Os laços de seu vestido estavam muito apertados. Ela os desembaraçou, deixando as costas do vestido escancaradas. O ar fresco inundou sua espinha. Calafrios se espalharam com o toque, e ela sabia que não era o ar, mas um fantasma passando os dedos pelas costas e lembrando que não era ninguém além deles. O toque deles. Eles queriam conversar. Eles explicavam todas as ações que fizeram para aliviar o peso de suas almas. Ela tropeçou no quarto e caiu de joelhos diante do crucifixo de um metro e meio pendurado na parede. Apertando as mãos, ela as pressionou na testa. —Por favor — Ela sussurrou. —Eu não sei se alguém está ouvindo mais. Tudo o que posso fazer é implorar que você me ouça. Envie-me ajuda. Envie- me um sinal. O silêncio foi sua resposta. Ofegando em respirações trêmulas, ela olhou para cima e viu o sangue vazando da cruz de madeira. Dedos frios tocaram seu ombro. —Deus não está ouvindo, Irene. Tudo o que você precisa é de mim. Booker exalou um anel de fumaça, observando-o subir no ar da noite e lentamente se dissipar. Parecia adequado desde que ele estava deitado em cima de uma lápide. De alguma forma, a fumaça parecia um fantasma no ar da tarde. Ele esticou um braço atrás da cabeça e passou a mão pelos cabelos escuros e lisos. Os lados raspados de sua cabeça rasparam sua palma, enquanto o gel na parte superior manchava seus dedos. Ele usava a camisa desabotoada, de modo que o ar frio da noite acariciava os músculos do peito expostos. Claro, se alguém os tivesse visto, não teria notado os músculos ou mesmo o corpo dele. Tudo o que eles teriam visto eram as tatuagens. Centenas de tatuagens, tantas que ele quase não tinha um pedaço de pele em branco além do rosto. Cada uma com seu próprio significado, seu próprio momento de dor. Ele contava uma história sobre cada tatuagem, exceto aquelas sobre seu coração. Elas eram mais do que um pouco pessoais, sua própria história ganhando vida. Booker exalou outro anel de fumaça e sentiu uma das tatuagens mudar. A cobra em volta do pescoço, aquela que ele tatuou para esconder as correntes debaixo dela, deslizou contra sua pele. Ele podia vê-la se movendo como se uma cobra de verdade estivesse envolvida a seu redor. De certa forma, era uma cobra de verdade. Os poderes de Booker, suas habilidades que lhe permitiam estar na tropa de circo, estavam diretamente conectados às suas tatuagens. Não que ele esteja se apresentando muito ultimamente. Ele não estava realmente disposto a isso. Com toda a mudança do velho circo, aquele em que ele era claramente apenas um macaco enjaulado, ele não sabia como se sentir sobre esse novo lar. A cobra se afastou de sua pele, tomando forma e se esticando até pairar sobre ele, pronta para atacar. —Chega — Ele murmurou, soprando fumaça na cara. —Volte para baixo. Embora a cobra claramente não quisesse, ela soltou outro longo suspiro e se recostou em sua pele. No momento em que eles tinham um pouco de liberdade, todas as suas tatuagens queriam se revoltar. Elas tentaram se afastar dele até que pudessem desaparecer para sempre. Mas elas não eram criaturas reais criadas por Deus. Eram invenções da imaginação, criadas por uma mão firme e tinta que dava fôlego a algo como eles. Booker havia perdido algumas antes. Elas se afastaram dele e decolaram, causando caos aonde quer que fossem. Balançando a cabeça, ele largou o cigarro e esmagou-o contra a lápide com a palma da mão. A picada de calor e o aroma acre da pele ardente acalmaram sua mente. Logo ele teria que voltar ao circo, a casa que havia sido transformada em casa para eles. Quem pensaria que um monte de desajustados acabariam morando em uma antiga casa de fazenda no sul? Esse tipo de casa deveria ter abrigado senhoras e senhores do mundo antigo, aqueles que queriam que os escravos fizessem todo o trabalho por eles. Agora? Era um show de horrores. O tipo real. Booker passou as pernas pela borda da lápide e abotoou a camisa. Mesmo seus amigos mais próximos, os que ele quase considerava família, não conseguiam ver suas tatuagens. Nem todos eles, pelo menos. Eles sabiam demais. Ele passou a mão sobre o coração, sobre a mais peculiar de suas tatuagens. A que ele tentava desesperadamente não olhar. Com o último botão fechado, ele tocou um dedo em cada um de seus pulsos. As correntes estavam pesadas hoje à noite, muito mais do que costumavam ser. Às vezes, isso significava que as coisas iam mudar. E ele geralmente não gostava do que iria acontecer. Outras vezes, era apenas um lembrete de que sua alma estava condenada por um longo tempo. —Ei Booker? — A chamada veio dos campos salpicados de orvalho. — Você está aqui fora? Ele se recostou na lápide e deu um tapinha no nome. Pinkerton. —Obrigado pela companhia, velho amigo. Parece que há mais por vir. O garoto afastou galhos de salgueiro pelo campo. Ele veio do rio, mas Booker não esperava nada menos do garoto. Daniel crescera na água, fazia parte dele como um peixe. O garoto tinha que passar pelo menos um pouco de tempo, considerando que tinha brânquias. Ele provavelmente deveria parar de se referir a ele como criança. Daniel já tinha vinte anos. Booker havia matado cinco homens nessa idade. Ele sabia que vinte era a idade em que a maioria dos meninos já era homem. Mas ele estava lá quando encontraram Daniel. Quando eles pegaram seu corpinho nas margens de um rio, tocando as brânquias ali, ofegantes em busca de oxigênio. Foi Booker quem o colocou debaixo da superfície. Os outros pensaram que ele estava tirando o garoto de sua miséria. Em vez disso, ele salvou sua vida. Encharcado, molhado e magro, Daniel atravessou o campo para o cemitério. —É assustador você sair aqui. Você sabe disso, certo? Booker olhou em volta. Era um cemitério antigo da família. Havia uma cerca de ferro uma vez, mas agora apenas alguns raios ainda estavam de pé, o resto estava deitado no chão onde o musgo as devorava. As pedras ainda estavam firmes, porém, apenas algumas tombadas. Os nomes foram gravados aqui e ali, mas ele não esperava encontrar seu próprio nome entre os outros. Pinkerton. Esse nome o assombraria até o fim dos tempos. Ninguém além do diretor sabia o que Pinkerton queria dizer. Os outros eram alegremente ignorantes de que o nome pertencia a uma família de assassinos. Eles não sabiam que ele tinha vindo de um lugar onde matou tantos homens aos quinze anos que se sentia à vontade com a sensação de sangue nas palmas das mãos. Passando a mão pela boca, ele balançou a cabeça e forçou a atenção de volta ao garoto. —Não. —Bem, é estranho. —Você não deve dizer nada. Clara teria seu ouvido para isso. — Não que ele pudesse dizer muito. Ele amaldiçoava pior do que todos eles. Daniel parou em frente à primeira lápide, e a membrana sob as pálpebras varreu os grandes orbes. Ele era cheio de olhos, esse garoto, com um rosto muito magro. Ele deveria estar comendo mais, mas não podia comer o que o resto deles comia, já que seu corpo não gostava muito de carne e vegetais. Mas ele deveria estar comendo alguma coisa. Booker levantou uma sobrancelha e esperou o garoto responder da maneira que ele sabia que estava por vir. —Você amaldiçoa o tempo todo. Eu aprendi com os melhores, chefe. Todos o chamavam de “chefe”, mesmo que ele não fosse. Ele não estava nem perto do diretor do ringue, apenas outra aberração no circo. Booker mudou para cobrir o nome da lápide em que estava sentado. — Bem, isso é porque eu sou irlandês e todos nós amaldiçoamos como marinheiros. Não significa que você pode. —Olha, posso apenas falar com você? Ele provavelmente deveria deixar o garoto falar. Só um pouco, pelo menos, para Daniel não acordar Booker no meio da noite. O garoto já havia feito isso muitas vezes para Booker contar. Às vezes, ele não se importava. Às vezes era bom que o garoto pensasse que ele era o único que poderia ajudá-lo a pensar através de seus pensamentos. Mas Daniel era mais velho agora. Ele era um homem, embora Booker nunca quis admitir isso. O que significava que as perguntas estavam ficando cada vez mais difíceis de responder. Soltando um suspiro, Booker acenou com a mão no ar. —Tudo bem, garoto. E aí? Daniel passou a mão sobre a cabeça, a segunda pálpebra tremendo rapidamente até que finalmente parou. —Eu acho que matei um homem. Bem, isso era diferente. Booker não ouvia isso há algum tempo, embora certamente mandasse lembranças dançando em sua mente. Ele disse isso uma vez antes para seu próprio pai. Não tinha sido com tanta tristeza em sua voz ou medo no conjunto de seus ombros. Mas ele disse isso. —Por que você pensa isso? —Eu estava no show hoje à noite, como sempre. Eu saí da água como deveria quando um grupo desce para assistir à apresentação e depois... — Daniel engoliu em seco. —Bem, ele estava um pouco mais perto da água do que o resto deles, então talvez ele achasse que eu estava tentando agarrá-lo. Eu não sei. Ele segurou seu peito e recuou. Ele não estava respirando, Booker. Ele ficou roxo e feio. Frank chamou o socorro, mas eles disseram que não era provável que ele sobrevivesse. Não ria, disse Booker a si mesmo. O garoto definitivamente matou alguém, dando-lhe um ataque cardíaco, mas isso foi culpa do próprio homem. Se ele não conseguia lidar com a realidade das criaturas, não deveria ir ao renomado Cirque de la Lune. Ele se levantou da lápide, colocou as mãos nos bolsos e depois caminhou em direção ao garoto. —Daniel, há uma razão pela qual você está assumindo a culpa por isso? —Porque eu o matei. Eu poderia ter feito algo diferente. Eu não tinha que pular da água assim. Eu poderia ter me sentado em uma pedra ou esperado por eles no caminho, como às vezes faço... —Chega. — Booker estendeu a mão e bateu a mão no ombro do garoto. Ele podia ver onde o garoto poderia ter matado o homem. Daniel não deveria estar se apresentando hoje à noite. Eles geralmente carregavam um tanque grande para ele ficar de pé. Mas isso significava que ele estava livre para voltar ao rio sujo onde estava mais confortável. Algumas pessoas se afastavam da tenda conectadas à sua fazenda, e é aí que entram em apuros. Ele limpou a garganta. —Garoto, sempre haverá pessoas que têm medo de nós. Tudo bem que eles tenham medo. Eles precisam saber como é de vez em quando; portanto, quando estão deitados em suas camas à noite, seguros e escondidos, sabem que não estão ao redor dos monstros reais. Quando Daniel olhou para ele com aqueles olhos grandes e luminosos, Booker se sentiu culpado por um segundo. Esse garoto não era como ele. Sua alma não estava manchada por atos sombrios ou uma história que faria a maioria das pessoas querer virar e fugir. Ele só queria uma vida normal e merecia uma. Infelizmente, essa não foi a vida que ele recebeu. Daniel era tão diferente quanto o resto das pessoas no circo, e isso significava que ele estava preso aqui. Trancado no interior de Louisiana, esperando que algum dia o mundo mudasse e os aceitasse. —Eu não quero ser um monstro, Booker. — O garoto piscou para ele. — Por que não é uma opção? Ele não tinha uma resposta para essa pergunta. Ninguém tinha. Booker sacudiu a cabeça. —Venha garoto. Você já comeu? —Ainda não voltei para casa. Não quero que todos fiquem com raiva de mim. —Por que eles ficariam bravos? — Booker voltou para casa, sabendo que Daniel seguiria atrás dele. —Porque eu matei alguém? Por que eles não ficariam bravos? Eles não eram assim. O circo era da família, e não importava o que ele havia feito. Eles ficariam ao seu lado até o fim dos tempos. Mesmo que ele não merecesse. Booker acreditava firmemente que Daniel havia conquistado a nova família que lhe fora dada. O garoto havia sido deixado na beira do rio por pessoas que não o apreciavam, isso era verdade. Mas agora ele tinha uma família que iria até os confins da Terra apenas para fazê-lo feliz. Eles não o culpariam por nada. Eles o provocavam um pouco, especialmente os homens da tropa de circo. E isso seria isso. Eles esqueceriam que isso aconteceu. Se ele fosse o tipo de pessoa que tocaria outras pessoas, Booker teria jogado o braço em volta do garoto e o dobrado ao seu lado. Ele teria esfregado a cabeça do garoto com força e lhe diria para não se preocupar com isso. Mas Booker não tocava em ninguém. Até o garoto que ele considerava um irmão mais novo. —Você já parou de se preocupar? — Ele jogou a mão por cima do ombro. — Ninguém te culpará pela morte daquele homem, Daniel. Só vou dizer uma vez: você não matou aquele homem. Seu próprio coração fez isso por ele. O espaço entre eles estava cheio com o som de grilos cantando na noite. Enquanto caminhavam pelo campo, vaga-lumes se moviam, pequenos pontos de luz piscando ao seu redor. A mãe de Booker costumava dizer que eram almas de pessoas que estavam perdidas. Aqueles vaga-lumes eram um sinal de que alguém ainda o amava. Claro, então ela morreu. Os vaga-lumes não pareciam tão grandes agora que ela se foi. Daniel caminhou pelo campo atrás dele até ficar ao lado de Booker. Ele limpou a garganta. —Você realmente acha que eu não o matei? —Eu sei que você não matou, criança. Booker sabia como era matar um homem. Ele tirou a vida deles com as próprias mãos antes. Ele conhecia a marca que deixaria uma pessoa. O jeito que ela realmente nunca saiu do lado dele, como se os fantasmas de todas as pessoas que ele matou ainda estivessem ao seu lado. As correntes ao redor de seus pulsos se apertaram, a cobra na garganta sibilando contra o pescoço. —Tudo bem. — Daniel disse calmamente. —Eu acredito em você. —Bom. Eu não minto. — Foi a única coisa boa que ele fez em sua vida. Ele pode ter uma passagem só de ida para o inferno, mas, no mínimo, ele pode olhar Deus nos olhos dos portões perolados e dizer que nunca proferiu uma mentira a vida inteira. —Eu sei que você não mente. Por isso confio em você mais do que nos outros. —Você não deve confiar em ninguém, garoto. —Tenho que confiar em alguém, Booker. Todos nós precisamos de alguém que sabemos que não vai nos jogar aos lobos. Isso soou um pouco forçado demais, como se ele estivesse falando sozinho. Daniel estava pegando muito mais do que Booker queria. O garoto estava crescendo, e isso significava que Booker teria que começar a respeitá-lo como homem. Lançando um olhar lateral para o garoto alto ao lado dele, Booker soltou um longo suspiro. Eles cresciam rápido demais. Era uma pena que Booker não pudesse ser um homem melhor para ele admirar. Se o pai dela a encontrasse vagando atrás da escada, ele a espancaria com o cinto. Irene sabia disso, mas ela ainda estava escondida. Ela queria saber o que estava acontecendo. Um homem estranho havia chegado em casa ontem à noite, o que era incomum para uma segunda-feira. Eles normalmente não tinham visitantes tão cedo na semana. Ela não o reconheceu, embora tivesse a sensação de que deveria. O terno preto e a etiqueta branca em sua garganta significavam que ele era um pastor. Assim como o pai dela. A voz do demônio que a seguiu sussurrou a noite toda que ela precisava correr. Este homem era a razão pela qual queria que ela fosse embora. Um verdadeiro demônio estava aqui para levar sua alma ao inferno com ela. Olhos amarelos a olharam do armário a noite toda, mas ela não se mexeu. Agora, ela estava apenas curiosa. O pai dela o apresentou como pastor Harris. O homem tinha uma mecha de cabelos brancos em cima da cabeça, óculos que o faziam parecer muito gentil, e um jeito que era lento e metódico. Ainda assim, havia algo mais que parecia... errado. Como se houvesse algo escondido embaixo da pele do homem, esperando para explodir. Irene queria saber o que era aquilo. Os pais dela não iam contar. Eles queriam que ela ficasse em seu quarto, orando, para garantir que não estivesse se metendo em problemas. Eles disseram que quanto mais oração ela fizesse, mais limpa seria sua alma. Não parecia certo. Se Deus tivesse criado esse lugar maravilhoso, esse mundo maravilhoso, ele não gostaria que seus filhos o explorassem? Para ver todo o bem que ele havia feito e aproveitar cada pedaço disso? Então ela se escondeu embaixo da escada quando sua mãe foi à cozinha. Ela estava preparando o jantar para o pai e o pastor Harris enquanto conversavam na sala de estar. Debaixo da escada, Irene ouvia tudo o que eles diziam. Seu pai pigarreou, caminhando em frente à porta com os olhos patinando nas sombras. Por um segundo, ela pensou que ele a viu. Mas então ele se virou e pigarreou. —Obrigado por ter vindo, pastor. —O prazer é meu. Embora, admito que fiquei um pouco surpreso quando você me chamou. —Tenho certeza que você estava. Surpreso? Não era como qualquer outra visita? Irene se inclinou para ouvir mais atentamente. O pai dela se sentou em uma cadeira ao lado do outro pastor. Ela só conseguia ver os pés na sala, as botas familiares do pai pulando. —É minha filha. —Uma garota adorável. Nunca vi ninguém com a cor dela antes. —Eu suspeito que ela possa estar possuída. O silêncio que ecoava da sala queimou seus ouvidos. Possuída? Seu pai pensou que ela tinha um demônio dentro dela? Não. Isso não estava certo. Ela já disse a ele que não tinha isso dentro dela. Ela não estava trabalhando com o diabo; ela só queria que os demônios fossem embora. O pastor Harris pigarreou. —Possuída? —Ela vê coisas mortas. Pessoas mortas, devo dizer. As almas dos que morreram, e ela afirma que uma voz a segue, dizendo-lhe para fugir. Eu não sei o que fazer. Eu oro de joelhos há meses, e o demônio ainda está aqui. Temo que esteja dentro dela neste momento. Mas não estava! Irene queria correr para o pai, gritar com ele que ela não estava possuída. Ela não sucumbiu às vozes que gritavam em seus ouvidos. Dedos finos agarraram seus ombros. A voz, a voz sussurrante que ela conhecia tão bem, disse: —Irene, você precisa fugir deste lugar. Ela não queria correr. Ela queria morar aqui com sua família, as pessoas que deveriam amá-la e acreditar nela quando ela disse que estava bem. Ela ainda era a garotinha deles! Por que eles não entendiam isso? Uma segunda mão pousou em seu outro ombro, esta carnuda e muito quente. —Irene — Sua mãe sibilou. —O que você está fazendo aqui? Irene se deixou puxar na frente do patamar onde sua mãe afagou os cabelos de Irene e alisou seu vestido amarelo. A raiva fez os olhos de sua mãe parecerem brilhar de nojo. —Bisbilhotando?— Ela perguntou. —Não foi assim que eu te criei, criança. Como você ousa? Que diabo te convenceu a se comportar assim? Não era um demônio, apenas sua própria curiosidade que quase partiu seu coração. Irene abriu a boca para responder, mas tudo o que saiu foi um soluço sufocado. As cadeiras rasparam contra o chão, e então o pai e o pastor entraram na sala de estar também. Os dois a encararam como se ela tivesse uma segunda cabeça. Seu pai com um desejo ardente de fazer o bem, às vezes à custa de outras pessoas. Mas o pastor Harris olhava para ela como um caçador olhava sua presa. —Olá, minha querida. — Disse ele, sua voz baixa. —Você está particularmente adorável esta noite. Um rosnado baixo e raivoso irrompeu atrás dela das sombras. Ela estremeceu. —Olá novamente, pastor Harris. —Seu pai estava me explicando que você tem alguns problemas que gostaria de ajudar a resolver. Talvez você possa me dizer o que está acontecendo com suas próprias palavras? Ela não queria. Não havia nada de errado com ela; ela só via coisas que outras pessoas não viam. E sim, ela queria que eles fossem embora. Ela queria ser como todo mundo. Mas isso não significava que ela estava quebrada. E isso certamente não significava que ela estava possuída. Irene pigarreou. —Eu vejo as coisas. —Coisas mortas? —Aqueles que se mudaram deste mundo, mas não estão prontas para ir para o próximo. — Ela sussurrou. —Você já viu mais alguma coisa? Algo que não é o espírito das pessoas? Sim, ela queria soluçar. Ela via coisas estranhas nos olhos de seu pai quando ficavam vermelhos como sangue. Ela via garras em vez das mãos de sua mãe, toda vez que ela apertava uma faca e olhava para o pai com ódio no olhar. Mas ela não sabia dizer nada disso. O que eles pensariam? Eles assumiram que o diabo estava falando através dela, e então o que aconteceria? Irene balançou a cabeça e permaneceu em silêncio. —Você tem certeza? — O pastor Harris se aproximou dela. —Seu pai disse que há outra voz. Uma que diz para você fazer coisas que não deseja. A mesma criatura que pairava atrás dela. Ela podia sentir o ar frio pressionado contra sua espinha. Tinha três metros de altura. Uma névoa escura que ondulava em torno dela às vezes, como uma cortina de escuridão que ela poderia puxar em torno de si mesma se ela deixasse. Olhos amarelos que combinavam com os dela muito bem. Olhos que olhavam de volta para sua alma com um entendimento que ninguém mais tinha tido. Tentação era o nome do demônio que a seguia. Tentação de fazer o que ela queria. Ser quem ela queria. Fugir deste lugar e explorar o mundo sem se importar com o mundo. Mais uma vez, Irene balançou a cabeça e olhou para o chão. —Você sabe que mentir é pecado, sim? — O pastor Harris deu outro passo à frente e tocou um dedo embaixo do queixo. —Olhe para mim, criança. Ela não queria olhar. Ela não sabia o que veria quando olhasse. Ele empurrou o queixo dela e, embora ela lutasse contra ele, o pastor acabou vencendo. —Vamos lá, Irene. Não há nada a temer. Quão pouco ele entendia a aflição dela. Irene deixou as pálpebras se abrirem e olhou para o pastor Harris. Ele era um homem gentil. Seus olhos estavam cheios da esperança de que ele pudesse ajudá-la. Mas ela não conseguiu olhar nos olhos dele por muito tempo, porque havia uma mulher andando pelo corredor em direção a eles. Irene conhecia todas as almas que permaneciam em sua casa. Elas eram algumas das pessoas que moravam na casa antes deles. Outras a seguiam de volta da igreja após o funeral, implorando que ela os ajudasse. A mulher que caminhava na direção deles não estava familiarizada das maneiras mais perigosas. A cabeça dela descansava no ombro, o pescoço quebrado e a pele distorcida. Manchas roxas manchavam seu rosto, e sua boca se abriu quando ela tentou dizer algo a Irene. Tudo o que saiu de sua boca foi um chiado baixo. O pastor Harris mudou seu aperto no rosto, beliscando o queixo. —O que é isso? O que você vê? Irene balançou a cabeça, tentando fechar os olhos apenas para que ele se apertasse mais. —O que você vê? Seu demônio pessoal se inclinou para frente e sussurrou em seu ouvido. —Essa foi a última garota que ele tentou curar. Ele a exorcizou várias vezes até finalmente tentar espremer o demônio dela. Esta foi a primeira pessoa que ele matou. Mas ele a assassinou a sangue frio e depois tentou culpar um demônio por isso. Uma criatura do inferno quando eram apenas sua própria ganância e mãos escorregadias e manchadas de suor. Ela ofegou e encontrou o olhar do pastor. —Você a matou. Os olhos dele se arregalaram. —O que? —Você a matou. — Ela repetiu. —Você quebrou o pescoço dela e depois a deixou lá sozinha para morrer. O fantasma se aproximou, depois estendeu as mãos e agarrou o casaco do pastor. Ela se agarrou a ele, segurando o homem que a matara e olhando nos olhos de Irene. A pele pálida dela combinava com a de Irene quase perfeitamente. Ela poderia ter sido bonita na vida, mas na morte ela era um monstro. O pastor a soltou, tropeçando para trás e girando como se ele pudesse sentir a alma. Ela o viu dar um tapinha. Ele não seria capaz de se livrar do sentimento. Os mortos tocavam as pessoas apenas quando queriam que sua presença fosse sentida, e essa mulher tinha planos para ele. Ele voltou-se para ela com um olhar. —Que demônio sussurra em seu ouvido? —Eu não sei. —Diga. Ela balançou a cabeça. —Eu não sei. A expressão de raiva do pastor se suavizou em algo parecido com bondade, mas ela sabia que era uma mentira. Ele não queria ajudá-la. Na verdade não. Ele queria limpar o pecado de suas próprias mãos, pensando que se ele salvasse outra mulher, substituiria a que ele matara. Ela tremeu quando ele segurou seu queixo novamente. —Eu vou ajudá-la, criança. — Disse ele. —Agora suba as escadas e ore enquanto eu falo com sua família. Irene queria gritar que não precisava da ajuda dele. Ela não queria que ele a tocasse, fizesse outra coisa senão sair de casa para poder chorar nos braços de sua mãe. Ela queria que seus pais a ajudassem, não esse homem que a fazia tremer de medo e cujo fantasma o queria morto muito mais do que qualquer outro espírito que ela já conheceu. Nenhuma das palavras saiu de seus lábios. Em vez disso, assentiu com cuidado e subiu as escadas para o quarto. —Irene? — A voz de sua mãe flutuou pelas escadas. —Sim, mãe? — Por favor, ela pensou, por favor, diga a eles que isso não iria acontecer. Seja uma boa mãe pela primeira vez. —Coloque o vestido branco, querida. Deus quer vê-la de branco. Naquele momento, Irene percebeu que ninguém iria ajudá-la. Ela teria que passar por esse exorcismo, mesmo sabendo que não havia nada dentro dela. Ela não era uma pessoa má. Ela não era atormentada por maus pensamentos. Ela estava apenas atormentada por vozes que queriam que ela fugisse. Suas pernas tremiam enquanto ela caminhava para o quarto e depois gentilmente fechou a porta atrás dela. Pressionando a testa contra a madeira, ela deixou lágrimas caírem pelo rosto. O que ela ia fazer? —Irene — A voz gutural chamou. —Irene, é hora de correr. —Para onde eu iria? — Ela perguntou, as palavras cheias de desespero. —Não há outro lugar para eu ir. —Confie em mim para guiá-la. —Eu não posso confiar em você. Você é um demônio. —Eu sou? — A massa escura de sombras congelou suas costas novamente, a mão fina tocando seu ombro e afastando-a da porta. —Olhe para mim, Irene. Você vê um demônio nesses olhos? Ela olhou para o olhar amarelo e sabia que não era um demônio. Ela sempre soube que era mais do que isso, um reflexo de si mesma ou talvez de alguém de seu passado. Não havia realmente uma explicação para o que essa criatura era, pelo menos ainda não. —Quem é você? — Foi a primeira vez que ela fez uma pergunta à voz. —Um amigo. — Sussurrou em resposta. —Um ancestral e alguém que quer vê-la bem. Agora, você deve correr. —Não tenho para onde fugir. —Confie em mim, Irene. Vou levá-la a algum lugar onde você estará segura. Ela poderia confiar na criatura? Ela não achava que a maioria dos espíritos fosse prejudicial. Alguns deles queriam vingança, era verdade. Mas ela nunca machucou ninguém em sua vida. Não havia razão para esse espírito querer machucá-la, e se ela fosse honesta consigo mesma, sempre quis que ela fizesse coisas por si mesma. Para cuidar de si mesma e ignorar o que todos os outros pediam dela. Ela soltou um longo suspiro. —O que eles vão fazer comigo? —Exorcismos são diferentes para todos. Depende de quem o treinou e o quanto ele realmente sabe. Muitos padres realizarão exorcismos sem o conhecimento ou o treinamento. —Mas o que ele faz? Os olhos amarelos piscaram nas sombras. —Ele fará o que fez a outra. Te afogando em água benta. Com seus pulmões sufocando. Trazendo você até a beira da morte antes que ele considere que o demônio se foi. Ele fará você mentir para se afastar e depois mentirá novamente quando ele disser que não acredita em você. Irene não poderia sobreviver a isso. Sua mãe havia lhe dado um filho por toda a vida, mesmo com vinte anos. Ela já deveria ter se casado agora. Sua mãe não queria que ela crescesse, e a ideia de ter sua filha nos braços de um homem era contra o que “Deus” desejaria. Agora ela se perguntava se talvez não fosse Deus quem controlava sua vida, mas seus pais. Irene assentiu. —Tudo certo. O que preciso levar? —Não há tempo. —Não posso sair sem tomar nada! Eu não tenho nada para o meu nome já. Posso pegar algumas roupas, talvez até tirar algo da cozinha. A massa escura se esticou mais alto até tocar o teto. —Irene, eles estão vindo. Ela podia ouvir os passos nas escadas agora, os passos pesados dos pés de seu pai e os passos mais silenciosos do pastor que queria sufocá-la. O homem que a arrependeria de ter contado aos pais as coisas que viu. O espírito da mulher se materializou através da porta. A cabeça dela ainda no ângulo doloroso. Ela olhou para Irene e abriu a boca mais uma vez. Um chiado ofegante entrou em erupção até que tudo o que saiu foi a palavra “Corra”. Ela não perdeu mais tempo. Irene correu para a janela e a abriu. Ela se inclinou, olhando para o chão. Era um longo caminho. Uma perna quebrada só resultaria em ela ser trazida de volta para cá. Mas que escolha ela tinha? Ela não conseguia sair da casa. Ela era pequena demais e, com dois homens adultos forçando-a a ser exorcizada, ela não tinha chance. Irene olhou para a porta por um segundo antes de balançar a perna por cima da borda. A outra seguiu, e então ela se deixou escorregar pela lateral da casa. Ela caiu com força nos tornozelos, o suficiente para fazê-la choramingar de dor por um segundo antes de bater a mão na boca. Ninguém podia ouvi-la. Não importava que ela sentisse como se espinhos tivessem atravessado suas pernas. Não importava que ela mal conseguisse romper a dor, nem ver através das explosões de cores que brilhavam em seu olhar. Irene tinha que correr. Ela tinha que sair da cidade e fugir o mais longe possível deles. —Por aqui. — A voz sussurrou por trás da casa. —Rapidamente, Irene! Ela não pensou. Se ela iria confiar no espírito que a havia assombrado por tanto tempo quanto ela se lembrava, então ela também poderia confiar completamente nele. Ela se levantou, ignorando a dor agonizante, e mancou atrás da casa deles, onde nada além de bosques e todas as criaturas terríveis da noite a aguardavam. Serpentes venenosas. Aranhas que poderiam mordê-la e incapacitá-la. Sem mencionar a ameaça de jacarés. —Mais rápido, Irene! Ela mergulhou nos arbustos. Ramos bateram em seu rosto, lama sugou seus pés no chão, mas ela não parou de correr. Ela não conseguia. Um grito surgiu de sua casa, e ela sabia sem olhar que seu pai estava debruçado na janela do quarto. Ele podia vê-la correndo na floresta se ele olhasse o suficientemente. O vestido amarelo era brilhante como um farol. —Irene! — Ele gritou. E suas palavras foram a ameaça que ela estava esperando, o motivo de nunca se virar e nunca voltar para casa. Ela conhecia a raiva naquela voz. Ela sabia que, se voltasse para aquela casa, nunca a deixaria. Correr era sua única escolha, e ela o faria com prazer. Não importava que galhos arranhassem suas bochechas e braços. Ela podia ignorar a dor nas esperanças que o espírito sabia para onde estava indo. Depois do que pareceram horas, ela diminuiu a velocidade. Seus pulmões doíam, e ela podia sentir o gosto de sangue na língua. Seus braços e rosto estavam tão arranhados que ela podia sentir os pingos de sangue escorrendo por sua pele. E ela estava cansada. Tão cansada que ela mal conseguia pensar. —Onde você está me levando? — Ela sussurrou. —Em algum lugar eles nunca encontrarão você. Só um pouco mais, Irene. Ela estendeu a mão para afastar um galho do caminho, apenas para sibilar nela no segundo em que o tocou. Soltando um grito sufocado, ela saltou para fora do caminho quando algo caiu dos galhos. O musgo caiu em cima dela e, de repente, ela não sabia onde estava. —Eu quero descansar. — Ela choramingou. —Por favor. Apenas alguns momentos. —Ainda não. —Eu preciso. —Olhe para cima, Irene. Veja sua salvação. Está tão perto agora. Ela olhou para cima e viu uma luz no horizonte, uma casa à distância, exatamente como ela esperava. Um lugar para descansar sua cabeça cansada e pessoas que podiam ajudá-la. Se o espírito realmente a estivesse levando para algum lugar seguro. Booker recostou-se na cadeira, apoiando os pés na mesa de café. A casa era velha e tudo rangia quando ele se mexia. As tábuas do piso até mudaram quando ele atravessava. Tudo veio com o território, ele supôs. Pelo menos as cadeiras eram confortáveis, apesar de serem um padrão floral berrante que fazia seus olhos doerem. O piso de madeira era escuro, levando a uma lareira de pedra que já vira dias melhores. Partes da pedra haviam desmoronado e ninguém havia conseguido substituí-las ainda. Pelo menos não havia mais teias de aranha nos tetos de estanho. O diretor do circo, Frank Fairwell, havia conseguido a casa da tia falecida, que deixara bem claro que ela queria a casa nas mãos dele. Ela sempre acreditou que ele faria algo de bom em sua vida, mesmo que o resto da família Fairwell não o fizesse. A vida pode ser engraçada às vezes. Booker inclinou a cerveja para trás e tomou um gole profundo. Ele duvidava que a velha quisesse que a casa dela se transformasse em lar dos loucos do mundo, mas ali estavam eles. Ele colocou o garoto na cama. Daniel descobriria sua própria vida se ele deixasse de lado tanta culpa desnecessária. Ele não matou o homem. Porra, quem quer que tenha dito isso ao garoto... embora ele duvidasse que eles voltariam ao circo tão cedo. —O garoto está dormindo? Booker inclinou a cabeça para trás, olhando para a porta onde Frank estava. Vestido com um terno caro, com o cabelo perfeitamente cortado, o homem parecia rico e famoso. Maxilar quadrado, nariz reto, olhos azuis vibrantes que enxergavam demais... ele era um exemplo perfeito de “bonito” em todas as definições da palavra. —Sim. — Booker tomou outro gole de cerveja na mão. —Obrigado por ajudá-lo. Tentamos conversar com ele, mas... você sabe como ele é. — Frank foi até a outra cadeira em frente à lareira e sentou-se. — Ele aceitou bem? —Tão bem quanto se poderia esperar. Ele acha que matou o homem. —Eu ouvi. Também ouvi dizer que o homem tinha um coração fraco e não deveria estar em um show de horrores. Booker observou como Frank esfregava a testa onde uma dor de cabeça estava sem dúvida batendo contra seu crânio. O homem era um bom chefe, tinha vindo de uma família com muito dinheiro e tinha dado a todos uma chance com este lugar. Mas, às vezes, Booker se perguntava se Frank havia realmente considerado todo o trabalho que seria. Os malucos do Cirque de la Lune não eram pessoas normais. Eles não se apresentavam com fumaça e espelhos, mas eram pessoas reais que podiam fazer coisas que ninguém mais podia. Eles eram criaturas notáveis, mágicas e míticas. Isso tinha que ser difícil para os mundanos. Balançando a cabeça, Booker apontou com a garrafa para o pacote de seis que ele trouxe com ele. —Pode ser uma noite para isso. —Eu não posso. Evelyn teria minha cabeça por isso. Frank acabara com um de seus artistas, uma cuspidora de fogo chamada Evelyn que sempre deixava bem claro que ela era a mãe do grupo. Ela era como a irmã de Booker, apesar de guardar segredos dele. Ele incomodou Frank com o relacionamento deles, mas Booker ficou mais do que um pouco feliz ao ver alguém cuidando dela. Já era hora de alguém a ver valer a pena. Alguns anos atrás, Evelyn ganhava dinheiro vendendo seu corpo para o circo. Antes que Frank tivesse comprado o lugar. E embora ela não quisesse que mais ninguém soubesse, Booker tinha visto. Quem não gostaria de contratá-la? Com cabelos vermelhos flamejantes até na cintura e o rosto de uma sedutora, Evelyn era perfeita. Perfeita demais, às vezes. Um trovão sacudiu a casa, sacudindo as paredes e fazendo as luzes dançarem. Booker nem percebeu a tempestade caindo. Ele estreitou os olhos e olhou para o teto. Os artistas de circo eram como uma única unidade. Todos eles sabiam quando os outros estavam chateados ou quando alguém precisava de uma ajuda. Eles também tendiam a se mover em um grupo gigante, todos caminhando entre si porque havia segurança nos números. Ele ficaria triste se pensasse muito sobre isso, então Booker tentou não pensar nos outros membros. Eles não tinham a educação que ele teve. Eles não sabiam se proteger. Eles não mataram. O som de passos na escada anunciava o resto da tropa. Eles rivalizavam com o trovão no barulho que faziam. O riso flutuou junto com eles como outro artista em si. Minúsculo desceu primeiro, o homem maior que a vida e pelo menos três metros de altura. Havia crescido recentemente um bigode preto que parecia ridículo no rosto dele. Um pouco enrolado demais, um pouco longo demais, era cômico como o resto de seu corpo gigante. Tom Thumb correu atrás dele, cachos vermelhos voando, pernas minúsculas de alguma forma acompanhando o grandalhão. O homenzinho residente deles tinha apenas um metro e meio de altura em um bom dia, e Booker ainda não estava convencido de que não usava blocos nos sapatos. Ele até colocou os cabelos mais altos apenas para se dar alguns centímetros a mais. Clara, a dama barbada, abraçou Daniel, o homem-peixe deles. Clara era uma mulher maior que a maioria. O tamanho de sua cintura combinada com a barba a tornava uma dama impressionante, mesmo antes que as pessoas notassem que sua barba loira era preênsil e se movia sozinha. Evelyn seguiu atrás deles com um sorriso no rosto e balançando a cabeça. Sua beleza iluminava a sala como uma chama, quase como se seu cabelo estivesse realmente pegando fogo. Aparentemente, alguém tinha acordado todos para arrastá-los até a sala onde Frank e Booker esperavam. Ele balançou a cabeça e deu outro longo gole na cerveja. Ele precisaria mais do que o pacote de seis que trouxera para a sala de estar com ele. Tom Thumb imediatamente parou pelo álcool. —Você está bebendo isso? Booker levantou uma sobrancelha. —Acho que não. Obrigado parceiro. Ele teria estrangulado o homem menor se não soubesse o quão bom Tom era como um lutador. O homem não se importava de morder, e Booker sentiu esses dentes desde o início. Ele não queria senti-los novamente tão cedo. Evelyn sentou-se no braço da cadeira de Frank e sorriu para ele. —Sobre o que estamos conversando? E era isso. Todos os artistas de circo se sentaram nos sofás, no chão, na beira da lareira. Eles encheram a sala como uma família podia, engolindo todas as sombras com o som de sua alegria e amor. Ele não sabia como eles faziam isso. Depois de todos esses anos, ainda o assustava a facilidade com que podiam transformar a desgraça e a tristeza em algo belo e maravilhoso. Booker não havia crescido em um lugar como este. Seu pai gritava com uma voz estridente que poderia silenciar os céus. A mãe dele gritava, com frequência e muito alto. Mas seus irmãos eram silenciosos pequenos espectros, vagando pela casa com uma expressão perdida no rosto. Às vezes, ele acordava com pesadelos assolando sua mente. Às vezes, ele ainda sentia as mãos em volta do pescoço, segurando-o enquanto a dor da pistola de tatuagem agitava seu corpo. Quando ele acordou, era apenas a cobra apertando sua garganta, segurando as correntes para que ele nunca estivesse livre delas. Outro trovão ecoou pela casa. Booker olhou para fora, esperando o próximo relâmpago. Ele sempre amou tempestades. Havia algo poderoso sobre elas. Algo que parecia que o mundo estava tão irritado quanto ele. Após três batimentos cardíacos, o raio atingiu. Iluminou o quintal com perfeita e repentina clareza. A luz prateada se estendia pela grama, afiando as bordas das folhas em lâminas e tocando o vestido encharcado de uma mulher parada entre as árvores. Ela olhou para ele com olhos assombrados e depois desapareceu de volta na escuridão. Booker inclinou a cabeça para o lado. Ele realmente tinha acabado de ver alguém? Não era possível. O quintal levava à pior parte da cidade, com o cemitério à esquerda e o pântano à direita. Ninguém seria louco o suficiente para viajar do pântano. E eles não poderiam ter contornado a casa. Eles tinham portões na frente que impediam a entrada de estranhos. Ele não queria que os outros soubessem que alguém poderia estar lá fora. Eles imediatamente se voltariam para o medo, preocupados que alguém estivesse vindo para encarar os malucos. As pessoas já haviam feito o suficiente em sua vida para desconfiar das pessoas que vinham para casa. Um raio atingiu ao mesmo tempo que outro estrondo de trovão que balançou através da casa. Desta vez, ninguém estava entre as árvores. Booker permitiu que seus músculos relaxassem por um segundo. Ele estava imaginando coisas. Ninguém estava lá fora parecendo algo daquelas histórias de horror que Clara gostava tanto. Mas e se alguém estivesse realmente lá fora? Lentamente, ele se levantou e esticou as costas. Não há necessidade de fazer os outros se perguntarem o que ele estava fazendo. —Booker? — Perguntou Evelyn, sua voz rouca questionando. —Só vou lá fora fumar um cigarro. —Neste clima? —Não tenho medo da chuva. Ele só queria verificar e se certificar de que não havia nenhum estranho prestes a estragar a noite. Claro, já era tarde. E todos eles deveriam estar dormindo, então estavam preparados para o show amanhã. O tempo para a família parecia ser mais importante que o sono, no entanto. Eles raramente tinham momentos como este. Ele não estava disposto a deixar ninguém estragá-lo. Booker já havia começado a andar em direção a sala de estar quando um baque ecoou contra as portas duplas. A aldrava sempre lhe parecera assombrada. Parecia ossos quebrando no chão, o barulho de costelas enquanto um exército de esqueletos se arrastava para dentro de casa. Ele se encolheu, embora tivesse vergonha de admitir. Evelyn franziu a testa e olhou para a frente da casa. —Quem estaria aqui a essa hora da noite? —Eu vou. — Frank deu um tapinha no quadril dela e se moveu para ficar de pé. —Eu irei. — Rosnou Booker. —Não, Booker, é minha casa. Vou atender a maldita porta. Por alguma razão, tudo nele queria proteger as pessoas desta casa da pessoa na porta. Como se um fantasma estivesse prestes a passar por aquelas portas e estragar tudo o que eles construíram. Seus músculos travaram, e ele olhou para a porta enquanto Frank caminhava para a frente. Booker prendeu a respiração quando Frank colocou a mão na maçaneta da porta e girou. Mas foi seu coração que parou de bater no momento em que uma mulher foi revelada em pé na varanda do outro lado. Encharcada e manchada de sujeira e sangue, ela respirava pesadamente. Seus cabelos brancos estavam grudados no corpo, o vestido amarelo que ela usava já estava arruinado além do reconhecimento. Olhos amarelos encararam Frank com medo enquanto ela tremia. —Sinto muito impor. — Disse ela, com a voz em um sussurro. —Mas preciso da sua ajuda. A casa inteira ficou em silêncio em choque. Aquela criatura minúscula e bagunçada havia conseguido silenciar um circo inteiro de malucos que nunca haviam estado em silêncio antes. Booker cerrou os punhos, tomado por um desejo estranho de pegá-la e escondê-la. Colocá-la em sua própria cama e ficar na porta para que ninguém mais interrompesse seu descanso. A cura dela. E caramba, ela precisava se curar. Havia um arranhão na bochecha, outro corte longo no pescoço e os braços estavam salpicados de sangue. Os calafrios que percorriam seu corpo falavam de uma longa jornada no frio e de uma mulher que precisava de sua ajuda. A cobra em seu pescoço se apertou. Pior, a tatuagem escondida em seu peito, a que ele mais tinha pavor, começou a se mover. Ela deslizou, deslizando contra seu peito e acordando lentamente quando essa era a última coisa que ele já desejava. Não podia acordar. Agora não. Ela derreteu de volta nas sombras quando o medo real e verdadeiro fez seu peito doer. Essa mulher, quem quer que fosse, representava mais perigo para ele do que todo o clã Pinkerton juntos. Clara foi a primeira a se mexer. A dama barbada, avançando a passos largos enquanto corria em direção à criança que precisava dela. —Pobrezinha! Olhe para você, tremendo na varanda a essa hora da noite. Você não deveria estar do lado de fora em uma tempestade! Para seu crédito, a garota estranha não piscou com a barba no rosto de Clara. Ela simplesmente se deixou levar para a casa sob o braço grosso da dama barbada. —Eu não comecei em uma tempestade. —Bem, você sabe como elas podem aparecer quando você menos espera. Entre na sala, querida. Há um fogo e um cobertor com seu nome neles. Booker ficou longe da tropa de artistas de circo que se mexeram para acomodar a recém-chegada. Eles imediatamente se mexeram como se ela fosse uma deles. Ele nunca os viu agir assim. Talvez fosse porque ela era pequena, como uma estatueta de vidro que não queriam quebrar. Ele não confiava nisso. Ninguém era tão frágil e ninguém era algo para vestir e admirar. As pessoas eram mais profundas que isso. Elas tinham seus próprios problemas, seus próprios defeitos. Esta estava tão bagunçada quanto o resto deles, ele tinha certeza disso. Clara a colocou no tapete em frente à lareira e colocou um cobertor xadrez sobre os ombros. —Você quer um pouco de chá, amor? A mulher assentiu. Ele se perguntou se ela estava completamente entorpecida. Ela realmente não falava muito, apenas assentia e olhava para eles com aqueles olhos grandes e não naturais. Com os braços cruzados sobre o peito, Booker observou os procedimentos. Ele esperou para ver o que ela faria, o que ela diria. Tom Thumb correu para a cozinha para pegar seu chá, depois correu tão rapidamente com uma xícara na mão. Ele estava tremendo quando entregou a ela? Talvez um pouco, mas ela não o achou estranho. Talvez seus olhos se arregalassem, mas, em geral, ela o encarava como se estivesse ouvindo alguém falar. A cabeça dela também inclinou para o lado? Como se ela estivesse fazendo uma pergunta a outra pessoa? Frank recostou-se na cadeira e inclinou-se para a frente nos braços. — Parece que você teve uma noite difícil. A mulher assentiu. —Qual o seu nome? Ela enrolou os dedos trêmulos ao redor da xícara de chá. —Irene. —Prazer em conhecê-la, Irene. Importa-se de nos dizer por que você acabou de chegar aqui? A mulher, Irene, olhou para a xícara e começou a tremer ainda mais. Um pouco do chá fervente derramou sobre a borda e sobre os dedos. Ela não pareceu notar ou reagir de forma alguma. —Frank — Clara murmurou. —A garota está aterrorizada. Talvez devêssemos lhe dar um pouco de tempo. Irene aparentemente tinha ideias diferentes. Ela balançou a cabeça com firmeza e olhou para o olhar de Frank. —Quem são vocês? —Nós somos os artistas do Cirque de la Lune. —Isso é um circo? — Pela primeira vez, seus olhos pareciam registrar as criaturas que estavam ao seu redor. Ela olhou para a senhora barbada e o gigante que estava atrás dela. Ela viu os olhos de Daniel se moverem da maneira que apenas um peixe podia. Até Tom Thumb, que lhe entregou a xícara de chá, deu um passo para trás enquanto ela o encarava abertamente. — Ah, eu vejo. Foi a primeira vez que Booker viu Frank sem palavras. Ele pigarreou, olhou para Evelyn em busca de apoio e depois deu de ombros. —Você já ouviu falar de nós? —Não. —Ah. — Ele limpou a garganta. —Bem. Bem-vinda a casa. Ela arregalou os olhos, como se assustada com algo que alguém tinha dito. Mas isso não estava certo. Ninguém disse nada de surpreendente. Booker não tinha certeza do que era essa mulher, mas ela não era normal. Isso com certeza. —Posso ficar aqui? — Ela perguntou. —Eu sei que é pedir muito. Minha família estará me procurando, e claramente o lar não é um lugar que eu gostaria de estar. A boca de Frank se abriu antes de fechá-la e engolir em seco. —Receio que não estejamos no negócio do santuário. Se você tem uma atuação, certamente podemos falar disso mais tarde. No entanto, só posso lhe oferecer um lugar quente para dormir durante a noite. Depois disso, você terá que encontrar o seu próprio caminho. A expressão caída no rosto era quase demais. As unhas de Booker cravaram as palmas das mãos. Havia uma história aqui. Ele só via aquele olhar no rosto de uma mulher algumas vezes, e nunca era por uma boa razão. Ela se machucou. E isso partiu seu maldito coração. Booker saiu das sombras e entrou na luz da sala. Todo mundo parou de falar no minuto em que ele apareceu. Eles não esperavam que ele se envolvesse. Ele geralmente ficava longe de tantas pessoas quanto podia. Ninguém poderia culpá-lo. Com as tatuagens cobrindo seu corpo da cabeça aos pés, até as correntes em seu rosto, ele parecia uma criatura fora de um pesadelo. A mulher olhou para ele e seus olhos se arregalaram de medo. Bom. Ela deveria ter medo dele. Era ele quem segurava a chave do destino dela nas mãos. —Eu cuidarei ela. — Disse ele. Essas palavras eram sagradas entre os artistas de circo. Isso não significava apenas que ele iria assumir a responsabilidade por ela, mas que ele a faria parte de seu ato. Até as sobrancelhas de Frank franziram. —Booker. —Eu disse que cuidaria ela. Um arrepio viajou dos ombros de Irene até os quadris. Bom. Se ela não tivesse medo antes, definitivamente sentiria quando ele colocasse as mãos nela. Irene entrou no quarto atrás da mulher barbada. Ela não percebeu que a pessoa era uma mulher até que ela falou. Mesmo assim, não importava tanto. As pessoas poderiam ter anormalidades estranhas ao seu redor. Era melhor que os mortos. Havia um espírito particular que seguia essa mulher por aí. Um homem alto e tão bonito que quase fazia os olhos de Irene doerem. Ele observava a mulher barbada com uma quantidade esmagadora de amor. —Este será o seu quarto. — Disse a senhora barbada, sua voz gentil. — Por enquanto, pelo menos. Eu sei que não é muito. Irene estava tão focada no espírito por trás da mulher que nem sequer olhou para o quarto, mas o fez com as palavras da mulher. Era um lugarzinho pitoresco, provavelmente para os empregados quando a plantação estava funcionando. Havia uma pequena cama no canto com lençóis brancos. Ao lado da cama havia um guarda-roupa que vira dias melhores, uma fresta escorrendo por uma das gavetas. E uma pequena janela a sua esquerda estava coberta com as menores cortinas brancas. —Isso é perfeito. — Disse ela, sua voz ainda rouca. —Gostaria de tirar essas roupas molhadas, se você não se importa. —É claro querida. Evelyn enviou algumas das coisas de sua cama. Elas estão no guarda-roupa lá. O banheiro fica no fim do corredor e ninguém vai incomodá-la lá. Acho que a maioria das pessoas está indo para a cama agora. —Obrigada. — Ela esperou até que a mulher estivesse quase fora da porta antes de limpar a garganta novamente. O fantasma atrás da mulher barbada, Clara lembrou a si mesma, estava gesticulando. Ele queria dizer algo, algo importante, mas não parecia que ele realmente pudesse falar. —Sim, querida? Irene respirou fundo. Ela não tinha conversado muito com fantasmas. Ela queria que eles a deixassem em paz, para esquecer que eles estavam lá. Mas se ela iria se apresentar no circo... bem, essa era a única coisa que ela sabia fazer. —Você... tinha um marido? — Ela perguntou. —Eu tinha. Mas ele não está mais conosco. —Ele está com você. — Corrigiu Irene, depois apontou para a esquerda onde o marido estava. —Eu não sei o que ele está tentando dizer. Não parece que ele possa falar. Mas ele está fazendo um coração com as mãos e segurando os braços como se estivesse segurando um bebê. Ele parece feliz. Os olhos de Clara se arregalaram e depois se encheram de lágrimas. Com as mãos trêmulas, ela afastou as lágrimas do rosto. —Tenha uma boa noite. Quando a mulher barbada correu para longe do quarto de Irene, ela sabia que era por isso que não havia usado suas habilidades. Elas apenas deixariam as pessoas chateadas. Muitas pessoas não queriam saber que os espíritos de seus entes queridos ainda estavam por perto. Era difícil até acreditar que as pessoas tinham almas, quanto mais aquelas almas que permaneciam por aí após a morte. Suspirando, Irene virou-se para o guarda-roupa e começou a tirar as roupas de dormir simples. O espírito disse para ela vir aqui. Que era aqui que ela encontraria sua segurança. Mas então ele desapareceu e ela não conseguiu mais ouvir. Por quê? Que plano poderia ter para levá-la a um circo e depois deixá- la? Mas eles pareciam gentis. Eles estavam lhe dando um quarto, roupas, chá para aquecê-la e um banheiro para cuidar de si mesma. É claro que as ações não significavam que eles não a cortariam em pedacinhos e a alimentariam com os jacarés do pântano. E quem era o homem estranho que havia saído das sombras? Ela o viu pelo canto do olho. Quando as tatuagens assustadoras sombrearam seu rosto em uma caveira, ela estava convencida de que ele era um espírito. Foi por isso que ela o ignorou. As pessoas na sala pensariam que ela era ainda mais louca se apontasse o fantasma no canto, mas então ele se adiantou e falou. Todos reagiram a ele, o que significava que ele não era realmente um espírito. Ele era um homem. Um terrível. Seu estômago apertou só de olhar para ele. Mas quando ele falou, ela sentiu um medo real. Sua voz resmungada era profunda, cheia de sotaque irlandês. Seu pai sempre dissera ter medo de imigrantes. Eles iriam dominar o país, e ela precisava ser cautelosa. Se todos os imigrantes eram como ele, ela entendia o porquê. Cada centímetro de pele que ela podia ver estava coberta de tinta escura, exceto o rosto dele. E por um segundo, ela teve certeza de que a cobra ao redor de sua garganta havia se mexido. Mover tatuagens não era possível. Por outro lado, a maioria das coisas neste lugar não parecia possível. Irene empilhou as roupas em seus braços, certificando-se de mantê-las afastadas de seu corpo manchado de sujeira e depois enfiou a cabeça para fora da porta. Ninguém estava no corredor, e as luzes estavam apagadas no banheiro. Talvez todos realmente tivessem ido dormir. Já era muito tarde. O medo ainda fazia seu coração bater forte no peito. Alguma parte dela pensou que seu pai irromperia pela porta e a arrastaria de volta para a casa deles. De volta ao pastor que queria exorcizá-la. Seu coração disparou e suas mãos ficaram suadas quando ela deslizou do quarto para o banheiro através das sombras. Irene não conseguia parar de deslizar como uma barata. Ela tinha medo de todo rangido, todo movimento. Ela estava com medo de todas as pessoas neste lugar, que claramente eram gentis, mas não conseguia entender o porquê. Irene temia que eles voltassem na mesma moeda. Afinal, seus pais haviam feito isso. Ela era a garotinha deles, mas eles ainda queriam fazê-la passar pelo que seria, sem dúvida, a experiência mais dolorosa de todos os tempos. Só porque ela era diferente. Porque ela não queria mentir para eles sobre o motivo de ser tão estranha. Ela fechou a porta do banheiro tão levemente que não conseguiu ouvir o clique. Então, ela abriu a fechadura e deixou escapar um longo suspiro. Finalmente. Ela estava em segurança. Por alguns momentos, pelo menos. Irene permaneceu no banheiro, desde que ela pensasse que eles deixariam. Ela lavou o corpo da cabeça aos pés, até que os longos fios pálidos de seus cabelos grudaram nos ombros e os dedos enrugaram. Quando ela finalmente terminou, ela olhou para o rosto no espelho. Um olhar assombrado a encarou, olhos muito afundados e que tinham visto demais, uma alma que estava abalada até o âmago. Sua família queria machucá-la. As pessoas que deveriam amá-la. Agora, ela estava aqui, guiada por um espírito, o que fazia pouco sentido, porque eles nem deveriam estar aqui. Seu pai sempre dissera que os espíritos passavam para a próxima vida. Eles iam para um lugar onde os humanos não podiam seguir. Exceto, que eles não foram. Eles ainda estavam aqui. Eles a atormentavam em todos os lugares que ela ia, e ela não sabia como fazê-los se acalmarem. A maçaneta da porta sacudiu. Irene se curvou, com medo de que um dos artistas do circo tentasse entrar. Eles poderiam finalmente ter recuperado a razão e querer expulsar a mulher estranha que falava com fantasmas. Então parou. Mas então começou de novo. Ela olhou para a maçaneta com força. Não estava se mexendo. Nenhuma pessoa física estava tentando entrar no quarto dela porque a maçaneta não estava realmente se movendo. Era apenas o som que atingiu seus ouvidos como se alguém tivesse batido as mãos nos dois lados da cabeça. Outro espírito. Mais um aqui que queria sua atenção. Por que eles não a deixavam em paz? Ela segurou a beirada do espelho e olhou no espelho até o espírito passar pela porta. Era uma mulher, oscilando pelas bordas em uma explosão de fumaça branca que era tão diferente do seu espírito pessoal que a seguia a cada passo. Este parecia gentil. Seu rosto era semelhante ao homem que havia falado com ela na sala de estar, aquele que todos os outros pareciam procurar pela decisão final. Ela tinha olhos que poderiam ter sido azuis, um rosto enrugado que vira muitos anos se passarem, um nariz embotado e uma mandíbula quadrada. A mulher olhou para ela com os olhos de uma mãe. Os olhos de uma mulher que se importava. —Bem-vinda à minha casa. — Disse o espírito em voz baixa. —Você está bem, querida? Não. Não, Irene não estava bem. Ela não achava que jamais se curaria da ferida que fazia seu coração sangrar. Mas ela acenou com a cabeça da mesma forma. —Obrigada por perguntar. —Não consegue dormir? Irene mordeu o lábio e não respondeu. As emoções borbulhavam em sua garganta, apertando a coluna comprida e apertando com tanta força que ela mal conseguia respirar. —Por que você não vem à cozinha? Tem comida lá. Parece que você não faz uma boa refeição há semanas. Ela não conseguia se lembrar da última vez que havia comido. Ultimamente, a comida de sua mãe tinha gosto de pó e deixava uma sensação de giz na língua. Irene assentiu e passou a mão pela camisola branca que lhe fora dada. Ninguém ia estar na cozinha tão tarde. Ela ficaria bem. Ela seguiu o fantasma. O espírito usava um vestido branco, quase uma peça correspondente às roupas emprestadas de Irene. Juntas, elas caminharam pelos corredores silenciosos da grande casa da fazenda. Na época, esse lugar era provavelmente um dos edifícios mais impressionantes da região. Até os tetos eram bonitos. Irene olhava para eles enquanto caminhava pelo tapete felpudo que estava desfiado nas bordas. Os tetos de estanho com flores marteladas no metal mostravam sua idade com ferrugem e a pintura estava descascando, caindo aos pedaços e caindo no chão em pequenos pedaços, revelando a base metálica. —Cuidado com as escadas. — O espírito murmurou. Irene não desviou o olhar. Em vez disso, estendeu a mão, apoiou-a no corrimão e deixou seu corpo carregá-la escada abaixo. Havia muito o que ver neste lugar. Tanta beleza e em lugares onde as pessoas raramente olhavam. —Foi aqui que você morreu? — Ela perguntou baixinho quando chegaram ao primeiro andar. —Foi. —Sinto muito por você ter morrido. — Respondeu Irene. —Mas estou feliz que você ainda esteja aqui, cuidando dele mesmo após a morte. —Sim, suponho que sim. Embora eu não esteja aqui para a casa. —O espírito a guiou para longe da sala onde ela havia entrado pela primeira vez. Em vez disso, elas caminharam para o outro lado da casa, através de uma sala que poderia ter sido usada para bilhar e entraram em uma cozinha grande. — Estou aqui para todos que permanecerem nela. —Um espírito da casa? — Ela perguntou, surpresa. Ela estava na porta de uma cozinha que era tão bonita e com a mesma idade que o resto do edifício. Um fogão enferrujado estava proeminente no centro, enquanto os armários estavam cobertos de tinta lascada. Os artistas de circo claramente ainda não tinham trabalhado muito na casa. Ou talvez eles simplesmente não se importassem. Irene podia ver um mundo de possibilidades neste lugar. Se alguém demorasse um pouco, fixasse os ladrilhos rachados no chão e passasse algumas horas por dia limpando as arestas, esse lugar seria tão bonito e sem esforço. Ela percebeu que o espírito estava olhando para ela com olhos cheios de lágrimas. —O que há de errado? — Perguntou Irene. —Você olha para este lugar da mesma maneira que quando eu o comprei. — O espírito enxugou seus olhos, mesmo que não houvesse nada para ela pegar. —Eu tinha os mesmos sonhos aos meus olhos, a mesma intenção de fazer deste um lar, um lugar onde as pessoas pudessem descansar suas cabeças e encontrar um pouco de consolo para suas almas. —É lindo. —Sim, é mesmo. E acho que poderia ser ainda mais com as mãos certas consertando-o. — O espírito gesticulou em direção a uma geladeira. — Encontre algo para comer, querida. Deve haver algo que encha sua barriga antes de você dormir. Irene rapidamente caminhou pela cozinha. Havia um pequeno recipiente de morangos e algumas uvas que ela rapidamente pegou. Ela não queria tirar muita comida deles. Eles provavelmente precisavam mais do que ela. Colocando sua comida na ilha da cozinha, ela se sentou em um dos bancos e olhou para a fruta. Ela tinha o direito de comer a comida deles? De alguma forma, parecia errado. Finalmente, ela cedeu. Teria que comer eventualmente, e essas pessoas haviam oferecido sua casa como um lugar seguro. Ela tinha que confiar em alguém. O espírito sentou-se do outro lado da ilha e a observou comer. —Você vai ficar bem, sabia? —Eu não sei. —Gostaria de poder explicar melhor para você. Os espíritos veem o mundo em camadas que os humanos não conseguem. Tantas coisas estão funcionando agora em sua vida e na vida de todas essas pessoas. Mas fique tranquila, todo mundo aqui quer encontrar um lugar que possa chamar de lar. Como você. —Você é muito gentil. — Respondeu Irene. —Obrigada. —Você não viu muita gentileza em sua vida, viu? Irene tentou pensar na última vez que alguém a tocou com bondade. Ela não conseguia se lembrar. Talvez alguém da igreja? Às vezes, seu pai pedia às pessoas da igreja que se cumprimentassem e apertassem as mãos, e ela supôs que alguém deveria ter feito isso em algum momento. Mas ela não conseguia se lembrar de um momento em que isso aconteceu. Seu pai queria que ela fosse pura. Apenas uma mulher virginal seria uma boa esposa algum dia, disse ele. Se ela não pudesse controlar a si mesma e suas próprias emoções, ninguém jamais a desejaria. E, no entanto, ela ainda estava sozinha. Ainda morando sob o teto dos pais, vestida como uma boneca por sua própria mãe, que escovava os cabelos todas as noites. Ela tinha vinte anos. Irene poderia escovar os próprios cabelos. O espírito ainda estava olhando para ela, então ela balançou a cabeça. —Não. —Então espero que você encontre aqui. — A velha desapareceu e Irene foi deixada sozinha na cozinha escura. A luz da lua filtrava através dos painéis de vidro acima da pia. Eles lançavam raios de luz e um brilho prateado em tudo na cozinha. Ela não se importava. Irene sempre se achou muito mais confortável no escuro do que na luz. Era mais difícil para as pessoas vê-la nas sombras. Ela podia vê-los de fora, respirando seus segredos e vendo seus entes queridos mortos sem que alguém a incomodasse. Irene não ouviu os passos até que fosse tarde demais. Uma voz baixa, que fez seu coração gaguejar, os seguiu. —Não conseguiu dormir? Ela balançou a cabeça e encolheu os ombros, tentando ficar o mais pequena possível. —Você poderia acender a luz. — Havia aquela leve inclinação novamente, o sotaque que parecia tão fora de lugar Não olhe, ela disse a si mesma. Ela não suportava olhar para o homem que era mais demônio que humano. Ele era uma criatura de pesadelos, ainda pior do que a figura das sombras que seguia seu caminho. Mas ela olhou. Irene olhou por cima do ombro para vê-lo com os braços levantados, apoiado no batente da porta enquanto a olhava com aqueles olhos escuros. Olhos que tinham visto demais. Olhos que viram demais. A tatuagem em volta do pescoço mudou. A cobra se afastou de sua pele, sacudindo a língua para ela enquanto deslizava por seu ombro. Demônio, ela pensou. Ele estava coberto de criaturas que sabidamente representavam o diabo, e ainda assim permanecia ali como um anjo vingador. Lúcifer não era o mais bonito de todos os anjos? Não era ele quem todos os outros invejavam antes de cair? Se alguma vez houve um homem para andar na terra nos passos do diabo, era esse homem. Com seus olhos escuros, o modo como ele olhava cada centímetro do corpo dela como se já o possuísse, e a cobra que continuava olhando para ela com fome nos olhos. Irene viu uma pitada de correntes em volta do pescoço antes que a cobra desaparecesse. Em um piscar de olhos, ela estava contra seu pescoço como se nada tivesse acontecido. Ele abaixou os braços. Mãos de dedos pálidos atravessaram a longa cabeleira em cima de sua cabeça, que ele então sacudiu. —Por quê você está aqui? Ela engoliu em seco. —Eu precisava de um lugar para estar segura. —Você não encontra segurança em um circo de loucos, garotinha. Então, o que você realmente está procurando? Havia uma resposta para essa pergunta? Ela não sabia o que estava procurando. Uma família, alguém para apreciar seus dons e habilidades. Alguém que olhava para ela como se ela fosse mais do que uma criatura esquecida por Deus. —Eu não sei. — Ela sussurrou. Quando ele se virou, ela se levantou e chamou-o: —O que significa que você falou por mim? Ele congelou, os ombros tensos com a voz dela. —Não se preocupe com isso. —Eu estou. Estou muito preocupada com o que isso significa. Por um segundo, ela pensou que ele iria embora. Ela pensou que ele a deixaria sozinha na cozinha, e ela pensou que poderia ser o que ela queria. Afinal, Irene passou a maior parte de sua vida sob o microscópio de seus pais e de todos na vida. Alguns momentos de liberdade não eram uma coisa ruim. Então, num piscar de olhos, ele estava na frente dela, pairando sobre ela como uma nuvem escura com os braços apoiados contra a ilha, colocando-a no lugar. Ela pressionou as costas contra a bancada de madeira e olhou para aqueles olhos negros. Ele se inclinou para mais perto, até que ela sentiu o cheiro do charuto em seu hálito e a estranha mistura de couro gasto. —Isso significa que prometi transformá-la em uma aberração. —Por que você promete isso? Uma sombra passou por seu olhar, a pergunta parecendo balançá-lo. —Eu não sei. — Ele se inclinou para mais perto, quase pressionando o nariz nos cabelos dela, e inalou profundamente. —Porque eu sou um homem mau, e você cheira a inocência. —Por que isso importa? — Ela tremeu como uma folha tremendo em uma tempestade, quase arrancada de seu caule, flutuando no abraço de seu vento tumultuado. O homem tatuado balançou a cabeça. —O bem e o mal. Vício e virtude. Tudo se resume à mesma coisa, agora, não é? Você veio aqui para ter medo, querida. Então? Você está? —Sim. —Bom. — Ele se afastou dela então. —Lembre-se disso quando concordar em me deixar ser quem lhe dá as boas-vindas ao circo. Irene o observou se afastar e teve a nítida impressão de que algo importante acabara de acontecer. Algo que ela não conseguia entender. Booker não conseguia se concentrar, e isso era perigoso para um homem como ele. Ele precisava prestar atenção a si mesmo e ao mundo ao seu redor. Caso contrário, as criaturas que vivem debaixo de sua pele começariam a deslizar para o mundo real. E isso nunca terminava bem. Mas ele não conseguia tirar aquela maldita mulher da cabeça dele. Ele se inclinou sobre ela e inalou o perfume de seus cabelos. Sol e rosas, brilhantes e claros e, oh, tão doces. Ela não tinha lugar algum perto de um homem como ele. Deveria sair com a família naquele vestido amarelo brilhante, escolhendo um colar de pérolas para pendurar naquele pescoço comprido e bonito. Não trancada em um circo com pessoas que mal conseguiam se cuidar. E especialmente não com um homem como ele. Não um homem que tinha sangue nas mãos e não podia tirar. Ele girou a pistola de tatuagem em suas mãos. Nova tecnologia, ou pelo menos nova para ele. Mas era algo que o distrairia, embora isso apenas aumentasse seu fardo. Ele não fazia isso há muito tempo. Booker não gostava de trazer nova vida ao mundo. Ele já estava amaldiçoado, então a última coisa que ele precisava adicionar à sua alma eram mais criaturas como as que ele já havia criado. Deus não iria deixá-lo passar por aqueles portões perolados tão cedo. A arma pesava na mão dele. Com o nome adequado, considerando que parecia muito com as que ele lidou em outra vida. Armas que haviam tirado tanto de tantas pessoas. Armas em que ele não gostava de pensar. Mas velhas lembranças floresceram na parte de trás de seu crânio como uma planta venenosa que arrancava suas folhas. Ele se lembrava de todos aqueles rostos, de todas aquelas pessoas pobres que provavelmente não mereciam o fim que ele lhes dera. Na sua antiga vida, um emprego era um trabalho. Não importava que essas pessoas tivessem famílias ou mesmo nomes. Ele não queria saber de onde elas vieram ou quem elas eram. Ele só queria ver o sangue delas espirrando no chão. Booker largou a arma e tirou uma pequena lata de tinta. Não havia muitos lugares em seu corpo livres de tatuagens, mas o espaço entre as criaturas sempre podia ser preenchido. Hoje em dia, ele não queria criar novos monstros. Ele só queria escurecer todos os espaços entre eles com uma sombra que representasse a própria alma dentro de seu corpo. Uma escuridão que nunca poderia ser retirada de sua carne. Pegando seu instrumento de escolha, ele mergulhou a agulha na tinta e a ligou. Estremeceu em sua mão com o burburinho da vida. Ele já arregaçou a manga. Ainda havia alguns lugares onde ele poderia usar sombreamento, alguns lugares onde ele poderia cobrir a pele por baixo, então talvez, apenas talvez, ele pudesse sentir algo mais do que o amargo e decepcionante entorpecimento de sua vida. Booker colocou a agulha na carne e soltou um suspiro de alívio. A dor era familiar. Isso significava que ele ainda estava vivo, que ele ainda podia sentir alguma coisa, afinal. Lentamente, ele traçou o contorno de uma mariposa em seu braço. Repetidas vezes até a pele ficar escura e o fundo sombrio aumentar, tocando a borda de um tigre com a boca aberta. O zumbido da pistola de tatuagem encheu seus ouvidos, tanto que ele não ouviu o som de alguém entrando em seu quarto no porão até que a porta se fechou com um clique suave. Ele não olhou para cima. Havia apenas uma pessoa no circo que seria tão avançada. —O que você quer, Evelyn? — Ele perguntou calmamente. Ela era tudo o que ele sempre procurava em uma mulher. Capaz, forte, independente e extremamente avançada. Evelyn era o tipo de pessoa por quem todos se apaixonavam, não importa o quanto você tentasse. Claro, era uma pena que ele pensasse nela como uma irmã e ela pensasse nele como uma família. Eles formariam um bom casal em outra vida, mas não poderiam sequer se beijar sem engasgar. —Eu ouvi a arma. —Ninguém consegue ouvir isso. — Ele resmungou, retocando um ponto onde uma linha havia desaparecido. —A casa tem piso grosso. —Bem, talvez eu estivesse descendo para falar com você de qualquer maneira. Booker. — Ela estendeu a mão e colocou a mão na dele. — Pensei que você não estava mais tatuando. —Eu sempre tatuo. —Não é assim. — Ela enrolou os dedos entre os dele. —Você não fala com ninguém desde que o circo começou. Nem uma vez. —Ah, então é isso que você quer. —Eu acho que é importante falar sobre isso. Você não pode transformá- la em uma aberração. Frank e eu já dissemos que não queremos uma médium no circo. Isso não é algo que é um show, e não estamos montando estandes. —Ela não vai a um estande. — Ele não a queria onde não podia vê-la. Mesmo que ele não pudesse explicar a emoção estranha. Booker não gostava de proteger pessoas que não conhecia. Ele cuidava dos outros artistas de circo porque eles eram da família. Como o garoto, ele faria qualquer coisa por eles. Mas isso não significa que estranhos que saem da rua tenham o mesmo tratamento. Essa mulher? Ele não conseguia explicar. Havia algo nela que fazia seu coração bater mais rápido e o medo borbulhar em seu peito. Ela não conseguia se cuidar - talvez fosse isso. Tudo nela era frágil e minúsculo. Ele não queria que ela andasse pelo mundo assim. Booker sacudiu a cabeça e cravou um pouco demais no antebraço. —Ela é apenas uma criança, Evie. É isso aí. —Ela não é uma criança. Qualquer pessoa que olhe para ela pode dizer que é uma mulher bonita que teve uma vida difícil. —O que? Você está preocupada com o que eu vou fazer com ela? Evelyn soltou um suspiro frustrado. —Booker. —É assim que parece. —Vejo o que você faz consigo mesmo e não consigo imaginar você fazendo isso com outra pessoa. Por favor, diga-me que você não está planejando tatuá-la. —Ainda não sei o que estou planejando. — Mas ele teve que inventar algo rápido. Os outros artistas não a deixariam ficar muito tempo. Era perigoso para todos os envolvidos. A ideia de tatuá-la? Toda aquela pele branca como lírio que nunca tinha visto uma agulha antes. Pele virgem. Deus, isso o fez estremecer com o mero pensamento. A agulha em seu próprio braço escorregou, a pistola de tatuagem se deslocou para o lado um pouco e quase deslizou através da asa de um dragão que envolvia seu braço. Ele nem deveria estar pensando assim. E, no entanto, agora ele estava. Ela sofreria bem a dor? Provavelmente não. Ele já viu mulheres tatuadas antes, quando ele estava cercado por assassinos e ladrões. Elas pensaram que iriam cerrar os dentes e aguentar, mas mesmo os homens adultos tinham problemas com o processo. As mulheres duraram alguns minutos. Elas sempre conseguiam um pouco antes que a dor chegasse a elas. Chegava a todos no final. Ela estremeceria na cadeira dele, talvez até implorasse para que ele parasse porque não queria continuar. Mas se ela queria ser uma aberração no circo, ela tinha que ter uma atuação. Ela precisava ter algo que pudesse fazer no palco, não apenas em uma cabine. Quanto mais ele pensava sobre isso, mais parecia provável que ele fosse tatuá-la. Toda aquela pele era dele. Cada centímetro da página em branco do corpo dela seria de Booker para escrever uma história. Uma nova história. Uma que a tornaria mais forte do que nunca. —Conheço esse olhar. — Sussurrou Evelyn. —Você realmente vai fazer isso, não é? —Ela precisa de um lugar seguro para ficar. —Isso não significa que temos que ser o lugar seguro dela. Você poderia deixar isso para lá. Ele tentou muitas vezes. Ao longo dos anos, Booker deixou bem claro que não se importava com as outras pessoas como os outros. Ele não via os humanos como algo além de algo que precisava lidar. Uma vida não era tão importante no grande esquema das coisas, porque havia mil outras vidas para substituir a que ele tirou. Mas não havia ninguém como ela. Ele deu de ombros e largou a arma da tatuagem. —Não sei por que não posso, Evie. Ela vai ficar aqui, e eu vou ter certeza de que ela será uma artista que todo mundo quer assistir. —Eu não sei como você vai fazer isso. —Eu tenho meus próprios truques. A cobra em volta do pescoço mudou, descascando da pele e deslizando pelo braço. Evelyn já vira isso muitas vezes - afinal, tudo isso era sua performance - mas a cobra raramente saía do pescoço. Seus olhos se arregalaram e ela olhou para as correntes ao redor de sua garganta, as que combinavam com seus pulsos e tornozelos. Tudo isso ela já viu antes. —Booker. — Ela sussurrou. Uma pergunta silenciosa espreitava nessa palavra, uma pergunta que ela sabia que não devia fazer. As correntes eram pessoais. Elas foram as primeiras tatuagens a serem colocadas em sua pele e a razão pela qual ele se transformou em algo menos que um humano. Um monstro que ninguém merecia ter em suas vidas. Booker tinha sido o Agente Funerário, o homem que entrava no último segundo, aquele que poderia mergulhar as mãos no peito de outro homem sem remorso. Sem arrependimento. Ele engoliu em seco e observou a cobra percorrer seu corpo, depois se erguer para sacudir o ar com a língua. —Eu tenho que fazer isso, Evelyn. —Você? Ou você só quer fazer isso? Ele não tinha uma resposta para isso. Claro, eram um pouco dos dois. A ideia de tatuá-la deixou seus joelhos fracos. O pensamento o fez querer quebrar alguma coisa. Ele não esteve tão ligado a uma mulher em... nunca. Nem mesmo sua própria mãe o fez querer protegê-la tão completamente. Então, ele balançou a cabeça novamente e pegou a arma, o que era tanto sua tentação quanto sua maldição. —Eu não sei o que você quer de mim, Evie. —Quero que você olhe para mim e me diga que não quer machucar essa garota. —Não quero machucá-la. — Mas ele não olhou para cima. Porque sempre haveria uma parte dele que queria machucá-la. A mesma parte dele que queria ver sangue nas pontas dos dedos novamente, mesmo que ele as esfregasse no chuveiro por horas após cada morte. A mesma parte que seu pai costumava dizer que era um demônio que vivia dentro dele. Embora, naquela época, seu demônio tivesse sido uma coisa boa. Ele não era um homem mau. Ele sabia disso lá no fundo. Evelyn e os outros haviam lhe mostrado que havia mais vida do que viver em uma névoa de escuridão e sombra. No entanto, ele não conseguia afastar a necessidade de dor, a necessidade de algo mais do que apenas uma existência quieta e singular. As pessoas não entendiam seu desejo e sede pelos limites da vida. A vida era chata. As pessoas queriam uma cerca branca, uma vida em que faziam a mesma coisa todos os dias até morrerem. Ele não queria isso. Ele queria sentir algo mais, como o empurrão de agulhas debaixo de suas unhas, cavando nele apenas para lembrá-lo que a dor existia. Se ele esquecesse que o mundo estava escuro, então tomaria a luz como garantida. Isso era normal? Provavelmente não. Ele realmente não se importava tanto com a normalidade. Evelyn suspirou e se levantou. Ao sair, ela passou os dedos por cima do ombro dele e sussurrou: —Espero que você saiba o que está fazendo. Ele não sabia. Claro que ele não sabia o que estava fazendo. O momento em que a pequena bola de luz entrou na casa deles foi o momento em que ele parou de pensar direito. Tudo o que ele queria agora era senti-la se contorcer sob suas mãos. Senti-la sussurrar em seu ouvido todas as coisas sombrias que ele pensava. Mas não havia uma chance no inferno que ela tivesse os mesmos pensamentos. Ela era uma mulher pura e inocente, que só usaria manchas de sangue nas pontas dos dedos se ele a tocasse. Uma pena, realmente. Ele queria enredar os dedos naquelas mechas pálidas dos cabelos dela, torcê-los até que não passassem de um rosnado que ele pudesse segurar. Ele queria correr os lábios ao longo de sua mandíbula em um deslize lento que a faria dele para sempre. Cada centímetro de sua pele seria marcado quando ele terminasse com ela. Ela não deixaria esse circo sem o conhecimento de que ele a tocara. Que ele a transformou em algo mais do que apenas uma mulher. Booker a transformaria em um monstro como ele. Uma criatura que todos reconheceriam imediatamente porque ela usaria a marca dele. Primeiro, ele teria que descobrir exatamente como seria essa marca. Eles disseram que ela tinha que assistir a um show antes que pudesse concordar em fazer parte do circo deles. Irene achou que era justo o suficiente, então ela concordou. Eles a deixaram sentada nas fileiras de cadeiras, longe da multidão e disseram para ela se divertir. Afinal, ela nunca tinha visto um show de circo antes. Ela simplesmente não tinha pensado que seria assim... Evelyn soprava fogo. Fogo real que saiu de seu corpo como se fosse convocado. Clara barbada cantava com a voz de um anjo, muito mais do que qualquer mulher humana jamais poderia cantar. Até os outros, Tom Thumb e o Gigante, podiam levantar pesos impossíveis e realizar acrobacias que seus corpos não deveriam fazer. Quando eles tiraram o garoto do tanque, ela engasgou. Ele se afogaria! Mas então ela viu as brânquias na garganta dele. Os olhos gigantes dele a encararam com uma tristeza que fez sua própria alma doer. Todos eles eram espetaculares. Agora, a hesitação em deixá-la permanecer fazia muito mais sentido. Claro, eles queriam um ato. Eles queriam alguém que pudesse acompanhá-los, não alguém que apontasse para uma pessoa na multidão e lhes dissesse o que sua irmã morta queria que eles soubessem. Seu ato seria fácil demais para justificar como algo que não era real. Muitas pessoas podiam ler outras, fingir ver os mortos, e havia muitos artistas que o faziam. Alguém veio à igreja há um tempo atrás que fazia exatamente isso. Os espíritos ficaram horrorizados porque o homem tinha dito algumas das coisas que ele tinha. Ele não transmitiu o que eles queriam que seus entes queridos soubessem. Ela quase foi engolida pelos espíritos enquanto tentavam desesperadamente levá-la a ajudar. Irene ainda tinha pesadelos com os mortos que a cercavam. Afastando as lembranças de sua mente, ela levantou a capa sobre o rosto. Frank, o diretor do circo inteiro e aparentemente o único que não tinha algum tipo de habilidade espetacular, havia dito que provavelmente deveria se cobrir. Irene concordou. Se seus pais soubessem que ela estava aqui, eles viriam imediatamente. Quem sabia? Eles poderiam até trazer o pastor que queria exorcizá-la e forçá-la a se tornar outra pessoa completamente. Tudo o que ela precisava fazer era garantir que a capa cobrisse seu rosto. Havia pessoas da cidade aqui que definitivamente a reconheceriam, o que a surpreendeu, considerando que eram boas pessoas que frequentavam a igreja que não deveriam ser encontradas em um lugar como este. A multidão prendeu a respiração enquanto esperava o próximo ato. Eles arfavam toda vez que as cortinas estremeciam com a brisa. O que os artistas de circo criaram aqui era tão notável quanto seus poderes. A multidão foi completamente e totalmente cativada. Todos aqui acreditavam que o impossível era real neste momento. Suas bochechas coradas de emoção pela próxima apresentação que lhes daria pesadelos ou sonhos maravilhosos. Eles se colocavam em uma posição perigosa. Ninguém jamais seria capaz de replicar o que eles viram hoje à noite, e era seletivo conseguir ingressos para esse show escondido no pântano da Louisiana. Irene só esperava que ela pudesse se provar digna de se juntar aos outros em suas apresentações. Em um deslize lento, as cortinas se abriram. Irene prendeu a respiração quando o palco foi revelado. Ninguém estava lá, nem uma única pessoa, apenas a vasta extensão de nada desaparecendo nas sombras. Todos os outros artistas estavam lá quando a cortina se abriu. Eles estavam orgulhosos e altos no meio do palco, nem um pouco de medo ou confusão. Irene estava acostumada a artistas que estavam mais do que um pouco envergonhados. A maioria dos circos não queria que seu povo pensasse que eram algo além de malucos. Este, no entanto, queria que as pessoas soubessem que havia mais neste mundo do que aquilo que os humanos entendiam. Mundanos, ela já ouviu alguns dos artistas chamarem eles. Ela prendeu a respiração até o instante em que ele subiu no palco - o homem com demônios nos olhos, aquele que a assustou e a fez sonhar com coisas sombrias. Ele usava um chapéu puxado sobre os olhos e o olhar no chão. Ele poderia não ser o diabo que ela pensava que ele era. Talvez, apenas talvez, ele não fosse um demônio. Booker subiu ao palco e lentamente se abaixou até a beira. As pessoas nas filas da frente ofegaram com a proximidade de um dos artistas. Alguns deles avançaram como se pudessem tocá-lo, mas ninguém se atreveu. Quem iria? O homem cheirava a poder, controle e uma agressão desencadeada como um animal trancado em uma gaiola. Havia algo nele que queria sair, algo que ela não conseguia identificar. Por um segundo, quando o olhar dele varreu a multidão e pousou na dela, ela viu algo mais lá. Não um demônio, mas um anjo enterrado a um metro e meio de profundidade, com uma auréola suja nas mãos. Olhos fixos nos dela, ele alcançou atrás da cabeça e puxou o botão da camisa para cima e por cima da cabeça. Tatuagens o cobriam da garganta ao umbigo, o resto escondido por baixo da calça preta, embora ela estivesse certa de que a pele estava tão coberta quanto o resto dele. A respiração de Irene desapareceu no momento em que seus olhos avistaram as cores onduladas. Cada centímetro de carne era uma pintura que ela mal conseguia entender. Um pássaro voava sobre suas clavículas, árvores e flores brotaram em seu peito, cobras enroladas em seus braços. A multidão ofegou junto com ela. Era surpreendente ver alguém de cor assim. Alguém que já foi humano, mas agora parecia muito como se tivesse saído de um livro de histórias. Booker era um homem que usava a vida inteira na pele, ela tinha certeza disso. Cada símbolo, cada marca, representava um momento importante em sua vida. —O que vocês veem agora é o final deste show. — Sua voz ecoou na multidão, silenciando qualquer um dos suspiros ou conversas silenciosas sobre a maravilha que seu corpo se tornara. —Eu gostaria de poder dizer que seria um final melhor, ou que faria seus olhos se arregalarem de admiração. Mas pessoal, não é disso que se trata o Cirque de la Lune. Vocês vieram aqui para ter medo, pessoal. É isso que vocês querem, não é? Ele levantou as mãos e depois algo notável. Algo igualmente aterrorizante e terrível que fez seu coração pegar na garganta. As cobras em seus braços começaram a se mover. Elas borbulharam sob sua pele, levantando e estremecendo quando se soltaram de seu corpo, puxando de sua carne para erguer suas cabeças e assobiar para a multidão. Irene observou o horror no rosto das pessoas, a maneira como elas recuavam, certa de que ele as machucaria. Que este homem diabo iria enviar seus servos sobre eles para devorar suas almas. Mas ela já tinha visto esse tipo de criatura antes. Os demônios não saíam da pele daqueles que possuíam. Eles permaneciam debaixo da carne, completamente invisíveis, exceto os olhos brilhantes que olhavam para fora do crânio emprestado. Uma das cobras caiu no palco com um baque suave, depois deslizou na multidão. As pessoas se separaram como uma onda, enquanto tentavam prestar atenção a Booker, que continuava falando. —Existem coisas neste mundo que vocês nunca entenderão. Ela não experimentou isso a vida inteira? Irene tinha visto os mortos caminhando por entre multidões, mesmo a que ela estava agora. Sua atenção foi desviada para as coisas mortas que se inclinavam sobre os entes queridos. Uma mulher que acariciava a orelha do homem que claramente costumava ser seu marido. Uma criança tentando desesperadamente segurar a mão de sua mãe que não sabia que seu bebê ainda estava lá, esperando que ela olhasse para trás. Outra sombra se moveu no palco. Essa massa escura pairou sobre a cabeça de Booker, a primeira que ela viu ao seu redor. E isso por si só era estranho. Todos tinham alguém que os procurava do além. Alguns deles chegavam apenas momentos atrás, suas almas dos tempos passados, mas reconhecendo alguém que ainda podia falar com eles. Irene costumava ver aqueles espíritos antigos, aqueles que pareciam nada mais do que névoa, querendo desesperadamente se conectar com sua própria família. E, no entanto, não era esse tipo de névoa que pairava em torno de Booker. Essa névoa tinha uma sensação sinistra, uma sensação que a fez estremecer. Morte. Esse espírito não queria vingança por sua própria morte; queria que Booker morresse. Queria arrancar a alma de Booker da sua pele e forçá-lo a viver como ele. Ela não tinha ideia de quem ou o que era essa criatura. Nunca em todos os seus anos Irene tinha visto um espírito tão violento. Eles eram geralmente mais gentis, mesmo aqueles que queriam vingança pela maneira como morreram. Este queria destruir o homem na frente dele. Ela não sabia dizer se era homem ou mulher, ou se era mesmo humano. Talvez ele próprio não fosse um demônio, mas assombrado por um. A mulher ao lado dela gritou e apontou para os pés dela. —Serpente! A mulher bem cuidada não tinha percebido o que Booker estava fazendo no palco? Claro, havia cobras. Elas arrancaram sua pele. Ou talvez essa mulher tenha pensado que tudo fazia parte do ato, mas essa era definitivamente uma cobra de verdade. Irene não temia a cobra, embora provavelmente devesse, mas era uma extensão dele, e ela não a temia. Inclinando-se, ela estendeu a mão e deixou a criatura longa se enrolar em seu braço. Embora o aperto tenha sido apertado, não doeu. Lentamente, ela levantou a fera e a deixou envolver seu ombro. Irene sempre pensou que as cobras pareceriam viscosas como uma lesma. Sua mãe sempre disse que elas eram criaturas do diabo, e que ela não tinha permissão para ir a lugar algum perto delas. Elas eram Lúcifer que veio à terra para tentá-la. Afinal, era para isso que as cobras eram. Elas foram os seres originais que causaram todos os problemas para os seres humanos. Ela sempre pensou que era uma fantasia boba. Todas as cobras não eram Lúcifer para tentá-la. Elas eram apenas animais tentando fazer o seu caminho na vida. Seu corpo era estranhamente satisfatório ao toque. Seca e suave, o rabo grosso envolvendo seus ombros e passando por cima do braço. Parecia que era ali que a cobra deveria estar. Como se soubesse como tocá-la, como protegê-la para que ela não tivesse que se preocupar com o mundo que a invadisse mais uma vez. Olhando para cima, Irene fez contato visual com Booker. Os olhos dele estavam ardendo com um fogo que ela não entendeu. Um calor tão abrasador que a derreteu até os ossos, descobrindo sua alma para ele ver. O que ele queria dela? Certamente ela não podia ser um mistério que ele estivesse disposto a concentrar todas as suas atenções na errante que tropeçara no Jardim do Mal. Ela não era alguém que merecesse atenção. Irene era apenas uma garota, alguém que nunca tinha sido autorizada a aproveitar a vida como as outras, mas isso era bom para ela. Ela estava segura. Ela foi cuidada. Ela seguiu a palavra de Deus da única maneira que sua família sabia. Se perguntada, Irene diria repetidas vezes que sua família queria o melhor para ela. Mesmo agora, sabendo que um exorcismo estava em seu futuro, se encontrado, ela ainda acreditava que eles queriam que ela fosse feliz e segura. Eles não queriam machucá-la. Não era esse o pensamento que passou pela cabeça de seus pais quando eles trouxeram o pastor para sua casa. Eles simplesmente não entendiam a filha estranha que via coisas que ninguém mais poderia ver. Era uma coisa tão ruim para seus pais tentar consertar isso? Irene soltou o olhar de Booker e olhou para a cobra que se mexia em seu ombro. Booker ainda estava falando. Sua voz profunda e escura retumbando no chão como um trovão. —Espero que tenham gostado da sua noite no Cirque de la Lune. Mostramos a vocês a prova de que existem coisas nas sombras do mundo. O que vocês fazem com esse conhecimento agora é com vocês. Ele estendeu a mão, abriu a palma da mão e esperou que a criatura se desembaraçasse dos ombros dela e deslizasse de volta ao chão. A cobra se moveu através da multidão, assobiando aqui e ali, antes de finalmente deslizar de volta ao palco. Uma vez lá, ela derreteu de volta à pele de Booker como se sempre estivesse lá. Ele era um ilusionista? Irene queria que fosse um grande truque, mas de alguma forma, ela sabia que não era. Ele realmente poderia fazer essas coisas. Realmente retirar as tatuagens de sua carne e as enviar para o mundo. Tal coisa era como se tornar um Deus. Irene levantou-se abruptamente, o pensamento ardendo em sua mente como se ela tivesse levado um póquer quente para sua própria carne. Ela realmente pensou que ele poderia ser um Deus? De todas as coisas? A necessidade de rezar explodiu através de seu corpo. Ela queria se ajoelhar e pedir perdão no meio da multidão. Como ela podia ser tão tola? Havia apenas um Deus, e Ele não queria nada com os malucos deste circo. Ela saiu da tenda e entrou no ar da noite, tentando freneticamente acalmar seus pensamentos e medos. A única coisa que ela conseguia pensar agora era que Deus havia criado essas pessoas. Ele lhes dera presentes que ninguém mais tinha, e talvez isso significasse que ela estava errada. Talvez, apenas talvez, Deus não se importasse tanto com a proximidade dos humanos com Ele. Talvez ele quisesse que eles vissem como seria o mundo se eles fizessem todas as coisas que não deveriam. Isso era um teste? Ou o próprio diabo criou todas essas criaturas para tentá-la para longe da luz? Ela era apenas uma mulher simples. Ela não tinha a resposta para todos esses pensamentos e preocupações em sua mente. Como ela deveria saber a maneira correta de pensar quando todo o mundo estava contra ela? Todo mundo tinha uma opinião. Irene irrompeu no ar frio e abraçou a borda da tenda, caminhando em direção à frente da casa. Seu pai diria que essas pessoas eram abominações e provas de que demônios ainda andavam na terra. Sua mãe poderia ter pena deles, mas, finalmente, ouviria o marido. Os artistas de circo diriam que foram criados por Deus, o que significa que alguém deve amá-los, acreditar neles, querer que eles usem os poderes que lhes foram dados. Muitas vozes gritavam em sua cabeça. Muitos finais que ela não conseguia entender. E se fossem pessoas boas? E se ela os estivesse julgando por causa do que alguém havia dito a ela? Aqueles que eram diferentes deveriam ser temidos e condenados... ou assim ela pensava. Irene sempre teve medo de se tornar pouco mais que uma marionete em sua vida. Ela se preocupava com o fato de que algum dia ela apenas dissesse as coisas que todos os outros lhe dissessem, sem um pensamento original em sua mente. Ela não queria se tornar um microfone para o ódio do mundo. Cada parte do seu ser queria perdoar, amar e entender aqueles que eram diferentes. Ela não era uma criatura que não podia ser explicada? Mesmo agora, ela via os mortos saindo da tenda diante daqueles que estavam vivos. Ela observou quando alguém se arrastava com as mãos e os joelhos em direção ao pântano, onde a pobre coisa morta provavelmente havia sido morta. Queria que ela ajudasse. Levantando uma mão esquelética, estendeu a mão para ela antes de desistir quando percebeu que ela não iria se mover. Eles sempre queriam a ajuda dela. Eles queriam que Irene largasse tudo porque ela ainda estava viva. Ela ainda estava respirando e capaz de fazer a mudança acontecer quando tudo o que ela queria era viver uma vida normal. Por que isso era tão difícil? Por que a vida continuava jogando-a na direção de coisas que ela não conseguia entender? Criaturas mortas nos bancos. Um circo cheio de pessoas que poderiam fazer coisas mais maravilhosas do que ela jamais sonhou. Um futuro que nunca seria de sua própria escolha. —Bem, bem, o que temos aqui? — A voz surgiu da escuridão do outro lado da casa. Irene não reconheceu a pessoa, mas, novamente, talvez ela não tenha conhecido todos os artistas. Qualquer um na frente da casa tinha que ser alguém que morava lá. Pelo menos, ela assumiu. Quando ela se virou na direção do homem e viu três outros atrás dele, uma onda de medo se contorceu em sua barriga. Esses homens não pareciam artistas de circo. De fato, alguns deles ela reconheceu da cidade. Eles eram jovens que acabaram de sair do exército. Eles se alistaram há muito tempo e depois se certificaram de que nunca precisariam lutar em outra guerra. Lambendo os lábios, ela deu um passo para longe deles. —Quem são vocês? —Isso não importa, querida. O que mais nos interessa é quem você é. — O da frente deu um passo à frente, a luz da janela da casa cortando seu rosto. Ele era um homem bonito, cabelos loiros lisos, uma mandíbula quadrada e olhos azuis que rivalizavam com o céu. Mas havia algo sombrio em seu olhar também. Algo sinistro que a fez querer correr e se esconder. Os outros se aproximaram também, dois com cabelos escuros e feições semelhantes o suficiente para torná-los irmãos, o outro com cabelos cor de canela e sardas espalhadas por suas bochechas. Irene respirou fundo. —O senhor comprou ingressos para o show? —Não estamos interessados em encarar aberrações. — Respondeu o líder do grupo. O sorriso em seu rosto fez sua pele arrepiar. —Mas você com certeza parece uma aberração. Você está no circo, amor? Ela balançou a cabeça. —Não. Não era mentira. Ela ainda não estava nas apresentações, embora não se importasse em fazer parte disso. Esses homens não queriam ouvir isso. Eles queriam machucar alguém; ela podia ver isso nos olhos deles. Do mesmo modo que o padre queria machucá-la com o exorcismo. —Oh querida. Conhecemos a aparência de uma aberração quando vemos uma, e você definitivamente não está aqui para assistir ao show. Onde está sua família? — Ele estendeu a mão e empurrou o capuz do casaco para trás. —Onde estão seus amigos? —Eles sairão em breve. —Não, eles não vão. — O sorriso em seu rosto aumentou ainda mais. — Tudo bem, no entanto. Nós seremos seus amigos. Rapazes, não? Sua risada flutuou no ar e estalou como uma bolha cheia de aviso. Eles tinham pensamentos piores em suas mentes do que ela poderia imaginar. Não que Irene soubesse muito sobre o quarto e o que o acompanhava. Sua mãe a mantinha decididamente no escuro sobre essas coisas. Ela ainda podia reconhecer o olhar nos olhos de um homem, no entanto, quando ele queria algo que não deveria ter. —Vou voltar para a tenda agora. — Disse ela calmamente, dando outro passo para trás. —Eu acho que vocês provavelmente deveriam procurar comprar um ingresso. —O show acabou, amor. —O show nunca acaba realmente. — Ela repetiu as palavras que Booker havia dito em sua performance, as palavras que ela mal ouvia enquanto a cobra descansava em seu ombro. —Viu? — O homem disse. —Você é uma artista, afinal. Mas ela ainda não era, pelo menos, embora as palavras estivessem presas em sua garganta. Ela temia que os outros artistas tivessem experimentado exatamente essa mesma situação. Que alguém os machucou do jeito que essas pessoas queriam machucá-la. Irene não conseguia entender por que o mundo era assim. Esses homens não gostavam de pessoas diferentes, isso era muito claro. Mas não havia espíritos pairando sobre seus ombros para detê-los. Eles não haviam matado alguém antes, pelo menos não alguém que queria vingança por suas ações. Em vez disso, esses homens passaram a vida ferindo outras pessoas simplesmente porque podiam. Mas nunca matar a pessoa para que ela tenha a oportunidade de voltar do túmulo para assombrá- la. Ela não sabia o que era melhor. —Por favor — Ela sussurrou. —Eu só quero voltar para a tenda. O homem à sua frente estendeu a mão e pegou a lapela do casaco. Ele a puxou para mais perto até que ela pudesse sentir o cheiro distinto de café em sua respiração. —Acho que não. Não até terminarmos com você. Onde estava o espírito dela? Saberia como tirá-la dessa situação. Mas a massa escura desapareceu no momento em que chegou a esta casa. Ela estava sozinha. Completamente e totalmente sozinha. Irene apertou os pulsos e tentou afastar as mãos do tecido. Se ela pudesse afastá-lo por um segundo, então ela poderia correr. Ela era uma corredora rápida. Ela escaparia no momento em que pensassem que não podia. —Calma aí — O homem disse com uma risada, agarrando sua cintura e efetivamente prendendo-a contra seu corpo. —Nós não vamos machucá-la. —Eu não quero que você me toque. —Você mudará de ideia em um segundo. Nós não somos animais. — Suas risadas fizeram seus ouvidos queimarem. —Só queremos ver como seria gostar de uma aberração. Como um estalo, a voz de Booker estalou no ar. —Deixe ela ir. Os homens congelaram imediatamente. O que a abraçou mais forte soltou uma risada silenciosa e depois olhou para os amigos. —E aí cara. Eu acho que você está um pouco perdido. Ela olhou por cima do ombro para Booker, tentando transmitir através dos olhos que estava assustada. Que ela queria a ajuda dele. Uma luz vermelha piscou para a vida nas sombras, a ponta de seu cigarro quando ele acendeu e inalou profundamente. A fumaça ondulou entre seus lábios quando ele exalou e avançou na direção da luz. As tatuagens em seu peito nu rolaram, mudando e se movendo com uma vida própria. A mão do homem flexionou contra o quadril dela. Por um segundo, Irene pôde jurar que ouviu o som de correntes chocalhando uma contra a outra. A da testa de Booker balançou como se uma brisa a tocasse. Booker levantou uma sobrancelha escura e apontou para a mão do homem nela. —Não estou perguntando novamente. —Eu acho que você cometeu um erro. Somos quatro contra apenas você. Uma longa cauda de fumaça serpenteava em torno de sua cabeça como uma auréola. —Um. O homem de cabelos ruivos soltou um som abafado. —O que ele está fazendo? —Dois. — Booker se abaixou e ajustou as algemas das mangas. —O cara está contando? — Perguntou o de cabelo vermelho. —Três. Ela nem o viu se mexer. Em um segundo, ele estava parado na beira das sombras e no seguinte, tudo o que ela podia ouvir era o som do estalo de ossos quebrando. Um jato de líquido quente espirrou em seu rosto. Recuando, ela enxugou as bochechas apenas para sentir uma mão pesada pousar em seu ombro e empurrá-la de volta para a tenda. Booker? Ela não conseguia ver além do que tinha certeza de que era sangue. Freneticamente passando as mãos pelas bochechas, ela limpou a visão o suficiente para ver o homem que a segurara segurando seu rosto. Sangue derramou entre seus dedos onde seu nariz foi quebrado instantaneamente. —Seu bastardo. — O homem rosnou. Ele balançou a cabeça e depois fechou o punho. —Vamos dar uma nova cara para isso. —Homens como você não sabem quando parar. — Booker torceu o pescoço para o lado, quebrando bruscamente os ossos. O cigarro entre os dedos caiu no chão. —Está tudo bem. Você aprenderá em breve. O loiro se lançou para a frente, seus dois amigos de cabelos escuros avançando com ele. Irene soltou um grito quando todos convergiram para Booker. Ela não precisava se preocupar. Ele lutava como uma bala lançada de uma arma. Cortando através deles com eficiência sem esforço e uma expressão fria e metálica em seu rosto. Ele se abaixou por baixo dos punhos voadores, golpeando os seus contra barrigas e costelas. Irene sempre pensou que as brigas seriam zangadas e barulhentas. Gritando ameaças aos céus enquanto homens rugiam. Não foi nada disso. Talvez os homens tivessem gritado se Booker tivesse lhes dado a chance, mas ele nem os deixou respirar. Seu corpo permaneceu fluido, torcendo-se a cada movimento para espetar os dedos no pescoço de um homem e depois socar o esterno do outro. Chovia sobre eles uma forte torrente de dor que roubava o fôlego. Não, não havia som nessa luta. Apenas o baque surdo de carne contra carne e o chiado dos pulmões desesperadamente lutando por ar. Booker finalmente parou, endireitando-se lentamente no círculo de corpos que havia deixado no chão. Os dois homens de cabelos escuros se ajoelharam nas mãos e nos joelhos, tossindo enquanto seus corpos tentavam desesperadamente recuperar o fôlego. Quem a tocou estava deitado de costas. Ela viu o salvador se inclinar lentamente e pegar o cigarro que ainda queimava. Ele sacudiu um pedaço de grama e depois o colocou de volta na boca com uma inspiração lenta. Olhos sem alma encontraram os dela. —Não me olhe assim, Anjo. Irene deveria ter mantido a boca fechada. Ela deveria ter olhado para qualquer outro lugar que não o corpo dele, com suas sombras escuras, tatuagens se estendendo pelas planícies de seu corpo e a raiva sombria que ainda fervia em seu olhar. Mas ela não podia. Ele era o invólucro vazio de uma bala agora. Não havia mais pólvora, não havia mais raiva para se espalhar pelo mundo. Booker era a concha oca de algo que causava dor. Ela deu um passo à frente, lambeu os lábios e silenciosamente perguntou: —Como estou olhando para você, Booker? —Como se houvesse uma tragédia escrita em minhas páginas. — O fim do cigarro ficou vermelho. —Vou te quebrar com meus punhos manchados de sangue. —Já estou quebrada. — Ela sussurrou. Ele soprou uma nuvem de fumaça na direção dela e depois acenou com a cabeça em direção à tenda. —De volta à luz, anjo. É mais seguro lá. Ela não tinha tanta certeza disso. Irene virou-se para deixá-lo lidar com o último garoto de pé e se afastou do homem que foi enviado do céu e do inferno. —Você não pode mais adiar, Booker. Ela fica ou vai. Você sabe. — Frank limpou a garganta. — Você foi quem se comprometeu com ela. Olhando para as mãos, Booker fez o possível para não se enfurecer. Quem Frank pensava que era? Essa mulher precisava deles. Ela precisava de um lugar seguro, embora não tivesse sido exatamente honesta com eles, porque precisava de um lugar para se esconder. Mas então, nenhum deles tinha sido honesto quando chegaram aqui. Todos eles tinham seus próprios segredos, coisas que surgiriam eventualmente quando eles perceberam que os outros não estavam interessados no passado. Eles só se preocupavam com o futuro. O passado de Booker, no entanto, permaneceria para sempre enterrado. Ele entendia a necessidade da mulher de esconder qualquer que fosse sua história. Às vezes, o passado não era para ser desenterrado da terra encharcada. Às vezes eles tinham que ficar em seus túmulos. Ele soltou um suspiro e balançou a cabeça. —O que você quer que eu faça, Frank? Estou tentando pensar em uma maneira que não acabe com ela marcada como eu. —Não tenho mais tempo para esperar. Ninguém mais pode saber que estamos abrigando alguém que não trabalha aqui. Esse foi o acordo com o estado. Apenas artistas. —Isso é uma merda. Frank estreitou os olhos. —É o acordo que nos foi dado. Nós podemos nos apresentar, podemos possuir propriedades, podemos até vender ingressos. Isso significa que, se queremos manter esse lugar, seguimos suas leis. —E estou dizendo novamente, são regras de merda. Frank jogou as mãos para cima com nojo. —Bem. Vou mandá-la fazer as malas então. Tenho certeza que a família dela está procurando por ela. Ela parece alguém que as pessoas sentiriam falta. Foi a família dela que a machucou? A mera ideia fez seu sangue ferver. Booker sabia como era vir de uma família tóxica que não queria nada de bom para os filhos. Ele sabia como era experimentar o chicote de um cinto mais do que braços quentes e reconfortantes. Ele não podia deixá-la voltar para lá. Se foi a família dela que a estava machucando, se era a família que a mandou sair correndo para o pântano no meio da noite, ele nunca mais dormiria. Como ele poderia, sabendo que era ele quem a enviara de volta para lá em primeiro lugar? Booker era a única aberração aqui que sabia como mudar uma pessoa. Ele poderia pegar toda aquela pele branca de lírio e torná-la algo mais. Algo muito melhor. Algo muito mais perigoso. —Você tem certeza que ela não pode usar essa coisa de gente morta? — Ele perguntou uma última vez. —As pessoas gostam disso. —Não é uma performance. É um ato de níquel e moeda de dez centavos que faria as pessoas empacotarem imediatamente. Também quero ajudá-la, Booker. Ela tem um jeito que a faz parecer frágil. Ainda não podemos arriscar. — Frank bateu a mão na mesa e se levantou do quarto de Booker. —É tudo o que tenho. Tome sua decisão amanhã de manhã. —Eu vou fazer hoje à noite. Ele já sabia o que ia decidir. Não havia escolha nisso. A garota precisava da ajuda dele. Ela queria um lugar para ficar segura, mesmo que não lhes dissesse exatamente o porquê. Talvez ela finalmente admitisse qual era sua história enquanto estava sentada na cadeira dele. A dor costumava fazer as pessoas falarem. Ele se levantou e estalou o pescoço uma última vez. Ela provavelmente estava em seu quarto a essa hora da noite. O resto da casa deveria estar dormindo. Provavelmente estavam, embora Daniel estivesse em seu tanque a essa hora. Ele teria que passar pelo garoto antes de chegar ao quarto dela. Bastante fácil. Booker disse a si mesmo que estava fazendo a coisa certa enquanto caminhava pelos corredores silenciosos da casa. Ela pediu por isso. E se ela não sabia o que estava pedindo, isso não era culpa dele. O santuário não vinha sem preço. Ela estava disposta a pagar o que fosse necessário para ficar longe dos horrores que a trouxeram aqui. Infelizmente, esse preço era seu a cobrar. Os corredores pareciam mais estreitos enquanto sua mente vagava. O tapete não era mais macio e confortável, mas duro contra seus pés. Até os bustos antigos usados como peças decorativas pareciam inclinar a cabeça e observá-lo enquanto ele caminhava em direção ao quarto dela. Booker morava nesta casa há meses, mas nunca esteve neste lado da casa. Era aqui que as mulheres dormiam. Por que ele viria aqui? Clara pediu para ajudá-la a consertar bugigangas algumas vezes, mas ele sempre a mandava trazê-las para ele. Não parecia certo entrar nos aposentos das mulheres sem um objetivo diferente em sua mente. E ele não conseguia pensar em nenhum artista assim. Eles eram da família quando se juntaram a esta vida. Todos, exceto ela. Ela se tornaria uma artista hoje à noite, mas ele não pensaria nela como uma irmã. Não esta criatura com a pele branca brilhante, sem manchas de cicatrizes ou trabalho. Suas mãos se curvaram com o conhecimento de que ele iria tocar nessa pele hoje à noite. Ele tocaria muito, provavelmente mais do que ela gostaria que ele tocasse. Especialmente quando ela percebesse o que essa noite traria. Ela lutaria? Um zumbido em seus ouvidos avisou que ele estava ficando um pouco excitado. Ninguém deveria estar tão satisfeito com a ideia de uma mulher lutando com ele. Ele não deveria estar empolgado ao pensar que ela poderia enfrentá-lo, talvez quisesse lutar com ele por alguns momentos antes que ele a dominasse. Ele faria. Se não apenas para o seu próprio bem, mas porque ele era muito maior que ela. Seria necessário apenas uma mão para prendê-la, e ele só precisava de uma para tatuar. Deus, a arma seria difícil de controlar. Ela era tão frágil, sua pele tão fina que seria fácil demais se perder e machucá-la. Uma tatuagem era um processo delicado, como ela, mas, maldição, ele queria pressionar com força toda aquela pele que nunca havia sido tocada por uma mão descuidada. Ele ficou na frente da porta dela e soltou um suspiro longo e baixo. Clara havia marcado a porta com uma pequena estrela no topo. Booker olhou para ela, depois levantou a mão e passou o dedo sobre ela. Uma estrela. Parecia adequado para ela. Ele deveria bater? Essa era a coisa mais cavalheiresca, mas ele não era realmente um cavalheiro. Ele era o monstro que vinha arrastá-la para fora de seu quarto, forçá-la a sofrer horas de dor, apenas para que ela nunca pudesse voltar para sua família. Quem queria uma filha marcada como ele? Quem queria uma esposa assim? Ele estava tornando sua vida infinitamente mais difícil, tudo porque ela queria fugir de algo que a atormentava. Algo que ele não sabia. Booker soltou um suspiro e levantou o punho para bater. Ele ainda podia tratá-la como a dama que ela era. Ele deveria, não importa o que estivesse prestes a fazer. Seu punho bateu contra a madeira, e ele só teve que esperar algumas batidas do coração antes que ela se abrisse um pouquinho. Os olhos dela o encararam, estranhos como o resto dela. Amarelo. Olhos amarelos não deveriam existir na cara de um anjo. —Booker? — Ela perguntou. —Algo está errado? Ele queria se bater por fazê-la se preocupar assim. Claro, ela pensaria que algo estava errado. Um homem estranho que ela não conhecia tão bem estava batendo na porta à meia-noite. Por que ele não pensou nisso? Passando a mão pelo cabelo, ele balançou a cabeça. —Não. Não há nada errado. —Tudo bem. — Disse ela, franzindo a testa levemente. —Existe algo que eu possa ajudá-lo? —Frank quer que comecemos a fazer um show para você. —Você vai me ensinar? De certa forma, mas ele não iria lhe ensinar nada por um tempo. Primeiro, ele tinha que colocar os próprios pés embaixo dele quando ela estava lá como um maldito anjo. Um caído, talvez. O tipo de mulher que caia do céu e queria desesperadamente voltar para o céu. O tipo de mulher em que suas garras poderiam afundar e impedi-la de ver os portões perolados novamente. —Na verdade não. — Ele respondeu. —Então o que você vai fazer? Ele não podia contar para ela ainda. Não conseguia fazer com que as palavras caíssem de seus lábios, prometendo um mundo de mágoa, ódio e raiva. Booker queria que ela fosse inocente por mais alguns momentos. A menininha alada que não sabia o que o mundo realmente poderia fazer com ela. Em vez de responder à pergunta dela, ele estendeu a mão. —Hora de fazer sua escolha, anjo. Você fica ou vai embora. Ela olhou para a palma da mão tatuada por tanto tempo que ele se perguntou se a tinta estava se movendo. Ele não sentiu nada se mexendo embaixo da pele, mas ela parecia ter algo ali. Algo que ele não podia ver. Lentamente, ela estendeu a mão e deslizou a mão minúscula na dele. A pele macia, tão perfeitamente macia que parecia veludo, acariciava a dele. Mas mesmo o menor toque parecia como se ela estivesse cavando seu corpo. Mais que uma tatuagem. Mais do que todo o poder que corria em suas veias. Ela afundou na carne dele e o fez mais do que um homem. Booker puxou-a para fora da porta, forçando-a a abrir o suficiente para revelar a camisola branca ondulando em torno de sua forma. Ela era tão pequena, tão adorável e parecia tão inocente nessas roupas. Ele precisava conseguir coisas diferentes para ela vestir. Itens que não apenas a faziam parecer mais perigosa, mas também lhe davam a confiança necessária para executar. As pessoas não queriam ver um anjo saindo no palco. Essa visão os lembraria de todas as coisas que eles fizeram de errado em suas vidas. Todas as coisas que eles queriam esquecer. Eles queriam ver uma femme fatale. Uma mulher com tanto poder nas veias que fazia a plateia gritar de medo. Isso é o que todos queriam quando vinham ao Cirque de la Lune. Sentir algo, mesmo que esse algo fosse medo. Irene não fez perguntas enquanto a arrastava pela casa, evitando as áreas onde mais alguém poderia estar. Ela não o puxou ou o fez parar para explicar o que estava fazendo. Mais uma vez, ela o surpreendeu. Em vez disso, ela permaneceu em silêncio. Ela o observou com aqueles grandes olhos, mas seu olhar nem sequer piscou com desconfiança. Ele teve que admitir, ele sentiu como se estivesse em um transe estranho também. Ele não se sentia assim há muito tempo. Especialmente não com uma mulher. Booker se orgulhava de manter a cabeça em qualquer situação. De que outra forma ele teria sido capaz de matar todas aquelas pessoas? A culpa, suas almas, tudo o que uma pessoa normal teria sentido, poderia ter caído em torno de seus ouvidos, se ele soltasse suas emoções. E ela não os via? Todos aqueles espíritos que o queriam morto? Ele a levou profundamente nas entranhas da casa, muito além da vista de qualquer pessoa normal, no porão onde ele havia feito sua casa. O ar frio fez arrepios atravessarem seu corpo. Ela teria mais desses quando a noite terminasse. A dor tendia a esfriar um corpo, e ela precisaria de cobertores para mantê-la aquecida. Ainda bem que ele tinha muitos deles. Gostava de suar com seus demônios à noite, mas também sentia frio o tempo todo. Rajadas de ar gelado empurravam suas costas, aparentemente aleatórias. Mas se ele acreditasse em fantasmas e almas... provavelmente eram os que o queriam morto. Como ela deve ver este lugar? Booker nunca se importou com o que parecia. O quarto funcionava para ele, e era isso. Mas agora ele olhava para as paredes de pedra, o piso de madeira recentemente colocado e os móveis esparsos com novos olhos. Será que ela o achou simples por ter apenas uma cama no canto? Ela pensaria que ele era um homem pobre porque a única outra coisa que ele tinha no quarto era uma cadeira de tatuagem? Finalmente, ele soltou o braço dela. Ela deu um passo à frente como se fosse um pássaro libertado de uma gaiola, caminhando em direção à cadeira no meio do quarto com sua única lâmpada nua acima dela. Ele a observou esticar a mão e acariciar o couro gasto. —É isso? —O que? —Onde tudo acontece? — Ela olhou para ele e, pela primeira vez, ele viu a vida em seus olhos. O brilho ardente da antecipação, a emoção do que estava prestes a acontecer. —Onde se tornou quem você é? Booker sacudiu a cabeça. —Não, mas é onde você se tornará outra coisa. Ele ainda não sabia o que iria colocar nela. Que tipo de magia ele imbuiria em sua carne que lhe permitiria se tornar uma artista. Algo no fundo de Booker queria criar um monstro com o qual pudesse se proteger. Ele queria pintar a pele dela com presas, garras e criaturas que pudessem destruir qualquer pessoa que ousasse tocá-la como aqueles homens haviam feito apenas algumas noites antes. Ele queria que eles sentissem dor por pensar nela de uma maneira sombria. Até aqueles que colocassem as mãos em sua carne branca como lírio. Ele acenou com a cabeça em direção à cadeira, depois a observou sentar- se e olhar para ele com expectativa. Não parecia certo transformá-la em uma mulher vestindo monstros como um casaco. Ela não merecia isso. Ela não era uma criatura das trevas que podia correr pelas sombras. Mas o que então? O que ele pintaria em sua carne pelo resto de sua vida? Ele se sentou no banquinho ao lado da cadeira e começou a montar a pistola de tatuagem, certificando-se de que as peças estavam bem oleadas antes de ele começar. —O que você quer? — Ele perguntou, sua voz calma no silêncio da sala. —Eu não sei. Eu nunca pensei que faria uma tatuagem. — Os olhos dela eram um toque físico nele enquanto ele trabalhava. —Eu não pensei que você me colocaria algo assim. —Ainda dá tempo de desistir. —Eu não quero, obrigada. Pelo menos ela tinha um pouco de coragem, mas ele não tinha tanta certeza de que ela não se levantasse e trancasse a porta dele no momento em que visse as agulhas que ele colocou na arma. Irene não foi. Ela ficou enraizada na cadeira, observando-o com os olhos arregalados. —Conte-me sobre você — Ele murmurou. —Uma memória favorita de quando você era criança. Ela encolheu os ombros. —Eu não tenho muitas. —Algo que ficou com você. Um momento ou um pensamento, que você não consiga tirar da cabeça. Ele olhou para a arma para não vê-la pensar. Esta era a sua parte favorita. O momento em que ele poderia descascar as camadas de seu trabalho e descobrir exatamente o que eles queriam. Exatamente o que os faria felizes. —Houve um momento em que eu era criança. Minha mãe me levou para visitar minha tia, longe de meu pai e de todo o trabalho que ele fazia. Eu não deveria me afastar. Eu fiz, no entanto. — Um sorriso suave cruzou seu rosto. —Minha tia tinha um campo cheio de lilases que cresciam selvagens. Elas eram as flores mais bonitas que eu já vi, embora houvesse tantas abelhas na área que eu mal conseguia pisar sem me preocupar se alguma me picasse. E aí estava. A lembrança e o momento que ele estava esperando para acontecer. Sua expressão se suavizou em amor completo e absoluto. Ela foi tomada no momento de admiração que lhe dera uma sensação de libe rdade. Era isso que ele queria dar a ela. Não apenas as emoções que essa memória evocava, mas a sensação de que ela poderia se afastar sempre que quisesse. Ela não estava presa; ninguém estava mais dizendo a ela o que fazer. Se ela quisesse decolar para as selvas do mundo, então poderia. A liberdade era mais importante do que qualquer coisa neste mundo. Ele assentiu e pegou algumas cores de tinta. Amarela, verde, preto. —Você confia em mim? — Ele perguntou. Booker olhou para cima e encontrou seu olhar pela primeira vez desde que a trouxe para este quarto. O que ele viu em seu olhar o assustou profundamente. Fé completa e absoluta. Irene olhou de volta para ele, depois assentiu lentamente. —Eu confio. Acho que confio em você, Booker. Ele engoliu em seco, incapaz de responder. Como alguém falava com um anjo que acabara de presentear sua confiança como a mais preciosa das joias? Em vez disso, ele olhou para os braços nus dela, levantou a pistola de tatuagem e começou a trabalhar. Um espírito tocou seus cabelos, torcendo um fio do outro lado da cabeça, onde Booker não podia vê-lo. Ela não sabia dizer quem era, pois era a névoa branca de uma pessoa que estava morta há muito tempo. Não parecia um dos seus próprios fantasmas que a encontravam com frequência. O que significava que este estava de alguma forma ligado ao homem atualmente pressionando uma agulha contra sua pele em padrões repetidas vezes. A dor não era tão ruim quanto ela esperava. Havia algumas partes delicadas que a fizeram estremecer, mas, na maior parte, ela suportou bem o suficiente. Ela esperou alguns momentos antes de olhar para baixo, tentando descobrir o que ele estava desenhando em seu corpo. Ele não usou um estêncil ou desenhou nada antes de começar. Em vez disso, ele mergulhou na pele dela como um artista louco. A espera valeu a pena. Booker era um homem incrivelmente talentoso. Pequenas flores enroladas nos pulsos e nos antebraços. Pequenos lírios, margaridas e rosas. Todos viajando até um ponto em que as abelhas voavam no ar. Elas pareciam tão reais que era quase como se ela pudesse tocá-las, ou vê-las se levantar de sua pele como a dele. Ela não entendeu a escolha dele. A lembrança que ela contou a ele era uma que mal pensava em anos. A sensação de liberdade, o primeiro sopro de ar fresco que foi por sua própria escolha e não por seus pais. De alguma forma, ele capturou esse sentimento na tinta agora marcando permanentemente seu corpo. Mas estava estragando? A mãe dela diria que ela se arruinou. Seu pai alegaria que o diabo a fez tomar essa decisão e ela precisava orar para limpar sua alma dos horrores. Irene não pensava em nenhuma dessas coisas. Tudo o que ela conseguia pensar era em como era bonito. Quão delicadas eram as linhas, como perfeitamente se encaixavam com seu corpo. As tatuagens de repente a fizeram se sentir mais forte, como se ela pudesse enfrentar o mundo e não se importar com o que os outros pensavam, mesmo sabendo que eles a julgariam por elas. Essa decisão era sua, no entanto, e ela estava confiante de que era a certa. Mesmo que isso significasse que ela não parecia mais a beldade do sul que sua mãe sempre quis que ela fosse. —Está tudo bem? — Ele perguntou, sem levantar os olhos do trabalho. —Acho que sim. —O esboço é tudo o que faremos hoje. Eu pensei que poderíamos fazer as cores, mas... eu me empolguei. Ela não iria reclamar sobre ele se deixar levar. Era tão bonito que ela não se queixava disso. —Quanto tempo faz? — Ela sussurrou. Não havia janelas no quarto dele, então ela não podia arriscar adivinhar há quanto tempo eles estavam trabalhando. Ou há quanto tempo ele trabalhava. Ela estava sentada aqui, rangendo os dentes e se forçando a não estremecer quando ele tocou um ponto sensível. Booker parou por um segundo, o zumbido da pistola de tatuagem desapareceu repentinamente quando ele enfiou a mão no bolso da frente e puxou um relógio. —Cinco horas agora. Tanto tempo? Ela não pensou que esse tempo pudesse passar sem que ela soubesse. Mas, novamente, ela estava olhando para ele porque ele era tão bonito quando trabalhava. Seu rosto, geralmente uma piscina parada que não refletia nada, de repente ficando animado quando ele gravava os contornos pretos em sua pele. Ela não achava que ele estava ciente disso, ou ele poderia ter tentado enxugar as emoções. Então ela não contou a ele. Em vez disso, Irene viu como ele se maravilhava com seu próprio trabalho. Quando ele ficou infinitamente mais feliz quando eles contornaram o fundo de uma abelha. O jeito que seu olhar de repente ficou muito triste quando ele trabalhou em uma tulipa. Quase como se alguém que ele amava muito amava a flor. Booker a assustava desde que entrara nesta estranha casa de fazenda. Sua atitude estoica, a maneira como ele a encarava com tanta raiva, o modo como odiava o mundo e usava esse ódio como uma segunda pele. Agora, ela percebeu que era tudo uma frente. Ele não queria que ninguém visse a massa de emoção que mantinha fora de alcance. Ou talvez, ele não quisesse sentir toda a emoção que borbulhava dentro dele, esperando o momento em que ela gritaria como uma chaleira deixada no fogão por muito tempo. Ela queria ser o calor que o incendiava. Ela queria ser a pessoa que desencadeava tudo, apenas para que ela pudesse ver como era o rosto dele quando ele sorria bem e verdadeiramente. Booker colocou a arma de lado e se esticou. —Isso deve ser o suficiente por hoje. Pelo menos Frank cala a boca. —Você está fazendo isso por Frank? — Ela perguntou com um sorriso suave, estendendo a mão para tocar a nova tinta em sua pele. —Não toque nisso ainda. — Ele murmurou. Irene não sabia a mínima coisa sobre tatuagens. Então ela parou e forçou a mão a recuar, quando tudo que ela queria fazer era tocar a nova adição ao seu corpo. Ele puxou um embrulho e um pouco de uma pomada que ele alisou sobre a nova peça. —Mantenha limpa. — Disse ele enquanto a abraçava. —Não deixe nada tocar nela por um tempo. Você pode tomar um banho, se precisar, mas espere alguns dias para que se estabeleça. Vai acabar, mas não tente. —Não tenho o hábito de colher crostas. —Você ficaria surpresa. — Ele colocou a ponta do embrulho contra a parte interna do braço dela e depois hesitou. Os dedos dele permaneceram na pele sensível, acariciando a parte em que seu coração batia trovejando em suas veias. Ela queria que ele se inclinasse para frente. Para fazer o que, ela não tinha ideia. Ela nunca esteve tão perto de um homem, sozinha, por tanto tempo em sua vida. Mulheres respeitáveis não faziam isso. Elas iam para casa assim que o sol tocava o horizonte e sonhariam com seus homens em suas camas. Elas só sabiam o que significava ser uma mulher quando seus maridos finalmente as levassem para casa. Mas ela não queria ser uma mulher respeitável agora. Irene já estava se tornando algo mais do que a menina bonitinha que sua mãe queria que sempre permanecesse criança. Em vez de esperar, ela se inclinou para frente e pressionou os lábios nos dele. Foi um beijo casto, provavelmente uma criança poderia ter dado a um tio favorito. Mas como ela deveria saber como fazer isso? Ela nem tinha visto um casal se beijar da maneira que os adultos deveriam. Seus lábios estavam horrivelmente rachados. Eles gritaram contra os dele, embora ele não a estivesse movendo ou encorajando. Ele ficou terrivelmente imóvel, congelado no lugar enquanto a deixava explorar sua boca em alguns movimentos estranhos antes que ela percebesse que ele não estava se divertindo. Em absoluto. Bochechas queimando, ela se recostou e olhou para o braço embrulhado. —Obrigada por me tatuar. —De nada. Quando ele não se mexeu ou disse mais nada, ela deslizou do outro lado da cadeira. O que ela estava pensando? Ele estava fazendo um favor a ela, nada mais. Nada menos. Ele não queria beijar uma coisinha como ela, uma mulher que claramente não tinha ideia de como o mundo funcionava ou o que ela estava fazendo consigo mesma. Estúpida. Decisão estúpida de se inclinar para frente assim. Agora, ela tornara as coisas desconfortáveis e estranhas entre eles. Talvez eles pedissem para ela sair agora. Afinal, ela pediu proteção, para não ser usada como uma prostituta de rua comum. Seu pai diria que era tudo o que ela fazia de bom por agora. Marcada como estava, já beijou um homem, ainda vendo pessoas mortas como ela não deveria. Ela era uma idiota. Ela poderia muito bem arrumar suas coisas agora e sair. —Irene? — Sua voz sussurrou através do quarto como uma promessa que ela não achava que ele cumprisse. —Sim? — Ela parou na porta, sem olhar para ele. —Você voltará em duas semanas. Deixe a tatuagem passar pelo processo de cicatrização e trabalharemos nas cores. Ele queria que ela voltasse? Isso significava que ela não precisava sair? Irene olhou para trás, inclinando a cabeça enquanto passava pela porta para ter mais um vislumbre dele. Booker estava encostado no antebraço em uma mesa que ficava ao lado da cadeira, com os olhos vidrados e sem foco. Como ele parecia quando estava tatuando, havia uma certa emoção tocando em seu rosto. Uma emoção que ela só poderia equiparar à tristeza. Ela correu pela porta e subiu as escadas. Fora do porão, onde ele criou uma masmorra de desconforto e raiva. O quarto escassa onde ele se punia e causava muita dor. Seu braço palpitava em memória. Agora que ela não estava sendo tatuada, doía infinitamente pior. Como se alguém tivesse raspado uma faca sobre sua pele sem que ela percebesse, apenas para deixá-la com dor horas depois, quando a ferida se abrisse. Não toque, ela lembrou a si mesma quando entrou na cozinha pela porta do porão. Ele disse para não tocá-la. A infecção parecia aterrorizante. Mas, novamente, tudo sobre essa tatuagem parecia aterrorizante. Ela foi marcada. Ela não era apenas a menininha que sempre fora. Em vez disso, ela era outra coisa. Booker não estava errado quando disse que iria transformá-la em outro ser. O mesmo espírito que enrolara seus cabelos apareceu do outro lado da cozinha. Ela não achava que era a proprietária anterior da casa, embora não pudesse realmente dizer. Aquela tinha uma forma, mas esta... apenas branca. Tanta névoa que não havia nem um rosto. —O que você quer? — Ela perguntou, entorpecida, segurando o braço. —Não sei o que você quer de mim. O espírito não parecia se importar. Em vez disso, pairou um pouco mais perto dela, mas depois mudou para a porta dos fundos que dava para o quintal. —Você quer que eu te siga? — Ela perguntou. Isso era incomum. Os espíritos geralmente não eram tão próximos no que eles queriam. Geralmente, eles eram bastante enigmáticos. Irene sempre pensou que talvez os espíritos não devessem se meter tanto no reino dos vivos. Mas este não parecia se importar em interferir. Quando ela não a seguiu de perto, ela voltou ao seu lado e quase pareceu empurrá-la. A luz alcançou novamente, tocou uma mecha de seu cabelo e deu um puxão rápido. —Ai! — Ela exclamou, movendo-se em direção à porta dos fundos com um pouco mais de determinação. —Entendi. Você quer que eu te siga. Para onde você quer que eu vá? O espírito flutuou pelo quintal, quase perdendo a cor inteiramente na luz da manhã. Se tivesse sido apenas alguns minutos antes, ela poderia ver o orbe quando ele saltou. Foi em direção ao pântano, de volta de onde ela veio. —Eu não quero ir para casa. — Disse ela ao espírito. —Eu não posso, de qualquer maneira, não parece assim. Eu tenho que ficar agora. O espírito a ignorou, mas depois se afastou do pântano. Ela não sabia se suas palavras haviam mudado de ideia ou se nunca quisera que ela voltasse para casa. Independentemente disso, eles agora estavam se movendo em direção a um pequeno bosque de árvores no centro de um campo onde lápides apareciam no chão. Um cemitério? Irene se apressou em direção à nova visão, pisando no chão encharcado e entrando no pequeno local onde as pessoas haviam sido repousadas. O espírito chegou a uma lápide em particular e pairou sobre ela. Inclinando-se, Irene pressionou a mão contra a pedra gasta e esfregou um pouco do musgo. —Lucy Pinkerton — Ela leu em voz alta. —É você? O espírito balançou novamente. —É um nome adorável. Mas isso não diz mais nada. Apenas seu nome, sem datas, sem causa de morte... Isso era estranho em si. As pessoas gostavam de ter algum tipo de memória de quem elas eram ou por que haviam encontrado sua morte. Ninguém era apenas “Lucy” e era isso. Quem era esse espírito? Irene olhou para cima, pronta para fazer outra pergunta, para ver se poderia ao menos dar um sim ou não, quando ouviu um ruído de folhas e galhos atrás dela. Assustada, ela percebeu que o jovem de olhos grandes, a seguira. Ou talvez ele já estivesse aqui e ela não o tivesse notado antes. O garoto piscou os olhos, uma membrana interna avançando para deslizar sobre os orbes que eram estranhamente mais parecidos com os de um sapo do que com os de um homem. Irene soltou um ruído suave e assustado e caiu de costas nela. Ela não estava orgulhosa disso. Ela já viu o garoto antes, provavelmente o viu fazer isso com os olhos, mas ainda assim ela caiu no chão. —Oh, não faça isso — Disse o garoto, avançando para agarrá-la pelo braço. —Você vai ter lama por toda a sua linda camisola. Quando a mão dele se fechou sobre a carne recentemente tatuada, um pulso de dor percorreu seu corpo. Ela choramingou e procurou a mão dele para sair dela. —Não quero assustá-la, senhorita- —Por favor, deixe ir. —Eu só queria- —Por favor. Ele a soltou instantaneamente, apenas para assistir enquanto ela segurava o braço perto do peito e respirava lentamente pelo nariz. As pulsações parariam. Ela já havia sofrido dores antes, e isso era apenas uma ferida de carne. Passaria, como essas coisas sempre faziam. O garoto arrastou os pés. —Ah. Essa não é apenas uma parte do seu traje, eu aceito. Ela balançou a cabeça, ainda contando a respiração. —Então, Booker realmente fez isso? Ele vai fazer você parte do show? Irene fez uma pausa e finalmente assentiu. O garoto não estava indo a lugar algum, e ela precisava conversar com os outros artistas. Afinal, eles seriam sua nova família. —Ele fez. Mas eu não esperava que isso doesse tanto. —É melhor do que algumas das outras maneiras. Você poderia ter nascido diferente como alguns de nós. — Ele apontou para os olhos. —Isso não é normal para a maioria das pessoas. Claro que me faz me destacar na multidão. —Eu acho que eles são adoráveis. —Você não, mas tudo bem. — As membranas varreram seus olhos novamente. —Meu nome é Daniel. Irene não queria ter essa conversa agora. Ela queria se enrolar por um segundo, deixar seu corpo processar a quantidade repentina de dor e o pouco sono que ela tinha conseguido desde que esteve aqui. Mas Daniel era tão inflexível. Ele a encarava com expectativas que ela não queria decepcionar. O espírito teria que esperar também. De alguma forma, Irene sabia que a bola luz saltitante não ia a lugar nenhum rápido. Havia uma mensagem que ela deveria receber. Se isso significava esperar para conversar com um dos outros artistas de circo, o espírito esperaria. Ela soltou um suspiro e forçou um sorriso. —Irene. —Eu sei. Eu estava lá quando você veio na primeira noite, mas estamos tentando dar um tempo para você se ajustar antes dos mais... bem... os artistas mais estranhos se apresentarem. — Ele enfiou as mãos nos bolsos e balançou para frente. Fendas estranhas em seu pescoço queimaram por um segundo antes de se deitarem mais uma vez. Brânquias? —Está tudo bem. Não me assusto tão facilmente quanto algumas pessoas pensam. —Eu não achei que seria fácil fugir. —Como você sabia disso? Ele encolheu os ombros. —Acabei de fazer, senhora. Oh, ela poderia gostar deste. Ele parecia ser mais doce que os outros, talvez por ser mais jovem. Menos endurecido pelo mundo e mais animado para encontrar alguém que falasse com ele. Soltando um suspiro lento, ela acalmou seu coração trovejante e estendeu a mão. —Me ajude? —Sim, senhora. Ele a puxou gentilmente, tomando cuidado para não tocar nas partes recentemente tatuadas de seus braços. Daniel observou as ataduras com tanto cuidado que ela se perguntou se ele pensaria que elas voariam se ele não as encarasse com força suficiente. Um garoto tão gentil, e de alguma forma ele teve uma vida difícil. O pai dela teria dito que esse era seu chamado na vida. Viver através das dificuldades e ainda ver a luz de Deus através das trevas. Às vezes, ela concordava. Outras vezes, a deixava irritada ao ver o quanto as pessoas lutavam sem nenhum alívio. —Há quanto tempo você está aqui? — Ela perguntou. —A maior parte da minha vida. Eles me encontraram quando eu era criança. Booker me encontrou.. Ele me pegou, me trouxe aqui, me acomodou quando eu não sabia o que estava acontecendo. Ele é um bom homem. Irene poderia concordar com isso. Intimidador, aterrorizante certamente, mas ainda assim um homem bom por baixo daquele exterior áspero. —Sim, eu acredito que ele é. Isso parecia suficiente para Daniel. Ele assentiu com firmeza, estendeu o braço como um bom cavalheiro do sul e pigarreou. —Posso acompanhá-la de volta para casa? —Eu gostaria muito disso. Ela não conseguia se lembrar da última vez que um homem foi tão educado. Eles sempre foram gentis, é claro. Ela era a filha do pastor, afinal. Ainda assim, eles não a olhavam com sincera compaixão nos olhos, como esse garoto, por mais estranhos que fossem. Irene pegou o braço dele e o deixou guiá-la de volta para casa. Ela voltaria novamente quando o espírito quisesse que ela viesse. Por enquanto, parecia perfeitamente feliz deixá-la sair com Daniel. —Então — Ela começou, limpando a garganta com a palavra. —É rude perguntar se você é humano? Ele caiu na gargalhada, o som vindo do fundo de sua barriga e balançando através da clareira onde eles caminhavam. —Não! Não é nada grosseiro, e acho que muitas pessoas se perguntam isso sobre mim. Eu sou humano o suficiente. —Existe outro nome para você? —Homem-peixe. — As membranas estranhas piscaram sobre seus olhos novamente, e ele sorriu para ela. —É assim que meu ato se chama pelo menos. —Você pode realmente respirar debaixo d'água, ou é apenas um ato? —Eu realmente posso respirar debaixo d'água. —Fascinante! — Ela deu um tapinha no antebraço e inclinou a cabeça em questão. —Conte-me mais sobre você. Tudo o que puder. Booker abriu caminho através da multidão de pessoas em direção à loja de ferragens. Ele fora enviado para alguns suprimentos que Frank e os outros precisavam. Pregos, parafusos, as coisas habituais necessárias para manter a casa em boas condições de funcionamento ou pelo menos funcional. E precisava de muito trabalho no interior para torná-lo seguro. Os outros não podiam andar pelas ruas assim. Eles se destacavam como um polegar dolorido. Uma mãe puxou seu filho para mais perto e deu-lhe um amplo espaço ao passarem um pelo outro na rua. Ele não estava muito melhor do que os outros, mas pelo menos a maioria de suas tatuagens estava coberta. Ele abaixou a aba do chapéu-coco. A camisa de manga longa que ele usava cobria os braços o suficiente, embora o preto em suas mãos não pudesse ser escondido. Ele se recusou a usar luvas só porque as pessoas ficavam nervosas quando o olhavam. Suspensórios erguiam suas respeitáveis calças de trabalho escuras que eram um pouco grandes demais para ele. Não que ele se importasse tanto assim. Os restos eram o que ele sempre teve. St. Martinville, no entanto, não concordava com ele. Eles gostavam de pessoas que se encaixavam em sua aceitação limitada da normalidade. Embora não fosse uma cidade considerável, era grande o suficiente para atrair viajantes regularmente. As butiques sofisticadas se alinhavam no pequeno centro da cidade, na rua principal. Ruas laterais menores se separaram de lá e se transformaram em subúrbios. Ele entrou na loja de ferragens antes que o marido de alguém pudesse ficar com muita raiva de ele estar lá. A campainha acima da porta tocou, anunciando sua entrada. Booker adorava o cheiro de uma loja de ferragens. A mistura de óleo, metais e madeira sempre acalmava sua mente. Ele poderia ter sido carpinteiro em outra vida. Pena que ele não se lembrava de nada daquele tempo; ele era horrível em construir qualquer coisa. Havia um balcão baixo na parte de trás com uma caixa registradora de metal e uma cortina atrás dela, escondendo os quartos dos funcionários. O tecido pendurado estremeceu quando o proprietário entrou na loja principal. —Com o que posso ajudá-lo? — As palavras do homem sumiram quando ele avistou Booker. Ele limpou a garganta. —Bom dia senhor. Ele esperava esse tipo de reação quando alguém o via. Afinal, Booker era uma aberração. As tatuagens no rosto dele não ajudavam. Correntes na testa eram obrigadas a fazer qualquer um se destacar na multidão. Mesmo quando não havia ninguém ao seu redor, ele parecia a pessoa mais estranha da sala. —Preciso de algumas coisas. — Ele resmungou. Apenas acabe logo, ele disse a si mesmo. Ele entregou a lista ao homem e o ignorou enquanto o homem corria pela loja. Booker não era bom para os negócios; ele estava certo disso. Mesmo quando ele era Pinkerton, quando eles começaram o processo de tatuagem, as pessoas não queriam ficar muito perto dele. Uma escuridão em sua alma vazava dele, não importa onde ele estivesse. As pessoas olhavam para ele e viam o monstro embaixo de sua pele. Eles viam o modo como ele se segurava desesperadamente por um fio fino, um movimento errado e algo estalaria. Não seria bom para ninguém depois disso. O dono da loja voltou ao balcão com os braços cheios do que Booker precisava. —Eu acredito que isso é tudo, senhor. —Tenho certeza de que está bom. Alguém espiou pela vitrine da loja, as mãos pressionadas contra o vidro. Ainda outra pessoa que pensava que era um show que eles poderiam apenas olhar. O jovem sorriu para Booker, depois se recostou e acenou para outra pessoa. E essa foi sua sugestão para acelerar o processo de compra. Ele voltou um centavo, apenas para perceber que as mãos do homem estavam tremendo. Ele estava tentando tocar o dinheiro na caixa registradora, mas toda vez que tocava em uma tecla, era a errada. —Senhor. — Booker apoiou o cotovelo no balcão. —Vou precisar que você se apresse com isso. Para seu crédito, o funcionário não parecia piscar. Suas mãos pararam quase imediatamente, e ele rapidamente acrescentou o que Booker devia. Como um relógio, Booker poderia ter contado a próxima pergunta que o homem iria fazer. O homem olhou-o de cima a baixo, os olhos persistentes nas tatuagens reveladas em seu rosto e depois pigarreou. —E como você pretende pagar por isso? Por que as tatuagens sempre faziam as pessoas pensarem que ele não tinha dinheiro? Não que ele realmente não tivesse, honestamente, mas Frank pagava um preço justo e muito melhor que o diretor do circo anterior. Sem mencionar que ele não pagaria por nada disso. Era tudo na moeda da família de Frank. Booker enfiou a mão no bolso e tirou um maço de notas de dólar. — Quanto isso custa? —Vinte e quatro, setenta e cinco. Preço alto. Ele parou, depois olhou para o homem. O recepcionista começou a tremer de novo, mas enfiou as mãos nos bolsos dessa vez para que Booker não pudesse vê-lo tão facilmente. Ele colocou vinte no balcão. —Isso serve. —Senhor, esse não é o custo dos itens que você escolheu. Ele realmente achava que Booker era tão burro? Ele poderia parecer uma aberração, e ele podia se apresentar em um circo, mas ele sabia muito bem quanto custa parafusos, um martelo e pregos. Ele suspirou, recostou-se no balcão novamente e balançou a cabeça. — Veja. Não sei quem você é, se é o dono do lugar ou se está aqui apenas para um emprego. Mas sei que esses pregos são apenas alguns centavos cada, se isso. O martelo não é vinte dólares. Tudo isso é provavelmente... o que? Dez em um bom dia? O homem abriu a boca como se fosse discutir, mas Booker não queria ouvir outra palavra do homem. Ele ficava com muita raiva e as pessoas não gostavam do que acontecia quando ele ficava com raiva. Ele levantou uma mão para silenciar a outra. —Eu não ligo para quais são suas desculpas. Paguei o dobro por causar uma cena fora da sua loja. Tenho certeza de que ainda haverá pessoas dispostas a comprar o que eu toquei, especialmente se você contar a elas que são amaldiçoadas. Então, que tal você me dar essa sacola, e eu estarei a caminho. Seu sotaque irlandês queimava as palavras, dando-lhes um tom mortal que fez o homem entrar em movimento. O funcionário empurrou a sacola para ele e apontou para a porta. —Eu não quero ver você ou seu tipo aqui novamente. —Sim — Booker enfiou a sacola debaixo do braço. —Mas você provavelmente vai. Saiu da loja de ferragens e foi para a rua onde uma pequena multidão havia crescido. Eles se separaram como uma onda enquanto ele caminhava em direção a eles. Bom. Era assim que deveria ser. Eles precisavam ter medo de pessoas diferentes. O medo deles significava que ele poderia viver sua vida da maneira que quisesse. Eles não tiveram a coragem de tentar impedi-lo de ser exatamente quem ele queria ser. Mas droga. Às vezes era uma existência solitária. Ele não queria atravessar a multidão repleta de pessoas na calçada. Isso estava apenas pedindo problemas. Então ele entrou na rua que estava felizmente vazia de carros no momento. O garoto que estava olhando pela janela pulou do meio-fio e ficou na frente dele. —Ei, senhor! Booker não ia jogar este jogo. Ele reconheceu o brilho nos olhos do garoto. Ele queria impressionar seus amigos ou uma garota. Ele não respondeu. Em vez disso, ele continuou andando diretamente para o garoto. Ele se moveria ou seria derrubado. Booker era muito maior que o garoto. Deixe-o tentar criar uma parede com seu corpo magro. —Ei, senhor. Estou falando com você. Que maneira de chamar a atenção de alguém. Booker ergueu o olhar e encontrou os olhos castanhos do garoto. Os demônios dentro dele agitaram-se. Eles queriam alcançar, agarrar o garoto em volta do pescoço, apertar com tanta força que seus olhos se arregalariam e as veias neles estourariam. A reação que ele teve foi quase como se tivesse dito as palavras em voz alta. O garoto engoliu em seco, riu desconfortavelmente e depois voltou para a rua. Alguns de seus amigos, meninos que se pareciam com ele em roupas e estatura, deram um tapinha no ombro dele como se ele tivesse feito Booker se afastar. Ele já viu isso muitas vezes. Crianças querendo provar que eram muito mais corajosas do que realmente eram. Mas no momento em que tinham que provar a si mesmas, recuavam. O corpo deles reconhecia que a morte avançava na direção deles. E um corpo sempre queria viver. Ele se afastou da multidão. Sussurros de medo e murmúrios de “Quem era?” Seguiram atrás dele. Isso não importava. Ele não precisava pensar neles. Tudo o que ele precisava fazer era voltar ao circo agora. Graças a Deus, ele não havia enviado os outros. Até Evelyn teria tido dificuldade com a quantidade de pessoas aqui, e ela não parecia nada além de uma mulher normal. Bem, na maioria das vezes. Essa multidão teria despertado seu temperamento, e as pessoas tendiam a olhar quando seus cabelos pegavam fogo. Botas batendo forte no chão, ele manteve os olhos na calçada e voltou para casa. Ele chegaria lá se não tivesse mais paradas. Ninguém entraria no seu caminho. Um brilho de luz chamou sua atenção em uma vitrine no final da rua. Booker rosnou, sabendo que não deveria parar, mas isso tinha sido... Alguma coisa. Fios de consciência o fizeram hesitar e olhar para a janela. Ali, aninhada em uma cama de veludo preto, havia uma abelha de cristal. Ele pensou que poderia ser um broche, mas em uma inspeção mais detalhada, era um pequeno alfinete para usar no cabelo de uma mulher. Ou de um homem, ele supôs, embora parecesse um tanto estranho na cabeça de um homem. Era delicado, tão frágil que ele temia que seus dedos arrancassem as asas se ele a tocasse. Tipo como ela. Droga. Ele estava pensando nela novamente. Quantas vezes ele faria isso? Ela continuava mexendo nos pensamentos dele, e isso era perturbador. Booker não se distraia. Ele tinha que se concentrar em seu caminho com precisão a laser ou as tatuagens voltariam a se mover, e isso não era uma coisa boa. Ele estava em público, pelo amor de Deus. A última coisa que ele precisava era fazer um show gratuito. Ele se sacudiu e se afastou da janela. Ela não gostaria mesmo. Irene não era o tipo de mulher que usaria algo tão frívolo. Ela gostava dos seus vestidos de verão e do olhar inocente que ela cultivava cuidadosamente antes de ir até eles. Ela deveria. Afinal, ela os usava todos os dias. Ou talvez... Booker revirou os olhos e recuou alguns passos. De volta à janela onde a abelha piscava à luz do sol. Talvez ela não quisesse ser a garotinha inocente pura. Ela estava fazendo tatuagens com ele e sentou-se naquela cadeira por cinco horas sem reagir. Dentro desse pequeno querubim, poderia haver um anjo de pleno direito, esperando para explodir, o tipo de mulher que virava a cabeça em todos os lugares por onde passava, apenas porque era perfeita. Maravilhosamente gloriosa em sua confiança, seu ar e em cada minúscula joia que ela usava. Ele não deveria. Ela não gostaria que ele começasse a trazer presentes para ela. A mulher já o beijara; ele não precisava incentivar essa paixão. Ela o beijou como uma virgem, isso era certo. Seus lábios estavam secos e rachados, pressionando muito levemente contra os dele para sentir uma grande pressão. Ela se manteve lá, imóvel, como se pensasse que esse era o jeito de beijar. Booker gemeu com o mesmo pensamento que vinha passando por sua cabeça nos últimos dias desde que ela o beijara pela última vez. As chances de ela já ter beijado alguém antes dele eram praticamente nulas. Como a pele pálida que ele havia marcado, ela era tão intocada quanto uma sacerdotisa. E ele não queria nada além de manchá-la com as mãos, assim como os braços dela. Droga. Balançando a cabeça com sua própria tolice, ele entrou na loja. A sacola embaixo do braço triturando alto enquanto ele caminhava em direção à recepção. O homem atrás dele ficou branco, seu bigode fino tremendo quando ele olhou para a criatura que o perseguia. —Po... — A voz do homem falhou. —Posso ajudar? Booker colocou um dedo no ombro. —A abelha. Eu vou levar. —Receio que essa peça seja muito cara Booker enfiou a mão no bolso e jogou o maço de dinheiro na mesa. — Isso é suficiente? Não havia nada mais satisfatório do que ver os olhos do homem se arregalarem de choque enquanto ele encarava a massa de dinheiro. Booker sabia que era muito. Ele já estava economizando há algum tempo e essa nem era toda a moeda que ele tinha em seu nome. O funcionário engoliu em seco, o pomo de Adão balançando. —Sim senhor. Eu acredito que isso será suficiente. Permita-me embrulhá- la para você. Booker se perguntou se as pessoas o olhariam e assumiriam que ele tinha o suficiente para pagar por alguma coisa. Não eram apenas joias ou suprimentos, mas até comida. Eles sempre pensavam que ele ia pegar o que eles lhe entregavam e fugir, como se ele estivesse desesperado. Ele trabalhou duro a vida inteira para conseguir o que precisava. Ele nunca roubou, nunca precisou e, embora possa parecer um vagabundo, isso não significava que ele estava completamente sem talentos. O atendente se escondeu atrás da cortina, embora desta vez a tenha deixado aberta. Ele realmente achava que Booker se ofereceria para comprar algo para poder roubar outras pessoas? Booker não tinha exatamente os bolsos para guardar todas essas joias. Além disso, o que ele faria com isso? Não que ele pudesse vendê-las para outra loja ou na rua. As pessoas saberiam como ele as conseguiu em primeiro lugar. Ele nunca entenderia o medo das pessoas por ele. Havia muito mais coisas assustadoras para se preocupar, e elas usavam normalmente os rostos de homens bonitos. O recepcionista voltou com a pequena joia enrolada em veludo preto, depois pegou uma sacola embaixo do balcão. —Quem é a sortuda? —Ninguém em particular. —Está claro que isso fez você pensar em alguém. Ficará bem no cabelo dela? — O funcionário entregou-lhe a joia embrulhada. —As mulheres adoram um pouco de brilho. —Não esta. — Ele respondeu. Quando ele colocou a sacola junto com as outras, ele percebeu que não sabia se ela gostava de coisas brilhantes. Ele realmente não sabia nada sobre ela. Suspirando, ele olhou de volta para o funcionário. —Ou acho que não sei se ela sabe. —Confie em mim, todas as mulheres gostam de algo com diamantes. — Como se a conversa o tivesse relaxado, o funcionário piscou. —Boa sorte. Booker não conseguia se lembrar da última vez que alguém piscou para ele. Ou se alguém já fez isso. Essa foi uma moção para pessoas com boas intenções, não para quem estava prestes a tirar uma vida. Ele limpou a garganta, assentiu e saiu da loja. Embora ele quisesse ser visto como uma pessoa normal, Booker ainda não sabia como reagir quando alguém era... gentil. Ele sabia como responder às pessoas que gritavam. Pessoas olhando, como o garoto da loja de ferragens tinha feito. Mesmo aquele na rua era um comportamento normal para quem não o conhecia. Isso era fácil de entender. Alguém percebendo que ele não era tão assustador e lhe dando conselhos sobre mulheres? Ele não sabia como engolir isso. Pelo menos não da maneira que a pessoa provavelmente queria. Booker sacudiu a cabeça. Deixe para lá, ele disse a si mesmo. Apenas volte ao circo. —Agora, esse é o garoto da Lucy? Aparentemente, voltar ao circo não estava planejado para o dia. Booker abaixou o chapéu, evitando o grupo de homens que estavam esperando do lado de fora da loja. Claro que eles sabiam que ele era filho de Lucy. Uma rápida olhada revelou que eles eram as pessoas que o criaram a maior parte de sua vida. Aqueles que marcaram sua alma com as lembranças mais sombrias que ele já sofreu. —Você sabe — Respondeu um dos outros homens, o cigarro entre os lábios balançando —Acho que pode ser. Pinkertons. Mesmo na cidade, eles conseguiram encontrá-lo. De alguma forma. Mesmo que os Pinkertons não fossem bem-vindos em estabelecimentos “agradáveis”. Eles ficaram em sua casa na colina, cerca de meia hora fora da cidade e só saíam na lua azul. Booker ergueu os ombros e encontrou o olhar deles com a cabeça erguida. Eles realmente não mudaram muito desde a última vez que os viu. Os mesmos ternos pretos combinando. Cabeças raspadas que davam a todos uma aparência agressiva. Mas era a fome nos olhos deles que ele mais reconhecia. A fome que significava que eles estavam ansiosos por uma briga. Uma muito pública. —Meninos. — Resmungou Booker. —Faz tempo que não vimos sua bunda peluda. Ele levantou uma sobrancelha, mas não respondeu. Ele não estava com disposição para brigar com esses “cavalheiros”. Booker adoraria enfiar o punho nos rostos deles, batendo sem parar até o osso quebrar. A dor que ele teria que suportar apenas para sentir o esmagamento do crânio valia a pena o trabalho, mas não hoje. O líder do grupo, um que ele não reconheceu e que provavelmente foi promovido recentemente, caminhou em sua direção. —O chefe disse para falar com você. Ver onde você estava na vida. —Deixei a família há muito tempo. — Mas isso não significava muito, não é? Ele foi o único que havia partido, e mesmo assim foi uma benção. Eles não sabiam como matar a criação que haviam feito. O que significava que eles iriam assombrar seu passo para garantir que ele não estivesse fazendo nada que a família desaprovasse. —Você não lembra? Você não pode deixar a família viva. — O homem hesitou e acrescentou: —Pinkerton. Booker odiava ser chamado assim. Ele tomou o nome legalmente como seu, assim como sua mãe, mas isso não significava que ele queria estar ligado a eles. —Booker Pinkerton. — Repetiu o homem. —Você foi chamado pelo pai. O velho sempre insistia que todos o chamassem de “pai”, mesmo que ele não estivesse nem perto de ser uma figura paterna para qualquer um deles. Ele era brutal, implacável, um homem que não merecia o nome. E Booker não trabalhava mais para ele. Ele balançou sua cabeça. —Diga a ele que não. —Disseram-nos para não tomar isso como resposta. —Então você terá que voltar ao querido pai e contar as más notícias. — Booker apertou a bolsa. —Você já ouviu falar de mim, eu acredito? O homem bufou e revirou os olhos. —Histórias sussurradas sobre um homem tatuado, sim, claro. Não é real. Eles sempre diziam isso. Sempre tentaram justificar o que ouviam de uma maneira que pudessem entender. Inferno, mesmo Booker não sabia o que o curandeiro do pântano havia feito com ele. Tudo o que sabia era que o pai havia encontrado um homem que disse que ele poderia dar vida ao extraordinário. E ele podia. A cobra em volta do pescoço dele se mexia, escamas distorcendo enquanto se apertava ao redor de sua garganta. As correntes na testa balançavam com um vento que não soprava na rua, mas o som ainda ecoava no ar. —Não é um mito, garoto. Os olhos dos Pinkertons se arregalaram, todos eles, e eles não tentaram detê-lo quando ele atravessou o meio deles. Ele lidaria com esse problema mais tarde. Mas primeiro, ele tinha que ver sobre uma mulher. Irene não o via há alguns dias. Mais dias do que ela realmente pensava que deveriam ter passado. Mas agora passaram duas semanas após sua primeira sessão com ele, e ele disse a ela para encontrá-lo naquele momento. A tatuagem havia descascado, exatamente como ele disse. Ela usou a loção que achou boa, mas ainda parecia horrível por quatro dias após o processo. E ele não estava lá para ela fazer perguntas. Ela se escondeu em seu novo quarto, olhando para os braços ofensivos como se houvesse algo errado com eles. E havia. Eles estavam derramando a pele pior do que qualquer queimadura que ela já teve em sua vida, sem explicação sobre o porquê. Medo como nunca havia experimentado antes fez seu estômago revirar. Isso era diferente das perguntas que ela tinha quando seus pais a trouxeram. Pelo menos com o exorcismo, ela sabia que dor esperar e quando. O processo de cicatrização da tatuagem era totalmente novo e estrangeiro. Seu corpo precisava de alguém para curá-lo, porque ela não sabia como. Era como ver os braços dela começarem a apodrecer sem nada que ela pudesse fazer para detê-lo. Ela só conseguiu prender a respiração quando seu próprio corpo se rebelou contra si mesmo. Felizmente, o descascamento parou, e então ela tinha lindas tatuagens para olhar. Elas eram impressionantes em suas linhas agora. Bordas pretas de flores e abelhas. Tantas abelhas. Às vezes, ela encarava a arte delicada por minutos inteiros. As asas de cada abelha eram tão leves que pareciam quebradiças. As flores eram tão realistas que às vezes ela achava que podia sentir o cheiro delas, mesmo quando estava dentro de casa. Agora, era hora de trazê-las à vida ainda mais. Ela não sabia o que Booker havia planejado para ela. Ela era apenas uma mulher normal. As tatuagens não arrancariam sua pele como a dele, mas estava tudo bem. Talvez ele a quisesse como assistente em seu ato, e então eles combinariam. Duas criaturas tatuadas, completamente sobrenaturais em sua estranheza. Primeiro, porém, ela tinha que encontrá-lo. Irene passou a mão pelo corpete do vestido emprestado. Evelyn lhe dera o máximo de roupa que podia, depois prometeu que iriam encontrar mais no primeiro momento em que ambas tivessem tempo livre. O veludo verde- esmeralda parecia muito caro para ela usar diariamente, mas Evelyn usava vestidos assim todos os dias. O veludo escorreu por suas curvas, um pouco mais solto que em Evelyn, já que ela era muito mais curvilínea que Irene. Mas ainda era bonito e confortável de usar. Terminava logo acima dos tornozelos, e Evelyn combinara com sapatilhas verdes que pareciam tão adoráveis. Ela se sentia como uma princesa, e Irene nunca esperava se sentir assim em um circo. Hesitante, ela entrou na cozinha, onde todos os outros estavam fazendo o jantar. Booker deveria estar aqui com eles. Todos eles tentavam ter o maior tempo possível com a família. Exceto, ele não estava lá. Os outros artistas zumbiam pela cozinha como sua própria colmeia, cada um sabendo quando a outra pessoa iria reagir e como contorná-los. Tiny, o homem gigante, segurava pratos cheios de comida sobre a cabeça, enquanto Daniel disparava entre Clara e Tom enquanto eles chegavam ao forno. —Boa noite — Disse Irene calmamente, sua voz pouco mais que um sussuro. Todo o movimento na cozinha parou quando eles se viraram para encará-la em um movimento sincronizado. Quando ninguém respondeu, Irene pigarreou e perguntou um pouco mais alto: —Alguém sabe onde está Booker? Clara de repente entrou em movimento, a barba no queixo vibrando com o movimento enquanto corria em direção a Irene. Só que... quanto mais ela se aproximava, Irene percebeu que não era porque ela estava andando tão rápido, mas sua barba realmente estava se movendo sozinha. Como um segundo braço, ou talvez um rabo, alcançou Irene antes de Clara dar um tapa. — Querida, nós não a vemos há algum tempo! —Eu estava cansada. — Respondeu Irene calmamente, certificando-se cuidadosamente de que as mangas compridas de seu vestido cobrissem as tatuagens. —Eu só preciso ver Booker. Ele me disse para ir vê-lo depois de duas semanas. O olhar de Clara disparou para os braços e depois voltou para o rosto. — Realmente já faz uma semana? —Sim, senhora. —Bem, então. — Clara fez uma pausa, olhou por cima do ombro para os outros artistas, depois voltou para Irene. —Booker está um pouco ocupado esta noite, querida. Talvez você deva procurá-lo amanhã. Ocupado? Mas ele disse para ir agora. Ela supôs que esse era o jeito das coisas. Ela o beijou, afinal. Claramente saindo da linha e levado o relacionamento deles em uma direção com a qual ele não estava confortável. Embora não tenha sido realmente um relacionamento. Eles eram conhecidos, na melhor das hipóteses, ou, realisticamente, mais como um total de estranhos que já haviam se cruzado na rua algumas vezes. Deixar-se zangar com isso era apenas uma tarefa tola. Ele não queria machucá-la, só queria enviar uma mensagem. Ela esteve sozinha a vida inteira em uma multidão de pessoas. Irene também poderia continuar essa charada nesta casa. Assentindo, Irene saiu da cozinha para trás. —Desculpe interromper. Vou voltar para o meu quarto. —Você sempre pode se juntar a nós para jantar. — Clara respondeu com um sorriso no rosto. Ela balançou a cabeça. —Não estou me sentindo tão bem. Outra voz os interrompeu da cozinha. Daniel tirou as mãos da pia, coberto de espuma, e apontou para o quintal. —Mas Booker está no cemitério hoje à noite. Ele está sempre lá na noite, é assim. Todos ficaram em silêncio novamente, olhando para o garoto como se ele não devesse ter dito isso a ela. Mas por que eles não gostariam que ela soubesse? Booker a pediu especificamente. Eles não tinham motivos para tentar escondê-lo dela. Clara tossiu em sua mão e Tiny apalpou a parte de trás da cabeça de Daniel, forçando o garoto a voltar à sua tarefa. —Querida — Começou Clara. —Acho que você pode querer dar a noite a Booker. É o aniversário da morte de sua esposa e... bem, você pode imaginar por que ele pode querer ficar sozinho. Ele foi casado? Mas ele parecia tão jovem. Irene sabia que ela não deveria incomodá-lo. Respeitar a privacidade dele era a primeira coisa que ela poderia fazer para reparar suas ações tolas. Então, ela sorriu suavemente e respondeu: —Eu entendo. Eu ainda gostaria de voltar para o meu quarto. —É claro querida. Vou lhe trazer o jantar mais tarde. —Eu posso encontrar a minha na geladeira. Uma soneca pode me fazer bem. Sentia-se péssima mentindo para Clara, principalmente porque fora ela quem ajudara tanto Irene. A mulher era como uma mãe para o resto da casa. Mas Clara também era muito super protetora e Irene sentiu que era algo que ela precisava fazer. Clara deu um tapinha no ombro dela e depois voltou para a cozinha. Os outros começaram seus movimentos novamente, como uma dança se movendo pelo palco da cozinha. Era tão fácil para eles estarem juntos. Ela sempre se perguntou como seria isso. Estar tão à vontade com outra pessoa que ela sabia o que eles fariam antes mesmo de pensar nisso. Suspirando, ela voltou pelo corredor até ficar fora de vista. Então ela atravessou a sala de jantar e a sala de estar, certificando-se de que ninguém estava por perto para vê-la e pela porta dos fundos. Ela não sabia o que Booker estava fazendo no cemitério, mas pretendia descobrir. Lucy Pinkerton. O nome na lápide deve ter algo a ver com isso. Mas parecia muito mais velho. A menos que Booker não envelheça como uma pessoa normal, e nesse circo, ela não ficaria surpresa por não ser o túmulo de sua esposa. O granito já havia desmoronado nas bordas da lápide de Lucy. Musgo estava incrustado na lápide, e havia um ar de quietude em torno dele. Como se o chão não tivesse sido perturbado por séculos. Então, havia o espírito de luz que a guiara ao cemitério algumas noites antes. Aquela era Lucy? Ou era a esposa de Booker que queria que ela entendesse alguma coisa? A mente de Irene girou com as possibilidades. Ela desejava que os espíritos que o seguiam fossem do tipo que falasse. Eles eram muito mais fáceis de lidar, mesmo que suas formas fossem aterrorizantes. Ela atravessou a grama coberta de orvalho. A lua surgiu no horizonte, quase cheia, mas faltando apenas a menor das fatias. Ainda assim, era a lua mais bonita que ela via há muito tempo. Irene olhou para a luz prateada, respirando o calor do ar da noite. Eles chamavam isso de verão indiano. Uma onda de calor surpreendente no último segundo encheu o ar com umidade, dificultando a respiração. Mas ela gostava de calor assim. Ela sempre estava com frio no inverno, mesmo que não estivesse tão frio aqui no sul. O calor a fez sentir como se ela pudesse vestir o que quisesse. Que ela podia passear lá fora com pouco mais do que uma saia curta e ainda estar bem, mesmo que cada parte de sua educação dissesse que isso era errado e um pecado. Ela ainda estava maravilhada com a lua, e talvez seja por isso que não viu o espírito até tarde demais. Um momento, ela estava olhando para o céu, no outro, sentiu uma mão envolver seu tornozelo. Soltando um grito suave, ela olhou para um espírito que se arrastara para fora da terra. Faltavam olhos, apenas buracos no rosto que a encaravam enquanto tentava desesperadamente ver quem estava segurando. Faltavam pedaços de carne nas mãos esfarrapadas e alguns dos dentes já haviam caído da cabeça. —Ajude-me- —Sinto muito. — Ela ofegou. —Eu não posso. Irene se soltou e correu em direção ao cemitério. Eles a deixariam em paz? Esses espíritos que queriam algo, e todos eles queriam algo. Eles se retiravam continuamente das sepulturas, a agarravam por quanto tempo pudessem e sugavam toda a alma dela. Não literalmente, é claro. Nenhum deles tentou roubar sua alma mortal. Ainda. Ela correu pela grama alta que batia nas pernas, provavelmente arruinando o veludo verde de seu vestido emprestado. Ela teria que explicar a Evelyn mais tarde, mas essa coisa estava atrás dela. A pobre alma não quis assustá-la, lembrou a si mesma enquanto diminuía a velocidade. O cemitério estava na sua frente, silhueta ao luar e provavelmente o pior lugar para ela estar. Haveria mais almas lá. Mais criaturas que queriam algo dela. Mas ele também estava lá. O homem que saia das sombras como um demônio, mas que ela tinha certeza tinha um anjo dentro dele. Irene soltou um suspiro e entrou no cemitério. Ela enfrentaria o mundo por ele, até seu próprio medo irracional. Não foi difícil encontrar Booker. Ele estava estendido sobre uma lápide em forma de mesa, tornozelos cruzados e braços atrás da cabeça. Um cigarro pendia mole entre seus lábios, e ele soltou uma longa mecha de fumaça que se estendeu em direção à lua. Ele não estava vestindo uma camisa. As tatuagens realmente se estendiam por todo o corpo, tanto que ela não viu nenhuma pele não marcada. Bestas aterrorizantes, leões, tigres e até um dragão se estendiam por seu torso. Correntes enroladas nos dois pulsos; embora ela não pudesse ver a correspondência, ela sabia que estava lá. O que mais a fascinou, no entanto, foi a tatuagem no centro do peito. Um buquê de flores, morto e murcho, repousava diretamente sobre seu coração. O que algum dia possuiria um homem como ele para fazer essa tatuagem? Ela se aproximou, seus pés esmagando o cascalho que outrora havia sido um caminho através do cemitério, quando as pessoas o visitavam com mais frequência. Ele não se mexeu com o som, apenas soltou outro suspiro de fumaça e murmurou: —Eu pensei que tinha dito a todos para ficarem longe. —Você não me disse isso. — Respondeu ela, a brisa a pegando e jogando no ar da noite. —Você me disse para vir te encontrar. Irene observou seus ombros enrijecerem. Todo o seu corpo pareceu se agarrar ao perceber que ela era quem o encontrara. Com a mesma rapidez, ele suavizou a reação e recolocou a máscara de seu rosto habitual. Mas ela viu desta vez. Ela sabia que ele reagiu a ela da mesma maneira que ela reagiu a ele. Quando ele não respondeu, ela deu mais alguns passos. —Você disse para esperar duas semanas. Faz duas semanas hoje. —Não achei que isso acontecesse hoje. — Ele murmurou. —Às vezes o tempo faz isso com as pessoas. —O quê? — Ele se moveu então, olhando-a com olhos assombrados. Olhos escuros. Olhos que tinham visto muito em sua vida e agora queriam que ela suavizasse toda a dor. —Surpreende-as. Às vezes, todas as coisas boas que fizemos em nossa vida voltam de uma só vez. —Você é meu presente por ser um bom homem? — Ele bufou e deixou o cigarro cair da boca. Bateu na pedra embaixo dele com um assobio suave. — Anjo, eu nunca fui um bom homem. O que isso diz sobre você? Ela encolheu os ombros. —Talvez eu tenha perdido muito tempo com pessoas más que disseram que eram boas. Ele sentou-se na pedra, rolando até as pernas pendurarem na beira. Ele agarrou a borda da lápide com dedos fortes, os tendões flexionando com a força que ele costumava segurar nela. Booker olhou para os pés dela por longos momentos antes de olhar com ferocidade nos olhos. —Eu não sou um homem bom, fingindo ser ruim. Irene notou a garrafa de licor do outro lado da cova na grama irregular. Na verdade... quando ele se inclinou para o lado, havia várias garrafas ao lado, como se ele as tivesse jogado vazias. Ela não podia culpá-lo por procurar ajuda no fundo de uma garrafa. Se realmente era o aniversário da morte de sua esposa, ele merecia processar isso da maneira que precisasse. Claro, isso ainda a deixava um pouco desconfortável. —Eu não acho que você é um homem mau. Lentamente, ele escorregou da lápide e caminhou em sua direção. Seus quadris se moviam de maneira pecaminosa. Os músculos do estômago dele se flexionaram, lançando sombras através das tatuagens. Ela deveria se afastar dele. Ela deveria pelo menos ter tentado fugir, porque havia claramente algo sombrio em sua mente. Algo que a arruinaria ainda mais do que as tatuagens que ele colocara nela. Mas ela não fugiu. Em vez disso, Irene prendeu a respiração. Ela queria saber o que ele ia fazer. Ela queria ver o raciocínio do brilho perverso em seu olhar. Porque ele estava absolutamente fazendo algo. Não havia chance de ele deixá-la sair deste cemitério agora que ela estava ao seu alcance. Booker parou na frente dela. Ele olhou através dos olhos encapuzados, preguiçoso em seus movimentos lentos quando ele estendeu a mão e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela. Ele não falou, pelo menos, não com suas palavras. A cobra em volta do pescoço mexeu, descendo sobre os ombros para revelar a corrente que escondia. Ela podia ouvir o barulho quieto quando ele se conteve. E foi isso que ela percebeu. O som era ele lutando contra alguma coisa. Alguma coisa lá dentro dizia para ele se mexer, agir, e era algo que ele não queria fazer. Ela deveria dizer alguma coisa? Ela deveria liberar o animal dentro dele que queria... o quê? Ela não precisava dizer uma palavra. Booker deslizou a mão pelo pescoço dela. Dedos leves, ele traçou a curva do pescoço dela, desceu pelo ombro e depois até o pulso, que ele cuidadosamente ergueu. Lentamente, ele desabotoou os fechos que mantinham os punhos fechados. —Você veio hoje à noite porque eu te disse — Ele sussurrou. —É isso? Palavras escaparam dela. Ela mal conseguia pensar quando ele estava puxando o tecido, deslizando-o pelos braços para revelar as linhas pretas em sua pele. Irene assentiu trêmula. —Você tem certeza disso, Anjo? — Booker levantou o braço mais alto, deixando o luar acariciar as tatuagens. —Você tem certeza de que não veio aqui por sua própria vontade? —Eu não sei. —Eu preciso que você pense, Anjo. Preciso que você me diga exatamente por que está aqui hoje à noite. Por que ela estava aqui? Parada na cova de um demônio que a encarava com os olhos em chamas. Irene se aproximou. Ele estava tão quente, o calor subindo dele como nada que ela já sentiu antes. —Eu não sei. —Dê-me uma resposta, anjo. Ela engoliu em seco. —Senti sua falta. —Sentiu minha falta? Você não me conhece. —E essa é a parte confusa. Não sei por que senti sua falta. Estive no meu quarto a semana toda. Mas havia algo muito reconfortante em saber que você estava em casa quando eu precisei que você estivesse. Você saiu esta semana e eu estava com dor, assustada com o que estava acontecendo com a tatuagem, e você não estava lá para eu fazer perguntas. Irene de repente percebeu com uma clareza surpreendente que estava com muita raiva. Ele tinha sido o único a fazer isso com ela. Foi ele quem insistiu que essa era a única maneira de ajudá-la a ficar e, sim, ela concordou com isso, mas isso não significava que ela não estava com medo. Isso não significava que ele desaparecesse quando quisesse, apenas porque queria. Uma repentina explosão de raiva a invadiu, e ela jogou os punhos no peito dele e o empurrou para trás. Forte. —Você não estava lá. Sombras explodiram em vida atrás dele. Irene reconheceu a nuvem escura ondulando atrás dele. Uma pontada de medo enviou gelo por suas veias. Este não era apenas um espírito que a seguiu. Isso era algo muito mais. A energia estalou, pequenas rajadas de raios em miniatura atingindo a massa negra. Ela não achou que fosse necessariamente um demônio, embora Irene não tivesse outro nome para isso. Ela só sabia que o cobria quando algo estava acontecendo, uma escuridão que sussurrava em seu ouvido, mesmo agora. —Não estou aqui para cuidar de você — Rosnou Booker. —Você veio até nós, lembra? Você saiu do pântano em busca de ajuda, e foi isso que eu fiz. —Ajuda? — Ela balançou a cabeça. —Não, você não pode dizer que me ajudou. Você me marcou sim. Você me mudou, com certeza. Mas você não me ajudou. —Você ainda está aqui, não está? —Um lugar para morar não é seguro. Você não sabe o que pode sair da floresta para mim! Você não sabe nada sobre mim. Tudo o que você fez foi colocar um pouco de tinta na minha pele. Ele pulou para frente. Um braço forte e duro serpenteava em volta de sua cintura e a puxou contra ele. Ela soltou um assobio, as palmas das mãos contra a larga e quente extensão do peito dele. Booker se inclinou até que seus lábios estavam tão perto de sua orelha que ela podia sentir o calor deles. —Você realmente acha que isso é apenas tinta? Uma respiração irregular escapou de seus lábios, passando pelo pescoço dele. Os cordões fortes estavam tão perto que ela podia pressionar os lábios contra eles, se quisesse. Então ela fez. Ela queria fazer isso com todas as fibras de seu ser, embora não entendesse o desejo. —O que mais poderia ser? — Ela perguntou. —Você, de todas as pessoas, sabe que o diabo cavalga no meu ombro. — Suas mãos apertaram sua cintura. —Essas tatuagens são tudo o que eu quero que elas sejam. —Você não pode fazer um acordo com o diabo por mim. —Vou fazer um acordo com quem eu quiser — Ele rosnou. —Agora, cale a boca, Anjo. Acabei de perceber que Deus ainda não sabe que estou morto. Tenho sete minutos no céu antes que outra pessoa colete minha alma. Ela mal teve tempo de respirar, muito menos pensar antes de ele cobrir seus lábios com os dele. O calor a envolveu e se tornou uma dor ardente que tinha gosto de uísque e o tempero de canela que ele sempre cheirava. As mãos dele se apertaram nas costas dela, mas ela só conseguiu se concentrar no jeito que ele a devorava. Era assim que as pessoas deveriam se beijar. Ele pressionou a boca contra a dela com lenta certeza. Cada movimento a levou de volta ao momento. Cada vez que ele pegava seu lábio inferior entre os dentes e mordia com força o suficiente para fazê-la empurrar, ele acalmou a dor com a língua. Irene se pressionou contra seu peito, tentando acompanhar e não apenas deixá-lo engolir tudo o que ela era. Tudo o que ela poderia ser. Nesta batalha entre eles, ele venceu. Ele dissolveu todas as bordas de sua alma esfarrapada e as puxou para dentro de si. Ele criou outra criatura dentro dela. Ou talvez, ele lançou alguma coisa. Uma mulher que ela ainda não conhecia, mas alguém que ela sabia que sempre quis ser. Essa mulher sabia o que fazer com ele. Ela sabia como cravar as unhas em seu peito com força suficiente para que ele gemesse em sua boca. Ela sabia se aproximar ainda mais dele, deslizando o peito para cima e para baixo contra o dele, porque era isso que parecia certo. Acima de tudo, Irene subitamente soube que havia sido libertada. Ela podia respirar o ar e não sentir como se alguém a estivesse julgando. Ela pegou o que queria. E apesar de ele ter sido o único a beijá-la dessa vez, era uma maneira de os dois recorrerem ao que precisavam. O que suas almas precisavam. Finalmente, ele se afastou dela. Sua boca estava vermelha e inchada, as correntes na testa se moviam como se alguém as estivesse sacudindo pela liberdade. —Eu não deveria ter feito isso — Ele sussurrou, lambendo os lábios. — Mas eu não vou me desculpar por ter arrastado você do céu comigo, anjo. —Quem disse que eu estava lá para começar? Como o sol havia estourado nas nuvens, ela percebeu que ele pensava que ela realmente era um anjo. Ele a colocou em um pedestal, e ela não queria estar lá. Ela deu um passo para trás, revirando o estômago com a alegria de seu beijo e a grave decepção que ele não a conhecia. Nenhum deles a conhecia. —Boa noite, Booker — Ela sussurrou, depois se virou para sair. —Vejo você amanhã para a tatuagem. A dor ardente dos olhos dele nas costas dela fez seu coração bater mais rápido, mas ela não olhou por cima do ombro para vê-lo. Em vez disso, ela manteve os olhos na casa enquanto passava pela porta dos fundos. Booker pressionou as palmas das mãos contra os olhos. Quem estava batendo à sua porta a essa hora abandonada por Deus? Especialmente depois da noite passada. Todos sabiam deixá-lo em paz até pelo menos uma hora e, mesmo assim, provavelmente era melhor deixá-lo sozinho por um tempo. Mas as batidas continuaram. Concedido, eles não estavam exatamente batendo na porta. A batida foi talvez a mais educada que ele já ouviu. Os outros artistas eram mais propensos a bater com as mãos pesadas, gritando com ele para sair da cama, porque ele nem sempre podia viver durante a noite, em vez de o dia com o resto deles. Ele não funcionava bem quando o sol batia nas costas dele. Ele preferia o luar. Trevas. Nas sombras, onde ele podia se esconder dos olhos curiosos de pessoas que só queriam dissecá-lo. Esses pensamentos foram para outra hora. De preferência, quando uma ressaca não fazia seus olhos parecerem pesados em seu crânio. —Estou dormindo. — Ele resmungou. —Vá embora. —Você disse para vir vê-lo. — A voz de Irene flutuou através da porta como uma música. Ela estava frustrada com ele? Claro que parecia. Ele nunca a ouviu parecer zangada antes. Inferno, ele não a ouvira falar com nada além dos mesmos tons exatos em que ela sempre falava - suave, quieto, como um rato que não queria incomodar o gato no andar de cima. De todas as pessoas, ela era a única na casa que ele não podia ignorar. Ela tinha um jeito de mexer sob a pele dele. Uma pequena pontada de consciência fez o calor florescer em suas bochechas. Por que ele estava sentindo que estava faltando alguma coisa? Como se ele tivesse feito algo que não conseguia se lembrar, mas iria se arrepender absolutamente? Booker levantou-se cuidadosamente da cama e certificou-se de que o cordão da calça estava apertado. Não há necessidade de assustar a coisinha bonita com um olhar para ele em toda a sua glória. Ele pegou uma camisa para vestir, apenas para ter um lampejo de memória bêbada. O cemitério. Sem camisa. Ela. Droga. Então ela definitivamente já o viu sem camisa. O desempenho não contava. Ninguém conseguia distinguir detalhes da multidão. Mas ele não gostava de ninguém olhando as flores no peito. Elas mostravam como ele estava morto por dentro, e mesmo que isso fosse o que ele queria que as pessoas pensassem dele, ainda doía. Booker tirou a camisa e caminhou em direção à porta do quarto, estremecendo sua mente para lembrar o que ele poderia ter dito. Ele não era um homem violento, esse não era o estilo dele, e sua mãe o mataria se ele levantasse a mão para uma mulher. Bem, uma mulher que não era um de seus trabalhos. Até a mãe de Booker estava com sede de sangue o suficiente para concordar com a família que, se alguém tivesse dado um golpe em alguém, eles mereciam. Não foi até ele muito mais velho que ele reconheceu o ódio fluindo pelas veias de tantas pessoas. Um pedido de assassinato não significava que aquela pessoa era má. De fato, era mais provável que a pessoa não tivesse feito nada que valesse a pena morrer. E, no entanto, ele sempre lhes deu a mão que não mereciam. Suspirando, ele passou a mão sobre a cabeça e depois abriu a porta. Ela estava sozinha no pé da escada, cabelos brancos caindo sobre os ombros, soltos e gloriosamente adoráveis. Olhos amarelos olharam para ele pelo rosto mais deslumbrante que ele já viu em sua vida. Não era justo que ela pudesse deixá-lo sem palavras só de olhar para ele. Que ela poderia atordoá-lo apenas por existir. O olhar de Booker se afastou do rosto, desceu pelo corpo e voltou. Os olhos dele pegaram seus lábios, aqueles lábios manchados de framboesa que ele de repente, com uma clareza surpreendente, lembrou pressionados contra os seus. Não o beijo que ela lhe dera antes, o beijo casto de uma mulher que tentava ao máximo crescer. Não. Esse beijo foi cheio de calor e desejo. Anos de raiva do mundo se espalharam em um momento em que ele a roubou como o monstro que ele era. Ela vestia preto, ele percebeu. Ele nunca a viu em outra coisa senão uma cor brilhante. E, no entanto, agora, ela usava a única cor que poderia fazer sua pele coçar de desconforto. Como se estivesse de luto, o veludo preto escorria por seus ombros, apertando a cintura e estufando as pernas. Booker imaginou como ela seria em roupas justas. Melhor não se demorar nesses pensamentos. Afinal, ele estava vestindo calças largas de dormir. —Bom dia. — Disse ela, olhando para ele como se estivesse esperando ele dizer alguma coisa. Talvez ele devesse ter. Era difícil falar com ela. Ele limpou a garganta. —Dia. Irene mexeu algo em suas mãos, e ele percebeu que tinha sentido completamente a falta dela, segurando uma bandeja nas mãos. Uma bandeja com um copo de suco de laranja e um prato cheio de café da manhã. Panqueca, bacon, ovos... Ela trouxe o suficiente para alimentar duas pessoas. Talvez esse fosse o ponto dela. Ela olhou para a bandeja, depois recuou e o cegou com um sorriso. —Eu pensei que você poderia estar com fome. —Eu não estou. Ele disse isso para desencorajá-la. Ela não podia estar vagando por aqui com pensamentos em sua cabeça de que ele era um bom homem. Ele roubou um beijo e Deus sabe o que mais dela ontem à noite. Ele não queria machucá- la mais do que já tinha. Mais uma vez, ele a subestimou. Irene manteve o sorriso no rosto e passou por ele em seu quarto. —Você estará depois dessa tatuagem, tenho certeza. Foi cansativo para nós dois, se bem me lembro. — Ela lançou um olhar por cima do ombro e colocou a bandeja ao lado da cama dele. —Foi há uma semana, no entanto, para que eu pudesse estar errada. Ela não estava. Mas, novamente, a mulher poderia estar errada? Ele queria colocar o mundo a seus pés e dizer que era dela. —Por que você está aqui, Irene? — Ele perguntou, mantendo o tom ranzinza e descontente. —Porque você me disse para estar. — Respondeu ela. —Você tem o hábito de me dizer para vir vê-lo e depois ficar com raiva quando eu realmente venho. —Não me lembro de lhe dizer nada. —Eu me pergunto o que isso diz sobre você — Ela continuou como se ele não tivesse respondido. —Você quer que eu esteja aqui ou não, Booker? Sim, sua alma gritou. Eu quero que você esteja aqui tanto que me machuque. Sua boca não concordava com sua alma. —Não, não quero. Ela inclinou a cabeça para o lado. —Eu acho que você está mentindo. —Como você saberia? Irene apontou para o pescoço dele e a cobra apertando-o enquanto eles falavam. —Eu não acho que alguém gosta quando você mente. Essa mulher o conhecia há apenas algumas semanas, a última vendo-o desaparecer completamente. E, no entanto, ela o conhecia melhor do que qualquer um na casa. Ela viu as histórias dele e o ligou imediatamente. O que ele deveria fazer com isso? Booker sacudiu a cabeça e depois esfregou as mãos sobre o rosto mais uma vez. —Bem. Por que eu pedi para você vir aqui? Por favor, não diga que foi por sexo, ele pensou consigo mesmo. Ele esperava que qualquer deus estivesse ouvindo, que ele não tivesse sido tão tolo a ponto de ficar por baixo daquelas lindas saias. Ela levantou uma sobrancelha. —Para a tatuagem, Booker. Ainda não terminamos. Ele era um idiota. Claro, ele queria terminar a tatuagem. Esse tipo de arte fazia parte dele tanto quanto respirar. Até beber não o faria esquecer esse amor. Foi realmente a única coisa que ele já amou em sua vida. —Certo. — Ele murmurou. —Sente-se na cadeira então. —Você realmente deveria estar tatuando quando claramente ainda está meio adormecido? Pelo menos isso o fez sorrir. Booker riu e apontou para a cadeira. —Anjo, eu faço o meu melhor trabalho quando estou meio adormecido. Apenas sente na cadeira. Na verdade, era mais fácil ficar perto das pessoas quando ele estava trabalhando. Booker não gostava de estar perto de outros humanos. Eles faziam sua pele coçar, e não de um jeito bom. Ele queria saber o que havia de errado com eles. Ele queria que eles lhe dessem um motivo para odiá-los, e sempre havia um motivo. Algumas pessoas eram simplesmente gananciosas. Outras odiavam pessoas que não entendiam. Algumas chegavam a ser tão egoístas que não conseguiam enxergar além de suas próprias mãos. Aquelas eram as que ele mais odiava, aquelas que mereciam sentir um pouco de dor extra. Então ele não se sentiu mal por ser ele mesmo. Estabelecer seu posto foi como se tornar um deus para Booker. Seu coração batia com a antecipação do que ele iria criar. Seus dedos tremiam com a necessidade de começar, para começar a próxima obra de arte gloriosa que permaneceria na pele de alguém pelo resto de suas vidas. Um pedaço de si mesmo grudando na pele deles por toda a eternidade, porque eles confiaram nele o tempo suficiente para dar um pouco de si. Quando ele se sentou ao lado dela, seu corpo inteiro zumbiu com o desejo de continuar o trabalho que ele havia começado. Ele sabia que havia algo escondido em seu corpo que ele queria retirar. As flores em seus braços eram onde ele começaria. Depois, para as abelhas que já zumbiam em seus ouvidos. As abelhas que a protegeriam quando ela precisava de proteção. Porque ela deveria ser capaz de se proteger. Era isso que ele queria dela. A capacidade de ser mais do que apenas uma donzela em perigo, mais do que uma mulher com quem ele se preocupava porque ela era muito pequena. Tão frágil. Tão crédula em um mundo que queria afastá-la dos céus, na escuridão e na lama. Ele colocou a agulha na pele dela e começou. As cores se desenrolaram sob suas mãos, pétalas florescendo nas peças mais impressionantes que ele já completou. Por um tempo, eles ficaram em silêncio, juntos na dor e no cheiro de tinta na pele. Então, como se de repente tivesse levado a música, ela falou. —Fui criada em uma família muito religiosa. — As palavras calmas eram pesadas no silêncio. —Mas eu sempre via os espíritos que passavam. As pessoas que ainda não queriam deixar a terra. —Acho que eles não amam essa parte de você. — Ele se inclinou para mais perto do braço esquerdo dela, tentando descobrir qual a cor da tulipa que ele queria começar em seguida. —Eles não amavam. — A borda dura de sua voz o fez olhar para cima. Seu rosto estava assombrado quando ela olhou para frente, sem olhar para ele. —Eles pensavam que eu estava possuída. Que havia algo tão errado comigo que eles tiveram que chamar outro pastor para vir e me exorcizar. —Serei honesto, Anjo, não sei muito sobre religião. —Tudo bem. — Ela sussurrou quando ele colocou uma cor de lavanda pálida em seu antebraço. —Ele teria me amarrado na cama e espalhado água benta sobre a minha pele. Eles teriam orado por mim e, quando isso não ajudasse, teriam me açoitado até minhas costas ficarem cruas. Ele teria me forçado a rezar de joelhos por horas até a pele se abrir. E quando nada disso ajudasse, eles teriam raspado minha cabeça, me forçado a existir dentro da igreja, orando até que eu não pudesse fazer outra coisa senão sentir o ódio de milhares nas minhas costas. Eles teriam me deixado faminta. Me derrotado. Tentando me afogar uma e outra vez até que eu esqueceria quem eu era. O que eu poderia fazer. A agulha deslizou em sua mão trêmula. Felizmente, isso não marcou a pele dela nem estragou a criação em que ele estava trabalhando. —Droga. — Ele murmurou. Colocando a pistola de tatuagem ao lado, ele olhou para ela. Ela ainda estava encarando seus próprios demônios, o olhar focado em algum lugar no ar entre eles. Nas lembranças que a assombrariam provavelmente pelo resto de sua vida. —Irene, olhe para mim. Quando ela não o fez, Booker se inclinou para frente e pegou a mão dela. Ele não gostava de tocar outras pessoas, não a menos que fosse para uma tatuagem, mas isso parecia muito mais importante do que suas próprias dificuldades. A mão dela era pequena comparada à dele. E, no entanto, seus dedos ainda deslizavam entre os dele como se soubessem para onde ir. Como se soubessem onde ficava sua casa. —Anjo, olhe para mim. Ela virou um olhar assombrado para ele, e ele estendeu a mão para segurar sua bochecha. —Você não é um monstro. Não há nada dentro de você que esteja errado ou quebrado. As coisas que você pode fazer podem ser estranhas para algumas pessoas. Isso não significa que você está errada em existir. Isso não significa que você não ocupa espaço neste mundo e se mantém firme no conhecimento de que pode fazer mais do que a pessoa comum. —O que eu posso fazer vai contra Deus. —Então ele não é um Deus tão bom, não é? — Booker passou um polegar pela bochecha dela, pegando a lágrima que caíra. —Ele fez você, anjo. Perfeita e exatamente como você deveria ser. Só porque você pode conversar com outras pessoas não significa que você estragou o que Deus fez. Isso significa que você está seguindo o caminho que ele estabeleceu para você. Ele podia ver nos olhos dela que ela não acreditava nele. E dane-se se ele não queria dar um soco em quem fez isso com ela. Ninguém merecia pensar que sua família não os amava mais. De todas as pessoas, ele sabia disso. O buraco dolorido onde sua família estava ainda o incomodava. Ele criou uma família aqui, é claro. E ele tentou torná-la confortável para aqueles que eram seus novos parentes. Mas Booker permaneceria para sempre nas sombras, nos limites da família. Ele acariciou o polegar sobre a bochecha dela novamente. —Eu preciso que você acredite em mim, anjo. —Receio não saber mais confiar. — Ela admitiu. —Se minha própria família poderia fazer isso comigo, então alguém poderia fazê-lo. As palavras dela puxaram seu coração. Essa era exatamente a mesma razão pela qual ele sempre se mantinha longe do resto dos artistas. Ele não queria deixá-los entrar o suficiente para machucá-lo. E por que ele confiaria neles, afinal? Sua própria família o jogou fora, assim como a dela. Booker deu um tapinha em sua bochecha e voltou para a pistola de tatuagem. Esse animal de uma máquina na mão era a única maneira de saber lidar com esses pensamentos. A dor acariciando sua pele o aterrou, lembrando- o de que ele não estava no mesmo lugar de antes. Ele estava seguro porque se fez seguro. Talvez a máquina pudesse fazer o mesmo por ela. —Pronta? — Ele perguntou. Quando ele olhou para cima para encontrar os olhos dela, Booker se viu chocado com o que viu neles. Confiança. Exatamente a mesma que ela recusou aos outros e, no entanto, lá estava, brilhando em seus olhos como um maldito farol. —Sim. — Ela sussurrou, sua voz grossa. —Estou pronta. Ele baixou a agulha na pele dela e começou de novo. Ele foi a primeira pessoa em sua vida a dizer que estava seguindo o plano de Deus sendo ela mesma. Ela não precisou mudar todo o seu ser apenas para caber na caixinha que seus pais haviam criado para ela. Ela não precisava desistir de si mesma só para ser alguém... Digna. Irene não sabia o que fazer com essas informações. Ela não sabia como ser aquela pessoa que pegava o que queria, que estava orgulhosa do que ela poderia fazer. Por muito tempo, ela foi a garota que abaixou a cabeça quando as pessoas olhavam para ela. O simples pensamento de que eles pudessem ver através de sua máscara, poderia entender que havia pensamentos impuros em sua cabeça, a fez querer correr. Ela passou tantos anos de sua vida temendo o julgamento dos outros. Agora, ela sentia que realmente não importava. A opinião dos outros não era culpa dela. Não era culpa dos artistas que fizeram tanto para fazê-la se sentir bem-vinda. E ninguém tinha o direito de julgar alguém por sua aparência, ou realmente qualquer coisa. Havia pessoas que andavam pela rua se sentindo assim? Sem um pingo de culpa? Irene nunca soube se estava fazendo a coisa certa ou não. Quando ela era mais nova, ela imaginou que deveria haver mais pessoas como ela. Irene nunca tinha tido a oportunidade de conhecê-los até agora. Por um momento, ela deixou sua mente vagar pelo futuro que poderia ter tido. Os exorcismos, a inevitável ruptura após a dor e a mágoa. A derrota completa e absoluta quando ela percebesse que seus pais nunca a amariam o suficiente para aceitar suas diferenças, não importasse o que ela fizesse. Eventualmente, eles gostariam que ela se casasse. Ela teria sido muito velha para um casamento normal, no entanto. Então ela provavelmente teria terminado com um pastor cuja esposa havia morrido. Um homem que era velho demais para ela, mas tinha uma boa reputação na comunidade e que defendia o legado de seu pai da maneira que ele queria que fosse sustentado. Ela teria tido filhos. Prováveis meninos criados nos passos de seu pai, filhas que permaneceriam em silêncio como ela. Talvez seus filhos tivessem herdado sua capacidade de ver os mortos e o ciclo continuasse. Era uma vida sombria, um futuro que ela não queria e lutaria com unhas e dentes para garantir que ela nunca tivesse que ver acontecer. Nunca. Irene deixou a cabeça cair contra a cadeira de tatuagem e olhou para o teto. A dor não foi tão ruim na segunda vez. Ou talvez ela soubesse o que esperar agora. —Como você chegou aqui? — Ela perguntou, precisando de algo para encher a sala quase silenciosa, o único som do zumbido da pistola de tatuagem. —Acabei de chegar. —Não. — Ela virou a cabeça para olhar para ele. —Acabei de lhe contar meu segredo mais profundo e sombrio. Você tem que me dar algo em troca. —Eu não pedi a sua verdade. —E, no entanto, você tem. — Como ninguém mais tinha. Ninguém no mundo sabia o que havia acontecido entre ela e seus pais. Ela sentiu como se tivesse acabado de se abrir, descobrindo sua alma por ele, e Irene queria algo em troca. Algo para preencher o buraco no peito de onde ela acabou de entregar uma parte de si mesma. Booker olhou para o braço dela, inclinando o pulso para frente e para trás para olhar o jardim que ele desenhava nela. Éden, ela pensou. Ele criou um jardim do Éden inteiro no corpo dela. Mas ele usava uma cobra no pescoço. —Existe algo que você possa me contar sobre você? — Ela perguntou, estremecendo quando ele tocou um ponto particularmente sensível em seu cotovelo. —Eu sou de Dublin. Irene teve que demorar um segundo para reunir seus pensamentos. Primeiro, ele realmente respondeu à pergunta dela com informações sobre si mesmo. Ela não tinha tanta certeza de que isso era normal. Na verdade, ela estava confiante de que não era normal ele oferecer detalhes sobre sua vida. Segundo, ele não era da América? Isso explicava o sotaque, mas ela sempre pensou que era apenas uma característica da família. —O que fez você se mudar para a América? —Minha mãe conheceu um homem lá, casou com ele em casa e depois se mudou para cá. —Ele era daqui? Booker levantou os olhos da tarefa. Sobrancelhas arqueadas, lábios apertados, ele claramente não queria falar sobre isso com ela. —Sim, nesta área, na verdade. Ela não sabia se deveria trazer a tumba em que ele estava deitado ou a luz branca que a guiara até lá. O instinto de Irene disse que o espírito tinha algo a ver com ele. Mas ela não sabia o sobrenome dele, e a mulher poderia não ser sua mãe. Ela podia ser alguém que ele conheceu ou alguém que simplesmente estava interessado em seu bem-estar. —Qual era o nome dela? — Ela perguntou. Era a única maneira que ela pensava em tirar as informações dele. —De quem? —O nome da sua mãe, Booker. Ele lambeu os lábios, depois voltou a olhar para o braço dela. Ele ficou em silêncio por tanto tempo que ela teve certeza de que ele não iria responder à pergunta dela. E estava tudo bem. Ela não sabia que tipo de ferida estava abrindo ao pedir que ele falasse sobre uma mulher que se foi claramente. —Lucy. — Ele murmurou. —O nome dela era Lucy. Um longo suspiro escapou de seus lábios. Então. O túmulo realmente era da mãe dele; seu instinto estava certo, afinal. Lucy Pinkerton. Os Pinkertons eram famosos nessas áreas, e realmente em todo o país. Eles eram assassinos, homens e mulheres que não se importavam com quem ou o que as pessoas eram. Se eles recebessem um contrato e dinheiro, eles fariam a pessoa entrar. —Você é um Pinkerton? — Ela perguntou. A pistola de tatuagem pulou, quase alcançando seu braço. Booker largou-a devagar, depois olhou para cima para encontrar seu olhar com tanta raiva que a deixou instantaneamente com medo. —Eu não sou um Pinkerton. —Mas você era. Ele estreitou os olhos. —Eu nunca te disse meu sobrenome, Anjo. Oh. Ele provavelmente pensou que ela foi enviada pelos Pinkertons, ou que ela de alguma forma sabia quem ele já era. Irene balançou a cabeça descontroladamente. —Não, não, o túmulo lá fora. No cemitério? Lucy Pinkerton. —Há muitas Lucy no mundo. —Mas ninguém que te segue por aí. Ela me levou para o túmulo logo depois que você me tatuou. Eu não sabia quem ela era na época. Ela só queria que eu visse. Como se houvesse algo realmente importante naquele túmulo para eu encontrar. Acho que ela queria que eu soubesse que é sua mãe. Ele desviou o olhar dela então, seus olhos perturbados e sua expressão sombria. —Você viu minha mãe? —Bem, não vi. Os espíritos envelhecem como nós. Ela é mais como uma luz, realmente. Seguindo você e certificando-se de que você está bem. — Irene apertou os olhos para o espaço sobre ele, tentando ver se a luz apareceria desde que eles estavam falando sobre ela. Ela não apareceu. Em vez disso, tudo o que viu foi a sombra iminente que o seguia também. A escuridão que a fez estremecer porque era o mesmo tipo de espírito que ela viu dentro de seu pai. Booker estava olhando para ela novamente. —Você não está olhando para minha mãe agora, está? —Acho que não. —Com o que se parece? Irene deu de ombros, tentando não empurrar o braço dela, mesmo que ele ainda não a estivesse tatuando. —Uma sombra? Os espíritos sempre parecem diferentes, dependendo de quem eles eram na vida. Alguns são pessoas, alguns são cadáveres, outros são apenas luz. —E este? Por que ele a estava pressionando tanto? As pessoas não queriam saber como eram seus próprios demônios. Não era possível que ele se importasse o suficiente para saber quem o estava seguindo. Ele nunca pareceu interessado nas habilidades dela para ver espíritos. Ele nunca perguntou antes. Mas desta vez foi diferente. Desta vez, ele se inclinou para mais perto dela, sua respiração saindo em breves rajadas. Como se a resposta dela fosse importante para ele. Mais importante do que qualquer coisa que ele já passou. —Essa aqui é uma sombra, uma nuvem negra que te segue às vezes, geralmente quando você está tentando tomar uma decisão e toma uma… ruim. — Ela não tinha certeza de que era realmente o lugar dela para adicionar a última parte. Tudo estava inteiramente na opinião dela, e uma má decisão para ela poderia ser boa para outra pessoa. Booker parecia entender, no entanto, porque se recostou na cadeira e suspirou. —Bem, isso seria caro para o pai então. —Seu pai também está morto? — Ela perguntou. —Todo mundo na minha família está morto, Anjo. Todos menos eu. Bem, isso era terrivelmente triste. Mesmo que ela não quisesse ver sua família novamente, Irene ainda sentia conforto por estarem vivos. Ela não gostaria que nada de ruim acontecesse com eles, mesmo que eles a colocassem em uma situação difícil. Eles ainda eram a família dela. Ainda o sangue dela. Calma, ela observou quando ele pegou a pistola de tatuagem novamente e começou a trabalhar. Cores brotaram em seus braços, cores tão bonitas e vivas que fizeram seus olhos doerem. Ela não estava pensando sobre a tatuagem, no entanto. Ela não estava pensando em nada além desse homem estranho e sombrio que permaneceu sozinho por tanto tempo em sua vida. Verdadeiramente sozinho. Nem mesmo sangue no mundo em algum lugar para continuar sua história, caso ele queira. —Booker? — Ela perguntou. —O que é isso, Anjo? Estou tentando me concentrar. —Como eles morreram? — A pergunta parecia muito importante de repente. Como se um espírito estivesse debruçado sobre seu ombro e sussurrando em seu ouvido para fazer a pergunta. Ele parou. —Eu os matei. Antes de vir aqui, ela poderia ter medo dele então. Ela poderia ter pensado que ele não passava de um assassino e deveria fugir o mais longe que pudesse. As coisas haviam mudado. Ela mudou em pouco tempo conhecendo essas pessoas. Conhecendo ele. Agora, as palavras apenas acrescentavam peso à sua alma e ao seu coração. Ela sabia que elas o machucavam para dizer. Irene podia ver isso na maneira como seus ombros caíram para a frente um pouquinho. O jeito que sua mandíbula se apertou, como se estivesse esperando que ela o condenasse por proferi-las. —Oh — Ela finalmente respondeu. —Espero que eles tenham merecido. Ele olhou para ela então, com os olhos ardendo. —Um deles merecia. — Então sua expressão dura mudou, suavizando com tristeza. —O outro simplesmente pediu. Irene não sabia o que dizer. Ela podia praticamente senti-lo sofrendo. A dor irradiava dele em ondas que a cortavam profundamente. Ela queria envolvê-lo em seus braços, puxá-lo para perto para que ele pudesse sentir seu coração batendo. Booker não a deixaria fazer isso, no entanto. Ele era um homem que estava sozinho. Que se orgulhava de suas habilidades de estar sozinho, mesmo quando não era a melhor coisa para ele. Então ela não o empurrou. Em vez disso, ela limpou a garganta. —Parece um peso muito pesado para carregar tudo sozinho. Ele lambeu os lábios. —Isso é. Seu coração apertou com força. Este homem seria sua ruína. Ele era um ser quebrado, um anjo cujas asas tinham sido cortadas e depois tombadas na terra sem mais ninguém em sua vida. Apenas ele e mil orações sem resposta. Irene encostou a cabeça no encosto e suspirou. —Fico feliz em compartilhar o peso. —Muito pesado para uma coisa como você. —Sou mais forte do que pareço. — Pela primeira vez em sua vida, ela realmente acreditou nas palavras. Irene sentiu que poderia ficar na frente de qualquer exército se isso significasse que ela poderia ser o escudo dele. Booker soltou um suspiro e a pistola de tatuagem voltou à vida mais uma vez. —Sim, anjo. Estou começando a perceber isso. —Não vou levá-la para fazer compras. — Resmungou Booker, virando as costas para o diretor do circo. —Ela não precisa ir às compras. —Na verdade, sim, ela precisa. Estou cansado dela vestindo apenas roupas emprestadas de Evelyn. — Frank entrou na frente de Booker novamente e acenou com a carteira. —Pegue o carro da cidade, entre na cidade e compre algumas roupas para ela se vestir. Jogue um pouco mais só para que ela não fique de calcinha durante todo o tempo em que estiver aqui. —Ela não está se apresentando ainda. Eu nem a ensinei a usar o que eu lhe dei. Deus, ele não queria que ela se apresentasse. Ele não queria que ela ficasse na frente de uma multidão com aqueles grandes olhos amarelos arregalados de medo. Eles a comeriam viva. Multidões sentiriam medo como o dela. —Eu não estava perguntando, Booker. — Frank bateu a carteira no peito. —E para o registro, eu também não estava dizendo para você fazê-la se apresentar. Ela precisa estar no palco. Para se acostumar com os olhos nela. Ela é tão tímida que se cala no momento em que pedimos que ela fale. Eu não vou jogá-la para os lobos, caramba. Estou pedindo que você a ajude nesta vida. Frank saiu do quarto. Ele tinha o direito de ficar bravo. Booker sempre pensou que alguém estava fazendo a coisa errada, que queria machucar outra pessoa só porque podia, e ele assumiu o mesmo com Frank. Ele ainda não tinha entendido que Frank era um bom homem. Provavelmente porque ele não queria acreditar que bons homens existiam. Frank tinha sido a única pessoa que via os artistas como pessoas. Frank havia sido encontrado no rio do lado de fora, onde costumavam se apresentar a poucos quilômetros abaixo da estrada, o golpe mais recente dos Pinkertons. Booker teve que admitir, até mesmo ele viu que Frank era uma coisa boa apenas esperando que acontecesse com eles. Por isso ele salvou a vida do novo diretor. Balançando a cabeça, ele olhou para a carteira em suas mãos. Ele não queria levá-la para a cidade porque a última coisa que ele queria era que as pessoas a encarassem. E elas encarariam. Ela estaria andando ao lado dele, então é claro que eles olhariam. Eles se perguntariam o que uma coisa tão doce e inocente estava fazendo com um monstro como ele. Isso era mais sobre o próprio orgulho do que o dela? Booker não queria projetar seus próprios pensamentos nela, mas tinha tanto medo que ela visse as expressões deles, depois olhasse para ele e visse a mesma coisa que todas aquelas pessoas. Que ele não era nada além de um animal. O filho rejeitado dos Pinkertons que se arruinara por uma sociedade adequada. Booker não tinha para onde ir depois de deixar os Pinkertons. Ele era um louco tatuado que passou a vida anterior aprendendo a matar. Como destruir. Ninguém queria lhe dar uma chance, e ele não os culpou. Até o circo chegar, é claro. Eles deram a ele uma chance e meia. Dando a ele o centro das atenções quando ninguém mais o queria nem perto deles. Mas até a atenção no palco estava manchada de pensamentos sombrios, ódio e um ódio que ele não podia abalar. Booker enfiou a carteira no bolso de trás e caminhou até a cozinha, onde todo mundo esperava. A garota estaria lá. Ela estava sempre à margem da família deles, observando-os com olhos famintos. Ele reconhecia aqueles olhos. Afinal, Booker passara fome a vida inteira pelo mesmo motivo. Como ele esperava, Irene estava de pé nos fundos da cozinha, perto da porta que dava para os quartos. Um vestido branco liso a cobria hoje. O ajuste era grande demais para ela e provavelmente tinha sido modificado a partir de uma das roupas de desempenho antigas de Clara. Ela estava sempre próxima à saída, quase como se estivesse planejando correr no primeiro momento que pudesse. Ele não queria causar confusão. Ninguém precisava saber que eles estavam indo para a cidade. Ele não era um garoto de recados, já desempenhou esse papel na semana passada, mas seu trabalho era garantir que ela conseguisse o que precisava. Não o resto da casa. Contornando os outros artistas, ele caminhou para o lado dela e encostou-se na parede ao lado dela. Por um tempo, ele a deixou assistir os outros se apressarem. Eles nem estavam cozinhando nada; era muito tarde para o almoço e muito cedo para o jantar. Mas eles preparavam lanches e chá enquanto se provocavam. Ele mal conseguia se ouvir pensar nos gritos deles. Às vezes, Booker desejava ser mais uma pessoa aberta. Ele queria participar das brincadeiras deles, rir como eles faziam, não se preocupar que ele iria dizer a coisa errada ou de repente estragar a diversão deles. Ele nunca foi como eles, no entanto, e, eventualmente, desistiu de tentar. Olhando para Irene, ele perguntou em voz baixa: —Você está pronta para ir à cidade? —Nós estamos indo para a cidade? — Ela não olhou para ele ou desviou o olhar ao ver Tiny trabalhar as mãos em torno de uma xícara de chá pequena demais para ele. —Frank não contou? Irene balançou a cabeça. —Ele quer que arranjemos roupas para você. Quer que você se acostume a estar no palco antes de começarmos a treiná-la para o seu próprio ato. —Eu realmente não quero ir para a cidade. — Ela respondeu calmamente. Os olhos dela se voltaram para ele. —Receio ver meus pais. —Eles vão ver você comigo, Anjo, e não vão querer você de volta. — Talvez as palavras tenham sido um pouco cruéis demais para a situação, mas eram a verdade. Seus pais dariam uma olhada nas tatuagens dele cobrindo seu corpo e saberiam o que tinha acontecido. Ela tinha sido contaminada, a filha pura deles não era mais uma mulher da qual podiam se orgulhar. Tinha que ser sua escolha ir com ele. Se ela quisesse ser arruinada por um homem como ele, então, por todos os meios, eles iriam para a cidade juntos. Limpando a garganta, ele enfiou as mãos nos bolsos da frente da calça. —Poderia fazer Daniel te levar também. O garoto sabe tanto quanto eu sobre roupas. Mas isso não está dizendo muito. Irene olhou de volta para ele até que ele ficou desconfortável sob o peso de seu olhar. Era pesado, pressionando seus ombros e o topo de sua cabeça, fazendo-o querer encolher no chão. —Não. — Ela respondeu. —Se vou para a cidade, quero ter certeza de que você está lá comigo. Droga, se isso não sugava todo o ar de seus pulmões. Ela confiava nele, ninguém mais no circo para levá-la. Só para ter certeza de que ele entendeu, ele acenou para Tiny. —Ele também é muito bom em proteger as pessoas. —Isso é bom. Mas prefiro ir à cidade com você. Ele não sabia o que fazer com isso. Ninguém jamais confiara nele além de sua família no circo. Eles sabiam que era ele quem os ajudaria a levantá-los do chão, se precisassem. Ou, mais provavelmente, colocar outra pessoa no chão porque ousou tocar em um dos membros de sua família. Mesmo que ele não fosse tão próximo quanto o resto deles. Então, em vez de ficar demorando muito nos pensamentos que o confundiam, ele respondeu bruscamente: —Vamos seguir em frente. — E depois se afastou. Ele sabia que ela o estava seguindo, nem precisava olhar por cima do ombro para saber. Sua mera presença fazia os pelos de seus braços subirem e sua pele formigar. A tatuagem em seu peito coçou. Ele a esfregou por baixo da camisa, embora o fato de estar se movendo o fizesse querer fugir. Ela não deveria fazer a tatuagem se mover. Florescer. Não. Ele se orgulhava de poder separar suas emoções de seu corpo. Ele não ia desmoronar só porque uma mulher confiava nele, caramba. Booker alcançou o carro e quase entrou para o lado do motorista. Mas a mãe dele tinha levado a educação a seus ossos. Irene era uma dama. Independentemente de como ele se sentia, ela era uma mulher que merecia ser respeitada e tratada como tal. Então ele parou na porta do passageiro, abriu-a e esperou até que ela estivesse sentada. Ela lhe lançou um sorriso quando se assentou em seu coração. — Obrigada, Booker. Mesmo sendo agradecido por ela fez seu coração gaguejar e o fazer querer fazer algo tolo. Como beijá-la. Ele cerrou os dentes e fechou a porta com cuidado. Não bata, ele disse a si mesmo. Ele entrou no carro e virou na estrada que levava à cidade. A viagem foi estranhamente silenciosa. Ele tentou o seu melhor para pensar em algo para dizer, alguma conversa que não era a mesma de sempre, descobrindo suas almas uma para a outra. Ele não suportava o silêncio agora, quando já se sentia sensível por estar tão perto dela. Irene parecia bem, no entanto. Ela observava as árvores passarem e as pessoas caminhando na beira da estrada. Se ele pudesse adivinhar o que ela estava sentindo, era serenidade. Sua expressão com certeza estava relaxada. Ela estava realmente tão confortável com ele? Ele nunca foi assim com ninguém em sua vida. Ele sempre questionou o que eles estavam pensando dele. E então, quando ele fazia as tatuagens, ele sempre se perguntava por que eles não conseguiam pensar em mais nada além dele. Ele estacionou o carro atrás de uma das lojas que possuíam roupas femininas. Pelo menos aqui ele sabia que ela obteria a ajuda de que precisava. —Vou deixar você. — Ele murmurou, estendendo a carteira de Frank para ela. —Eu esperarei aqui. —Você não vem comigo? — Ela perguntou. —Não. Suas sobrancelhas franziram, pequenas rugas na testa e entre os olhos que eram tão fofas que o fizeram querer tocá-las. —Por que não? —Eles não vão prestar nenhum serviço se eu estiver atrás de você. — Ele apontou para as tatuagens no rosto e no pescoço. —Não pode encobrir isso, anjo. Você ficará bem. E se você precisar de mim, pode deixar a carteira e me pegar. —Mas e se...? — Ela olhou para a cidade, preocupando o lábio inferior com os dentes. —E se meus pais estiverem lá? Ele pensara nisso e colocara o carro em um lugar onde pudesse pelo menos ficar de olho nas pessoas que iam em direção à loja. Nenhum dos pais dela chegaria muito perto. Claro, sempre havia a chance de ela não parecer muito com eles. Eles poderiam passar por ele então, e de repente haveria um problema muito maior em suas mãos. Sem mencionar, o medo em seu rosto o fez querer dar um soco em algo. —Eu vou ficar do lado de fora. — Disse ele, saindo do carro e imediatamente andando pela frente. Ele abriu a porta e estendeu a mão escurecida pela tinta. —Venha Anjo. Você precisa descobrir quem você é no palco. —Eu nunca estive no palco antes. — Ela estendeu a mão e o deixou puxá- la para ficar de pé. —Isso não importa. Nós somos quem realmente queremos ser no palco. Toda fibra da nossa alma sai, a pessoa que ninguém aceitaria se mostrássemos fora da performance. —Quem é você quando se apresenta? — Ela perguntou. Seus grandes olhos o encaravam, arregalados de curiosidade e a esperança de que ele pudesse lhe dizer algo espetacular. Naquele momento, ele queria ser tudo o que ela esperava. Ele queria ser um bom homem que pudesse dar a ela o mundo. Grosseiramente, ele respondeu: —Um homem bom. Ele caminhou em direção à loja onde iria esperar por ela. Horas, se ela precisasse que ele esperasse tanto tempo. Mas provavelmente, ela teria a loja para si mesma. No momento em que as pessoas o viam do lado de fora, corriam para o outro lado da rua. E a loja tentava ajudá-la no processo de trocar de roupa, porque eles queriam seus clientes de volta. Ele esperava que ela estivesse bem com isso. Eles chegaram à loja e só então ele percebeu que ainda estava segurando a mão dela. Ainda a guiava através das pessoas sem deixá-la ir. Booker deixou cair os dedos como se o tivessem queimado. —Só por lá. Deixe-os saber para não lhe dar nada barato. Precisamos de algo que dure. —Tudo certo. Sua voz era tão leve. Ele não entendia como alguém poderia irradiar tanta inocência e bondade em apenas um som. Talvez enquanto ela estivesse comprando, ele levasse algum tempo para ajeitar a cabeça. Ela o fazia agir como um idiota. Booker assentiu com a cabeça e observou com atenção enquanto ela entrava na loja, a campainha acima da porta tocando. Não havia muito na frente da loja para ele sentar. Ele não estava sentado no meio-fio, então se encostou na parede branca da tábua, cruzou os braços sobre o peito e resolveu esperar o tempo necessário. As pessoas olhavam para ele enquanto passavam, seus olhos demorando nas tatuagens reveladas em suas mãos, pescoço e rosto. Eles colocaram seus filhos debaixo dos braços e faziam qualquer coisa para não olharem. Ele nunca entenderia o medo deles. Claro, ele não parecia exatamente o tipo de homem que alguém gostaria de testar, mas ele não estava correndo para eles. Ele não tinha uma arma visível em sua pessoa e, tanto quanto sabia, também nunca havia ameaçado ninguém nesta cidade. Eles tinham medo dele porque não sabiam mais o que responder. Ele era diferente deles, e o medo era a única maneira de suas mentes pequenas reagirem. O tempo passou mais rápido do que ele poderia esperar. Ele observou as pessoas até que a campainha da porta tocou novamente e, em seguida, Irene estava de pé na frente dele com uma única bolsa na mão. —É isso? — Ele perguntou. —Eu não preciso de muito. —Você deveria ter um guarda-roupa inteiro. — Ele acenou com a mão para cima e para baixo, gesticulando para o corpo inteiro. —Para cobrir tudo isso por mais do que apenas um único dia. —Eu sou uma pessoa pequena. Minhas roupas não ocupam muito espaço. De alguma forma, ele duvidava que ela tivesse comprado tanto para si mesma. E, embora fosse frustrante e ela merecesse mais do que apenas insultos, também o deixou orgulhoso por algum motivo estranho. Ela não pegou o dinheiro dado a ela e enlouqueceu. Em vez disso, ela reservou um tempo para encontrar algumas coisas que caberiam em uma única bolsa. Ele não achou que ela estivesse se aproveitando deles. Não mais. Ele certamente teve a primeira vez que ela entrou na casa deles, selvagem e assustada como um gatinho vindo da tempestade. É claro que seu primeiro pensamento foi que ela queria folhetos gratuitos. Mas ela se provou centenas de vezes desde então. Ela não estava entrando no circo porque queria algo de alguém. Irene só queria ser livre. Ele estendeu o braço para ela pegar. —Isso foi mais rápido do que eu esperava. —Temos alguns minutos? — Ela perguntou, os olhos correndo pela rua antes de olhar de volta para ele. —Você precisa de algo mais? —Eu só...— Ela balançou a cabeça. —Provavelmente é bobo. Mas eu só queria alguns momentos a sós com Ele, se está tudo bem com você? Os pelos da nuca dele se arrepiaram. Ela tinha algum tipo de namorado? Algum homem que estava esperando por ela e agora ela queria fugir por um tempo para desfrutar de seus braços? Booker esperava... Bem, não importava o que ele esperava. Ela podia fazer o que queria, e ele não era dono de sua atenção. Mesmo que ele quisesse. —Quem você quer ver? — Ele perguntou, olhando para cima e para baixo da rua. Um homem estava parado na esquina com um chapéu inclinado sobre os olhos. Cabelo loiro escapava por baixo, e ele era bonito o suficiente para que ela atraísse um homem como ele. Era aquele? Ou o outro homem mais sombrio que olhava para Booker como se quisesse enfiar uma faca nas costelas? Irene apontou para a rua. —Booker. Ele seguiu a linha do dedo dela e percebeu que ela não estava falando de um homem. Ou pelo menos, um homem físico que ele poderia odiar. Ela estava apontando para a igreja do outro lado da rua, e o homem a quem ela se referia era o Deus de quem ela falava. —Oh — Ele respondeu, limpando a garganta. —Continue então. —Você não vem comigo? —Eu não vou a igrejas. — Ele acariciou a mão sobre a cabeça, subitamente se sentindo incrivelmente estranho. —Deus nunca cuidou de mim. Não vejo uma razão pela qual tente cuidar dele. —Talvez esse fosse o plano. — Um sorriso torto inclinou seus lábios. — Eu volto já. Ela correu do outro lado da rua e foi a primeira vez que ele se perguntou como seria ser o tipo de homem que ela merecia. O tipo de homem que seguraria a mão dela nos bancos, orar com ela. Inferno, orar pela força para lhe dar a vida que ela merecia. Mas ele não sabia como ser esse tipo de homem. Booker observou-a atravessar a rua e se perguntou o que aconteceria se a seguisse. A ponta da saia branca tremulou na porta antes de desaparecer na igreja simples. Era o prédio que o assombrara ao longo de sua vida. A estrutura branca, persianas pretas, catedral alta no pico. Este era o mesmo lugar que o teria negado repetidamente, os habitantes supostamente as pessoas que aceitariam aqueles que eram diferentes, mas eram tão rápidos em julgar. Booker enfiou as mãos nos bolsos, olhando desajeitadamente para o chão. As pessoas na rua ainda lhe davam um amplo espaço, algumas perguntando baixinho: —O que ele está fazendo aqui? Isso não importava. Ele ouviu a mesma coisa tantas vezes na vida. Eles podiam pensar tudo o que queriam sobre o propósito dele. Talvez ele estivesse aqui para roubar seus filhos durante a noite ou procurar suas casas para descobrir qual era a melhor para roubar. Eles não podiam fazer nada com ele. Ele não cometeu nenhum crime. Claro, o policial que caminhava em sua direção não concordaria com isso. Booker rangeu os dentes, erguendo os ombros para o confronto. O homem inclinou o chapéu para ele, o uniforme azul bem pressionado e o boné na cabeça sombreando os olhos. —Dia. —Dia. —Tenho que perguntar por que você está aqui, senhor. —Compras com minha senhora. — Quanto ele iria ser incomodado hoje? O policial olhou em volta, nos dois lados da rua, e depois pigarreou. — Com medo de não ver uma dama. —Ela está na igreja. — Ele olhou para o homem com uma raiva queimando no peito. A cobra sibilou, passando por baixo de sua pele. Estranhamente, ele sentiu plumas reviverem-se no braço direito. Booker não sentia que a tatuagem se mexia sem que ele pedisse há muito tempo. A águia foi uma das primeiras e a fera desviava mais os olhos do que Booker queria admitir. Tinha sede de sangue quando era liberada. Ele não deixava escapar muitas vezes. O oficial empalideceu e deu um passo para o lado. —Então sugiro que você vá buscá-la, senhor. É um bom dia para uma caminhada. Em outras palavras, eles precisavam sair ou o policial iria causar problemas. Ele viu pior. A maioria não teria oferecido essa opção antes de tentarem atingi-lo. Booker assentiu, saiu da calçada e atravessou a rua em direção à igreja. Deixaria o oficial gritar com ele por ser idiota, se ele quisesse. Essa era a menor preocupação de Booker. Felizmente, o oficial o deixou ir. Ele foi até a porta da igreja e soltou um suspiro. Ele realmente não queria entrar na casa de Deus. Muitas pessoas já haviam desistido dele; ele não precisava do Todo Poderoso fazendo o mesmo. Ainda... ela não tinha desistido dele ainda. Talvez ele também não devesse. Booker pressionou a palma da mão contra a porta e entrou na igreja. O interior era como ele se lembrava. Os bancos estavam alinhados em pequenas fileiras, estendendo-se em direção ao púlpito, onde havia um anjo de madeira esculpido com os braços levantados, segurando uma Bíblia aberta. Os vitrais estendiam dois andares, cada um representando uma história do Antigo Testamento. O sol se inclinava através do vidro colorido, lançando um padrão de arco-íris nas costas, onde ela se ajoelhava no chão. Seu vestido branco derramando-se em torno dela como as pétalas de um lírio. Ela estava com as mãos cruzadas no peito e cantarolava um velho hino que se erguia nas vigas. A pureza da voz dela era algo diferente de tudo que ele já ouvira antes. Era o trinado de pássaros de manhã cedo. A sensação brilhante quando um ente querido sorria. O toque de um sino, cristalino e impossivelmente puro. O som girou em torno dele, erguendo os pelos dos braços e sugando a respiração dos pulmões. Ele ouviu o farfalhar do vento. As flores em seu peito mudaram novamente, pétalas abrindo e movendo-se sob sua pele. Antes que ele pudesse pegar, uma borboleta se soltou da clavícula e se arrastou por baixo do tecido. Ela levantou voo. Os movimentos agitados imitavam as batidas frenéticas de seu coração enquanto a pequena criatura caminhava em direção à mulher incrível ajoelhada no chão. Ele prendeu a respiração quando ela pousou diretamente ao lado dela no chão de madeira escura. Asas azuis, brilhando à luz, dobradas suavemente. A borboleta permaneceu ao seu lado, e ele ouviu a voz dela através do inseto, suave e lenta enquanto ela cantarolava sua canção de ninar. Senhor, ele pensou em sua mente, me dê forças para deixar essa mulher. Ela merece muito mais do que eu. Mas, como sempre, o Senhor não respondeu a ele. Em vez disso, uma nuvem se afastou do sol e, de repente, tudo ficou ainda mais vívido. Ela era tão deslumbrante. Tão impossivelmente bonita em suas roupas de muitas cores que envolviam a beleza de sua personalidade e a força de seu caráter. Ele não podia ficar aqui. Ele não podia vê-la rezar enquanto estava escondido como um animal nas sombras, esperando um momento em que ela se enfraquecesse. Os pensamentos em sua mente não eram puros o suficiente para uma igreja porque, naquele momento, ele queria devorá-la inteira. Separar tudo o que a tornava infinitamente perfeita, rasgá-la com mãos que haviam visto muita violência. Booker queria machucá-la por ser tudo o que não podia ser. Mas ele queria protegê-la de tudo que a vida jogaria nela, tudo que as pessoas pudessem fazer com ela. Acima de tudo, ele queria amá-la. E ele não sabia como fazer isso. E assim, ele se afastou da bela mulher dobrada no chão da igreja. Ele se afastou da visão, mesmo que estivesse queimada na parte de trás dos olhos. Ao sair, sentiu o toque suave das asas de borboleta pousando de volta na clavícula. Irene se abaixou e tocou dois dedos na mancha escura deixada no chão de madeira. Ela viu a borboleta. Como ela não pôde? Foi a coisa mais impressionante que ela já viu em sua vida. Asas de teia de aranha, veias delicadas pelas quais o sol dançava e um movimento suave que era infinitamente suave. De alguma forma, ela também sabia que era de Booker. Embora ele não fosse muito bom em expressar suas emoções por meio de palavras, ela sentia que havia uma profundidade significativa para ele que ninguém mais via há muito tempo. Talvez nunca. A borboleta foi o primeiro passo em direção à segurança que ela teve em anos, e ela não sabia como agradecer a ele por isso. Ela entrelaçou os dedos suavemente e deixou-se relaxar completamente. Durante toda a sua vida, esse era o único lugar em que ela se sentira totalmente com medo, mas nunca sozinha. Mesmo agora, fantasmas passavam por ela com os olhos arregalados e esperando que ela prestasse atenção neles. Eles entravam pelas costas, tropeçando em seus túmulos além da igreja e caminhando em sua direção. Alguns ainda tinham olhos, outros não. Alguns até rastejavam com as mãos e os joelhos em sua direção, gemendo enquanto subiam as escadas e se deitavam acima dela no púlpito. Mas depois de seu tempo no circo, ela descobriu que não tinha mais medo deles. Eles precisavam de algo dela. Não só queriam usá-la para sua própria vantagem, mas eles realmente queriam a ajuda dela. Eles estavam implorando por algo que ela queria desesperadamente dar a eles. Com o tempo, ela descobriria como ajudá-los. Como se comunicar da maneira certa para que eles nem sempre percam a vaga. —Era isso que você queria de mim? — Ela perguntou, olhando para o principal vitral. O Senhor olhou para ela, seu rosto obscurecido por um raio de sol derramando através das peças onde costumavam estar os olhos. —Você quer que eu ajude as pessoas? Parecia provável. Esse sempre foi seu plano no final, não importa o que o pai dela pregasse aos domingos. Irene gostava de acreditar que todos estavam aqui para espalhar bondade e amor. Às vezes, essa mensagem ficava um pouco distorcida. E o que ela ia fazer com Booker? Ela sabia que ele havia entrado na igreja apesar de suas reservas. Irene não se importava se ele veio aqui para adorar ou apenas para checá-la. Ele deu um passo para protegê-la, como sempre fazia. Isso significava mais para ela do que qualquer palavra que ele pudesse dizer. No entanto, ela não sabia como ajudá-lo. Os fantasmas que o cercavam pareciam familiares. Suas energias estavam próximas das dele, e ela tinha suspeitas de que eles afetavam suas escolhas diariamente. Espíritos com mortes violentas tendiam a permanecer. Negócios inacabados ou vingança em suas mentes eram geralmente a causa, mas ela tinha a sensação de que havia algo mais com a conexão dele com os pais. Eles estavam tentando influenciar a vida dele? Mesmo depois da morte? Muitas perguntas passaram por sua mente, e talvez por isso ela não ouviu o som imediatamente. Mas o som de passos se aproximando a levou ao presente em breve. Os dedos dela se apertaram, mantendo-se firmemente na frente do peito para que o tremor não fosse muito perceptível. Por favor, não seja o pai, ela pensou. Por favor, deixe-me sair desta igreja sem precisar falar com ele. A última coisa que ela queria era uma discussão. Embora as mangas compridas de seu vestido escondessem as tatuagens, ela as usaria se precisasse. Ou mostrar a eles, no mínimo. Ela não podia fazer o que Booker fazia, ameaçando o mundo com sua mera existência, mas estava tudo bem. Na pior das hipóteses, ela poderia gritar por ele. A última coisa que ela queria era alguém para entrar em uma escaramuça dentro da igreja. Mas... bem, se alguma coisa, o circo havia lhe mostrado que ela poderia sobreviver em situações difíceis, se precisasse. —Olá, minha filha. — A voz profunda não pertencia ao pai, mas a fez choramingar da mesma forma. O Exorcista. Ela soltou um suspiro trêmulo. —Pai. — Mas não o pai dela, pelo menos não no sangue. —Minha querida garota, o que você está fazendo aqui? Amanhã é domingo. Você pode orar então. —Eu queria falar com Deus sozinha. — Ela lentamente colocou as mãos no colo e depois enrolou os dedos no tecido do vestido, rezando para que ele mandasse o pastor embora. O homem a reconheceria. Como ele não poderia? Os dedos tocaram o topo de sua cabeça, gentilmente. —A congregação de Deus é sempre bem-vinda aqui. Você especialmente, Irene. O baque surdo do seu coração ficou tão violento que ela nem conseguia respirar. Cada fibra de seu ser queria fugir, correr, fazer algo que pudesse salvá-la desse homem. Mas ela não podia. Ela estava congelada no lugar pelo som da voz dele e presa pelo olhar de pena de Jesus pelos muitos vitrais ao seu redor. O padre se inclinou, curvando-se sobre ela até que sua sombra a engolisse. —Estamos procurando por você, minha querida. Ou devo dizer isso ao seu demônio? —Eu não estou possuída. — Ela engasgou. —Todo mundo diz isso. — A mão dele apertou os cabelos dela, torcendo bruscamente e forçando-a a olhar para ele com um grito assustado. —Mas vou garantir que você seja purificada novamente. —Por favor, não- Ele a arrastou até o púlpito pelos cabelos, subiu as escadas e seguiu para o fundo do palco que levava aos aposentos particulares dos pastores. Ela não queria ir lá, não com ele. Irene chutou os pés nas canelas dele e soltou um grito alto antes que ele se abaixasse e batesse a mão na boca dela. —Oh não. — Ele rosnou. —Ninguém vai nos interromper desta vez. Os espíritos que procuraram por ela se voltaram para ele como um. Dez homens e mulheres mortos, suas roupas penduradas em seus corpos em pedaços esfarrapados, seus olhos violentamente zangados. Eles o rasgariam em pedaços se pudessem, ela viu isso agora. Mas eles não podiam. Porque as únicas pessoas que poderiam ajudá-la agora estavam mortas. Ela tinha que fazer alguma coisa. Tinha que se proteger de alguma maneira, mesmo que ela não soubesse. O que Booker faria? Ela se perguntou. Ele saberia se libertar de um homem como este. Irene estendeu a mão e passou as unhas pelos braços do padre. Ele soltou um rosnado raivoso, torceu o cabelo dela com força, depois soltou uma maldição. Uma maldição? Desde quando os sacerdotes usam o nome do senhor em vão? O padre a soltou de repente e seus cabelos caíram na frente dos olhos. Algo zumbia em seus ouvidos, mas ela não conseguia descobrir o que era. Seus ouvidos estavam tocando? De alguma forma ele bateu as mãos contra o crânio dela e a bateu sem sentido? A porta da igreja se abriu. O som da madeira estalando contra a pedra ecoou no teto e fez o vitral chocalhar em suas molduras. Irene se encolheu, puxando a si mesma e passando os braços em volta dos joelhos. Ela não conseguia respirar. Por que ela não podia aspirar ar aos pulmões? Tudo o que ela podia fazer era puxar respirações minúsculas e curtas, o que só fazia sua cabeça girar ainda mais. Seu couro cabeludo doía como se ele tivesse arrancado um punhado de seus cabelos. Olhando para cima, ela esperava ver o pai parado na porta. Em vez disso, Booker estava como uma silhueta à luz do sol, um anjo vingador que veio destruir quem estava em seu caminho. Outra pessoa estava atrás dele, a figura magra familiar. Daniel? O que o homem-peixe estava fazendo aqui? Booker caminhou em sua direção, as mãos nos bolsos e os olhos no chão. O padre mudou para ficar atrás dela. O movimento de tecido golpeou seus ouvidos enquanto ele colocava suas roupas. —Senhor, receio que você tenha chegado em um momento ruim. Booker o ignorou. Ele caminhou lentamente em direção a eles até chegar às escadas. Só então ele olhou para cima e apenas olhou diretamente nos olhos dela. —Encontrei alguém familiar na rua. —Eu posso ver isso. — Ela sussurrou. —Hora de você ir para casa agora. Ela respirou fundo pelo nariz e assentiu. Lentamente, ela se ajoelhou e depois se levantou. A mão do padre caiu pesadamente em seu ombro, forçando-a a ficar de joelhos ao lado do pódio com a Bíblia aberta. —Ela fica aqui. Este é o trabalho de Deus, senhor. Tenho certeza que você entende isso. Esta mulher é suspeita de possessão. Sua alma precisa de limpeza. Um músculo saltou na mandíbula de Booker, mas essa foi a única resposta que ele deu ao padre. —Irene. Ela deslizou por baixo do porão do padre, desceu as escadas e ficou ao lado de Booker. Ela queria abraçá-lo, mas algo a deteve no último segundo. Algo escuro e vermelho que brilhava dentro de seus olhos. —Booker? — Ela sussurrou. —Vá com o garoto. Pedir novamente não ajudaria. Irene correu para o lado de Daniel. Ele colocou um braço sobre o ombro dela e os afastou do altar, de volta para a porta com a luz do sol fluindo através dela. Irene olhou por cima do ombro e viu a cobra descolar do pescoço de Booker e deslizar para o lado dele. A criatura tinha pelo menos dois metros de comprimento, se não mais. Ela levantou e sibilou para o padre que deu um passo para trás, o rosto pálido e os olhos arregalados. —Você não vem conosco? — Ela perguntou. Booker olhou para ela. —Agora não anjo. Este homem de Deus e eu temos trabalho a fazer. Então ele arregaçou as mangas e desviou o olhar dela. A sombra escura ondulando ao redor dele aumentou. Irene sabia que não devia ficar e assistir. Booker olhou para o cigarro entre as mãos trêmulas. Ele se esforçou para não olhar para as crostas nas juntas dos dedos, uma das quais já havia rachado. O sangue escorria por seu dedo anelar em um movimento lento. Ele voltou para a casa deles no pântano e agora não sabia o que fazer. Frank olhou para ele e apontou para o porão para que ninguém pudesse ver o que aconteceu. Provavelmente para o melhor. Nenhum dos outros precisava ver os arranhões nele ou a camisa rasgada. Eles certamente não precisavam ver o cabelo desarrumado dele, geralmente tão cuidadosamente desarrumado, ou o olhar nos olhos dele que ainda ansiavam por sangue. Fazia muito tempo que ele não lutava assim. Ele tinha quase vergonha de admitir que tinha perdido. Levantando o cigarro aos lábios, ele deu uma tragada profunda e depois exalou lentamente. Seus pulmões apreenderam um pouco. A fumaça saiu em algumas baforadas gaguejantes enquanto metade fazia círculos flutuando no chão em derrota. Droga. O que ele fez? A pele dos nós dos dedos estava quebrada e sangrando, quase crua pela quantidade de tempo que ele atingiu o padre. Uma e outra vez, mesmo que o homem estivesse implorando por misericórdia. Erguendo a mão novamente, ele percebeu que estava tremendo tanto que não conseguia levar o cigarro à boca. Porra, ele estava em ruínas. O que ele fez? Para um maldito padre? Ele largou o cigarro no chão e esmagou-o embaixo do sapato. Ele deixou cair a cabeça nas mãos e se inclinou sobre os joelhos. Ele estava tremendo como uma folha em uma tempestade, mas não conseguiu parar. Aquele não era ele. Aquela criatura que definhava no cheiro de sangue, que ria diante da dor de outras pessoas. Ele deixou essa vida para trás há muito tempo. Booker estava tão orgulhoso de si mesmo por enterrar o passado profundamente o suficiente em sua mente, para que o animal não se arrastasse para fora de seu túmulo. E, no entanto, tinha. Toda vez que fechava os olhos, via o padre caminhando para trás. Ele viu como seus olhos quase arrancavam sua cabeça e os arranhões que suas unhas haviam deixado no chão. Palavras gordas caíram dos lábios do homem no momento em que as tatuagens caíram da forma de Booker como fantasmas. Cobras deslizaram para fora de seu corpo, dez delas assobiando e subindo as escadas até o palco. Aranhas levantaram de suas costas, depois rastejaram por cima dos ombros e desceram pelo peito. Correntes sacudiram. As águias gritaram quando as penas flutuaram no ar. Um leão rugiu ao longe, o som borbulhando no peito de Booker quando ele se tornou uma mistura de homem e monstro. O padre só quebrou quando Booker mostrou seu verdadeiro eu. A fera dentro dele bateu com o punho contra o rosto do homem, de novo e de novo. De novo e de novo. O padre cuspiu nele, sangue misturado com salpicos na camisa rasgada e no peito nu de Booker. —Você está apenas provando que ela está possuída. Uma boa garotinha como ela nunca se tornaria sua prostituta. Ele estalou. As tatuagens em seu crânio, escondidas por seus cabelos e nunca vistas por mais ninguém, arrancavam sua pele. Chifres de carneiro gêmeos giravam no ar, em silhueta pelo sol e pelo vitral. O padre se cruzou e tentou correr. —Demônio. — Ele murmurou. E naquele momento, Booker se sentiu como um. Ele queria destruir o homem, matá-lo e sentir o sangue nas mãos, sabendo que este nunca mais tocaria Irene. Ele soltou um suspiro irregular e olhou para o cigarro no chão. Ele quase desejou não ter divulgado. Que de alguma forma poderia incendiar a casa inteira, e ele com ela. Talvez não fosse tão ruim deixar tudo isso para trás. Quantas vezes ele teve que provar ser um monstro? Quantas vezes ele teve que chegar tão perto de matar alguém ou terminar o trabalho antes que alguém o colocasse no chão? Ele estava tão cansado de ser essa criatura, esse animal que não queria nada além de machucar, mutilar e matar. Ele não ouviu a porta do quarto se abrir, mas ouviu os passos silenciosos pouco antes de ver a borda de uma saia branca pálida. O tecido se acumulou no chão quando ela se ajoelhou na frente dele. Booker desejou que ela não viesse aqui. Não quando ele estava assim. Ele não queria que ela o visse com tanta raiva, com sangue nas mãos e toda a culpa correndo por ele. Se ela pensasse que ele também era um monstro, ele poderia se dar bem. A saia no chão mexeu, e então ele sentiu o toque dela nos antebraços. Os dedos delicados, tão macios que parecia que ela não havia tocado o trabalho duro em sua vida, suavizaram os braços dele até chegarem às mãos dele. Ele a deixou afastá-los de seu rosto para se segurar. Mais uma vez, ele se maravilhou com o quão pequenas as mãos dela eram comparadas às dele. Quão facilmente elas se encaixavam nas suas, como pequenos pássaros quebrados que ele poderia abrigar do mundo. De repente, ele não pôde deixar de olhar para ela. Ele queria ver o medo nos olhos dela, cimentar o conhecimento de que estava sozinho. Booker havia sobrevivido por tanto tempo assim, não importava se alguém pensasse o mesmo. Monstros viviam nas sombras do mundo. Este era o lugar onde ele pertencia. Ele espancou um padre até ficar inconsciente, na casa de Deus. Não parecia certo tocar as mãos dele quando ainda havia sangue de um estranho nelas. Mas ela não se encolheu, nem olhou para ele. Em vez disso, Irene olhou para as mãos dele, depois gentilmente acariciou os polegares sobre as crostas. —Você não deveria me tocar. — Ele murmurou bruscamente, sentindo que poderia fraturar novamente a qualquer segundo. Ela não respondeu. Em vez disso, ela levou as mãos à boca e beijou delicadamente as pontas dos dedos. Deus, ela não tinha ideia do que ela fez com ele. O toque simples, aquele momento singular em que lábios macios de veludo roçavam as mãos que mais pareciam armas... Booker não sabia o que fazer. —Você me salvou. — Ela sussurrou. —Obrigada. —Eu não... —Você salvou. — Ela interrompeu. Então ela olhou para ele com lágrimas nos olhos que o estriparam. —Você não é um monstro, Booker. Você é um anjo que esqueceu que ainda tem asas. Ela se levantou e o deixou no porão sozinho. Mãos cruas, juntas doendo, ele estava uma bagunça. Mas, pela primeira vez em anos, sua alma se sentiu um pouco mais leve. Uma mão esquelética agarrou seu ombro, seu aperto firme e inflexível. Houve um tempo em que Irene tremia de medo ou se perguntava o que a criatura queria dela. Ela teria se retirado, rezando para que a figura decadente desaparecesse e a deixasse em paz. Agora, ela sabia que não estava tentando chamar sua atenção ou assustá- la. O espírito queria dar-lhe algum tipo de conforto. Ele não conseguia falar. Sua mandíbula caíra no processo de apodrecimento. O espírito provavelmente estava conectado a um corpo que havia sido jogado no pântano há muito tempo atrás. A deterioração diminuiu para ele, até suas roupas estavam cobertas de lama que preservariam o tecido nos próximos anos. Ela respirou fundo pelo nariz e pela boca. O palco estava bem na frente dela. Apenas dois passos, e todos lá fora a veriam. Eles deveriam, é claro. Frank fez um rápido discurso sobre como agir quando ela estava lá fora. Não olhar para nenhuma pessoa em particular por muito tempo. Ela não precisava falar ou interagir. Apenas fazer o que Booker mandasse que ela fizesse, e ela ficaria bem. A única chave no plano deles era que ela ainda não tinha visto Booker. Ele não estava em lugar algum, mas ainda pretendia se apresentar. Frank havia dito para ela sair do palco se ele não aparecesse. Booker era excêntrico em suas apresentações, dissera Frank. Ele estaria lá. Ninguém nunca perdia um show. O cadáver ao lado dela apertou seu ombro novamente. —Eu sei. — Ela sussurrou. —Eu sei que tenho que ir lá, mas não sei o que fazer. Eu apenas fico lá? Eu não deveria dizer nada. Ele pegou no ombro do vestido dela, e ela sabia o que ele estava tentando dizer. Ela não estava exatamente vestida de tal maneira que pudesse se misturar a qualquer coisa. Evelyn havia lhe dado este vestido para se apresentar hoje à noite, dizendo que o que ela escolheu era adorável, mas não exatamente o que as pessoas esperavam. Irene estava mais confortável em corpetes em forma de coração e saias bufantes. Este era muito sexy e revelador. O veludo preto se estendia por seu corpo como uma segunda pele. A parte de trás estava completamente aberta, cabelos frios acariciando suas costas e esticando-se na frente de seu corpo, onde o tecido se abria um pouco. A saia grudava nas coxas e depois soltava abaixo dos joelhos. Mangas compridas terminavam em triângulos sobre os nós dos dedos, mantidas ali por brilhantes anéis de diamante. O cadáver deu-lhe uma leve cutucada em direção ao palco. —Já passou da hora, não é? — Ela respondeu. A multidão já estava se mexendo em seus assentos, olhando ao redor para a próxima apresentação. Ela olhou do outro lado do palco para o outro lado, onde estavam os outros artistas, Frank de cartola, Evelyn de vestido vermelho e todos os outros em seus trajes que talvez fossem comidos por traças, mas ainda bonitos por si só. Frank apontou para o palco e depois meneou os dedos para ela. Era hora de seguir em frente, por mais assustada que estivesse por estar sozinha. Onde estava Booker? Ela poderia fazer isso. Tudo ficaria bem, não importava o que acontecesse. Se ela tivesse que subir no palco e de alguma forma divertir essas pessoas, ela conseguiria. Irene havia escapado do exorcista. Duas vezes. Ela poderia fazer qualquer coisa. Fugir de casa a trouxe aqui, que era claramente o caminho que ela deveria estar. Tudo o que ela precisava fazer era garantir que continuasse seguindo o caminho. Ela deu um passo à frente, depois outro, e de repente estava na frente de tantas pessoas que mal conseguia respirar. Quantos Frank disse que estava lá fora hoje? Sessenta? E todos estavam olhando para ela. Todos esperando que ela fizesse alguma coisa. Sua respiração ficou estremecida, parecendo ecoar ao redor dela como se houvesse um microfone na frente dela. Ela olhou nos olhos de algumas pessoas que lançaram seus olhares de pena no momento em que começou a tremer. Irene procurou na multidão o homem de olhos escuros que se tornara sua salvação. Booker não estava em lugar nenhum. Nenhuma tatuagem marcava a carne das pessoas ao seu redor. Ninguém parecia querer ajudá-la a não ser o cadáver que a seguira até o palco. Com a voz trêmula, ela perguntou baixinho: —Booker? O chamado parecia desmoronar, estalando como uma bolha acima da multidão. O som de sua voz fez uma onda percorrer a multidão. Sussurros silenciosos de pessoas perguntando o que estava acontecendo. Essa era a performance? Essa mulher realmente precisava de ajuda? Ela colocou os braços em volta da cintura, subitamente consciente de que não estava usando tantas roupas quanto gostaria. Sua mãe a teria chamado de prostituta por usar algo assim em público. O pai dela a teria espancado. As lembranças de seus pais surgiram em sua mente. Embora ela estivesse livre deles fisicamente, a prisão mental que eles colocavam ao seu redor sempre a deixava envergonhada. —Booker? — Ela perguntou novamente, um pouco mais forte desta vez. Ela ouviu uma briga por trás da cortina. Olhando por cima do ombro, viu Evelyn segurando o ombro de Frank. Ele estava tentando subir ao palco, o rosto vermelho de raiva. Ele estava bravo com ela? Ela não estava fazendo algo que deveria estar fazendo? Então todos congelaram quando ouviram o silvo baixo de uma cobra. Irene virou-se para ver a multidão ofegar e se separar como uma onda, enquanto a criatura que geralmente encontrava sua casa em volta do pescoço de Booker deslizava em direção ao palco. A cobra parecia maior desta vez, de alguma forma muito maior do que os dois metros com os quais ela estava acostumada. Tinha crescido quatro, seis metros de comprimento. As escamas de esmeralda brilhavam na penumbra, o corpo espesso da cobra lançando uma sombra deslizante sobre a tenda. Impossível que isso acontecesse, e, no entanto, ela podia ver as sombras como centenas de cobras deslizando pela tenda em sua direção. Irene observou-a se aproximar, cativada por seus movimentos graciosos e pela língua trêmula que provava o ar. A cobra subiu as escadas pesadamente e lentamente. Uma vez que a alcançou, empinou até que sua cabeça estivesse nivelada com a dela. Oscilava de um lado para o outro, olhos amarelos combinando com os dela. Alguém na multidão choramingou, e ela ouviu um silêncio: —Essa garota precisa de ajuda? Ela não sabia como garantir a eles que, obviamente, ela não precisava de ajuda. Isso fazia parte de Booker, e a cobra nunca a machucaria. Ela tinha tanta certeza disso quanto o céu estava azul. Lentamente, Irene levou a mão ao rosto da cobra. Ela passou a mão pela mandíbula e observou enquanto ela se inclinava para que ela pudesse alcançar mais a cabeça chata. —Olá. — Ela murmurou, sua voz carregando através da tenda subitamente silenciosa. —Onde está o seu mestre? A fera balançou para o lado, soltando um suspiro baixo e depois olhando de volta para a plateia. Irene seguiu seu olhar para o fundo da tenda, onde uma brisa forte abriu as abas. Lá, parado nas sombras, estava o homem que ela reconhecia como Demônio. Anjo caído. Homem. A plateia se virou com ela, os olhos arregalados de medo e choque enquanto Booker entrava na tenda. Ele estava de peito nu novamente. Um suspender estava por cima do ombro, o outro pendurado na coxa. Suas calças pretas eram grandes demais para ele e caíam para o lado. Ele segurava um cigarro entre os lábios e as mãos enfiadas nos bolsos. O fim do cigarro se iluminou com uma inspiração profunda, depois a fumaça derramou de suas narinas. Ele serpenteava pelo centro da tenda, olhando para o chão e nada mais. Quando ele estava a meio caminho dela, ele olhou para cima. Seus olhos escuros estavam cheios de emoções que ela não podia nomear. Uma tempestade estalou dentro dele, e o som de correntes encheu a tenda. —Então — Disse ele, sua voz quebrando através da tenda como o estalo de um raio. —A bela doma a ferra. A multidão parecia desaparecer de sua visão. Tudo o que ela podia ver era ele, o jeito que o cigarro balançava, as pontas ásperas de seu rosto, a inclinação de seus ombros. —Olá, Booker. —Noite, Irene. Ela não o via há alguns dias, e isso era tudo o que ele podia dizer? Ele salvou a vida dela daquele padre. Ele aliviou a alma torturada dentro dela, e tudo o que ele tinha a dizer era “Noite”? —Onde você esteve? — Ela perguntou. A cobra voltou ao palco onde começou a enrolar em torno de suas pernas. Repetidas vezes, enrolava seu corpo até criar uma gaiola ao seu redor. As escamas deslizavam por suas coxas, não muito apertadas para desconforto, mas certamente mantendo-a em um só lugar. —Por aí — Ele respondeu. —É tudo o que você tem a dizer? Alguém na multidão sussurrou: —Isso é uma performance? Irene não sabia. Frank disse que Booker sempre se apresentava, ele sempre tinha um plano, e tudo o que ela precisava fazer era ficar lá. Bem, ela estava de pé. E agora ela sentia que também estava descobrindo sua alma. Booker soltou outro suspiro de fumaça. —Oh, eu tenho muito mais a dizer do que isso, querida. A pele ao redor de seus pulsos e pescoço ondulou. As correntes caíram de sua pele, batendo fortemente contra seu corpo. O metal grosso se curvou para encaixá-lo, apertando seu pescoço até a pele ficar vermelha e o ar chiar dos pulmões. Irene se lançou para frente, apenas para sentir a cobra segurando-a no lugar. —O que você está fazendo? — Ela choramingou. Seus olhos ficaram vermelhos, vasos sanguíneos estalando com a tensão em volta do pescoço. Ele soltou um grunhido baixo, caminhando em direção ao palco quando seu rosto ficava roxo. —Booker. — Ela retrucou. Quatro passos para o palco, e então ele estava quase ao lado dela. Seus olhos reviraram na cabeça e ele caiu sobre um joelho. Sua respiração vinha em raios irregulares, soluços silenciosos ecoando na tenda enquanto ela lutava contra a cobra. Apertava então. O corpo espesso estava parecia cheio de dor. —Pare com isso. — Irene chamou. —Booker, você está fazendo isso. Você está controlando isso. Pare com isso! Ele deu um último suspiro e olhou para ela com olhos escuros. E ela viu tudo naquele momento. Tudo o que ele tinha em sua alma. Ele olhou para ela com tanta adoração que fez seu coração doer. —O que você está fazendo? — Ela perguntou, sua voz cheia de lágrimas que se recusavam a cair. —Transforme a carne. — Ele resmungou. O outro joelho de Booker caiu no chão, os braços flácidos ao lado do corpo. Ajoelhou-se diante dela como um homem em oração. —Transcenda, anjo. —Eu não sei o que você está dizendo. — Ela empurrou a cobra, cravando as unhas nas escamas, que se recusavam a se mover. —Booker, por favor. Ele soltou um ruído borbulhante e depois uma única palavra. —Flor. Um raio atingiu-a de dentro para fora. A eletricidade estática como ela nunca havia sentido antes corria por suas veias como a corrente de uma linha de energia. Seu corpo chiou, suas mãos formigaram e sua cabeça caiu para trás quando a magia bruta a derramou. Ela nunca sentiu algo assim antes. De repente, cada centímetro dela se sentiu infinitamente mais poderoso, subitamente bonito, de uma maneira que ela não havia percebido ser possível. A eletricidade se acumulou em sua pele por baixo do vestido. Ela sentiu o tecido ceder como se alguém tivesse pegado uma faca no veludo fino e a aberto. Suas pernas foram liberadas pela cobra quando ela deslizou em direção ao seu mestre. Irene arregalou os olhos ao ouvir de repente o som de abelhas. Ela trancou os olhos com uma mulher na frente da multidão. Suas mãos estavam pressionadas contra a boca e ela olhava para Irene como se tivesse feito algo impossível. Ela tinha? Irene olhou para os braços dela onde antes havia tatuagens, apenas para ver flores desabrochando de sua pele. Lírios, margaridas, rosas, todas saindo do seu corpo como se ela fosse um jardim. Abelhas pairavam ao seu redor, mas não as que ela já havia visto antes. Abelhas grandes e gordas que brilhavam como vaga-lumes em todas as faixas amarelas. Pequenos brilhos de luz caíam sobre elas como pó, pólen que eles coletavam diretamente dela. Borboletas flutuavam ao seu redor, azuis e vivas como luzes de neon. Cada batida de uma asa cantava como um carrilhão, pequenos sons de sino enquanto elas dançavam ao seu redor. Irene levantou os braços, atordoada com a beleza do momento em que ela tinha tanta certeza de que teria sido a morte de Booker. Olhando além da magnífica arte que ele criou com sua magia, ela observou a cobra deslizar em volta do pescoço dele e as correntes soltarem-se. Ele respirou fundo e lentamente enquanto a olhava com olhos cheios de lágrimas. Ela deu um passo à frente, pétalas caindo de seus braços e caindo no palco. —Porque você fez isso? Ele respondeu calmamente, para que as pessoas que os observassem não pudessem ouvir. —Só sei criar através da dor. Não posso mais machucá-la, Anjo, mas você ainda precisa se tornar como eu. A multidão ofegou quando ela se ajoelhou na frente dele. Irene estendeu a mão para o rosto dele e o segurou entre as mãos. —Obrigada. — Disse ela, respirando nas palavras todas as emoções que estavam disparando através de cada terminação nervosa. —É lindo. Booker pegou uma das mãos dela e a levou à boca. Ele deu um beijo na palma da mão e balançou a cabeça. —Nada anjo. Você é linda. As cortinas se fecharam na frente deles. Ela ouviu Frank começar seu discurso final, agradecendo a todos por terem vindo e o tumulto da multidão rugindo. Os outros artistas enxameavam ao redor deles. Daniel jogou um braço em volta dos ombros e a levantou do palco. —Você é uma de nós agora! Risos encheram seus ouvidos. Tiny e Tom Thumb agarraram Booker, levantando-o e batendo nos ombros. Eles o parabenizaram, depois o repreenderam por não lhes dizer o que ele poderia fazer se ele tatuasse outra pessoa. Durante todo o tempo, Irene e Booker se olhavam. Ela sentiu muito, naquele momento, que estivera sozinha a vida toda. Até agora. —Booker. — O sussurro alcançou seu sonho até que ele quase acordou. Ele se virou, olhando através da névoa criada por sua mente e se perguntou como era possível que ele soubesse que estava dormindo. Ele podia dizer conscientemente que sim, isso estava em sua mente. Mas ele também não conseguiu acordar. Ele deu um passo na névoa que rodopiava em torno de seus pés. —Olá? —Booker. — Novamente o som suave chegou aos seus ouvidos. Era uma voz familiar, que ele não conseguia identificar, mas tocava sinos na cabeça. Quem sua mente evocava? Ele tem sido feliz ultimamente. Estranhamente, foi uma emoção que ele reconheceu quase que instantaneamente. A felicidade era tão rara em sua vida, os momentos de alegria que ele sentiu foram queimados em sua mente como os pontos singulares com os quais ele se importava. Quando sua mãe lhe deu um broche de estrela dourada para usar depois de sua primeira tatuagem, aos seis. Quando ele conheceu sua esposa, a mulher selvagem nos Pinkertons que estava de pé sobre um homem morto. A antecipação da matança quando ele soube que finalmente iria matar o homem que ele chamava de “Pai”. Essas foram as memórias que ele chamava de felizes. Exceto que, atualmente, ele não tinha tanta certeza de que eram felicidade ou mais momentos em que sua vida havia mudado. Agora que ele tinha alguém que o entendia, a felicidade parecia... mais leve. Ele levou um tempo para encontrar pequenas maneiras de se conectar com Irene, pequenos momentos no dia em que ele poderia tornar melhor. Deixando o chá do lado de fora da porta e batendo, apenas para fugir, para que ela não soubesse que era ele. Colocando flores na mesa da cozinha antes de comerem, só para que ele pudesse ver o olhar no rosto dela quando ela as visse. Pequenas coisas nas quais ele nunca teria depositado qualquer tipo de fé, e ainda assim, agora, significavam mais para ele do que qualquer outra coisa. Então, por que sua mente iria querer puni-lo? Pela primeira vez em sua vida, ele sentiu como se estivesse fazendo coisas boas. —Quem está ai? — Ele perguntou, dando um passo à frente novamente. A névoa girava em torno de uma figura à distância. Ela usava um vestido preto, a barra balançando nos joelhos e pingando um líquido escuro que ele sabia ser sangue. Suspirando, ele aceitou o destino que sua mente queria puni-lo. Claro. Ele estava sonhando com sua esposa morta. —Amelia — Disse ele. O sonho o tele transportou para frente até que ele ficou diretamente atrás dela. —Eu me perguntei quanto tempo levaria para eu vê-la novamente. Os sonhos costumavam ser uma ocorrência regular. Ele a via tantas vezes depois de sua morte que perdeu a conta. Se ele fosse qualquer outro homem, ele poderia ter pensado que ela o estava assombrando. Mas Booker não queria acreditar nesse tipo de coisa. Se ele acreditasse, bem, ele teria que admitir que havia centenas de almas que queriam... não, mereciam vingança pelo que ele havia feito com elas. Ele só podia imaginar quantos deles queriam assombrá-lo. Eles teriam que formar uma linha atrás da esposa morta, é claro. Ela queria fazer da vida dele um inferno, mesmo do túmulo. —Olá, Booker. — Ela se virou, os olhos vazios o encarando. Ela sempre parecia assim nos sonhos. Olhos leitosos e cegos. Uma ferida vermelha e aberta na garganta de onde ele a cortara todos esses anos atrás. Ele nunca quis matá-la, mas quando percebeu que prisão era o mundo dos Pinkertons... bem, havia baixas para pagar por sua liberdade. Amelia usava o vestido preto que ele amava, e costumava dizer a ela o tempo todo que a fazia parecer uma “dama”. Mas ela nunca foi uma dama e ninguém teria acreditado nele quando ele disse isso. Ela era a mulher Pinkerton com quem o pai queria que ele se casasse. Uma boa dona de casa que carregava punhais no bolso para o caso de algo acontecer. Em resumo, Amelia nunca fora uma boa dona de casa e não tinha interesse em se tornar uma. —Você tem outra mulher aqui com você. — Disse Amelia, inclinando a cabeça para o lado. —Quem é ela? —Ninguém. —Isso não é verdade. Você a marcou como sua. Tatuagens nos braços de flores e abelhas. Você queria protegê-la? Isso não é como você, marido. Booker estremeceu. —Eu não sou mais seu marido. —Mas você era. — Ela deu um passo à frente e levantou uma mão fina, colocando-a contra o peito. As unhas dela cravaram na pele dele, cada vez mais, até que a dor o picou. —Você não pode negar o que tínhamos era uma conexão que a maioria das pessoas nunca sentirá em suas vidas. —Nem deveriam. — Ele deu um passo para trás e separou as mãos dela de sua carne. —Não éramos normais, Amelia. Quantas vezes tenho que lhe dizer isso? Maridos e esposas não matam pessoas juntos. —Você gostava dessa época. —Eu não sabia que havia outra opção. Amelia soltou uma risada sufocada que doeu. —Outra opção? Booker, não há outra opção para você! Você era um monstro na época e agora é um monstro. Você realmente acha que essa coisinha delicada e fofa vai aceitá-lo quando ela descobrir o que você realmente pode fazer? —Ela já viu tudo. —Não, ela não viu. — Amelia lambeu os lábios, sua língua bifurcada agora que ela estava morta. —Ela viu você ser protetor dela e dos outros, mas ela não viu você matar. Ela não viu o monstro que sai de você quando você experimenta sangue. Você é como eu, Booker. Um diabo no terno de um homem. —Eu não sou. — Ele deu um passo para trás. —Nunca mais serei assim. Mas não era? Quantas vezes ele matou e gostou? A resposta era muito maior do que ele estava disposto a admitir neste momento. As pessoas eram o melhor tipo de presa, e ele não sabia como aceitar isso em uma vida como a dele. Booker ainda queria caçá-las Ele queria persegui-las pelos confins da terra como costumava fazer. Para que as águias tatuadas nele sejam libertadas, para que os tigres entrem em movimento e as joguem no chão. Para os lobos e ele rasgarem carne até que a pessoa parasse de lutar. Acima de tudo, ele queria ver o veneno de sua cobra afundar mais profundamente em suas veias, até que elas não pudessem pensar em mais nada além da dor. Ele soltou um longo suspiro. —Isso não é mais quem eu sou. Amelia avançou, forçando-o a voltar, a menos que ele quisesse que ela o tocasse novamente. —Booker, meu amor. Você é quem é, é e sempre será. Você não pode fugir do seu propósito. Ele não quis fazer a pergunta, mas encontrou as palavras caindo de seus lábios de qualquer maneira. —Que propósito é esse? Ela não falou até que o alcançou novamente. Amelia se inclinou para perto, sua boca tocando a concha do ouvido dele. —Você é um demônio encarnado, Booker. Corrompa-os e depois envie- os para o inferno para eu brincar. E então o sonho abruptamente liberou seu domínio sobre ele. Booker pulou para cima, segurando as mãos em punhos e cutucando as sombras do quarto. Quando seu coração trovejante finalmente o alertou de que ele estava acordado, completamente desta vez, ele soltou uma onda de ar e apertou a cabeça. Ele ainda podia sentir a lambida molhada de sua língua contra sua orelha. Ainda podia ouvir as palavras dela ecoando em sua mente. Amelia sempre o fez se sentir menos homem, porque eles não foram capazes de quebrá-lo da gentileza. Booker sempre sentiu um pouco de culpa quando matava, mesmo se semanas depois ele via a família da pessoa nas ruas. Ele nunca gostou que as pessoas tivessem medo dele também. Ele fazia um trabalho. E fazia muito melhor do que a maioria das pessoas. Era assim que ele via a matança e, embora o resto do mundo não a visse assim, ainda o incomodava que ele não conseguia entender o ponto de vista deles. Por que outras pessoas viram falhas nos assassinatos? No entanto, elas não eram nem assassinatos na opinião dele. Alguém queria que ele matasse a pessoa que ele tirou a vida. Isso significava que elas eram uma pessoa má e mereciam o que tinham. De certa forma, os Pinkertons se consideravam deuses. Eles eram os responsáveis pelas punições que o Todo Poderoso não faria. Ou, pelo menos, as punições vieram muito antes do que o Deus cristão havia estabelecido. Ele quase podia ouvir o riso de Amelia com o pensamento, como se ela estivesse dentro de sua cabeça. Aquela mulher sempre quis ter mais e mais poder, não importava qual fosse o trabalho. Matar uma criança? Certamente, se isso significava que mais pessoas tivessem medo disso. Booker esfregou a mão no rosto e murmurou: —Ela realmente não está aqui. Sua respiração ficou presa no peito. Ele juraria que havia uma pessoa tocando suas costas se não achasse impossível. Ainda assim, as sombras estavam começando a chegar até ele. O movimento no canto de trás do quarto era apenas uma ilusão. Sua mente queria ter medo; foi por isso que deu a ele o sonho distorcido em primeiro lugar. Ele tinha que sair deste quarto e limpar a cabeça. Booker passou as pernas pela beira da cama e ignorou a sensação de que alguém iria estender a mão por baixo e agarrar seus tornozelos. Não havia fantasmas, mesmo que Irene dissesse que os via. Ou talvez ele acreditasse em fantasmas, mas certamente não acreditava que eles poderiam machucá-lo após a morte. Booker saiu do quarto com determinação. Ele precisava ir para o único lugar nesta propriedade onde ele estava completamente e totalmente à vontade. Isso faria sua mente se acalmar das lembranças sombrias e o faria voltar a um sono profundo e sem sonhos. O cemitério. Ele saiu de casa e seguiu em direção às pedras mais afastadas do quintal. Talvez fosse curiosidade mórbida mais do que qualquer outra coisa. Afinal, sua própria mãe foi enterrada aqui quando ele pensou que seu corpo seria enviado de volta para sua própria família. Outra cortesia dos Pinkertons. Ela não conseguia chorar sangue no túmulo. Em vez disso, ela foi colocada em um pequeno cemitério, onde provavelmente ninguém a encontraria. Ele nunca perguntou a Frank sobre o túmulo, ou mesmo o tio excêntrico de Frank, que visitava de vez em quando, desde que o velho cuidava do lugar há anos. As pessoas não falavam sobre os Pinkertons, quase como se fossem o próprio diabo. Diga o nome Pinkerton, e um deles estava prestes a aparecer. O que significava que era melhor você ter um emprego para eles, ou eles iriam queimar a casa por desperdiçar seu tempo. Uma figura estava no cemitério, vestido branco ondulando em torno de suas curvas, cabelos quase brancos tremulando na brisa leve. Booker esfregou os olhos, incapaz de acreditar que havia realmente um fantasma parado no maldito cemitério. O luar brilhava em torno da aparição e... Oh. Ela se mexeu, virando-se para que ele pudesse ver as curvas que ela escondia por tanto tempo sob vestidos que eram sempre um pouco grandes demais. Mas ele a reconheceria em qualquer lugar, mesmo na neblina de um pesadelo e no desespero de escapar de memórias que ele não queria em sua cabeça. Irene. O pequeno espírito de uma mulher que o surpreendeu impossivelmente em um show que ele criou para afastá-la. Poucas pessoas alcançariam uma cobra sem hesitar. Menos pessoas ainda ficavam ao lado de Booker, caíam de joelhos na frente dele e certificavam-se de que ele estava bem quando se mostrava claramente apenas para conseguir o que queria. E ele queria desesperadamente que as tatuagens dela arrancassem seu corpo como o dele. Booker não queria mais se sentir sozinho, e ela era a única pessoa que podia garantir que ele não estivesse. Mesmo se ele a tivesse criado à imagem que ele mais desejava. Ela estava no centro do cemitério, com os braços flácidos ao lado do corpo, franzindo a testa para uma lápide que ele conhecia como a palma da mão. O que ela estava fazendo a essa hora da noite? Ele sabia que tinha que ser uma ou duas da manhã e, no entanto, aqui estava ela. —O que exatamente você quer? — Ela assobiou. Essa era uma boa pergunta. Ele não sabia o que queria e certamente não esperava segui-la aqui. Ele nem sabia que ela estaria aqui. Então, ele percebeu que ela não estava falando com ele. Ela não sabia que ele estava aqui. Em vez disso, ela estava olhando para a lápide como se alguém fosse sair dela e falar com ela. Ele hesitou, depois se escondeu atrás de uma pedra maior. Ele pressionou as costas contra o granito resistente e se acomodou na terra encharcada para ouvir suas palavras. Ela tinha sido um enigma para todos eles. Irene alegava ver pessoas mortas, mas elas nunca a viram usar esses poderes. Apenas Clara acreditava nela, e a dama barbada não falava sobre o que havia acontecido entre as duas. Às vezes, ele se perguntava se era mais provável que a mulher mais velha acreditasse nessas coisas. Mas agora, ele teve a chance de ver o que ela realmente podia fazer. Uma pequena parte dele parecia que a estava espionando. E talvez ele estivesse. Não era exatamente justo que ele estivesse se escondendo sem pedir que ela visse o que ela poderia fazer. Ele não se mudou de seu esconderijo. Em vez disso, ele apoiou as mãos nos joelhos e ficou olhando a noite, ouvindo atentamente. —Eu não sei o que você quer de mim. — Disse ela novamente, sua voz calma e leve no ar da noite. —Sim, vejo que esta é sua sepultura. Claro, eu entendo isso, mas tem que haver algum tipo de mensagem mais do que apenas aqui que você foi enterrada. Então o que é? Irene ficou em silêncio por alguns momentos. Ele quase se inclinou ao redor da pedra para ver o que ela estava fazendo antes que sua voz se levantasse no ar novamente. —Você é a mãe de Booker, não é? A mãe dele estava falando com ela? Isso não parecia provável. A mulher tinha estado quase silenciosa em sua vida, levada a se tornar muda pelo pai dele, que queria que ela fosse a esposa perfeita. —Oh, ele me contou sobre você. — As pedras estalaram. Ela estava se estabelecendo ao lado da sepultura como ele? —Ele disse que matou você. Ele matou, e foi a pior experiência que ele já sofreu. A mãe de Booker era sua única tábua de salvação naquela época. Ela era a única que acreditava nele. A única mulher que o via como algo diferente de uma arma. A única pessoa que queria que ele tivesse um bom futuro, mesmo que ela não pudesse lhe dizer exatamente isso com a idade. Ela não disse uma única palavra há mais de três anos até pedir que ele a matasse. As palavras ainda o assombravam até hoje. Seu pai voltará bêbado amanhã à noite. Quero que você mate nós dois e depois fuja daqui, meu garoto. Salve-se do mesmo destino. Booker olhou para o outro lado do campo enquanto os vaga-lumes voavam da grama alta. Eles faziam o seu caminho preguiçosamente, dançando como mil estrelas no céu noturno. Eles eram lindos, e ele pôde imaginar por alguns momentos que a vida poderia ser tão fácil quanto a deles. Irene soltou uma risada suave. —Vejo que ele não fez isso de propósito. Eu nunca pensei que ele tentasse te matar porque ele queria, você sabe. Ele é um homem melhor que isso. Ele era? Ele não achava que ela o conhecia o suficiente para adivinhar. As palavras de Amelia dançaram em sua mente novamente. Um diabo. Um monstro. Um homem criado para matar e enviar pessoas para o inferno, onde seriam atormentadas por uma eternidade. —Não. — Disse Irene. —Ele é um bom homem. Eu sei que, mesmo que algumas pessoas pensem que não. Bem, pelo menos havia alguém vivo que pensava isso. A mãe de Booker pensava que ele era um homem bom, mesmo nos piores momentos de sua vida. Ela foi gentil, atenciosa, sempre fez questão de colocá-lo em primeiro lugar. Isso significava mais do que ele já disse a ela. Pena que ele não podia contar isso pessoalmente. Havia muitas coisas que ele desejava poder dizer à mãe, mas nunca teve a chance. —Eu acho que ele é bem bonito. — Continuou Irene. —Você não acha? Eu posso entender por que algumas pessoas têm medo dele, essas tatuagens são certamente intimidadoras, mas por baixo delas estão as características impressionantes. E, é claro, ele é um bom homem por trás de tudo isso, então me faz gostar ainda mais dele. Ela gostava dele? —Claro, eu gosto bastante dele. Realmente, acho que se tivéssemos nos conhecido na rua antes de tudo isso, eu o acharia fascinante e pararia para conversar com ele. Talvez apenas para perguntar como foi o seu dia. Ele não duvidava disso nem um pouco. Irene era muito gentil para seu próprio bem. Se alguém ia parar um Pinkerton na rua e perguntar como ele estava, era essa mulher estranha. —Mesmo que ele goste de se esconder atrás das lápides porque acha que eu não posso vê-lo. E ele pensou que ela era uma garota tola quando ele a conheceu. Booker se inclinou ao redor da pedra e encontrou seu olhar divertido. Ela sentou-se de costas contra a grande tumba da mãe dele. A tumba de pedra no topo dominava sua forma minúscula, e ele sabia que as bordas estavam esculpidas com o nome de sua família. Pinkerton. Repetidamente. De alguma forma, não parecia tão ruim quando a enquadrava. —Como você sabia? — Ele perguntou. —Há um fantasma ao seu lado. — Disse ela com uma risada. —Ele está apontando para você violentamente. Acho que ele acredita que você está tentando me pegar de surpresa. —Talvez eu estivesse. —De alguma forma, eu duvido disso. —Você duvida de muitas coisas sobre mim. — Ele poderia muito bem acompanhar a conversa. Ela sabia que ele estava ouvindo de qualquer maneira. —Você diz muitas coisas doces, anjo. —E você continua me chamando assim. — Respondeu ela. —Eu não sou um anjo, Booker. —Você poderia ter me enganado. — Ele a encarou ao luar, cabelos prateados e vestido branco, pele branca brilhando com o orvalho da manhã. Ela não tinha ideia do quanto ele pensava que ela caíra dos céus apenas para atormentá-lo. —Se eu sou um anjo, onde estão minhas asas? —Você simplesmente não pode vê-las. — Respondeu ele, sua voz em silêncio. Os grilos ganhando vida ao seu redor, a música do céu noturno e os segredos sussurrados no escuro. —Mas não se preocupe, eu posso vê-las por você. Irene bateu no chão ao lado dela. —Venha aqui, homem tatuado. Se você insistir em fazer parte dessa conversa, é melhor não se esconder mais. —Eu não sabia que poderia fazer parte disso. —Sua mãe está aqui. — Irene olhou em volta, depois franziu a testa. — Ou ela estava. Acho que ela não está mais. Estranho. —Ela tinha um jeito de fazer isso. — Ele se levantou e caminhou em sua direção, as mãos enfiadas no bolso e os arrepios subindo por todo o peito. —Fazer o que? —Desaparecer quando você estava procurando por ela. Ela aprendeu a se esconder muito bem. Irene fez uma careta. —Estou supondo que, por algum motivo, isso não era bom? O cascalho triturou sob seus pés enquanto ele caminhava para o lado dela. Booker abaixou-se lentamente, dando-lhe a chance de fugir, se ela quisesse. Aparentemente, ela não fez. Ou ela simplesmente não estava disposta a ceder uma polegada. De qualquer maneira, eles acabaram pressionados um contra o outro do ombro ao joelho. —Não, realmente não. —Isso é uma vergonha. Eu sei como é ter medo em sua casa. É um lugar que você deveria se sentir seguro e não é justo que ela não estivesse. —Não é justo que você também não se sentisse segura. — O túmulo de pedra arranhou suas costas. Talvez isso abrisse algumas feridas, lhe desse algo para consertar quando ele queria que outra pessoa o tatuasse. Booker realmente não se importava com as tatuagens em seu corpo. A qualidade delas era menos importante que o significado por trás delas. Elas precisavam ser criaturas fortes que pudessem protegê-lo ou assustar os outros. De certa forma, as tatuagens eram seu escudo contra o mundo. Ele ainda não conseguia entender por que não havia lhe dado algo aterrorizante em seu próprio corpo. Deus sabe, ela precisava de algo para cuidar dela. Ele já a salvou uma vez de um padre que queria machucá-la. Quem mais ia atacar essa mulher? Estendendo a mão, ele pegou o braço dela e o levou ao luar. As flores e abelhas estavam achatadas contra a pele dela hoje, mas ele podia ver além da tatuagem no laço mágico através dela. As borboletas foram uma agradável surpresa. Ele as colocou dentro das flores que lentamente floresceriam e libertariam seus cativos. Bonitas, mortais, se elas precisassem ser venenosas, mas oh, tão delicadas. Ele supôs que era assim que se sentia por ela. —Eu não sabia que você ia me fazer gostar de você. — Ela sussurrou, seus olhos nele enquanto ele olhava para as marcas. —Eu não sabia que você poderia criar assim. —Os Pinkertons trouxeram um homem para fazer isso comigo. Ele disse que conhecia vodu, e é por isso que ele podia traçar tinta na minha pele que criaria qualquer monstro que quiséssemos. — Booker bufou. —Não era vodu, na verdade. Apenas uma maldição que ele passou para mim à sua maneira. O homem tinha um tigre nas costas que ele também poderia tirar de si. —Então, há mais como nós? Booker encolheu os ombros. —O homem morreu depois que ele me tatuou. Os Pinkertons não deixam ninguém ir, se conhecem os segredos da família. Então, se houver mais pessoas, eu não as conheço. Nunca encontrei mais ninguém. Irene se aproximou, a seda da camisola roçando nas pernas dele. —Isso é triste. Não gosto muito da ideia de você ficar sozinho. Ele encostou a cabeça na lápide e olhou para o céu. —Eu não estou mais. A respiração nos pulmões dele congelou quando ela se inclinou contra ele, colocando a cabeça no canto do ombro dele. Ela soltou um suspiro baixo. —Estou feliz que você não esteja. Talvez seja por isso que fui enviada para cá. —Enviada aqui? —Eu costumava ter uma alma que me seguia por toda parte. Minha companheira constante que sempre cuidou de mim. Essa foi a alma que me ajudou a escapar e me trouxe aqui. Depois disso, a alma desapareceu. Agora isso foi uma ocorrência estranha e meia. Ele não conseguia imaginar o que era. —Talvez fosse um membro da família. — Ele murmurou. —Talvez eles quisessem ter certeza de que você estava em algum lugar seguro antes de atravessarem. —Eu pensei nisso por um tempo, mas acho que eles estavam me trazendo para você. Deus, ela seria a morte dele. Como poderia um homem sobreviver quando uma mulher dizia palavras assim? —Oh sim? Por que você acha isso? — Ele lentamente se deixou abaixar a bochecha até o topo da cabeça dela. As mechas lisas pressionaram contra sua pele e esfriaram o calor que queimara dentro dele do sonho. —Tudo o que a alma fez me empurrou para mais perto de você. Se não tivesse um plano para nós, nunca teria feito isso. — Ela encolheu os ombros. —Talvez apenas quisesse que curássemos as velhas cicatrizes um do outro. Se era isso que os espíritos queriam, teriam que esperar muito tempo por isso. Exceto, cada respiração que ele respirava quando ela estava perto, aliviava seu tormento. Ele acalmou a dor do pesadelo e deixou sua mente ficar completamente silenciosa. Então, talvez, ela não estivesse errada, afinal. —Ah, anjo. — Ele respondeu com voz rouca. —Você já arrancou meu coração. O que mais você poderia fazer? —Pensei que você tivesse dito há muito tempo que não tinha coração? Ele disse isso e, na época, Booker acreditava nisso. Mas agora? Agora ele não tinha tanta certeza. Ele sentiu o movimento em seu peito novamente, a ligeira floração e a extensão da pele. A magia mudou sua forma de linhas planas para abrir flores que se estendiam de seu coração e se abriam no ar da noite. Ele olhou para as pétalas que saíam do peito e depois olhou para ela. —Eu pensei que não. Estou repensando isso agora. Irene sorriu para ele, e as flores em seus braços explodiram. Pequenas abelhas iluminadas com dourado encheram o ar ao redor deles até que o ar se tornou doce como mel. —Talvez você não seja tão ruim quanto pensava. —Talvez não. Irene passou a mão pela saia nova, maravilhada com a textura e a qualidade. Claro, ela mesma costurou. E não, não era exatamente o estilo que as outras pessoas gostavam hoje em dia, mas ela achou bastante bonito. O padrão de flores no algodão a fez pensar em um campo cheio de margaridas. O corte era simples no corpete, a saia modesta, mas ainda apertada ao redor dos quadris. Isso era o mais próximo possível do estilo de Evelyn. Embora a outra mulher valorizasse roupas justas e fizesse homens babarem, Irene nunca seria capaz de ser essa pessoa. Ela sempre fica nervosa demais para entrar na multidão com roupas pressionadas contra o corpo. Ainda assim, a saia estava apertada nos quadris e na parte inferior. Um vestido e, de repente, os outros perceberam que ela tinha talento para costurar. Evelyn e Clara pediram um vestido para ela em seguida e a mandaram de volta à cidade imediatamente para buscar mais tecido. De que adiantava usar roupas que alguém mais usava quando ela obviamente era tão boa em costurar? E projetar? Irene nunca pensou em fazer suas próprias roupas. Sua mãe sempre fez as dela, mas isso era porque eles não queriam desperdiçar dinheiro com o estilo atual que sempre fazia as mulheres parecerem uma meretriz. Flexionar suas habilidades artísticas era bom; ela poderia pelo menos admitir isso. Mesmo que isso a fizesse se sentir um pouco culpada, porque ela estava fazendo as coisas que supostamente tornavam as mulheres ruins aos olhos de Deus... ainda assim era bom. Irene voltou para a loja onde havia comprado o tecido, o sino tocando acima da cabeça. O homem atrás do balcão se endireitou, com os olhos brilhando enquanto iluminavam o rosto dela e depois seguiam para os braços nus. Ele limpou a garganta, a expressão excitada em seu rosto caindo imediatamente. —Boa tarde, senhora. Certo. Ela era uma aberração aos olhos deles agora, e isso era algo que ela teria que se acostumar. Irene abaixou a cabeça em um aceno rápido e depois caminhou em direção à parede com os tecidos. Ela se sentia bem aqui, mesmo que fosse um pouco estranho com o homem olhando para as marcas em seu corpo. As tatuagens coçavam, não porque estavam se curando, mas porque ela podia sentir as abelhas mexendo. Qualquer pessoa lógica ficaria desconfortável sabendo que havia coisas vivas sob a pele. Eles iriam querer tirar as tatuagens de qualquer maneira possível. Mas Irene realmente gostava de tê-las. Sempre lhe disseram que as tatuagens eram um pecado. Elas não deveriam estar com alguém porque isso estava destruindo a tapeçaria de Deus. Agora que ela as tinha, Irene discordava de todo o coração. Ela estava usando a tela em branco que Deus havia lhe dado. Ela a estava honrando enchendo sua pele de coisas bonitas que só a tornavam mais bonita aos seus próprios olhos. Se não era isso que Deus pretendia, então Ele não era o santo que ela pensava que ele era. Irene estendeu a mão e tocou os dedos nos pedaços de tecido. Eles eram todos tão bonitos, mas havia alguns que chamaram sua atenção imediatamente: um azul pálido com pássaros brancos voando pela faixa, um verde claro com pequenas flores brancas e um xadrez em rosa e amarelo pálido. Ela poderia ganhar um pouco mais e fazer para Clara um vestido novo também. A mulher certamente tentava se esconder o suficiente, mas só porque ela era uma dama barbada não significava que ela não podia ser feminina. Clara ficaria tão bonita de amarelo com girassóis brilhantes no tecido. Um corpete em forma de coração e uma saia larga a faria parecer mais suave. Irene poderia até costurar algumas fitas para a barba. Seria uma roupa adorável, mesmo que Clara não a usasse em nenhum lugar, exceto na segurança de sua própria casa. Talvez isso a deixasse feliz por um tempo. Irene ouviu a campainha da loja, mas não achou nada. Ela estava tão absorta em olhar para os pedaços de tecido que nem olhou para o novo cliente até ouvir a voz da mulher. —Estou aqui para pegar um pedido para Ward. — A voz estridente soou como unhas em um quadro-negro. —Claro, senhora. Eu tenho isso nas costas há alguns dias. É uma peça adorável de musselina. —Obrigada. — A mãe de Irene respondeu, sua voz dura. Ela estava claramente tentando sair da loja o mais rápido possível. Irene respirou fundo e fechou os olhos. Eles não a veriam se ela ficasse quieta. Eles não se importariam se ela não chamasse a atenção para si mesma. Seus pais eram previsíveis em suas escolhas. Ela não sobrevivera anos ao lado deles sabendo o que eles iam dizer e fazer? Se ela não chamasse atenção, eles não a veriam. Um homem pigarreou. —Senhorita, você não sabe que é pecado marcar sua carne como você fez? Certamente, seu pai indicaria a um estranho que o que aquela pessoa havia feito estava errado aos olhos de Deus. Ou errado aos olhos de seu pai. Ela poderia ignorá-la. Ela poderia ficar de costas para eles com bastante facilidade, e eles talvez não a notassem. Mas eles já viram suas tatuagens, e ela deveria saber que isso tornaria impossível se esconder. Isso significava que seu pai continuaria pressionando até que ela respondesse. —Eu sei disso. — Respondeu ela. —Eu apenas discordo de você. Uma longa pausa foi a resposta antes de ouvir a mãe dizer: — Irene? É você? Ela engoliu em seco. A última coisa que ela queria era ver seus pais agora. Mas eles não podiam fazer nada com ela. Ela já estava marcada, claramente não valia mais a pena reivindicar como filha. O que mais podiam eles fazer? Lentamente, ela se virou, forçando-se a manter as mãos ao lado do corpo e não cruzar no peito. —Olá mãe. Qualquer outro pai amoroso teria corrido em sua direção, a abraçado e perguntado se ela estava bem. Os pais dela não eram assim. Eles franziram o cenho para ela. —Onde você esteve? — O pai dela rosnou. Irene lembrou a si mesma que agora era forte. Ela estava coberta de tatuagens que poderiam descascar sua pele como mágica. Ela se tornou algo mais do que a garotinha assustada que ouvia o que o pai ordenasse que ela fizesse. Ela não precisava responder se não quisesse. E ela não quis. Mas seus lábios se moveram de qualquer maneira. —Aqui não. —Podemos ver isso, sua filha ingrata. Venha aqui. — Ele estalou os dedos e apontou para o chão, como se ela fosse um cachorro que ele poderia pedir ao seu lado por um capricho. Ela não era um animal. Irene era uma pessoa e, mais do que isso, tinha mais valor do que o pai lhe dava. Foi a primeira vez em sua vida que ela pensou nisso. Talvez fosse por isso que a bravura subitamente subisse por suas veias. Ela se endireitou, ergueu o queixo e disse com firmeza: —Não. Ela não aprendera há muito tempo que era a pior coisa que ela poderia dizer a um homem como seu pai? A palavra dificilmente se registrou para ele. Ele ouviu o som de uma sílaba e era um botão que significava “venha”. Ela mal teve tempo de respirar antes de sentir a mão dele em volta do pescoço. Sua mãe soltou um som suave, não um suspiro de medo, mas de aviso. Ele apertou ainda mais e a forçou a voltar para as sombras da loja, escondida entre duas prateleiras segurando pedaços e bobinas. Eles eram as únicas pessoas na loja além do homem atrás do balcão, e ele ainda estava tentando encontrar algo para a mãe dela nos fundos. Irene estava sozinha. Ela levantou as mãos e segurou os pulsos do pai, tentando desesperadamente arrastar ar suficiente, embora seu rosto já estivesse quente. —O que você me disse? — Seu pai sibilou. —Eu disse que não. — Ela resmungou em resposta. —Você me respondeu, é isso? Ou este é o demônio dentro de você falando comigo? Os olhos dele estavam selvagens. Muito selvagem para um homem completamente sadio, ela percebeu. O pai dela nem estava mais lá. Raiva e ódio passavam por seus ombros, uma névoa negra cobrindo seu corpo e instando- o a fazer coisas terríveis. Irene podia ver agora. Ela não se importava de olhar para a escuridão desta alma, ou o que quer que fosse. Ele olhava para ela com olhos vermelhos amarelados. Ela não tinha mais medo de olhar para ele. Ela não tinha mais medo de dar um nome, porque não tinha poder sobre ela. Não mais. —Não sou eu quem tem demônio, sou? — Ela assobiou. —Pai. Ele soltou o pescoço dela e deu um passo para trás, as mãos cerradas ao lado do corpo e a respiração ofegante nos pulmões. —Eu não sei o que você acha que está dizendo, garota, mas você está voltando para casa imediatamente, para que possamos garantir que você volte ao seu devido lugar. —Que é? —Como nossa filha obediente. Ela balançou a cabeça. —Isso nunca é o que você queria de mim. Você queria uma escrava. Uma garotinha para fazer o que você queria quando encomendou e depois desaparecer de vista quando você não me queria mais. Uma boneca para mamãe brincar. Uma figura para a congregação achar bonita. Isso é tudo. O pai deu um passo ameaçador. Ele levantou a mão lentamente em direção à garganta dela, esperando o momento em que ela se afastaria. Irene não se afastou. —Uma menina tão corajosa. — Ele murmurou. —É uma pena que não haja mais nada dentro de você que se pareça com a minha filha. Não deveria ter doído, mas machucou. Mesmo depois de ganhar sua liberdade, eles ainda a faziam se sentir menor. Ela queria se vestir como ela queria. Ela queria parecer como queria, com tatuagens como as marcas em sua carne a separando da garotinha que ele criou. Ainda assim, as palavras doeram mais do que ela estava disposta a admitir. Sua mãe deu um passo à frente, as mãos nos quadris e uma careta no rosto. —Marido, que tipo de homem você é, se estiver disposto a jogar fora sua própria filha? —Um que reconhece uma falha quando a vejo. Irene tentou não desviar o olhar, mas não conseguiu parar de se contorcer com as palavras do pai. A carranca no rosto de sua mãe se transformou no mesmo sorriso que ela sempre tinha quando escolheria o pai de Irene em vez de sua filha. —Meu querido, é isso que fazemos. Você é o maior pastor que esta congregação já viu. Você viu o diabo dentro de sua própria filha, perdeu-a pelas garras dele, e agora vamos trazê-la de volta ao redil. Ela vai se transformar na garotinha que criamos. Ela não gostou do visual que passou entre eles. Era o mesmo que eles haviam compartilhado sua vida inteira, o momento em que ela sabia que sua vida mudaria para pior. O pai dela assentiu. —Claro que você está certa. Que tipo de homem eu seria se eu desse as costas para ela agora? Ela está claramente perdida neste mundo. Irene falou com força. —Eu não vou para casa com você. —Sim, você é filha minha. — Respondeu ele. Irene endireitou os ombros. Ela não era a garotinha que estava completamente sob seu feitiço há não muito tempo. Ela subiu ao palco e se apresentou, sobreviveu ao padre e não cairia novamente no feitiço deles. Eles estavam errados; nenhum demônio a possuía. Ela era apenas uma mulher que sabia o que queria na vida e não tinha medo de aceitar. Booker teria orgulho dela se pudesse vê-la agora. E então ele teria colocado um punho no rosto de seu pai. Ela enrolou os dedos na palma da mão, tentada a fazer o mesmo. —Não. — Ela disse novamente. —Eu não vou a lugar nenhum com você. Não preciso te ouvir. A expressão do pai mudou quando ele calculou a melhor maneira de fazê-la fazer o que ele queria. No mesmo momento, o homem atrás do balcão saiu de trás da cortina e levantou o tecido para a mãe ver. —Aqui estamos! Toda a sua família congelou, esperando que o homem não tivesse visto algo que não deveria. Por um segundo, ela pensou que ele poderia realmente ajudá-la. O olhar dele subiu e desceu a figura dela antes que ele sorrisse lentamente. Naquele momento, Irene sabia que estava sozinha. —Você não é a garota do circo? — Ele perguntou. —A que apareceu do nada? Você se apresenta com o homem tatuado, se bem me lembro. O pai dela virou-se. —Ah, sim, o circo que despreza a lei? Nós permitimos que eles ficassem em nossas terras por um tempo, mas às vezes as criaturas violentas precisam ser lembradas sobre quem é o dono dessa cidade. Irene congelou, pulmões apreensivos. Ela esquecera a facilidade com que seu pai controlava St. Martinville. O circo não estava desprezando a lei. Ela falou com Frank o suficiente para saber que eles estavam lá legalmente. Ele se certificou disso. Mas seu pai poderia espalhar boatos e mentiras até que as pessoas nesta cidade acreditassem nele. Afinal, ele era a única pessoa na cidade que poderia salvar suas almas. Por que eles não acreditariam no homem mais próximo de Deus? Ela soltou um longo suspiro. Enquanto seus pais a observavam atentamente, ela pesou suas opções. Havia tantas coisas que ela poderia fazer aqui. Voltar para o circo, deixar que eles saibam que o pai dela estava vindo buscá-los e esperar que ele não tenha feito nada tão ruim. E apenas esperar. Irene odiava esperar o momento em que ele exigiria sua punição, alegando que era a vontade de Deus. A segunda opção era ir com eles. Eles não podiam fazer nada de ruim com ela, poderiam? Ela era filha deles, afinal. Mesmo agora, ela ouviu a tolice no pensamento. Eles tentaram exorcizá- la, então claramente não se importavam tanto com ela. Mas a menininha dentro dela, aquela que acabara de querer uma mãe para envolvê-la nos braços e um pai que dizia estar orgulhoso dela, queria desesperadamente dar-lhes mais uma chance. Apenas um. Apenas um momento em que ela os ouvia dizer as palavras que ela sempre quis. Foi essa fraqueza que a fez lentamente acenar para o lojista. —Sim, eu era a única no circo. Só estou aqui visitando meus pais. Ele olhou surpreso para o pai dela. —Oh! Eu não sabia que ela era sua filha. —Ela esqueceu seu caminho. — Disse o pai. —Vamos lembrá-la do caminho certo. —Eu não tenho, pai. — Parecia importante que ela o corrigisse. Ela não estava aqui para ser salva. Ela também não estava aqui para visitá-los, mas o homem não precisava saber disso. Mas ela iria para casa com eles. Se isso salvasse o circo dos problemas de sua família, Irene faria qualquer coisa. Booker ouviu o estrondo na sala muito antes de ele acordar. O resto dos habitantes da maldita casa batendo os pés no chão especificamente para acordá-lo? Rolando com um gemido, ele olhou para o teto com uma careta frustrada. Ele não sabia há quanto tempo ele estava no porão. Alguns dias, provavelmente. Mas os fantasmas de seu passado, os demônios que o atormentavam, haviam insistido bastante em que ele se lembrasse de todas as coisas terríveis que já havia feito. Essa não era a hora de estar perto das pessoas. Ele apenas rosnava para elas, as deixava chateadas ou algo pior. O resto dos artistas sabia que não deveria incomodá-lo em momentos como esse. Eles não eram tolos. Ele tiraria a cabeça se tentassem acordá-lo mais cedo do que ele queria. Sua mente precisava de tempo para curar as feridas infligidas por si mesmo. Então, por que eles estavam tendo uma festa acima de sua cabeça? Ele olhou para o relógio na mesa de cabeceira que marcava sete horas da manhã. Certo. Esta era uma hora ímpia para um homem que ficou acordado a noite toda. Rosnando profundamente, levantou-se e vestiu a calça de dormir. Ele pensou em uma camisa por um segundo, mas estava com tanta raiva que não queria esperar para vestir. Deixe-os ver seu peito nu. Era tudo em sua cabeça que as tatuagens significavam algo mais do que realmente faziam. Quem se importava se ele tivesse um buquê de flores mortas no peito? Eles sabiam que ele já era um homem de casca. Exceto, talvez ele não tenha mais tanta casca. Agora que Irene estava no cenário, ele descobriu que a vida era um pouco mais suportável. Booker esfregou a mão no peito, empurrando as flores de volta contra a pele. Até o pensamento dela fez as malditas coisas se animarem como se ele tivesse lhes dado água fresca. Apenas o pensamento dela fez sua cabeça se acalmar também. A névoa escura da raiva e do medo se dissipou, como uma névoa saindo de sua mente. A mulher era um bálsamo para sua alma, e isso era uma coisa estranha para ele. Ele nunca confiou em outra pessoa. Nunca. Booker sempre foi a bala na câmara, frio e pronto para matar sempre que alguém o apontava na direção certa. Ter alguém que o via como algo diferente disso... bem, valia a pena focar realmente. Ela era bonita demais, inocente demais para ele, e ele ainda não conseguia parar de pensar nela. Seus pés atingiram o chão com um pouco mais de cuidado quando ele subiu a escada para a sala de estar. Sua mente já vagou, imaginando o que ela estaria vestindo e como ele reagiria. Suas camisolas pequenas o deixavam louco. Ou seja, porque outras pessoas podiam vê-la vestida assim, e ela não se importava nem um pouco. Mas também porque ela era muito bonita nelas. Um anjo aqui na Terra que não tinha medo de deitar a cabeça no ombro dele. A maldita mulher confiava nele e ela não deveria. Mas ainda fazia seu coração doer. O resto da família estava reunida na sala de estar. Noah, o gigante e Tom Thumb estavam sentados no sofá enquanto Clara, Evelyn e Frank andavam de um lado para o outro. Eles fariam um buraco no chão se continuassem fazendo isso, que foi precisamente o que despertou Booker em primeiro lugar. Ele se encostou na moldura da porta, olhando pela família por um momento antes de perguntar: —O que está acontecendo? Clara congelou no centro da sala, os olhos arregalados olhando para ele em choque. Sua barba mudou inquieta de um lado para o outro. Isso nunca era bom. A barba dela não se mexia, a menos que estivesse chateada. —Booker. Ele esperou que alguém dissesse algo, mas ninguém disse. Ele limpou a garganta. —Booker. Aquele que vive embaixo do chão em que você está pisando. O que está acontecendo? Mais uma vez, ninguém disse uma palavra. Ele estava com esse silêncio arranhando seus ouvidos. Booker se afastou da porta, depois caminhou até a cadeira ao lado da lareira e se jogou nela. — Alguém vai me dizer o que está acontecendo ou não? Evelyn foi a primeira pessoa a se aproximar dele. Ela ainda usava sua túnica de seda, o tecido rosa berrante demais para uma manhã como esta. Por que ela não mudou ainda? Estranho. Ela era a primeira pessoa a garantir que cada centímetro dela estivesse apresentável, caso alguém passasse pelo circo antes de um show. Ela tocou a mão no estômago, hesitante. —Nós a enviamos apenas para conseguir mais tecido. Ela não parecia desconfortável com isso, então não há razão para ela não ter voltado para casa. Clara se adiantou então: —É apenas na cidade! Há muitas pessoas por aí que deveriam ter visto o que aconteceu, mas ela simplesmente não voltou para casa. —Acho que ela não queria ir embora. — Acrescentou Evelyn. —Ela parecia muito animada em fazer um vestido novo para si mesma e em vestir Clara em um novo estilo que ela inventou. —Eu estava feliz com isso também. — A barba de Clara chicoteou em um amplo círculo antes de se recostar contra seu amplo peito. —Ela deve saber que apreciei o esforço. —Não é sua culpa. — Evelyn colocou a mão no ombro de Clara e olhou para Booker como se estivesse esperando que ele dissesse alguma coisa. — Deveríamos ter dito antes, na primeira noite em que ela não voltou para casa. Mas sabemos que você está... perto dela. Se nada aconteceu, não queremos interrompê-lo. A mente de Booker disparou. Do que diabos eles estavam falando? Suas vozes eram tão agudas que era muito difícil para ele seguir. Pareciam gaivotas gritando na praia. Ela não voltou para casa? Onde ela estava então? Ele examinou a sala novamente, mas já sabendo com certeza que havia uma pessoa desaparecida. Mas Irene nunca estava aqui de qualquer maneira. Ela gostava de se esconder em seu quarto, da mesma forma que ele. Os dois evitaram o contato com outras pessoas, o que significava que ela provavelmente ainda estava lá, em seu quarto. A salvo e onde ele a deixou. Sua visão ficou vermelha. —Onde ela está? Ninguém respondeu. Ele estava prestes a sair do controle se alguém não dissesse algo em breve. Disseram que ela se foi e depois não falaram? Eles queriam que ele perdesse todo o controle no exato momento errado? Evelyn sabia o que acontecia quando ele perdia o controle. Ela viu apenas uma fração do que ele poderia fazer. A última vez que ele ficou com raiva foi quando os Pinkerton o seguiram até o circo. Ela sabia que era possível que todas as tatuagens dele fugissem de seu corpo e destruíssem tudo em seu caminho. Era isso que os Pinkertons haviam criado nele. Ser uma máquina de guerra que, uma vez desencadeada, tinha poderes que nenhum homem mortal deveria ter. —Nós não sabemos. — Disse Evelyn, avançando como se pudesse proteger os outros com seu próprio corpo. Em vez de olhar para ela, Booker olhou para Frank. O homem ficou desconfiado durante toda a provação, deixando as mulheres conversarem enquanto ele permanecia com os braços cruzados sobre o peito. Embora Booker não fosse um grande fã de Frank, ele também conhecia o poder quando o via. Frank estava no círculo interno das pessoas mais influentes do estado. Inferno, ele veio de uma riqueza que poderia ter comprado todo o estado, se quisesse. Claro, Frank havia renunciado à sua família, mas isso não significava que ele havia perdido tudo o que eles lhe ensinaram. —Onde ela está? — Ele perguntou novamente, direcionando a pergunta para o diretor do ringue. —Você sabe, não é? Frank levantou um ombro. —Eu tenho um palpite. —Qual é? —Daniel viu alguém que se parecia com ela andando com o pastor e sua esposa. Claro que não parecia nossa Irene com o cabelo todo trançado nas costas. Vestido folgado que cobria todo o corpo, um chapéu enorme para esconder o rosto. Mas parece que isso é algo que eles fariam se quisessem escondê-la. Não fazia sentido. Irene tinha pavor de sua família. Eles tentaram machucá-la da pior maneira possível, um exorcismo, pelo amor de Deus. Booker sacudiu a cabeça. —Não parece em nada com ela. —Isso foi o que eu pensei. Mas com certeza parece que eles conseguiram afundar suas garras nela. Evelyn encarou o diretor do circo com um olhar estreitado. —E você ia me dizer isso quando? —Assim que eu descobri, o que foi apenas alguns segundos atrás, quando Daniel me contou. Ainda não tive a chance de falar com você, amor. Ela franziu o cenho para o homem que amava e depois olhou para Booker. —Ela não estava preocupada em ver sua família na cidade. Disse que eles nem sempre estavam lá, e agora que você cuidou do padre, ela não tinha mais ninguém que pudesse machucá-la. Irene estava confiante de que não a queriam de volta agora que ela era claramente uma de nós. Booker não se importava com o que Irene pensava. Ela era uma coisinha inocente e não queria acreditar que alguém fosse capaz de coisas terríveis. Seus lábios torceram em um rosnado. —Então ela estava errada. A sala inteira ficou em silêncio, sabendo que ele estava certo, mas não tendo ideia do que eles poderiam fazer para impedir isso. Booker não sabia como processar as informações. Ela se foi. Se foi. Quem sabia onde seus pais estavam agora? Eles deviam estar na mesma casa. Que pastor deixaria seu rebanho quando havia tantos que precisavam de sua ajuda? Não havia chance do pastor sair. Havia ceias de benefícios, inúmeras horas para preparar um sermão... mas este não era um pastor normal. Ele respirou fundo e olhou para Frank, cujo olhar ficou escuro. —Você checou a casa? —Vazia. —Eles estavam no chá da tarde? Frank balançou a cabeça. —Eu puxei algumas cordas. Algumas pessoas os viram seguir para o norte a partir de Nova Orleans. Não tenho certeza para onde eles estavam indo. Ninguém conseguiu uma resposta real do pai. A raiva em seu peito era insuportável. Booker inclinou o olhar para fora da janela, concentrando-se em algo, qualquer coisa, que não era a merda que estava acontecendo na frente dele. A águia nas costas dele mexeu, o bico estalando na parte de trás do pescoço. A fera queria sangue. Queria voar, caçar e matar. No momento, Booker queria a mesma coisa. O pai de Irene a machucou. Ele sabia disso, mas conseguiu controlar seu temperamento porque ela queria que ele fizesse isso. Ela estava sob a asa dele, onde ele podia ficar de olho nela. Mas agora? O homem pegou o que era de Booker. E ele não deixaria isso passar. Ele não conseguia. Penas se arrastaram pelas omoplatas, o pássaro se afastando mais de sua pele enquanto a raiva fazia seu olhar enevoado. —Então eles não estão na cidade. Eles não estão em Nova Orleans. Como vamos encontrá-la, então? Evelyn respondeu: —Há outras opções, Booker. Podemos encontrá-la quando eles voltarem de onde quer que fossem. —O pai dela tentou exorcizá-la. As palavras caíram de seus lábios como veneno, enchendo a sala até a borda com uma dor pegajosa que puxou sua alma. Eles entenderiam agora. Por que ela veio correndo pela baía à noite para encontrá-los. Por que ela fugiu de sua família, que parecia ser uma boa gente. Clara fez um som sufocado e pressionou as mãos nos lábios. —Por causa do presente dela? —Eles acham que ela está possuída por um diabo. Por isso lutei com o padre. Ele queria levá-la novamente. Os pais dela foram quem a chamaram. Daniel levantou-se abruptamente e saiu da sala. Embora ele estivesse com eles há muito tempo, o garoto teve sua parte justa de dificuldades com humanos que não entendiam o que ele era. Booker não o culpou por precisar sair. O garoto havia sofrido mais em seus curtos anos do que qualquer outro em toda a vida. Tom Thumb se inclinou contra o Gigante e balançou a cabeça. —Pobre garoto. —Não posso deixá-la com eles. — Resmungou Booker, encarando Frank e esperando que o outro homem entendesse o que estava dizendo. —Sempre há uma maneira de encontrá-los. Mas não foi Frank quem entendeu o que ele estava sugerindo. Foi Evelyn. Ela avançou sobre ele, levantou a mão e lhe deu um tapa no rosto. A rachadura ecoou na sala, terminando em silêncio enquanto todos olhavam em choque. Booker deixou-a encará-lo. Ele suportou a raiva em seu olhar, porque sabia que ela não queria que ele sofresse por outra mulher. —Como você se atreve? — Ela rosnou, seus lábios tremendo. —Como você ousa considerar isso? Depois de tudo o que passamos para tirar você... —Você não passou por nada. — Ele a corrigiu. —Você conhece minha história, Evelyn. Isso não significa que você passou por isso comigo. Se eu quiser pedir ajuda a eles, pedirei a eles. —Você sabe tão bem quanto eu que, se voltar, eles não deixarão você sair novamente. Booker encolheu os ombros. —Eles vão. Eles não terão escolha. Ele não queria pedir ajuda. Ele não quis considerar o que isso poderia significar ou o que ele teria que fazer em troca. Mas ele não podia deixá-la apodrecer sozinha; ele não podia deixá-la sofrer, sabendo que havia algo que ele poderia ter feito para ajudar. Além disso, eles ainda lhe deviam um favor. E a família nunca gostava de receber favores. Clara tirou as mãos da boca e afundou em uma cadeira. —Do que estamos falando? Booker? A quem você vai pedir um favor? —Os Pinkertons. — ele respondeu. O resto dos artistas olhou para ele com olhar vazio. Clara foi a primeira a voltar para si mesma. —E o que você tem a ver com os Pinkertons? —Eu era um. — Ele nunca quis contar aos outros. Eles tinham que saber que ele havia aprendido a lutar com alguém, mas não precisavam saber que ele era o monstro debaixo da cama, a criatura que vivia nas sombras que cortaria a garganta por um centavo. Tom Thumb balançou as pernas no sofá, os comprimentos curtos esticados. —Isso explica por que você é um bom lutador? —Sim. —E quantas pessoas você acha que matou enquanto estava com eles? — Tom respondeu. Mais uma vez, Booker levantou um ombro. —Não foi possível contar. Começou quando eu tinha dez anos e sai quando eu tinha vinte e sete. —Mas você matou pessoas? Ele não quis responder isso. Ele não queria ver os olhos deles nublarem- se de julgamento e sentir o ódio que iria sair deles. Eles saberiam tudo então, e dane-se se ele não gostasse da ideia disso. Ele queria ser Booker, o homem tatuado, nada mais e nada menos. Foi por isso que ele entrou no circo em primeiro lugar. O circo apagou sua história e tudo o que costumava ser. Ele se tornava alguém completamente diferente só entrando no palco. Ainda assim, ele estava tão cansado de mentir, e eles mereciam saber. Ele cedeu e deu um aceno rápido a Tom. —Sim, muitas pessoas. Booker não conseguiu fazer contato visual com ninguém depois disso. Não parecia certo estar de pé na mesma sala com eles quando ele estava... bem, o tipo de pessoa que poderia tirar uma vida e não deixar que nenhum dos assassinatos o incomodasse. Pelo menos, não até anos depois, quando ele percebeu que todas aquelas almas também tinham família. Uma mão tocou seu ombro, firme e forte. Clara o apertou com força. —Você pode ter matado pessoas, mas ainda é nosso Booker. Todos nós fizemos coisas das quais não nos orgulhamos e fico feliz que você possa nos contar. O alívio pelas palavras dela saiu rapidamente dele com uma longa expiração. Seus músculos não se mexiam e seu rosto continuava parado porque ele não era o tipo de homem que realmente deixava alguém saber o quanto elas o afetavam. Mas ele gostou. Mais do que ela jamais poderia saber. Booker assentiu. —Obrigado por isso. —De nada. Ela se afastou dele e ele olhou de volta para Frank. —Com sua licença, diretor. Eu sei que estou empregado aqui, e voltar para os Pinkertons não vai acabar bem para ninguém. Vou ter que sair por um bom tempo. —De alguma forma, eu duvido disso. — Frank cruzou os braços sobre o peito e lançou-lhe um olhar severo. —Não acho que eles farão você ficar, se não quiser. —Eu não sei. —Bom. Então vá cumprimentar sua velha família e pegar nossa garota... — Quando Booker começou a andar, Frank pigarreou. —Oh, e Booker? —Sim? Frank estendeu a mão para Booker e passou a mão em torno de seu bíceps. Ele puxou Booker para perto e murmurou baixinho: —Verifique se o velho sangra um pouco por mim. Sim? A coisa sombria na alma de Booker abriu suas asas. Correntes tilintaram em uma brisa que ninguém sentiu, e um sorriso sombrio se espalhou por seu rosto tatuado. —Eu pretendo. Ele saiu pela porta e voltou para sua antiga casa, onde sabia que os Pinkerton aguardavam. Cada passo o levava para mais perto da criatura que ele já havia sido. Um diabo. Um demônio. Um homem que iria recuperar sua mulher. Irene piscou os olhos lentamente. Algo grudava na base dos cílios, fechando os olhos e tornando o processo doloroso. Por que eles estavam tão secos? Ela não conseguia se lembrar de nada através da sonolência. Ela estava tendo um sonho adorável. Um de um homem coberto de tatuagens, a escuridão em torno dele não era assustadora, mas gentil. Ele estendeu um braço para ela pegar e a guiou em direção a um campo iluminado pela lua com um sorriso no rosto. Alguém mais poderia ter medo dele. Inferno, ela ainda estava um pouco quando olhou para aquele sorriso, mas ele parecia gentil com ela. —Booker? — Ela perguntou, convencida de que aquele homem sorridente não podia ser o único que ela amava. Ele abriu a boca, mas então... Então o sonho ficou escuro. Seus lábios haviam partido suas bochechas, a mandíbula escancarada tão grande que ela sentiu como se fosse cair nela. Do fundo da boca aberta, gritos ecoavam. Tantas pessoas que ela não sabia contar, todas pedindo ajuda. Eles queriam vingança. Ele os matou, e eles queriam que ela os ajudasse a se vingar do homem que nunca deveria ter sido autorizado a machucá-los. Eles queriam que ela fizesse alguma coisa. Qualquer coisa. Por que ela estava lá, olhando para ele quando ela poderia ter terminado todo o tormento de uma só vez? O sonho tinha sido o que a acordou, ela percebeu. Nem os sons do cômodo em que ela estava nem o gotejamento de água que ecoava infinitamente. Foi o sonho. Irene olhou em volta, tentando descobrir onde ela estava ou por que ela estava aqui. Ela estava em uma cabana de madeira. Pisos de madeira, paredes de madeira, tetos de madeira. As cores deveriam ter sido reconfortantes, mas ela se lembrava muito bem daquele lugar desde a infância. Ali no canto estava o fogão onde ela queimara a mão quando tinha cinco anos. Tentando preparar o café da manhã sem que seus pais acordassem, ela colocou a mão na superfície e queimou a pele. Com o grito de Irene, sua mãe rapidamente se lançou da cama atrás de Irene e mergulhou a mão de Irene na pia da cozinha ao lado do fogão. A pele da palma da mão havia flutuado. A cabana era pequena, um espaço único onde havia uma mesa de jantar, duas camas, uma pequena cozinha. O banheiro era um banheiro externo. Ao lado da porta, ficava um gancho onde o pai pendurava o cinto para lembrar que as meninas más tinham um chicote se elas se comportassem mal. Ela nunca se comportou mal. A respiração de Irene ficou mais rápida quando ela percebeu que o cinto ainda estava lá. O pai dela estava aqui, em algum lugar, e se ela continuasse respirando assim, ele saberia que ela estava acordada. Por que ela estava aqui? Irene não se lembrava deles saindo. Ela não se lembrava de ter visto os pais porque estava no circo, não? Ela estava com Evelyn e Clara, experimentando roupas novas que a fariam se sentir uma princesa. Como se ela merecesse usar roupas com cores que ela gostasse, mesmo que fossem cores “indecentes”, como sua mãe teria dito. Não, isso não estava certo. Ela foi à loja sozinha porque ninguém iria incomodá-la. Ela não conseguia imaginar alguém a incomodando quando tudo o que ela queria era pegar mais alguns pedaços de tecido para brincar. As lembranças correram para o primeiro plano de sua mente, e ela percebeu com uma clareza surpreendente por que estava aqui. Irene tinha ido para casa com os pais. Eles a sentaram à mesa da cozinha e tentaram culpá-la para voltar para casa. Ela não concordou. O circo era sua casa. Ela encontrou tanto amor e aceitação lá, que não estava disposta a trocar, apenas para voltar à sua jaula original. Pela primeira vez em sua vida, ela disse não aos pais. O sentimento glorioso que inchou em seu peito era de total e absoluta liberdade. Eles não podiam fazê-la fazer o que ela não queria. E então sua mãe lhe deu uma xícara de chá. Ela tomou alguns goles, discutiu com o pai... Então nada. Ela não conseguia se lembrar de nada depois disso. O que havia naquele chá? Eles realmente drogaram a própria filha para trazê-la até o meio do nada? Esta era a cabana de caça do pai dela. Eles só vinham aqui no verão e outono, quando ele queria pescar e se afastar dos olhos da igreja. A mãe dela odiava isso aqui. Este lugar estava cheio de insetos e vermes, e sua mãe era uma senhora respeitável que não queria vir a lugares como este. Eles não vieram aqui desde que Irene era criança por causa disso. Seu pai costumava ir o tempo todo, se ela se lembrava direito. O verão era uma das poucas vezes em que ele brincava, e ele sempre trazia peixe-gato de volta para eles cozinharem. Mas não fazia sentido para eles estarem aqui agora. O que eles estavam planejando? A porta da cabana se abriu e o pai entrou. Ele usava um casaco marrom, jeans e uma camisa branca de botão, o que era incomum para ele. Ele gostava de se apresentar como um homem rico, por isso sempre se vestia como um pastor. Casaco. Camisa branca imaculada. Lapelas sempre pressionadas como uma prancha. Ela respirou fundo e olhou de volta para ele, esquecendo de fechar os olhos para que ele pudesse pensar que ela estava dormindo. —Filha. — Ele rosnou, acenando para ela. —Vejo que você está acordada. —Porque estamos aqui? —Temos algumas coisas para fazer e conversar. Irene assentiu lentamente. —Eu concordo, mas não precisávamos vir até aqui para fazer isso. O sorriso no rosto de seu pai a deixou desconfortável. Era um sorriso malicioso, que prometia coisas que ela não queria considerar. Então o sorriso desapareceu completamente e foi substituído por uma expressão de tristeza que de alguma forma era muito pior. —Minha querida, demônios são coisas perigosas. Há muita coisa para consertar e não conseguimos na igreja. —Uma igreja não seria o melhor lugar para isso? —Não é mais. — Ele tirou o casaco e depois arrastou um banquinho ao lado da cama dela. —Eu estava conversando com o padre que trouxemos para a cidade. Você se lembra dele? Ela não poderia esquecer o homem se tentasse. O rosto dele foi queimado em sua memória com o fogo doloroso de alguém que a odiava só porque ele não entendia do que ela era capaz. Irene levantou o queixo, recusando-se a mostrar ao pai o quão aterrorizada ela estava. O homem que deveria tê-la protegido. O homem em quem ela deveria confiar mais do que qualquer outra pessoa viva. —Eu lembro dele. — Ela respondeu. —Bom. Ele disse que há outro demônio que caminha ao seu lado. Um homem que te virou contra nós. Sua família e o rebanho. —Eu estava com um homem bom que viu o tormento que você iria me forçar. Ele não acha que estou possuída, porque pode ver que sou uma boa pessoa por trás das minhas habilidades. O pai dela balançou a cabeça. —Você alega ver espíritos, mas acho que não. Nem o padre. Ele acredita que você está vendo outro reino, onde apenas os demônios estão. Almas de humanos não apodrecem na vida após a morte. Então era por isso que ele pensou que ela estava possuída? Porque sua crença na morte era diferente da realidade que ela podia ver? O peito de Irene se encheu de pena, ela sentiu como se pudesse se afogar nela. Ele não entendia o mundo e queria que a morte fosse mais bonita. Quem não gostaria? Ela não o culpou por não gostar da ideia de que a alma ainda estava conectada ao corpo de alguma maneira depois que a carne era derramada. Mas ela não estava aqui para ser uma mensageira. Ela não foi colocada aqui para convencê-lo de que via coisas que ninguém mais podia ver. Ele já acreditava que ela era capaz de muito mais do que uma pessoa normal. Ele só não queria acreditar que estava errado. —Sinto muito, pai. — Ela sussurrou. A névoa de raiva e tristeza desapareceu de seu olhar por um momento, como se estivesse olhando para a filha novamente. Era uma pena que ela tivesse que destruir isso também. —Eu não estou quebrada. Não estou possuída. Cada centímetro de mim ainda é sua garotinha. Lamento que você não possa me aceitar por quem eu sou, mas também não preciso da sua aceitação para continuar vivendo uma vida plena. A esperança fugiu de seu olhar e seus lábios se contorceram de nojo. Suas sobrancelhas franziram quando ele a encarou. —Essa não é minha filha falando. —É. — Ela corrigiu. —E vai doer muito mais quando você perceber que não há nada dentro de mim, exceto a alma de uma garota pela qual você negou a felicidade por tanto tempo. —Você não é minha filha. E pela primeira vez em sua vida, ela percebeu que não queria ser. Se ele não pudesse olhá-la, independentemente das diferenças que ela pudesse ter, e ainda ver uma mulher que ele amava? Ela não precisava tê-lo em sua vida. Irene poderia dizer adeus, e os dois ficariam mais felizes por isso. —Pai. — Disse ela, sentando-se na cama. Ela balançou as pernas sobre a borda e apoiou os cotovelos nas pernas. —Você não precisa fazer isso. —O padre disse que você pediria perdão ou pena. —Eu não estou pedindo sua pena. Peço que você não faça essa escolha, tantos anos depois, quando você não ver meus filhos crescerem, quando você não saber onde está sua filha ou se eu ainda estou viva, que você não olhará para trás em suas escolhas com pesar. —Se esse for o caminho que você escolher, nunca me arrependerei de renunciar a você. — Respondeu ele. Deus, isso destruiu sua própria alma. Ela não podia acreditar que o homem que dera a vida a ela, ao lado de sua mãe, podia olhar para ela como se ela não fosse uma pessoa. Lágrimas surgiram nos cantos dos olhos, embora ela se recusasse a deixá- las cair. —Eu gostaria que você não quisesse. Você é meu pai. Você não deve simplesmente jogar fora seus filhos porque acha que eles são diferentes. —Você não é diferente, Irene. — Ele pegou as mãos dela e depois deixou as próprias cair entre elas no último segundo. Vazias. —Há algo errado com você, e eu quero consertar. Uma lágrima escorreu por sua bochecha, mas ela sorriu, balançando a cabeça e se recusando a acreditar que ele diria essas palavras. —Mas você não vê? Você é o único que acha que há algo errado comigo. —Muitas pessoas acreditam que você não é normal. —Eu não quero ser sua definição de normal, pai. — Outra lágrima deslizou por sua bochecha. —Eu só quero ser eu mesma e não ter vergonha disso. Suas palavras finalmente chegaram até ele porque seus olhos se arregalaram e ele se afastou dela. —Eu não posso te aceitar assim, Irene. Era esse o momento? Ela poderia finalmente explicar para ele que não era algum tipo de monstro? Ela não estava possuída. Cada centímetro de sua alma ainda era a mesma garotinha que ele criou e pegou quando ela ralou os joelhos todos esses anos atrás. Só porque ela era assim, capaz de ver os mortos, aceitando as tatuagens em seu corpo, as mudanças no mundo, que não a faziam um monstro. E quando o pai a encarou, ela o viu. O pai que pegou pirilampos com ela no meio da noite. O homem que pegava doces quando a mãe não estava olhando, piscando para ela do outro lado da mesa. Ele ainda estava lá, enterrado sob anos de medo. Medo das diferenças. Medo de como o mundo seria se algo mudasse. Medo de que sua filhinha não fosse a pessoa que ele pensava que seria. —Pai. — Ela sussurrou, estendendo a mão. Uma voz ecoou da porta, uma que atormentou seus pesadelos por tanto tempo que a fez recuar. —Eu pensei que tinha dito para você não ficar sozinha com ela? Pastor Harris, o homem que queria vê-la exorcizada e que já havia tentado muitas vezes fazer isso acontecer. Como antes, ele estava na porta parecendo exatamente o tipo de homem que você gostaria de convidar para jantar. Mas ele não era. Ela sabia que havia um monstro sob as bordas pressionadas daquele traje. Um homem que queria vê-la com dor só porque ela o havia enganado várias vezes agora. Irene rangeu os dentes e olhou para ela. —Por que não? Ele sorriu em troca. —Porque o demônio dentro de você tentará convencê-lo a não fazer o que planejamos. Quer ficar dentro de você, querida garota. Não podemos ouvir o veneno que cuspirá entre a língua bifurcada e os dentes afiados. —Eu não estou possuída. — Ela estalou as palavras como um chicote, quebrando-as da língua e esperando que o atingissem no rosto. Ele não se importava. Em vez disso, seu sorriso se transformou no de uma víbora, e ele olhou para o pai dela. —Está na hora. Quanto mais esperarmos, mais o demônio afundará suas garras nela. Como se alguém tivesse puxado um cobertor sobre a cabeça de seu pai, o homem que ela pensou ter reconhecido havia sumido. Ele se levantou e estendeu a mão para ela pegar. —Venha, Irene. —Papai, não. — Ela sussurrou, balançando a cabeça. —É o melhor para você. Com dois homens grandes olhando para ela, ela sabia que não havia luta aqui. Ela podia gritar e arranhar tudo o que pudesse. Ela não venceria. O mínimo que ela podia fazer era manter sua dignidade. Irene ignorou a mão do pai e se levantou da cama sozinha. Ela endireitou os ombros, levantou o queixo e resolveu ficar calada. Até o amargo fim. Booker olhou para a antiga casa de fazenda do sul e se preparou para as cobras que viviam entre as paredes. Foi aqui que ele sentiu como se tivesse nascido. Não literalmente, é claro. Seu sangue irlandês corria fundo. Mas era aqui que o monstro havia sido criado. Onde ele foi ensinado a matar, a caçar. Onde eles tatuaram seu corpo e destruíram sua mente por tantos anos, ele quase não se reconhecia. A propriedade Pinkerton era rica e bonita. Pilares de mármore branco estendiam dois andares na frente, com salgueiros mergulhando em lagoas de cada lado. Os jardins eram perfeitamente cuidados e floresciam com hortênsias azuis brilhantes. Qualquer outra pessoa teria visto a casa e a julgaria adorável. As pessoas que viviam dentro deveriam ser do tipo gentil. Dinheiro antigo, é claro, como eles poderiam pensar outra coisa? Ainda assim, eles devem ser o tipo de pessoa que dedicavam suas vidas a ajudar os menos afortunados. Era uma pena, porque os Pinkerton poderiam ter feito tudo isso e muito mais. Deus sabe, eles tinham mais dinheiro do que sabiam o que fazer. Eles escolhiam não ajudar outras pessoas. Era muito mais fácil para eles serem egoístas. Booker soltou um longo suspiro e subiu o caminho de cascalho até a casa onde tudo começara. Pedras trituravam sob seus pés. Em algum lugar do fundo da casa, um cachorro começou a latir. A porta vermelha da frente se abriu lentamente, revelando um rosto comprimido e um olhar decepcionado no momento em que a criada o encarou. Ela usava um vestido de empregada tradicional em preto e branco, apesar de estar pendurado em sua figura antiga neste momento. Ela nem deveria estar trabalhando. Matilda estava com os Pinkertons desde que ele conseguia se lembrar, e ela sempre foi velha. A mulher iria se quebrar se insistisse em trabalhar em um túmulo. Talvez esse fosse o ponto. —Booker Pinkerton. — Disse ela com uma tosse desaprovadora. —Eu nunca pensei que veria seu rosto aqui novamente. —Nem eu, Matilda. O pai está em casa? —Ele está ocupado. — Ela começou a fechar a porta, apenas para fazer uma pausa quando ele enfiou o pé dentro. Matilda olhou para o apêndice ofensivo antes de tossir novamente. —Mova-se. —Eu acho que não. Você vai buscar o pai para mim. — Não era o pai dele, mas o dono da família, quem tomava todas as decisões, insistia em ter um título que significasse algo para a família. A maioria dos Pinkertons não chegou ao nome por sangue como ele. As pessoas afluíam à família de qualquer absurdo que sua vida criara e se comprometiam com o pai. Eles trabalhavam, matavam, davam seu dinheiro. Mas eles eram bem compensados e todos viviam uma vida de luxo. Era uma pena que tal luxo exigisse um rio de sangue para obtê-lo. Matilda olhou para ele com o nariz enrugado e os olhos semicerrados. — Você deixou a família, e isso significa que você não pode mais me dar ordens, garoto. —Você realmente quer me testar nisso, Matilda? Passos ecoaram atrás da empregada, e outra mão apareceu acima da dela na beira da porta. O homem atrás dela abriu a porta. Ele era largo e alto, o tipo de homem que podia segurar o pescoço de um homem na mão e agarrá-lo sem muito esforço. O cabelo cortado rente revelava uma cabeça cheia de cicatrizes, auto infligidas se Booker se lembrasse direito. Seu nariz havia sido quebrado várias vezes, enrugando o comprimento torto enquanto olhava para Booker com nojo. —O que você está fazendo aqui? — O homem rosnou. —Procurando pelo pai. —Não pense que é um plano tão inteligente, Booker. Ele inclinou a cabeça para o lado e deixou toda a raiva derramar dele através dos olhos. —Acho que você não pode me dizer isso, Tommy. —Papai não queria vê-lo da última vez. Mas da última vez ele esteve aqui bêbado, beligerante e implorando para ser levado de volta. Da última vez, ele não havia encontrado o circo ou se recriado à imagem de um homem bom. Booker não queria se tornar esse monstro novamente. Ele não se importava com o que o pai tinha a dizer sobre ele. Ele não se importava com o preço que tinha que pagar. Dessa vez a velha família ouvia. —Eu não tenho escolha, Tommy. O Pinkerton olhou para ele com olhos frios e vazios. Booker olhou de volta até que algo mais piscou nas profundidades frias. Eles estiveram perto uma vez. Não irmãos como o pai gostaria, mas família. Muitas pessoas lhe deviam um favor. E ele pretendia coletar todos e cada um hoje. Tommy assentiu. —Tudo bem, mas sem sangue. —Não estava planejando. — Booker atravessou o limiar e empurrou Matilda de volta com a maior parte do corpo. —Você pode procurar por armas, se quiser. —Todos nós sabemos que você não precisa de armas, Booker. — Os lábios de Tommy se arquearam em um sorriso perigoso. —Nós demos a você tudo o que você precisa sem precisar carregar um pedaço de ferro. Pelo menos eles se lembravam. A casa velha não mudou muito. Chão velho de carvalho polido a um brilho que fazia o sol refletir de novo em seus olhos. Paredes brancas, teto de zinco gravado com flores e um grande lustre sobre a escada que se estendia para cima no meio do grande hall de entrada. Booker sabia que se virasse à esquerda, poderia entrar na sala de jantar formal com paredes vermelhas e mais porcelana do que qualquer um deles sabia o que fazer. E se ele fosse à direita, iria para os escritórios onde os outros faziam a maior parte do seu “trabalho”. Aquelas paredes também eram vermelhas. Mas por uma razão completamente diferente. Tommy apontou para a escada. —O pai está lá em cima no escritório dele. —Eu sei para onde ir, Tommy. Tommy colocou as mãos nos bolsos e acenou com a cabeça em direção à espiral. —Continue então. Você disse que queria falar com ele. Se você se lembra do caminho, pode fazê-lo por conta própria. O que significava que todos sabiam que ele estava aqui. Significava que tudo estava prestes a ficar muito mais difícil para ele. Booker colocou a mão no corrimão da escada e subiu lentamente as escadas. O corrimão liso deslizou sob sua palma, tocado por tantos Pinkertons diante dele. Ele realmente não pertencia mais aqui. Ele costumava usar ternos apertados como o resto deles. Sabia como era uma boa gravata de seda e a razão pela qual ele nunca mais poderia usar outra gravata, a menos que fosse feita com material rico. Agora, ele usava suspensórios para segurar suas calças muito grandes e às vezes esquecia que havia sujeira embaixo das unhas. Mas, caramba, se ele não estivesse mais feliz agora. Ele finalmente encontrou uma família de pessoas que realmente o apoiavam. O tipo de pessoas que se importavam se ele era feliz, saudável e vivendo uma vida da qual podia se orgulhar. Booker nunca foi capaz de dizer isso sobre os Pinkertons. No topo da escada, os retratos pintados de cada membro da família Pinkerton levavam ao escritório do pai, o único escritório em todo o prédio que ficava no andar de cima com o resto dos quartos. Pai não deixaria ninguém trabalhar lá. Ele era o único que trabalhava duro o suficiente para realmente precisar de silêncio de qualquer maneira. Cada retrato olhou para ele em desaprovação. Os outros nunca realmente gostaram tanto dele. Provavelmente porque ele foi o único escolhido para se transformar em um monstro. Um monstro poderoso. Um que poderia matar todos eles se deixassem que ele ficasse fora de controle. Foi por isso que eles o derrotaram em submissão a qualquer chance. Ele ainda usava as cicatrizes para provar isso, embora as tenha enterrado profundamente sob a tinta. Um dos retratos o fez parar, no entanto. Um retrato que era estranhamente familiar e ainda... não. Ele parou no meio do corredor, botas enlameadas afundando no tapete felpudo e depois olhou para o retrato dele mesmo. Um homem sem tatuagens no rosto, pelo menos ainda, e olhos escuros que tinham visto demais. Era assim que ele era sem tatuagens visíveis? Fazia tanto tempo que ele não via a pele lisa em si mesmo, que havia esquecido que era um homem bonito. Ou tinha sido. Voltar quando eles ainda estavam trabalhando em cobrir seu torso com todos os tipos de criaturas perigosas e venenosas. Nesse retrato, ele havia sido assombrado por anos de dor e pela dependência da agulha. Uma porta se abriu no corredor, fechada, e um homem ficou logo atrás dele. —Estranho se ver tão jovem, não é? Pai. Booker não precisou se virar para ver o homem, já o conhecia apenas pela voz. Embora ele não fosse o líder da família quando Booker esteve aqui, ele ainda se lembrava do homem ambicioso que estava atrás dele. —Leroy. — Ele respondeu, ainda olhando para o retrato. —Eu imagino que é da mesma maneira que você se sente quando olha para o retrato de si mesmo. —Oh, eu não sei sobre isso. Eu ainda pareço muito parecido com o que eu parecia naquela época. — Leroy pigarreou. —Vou deixar o nome escorregar uma vez, Booker. Mais do que isso, haverá repercussões. —Gostaria de ver você tentar. —Os Pinkertons são muito mais fortes do que quando seu pai estava aqui, envenenando a mente de nosso último líder com seus sonhos patéticos. A ameaça fez seus animais rosnarem. Muitas de suas tatuagens queriam voar livremente, rasgar e morder o que quer que pudessem enfiar nas garras. Pinkertons sempre tinham esse efeito nele, no entanto. Ele era assim quando morava com eles todos esses anos atrás. Eles o transformaram em um cão de guerra, nada mais do que um animal mastigando a próxima luta. Mesmo naquela época, Booker imaginara o que aconteceria se ele parasse de lutar. Ele não seria mais um homem? Ele desapareceria no nada? Agora ele sabia a resposta, e os Pinkertons tinham muito menos que pudessem segurar sobre sua cabeça. Ele deu um último olhar persistente ao seu próprio retrato. Para o jovem que não tinha nada e ninguém. —Oh, vamos lá, Leroy. Eu pensei que estávamos além disso. —Alguma coisa mudou enquanto você estava fora? Acho que não. A família não dá as costas à família, o que significa que você não é mais sangue. —Não. — Respondeu Booker, depois se virou. —Eu não sou. Leroy tinha envelhecido nos últimos anos. O que costumava ser cabelo escuro agora estava manchado de branco, como se alguém tivesse deixado cair tinta nele. Seus olhos azuis gelados ainda estavam tão penetrantes como sempre, no entanto. Ele caiu um pouco, a postura ruim o alcançou, o que o fazia parecer um pouco mais baixo que Booker. Ele ainda era forte, no entanto. Seus ombros eram largos, os braços pesados de músculos e o traje apenas apertado o suficiente para mostrar isso. Um bolso escondia um charuto que chegava a ponto de Booker ver o cubano. Aquele terno preto ainda o assombraria até hoje. Uma vez que um homem usava uniforme por tantos anos, o maldito tecido parecia ter vida própria. Booker cruzou os braços sobre o peito. —Preciso de algo de você. —Não acho que sou obrigado a lhe oferecer nada. A família recebe favores, não pessoas de fora. —Eu não sou um estranho, e você sabe disso. Leroy inclinou a cabeça para o lado, olhando Booker de cima a baixo enquanto torcia o nariz como se cheirasse algo ofensivo. —Engraçado. Você parece um estranho para mim. Não importava quantos anos se passassem; ele sempre ia odiar essas palavras. Seu próprio pai havia dito isso quando ele se recusou a fazer as tatuagens. Elas eram a ameaça que todos diziam aos filhos dos Pinkertons. Estranho. Como se fosse algo para ter medo de ser diferente, para se destacar da multidão. E, no entanto, eles ainda o tatuavam até restarem alguns centímetros de pele nua. Eles o forçaram a ser um estranho, e agora o deviam. Ele rolou um ombro, da mesma maneira que costumava fazer antes de praticar a libertação dos animais. Os olhos de Leroy observaram os movimentos, e Booker sabia que ele se lembrava. Isso seria quase fácil demais. —Não quero machucar ninguém...— Booker começou. —Você está diferente do que eu me lembro, se for esse o caso. —Mas eu vou. — Concluiu Booker. —Não tenho medo de machucar tantos Pinkertons quanto preciso, se é isso que você precisa para me ouvir. Eu já matei antes. Eu farei de novo. Leroy abriu a boca, fechou e depois abriu novamente. —O que é tão importante que você volte aqui? —Eu preciso de ajuda para encontrar alguém. —Envie uma águia. Booker sacudiu a cabeça. —Não vai funcionar. Não sei para onde a levaram ou a primeira direção a procurar. Isso vai demorar muito e não tenho tempo a perder. —O que você acha que podemos fazer se a águia não puder fazer isso? Booker quase podia provar a mentira no ar. Leroy nunca fora um mentiroso muito bom e piorara com a idade. Seus olhos se inclinavam para o lado e sua respiração parava antes que ele estivesse prestes a dizer algo que não era tão verdadeiro. Booker se inclinou para mais perto. —Nós dois sabemos que isso não é verdade. Agora, que tal você começar a me oferecer qualquer ajuda que eu queira? —Acho que não. —Vou queimar esta casa no chão, se você não concordar. — Booker já estava na última gota. Ela estava lá fora, esperando por ele, potencialmente com mais dor do que ele poderia imaginar. Isso fez sua respiração ficar presa na garganta. Ela era uma coisa tão pequena. Qualquer homem poderia machucá-la tanto que ela nunca mais voltaria. Ele não sabia a primeira coisa sobre a realização de exorcismos, mas sabia que eles eram dolorosos como o inferno. Ele sabia que ela tinha medo deles, e isso era suficiente para ele nunca a querer perto de um. O olhar de Leroy encontrou o dele, procurando em seus olhos uma resposta para a pergunta que Booker sabia que ele faria de qualquer maneira. —O que é, para ser tudo isso? —Uma mulher. —Uma mulher? — Leroy repetiu, depois inclinou a cabeça para trás e riu. —Agora, isso não é novo? Eu nunca pensei que você encontraria alguém para chamar de sua, não depois que a sua esposa morreu junto com seus pais. Então eles sabiam disso. Leroy não teria levantado isso a menos que todos soubessem o que havia acontecido. Booker arreganhou os dentes com um sorriso falso. —Você está tentando dizer alguma coisa? —Só que estamos todos felizes que eles se foram. —É melhor que seja tudo o que você está dizendo. — O homem que saiu dele era aquele que ele não gostava. Booker já podia provar metal na língua. Ele precisava pensar. Agir como um homem em vez do monstro que eles o criaram, embora tenha sido difícil quando ele estava naquele lugar que causara tantos pesadelos. Eram apenas algumas portas no corredor onde eles o tatuaram pela primeira vez. Booker ainda podia ouvir seus próprios gritos ecoando em seus ouvidos. A maneira como ele implorou para que não fizessem isso. Ele não queria se deitar na mesa na frente de um homem que o aterrorizava. Os olhos negros do homem rodaram com algo mais... algo que parecia assustadoramente como uma névoa negra. Leroy riu, mostrando os dentes demais para ser uma risada genuína. —O que você acha que poderia fazer, Booker? Verdade? Há mais de duas dúzias de nós na casa agora, e todos estão apenas esperando o momento em que eu os deixo para socá-lo no chão. —Você realmente quer descobrir? —Não acho que você seja tão poderoso quanto pensa. Booker apenas ouviu o leve assobio de uma cobra antes que ela se desenrolasse ao redor de sua garganta. O peso caiu sobre seus ombros, trinta quilos de uma serpente penduradas nele quando o golpeou e agarrou a garganta de Leroy entre suas presas. O Pai Pinkerton deixou escapar um som distorcido. As presas afundaram mais profundamente em seu pescoço, segurando-o no lugar para Booker se aproximar. —Diga isso mais uma vez. Outro som baixo borbulhou de seus lábios com a espuma de espeto que ele não conseguia engolir. —Isso foi o que eu pensei. Uma arma clicou atrás dele, depois metal frio pressionado contra a parte de trás de sua cabeça. —Deixe-o ir, Booker. —Não até eu conseguir o que quero. —Você não pode lutar contra todos nós. Mas ele não podia? Ele olhou em volta e viu seis Pinkertons ao seu redor e mais subindo as escadas. A cobra arrastou Leroy para mais perto, apenas o suficiente para ele sussurrar: —Prometa me ajudar a encontrá-la. Leroy balançou a cabeça, estreitando os olhos em um olhar. —Última chance. — Quando o Pai balançou a cabeça novamente, Booker soltou uma risada suave. —Você realmente acha que esses homens podem me parar? Você é um homem morto de desejo. Toda emoção de raiva brotava dele com o crepitar de poder e anos de ódio que se acumularam em algo mais forte, algo infinitamente mais poderoso do que aquilo que aquele médico vodu havia feito com ele. Correntes saíam dos pulsos, tornozelos e pescoço. Elas atingiram os rostos dos dois homens atrás dele, depois passaram pelos braços do terceiro para a direita. O metal pesado bateu na carne, arrancando a pele macia e quebrando os ossos. A águia se afastou de suas costas, saindo da camisa e voando. Ela disparou em direção às escadas, garras estendidas para rasgar através dos olhos da mulher no topo do patamar. Ela gritou e tentou pegar o animal, mas ele já estava voando em direção à sua próxima vítima com um bico mortal estalando. Lobos arrancaram suas panturrilhas e se lançaram para o homem à sua esquerda. Animais gêmeos, um branco e o outro preto. Cada um agarrou um braço e rasgou até gêiseres de sangue jorrar de seu corpo. Aranhas caíram de seus braços, escorpiões de seus ombros. Eles enxamearam no chão e sobrecarregaram a mulher mais próxima que levantou a arma para atirar nele. Ela gritou quando cinquenta insetos venenosos a picaram ao mesmo tempo. Booker inclinou a cabeça para o lado e encontrou o olhar horrorizado de Leroy. —Há mais, Pai. Muito mais do que você fez comigo, e estas são apenas algumas. A águia gritou e outra pessoa soltou um grito. O sangue espirrou nas paredes, pingando no chão, tudo em questão de segundos. Líquido vermelho escorria dos corpos que tiveram sorte se gemessem. A maioria já estava morta. Leroy soltou um longo suspiro e Booker enviou uma ordem mental para que todas as suas criaturas parassem. Elas congelaram no ar, no chão ou nas vítimas. Ele se inclinou para mais perto, usando a cobra para arrastar Leroy tão perto que seus lábios tocaram a orelha de Booker. —Sim? —O que você quer de mim? Um sorriso lento se estendeu pelos lábios de Booker. —É isso. Quero saber tudo sobre o pastor Harris. E então você vai me ajudar a encontrá-lo. —O pastor é um bom amigo dos Pinkertons. Booker recostou-se, olhos arregalados de surpresa fingida, depois assentiu. —Bom, então você saberá exatamente onde encontrá-lo. Não se preocupe, eu não vou matá-lo. Eu só vou fazer ele desejar que ele estivesse morto. Irene abaixou a cabeça, cuspindo um pedaço de sangue coagulado no chão. Seus dentes estavam frouxos na boca, embora ela não soubesse como isso tinha acontecido. Eles pararam de bater no rosto dela no momento em que seus olhos começaram a inchar e seu pai viu o quanto eles haviam causado a ela. Seus braços estavam esticados ao lado do corpo, amarrados à parede no pequeno galpão onde a colocaram. As articulações dos ombros doíam. Eles estavam além da fixação? Ela realmente não conseguia imaginá-los voltando ao lugar após vários dias disso. Ela pensou que já haviam se passado três dias, embora não tivesse muita certeza. O sol nasceu e se pôs três vezes que ela se lembrava. Mas a maior parte do dia passou sem que ela percebesse. Um balde de água estava fora de alcance. Eles lhe deram um pouco de bebida e tentaram afogá-la no balde para tirar o demônio dela. O pastor Harris disse que havia tornado a água benta apenas orando por ela. Deus realmente abençoava algo só porque um padre pedia? Ela tinha certeza de que não era assim que funcionava. Irene tossiu. Seus pulmões doeram quando ela respirou muito. A dor veio de uma mistura de costelas machucadas e quebradas em sua frente e as marcas de cílios abertos e chorosos nas costas. Eles tentaram espancar o demônio dela. O padre disse que essa era a única maneira de libertar o demônio. Depois de todo esse tempo, já era parte dela, então eles tinham que fazer da concha um lugar onde o demônio não gostaria de permanecer. Mentiras. Tudo mentiras. Ela inclinou a cabeça de volta para o raio de luz que veio através de uma fenda no teto. No começo, ela tinha sido gentil com eles. Ela tentou ser a boa filha que seu pai havia criado e os perdoou pela dor que eles causaram. Ela sussurrou: —Está tudo bem. Façam o que vocês têm que fazer, mas não estou possuída. Depois de dois dias de dor e desgosto, ela desistiu dessa tática. A última surra foi recebida com maldições e assobios quando ela jogou todo o seu corpo fraco na tentativa de se afastar deles. Se ela soubesse que o padre usaria isso para provar que realmente estava possuída, ela poderia ter tentado ficar mais um pouco. O olhar nos olhos de seu pai a assombrava. —Viu? — O padre cuspiu, segurando um punhado dos cabelos dela na mão e forçando-a a encarar o pai. —Esta não é a filha que você criou. Este é um demônio em carne humana. Tudo o que fazemos a libertará da prisão que ele criou. Ela esteve tão perto de convencer o pai. Irene fechou os olhos e o sol brilhou em seu rosto. Era bom ter um pouco de calor, mesmo que o galpão ficasse sufocante durante o dia. Estava frio à noite. Pelo menos por alguns momentos, ela poderia ter algum tipo de alívio. Quanto tempo eles continuariam? Provável até que ela quebre. Antes de fugir, ela poderia ter quebrado no primeiro dia. O circo a tornara mais forte. Booker a tornara mais forte. Ela respirou fundo, forçando o ar a continuar, mesmo que suas costelas estivessem pegando fogo. Ela poderia fazer isso. Booker ficaria tão bravo com ela se parasse de tentar lutar por sua liberdade. A corda robusta que segurava suas mãos foi a primeira coisa que ela teve que superar. Eles não a tinham desamarrado. O cordão de cânhamo cravava em seus pulsos, deixando o sangue seco manchado na sua pele. Ela puxou a contenção novamente, testando para garantir que sua mente não vagasse e que a corda tivesse milagrosamente afrouxado. Ainda era forte demais para ela se quebrar sozinha. —Droga. — Ela sussurrou. Irene olhou ao redor da cabana vazia mais uma vez. A sujeira sob seus pés havia se espalhado entre os dedos dos pés, onde a água vazava através de um lado da cabana. O balde no canto era a única coisa que não ela. Ela puxou a corda, testando as paredes para ver se eram fracas. Elas não eram. O que ela tinha à sua disposição? Nada além de seu próprio corpo, e ela não comia há três dias, o que significava que estava ainda mais fraca do que teria ficado se estivesse bem alimentada. Tinha que haver algo... A tinta em seus braços mexeu. Ela olhou para a tatuagem enquanto ela se deformava e ondulava até que uma pequena gota de tinta se soltou de seu corpo. Não apenas uma, mas dezenas de minúsculas bolhas pretas subiram pelo braço esquerdo. Formigas? Irene piscou os olhos algumas vezes. Será que realmente as formigas estavam movendo em uma fila para a mão dela? Ela não se lembrava dele tatuando formigas nela, mas talvez houvesse algumas nas folhas. Ela não o viu tatuar nada em seu corpo. Parecia assustador demais ver a agulha mergulhando na tinta e depois perfurando sua pele. As formigas enxamearam a corda que segurava seu pulso esquerdo e começaram a morder o cânhamo. Demorou um pouco, mas ela podia sentir estalando a cada momento, quando elas conseguiram mastigar outro fio. A luz do sol mudou em seu rosto, passando da parte superior da testa até o nariz e a boca enquanto elas trabalhavam. O tempo passou rápido demais. O pastor Harris e o pai a procurariam em breve, e as formigas só conseguiram roer metade da mão. —Rápido. — Ela sussurrou. Não havia formigas na outra tatuagem? Ela esticou o pescoço para olhar a outra mão, mas não havia formigas saindo daquela. Somente abelhas que se moviam em agitação. A corda na mão esquerda deu um último estalo e o braço caiu ao lado do corpo. As formigas achataram de volta em sua pele. Ela não conseguia sentir os dedos. O peso morto de sua mão caiu inutilmente contra seu corpo. —Vamos lá. — Ela rosnou, tentando forçar a sensação de volta ao membro. Ela tinha que se mover para poder tirar a outra mão dos laços antes que alguém viesse buscá-la. Soltando um longo suspiro, ela suportou as alfinetadas e agulhadas que faziam parecer como se a pele de seu braço estivesse sendo esfolada. Ela enfrentou a dor dos músculos quando a levantou e apertou os dedos o mais forte que pôde. E então, ela levantou a mão para a outra corda. A porta se abriu. Agora ela conhecia o rangido baixo de cor. Não poderia esquecer se ela tentasse. Eles estavam vindo. Irene soltou um pequeno gemido e arranhou a corda que segurava seu pulso. —Vamos lá. — Ela murmurou. —Vamos. O fio estava tão apertado em torno de sua mão que ela precisaria de algo para cortá-lo. Ela o seguiu de volta para a parede onde eles haviam pendurado em um gancho bem acima da cabeça. Ela ficou na ponta dos pés para alcançá- lo, mas eles colocaram perto do teto. Tinha que haver algo... Irene virou-se e correu para o balde. Seu braço amarrado a pegou com força, arrastando-a para trás alguns passos e fazendo seu ombro estalar com um som que balançou por seu corpo. Ela soltou outro gemido, enrolando-se. Parecia que alguém a esfaqueou com um póquer quente. O calor fazia com que os músculos fibrosos do ombro e do bíceps se movessem em ondas de tremores. O balde era sua última chance, e eles estavam chegando. Ela esticou uma perna, flexionando os dedos dos pés e alcançando a borda. Seu ombro protestou quando ela esticou o braço o máximo que podia fisicamente. O som de um estalar ecoou em seu ouvido novamente, e ela sabia que desta vez não voltaria por conta própria. Ela tinha esticado demais. Metal frio roçou os dedos dos pés. Ela estava tão perto. Ela não podia desistir agora. Irene rangeu os dentes, puxou com mais força o ombro até a corda afundar no pulso e o sangue escorrer pelo antebraço. Os dedos dos pés tocaram a ponta do balde e o derrubaram. A água fluía sobre os dedos dos pés, gelada ao toque, mas revigorante. Ela poderia fazer isso. Apenas mais alguns centímetros, e ela poderia fechar os dedos dos pés na borda e arrastá-lo para perto o suficiente para poder correr de volta para o outro lado. A porta da cabana se abriu. Irene fechou os olhos com força e segurou o braço recém-libertado perto do peito. Seu coração trovejou contra a palma da mão. Ela poderia puxar o balde agora? Ela nem queria saber qual deles estava parado na porta. O pai dela poderia deixá-la ir. Ela poderia implorar, alegar que foi seu pai quem a deixou ir. Botas arrastaram-se pela terra e ela sabia que não era o pai dela. Ele não se confundiu; ele pisava confiante. Uma mão tocou seu queixo e inclinou a cabeça para trás. Dedos lisos que nunca foram insensíveis em sua vida. Dedos que já a tocaram tantas vezes a deixaram enjoada só de pensar nisso. —Abra seus olhos, criança. Ela as apertou com mais força. Ela esteve tão perto. —Agora. — Desta vez, as palavras foram pontuadas com um aperto de sua mão tão forte que fez seu queixo doer. Irene abriu lentamente os olhos e olhou fixamente em seu olhar sombrio. Ela conhecia cada parte do rosto dele como se fosse dela agora. Cada centímetro odiado de seu rosto foi queimado em sua memória pelo resto de sua vida como o homem que tentou, e falhou em quebrá-la. O padre sorriu, lento e cheio de alegria. —Você ainda não desistiu. —Eu não estou desistindo. Seus dedos se encaixam nas contusões que ele já havia deixado em visitas anteriores. Ele a segurou no lugar enquanto olhava para o braço livre dela, depois a corda pendurada do outro lado do pequeno galpão. — Impressionante. Como você fez isso? Ela se recusou a doar qualquer coisa. Irene olhou para ele enquanto despejava cada pontinho de seu ódio no olhar. Que ele se pergunte como ela fez isso. Talvez fosse o demônio que ele pensava que vivia dentro dela. —Não minta para mim, garotinha. Como você fez isso? Irene colocou uma pequena quantidade de cuspe na língua e cuspiu no rosto dele. Ele a soltou então, limpando a umidade. —Você realmente acha que isso foi sábio? Ela não se importava se era sábio. Ela o destruiria se tivesse a chance. Como era, ela ainda queria estender a mão e rasgar a garganta dele com os próprios dentes. Deixe-o pensar que ela era um animal, se ele quisesse. Talvez ela devesse agir como um. —Venha agora. Estou tentando ajudá-la, Irene. — Ele pegou o queixo dela novamente e a puxou para mais perto dele. —Você tem um monstro dentro de você e ele precisa ser consertado. Sua mente piscou com lembranças do que ele havia feito com ela. O chicote, as facas, o metal queimado que ele colocou nas costas dela. Este homem a tinha marcado pelo resto da vida, tudo em nome de Deus. Ele não trabalhava para Deus. Ele trabalhava para si e para sua própria necessidade distorcida de ver as pessoas sentirem dor. Embora ele não pudesse vê-los, os espíritos de todos que ele machucava estavam ao seu redor. Eles entraram no galpão como se estivessem se alimentando da raiva dela. Ela os fortaleceu com seu ódio. Quase forte o suficiente para tocar. Um se inclinou para frente e arrancou uma mecha de cabelo do ombro do padre. Ela viu quando ele se ergueu no ar e depois caiu de volta no chão. Eles eram fortes o suficiente para tocá-lo agora? A mulher morta atrás dele, a que ainda tinha os olhos, mas parecia que tinha perdido a língua, assentiu. Seu cabelo loiro estava preso ao crânio. Sangue derramado de sua boca toda vez que ela a abria, mas o sorriso em seu rosto era suficiente para dizer a Irene o que eles queriam. Eles o seguiram o tempo todo para se vingar, e ela planejava ser a única a dar a eles. —Eu não tenho um monstro dentro de mim. — Ela rosnou. —O que você chama de demônio, Irene? Amigo? — Ele levantou uma sobrancelha. —Você não está pensando logicamente. O demônio está lhe dizendo o que fazer. —Não. — Disse ela, balançando a cabeça. —Eu já me perdoei pelas minhas diferenças. Não sou um monstro, apenas uma mulher que procura consertar as coisas. Talvez ela nunca acreditasse neles antes, mas acreditava nas palavras agora. E essa crença ardeu em suas veias, dando-lhe mais força do que ela jamais se lembrava de ter. Irene encontrou o olhar do espírito parado atrás dele. Ela sorriu para as coisas mortas que agora teriam sua vingança. Eles poderiam finalmente descansar se ela apenas os ajudasse. Irene não conseguia entender por que demorou tanto tempo para perceber que eles só queriam que ela ouvisse seus desejos, mesmo que não pudessem dizê-los. Dois espíritos se afastaram dos outros e caminharam atrás dela. Eles alcançaram as mãos debaixo dos braços cansados, ajudando a levantá-la. Ela podia senti-los. —Obrigada. — Ela sussurrou para eles. —Eu não estou mais instável. —O quê? — O padre retrucou. Ela voltou sua atenção para ele. —Eu sinto muito por você. Você nunca terá o prazer puro e absoluto de ver o mundo sem uma lente. A verdade que está na sua frente ficará para sempre escondida. Ele franziu a testa e tentou dar um passo para trás, mas os fantasmas atrás dele impediram qualquer movimento. Antes que ele pudesse emitir outro som, Irene limpou a garganta. —Não sinto muito por onde você está indo ou pelo modo como será enviado para lá. —Você não vai me amaldiçoar, demônio. —Eu não preciso. — As tatuagens em seu braço direito, ainda se movendo, ondulavam. Ela sentiu algo forte e suave deslizar por cima do ombro, por baixo do vestido rasgado e sair pelo outro lado. Uma cobra preta, vermelha e amarela deslizou para seu pulso. O padre soltou um suspiro. —Que magia é essa? Demônio, vá embora de mim! Você não tem poder aqui. —Eu não sou um demônio. — Respondeu ela. A cobra de milho deve ter sido tatuada sob todas as flores. Ela não tinha medo, mesmo que fosse a cobra mais mortal do sul. —Mas eu sou o acerto de contas enviado para sua alma. Seus olhos arregalaram-se para os dela logo antes que a cobra atacasse e o mordesse. Ela o pegou diretamente em seu pulso, por baixo de camadas de tecido enquanto bombeava veneno diretamente em sua corrente sanguínea. O veneno da cobra tatuada deve ter sido mais forte que suas primas reais. O padre ficou rígido imediatamente, seu peito trabalhando por uma respiração que não viria. A neurotoxina já havia começado a congelar os músculos que seu corpo costumava respirar. —O que... você... fez? — Ele chiou, dando um passo para o lado apenas para cair de joelhos. A mulher atrás dele com a boca ensanguentada se inclinou e sussurrou algo em seu ouvido. Seu rosto ficou branco de medo. Irene balançou a cabeça. —Não era com isso que você deveria se preocupar. É o que eles vão fazer com você. —Quem? — Ele chiou. —Não demônios. Apenas todo mundo que você machucou em sua cruzada para tentar ajudar aqueles que você considera indignos. — Irene acenou com a cabeça em direção ao balde ao seu lado, que depois se moveu em sua direção. Um espírito o chutou, mas ele provavelmente só o viu ir por conta própria. Ela se abaixou, pegou o balde de metal e colocou-o firmemente no chão. Sem olhar para ele, ela se levantou e soltou a corda que a amarrava. Não mostre fraqueza, ela disse a si mesma. Seus braços permaneciam flácidos ao lado do corpo, mas ela se virou para encará-lo com tanta raiva que lágrimas surgiram nos cantos dos olhos. — Eu não sou possuída por um demônio. Você tem medo de mim porque sou diferente, mas estou aqui para lhe dizer isso. Não vou mudar porque você quer que eu mude. Tenho orgulho de quem eu sou. — Ela endireitou as costas, as costelas machucadas reclamando, os olhos doendo onde eles ainda estavam inchados e o estômago revirando de fome. —As pessoas me amam por quem eu sou. Não preciso justificar meu valor porque você não o vê. Espuma borbulhou em seus lábios. Os espíritos se amontoavam ao seu redor, sussurrando velho ódio em seus ouvidos. Ele olhou para ela através de suas formas enevoadas. —Você é uma abominação. — Ele rosnou. Ela balançou a cabeça. —Não, eu não sou. E eu vou andar pelos portões perolados, enquanto você queimará no inferno. Com o homem Pinkerton com ele, Silas, que ele alegou ser chamado, pressionou um lenço contra a testa para esfregar o suor que manchava sua testa. —Você tem certeza que este é o lugar? —Eu não sei. Diga-me você. Booker não podia imaginar que este era o lugar onde o pastor teria montado sua cabana de caça. Não havia nada aqui além de um pequeno lago ainda coberto de espuma verde. O musgo espanhol que se agarrava às árvores já começara a sufocá-las. Membros nus e mortos esticavam-se no céu e sacudiam quando o vento soprava através dos galhos. A cabana na frente deles tinha visto melhores dias. O prédio de um andar já fora pintado de branco, mas a maior parte da tinta havia sido retirada para revelar nada além de tábuas envelhecidas e cinzas. Um lado da varanda cedeu com madeira podre. Um pequeno galpão nos fundos era o único outro edifício, embora ele suspeitasse que houvesse algum tipo de banheiro externo para as mulheres. Ele limpou a garganta e acenou com a cabeça em direção ao prédio. —É aqui que o pai nos mandou ir? —Claro que é. —Parece que ninguém está aqui há um tempo. Um baque ecoou de dentro da cabana, seguido por uma maldição que ecoou no ar nevoento da manhã. O sol continuava tentando romper a névoa, mas ainda não havia conseguido. Booker olhou para Silas e viu que o homem estava tenso como quando ouvira o som. Por alguma razão, era bom estar com outra pessoa que sabia como matar. Ele reconheceu a sede de sangue nos olhos do outro homem. Era difícil sentir falta, considerando que ele sentia a mesma emoção. Ele queria provar sangue na língua. Silas enfiou a mão na cintura e sacou uma pistola. Desligando a segurança, ele inclinou a cabeça para o lado. —O chefe disse que você está dando os tiros nesse. Booker queria deixá-lo entrar na cabana e atirar em todas as pessoas que ousassem tirá-la dele. Mas ele não podia arriscar que Irene fosse pega no fogo cruzado. Deus sabe o que eles já fizeram com ela. Uma bala poderia ser a última coisa que ela veria antes de morrer. Rangendo os dentes, ele balançou a cabeça. —Aguente. Ele flexionou os ombros e deixou sua mente alcançar a tatuagem em volta da garganta. A cobra rolou contra sua pele e se retirou de sua carne. Escamas verdes brilhantes deslizaram por seu braço. A mais valorizada de suas tatuagens, a que ele mesmo havia criado, caiu no chão coberto de musgo. Ela levantou a cabeça, provando o ar. Então olhou para Booker com olhos amarelos por seu comando. Ele se agachou e estendeu a mão para descansar a cabeça. —Vá para o barracão. Veja quem está lá. A cobra assentiu e deslizou pelo chão em direção à cabana. —O que isso vai fazer? — Silas perguntou com um bufo. —Não é como se uma cobra pudesse falar. Mas ele não precisava falar. Booker levantou a mão pedindo silêncio, ficou agachado com um joelho no chão e deixou a cobra tomar conta de sua mente. De repente, era ele quem se movia pelo chão. O que a cobra via, ele via. Cada centímetro do chão, cada pedaço de madeira rachado na escada, até a abertura da porta. O pai dela se ajoelhou no lado oposto da casa. Suas mãos estavam apoiadas no chão, punhos pressionados contra a madeira enquanto ele murmurava uma oração. Um pote quebrado estava em pedaços no chão. Um acidente? De alguma forma, não parecia ser. A cobra deslizou para dentro da sala e depois recostou-se atrás da cabeça do pai. Booker sentiu o queixo tremer e um chiado baixo através da garganta. O pai de Irene ficou rígido. Ele se endireitou lentamente, mas apenas virou a cabeça para olhar a criatura atrás dele. Curiosamente, ele não parecia surpreso ao ver a serpente. Em vez disso, ele inclinou a cabeça em aceitação. —Eu sabia que você viria. — Seu pai murmurou. —Eu simplesmente não sabia quanto tempo levaria. Booker murmurou: —Mantenha-o lá. — Depois cortou a conexão com a cobra. Levantando-se, ele olhou do outro lado da baía escura para a cabana onde o homem covarde o esperava. Este era o pai dela. O homem que lhe deu a vida e a única razão pela qual Irene já esteve em seus braços em primeiro lugar. E ele ainda queria matá-lo. Ele flexionou os bíceps, depois puxou os punhos para perto do peito enquanto se preparava para uma luta. Ele não descansaria até sentir o estalo de carne contra ossos ásperos, até o sangue espirrar da boca desse homem e ele choramingar a verdade de onde ele mantinha sua filha. —Venha. — Ele rosnou para o Pinkerton. Ir em direção ao barracão parecia que ele estava esperando para fazer isso a vida inteira. Ele precisava vingá-la. Ele precisava fazer algo mais do que apenas deixá-la cuidar de seus próprios problemas. Booker colocou um pé na frente do outro, subiu as escadas e colocou a porta do lado. Ela atingiu a parede com um estrondo severo. O pai de Irene se encolheu, os olhos dançando cuidadosamente entre a cobra grande e Booker que agora enchia a porta. —Quem é você? —Vingança. O homem olhou de volta para ele, ignorando a cobra enquanto ele observava cada centímetro da forma de Booker. Seus olhos permaneciam nas tatuagens marcando os ombros e os braços de Booker. Quando ele finalmente se dirigiu ao rosto de Booker, ele soltou um gemido baixo ao ver as correntes se movendo contra a testa de Booker. —Você é ele. — Seu pai murmurou. —Você foi quem fez isso com ela. —Fui eu quem a libertou. — Respondeu ele, dando um passo à frente. —Você é quem colocou o demônio dentro dela. —Eu destranquei sua gaiola. —Você destruiu tudo o que ela era. Minha garotinha perfeita. Booker se agachou lentamente ao lado da cobra e apoiou a mão na pele. —Perguntei à alma dela se era feliz. — Ele rosnou. —E não era. Seu pai recuou ainda mais. Seus ombros cederam, seus olhos tão arregalados que o branco rodeava as íris. —O diabo pode ser feliz? —Somente quando um anjo lembra quem ele costumava ser. As mãos de Booker tremiam com a necessidade de enfiar o homem na terra. Ele queria que o pai sentisse toda a dor que Irene havia sofrido em sua vida. Mas, por outro lado, este era o homem que lhe dera Irene. Ele poderia machucar quem fazia parte dela como sua própria alma? O clique de uma arma atrás dele levou a escolha embora. Silas disse: —Onde está a garota? —Eu não disse para ficar de boca fechada? — Booker rosnou. —Levando muito tempo. Tenho coisas a fazer com a família. O pai de Irene olhou entre eles, seu rosto ficando ainda mais branco se isso fosse possível. —Os Pinkertons? Eles se voltaram contra mim? O rosto de Booker se torceu em um sorriso sardônico que parecia não natural em seu rosto. —Os Pinkertons nunca estiveram com você, velho. Eles estavam sempre comigo. — Ele estendeu a mão, agarrou um punhado da camisa do homem e o puxou para perto. —Isso só pode acontecer de duas maneiras. Esfolarei toda a pele do seu corpo até que você me diga onde ela está, e não vou deixar você falar muito rápido, porque eu quero muito vê-lo com dor... ou você pode me dizer onde ela está. Como ele suspeitava, o pai dela não levantou muita discussão. Ele levantou a mão trêmula e apontou para o quarto dos fundos. —Atrás da casa. Ela está no galpão. —E o que você tem feito naquele galpão, pastor? —Nós só queríamos tirar o diabo dela. Booker nunca fora um bom homem. Ele não podia parar com isso agora. Então ele se inclinou mais perto, junto com a cobra que sacudiu a língua para provar a orelha do pastor. —Você nunca poderia tirar o demônio dela agora, velho. Eu pretendo mantê-lo. O gemido baixo quase o fez se sentir mal por brincar com o homem, mas, novamente, ele não tinha muita pena de alguém com uma espinha tão pequena. Fungando, ele jogou o pai de Irene no chão com um baque forte, levantou-se e limpou as mãos na camisa. —Isso serve. Vamos buscá-la então. Silas apontou a arma para o pai. —Quer que eu faça um trabalho rápido? Booker olhou para a figura amassada no chão. Era um homem que estalara, quebrado como uma panela caída do telhado de um prédio. O pai de Irene balançava para frente e para trás, sussurrando palavras que provavelmente deveriam se proteger contra espíritos malignos. —Não. — Ele murmurou. —Deixe o velho viver com sua culpa e ver quanto tempo ele dura. O olhar do pastor levantou-se, sua forma tensa. —Não, espera. Não posso viver assim, e você claramente quer... Booker o interrompeu. —Eu não vou tirar sua vida. Decida fazer isso sozinho ou viva com a culpa. Bem-vindo ao seu inferno pessoal. Ele se virou e saiu da casa que agora estava cheia do fedor de medo e suor. O velho decidiria por si mesmo, mas tinha a sensação de que seria uma vida difícil para ele agora. Era contra sua crença acabar com tudo, mas ele nunca mais veria a filha. Booker se asseguraria disso. —Atrás da casa? — Silas perguntou enquanto seus pés batiam na terra do lado de fora da cabine. —Eu tenho esse sozinho. — Respondeu ele. —Não, não o que os Pinkertons queriam de mim. — Silas enfiou a mão no bolso para pegar um cigarro. —Tem alguma ideia do que veremos lá? Ele soltou um suspiro baixo. —Nenhuma pista. — E ele odiava que não sabia o que ela havia passado sem ele. Silas puxou as pontas das mangas e depois soltou um suspiro de fumaça. —Depois que isso acabar, os Pinkertons terminam com você. Sem mais dívidas, sem mais ameaças. Você entra em nossa casa, será um banho de sangue. Um que eles perderiam, mas ele não precisava dizer isso quando o galpão estava à sua vista. —Entendido. —Apenas certificando-me. Um grito ecoou de dentro do galpão, e ele não sabia dizer quem era. Ou o que era. Booker começou a correr. Seus pulmões pesavam em seu corpo e todas as tatuagens rolavam contra sua pele, implorando para serem liberadas para que elas pudessem finalmente obter a vingança que desejavam. Ela sentiu dor. Ela estava gritando. O preço por isso era um quilo de carne. Sua mão se fechou na maçaneta da porta de metal e ele a abriu com tanta força que voou pelas dobradiças. Ele deixou cair no chão com os dedos moles. Ela estava no centro do galpão, olhando para o corpo de um homem que tremia. O padre, que já estava familiarizado com o gosto das juntas de Booker, olhou para ela. Nada além de uma camisola branca suja cobria seu corpo. Estava rasgada no ombro, os braços nus, sem mangas, e a pele arrepiada. Seus cabelos estavam emaranhados na cabeça e oleosos. O sangue manchava suas bochechas e seus olhos inchados piscavam lentamente. Irene não olhou para ele. Ela não parecia notar que a porta se abriu. Em vez disso, ela levantou a mão do lado oposto até o ombro. Uma minúscula cobra de coral deslizou sobre seu ombro e sacudiu a língua para ele. —Irene. — Disse ele, a voz embargada e a garganta se fechando de emoção. Ela estava bem. Ou melhor, não estava bem, mas, caramba, ela estava viva. Sua cabeça se virou lentamente para olhar, mas seu olhar não se concentrou nele. Tudo o que viu foi um nevoeiro de dor e muita dor. Ele deu um passo para dentro da cabine e estendeu a mão para ela dar. —Sou eu. Ela balançou a cabeça e recuou, a cobra coral sibilando um aviso baixo. —Irene. — Booker tentou novamente, passando por cima do corpo do padre cujos olhos o seguiam. —Venha aqui, anjo. Está na hora de ir para casa. Algo mais estava acontecendo aqui. Ele nunca a tinha visto tão vazia antes. Era como se ela olhasse para algo na frente dele, não sua forma real. Os espíritos, ele percebeu. Havia mais alguém na frente dele, bloqueando sua visão. —Eu preciso que você se mexa. — Ele murmurou. Então levantou um braço tatuado. —Vou levá-la de volta à segurança. Vê? Eu sou igual a ela. Como uma cortina aberta, seus olhos se moveram, e de repente ela estava olhando para ele. Um suspiro engasgado a atravessou. —Booker? —Venha aqui, bebê. Ela se arrastou na direção dele, seu corpo fraco demais para correr. Então ela caiu nos braços dele e, Deus, se ela não estivesse finalmente em casa. Ele a fechou em seus braços e a puxou para perto. Ele passou a mão pela parte de trás dos cabelos oleosos dela, depois pressionou os lábios contra o topo da cabeça dela. A cacofonia de raiva e desejo de prejudicar desapareceu de sua mente. Em vez disso, tudo o que ouviu foi uma melodia que cantava repetidamente: Ela está viva. Cuidadosamente, ele deslizou as mãos para as bochechas dela e ergueu o rosto para ele. —Eu te amo. Muito. Eu não sabia o quanto estava sozinho até você entrar na minha vida, e agora não consigo imaginar um dia sem você ao meu lado. Ela assentiu. —Eu também te amo. —Mais do que a própria vida. —Você veio para mim. — Irene sussurrou, lágrimas se acumulando nos cantos dos olhos. —Como você sabia onde me encontrar? —Alguém me deve um favor. — Booker se inclinou e tocou seus lábios nos dela em um beijo leve. —Vá lá fora agora, amor. Há um homem chamado Silas esperando para levá-la para casa. Ela estremeceu nos braços dele. —O que você vai fazer? Booker se afastou dela, guiando-a cuidadosamente em direção à porta e colocando-a no pântano além. Ele apoiou os braços no batente da porta e respirou fundo. —O diabo tem trabalho a fazer, Anjo. Irene estava com os pés descalços e os tornozelos no fundo da lama. Uma brisa suave brincava com o ninho emaranhado de seus cabelos loiros. A camisola ondulava em torno de sua forma e, embora estivesse machucada, agredida, ela ainda se mantinha alta, com uma força que ele tanto admirava. —Seja cuidadoso. —Eu voltarei para casa para você. —Você é o melhor. Ele fechou a porta nela, a escuridão inundando o galpão. Booker pressionou a testa contra a madeira gasta por um segundo. Então ele sentiu aranhas e escorpiões choverem de seu corpo e deslizarem no chão. Booker nunca mentiu para ela e não iria começar agora. Ele tinha o diabo nele, e fazia muito tempo desde que ele sentiu as cinzas do inferno queimarem em brasas dentro de seu peito. Ele se virou para o padre no chão e sorriu para ele com dentes afiados que caíam de suas gengivas tatuadas. —Olá padre. Lembra de mim? Uma toalha fria acariciou sua testa, despertando-a de um sono profundo e sem sonhos. Irene abriu os olhos, embora parecessem estranhamente corajosos. Diferente de outras épocas em que ela sofria, ela se lembrava de tudo ao acordar. Ela não havia esquecido o tratamento severo de seu pai, a maneira perigosa como o outro padre a espancara. Ela não esqueceu que Booker foi quem a salvou. Ele se inclinou ao lado da cama dela, seu pulso tatuado na frente dos olhos dela, enquanto limpava cuidadosamente o suor e a sujeira da testa dela. Cada pedacinho de sua alma relaxou no momento em que ela fixou o olhar nele. Finalmente, toda a tensão que havia montado em seus ombros por tanto tempo poderia aliviar. Ela podia respirar só porque ele finalmente estava aqui. —Estamos em casa? — Ela perguntou, com a língua grossa na boca. —Estamos em casa. — Booker tocou o pano na bochecha e esfregou a mandíbula. —E eu gostaria que você ficasse aqui para sempre. —Eu tinha planejado isso. —Você tinha? — Ele levantou uma sobrancelha. —Como você chegou a essa conclusão? Irene se mexeu no travesseiro e depois girou o corpo, mesmo que isso doesse suas costelas. Ela deitou de lado para encontrar o olhar dele de frente. —Eu não quero ir a nenhum outro lugar. Quero ficar aqui onde me sinto segura. —E você está segura. — Uma sombra passou por seus olhos. —Não importa o que. —E eu quero ficar com você. Ele congelou então, como se nunca tivesse imaginado que ela gostaria de ficar. Como se não fosse possível que Irene o quisesse. —Diga isso de novo? —Eu quero ficar com você. — Ela repetiu. —Descobri que não me sinto como eu, a menos que saiba que você está perto de mim. —Eu não sou um cobertor de segurança. —Não, Booker, não é isso que estou dizendo. — Ela pegou a mão dele, tirando o pano e entrelaçando os dedos. —Eu quis dizer o que disse quando você me salvou. Eu te amo. E não me importo se tenho que cair do céu para ficar com você, mas quero você para sempre e sempre. —Isso é sábio? — Ele apoiou os cotovelos na cama e pairou sobre ela. — Você não pode voltar atrás depois de concordar com isso. Vou mantê-la. —Eu quero que você mantenha. —Longe de suas nuvens celestiais. —Oh, Booker. — Ela sussurrou, então o puxou para baixo para pressionar os lábios. Ela sussurrou contra o toque aveludado: —O céu é onde você está. Pareceu um longo tempo desde que ela foi capaz de aceitar sua fé e sua vida. Mas naquele momento, pressionada contra ele como estava, Irene sabia que Deus sorria para eles. Eles eram duas almas quebradas que se consertaram no momento em que se conheceram.